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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAGAO Na PUBLICACAO (CIP) {CAsara Brasiteia Do Livro, SP Brasit) Gilson, Etienne Introdugao as artes do belo ~ © que é filosofar sobre a arte? / Etienne Gilson; tradugao Erico Nogueira. ~ Sao Paulo : E Realizagées, 2010. Titslo original: Introduction aux arts du beau, ISBN 978-85-88062-97-6 1. Arte - Filosofia 2. Estética 1. Titulo, 10-08197 CDD-701 INDICES PARA CATALOCO SISTEMATICO: 1 Arte : Filosofia 701 Este livro foi impresso pela Prol Editora Gréfica para E Realizagtes, em agosto de 2010. Os tipos usados so da familia Weiss BT e Inked God Regular. O papel do miolo é chamois bulk dunas 90g, ¢, da capa, cartao supremo 200g. No oitavo volume da Enciclopédia Francesa, décima secdo, pagina 7, H. Wallon cita a seguinte frase de Lucien Febvre: “Com certeza, a arte é um tipo de co- nhecimento". O presente livro, ao contrario, repousa sobre a firme e inveterada conviecao do autor de que a arte nao é um tipe de conhecimento, senéo que depende de uma ordem distinta da do conhecer ~- no caso, a ordem do fazer ~, ou, sé é que podemos nos expressar assim, da “factividade”. Do comego ao fim, este livro se pGe a dizé-lo, di-lo e explica-o, e como isto se diz numa sé frase, poder-se-ia perguntar qual a razdo de escrever e publicar o referido livro. Ora, a razio esta na locugao adverbial “com certeza", empregue por Lu- cien Febvre. Com efeito, a imensa maioria esta certa de que a arte, em Ultima instancia, € um tipo de conhecimento. Precisamente aqueles que tém reservas quanto a isto devem se defender da convicgao espontanea de que o artista “tem algo para dizer”, e de que a fungao de sua obra € nos comunicar alguma ideia, NOG4O, EMogso ou sentimento, quase da mesma mancira como, por meio da es- crita, um homem informa seus semethantes sobre o que se passa no seu espirito. Quando a maioria, pois, fica embaragada e no sabe dizer o que o artista quer exprimir, diz que ele se exprime a si mesmo. Esta visio € to difundida que che- gaaté as instituigdes de ensino. Hd cerca de quarenta anos, ou mais,’ numa cida- de do estado da Virginia, olhando com a devida admiragao 0 caderno de classe de uma garotinha norte-americana entdo com oito ou nove anos de idade, meu olbar se deteve na seguinte observagio de seu professor de educagio artistica: “Frangoise € uma crianga encantadora; pena que nao consiga se exprimir na ar- gila” ~ “it's a pity she cannot express herself in clay”. Felizmente, Francoise tinha outras * Este fivro foi publicado em 1963. (N. T.) maneiras de se exprimir. Faltava-fhe aquela, em suma, com que a natureza ou- trora regalou a Michelangelo e Donatello, por exemplo ~- supondo, é claro, que eles tenham esculpido suas estatuas para se exprimir. Se, porém, como estou persuadido, isso é um erro, é preciso admitir que € um erro inocente, no sentido de que suas consequéncias nao interessam & vida moral; ndo obstante, além de um erro nunca ser bom em si mesmo, este, em especial, gera inumeraveis consequéncias especulativas que se fazem sentir em todas as ordens direta ou indiretamente ligadas a arte. Sendo assim, tentei dar alguma clareza as minhas ideias sobre o assunto, de inicio para mim mesmo, depois, como seria natural, para todos os que se interessam por esse problema e nao dispdem de tempo habil para meditar livremente: pois ainda que a ordem seguida por mim nao thes confira a satisfagio desejada, ajudd-los-4 a encontrar uma ordem que os satisfaca. Em todo caso, trata-se unicamente, aqui, de filoso- fia— comegando pelo comeco, isto é, pela procura, ainda que breve, do tipo de questio que a filosofia pode se colocar acerca da arte. A partir dai, refletindo, na posigao de filésofo metafisico, 4 luz dos principios primeiros, esforgou-se por esclarecer sucessivamente as nogées principais, 4 medida que se ofereciam ao espirito. Para tanto, foi amitide necessario abstrair, isto é, expor-se conscien- temente a0 reproche de pensar em separado aquilo que, na realidade, se di em conjunto; seguiu-se, entéo, o que pareceu ser a ordem natural das nogdes no pensamento, contando com o leitor para reconstruir 0 conjunto no seu proprio espirito. As conclusées do Jivro sao uma como recompensa oferecida pelo au- tor, haja vista a austeridade da abstragao a que teve de se ater ja logo no inicio. Ele espera que este regalo agrade ao leitor. No entanto, nao sairemos jamais da metafisica. Depois de Pintura e Realidade,? que se propunha a ir da arte para a filo- sofia, e precisamente de uma arte particular para a filosofia mais geral, quisemos, desta vez, chegar 4 nog3o mais geral da arte enquanto tal a partir da filosofia do ser. Daf a auséncia quase total de artistas, com suas palavras sempre muito a propésito e amitide arrebatadoras, pelo qué o autor sentiu um pesar continuo, ainda que este nao fosse o lugar de lhes ceder a palavra. Contudo, nio pudemos 2 Livro publicado pelo autor em 1958. (N. T) 8 | IntRopucao As Artes po BELO deixar de ceder-lha aqui e acolé, mas somente a titulo de exemplo. Como quer que seja, deve-se ter em mente que estes elementos de uma metafisica da arte nao se eximem da filosofia de nenhuma das artes em particular. E na verdade impossivel deduzir de uma metafisica da arte a nogao particular de uma arte ¢s~ pecifica, como, por exemplo, a pintura ou a musica. No entanto, essa metafisica nao thes é indtil. Desde logo, ela diz por que certas atividades humanas mere- cem o nome de belas-artes. Além disso, estabelecendo as regras gerais a que a interpretagao de cada arte particular deve se ater a fim de nao menosprezar asua esséncia, ela é a protecdo mais segura contra o onipresente risco de filistinismo, © qual consiste em n&o ver a arte onde ela esta, e em admira-la onde nao existe. Uma poiética’ geral nio dispensa nenhuma poiética particular, mas utiliza todas elas. Faltaria, pois, escrever um estudo que considerasse sucessivamente cada uma das artes maiores a fim de testar se as conclusées da poitica geral se verificam nelas ¢ de que modo isso se dé. Tal nio seria propriamente um sistema de belas-artes, pois clas podem formar um coro, uma danga, e, quem sabe, até mesmo uma ronda, mas nao formariam um sistema. O autor se veria na dificul- dade de falar de técnicas que nao possui, mas é mister confessar que precisa- mente esse € 0 fardo do filésofo, pois quem perderia o seu tempo escrevendo sobre musica, se a pudesse compor? Ao menos ele pode se abster de tomar a filosofia por arte e, ajudando outras pessoas a fazerem 0 mesmo, pode poupar o mundo de muita arte ruim, de muita filosofia ruim. Mas ainda isso, quem sabe, seria esperar demais. "Do grego “poitn”, ie., “fazer”, "produzte”. (N.T) Preracio | 9 ITUEO I O que é filosofar sobre a arte? No fim de uma vida repleta dos prazeres da atte, € natural que um filésofo se interrogue sobre sua origem. O que é a arte? A resposta deve ser facil de encontrar. Letras, misica, pintura, escultura ~ a arte sob todas as suas formas The serviu as suas obras com requinte ¢ abundancia. Aquelas que sua época nao produziu para ele, o trabalho dos historiadores e dos arquedlogos literalmente desenterrou e colocou sob os seus olhos. Os eruditos decifraram e recompuse- ram o poema de Gilgamesh, tornaram publicas as estatuas do Egito e da Grécia, deram voz aum sem-nimero de misicos cujas obras hibernavam, em estado de eriptograma, dentro de velhos cofres, armarios de sacristia ou bibliotecas nunca antes visitadas, Desse mundo de obras esquecidas, assim como das que teve a fe- licidade de ver nascer, 0 filésofo preguigosamente se contentou com o desfrute. A arte nao the deve nada. Ele morreu sem enriquecer a terra com 0 mais diminuto objeto que aumentasse a sua beleza. Sua tinica fungao sendo compreender e fazer compreender, resta-lhe interrogar-se sobre a origem de tantos prazeres, que lhe parecem nobres e benfazejos, mas cuja exata natureza lhe escapa. Eele préprio, sem ddvida, que deve cumprir essa incumbéncia, para si mesmo e para 0s outros. E precisamente essa a sua tarefa; enquanto fildsofo, ele no se Ihe pode furtar. Nio obstante, cada vez que ele aborda o problema um tipo de desinimo o paralisa de antemao ¢ ele poe a pena de lado. A tinica esperanga de vencer esse obstéculo € tomar o mesmo obstaculo como objeto de reflexao filosdfica. Por que 0 filésofo nao pode pretender escrever sobre a arte sem experimentar o irresistivel sentimento da futilidade de tal empresa? Uma primeira razao é 0 que lhe parece ser o fracasso dos que o fizeram an- tes dele. Na sua juventude, cheio de uma sensibilidade que o entrega totalmente 2 imperiosa dominagdo de obras-primas entdo novas, 0 fildsofo se volta esponta- neamente para os seus maiores a fim de aprender qual seja a origem de prazeres sem os quais, segundo sente, ser-Ihe-ia impossivel viver. Entao, Ihes pergunta: 0 que é isso que eu amo? Qual é 0 objeto do meu amor? E comega a ler escritos cujos titulos prometem uma