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RESUMO: Através da análise de documentos da época, o artigo pretende levantar questões sobre o caráter político dos
quilombos, que foram descobertos e destruídos nas Minas Gerais do Século XVIII.
ABSTRACT: By means of a documentary analysis of the period, the author aims at raising issues on the political situation
of the quilombos discovered and destroyed in Minas Gerais during the seventeenth century.
PALAVRAS-CHAVE: Escravidão, escravismo, rebeldia escrava, quilombos, Minas Gerais.
KEY-WORDS: Slavery, proslaver system, slave rebelliousness, quilombos, Minas Gerais.
no Brasil Meridional de Fernando Henrique Cardo- realidade por si mesma. Isto só seria possível com a
so. Estudando o escravismo no Rio Grande do Sul, interferência de agentes externos a ela.
Fernando Henrique Cardoso reelabora e até mesmo Por outro lado, percebe-se um certo desencanto
sofistica a questão embora, a nosso ver, continue com a classe escrava, na medida que se atribui a ela
presente o mesmo tipo de visão. uma incapacidade de desenvolver m o v i m e n t o s revo-
O autor em questão admite duas possibilidades: lucionários nos moldes da burguesia e do proletaria-
do europeus.
quando o escravo participava da produção em grande escala Em estudo sobre o Quilombo de Palmares, Décio
para a exportação, atuava unicamente como mão-de-obra Freitas diz que
reificada. Nesta qualidade, é óbvio que não podia tomar
consciência da sociedade como um todo nem do sentido
no caso das formações sociais escravistas, as da Antiguida-
que sua situação de dependência adquiria no contexto so-
de ou as dos tempos modernos, não foi o processo de con- '
cial: a socialização parcial a que o sujeitavam, a
tradições internas o fator determinante da mudança; a mu-
despersonalização a que era submetido e as formas de co-
dança foi provocada primordialmente por fatores externos
erção e controle desenvolvidas pela sociedade escravocrata
[mesmo porque] a trágica contradição que pesava sobre as
tornavam o escravo incapaz de reação coordenada e de per-
rebeliões escravas consistia em que, por um lado, não po-
ceber criticamente sua posiçãò.[.„] Quando porém o negro
diam triunfar a menos que ganhassem a adesão de alguma
participava da produção doméstica ou artesanal começava
categoria social importante e, por outro lado, esta possibi-
a ter possibilidade de perceber a sociedade como um todo
lidade estava objetivamente excluída nos marcos da socie-
e de aprender o sentido da situação do escravo e do negro
dade escravista (FREITAS, 1978, p. 188). ,
na totalidade (CARDOSO, 1977, pp. 217-218).
e s c r a v i s t a " e, por causa disto "revestiam um cunho a tradicional afirmação sobre a reificação do escravo deve
indubitavelmente revolucionário". Todavia "pertenci- ser repensada em outros termos que não os da própria afir-
mação. Para compreender tais situações, não basta simples-
a m às insurreições sociais do tipo arcaico, não do mente constatarmos que os escravos eram, ali e num deter-
tipo modernizante. Eram insurreições anti-escravistas minado momento, coisa e, depois e acolá, pessoa (LARA,
e nada mais do q u e isso" (FREITAS, 1976, p. 99). 1988, p. 352).
O fecho da citação é emblemático do preconceito
eurocentrico que, d e certa forma, caracteriza esta li- Referindo-se à obra de Fernando Henrique Car-
nha d e análise. doso citada anteriormente, Sílvia Lara afirma que
A o se tomar c o m o parâmetro a perspectiva que o
m a r x i s m o , enquanto projeto político, propôs para o tais concepções, ao salientarem coisificaçâo e a alienação
do escravo, restringem-lhe a humanidade à sua ação crimi-
proletariado, o escravo acaba reduzido a uma condição
nosa, a ações de resistência explícita, como a fuga e o
d e " c l a s s e de s e g u n d a categoria", incapaz de atingir quilombo, ou a iniciativas senhoriais de ensinar ofícios ao
u m a visão da realidade e de articular movimentos de trabalhar cativo. Postas nestes termos, essa ca racle rização
caráter político q u e apresentassem uma alternativa à da figura do escravo anula a possibilidade de entender que
os escravos eram seres que agenciavam suas vidas enquan-
estrutura de dominação (da sociedade escravista).