resposta 4 sua questdo, diversos “fildsofos da arte” passam por suas maos, mas logo ele constata que a maioria deles se contradiz em pontos essenciais, especialmente sobre a natureza da arte, isso quando nao acontece de chegarem ao fim sem antes fazerem o esforco de definir 0 sentido da questo, o que é muito comum. A segunda parte da Estética, de Benedetto Croce, é instrutiva a esse respeito. Trata-se de uma historia da estética escrita por um filésofo que foi ao mesmo tempo um mesire da escrita. Consiste numa avalanche de doutrinas desabando uma atrds da outra, das quais cada uma acre- dita enterrar para sempre as precedentes no mesmo momento em que é enter- rada, por sua vez, por uma doutrina nova ou apenas renovada. Nao se pode ler uma tal histéria das filosofias da arte sem sentir uma irresistivel necessidade de se ocupar de outra coisa. E um lamacal onde o sdbio cuidara de nao por 0 pé. Uma segunda experiéncia reforga as conclusées da primeira: é a Ieitura do que os proprios artistas dizem ou escrevem a respeito da arte. Comegamos a leitura confiantes, naturalmente, pois se aqueles que produzem arte ndo soube- remo que ela €, quem saber? No entanto, é preciso render-se as evidéncias & constatar que a desordem reina nas suas ideias, assim como no primeiro caso. Eles mesmos consultam os filésofos e herdam a sua confusio, depois do que eles acrescentam a sua propria, a qual consiste geralmente em definir sob a rubrica de arte o género particular de arte que convém ao seu talento. Sobre aquilo que thes nao agrada dizem “isto nao é arte”, ¢ assim como € vao que se discutam gostos, torna-se igualmente vao, por isso mesmo, discutir-se a natu- reza da arte. O testemunho dos artistas, porém, esta longe de ser dispensdvel. Muito pelo contrario, é naquilo que dizem sobre a arte que esto os mais pro- fundos e verdadeiros pareceres sobre a criagdo artistica, mas convém isola-los de tudo o que os liga as particularidades da arte deste artista ou daquele outro. 12 | Inrropucao As Apres DO BELo Tal discernimento nao é possivel sendo quando aquele que busca a verdade na confusdo e nas incompreensdes reciprocas das controvérsias tiver ele proprio alguma nogéo do que, afinal, tal verdade seja. A culpa dessas confusées nao é exclusiva da arte. Acrescente-se & sua a auséncia de uma nogao clara sobre o papel que a filosofia pode e deve desem- penhar nesse dominio. Para evitar, se possivel, aumentar a desordem, tentemos, pois, definir o objeto dessa reflexio, O que é que a filosofia pode pretender nos ensinar a respeito da arte? A resposta consiste numa sé palavra: ela nos pode revelar a sua esséicia. Essa nogao é téo antiga quanto a mesma filosofia ocidental. Sua descoberta per- manece ligada ao nome de Sécrates, cujo desejo era obter dos eventuais inter- locutores uma definig’o quanto possivel clara do significado das palavras que usavam. Sabemos que esse desejo elementar acabou por lhe custar a vida. Platao retomou a mesma concepgio dialética da filosofia, e Aristételes a transformou numa das verdades fundamentais de sua filosofia da natureza quando distinguiu, a propésito de toda coisa, duas questdes possiveis, a saber, se a coisa existe, e, entao, o que ela é. Aquilo que uma coisa é — eis 0 que os filésofos chamam de “esséncia” desta coisa. Interrogar-se, pois, sobre o que é a arte significa, para o filésofo, procurar qual é a sua esséncia. Ja que é préprio da esséncia dizer o que a coisa 6, ela inevitavelmente diz © que a coisa nao é, Ora, dizendo “isto é um circulo”, digo também que nao é um triangulo, nem um quadrado, nem tampouco um hex4gono. Assim, ¢ esta observagio jé foi feita na Antiguidade, cada vez que a esséncia diz o que a coisa €, diz mil vezes 0 que ela nao é; nao sendo, pois, a coisa nada do que sua essén- cia ndo é, as esséncias sdo mutuamente excludentes, de maneira que a definigdo de cada uma delas cabe apenas e tao somente a coisa que define. Atribuir a uma esséncia as propriedades de outra esséncia € a origem primeira de confusio em matéria de filosofia. Interrogar-se, pois, sobre a esséncia da arte é procurar o que a define enquanto tal e, por isso mesmo, é preparar-se para negar tudo o que ela nao é. Desde o primeiro momento, esta investigagao enfrenta uma dificuldade de 25 séculos de historia, a qual ndo nos cabe resolver aqui, evidentemente, Capituto [- © Que £ FLOSOFAR SOBRE 4 ARTE? | 13 mas cuja presenga deve ao menos ser reconhecida. Ela esta ligada ao problema das ideias, ou, como se dizia na Idade Média, dos universais. Um universal é uma ideia geral, um conceito, Nao ha pensamento sem conceitos e, no entanto, nao parece que os conceitos signifiquem objetos existentes fora do pensamento que os concebe. Sé 0 individual existe. Nao existe o homem em si, mas apenas homens. Donde a consequéncia embaragosa de que, se as esséncias significam © que as coisas so, as mesmas esséncias, ndo obstante, nao existem. Dir-se-ia hoje que, como puros objetos do pensamento, as esséncias tém ser, mas nao tém existéncia, j4 que esta ultima continua sendo privilégio do individual concreto. Donde provém inameras dificuldades, desde logo porque o parentesco das duas noges é um convite para confundi-las. Assim que o fildsofo deixa de poli- ciar sua linguagem, ¢ ainda mais no uso nio filoséfico dessas palavras, fica quase impossivel pensar num ser que nao tivesse existéncia, ou num existente que nao tivesse ser. A linguagem multiplica os equivocos a esse respeito. Mas a dificul- dade mais geral nao se deve a linguagem; € que nenhum objeto real existente em ato é uma esséncia simples. Todo existente pressupde que um complexo de esséncias copossiveis e mesmo reciprocamente ordenadas (mas distintas como esséncias) esteja simultaneamente fora da sua causa. Trata-se, aqui, de um fato primitivo, que no saberiamos deduzir de nada anterior, pois se liga 4 propria estrutura do real. Dafa necessidade de refletir nesse ponto e, desde logo, asse- gurarmo-nos de sua realidade. Se se estabelece nfo considerar como pure senao o ser da esséncia en- quanto tal, é certo que nada do que é atualmente existente sera metafisicamente puro. O que, alias, 6 uma tautologia, pois se a nogio de “concreto” implica essa mistura, ele é impuro por definigdo. Isso nao implica que procurar a defi- nig&o das esséncias seja vao. Sem tocar no problema da estrutura metafisica do ser “concreto”, pode-se dizer que, embora nenhum concreto seja uma esséncia simples, ele recebe 0 seu nome de uma delas. O homem em si nao existe, mas onde quer que se encontre um animal! dotado de conhecimento racional, eis af um homem. Um tal ser é evidentemente uma esséncia composta de outras es- séncias, tais como a animalidade e a racionalidade; nao obstante, é uno, segundo. aunidade propria do ser concreto. 14 | InTRODUCAO As ARTES DO BELO Da-se o mesmo com todas as esséncias reais, isto é, todas aquelas que néo sao simples abstragdes. Por exemplo, nao existe, provavelmente, elemento quimico puro na natureza. Se se toma a palavra em sentido absoluto, o cobre “puro” provavelmente nao existe como tal a ndo ser no pensamento ou nos livros, mas dai ndo se conclui que o cobre nao exista. Falar-se-d até de bom grado de objetos de cobre puro, quando o cobre “domina” suas impurezas na matéria que as constitui. Para tanto, basta que o cobre seja, como se diz, “praticamente puro“ de qualquer mistura. Tampouco o fato seguro de que, mesmo se fosse quimicamente puro, o cobre ainda assim seria um composto extremamente complexo de elementos atémicos nao muda em nada a nature- za do problema. Em todo caso, permanece importante conhecer a definigio, quididade ou esséncia daquilo que se pode chamar de metal puro, ao menos para saber a que objetos se pode legitimamente dar um tal nome. A impureza do oure, como quer que seja, permite que se estabelecam leis para fixar o ma- ximo de impureza além do qual um metal perde o direito de chamar-se ouro. O filésofo procede de maneira andloga na sua caga as esséncias puras. Ele nio pretende defini-las como seres que existem, mas como razées ideais em virtu- de das quais os seres realmente existentes s4o 0 que sao. Assim também, neste “ caso, a arte em si nao existe; néo existe quigd nem um tinico objeto sequer que seja pura e integralmente uma obra de arte, livre de todo elemento que nao o estritamente artistico, mas ainda assim é preciso saber a qual esséncia essa nogio corresponde, para que se possa dizer o que faz com que certas obras do homem sejam verdadeiros produtos de uma arte. Essa questdo, evidentemente, interessa apenas aos fildsofos ¢ Aqueles que, amando a arte por si mesma, também ousariam falar dela por amor a filosofia, pois é possivel amar a arte como artista e tentar falar a seu respeito como filé- sofo, mas a combinagio € rara e dificil de realizar. A arte € a filosofia exigem o dom de toda uma vida, ¢ € dificil ser genuinamente artista e fildsofo ao mesmo tempo. A menos que nos deixemos fascinar pelo génio artistico