to escravos, resistindo e se acomodando, e que a relação se-
Q u e r nos parecer, entretanto, q u e esta é apenas nhor-escravo era fruto dessa dinâmica, entre esses dois pó-
u m a das vertentes do marxismo vulgar. A teoria não los, e não uma construção imposta de cima para baixo, uni-
é homogênea, principalmente em se tratando de um camente pela vontade senhorial (LARA, 1988, p. 353).
projeto político.
Enfim, as décadas de 60 e 70 delimitam o contex- O choque entre as duas visões não podia ser mais
t o n o qual a tese d a "incapacidade política do escra- evidente.
v o " apresenta sua maior vitalidade, o q u e nos levou Prossigamos com esta corrente.
a aderir a ela ainda no princípio dos anos 80 (GUI- Um dos pesquisadores que tem se destacado na
MARÃES, 1983). O s estudos que surgiram principal- análise de rebeldia escrava é João José Reis, autor de
m e n t e a partir da metade desta década provocaram estudos sobre revoltas escravas ocorridas na Bahia
u m a mudança radical quanto a esta questão. no século passado. Em artigo no qual faz uma bri-
Caracterizada por forte influência da denominada lhante revisão das teses sobre aquelas rebeliões (de
N o v a História, b e m c o m o por uma expressiva dose escravos males), J. J. Reis afirma:
d e anti-marxismo, consolidou-se a perspectiva de re-
c u s a r a idéia d o e s c r a v o incapaz e a b s o l u t a m e n t e a análise de Clóvis Moura melhora de um trabalho para
outro, mantendo-se entretanto alguns problemas de inter-
s u b m e t i d o . Desloca-se o eixo da discussão. A o invés pretação. É deveras esquemática, e historicamente incorre-
d a contradição entre opressão e resistência, privile- ta, a proposição de que escravos não podem tomar o po-
g i a - s e a negociação e o consenso. O risco de cair no der, como se aquilo que aconteceu, aconteceu porque assim
e x t r e m o oposto existe. estava escrito no Livro Sagrado das Estruturas. Ora, dadas
determinadas circunstâncias históricas os escravos podem
E m alentado estudo sobre a escravidão na região destruir a escravidão, como ocorreu no Haiti (REIS, 1988,
d e C a m p o s dos Goitacazes, Sílvia Lara dedica um ca- pp.107-108).
p í t u l o à questão da reificação do escravo. Após le-
v a n t a m e n t o de situações onde o escravo aparece em Mais claro não poderia ser este posicionamento
p o s i ç ã o de " n e g o c i a ç ã o " com seu senhor, a autora diante da tese da incapacidade política do escravo.
c o n c l u i que Mas, J. J. Reis prossegue:
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o espaço de trabalho africano na cidade era um lugar pri- vo-coisa perde a sua razão de ser. É necessário admi-
vilegiado de elaboração cultural e política, ali onde se ma- tir que a crítica d e C h a l h o u b é pertinente em alguns
terializava a exploração escravista também produziam
símbolos de rebeldia e projetos de uma vida independente aspectos, mas o resultado final nos parece desastro-
do senhor branco e seus aliados (REIS, 1988, p. 135). so. A reificação do escravo no plano e c o n ò m i c o é
diferente de sua e x p r e s s ã o política. A o igualar as
Em obra mais alentada onde trata especificamen- duas coisas C h a l h o u b destruiu a p o s s i b i l i d a d e d e
te do levante dos escravos males de 1835, J. J. Reis avançar sua crítica.
reproduz as palavras do presidente da província Para Chalhoub, o escravo q u e negocia algumas
baiana sobre o escravos que participaram do movi- das suas condições de existência estaria também ne-
mento: "6 inegável que eles tinham um fim político, gando o seu ser-coisa. Tal ponto de vista é um equí-
porquanto não consta que eles roubassem alguma voco se levarmos em conta a alienação em uma pers-
casa nem que matassem aos senhores ocultamente" pectiva totalizante. Embora possa negociar, o escra-
(REIS, 1986, p.105). vo não deixa de ser escravo: o q u e significa dizer
O intuito de captar a expressão política dos movi- que ele não deixa de ser coisa. Por outro lado, o fato
mentos articulados pelos escravos baianos do sécu- do indivíduo ser escravo não impede q u e ele possa
lo XIX é evidente em J. J. Reis, para quem a "rebelião ter, o tempo todo, atitudes políticas 1 d e negação da
de 1835 demonstra que os males foram além da sub- ordem escravista. Esta é a expressão da contradição
versão simbólica. A partir de um determinado momen- existente em cada escravo: ser ao m e s m o tempo coi-
to eles começaram a estruturar politicamente a pro- sa e sujeito histórico. O processo de rei fi cação/alie-
posta rebelde" (REIS, 1986, p. 138). nação não se dá a p e n a s em um ou outro nível. Aqui
Não é nosso objetivo fazer uma exposição exaus- cabe uma crítica à posição de Sílvia Lara. A citação
tiva dos diferentes autores de cada corrente, mesmo desta autora q u e r e p r o d u z i m o s a n t e r i o r m e n t e traz
porque isto escapa totalmente à orientação do traba- uma visão e q u i v o c a d a d a dialética. N ã o se trata d e
lho. Vamos concluir esta parte com a referência a uma ser uma coisa aqui agora e uma pessoa acolá, em se-
obra, não tão expressiva quanto as citadas anterior- guida. Trata-se d e ser c o i s a e p e s s o a a o m e s m o
mente, mas válida para nossos intentos. Trata-se de tempo, tanto aqui c o m o acolá. A q u e s t ã o chave é
'Visões da liberdade de Sidney C h a l h o u b (CHA- detectar em c a d a m o m e n t o qual é o caráter preva-
LHOUB, 1990). lente.
Numa tentativa pretensiosa de acabar de vez com De qualquer maneira, tanto o trabalho d e S. Lara
o que denomina de "teoria do escravo-coisa", Cha- quanto o de S. C h a l h o u b são expressivos da corren-
lhoub volta-se contra Perdigão Malheiro, Fernando te que vê o e s c r a v o n ã o c o m o sujeito t o t a l m e n t e
Henrique Cardoso e Jacob Gorender. Mas, se por um submetido mas, enquanto sujeito q u e luta por inte-
lado consegue identificar pontos críticos (e criticá- resses e obtém vitórias no j o g o q u e ( p o r envolver
veis) nas obras dos referidos autores, Chalhoub não relações de n e g o c i a ç ã o e c o n f l i t o e n t r e c l a s s e s )
consegue ir além, mesmo porque estabelece uma estamos d e n o m i n a n d o de político. D e n t r e as duas
igualdade entre o que denominamos de "tese da in- correntes, q u e p r e t e n d e m o s ter e v i d e n c i a d o , nosso
capacidade política do escravo" com o que ele deno- trabalho a p o n t a ^ a r a uma compreensão d o s quilom-
mina de "teoria do escravo-coisa". O raciocínio des- bos enquanto f e n ô m e n o s portadores de u m caráter
te autor é de lógica formal primária: se a incapacida- político q u e n e c e s s i t a s e r e v i d e n c i a d o . P a s s e m o s ,
de política do escravo não existiu, a teoria do escra- pois, aos quilombos.