de Leonardo da Vinci, 0 certo é que é bem dificil extasiar-se com as reflexdes elementares que a pintura lhe sugere. Acrescente-se que, comparado ao niimero dos amigos da arte, o dos amigos da filosofia € bem restrito. Quando se coloca, pois, uma CapiTuno 1 - © QUE E FILOSOFAR SOBRE A ARTE? | 15 questao na posigao de filésofo, convém nao esperar nenhuma audiéncia superior aum pequeno ntimero de espiritos especulativos e meditabundos, acostumados a abstragao mesmo nas matérias que lhes calam mais fundo. O préprio fildsofo, as vezes, sente um certo embarago ao reduzir a conceitos e palavras aqueles objetos que, para ele, sio como que a honra e a gléria da realidade Tal é, contudo, sua condicdo particular como filésofo, A decisio de pro- curar a esséncia da arte importa inevitavelmente em realgar num relevo quase violento aquilo por que uma obra é uma obra de arte, deixando, pois, na sombra tudo o que, em si mesmo estrangeiro a arte, ainda assim permite & obra que exista. Isso pode até ser a maior parte dela, como o tema que © quadro retrata, os sentimentos que 0 poema exprime ou a histéria que o romance conta; em todo caso, esta é a parte mais visivel ¢ a mais imediatamente cativante no que toca as convengées da arte, porquanto elas nao consideram a arte em si mesma, mas somente as obras que a arte produz, E, pois, previsivel que uma especula- cdo puramente filosdfica acerca do elemento ultimo que faz de uma obra uma obra de arte nao interesse muito a quem, mais artista que fildsofo, estima que a reflexdo sobre a arte deva ela mesma ser uma obra de arte. Incapaz de respeitar ambas as ordens, e pouco disposto a trocar a arte pela filosofia, ele se inclina a pensar que quem fala sobriamente nao sabe 0 que éa arte ¢ a tomar suas efusdes por filosofia. Esse risco esta inscrito na prépria natureza do objeto. A confusao que reina na filosofia da arte, a qual trata da produgao e nature- za das obras, se reencontra no dominio da estética, que trata da sua apreensao. Desde logo, confunde-se a segunda com a primeira, da qual é diferente. Em seguida se define o seu objeto de varias manciras distintas porque, com efeito, possuindo a arte um grande nimero de elementos diferentes, e todos eles con- correndo para o resultado final, acontece de tomar por essencial o que nfo é sendo o mais imediatamente acessivel, Uma obra realmente bela pode logo agra- dar pelo que tem de fraco. Ela ganha aprovacio pelas facilidades que oferece Muitos sero os exemplos disso no curso de nossa investigacio. Baste-nos por ora, além do prdprio fato, a razio mais geral que se possa alegar a seu respeito: asaber, que tudo aquilo que a arte utiliza para seus fins, e com o qual integra as suas obras, em certa medida faz parte dela propria € a constitui. Com efeito, 16 | IntRonucao As ArTEs D0 BELO sem elementos desse género a obra nao seria possivel e, faltando-fhe substancia para nutrir sua forma, a arte estaria condenada a esterilidade. A causa da mais geral confuse, tanto em filosofia da arte quanto em es- tética, permanece, porém, a substituicao do ponto de vista do apreciador pelo ponto de vista do artista. Esse erro nos leva a confundir os problemas que se coloca o consumidor sobre a qualidade do seu produto com aqueles que o pro- dutor deve primeiro resolver para depois produzi-fo, quando, na maior parte do tempo, para nao dizer sempre, esses problemas sao profundamente diferentes. Nesse conflito, o ponto de vista do apreciador da arte tem um peso ine- vitavelmente superior ao ponto de vista do artista. O ntimero est do lado do puiblico, € a Gnica coisa que se espera dele é 0 julgamento das obras, pois ainda que 0 artista possa julg4-lo incompetente, o fato é que the submete as suas obras € espera a sua aprovagao. Repreender 0 publico por julgar o que se lhe oferece para ler, ver ou ouvir nao teria sentido algum, sendo que, a partir do momento em que © autorizamos a fazé-lo, damos-lhe uma imensa vantagem sobre o ar- tista, vantagem praticamente sem limites e, em todo caso, sem contrapartida alguma. A tarefa do artista € produzir, o que sempre coloca problemas; ao es- pectador nao cabe senao apreciar o resultado, 0 que € muitissimo mais facil. A resposta tradicional, segundo a qual nao é preciso saber fazer uma cadeira para poder dizer se ela € boa ou nao, é simplesmente um despropésito. Uma boa cadeira é uma cadeira sobre a qual se est4 bem sentado, coisa que cada um pode julgar por si; mas ne caso de dizer se uma cadeira € bela ou nao, quem saberia responder? Ora, ninguém deixaria de dizer o que pensa a respeito, mas € pre- cisamente por isso que as partes nao sao iguais, pois poucos sabem fazer, mas todos podem falar. Demais, é eminentemente natural que o homem fale daquilo que 1, vé ou ouve, e venha a formular, para si mesmo ou para os outros, as im- pressées que recebe € os pensamentos que pensa. Daf inextirpavel convicgao, vez por outra combatida, mas sempre recorrente, de que a arte é essencialmente linguagem, expressao, signo, simbolo, ou, numa palavra, comunicagéo de um sentido que ao artista cabe formular e, ao espectador, compreender. Asvezes a arte chega a ser concebida como um didlogo com a natureza ou com a realidade, para nao dizer com o piblico e até com o préprio artista. Mas esses supostos CapiruLo | - © QUE £ FILOSOFAR SOBRE 4 ARTE? | 17 didlogos sio em realidade mondlogos do critico, do esteta ou do filésofo, os quais elaboram perguntas e respostas sem consultar nem a natureza, nem © ar- tista. Como quer que seja, trata-se sempre de uma atividade essencialmente ver- bal, ¢ j4 que a tinica coisa que o nao artista pode fazer a respeito da arte é falar dela, é intitil que o fildsofo tente [he explicar que a arte, em esséncia, no é lin- guagem. Nao obstante, o fildsofo continua livre para pensar aquilo de que nio espera convencer ninguém, mas sua ambigéo nunca deve ir além desse ponto. Mesmo no interior de seu proprio pensamento, o filésofo nao esta livre para proceder ao bel-prazer. A natureza do objeto é quem dita o método. Ja que se trata de definir uma nogdo — no caso, a nogSo de arte ~, nenhum outro método se oferece além da andlise tradicional, que procede por divisdo de con- ceitos abstraidos da experiéncia sensivel. H4 apenas uma maneira de definir a arte e de definir, com Platao, o pescador de vara e anzol. Seguindo 0 exemplo de Sécrates, é preciso determinar © conceite atribuindo-lhe tudo 0 que the diz respeito, e excluindo o que nao the pertence necessariamente. Desse modo, definimo-lo em si mesmo, e ao mesmo tempo o distinguimos dos outros; é necessdrio que seja assim, porque agora nos movemos no reino das esséncias, onde o conceito € rei. E preciso reconhecer que esse método nao tem nada de artistico — mas é precisamente af que reside a sua exceléncia. Interditando os desvios da imagi- nagio, ele se conforma 4 regra segundo a qual toda reflexiio filoséfica, mesmo a que trata da arte, é essencialmente um exercicio especulativo da razao, ou seja, um movimento discursive do intelecto, Com efeito, a melhor protecdo contra as tentacécs da arbitrariedade consiste precisamente no esforgo do espirito em discernir os objetos por meio de conceitos formados segundo as regras tradi- cionais, as quais exigem que a definigio coincida totalmente com o definido, e coincida somente com ele. A menos que se aceite a secura desse método, nao sabemos aonde vamos. Assim como a filosofia da arte deve se proteger da tentacio de ser arte, ela também deve renunciar 8 ambigio de ser critica de arte. Ambos os erros, alids, tém a mesma origem: a circunstancia de que tudo a cujo respeito um homem pode falar com talento o leva a acreditar que o possa fazer com competéncia, 18 | INTRODUCAG AS ARTES DO BELO como se 0 tivesse produzido. O fildsofo é téo pouco critico de arte quanto artista. Sua tarefa, portanto, é dizer o que a arte é, o que a constitu, nao discer- nir entre obras bem-sucedidas ¢ malogradas. Ele nao pode se recusar a tomar em consideragao certas formas de arte, sob 0 pretexto de que sejam modernas demais, ou aberrantes, ou estejam em contradicéo formal com os cdnones tra- dicionalmente aceitos. Tudo o que satisfaz a definigao da obra de arte merece a sua atengao e pode nutrira sua reflexao. Seus gostos pessoais nao tém nenhuma fungao numa investigagio como essa. Pode-se amar ou no certas formas her- méticas de literatura, é possivel apreciar ou detestar os modernos estilos de pin- tura “abstrata”, mas em nenhum desses casos 0 julgamento estético das obras deve influenciar a reflexio do filésofo acerca da prépria natureza da arte, a qual transcende todas as suas realizagdes particulares. Essa mesma transcendéncia, alias, impede que o fildsofo, partindo de suas conclusdes, deduza qualquer regra de julgamento estético sobre o valor de tal ou qual obra de arte particular, Ne- nhum esteta jamais conseguiu fazé-lo, e basta que os leiamos para nos desfazer dessa ilusiio; nés frequentemente admiramos o que eles tem desdenhado, e