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Esta definição nos permite identificar tanto o es- João Reis Cortes, que havia participado de campa-
cravo quanto os proprietários de escravos como in- nhas contra quilombos, utilizando como atacantes
tegrantes de classes distintas. Arriscamos ainda a seus próprios escravos (SCAPM, cód. 21, p. 89 e v.).
admitir o forro enquanto classe, cuja existencia apre- Dez anos depois, em 1732, o capitão dos dragões
senta a peculiaridade de ser originaria da classe es- José de Morais Cabral sugeria em carta a D. Louren-
crava. Mas, o que aparentemente é simples nesté es- ço que a Fazenda Real comprasse vinte e quatro es-
quema, se torna extremamente complicado quando cravos que, armados, seriam utilizados em substitui-
nos remetemos à realidade. Se ser escravo é ter uma ção aos capitães-do-mato na Comarca do Serro Frio
posição clara na estrutura social, ser senhor de es- (SCAPM, cód. 27, p. 114).
cravos já não é tão claro. Os senhores de escravos Em 1736, foi a vez de Bento Ferraz de Lima rece-
tanto poderiam ser livres quanto poderiam ser forros ber patente de capitão-mor das Catas Altas por ter
c até mesmo escravos. A medida que desdobramos cumprido bem a tarefa de destruir quilombos no mor-
cada categoria nas suas especificidades, a complexi- ro do Caraça, "no que dispendeu considerável fazen-
dade da trama social e a dificuldade de apreendê-la se da por levar muitos escravos armados" (SCAPM, cód.
tornam mais evidentes. 49, p. 69 v. a 71).
O nosso ponto de partida é a constatação de que Em todos os casos citados, temos uma situação
os quilombos configuram (e estão no centro de) uma em que os senhores armam seus escravos e os utili-
realidade conflituosa da qual participam diferentes — zam contra quilombolas. São escravos que, no confli-
senão todas — categorias sociais. Esta realidade nada to entre senhores e escravos, lutam ao lado dos se-
mais é que um conflito entre senhores e escravos, o nhores.
que nos permite atribuir-lhe um caráter político E evidente que uma explicação para isto pode ser
(MARX, 1976, p. 164). o fato destes escravos serem obrigados por seus se-
A grande questão é desvendar como cada uma nhores. Mas não é tão fácil entender por que, estan-
das categorias sociais (escravos, senhores, forros, do armados, estes escravos não se voltavam contra
etc.) participam deste grande conflito. Dito de outra os seus senhores.
forma, qual é o posicionamento político de cada ca- Se participar da tropa sob comando do senhor
tegoria diante do conflito que, de certa forma, atinge pode ser uma situação que pode explicar o compor-
toda a sociedade? Começaremos pela classe escrava. tamento destes escravos, tal não se dá quando o es-
Como é que os escravos se posicionam diante cravo age sozinho, ou fora da órbita do senhor.
dos quilombos, considerando que a maior parte dos Em 17 de Janeiro de 1731, o "preto escravo"
escravos não foge? Amaro de Queiroz, propriedade de José de Queiroz,
Em 1714, o governador D. Braz Balthazar proibiu recebeu patente de capitão-do-mato para atuar no
o uso de armas nas Minas, exceto para senhores que distrito de Antonio Pereira, termo da Vila do Carmo
fossem viajar. Estes poderiam levar escravos armados (SCAPM, cód. 34, p. 20 e v.). Domingos Moreira de
para se defenderem nas estradas (SCAPM, cód. 09, p. Azevedo, crioulo escravo de Andrà Alvares de Aze-
10 v.). Apenas lembramos que uma das ameaças a vedo, em 5 de novembro de 1760 recebeu patente para
que os viajantes estavam sujeitos vinha da parte dos atuar na área de Piracicaba e do Caraça (SCAPM, cód.
quilombolas. 114, p. 167 e v.). E, em dezembro de 1779, foi confirma-
Em 1722, o governador D. Lourenço de Almeida da patente a José Ferreira, pardo escravo do capitão
concedeu patente de sargento-mor de ordenança a Antonio João Belas (SCAPM, cód. 18217, p. 130).