nio é nada incomum que nos desconcertemos com o que admiram. Cada filésofo da arte relido com uma distancia de trés décadas nos faz constatar o quanto seus exemplos levavam a marca da época e do gosto dominante. Fosse hoje, ele nomearia outras obras e outros artistas. $6 permanecem mais ou menos estaveis aqueles grandes nomes, cuja admiragao se tornou convencional, Contudo, nao é preciso concluir dai que o conhecimento filosdfico da na- tureza da arte nao tenha utilidade nenhuma como principio de julgamento, mas, stuiponde que se aceite um tal principio, o tnico critério que fomece ¢ o que distingue a obra de arte daquilo que ela nio €. O que nfo € pouca coisa, segundo se vera. De resto, € particularmente importante, gragas a um pequeno némero de certezas fundamentais, poder discernir no seio desses complexos concretos que sao as obras dos artistas aquele nicleo de arte pura que as coloca entre os produtos de uma das belas-artes. Por isso mesmo torna-se possfvel distinguir, na obra, o que nio passa de enchimento ou suporte material, assim como as fun- g6es didaticas, morais, edificantes ou simplesmente mercendrias que ela venha adesempenhar. As confuses desse género sao frequentes, ¢ talvez impossiveis Capiruco | - © Que £ FILOSOFAR SOBRE A age? | 19 de dissipar, mas a fungio do filésofo nao é reformar o julgamento alheio, senio ele proprio € que se deve converter 4 verdade e, entao, proclamé-la aos quatro ventos. Quanto aos outros, somente os que acreditarem que a devem levar em consideracao saberao o quanto ela pode ser titil ao esforcgo de cada um — esforgo de uma vida inteira — para descobrir a beleza 14 onde ela esta e render-Ihe uma justa homenagem. Mesmo esse servico, porém, deve respeitar limites estreitos, pois nao ha mister de nenhuma filosofia para fruir as belezas da arte, muito pelo contrario, talvez; em todo caso, € preciso filosofar sohre a arte se, no contentes com frui-la, ousamos falar a seu res peito. A esta altura, algumas observagées praticas virie bem a calhar. De tudo o que poderfamos esperar da filosofia da arte, o menos razodvel € a facilitagio do didlogo. Os prazeres da arte trazem em si mesmos a propria justificagao € como, ao falar desses prazeres, acabamos por prolongiclos, nio devemos esperar de quem os experimenta que renuncie a dizer o que sentiu. Para ele, filosofar sobre © prazer que sente nao traz nenhuma satisfagio. Demais, ele nfo estd certo de que a filosofia, em qualquer uma das suas formas, seja um tema de conversa. Isso nunca dé certo e cada um dos interlocutores logo puxa parag seu lado, seguindo 9 fio do préprio pensamento. Os filésofos s6 se comunicam de fato por meio dé seus livros; sendo assim, quando se trata de arte, o discurso entra num ter- reno onde a confusio alcanga o seu maximo, porquanto ha confusao no préprio objeto desse discurso. Querer pér ordem nesse terreno, para si mesmo ou para os outros, € praticamente querer impor o siléncio, e come a confuse facilita a conversa, ninguém quer sair da confusao. Se ele teima em falar, 0 filésofo acaba tocando em verdades tao desagradaveis que se arrisca a passar por pedante ot pretensioso. A Gnica razio para escrever sobre a arte como filésofo é, pois, a necessidade totalmente pessoal de colocar ordem nas préprias ideias, sem se gabar de nao cometer nenhum erro em empresa tio modesta como a presente ¢ esperando apenas que aqueles que, por sua vez, se interrogam sobre o mes- mo problema talvez encontrem nelas alguma inesperada concordancia com suas proprias reflexdes. Uma Gltima questio preliminar diz respeito 4 propria possibilidade da em- presa. Sera que uma filosofia geral da arte € possivel? Ninguém parece duvidar; 20 | Inrropucao As Aares po Belo eis af porque muito se publicou, e muito ainda se publicard sobre arte. De resto, nada € mais facil do que falar da arte em geral, porque toda proposic3o sobre ela pode em si mesma ser justificada por um exemplo emprestado a alguma arte particular. Se o que se diz nao vale para a pintura, pode valer para a mtisica ou a poesia. £ preciso ser muito infeliz no ponto defendido para que nenhuma arte the traga a justificagio desejada, Mais eis que pelo mesmo motivo 0 ponto que uma arte justifica, outra nega, Uma filosofia geral da arte, portanto, sé € possivel se a razdo se ativer ao que se pode dizer da arte precisamente enquanto é arte ¢, de modo ainda mais particular, arte do belo. £ certamente impossivel falar da arte em geral sem nunca se referir a nenhuma arte em particular, mas o que importa, neste caso, é considerar na arte em questo apenas aquilo por que é arte, e nao esta arte; no fim dessa investigagao geral, tornar-se-4 possivel testar como as suas conclusdées se verificam em cada arte particular, o que importa numa investigacao distinta cujo objeto, claro esta, € especificamente diferente Uma vez tomadas essas precaugGes, resta precaver-se contra 0 risco de se desencorajar no curso da empresa. Um sentimento difuso de futilidade pesa continuamente sobre ela, sobretudo se 0 filésofo tende a concluir, contra a opiniao geral, que a arte nao € essencialmente linguagem. Como nao se per- guntar acerca da utilidade de um discurso sobre o que nao € discurso? A razéo de perseverar é apenas esta: 0 pensamento de que o papel da linguagem, aqui, é precisamente conduzir o espirito a uma ordem de realidade metaverbal,' que a rigor no depende da palavra e da intelecgdo. Segundo, porém, se vera, nao se trata de procurar em vagas regides do sentimento ou de alguma iniciagdo mis- tica as respostas que o pensamento nos recusa. Muito pelo contrario, apenas a inteligéncia e a razdo permitem delimitar uma zona em que os acontecimentos do espirito, justificéveis como tudo aquilo de que formamos uma ideia, pro- vém de um além do conhecimento ¢ da palavra. Nao obstante, nao se trata de um além dentro da mesma linha, mas de um exterior que se situa numa outra ordem. © sentimento de que a tarefa é util nos encoraja a insistir no esforgo ' Ou seja, “supraverbal”, assim como o vocibulo “metafisica”, etimologicamente, significa “suprafisica”, Le., disciplina que se ocupa de fendmenos hierarquicamente superiores aos fisicos. (N. T) Captruto | - © Que £ FILOSOFAR sobre a arte? | 24 ingrato de uma razAo cuja Gnica recompensa, ao fim € ao cabo, € reconhecer um de seus limites. Uma outra causa de pessimismo € que, segundo dissemos, a filosofia se propée a pensar em separado esséncias que nao existem em separado. Portan- to, é preciso resignar-se, tentando isola-las para entdo defini-las, coma certeza de que, no final, haveremos de juntar tudo de novo. Mais ainda, no momento mesmo em que separa, 0 espirito sabe que isso que divide esta unido na realida- de, ¢ nunca deixa de ser em conjunto. Essa dificuldade geral € particularmente sensivel em filosofia da arte. Depois de haver isolado a pepita de arte pura da ganga onde estd incrustada, é preciso reconhecer que ela nunca teria existido e jamais subsistiria sem o resto. Uma obra é dita de arte porque contém arte pura, mas precisa de impurezas para simplesmente existir. Além disso, ao mes- mo tempo em que atinge a plena consciéncia de sua diferenga especifica, cada arte particular procura se unir as outras ¢ tende mesmo a substitui-las nas suas fungdes préprias. O pintor quer falar, o escritor quer pintar, a mtisica quer os dois e vez por outra pretende até filosofar para além de toda arte. Enquanto Mallarmé sonha escrever o fivro que estaria para todos os livros como a ideia platénica da cama em si esta para todas as camas, ou quando Wagner tenta criar, por meio do drama musical, um equivalente moderno da sintese concreta das artes que foi outrora, segundo ele, a tragédia grega, uma coisa muito di- ferente vem 4 tona, muito menos ambiciosa, mas que nao obstante existe. Em todo caso, nao cabe ao filésofo julgar essas empresas, que ele deve accitar sim- plesmente como fatos. Aqueles que se queixam que a musica de Wagner nao é pura esquecem que a confusao mitico-filosdfica que a acompanha sem drivida the era necessaria para existir, € mesmo para existir enquanto musica. O filéso- fo nao esta na posigao de julgar tais projetos, ou os seus resultados; sua Gnica tarefa € levar a fuz da razdo a uma seloa oscura cheia de fatos, todos diferentes entre si, mas dados em conjunto. Talvez o censurem, pois, por descrever com o nome de arte uma coisa que nfo existe — vaidade das vaidades — e, embora ele o saiba, sabe também que a coisa que chama por esse nome é aquilo em virtude do qual as obras de arte merecem ser chamadas assim. Portanto, sem- pre precisamos voltar ao fato fundamental: a filosofia da arte nao € arte, mas 22 | INTRODUGAO As ARTES DO Belo conhecimento. As satisfagdes eminentemente intelectuais que ela proporciona carecem de encanto para os coragGes sensiveis, mas ela os nao poderia tentar encantar sem tao logo deixar de existir. Se se desconta a imensa literatura de massa produzida por escritores que exploram o dominio