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Nestes três últimos casos citados, a autonomia de zasse a atacar quilombos, traz como argumento o fato
cada um dos escravos é muito grande. Não há a pre- do requerente ter, naquele momento, cinco escravos
sença d e seus senhores no m o m e n t o em que atuam que andavam fugidos e
profissionalmente e, no entanto, eles não fogem e
ainda atuam c o m o peças importantes na manutenção por mais diligências e tocaias ou negaças que lhes tem fei-
to não é possível aprendê-los pela razão de se refugiarem
do sistema q u e os coloca na condição de escravos.
e acoutarem se em umas poucas de fazendas que é constan-
Bem, se por um lado temos escravos que lutam, te servem de coito aos negros que fogem de seus senhores
literalmente, em defesa do escravismo e ao que tudo e que os escravos das mesmas fazendas lhes facilitam o dito
coito e o que mais é também alguns donos das menciona-
indica seu n ú m e r o foi g r a n d e , a posição contrária
das fazendas em gravíssimo prejuízo do particular e do
pode ter sido a mais comum. bem comum (SCAPM, cód. 260, p. 16 v. e 17).
Uma reclamação constante das autoridades colo-
niais se relacionava à rede d e informações criada pe- No ano de 1795, o fazendeiro Marcelino da Costa
los quilombolas, e que os avisava sempre da movi- Golçalvcs enviou correspondência ao governador
m e n t a ç ã o das t r o p a s o p r e s s o r a s . Esta rede agia a das Minas contando que
partir das próprias senzalas.
sendo roubado com vilipêndio de sua pessoa pelos negros
Em 1759, Bartolomeu Bueno do Prado, em sua
calhambolas no dia 24 de janeiro, agora tem notícia que os
c a m p a n h a no C a m p o Grande encontrou um grande ditos negros do mato vieram acompanhados com outros
quilombo despovoado pelo fato dos quilombolas te- das fazendas vizinhas que andavam roçando para feijão do
rem tido conhecimento com antecedência da organi- que persuade o suplicante pelas foices que traziam nas
zação e d e s l o c a m e n t o da tropa (SCAPM, cód. 1.23, mãos quando o assaltaram , talvez com o projeto de repar-
tirem o roubo que não foi pequeno, e porque sendo assim
p. 103 e v.). algumas coisas ainda poderão aparecer nas senzalas dos
Em 1769, o conde de Valadares escreveu ao capi- ditos escravos, aqueles que o suplicante desconfia pela ali-
tão auxiliar Manoel Rodrigues da Costa para que este ança que costumam ter com os do mato, com quem repar-
tem os mantimentos dos paióis de seus senhores ou ainda
fizesse averiguações na "fazenda Azevedo c o m o em
em casas de suas amasias acostumadas a darem coito e
outras das mais fazendas" o n d e se suspeitasse q u e favoríá-los (SCAPM, cód. 260, p. 44 v. e 45).
o s escravos passavam informações para quilombolas
ou lhes davam guarida (SCAPM, cód. 165, p. 127 v.). Os documentos acima citados parecem-nos sufi-
Em 25 de fevereiro de 1 7 7 3 , o c o m a n d a n t e cientes para exemplificar a situação que descreve-
Manoel G o u v e a escreveu a o capitão-mor Liberato mos. Se uma parte dos escravos foge, defende a pre-
José Cordeiro informando que s e r v a ç ã o do sistema escravista, outra parcela se
posiciona claramente, e às vezes acintosamente, ao
por notícias certas que tinha de haverem negros fugidos no lado dos quilombolas, prestando-lhes não só ajuda
sertão de Crumatahy fora à roça de Francisca Antonia e que
achando que os escravos desta falavam e comunicavam material, informações e até mesmo participando de
aqueles, intentar dar buscas nas senzalas dos seus escravos, suas empreitadas de saques. Do exposto até aqui,
os quais saindo armados com armas defesas lhe embaraçou deduzimos que o conflito entre senhores e escravos,
a diligência chegando o seu arrojo a virem no provocando
no seu desenvolvimento, por um lado gera os qui-
até o rancho que distamais de meia légua de Domingos de
tal (SCAPM, cód. 199, p. 13). lombos e por outro provoca uma ruptura no interior
da própria classe escrava, fazendo com que uma par-
Um requerimento do capitão Elias Antonio da te dela lute contra os senhores e a outra lute a favor
Silva de 1792, no qual solicita portaria que o autori- deles.
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Passemos à atuação dos forros. Em 1732, em carta enviada ao conde das Galveas,
O primeiro dado importante está expresso no nú- na época governador das Minas, El Rei pede parecer
mero de forros que ingressa na profissão de homens- sobre determinadas medidas a serem t o m a d a s contra
do-mato, cujo objetivo é a recaptura de escravos fu- as m e s m a s negras forras, proprietárias d e v e n d a s ,
gidos e destruição de quilombos. De um total de 467 sobre as quais pesavam as acusações de prostitui-
patentes de homem-do-mato levantadas, quase quin- ção e de nas suas casas virem . ;
ze por cento foram concedidas a forros (GUIMA-
RÃES, 1983, p. 120 e segs.). A utilização do forro em provcr-se do necessário os negros salteadores dos quilom-
posições chaves peio sistema escravista foi percebi- bos, tomando notícia das pessoas a que hão de roubar e as
partes onde lhes convém entrar e sair, o que tudo fazem
da em várias circunstâncias por outros estudiosos
mais facilmente achando ajuda e agasai honestas negras que
(QUEIROZ, 1977, p. 5 3 ; IANNI, 1962, p. 61 e 146; assistem nas vendas (SCAPM, cód. 35, doe: 110).
BOXER, 1969, pp. 190-191). Acresce-se a este dado o
fato de que grande numero de forros acabou por se Em 1736, é a vez do governador G o m e s Freire de
tornar proprietário de escravos, o que os colocava na Andrade emitir opinião a respeito dos p r o b l e m a s .
condição de defenderem seus interesses lutando Considera que não deve haver deslocamentos de tro-
pela preservação do sistema. Para citar apenas duas pas de ordenanças em socorro à Marinha (em u m a
cifras, segundo Francisco Vidal Luna, no Serro Frio circunstância específica) pois elas eram necessárias
em 1738, dos 1744 proprietários de escravos, 387 eram contra
forros; e na freguesia das Congonhas do Sabará em
1771, de um total de 235 proprietários de escravos, 51 os inimigos internos quais se podem considerar em seme-
eram forros (LUMA, 1981, p. 75 e 92). lhante ocasião não só os negros fugidos que costumam
saltear os caminhos, mas os mulatos forros, mamelucos e
Dando ao forro a possibilidade de se tornar se- ainda os próprios escravos (SCAPM, cód. 44, p. 129 v. e
nhor de escravos, o escravismo adquiria uma maior 130).
capacidade de resistência às pressões da classe es-
crava. Dito de outra forma, uma parte dos antigos Em julho deste mesmo ano, os "moradores da Fre-
escravos da cooptada para lutar em defesa do escra- guesia de São Sebastião" fizeram um pedido ao go-
vismo. vernador Martinho d e Mendonça, para q u e p u d e s -
Mas, se uma parte dos forros defende o sistema, sem atacar "um quilombo de negros e fazer buscas
outra parte caminha na direção oposta. nas c a s a s dos forros e a ç o i t a r os d e l i n q ü e n t e s " .
O primeiro documento nos remete ao conde de (SCAPM, cód. 59, p. 2)
Assumar que, em 1719, acusava os forros de assisti- Em j a n e i r o do a n o s e g u i n t e , este g o v e r n a d o r ,
rem "o muitas vezes com ouro, mantimentos, pólvo- atendendo à petição do capitão-do-mato Francisco
ra e chumbo aos quilombos de negros fugidos". Soares, determinou que " n ã o se impeça ao suplican-
Continuando, Assumar investe contra as forras te entrar nas tavernas e casas de negros e m u l a t o s "
proprietárias de vendas, pois, segundo ele, "nas ca- forros quando estiverem em diligência a procura de
sas destas depravadas [os quilombolas] fazem os fugitivos (SCAPM, cód. 59, p. 11 v.)