do “livro de arte", seguida da literatura erudita produzida por professores de histdria da arte, estética ou filosofia da arte, que tomam a arte como pretexto para seus livros, mas nada podem dizer sobre a propria arte simplesmente porque desconhecem a sua pratica — ¢ a arte € uma pratica —, sobra pouca coisa para ler sobre um tema de que tanto se escreveu. Quem sabe ele nao se preste a tanto, e nao haja nada a reprovar aos que preferem praticd- lo em vez de difundir no publico uma falsa nogdo do que ele seja. Evitar-se-& em particular, 0 caminho (romanceado ou nao} dos grandes artistas, nio que the falte interesse em si mesmo, mas porque um tal interesse nao diz respeito a arte, nem sequer a sua arte: a “Vida Amorosa de X” néo € 0 que fez dele um artista; quando muito ela explica o que, semelhante a vida amorosa de muita gente que nao é artista, acompanhou o nascimento da sua obra e, talvez, a oca~ sionou — mas nao a causou. Em filosofia propriamente dita, nao fosse a Filosofia da Arte, de Hippolyte Taine, em que tudo o que concerne as obras das artistas, exeeto a arte que as produziu, recebe um tratamento brilhante, o principal livro que se deve evitar é a Critica do Juizo, de Immanuel Kant. Nao que nao se trate de uma obra-prima no prdprio género, mas, sendo este Ultimo a filosofia do co- nhecimento, quem a lé sem desconfianga tende a confundir os problemas colo- cados pela filosofia da arte com aqueles que na verdade pertencem 4 estética. Precisamente por causa da autoridade de que desfruta, nenbum livro favorece mais a confusio, hoje generalizada, entre o dominio da apreensdo da obra de arte, acompanhado do costumeiro julgamento sobre o que se apreende, eo do- minio da arte que nao é sendo a causa eficiente da obra em questao. O que Kant chama de analitica do belo, ou do sublime, é uma analitica dos juizos pelos quais o leitor ou o espectador atribui beleza ou sublimidade as obras que the agradam. Eis por que, a propédsito, uma tal andlise inclui o sublime matemético eo sublime da natureza, além do sublime artistico. E de se lamentar, pois, a ex- trema discrigao de Kant arespeito da prépria arte, pois ninguém teria sido mais Capituio | - © Qué € FILOSOFAR SOBRE A ARTE? | 28 capaz que ele de perscrutar a natureza do género distinto de realidades que sio as obras produzidas pela arte dos artistas. O pouco que ele diz a respeito, no § 43, “Da Arte em Geral”, e no § 44, “Das Belas-Artes”, é de uma justeza tal que toda a nossa recomendagao ainda seria pouca. A partir do § 46, que define as belas-artes como as “artes do génio”, sem deixar de fazer jus ao seu propésito, Kant toma um caminho que nao € o nosso. As definicées do talento, do génio eda maneira segundo a qual, por meio do génio, a natureza estabelece as regras da arte, a despeito do que tenham de engenhoso, dao a impressao de que pre- param uma critica do juizo teleoldgico, ¢ precisamente por isso completam o monumento das trés Criticas, mas nao elucidam a natureza da propria arte. Kant seguia, naturalmente, o seu prdprio caminho; ele ndo cometeu o erro a que sua obra expde; devemos lé-la como uma filosofia da estética que ocasionalmente trata da arte, ¢ nao como uma filosofia da arte que ocasionalmente trata de es- tética ~ 0 que, por sua vez, definiria muito bem a intengao do presente ensaio. 24 | IsTROpUGAO As Artes DO BELO (TULO H As artes do belo Os atos que o homem executa sao de espécies distintas: ele é, conhece, age ¢ faz. Ser é um ato: todas as ulteriores operagées do homem o pressupdem e dele derivam. Mozart morre aos 35 anos: ninguém mais vai compor outra peca de Mozart; depois da morte de Schubert, aos 3! anos, esta inesgotdvel fonte de muisica se cala— e assim por diante, em todos os dominios. Precisamente porque o ato em virtude do qual o ser é se acha pressuposto por todas as suas operagdes ulteriores, ele é da algada da metafisica: a filosofia da arte, pois, aceita esse ato como um principio. Este é, na verdade, o primeiro principio, que ela supde esta- belecido ¢ reconhecido. As operagées do conhecimento sio objeto da noética, incluindo as ciéncias relacionadas, como a epistemologia, a légica, a gramatica e todas as ciéncias ¢ artes da linguagem e da expressao. As operagées da ordem da agio constituem o objeto da ética e de todas as disciplinas que comportam uma dose de deontologia. Na medida em que o comportam, seu dominio € o da moralidade. As operagées da algada da factividade, isto é, da produgdo ou fabricagdo sob todas as suas formas, constituem uma ordem distinta das pre- cedentes. Com efeito, o conhecimento pressupde que seu objeto esta dado e se limita a concebé-fo tal como é. A acdo produz a sua maneira, no sentido de ser a causa eficiente de certos efeitos, mas esses efeitos sdo atos do sujeito ou consequéncias naturais desses atos. A factividade, ao contrario, tem por efeitoa produgio de seres ou objetos distintos de sua causa e capazes de subsistir sem ela, durante um tempo varidvel. Nossos atos se nos seguem, mas nossas obras nos sobrevivem; “o busto”, diz o poeta, “sobrevive & cidade”. Portanto, sio trés as principais operagdes do homem: conhecer, agir e fazer, correspondendo a trés ordens distintas: 0 conhecimento, a atividade ¢ a factividade. Estas trés ordens se realizam soba forma de trés disciplinas principais, que compreendem todas as operagdes do homem: a ciéncia, a moral e a arte. O homem € uno e se coloca inteiramente em cada um dos seus atos, mas em graus diferentes e diferentes proporgdes. No que quer que faca, o homem conhece. Com efeito, j4 que sua natureza € a de um ser vivo dotado de razio, a atividade racional esté necessariamente incluida cm toda operaggo humana como condicio de sua prépria possibilidade. Por outro lado, operar é agin, e Nossos atos muitas vezes tém consequéncias cuja causa somos nés, ainda que as nao tenhamos causado diretamente. Enfim, problemas de moral costumam acompanhar a atividade do estudioso, do engenheiro ou do industrial, ¢ sa- bemos muito bem que a arte esta longe de se furtar a este género de questao. No precisamos do fildsofo para saber essas coisas; os jornais esto cheios de problemas assim, cuja importancia prética arrebata a imaginac3o e a atemoriza com a sua dificuldade. Mas aqui o que nos cabe € distinguir, neste complexo de atividades que se implicam mutuamente, o que discerne a arte como tal. ‘Todas as artes, indistintamente, sao da algada da factividade — sao 0 que é proprio do bomo faber, que é 0 mesmo que o homo sapiens; ambos séo um s6 com © bomo loquens, mas a circunsténcia de que todas essas operagdes venham do mesmo sujeito no nos autoriza a confundi-los. A causa principal das confuses que atravancam a filosofia da arte é 0 fato de que o homem nao seja “obreiro” senao porque é "sabio”. E possivel conhecer, se nao sem agin ao menos sem fabricar, mas nfo se pode fabricar sem conhecer. Nao obstante, é preciso tam- bém levar em conta que a ordem do fazer, em esséncia, é distinta da do conhe- cer, E classico, na tradigo grega de Platao, Aristételes ¢ Plotino, considerar a vida de conhecimento e contemplacao como diferente ~e mais elevada ~ da vida de ago. A prépria religiao crista simbolizou e difundiu, pelo evangelho de Marta e de Maria, o principio da superioridade da contemplagao sobre a acao. Durante séculos, enfim, sabios, letrados ¢ fildsofos negligenciaram um pouco a classe dos artistas, que entao nao se distinguia da dos escravos ¢, mais tarde, da 26 | INTRODUCAO As ARTES DO BELO de simples trabalhadores manuais. Isto, porém, séo apenas sinais do problema que reteré nossa atengao. Pois teremos de distinguir a arte na medida em que nao € um agir nem um conhecer, por mais estreitas que sejam as suas relagdes com essas outras ordens. $6 ha arte ai onde, no essencial, e como que na sua propria substancia, a operagio nao consiste em conhecer nem em agir, masem produzir e fabricar. A justificativa desta decisdo € que, conquanto ela demande as outras € até dependa delas em mais de um aspecto, a atividade de fabricagio do homem deriva diretamente do seu ato de ser, sem passar pelo conhecer nem pelo agir, mesmo quando os implica. O bono faber é desde o inicio um ens faber, pois sua atividade de fabricagio é como que uma promogio do seu ato de existir. Ela de- corre diretamente dele e, alias, € por isso que lhe € inseparavel. A Pré-Histdria nao esta certa da presenca do homem senao quando pode comprovar, num si- tio qualquer, a presenga de objetos que nao podem ser considerados obra da natureza. Nao € sempre que se tem certeza de que uma pedra encontrada em determinado sitio seja um silex lascado, mas se se estabelece que o é, tem-se logo a certeza de que € obra humana. O imenso desenvolvimento da producio industrial, sobretudo desde a invengdo de maquinas que operam como ferra- mentas, atesta a pujanca desta necessidade primitiva de fabricar ¢ a fecundidade de que € capaz quando se ilumina com as luzes do conhecimento, numa série de trocas entre o conhecer e o fazer de que a ciéncia nao se cansa de aproveitar. A historia da factividade nos escapa. Mas talvez nao estivéssemos muito longe da verdade imaginando o seu comeco como ligado a necessidade espon- tanea de fazer alguma coisa, algo que se observa facilmente nas criangas ¢ que se afirma com vigor num grande nuimero.de adultos cujas maos estdo sempre ocu- padas a fabricar. £ impossivel dizer com algum grau de certeza em que propor- Gao esta atividade humana de fabricagao foi exercida em vista de fins imediata- mente titeis, e em que proporgao em vista de fins desinteressados ou religiosos, Nao se pode excluir a priori que muito cedo na histéria da espécie os homens pudessem fabricar simplesmente pelo prazer de fazé-lo. Tal e qual a fung3o da linguagem articulada, também a factividade pode ter sido exercida por si mes- ‘ma, como que para se assegurar da propria existéncia, ao mesmo tempo em que Capiruto H1- As antes po peio | 27 se especializava em vista de diversos fins. Como quer que seja, especulagdes deste género sio um esforco vao, pois imaginamos a origem da arte segundo aquilo que, no momento presente, se configura como tal. Portanto, é a partir de nossa experiéncia da arte que devemos definir a sua natureza. O método mais cémodo para fazé-lo, tomando a questiio em toda a sua generalidade, sera deter- minar o fim préprio da arte nos diversos dominios da factividade. O tftulo de um tratado de Santo Agostinho, hoje perdido, sugere uma distingao muito antiga entre o belo e o util: De Pulcbro et Apto. Logo reencon- traremos a mesma distingdo, mas antes convém inclui-la numa outra ainda mais ampla concemente ao belo, a saber, a distingao entre a beleza dos seres naturais, ados objetos fabricados e a das obras de arte. Segundo exigéncia do progresso mesmo da reflexdo, tentemos aqui uma primeira aproximagao da nogio metaft- sica de beleza, sob a condigdo de retoma-la mais tarde e aprofund4-la. Digamos, pois, que o belo se reconhece por ser objeto de admiracdo. A palavra admirar significa “voltar o olhar na diregéo de”; admiragéo é a reagéo espontanea do homem, sensibilidade e inteligéncia, 4 percepco de todo objeto cuja apreensio agrada por si mesma. O objeto em questao pode ser natural. Trata-se, entdo, como se diz, de um “produto da natureza”. Quer seja um corpo humano, um animal, uma ar- yore ou uma paisagem, a admiragéo se produz quando se acham esponta- neamente reunidas todas as condigées necessdrias para que a visio do objeto agrade por si mesma. E provavel que a natureza possua belezas e produza sentimentos de admiragao superiores a tudo o que a arte pode oferecer, tan- to mais porque tais sentimentos e belezas vém frequentemente acompanha- dos de impressées fisicas de bem-estar, mas os objetos e espetdculos naturais nao foram feitos com o fito de produzir essas impresses. Mais exatamente, eles nao foram feites, mas causados pelo jogo espontaneo das forgas naturais. A menos que se apele 4 nogo de arte divina, a qual coloca problemas metafi- sicos e teolégicos dos mais complexos, é preciso dizer que, se se restringe ao plano da experiéncia, as belezas naturais nao siio produtos de nenhuma arte. Suponde que absolutamente se quisesse remontar a Deus, terfamos entio de acrescentar que, ainda quando faz coisas belas, Deus no as faz em vista da sua 28 | InTRODUGAO As ARTES DO BELO beleza, isto €, considerando a beleza como o seu fim tiltimo. A arte divina ndo corresponde a nenhuma das belas-artes. Descamos agora até a factividade: para que se possa, pois, atribuir a beleza de um objeto a uma arte qualquer, é preciso que este objeto seja “feito” pelo homem. Precisamente aqui intervém a distingao entre o belo e o util. A imensa maioria das atividades de fabricagdo se propde como fim 4 produgio e multi- plicagdo de objetos titeis em todos os dominios da utilidade. £ dil o que serve para alguma coisa. Nao hé oposigao entre o util ¢ o belo, j4 que € possivel que a beleza seja itil -o que, em certo sentido, cla sempre é Nao obstante, ela nunca € produzida em vista de sua possivel utilizagdo, mas apenas e tao somente por si mesma. De maneira inversa, é possivel que um objeto feito em vista de sua utili- dade seja ao mesmo tempo um objeto belo; na verdade, é sempre desejével que seja assim: ome tulit panctum... Muitos objetos da industria ~ mAquinas, navios, avides, utensilios domésticos ¢ outros — séo mais belos que varias obras de arte concebidas unicamente em vista da sua beleza, mas malogradas ou francamente feias. Se se toma a palavra arte no seu sentido mais geral, isto é, aquele da ex- pressao tradicional “artes e oficios”, pode-se dizer que em sentido lato os pro- dutos da indtistria, todas as grandes obras do homem que modificam, talvez, o aspecto ¢ a propria estrutura da natureza — uma ponte, um tiinel, a abertura de um istmo, um dique —, sio obras de arte. Neste sentido, tais objetos tém a sua beleza, mas esta no € 0 mesmo gé- nero de beleza das obras produzidas pelas belas-artes. A beleza de uma turbina, de um automével, de um barco ou de um avido sem ditvida pertence 4 beleza das obras feitas pelo homem, por meio de uma das “artes € offcios”, mas tais produtos da arte no foram feitos em vista de sua beleza. Assim como a beleza dos seres naturais, também esta € uma beleza suplementar, com a diferenca de que nao se trata, evidentemente, de beleza da natureza, mas, por assim dizer, de uma como beleza da utilidade. Alids, nés a percebemos precisamente como tal, pois € uma observag3o que se faz amitide a de que um produto manufaturado é tanto mais belo quanto mais a sua forma é determinada pelo fim por que é pro- duzido. A adaptacao do objeto a sua funcao e a beleza propria deste objeto sto em regra diretamente proporcionais. Trata-se, pois, do que muito bem se pode Capiruzo It - As arres Do BeLo | 29 chamar de beleza “funcional”. Tanto isto é verdadeiro que se vé com pesar os construtores desfigurando a beleza de suas m4quinas, quando tentam embelezd- las com ornamentos supérfluos emprestados ao dominio das belas-artes. Assim como a beleza da natureza, também a da utilidade pode ultrapassar a da pintura ou da escultura, contanto que, fiel a sua esséncia, nao as tente imitar. De resto, 0 contrério € igualmente verdadeiro, pois os pintores e escultores seduzidos pela beleza prépria das maquinas, do mesmo modo que muitos o foram e ainda sao pela da natureza, enganam-se profundamente quando querem se apoderar como que se apropriar de tal beleza imitando-a na forma de suas pinturas e de suas estdtuas. Eles acreditam que, ao imitar a beleza de uma maquina, trans- formam-na em beleza artistica, mas isto € uma ilusio, pois apenas uma méquina pode ter a beleza de uma maquina. O que é préprio de uma beleza deste género € nfo acontecer, como se diz, “de caso pensado", enquanto a arte propriamente dita produz objetos expressamente planejados ¢ concebidos téo sé em vista de sua beleza. As artes deste género siio as “belas-artes”, pois so artes do belo, na medida em que os objetos que produzem ndo tém nenhuma outra fungao imediata e primeira senao a de serem belos. Este é o seu fim proprio, sua “razaio de ser” e, consequentemente, sua natureza. A filosofia das artes do belo tem, pois, por objeto o conjunto dos dominios da factividade cujo fim prdprio é pro- duzir coisas belas, qualquer que seja o seu género de beleza. O mais das vezes, confunde-se filosofia da arte com estética. A confusao esta tio profundamente enraizada, sobretudo desde o triunfo do idealismo kantiano, que chegamos a esperar de todo livro com “estética” no titulo que nes exponha uma filosofia da arte ~ 0 que, numa palavra, € um grave erro, porquanto nao se deve confundir © ponto de vista do produtor com o do consumidor. Saber degustar é uma arte, mas a arte do gourmet nao € a culindria; do mesmo modo, nao se deve confundir a filosofia das artes que produzem o belo com a filosofia do conjunto de expe- riéncias em que apreendemos a beleza. Frequentemente se objeta aos filésofos que os problemas de que tratam sdo totalmente indiferentes aos artistas. Isto é um exagero, mas, supondo que fosse verdade, é preciso dizer que ndo falamos a linguagem da arte aqui —a qual, de resto, nem vai muito longe ~, senfo a linguagem da filosofia da arte, cujo fim, 30 | INTRODUCAO AS AprES DO BELO sendo filosofia, ndo é a beleza, mas a verdade. Contrariamente a um precon- ceito muito difundido sobretudo pelos préprios filésofos, o homem pode mais do que aquilo que sabe — no que, alias, ele se assemelha a natureza, que muito produz ¢ nao sabe nada. Gastamos nossa ciéncia tentando segui-la, ¢ ainda que o saber do homem aumente consideravelmente o seu poder, as forgas que este saber coloca 4 sua disposigae nfo deixam de ser forcas naturais. Também o ar- tista, neste ponto, se assemelha a natureza: sobretudo ele pode muito mais do que aquifo que sabe. Por acaso havia estetas em Lascaux? Nao, sem ditvida, mas pintores certamente havia. Um artista