seus ajuntamentos e tomam as suas resoluções para Em 1764, é a vez do governador Luis D i o g o Lobo
insultar e desinquietar com o sumo perigo os bran- da Silva tentar pôr sob controle os escravos e forros
cos nas suas fazendas" (SCAPM, cód. 04, pp. 740- das Minas. Em extenso bando, onde recorre a leis a
748). partir de 1719, proíbe que as negras de tabuleiro (tan-
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Dez anos depois, em 1781, de Paracatú escrevia alidade e da maneira como deveriam enfrentá-la. É
Antonio José Dias Coelho ao governador informan- nesta medida que nos parece viável a percepção do
do a inquietação em que se encontravam os morado- quilombo enquanto a viabilização de u m projeto po-
res locais com relação aos quilombolas, dentre outros lítico.
motivos porque cies chegavam
Conclusão
a passear de noite pela vizinhança do Arraial, e entrando
dentro cautelosamente, para persuadir à fugida as negras da Dos pontos abordados consideramos válidas al-
casa de seus senhores... é fácil de crer que dentro do Arrai- gumas conclusões:
al, haverá negro que lenha inteligência com os calhambolas,
para avisar as espias do projeto dos capitães-do-malo e — em primeiro lugar, a necessidade de superação da
por isso quando estes vão fica frustrada a diligência tese que prega a incapacidade política do escravo;
(SCAPM, cód. 223, p. 7 v. e 8). — em segundo lugar, a percepção do quilombo en-
quanto uma modalidade de existência do campesi-
No mesmo ano de 1781, os moradores do distrito nato na sociedade escravista mineira colonial que
da Ressaca, termo da Vila de São José, reclamavam constitui o universo abordado. Não descartamos
dos "negros fugidos que não somente desencami- evidentemente a possibilidade de aplicação do es-
nhava os seus escravos como tão bem lhe furtam as quema analítico a outras épocas e sociedades;
suas criações e mantimentos" (SCAPM, cód. 231, p. — em terceiro lugar, a necessidade d e percepção deste
41 e v.). campesinato não só na sua d i m e n s ã o económica
Finalmente, digno de nota é o caso citado em re- (visão mais imediatista), mas também na sua dimen-
querimento do capitão Elias Antonio da Silva, também são política, enquanto agente coletivo no jogo das
morador no termo da Vila de São José. Refere-se a contradições que dão a tônica à dinâmica social;
— em quarto lugar, o fato do quilombo enquanto ex-
um dos escravos das ditas fazendas [que] é costumado e pressão da luta de classes, entre senhores e escra-
atualmente dá asilo a escravos erronés, socorrendo os de vos, ser um ponto em torno d o qual se dividem o s
todo necessário com tanto escândalo e animosidade que
escravos e forros;
não falta quem diga que ele é ciente e noticiado de qualquer
quilombo ainda existente na distância de 30 ou 40 léguas — em quinto lugar, a inegável coesão da classe pro-
(SCAPM, cód. 260, p. 16 v. e 17). prietária de escravos no seu posicionamento dian-
te do referido conflito;
Sem dúvida alguma, o trabalho de convencimen- — finalmente, a possibilidade de percepção do
to executado por estes escravos deve ser visto en- quilombo não só enquanto fenómeno, mas princi-
quanto atividade voltada para um objetivo específico: palmente enquanto projeto político q u e evidencia
viabilizar a instalação e crescimento dos quilombos. estratégias de realização por parte de seus mem-
Se entendemos os quilombos enquanto manifestação bros.
de caráter político, é evidente o caráter político tam-
bém destas atividades. Enfim, pensar o q u i l o m b o n a s s u a s várias
Por outro lado, é necessário considerar que estes nuances pode nos permitir compreender melhor sua
escravos tinham uma consciência precisa de sua re- dinâmica e sua inserção na sociedade escravista.
80 Carlos Magno Guimarães I de História 132 (1995), 69-81
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Endereço do Autor: Departamento de Antropologia e Sociologi; - FICH/UFMG • Av. Antonio Carlos, 6.627 • Belo Horizonte
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