nao precisa saber 0 que € a arte, contanto que saiba © que, afinal, ele quer que a sua arte seja. Os artistas no estéo proi- bidos, evidentemente, de filosofar sobre a arte, na verdade, gostarfamos que o fizessem mais amidde, porém nao podem fazé-lo senao na posigao de fildsofos, € sé a Sua experiéncia pessoal concede autoridade ao que dizem, a limitagao que ela thes imp6de também possui os seus inconvenientes. Para quem pretende falar de filosofia, a ordem exige que comece por exa- minar a natureza do belo em geral, considerado, por assim dizer, antes do seu “descenso" as duas grandes espécies do belo natural (ou artificial) ¢ do belo artistico. Lim tal estudo é por definigae anterior 4 filosofia da arte propriamente dita, de maneira que Ihe é uma condigao necesséria. A doutrina do belo como tal pode receber o nome de “calologia”. Ela esté para a filosofia da arte assim como a epistemologia para a ciéncia (entendida como conhecimento da verdade) ou a agatologia para a moral (compreendida como a ciéncia do bem). Cada uma dessas disciplinas tem por objeto um trans- cendental que, sendo convertivel com o ser, estd incluso no objeto geral da ontologia. Como conhecimento de um dos modes do ser como tal, a calologia € da alcada da metafisica. Compreende-se, pois, que o artista como tal nao se interesse por este género de questdes, mas, artista ou nao, quem filosofa sobre as belas-artes se condena a nao saber nada do que diz se desde logo nao se in- terroga sobre a natureza do belo, que é 0 objeto mesmo que este género de arte se propde a produzir. Chama-se belo, diziamos hé pouco, aquilo que provoca a admiragio e retém o olhar. Precisemos desde logo este ponte essencial: o belo artistico se Carfruto HI - As arTes D0 BELO | 34 define sempre, mesmo do simples ponto de vista de sua definigéo nominal, como dado numa percepgao sensivel cuja apreensao € desejavel em si € por si mesma. A percepgio-tipo que se costuma citar neste caso ¢ a visio, ¢ j4 que toda percepcao do belo 6 desejavel & medida que se acompanha de prazet, os Escoldsticos definiam o belo como aquilo cuja visio da prazer, ou antes, “o que agrada & visio” (id quod visum placet) Nao faltam objegoes a esta definigao. A mais comum assevera que, nestas condigdes, reduz-se a filosofia do belo a uma variedade de eudemonismo. Mas dizer isto € cometer um erro. Nao se trata de dizer que o prdprio belo consiste no prazer que produz, mas antes que se reconhece a presenga do helo pelo prazer de que sua apreensdo se acompanha. E verdade que certos inimigos da alegria consideram todo prazer como aviltante 4 experiéncia em que se inclui, mas tanto vale o prazer quanto a causa que o produziu, e os tedlogos nao con- sideram que a visio de Deus seja aviltante pelo fato de ser “beatifica”. Beatriz, “aquela que beatifica”, revelava sua nobreza pela alegria de que seu mero sorriso cumulava 0 altissimo poeta. Os prazeres da arte fazem muito para no-la fazer amada; o homem nao tem de se envergonhar daquilo que o faz feliz. Contudo, convém que fagamos jus a uma outra objecao ¢ reconhegamos “que a palavra “prazer”, sempre vaga, é-o de mancira toda particular quando se aplica & experiéncia do belo. Ha prazeres de todos os tipos, que se distinguem por seus diversos graus de materialidade, desde os prazeres do tato e do paladar ligados as mais elementares funcdes bioldgicas até os da apreensio, compreen- sdo e descoberta da verdade. Os prazeres do conhecimento podem ser leves ¢ semelhantes a uma cuforia continua, mas talvez nenhum outro tipo embriague tanto, nenhum outro seja mais violento que o prazer que acompanha a descober- ta daquelas ideias — “gléria de um longo desejo” — cuja mera erupgao basta para por ordem numa enorme massa de outras ideias, ¢ revela ao espirito a inteligi- bilidade de um vasto campo do real. Tomemas por simbolo de tais prazeres que. desabracham em alegrias a emagia de Malebranche quando encontrou L’Homme, de Descartes, numa livraria da rua Saint Jacques, folheou-o, comprou-o € “leu-o com tanto prazer, que de tempos em tempos era obrigado a interromper a lei- tura por causa da aceleracao dos batimentos cardiacos, tal era o prazer que o 32 | JNTRODUGAO AS ARTES BO BELO arrebatava”.’ Quem nunca interrompeu a leitura de um livro de erudig&o, de ciéncia ou de filosofia para tomar fdlego, digamos, diante da carga emocional de tal leitura, certamente ignora uma das alegrias mais intensas da vida do espirito. Os prazeres da arte sao deste género, pois estao ligados ao conhecimento que tomamos de certos objetos e ao mesmo ato por que os apreendemas. Donde a seguinte definiggo nominal do belo: aquilo cuja apreensio agrada em si e por si mesma. © prazer do belo ora engendra o desejo, ora o coroa; em todo caso, a experiéncia do belo engendra o desejo e se coroa de prazer. Até aqui, o belo de que vimos tratando podia ser indiferentemente o pro- duzido pela natureza, pela verdade, ou, enfim, pela obra de arte elaborada ex- pressamente em vista da beleza. As trés experiéncias so, porém, distintas, e ¢ chegado o momento de diferencia-las. A distingao entre 0 belo natural ¢ 0 belo artistico se faz por si mesma. Com efeito, é€ essencial a este ultimo que o objeto cuja apreensao causa prazer seja percebido como a obra de um homem, a saber, o artista. Tanto isto é verdadeiro que, se um trompe-l'oeil fosse completamente bem-sucedido, 0 espectador acredi- taria estar em presenga de um objeto natural ou um espetaculo da natureza; ele entao experimentaria 0 prazer e a admiracao proporcionades por uma bela flor, um belo animal! ou uma bela paisagem, n3o 0 prazer especificamente diferente que a obra de arte percebida como tal proporciona ao leitor, ao espectador ou ao ouvinte. Atras da obra de arte, sentimos sempre a presenca do homem que a produziu. E isto, aliés, o que confere & experiéncia estética 0 seu cardter tao intensamente humano, j4 que, por meio da obra de arte, um homem necessaria~ mente se pée em relago com outros homens. Virgilio, Vermeer de Delft, Mon- teverdi e mesmo os anénimos estéo eternamente presentes nas suas obras ~ e esta presenca nos é sensivel. Tanto o é que a experiéncia da arte esté ligada a0 sentimento desta presenga. Nao ha presenga humana por detras da natureza; ai neste lugar sente-se apenas uma tragica auséncia, que as imprecagdes de Vigny denunciaram com a violéncia que jd conhecemos. Se é que se percebe uma pre- senga em tal lugar, esta sé pode ser, evidentemente, a presenga de Deus. CE Cousin, Fragmenis Philosophignes. 5. ed, v.4, p. 473-474. Cariruo Il - As agtes 00 Beto | 33 De nada adianta objetar que Deus ¢ artista, pois Ele o € na medida em que o ser é uma perfeicao, mas Sua maneira de sé-lo tem apenas uma longinqua analogia com a nossa. Deus cria a beleza natural criando a natureza, mas 9 fim da natureza nao é ser bela, e Deus no cria objetos cuja finalidade propria sejaa de serem belos. Deus nao cria quadros nem sinfonias, e mesmo os Salmos néo. so os salmos de Deus, mas os salmos de Davi. Assim como Deus constitui a natureza no seio do ser ¢ deixa que dla mesma realize as operagdes que Ihe so prOprias, assim também Deus cria os artistas ¢ Ihes deixa o cuidado de acres- centar algo & natureza produzindo obras de arte. Portanto, a arte nos coloca na presenca de Deus tal como a natureza, mas do mesmo modo que a filosofia da natureza tem por objeto anatureza, e nao Deus, também a filosofia da arte no trata diretamente de Deus, mas da arte. £, pois, essencial & beleza da arte que nos coloque na imediata presenga do artista, que ¢ um homem, pois a arte € coisa eminentemente humana. Deus nao tem miaos. A confusio entre os prazeres da verdade ¢ os prazeres da beleza ¢ mais dificil de dissipar, pois a verdade tem a sua beleza prépria, j4 que é convertivel com 9 ser. Eis ai porque, sendo mais familiar aos fildsofos, a definigao da beleza inteligivel se confunde no espirito deles com a da beleza em si. A definigao classica € testemunha: a Beleza é o esplendor da Verdade, Nada mais exato, mas esta definigdo sé vale para a beleza do ser como objeto do conhecimento, isto ¢, para a verdade. Nunca ¢ demais enfatizar as desastrosas consequéncias de estender-se a nogao de beleza da verdade a beleza da arte, para todas as formas artisticas. Toda a arte classica francesa, tao rica em obras-primas, produziu obras apesar do principio fatal, e perfeitamente falso, de que “rien n'est beau que le vrai, fe prai seul est aimable” * Desenvolvendo-se o mesmo principio, acabou-se por definir a verdade como a ‘natureza”, chegando-se, assim, 4 doutrina igualmente clas- sica segundo a qual a finalidade da arte é a imitagao desta natureza. A confusao inicial entre a beleza do conhecimento ¢ a beleza da arte é, pois, a propria raiz da funesta doutrina da arte concebida como um género de imitagdo. Teremos ocasiao de esquadrinhar o sentido ¢ as consequéncias de tal doutrina,; baste ? Verso da nana epfstola de Boileau: “to sé a verdade é bela, 36 ela € desejavel”. (N.T.) 34 | INrrooucAo As Aates bo BELO por ora que observemos 0 quanto a sua falsidade é evidente. Quem se importa coma verdade oua falsidade do que um poema, um romance, uma tragédia, um desenho ou um quadro nos mostra? Em que consiste a verdade de uma fuga de Bach? Com efeito, uma obra de arte nao é verdadeira nem falsa. A arte é tal que a nogio de verdade nem sequer se coloca a seu respeito. Trata-se de uma distin- Go primacial entre esses dominios. A maioria rejeita esta distingdo especifica; chega a se indignar que se recuse a fazer da beleza um caso particular da verda- de, da arte um caso particular do conhecimento; mas 0 fato € que essa maioria esté muito mais bem informada das coisas do conhecimento, que das coisas da arte, Tal é a fortuna dos que pensam sempre e nunca fabricam nada. Nao negamos que a verdade tenha a sua beleza, sem diivida a mais elevada de todas, nem que a experiéncia intelectual desta verdade se acompanhe de pra- zer, A beleza do inteligivel é aquilo que da prazer quando é compreendido. Esta experiéncia é diferente, todavia, da experiéncia do belo artistico. Quando lemos um livro para nos instruir, sem davida temos prazer em the compreender o senti- do. E quanto maior o esforco necessério para assimilar este sentido, maior o pra- zer da compreensao. Quer se trate de ciéncia ou de filosofia ~ pouco importa —, a experiéncia permanece a mesma e aquilo que a caracteriza é que, quanto mais bém-sucedida, menor o desejo de recomeca-la. Os prazeres intelectuais da des- coberta nao se repetem; 0 que se encontrou por si mesmo ou se aprendeu de outrem esté compreendido de uma vez por todas. Se 0 leitor precisar reler um livro, nao € para aprender de novo o que ja sabe, nem para ter o prazer de des- cobrir uma segunda vez o que j4 encontrou na primeira, mas, pelo contrério, é porque ndo o compreendeu completamente, ou porque Ihe escapa a meméria do que leu. Haveria algo de absurdo no desejo de aprender 0 que jd se sabe. Eis por que é um desejo que n3o se tem. Os livros a que mais devemos s30 os que, mediante prolongada meditagao ~ ou, quem sabe, logo de imediato e sem esforgo ~, transformamos em nosso préprio ser, em nossa propria substancia; é precisamente porque os “assimilamos” que jamais os relemos. O caso é completamente outro com os prazeres da arte. Podemos ter compreendido um livro de uma vez por todas, mas nunca chegaremos ao fim da fruigdo de um poema, da apreciaggo de uma estatua ou da audigao de uma ‘Capiruco TE - As artes 00 BeLo | 35 obra-prima, porquanto a beleza da arte se di sempre numa percepgio sen- sivel. E verdade que a sensibilidade se cansa e que a repetigio excessiva da mesma experiéncia estética acaba por embotar o prazer, mas, longe de ser o signo de sua obsolescéncia, toda interrupgao deste géncro prepara a ressur- reicio futura desta apreensao da beleza no seio mesmo da alegria, recompensa certa do amor a arte e fruto do seu cultivo. De resto, a experiéncia é imediata. E amor & primeira vista. “Je te donne ces vers afi que si mon nom...”? — impossivel ler 0 verso sem querer relé-lo, assim como a estrofe ¢ toda a longa melodia verbal cuja misica encanta ¢ arrebata. Versos belos estao tao longe de se lerem de uma vez por todas, que de bom grado os aprendemos de cor, a fim de nos libertarmos do livro e os levarmos sempre conosco. Este é 0 sinal da presenga do belo artistico. Como bem ja dizia o abbé Du Bos: “O espirito nao poderia fruir o prazer de aprender a mesma coisa duas vezes, mas 0 coragao pode gozar duas vezes 0 prazer de sentir a mesma emocao”. Ha prazer nos dois casos, contudo, embora sejam casos de natureza distinta. O fim do ato de conhecer € saber, e j4 que sabemos de uma vez por todas, o prazer de alcan- gar uma verdade nao € renovavel. Por outro lado, j4 que ndo fruimos a beleza sendo no ato mesmo que a apreende, arepeticao deste ato, além de esperada, é antes desejada. Pode-se saber Euclides de uma vez por todas, mas a leitura de Shakespeare sempre pode recomegar. E preciso procurar mais além a solugdo deste problema e a raz3o que a jus- tiftca, O que se deseja, por definigao, é um bem, pois o bem € o préprio ser na medida em que é desejavel. O belo é, pois, uma das espécies do bem e, a este respeito, € um objeto da vontade. Mas é um bem de uma espécie tao diferente das outras que deve ser considerado um outro transcendental, distinto da ver- dade e do bem propriamente dito. A vontade procura os outros bens, ou por si mesmos € por causa da sua perfeigéo intrinseca, ou por nés mesmos e porque a sua perfeigao nos é desejavel cm vista do nosso proprio bem. Num ¢ noutro caso, 0 desejo tende para o préprio objeto tomado em sua realidade fisica, e é este mesmo objeto que desejamos possuir. }4 com o belo é diferente, pois ele é 2 Verso de Baudelaire que inicia o poema “Spleen et Ideal”, contido em Les Flears dv Mel [As Flores da Maf}: “Dou-te estes versas para que se o nome meu..”. (N.T) 36 | INTRODUGAO As Ars DO BELO um objeto da vontade deseiado como os objetos do conhecimento se desejam. Normalmente, a vontade quer seus objetos para os possuir; no caso do belo, ela nZo o quer para possui-lo, mas para vé-lo. Quando se quer possuir um belo objeto, a finalidade desta agio nio é a posse, mas a possibilidade de revé-lo, relé-lo ou ouvi-lo de nove, sempre que se queira. Numa palavra, o objeto do desejo, nestas condigdes, é menos o préprio objeto que o bem que nos causa 0 ato de apreendé-lo. E 0 que a filosofia cléssica salientava de modo excelente ao dizer que, enquanto o hem ordinariamente se define como o que é bom para a vontade, o belo é o bem do conhecimento. Com efeito, sendo aquilo cuja visio da prazer (id quod visu placet), 0 belo é um conhecimento desejavel no proprio ato por que se apreende. Este estatuto ontoldgice implica que o belo é essencialmente uma relagao, A relagio nao sera entendida aqui no sentido idealista, isto é, como um simples liame mental que 0 espirito estabelece entre dois termos, mas antes no sentido realista e pré-kantiano de uma relagio real, a qual se estabelece por si mesma entre objetos igualmente reais, ¢ cuja natureza é determinada por aquilo que sio. Em certo aspecto, as experiéncias estéticas sdo andlogas as relagées fisicas, visto que, como as tltimas, derivam da natureza das coisas. Contudo, sendo um destes termos, como €, um sujeito cognoscente, as condi¢des exigidas para a possibilidade do belo sio de duas ordens distintas, de um lado pertinentes a este sujeito cognoscente, do outro, ao objeto conhecido. © sujeito é um homem, isto ¢, um animal dotado de sensibilidade e de inteligéncia, mais uma faculdade cujo papel mediador foi muitas vezes desta- cado pelos filésofos: a imaginacao. Esta tiltima desempenha um papel capital, ndo somente na livre representacio de objetos possiveis dados apenas em po- téncia, mas também na mesma apreensdo de objetos dados em ato. Nenhuma percepgio € instanténea. Isto nao sé é verdadeiro para aquilo a que se chama artes do tempo, como a musica ¢ a pocsia, mas também para as artes ditas do espago, como a pintura € a escultura. Esta imaginagao do objeto presente é ne- cessiria para que os elementos fornecidos pela sensaciio sejam percebidos como constituintes de um todo dotado de unidade. E esta unidade, com efeito, que o distingue dos demais, ¢ que o juizo toma como base quando o considera um Captruto UI - As antes 00 BELO | 37 objeto distinto. O proprio entendimento estd em ago, portanto, na experiéncia do belo ~¢ a indiferenga que os animais frequentemente demonstram diante de imagens artificiais parece confirmar esta observagao. C homem inteiro, como sujeito que conhece intelectualmente, que imagina, age ¢ é capaz de sentir pra- zer e dor —e, consequentemente, desejo e repulsa ~, é a condigao subjetiva da apreensio do belo. Estamos jonge de conhecer em detahe a estrutura desta ex- periéncia, mas, por ora, somente © seu aspecto geral nos interessa: saber como as coisas acontecem nao modifica em nada os dados do problema. Quanto ao objeto ele mesmo, isto é, aquilo a que se poderia chamar condi- ges objetivas do belo, nao faltam descrigdes que vez por outra se contradizem, mas, ao examiné-las mais de perto, constata-se que dizem quase a mesma coi- sa, embora em linguagens diferentes. Coincidéncia natural, alias, pois a beleza, assim como a verdade € o bem, é igualmente um transcendental. Portanto, ela participa do carater primeiro, irredutivel e nao dedutivel, daquele primeiro prin- cfpio que é o ser. Pode-se estar seguro disso se se examina brevemente 0 significado dos ter- mos que os fildsofos de outrora utilizavam, seguindo, alias, a tradigao platénica para definir as condicées objetivas do belo. Sua mesma imprecisdo é significati- ” ya, pois cada um dos termos nao fazia sendo orientar 0 pensamento a uma nogéo +40 primacial quanto a do ser — do qual, porém, designava uma modalidade. As nogoes deste género se sucedem sem descanso umas as outras, como as muitas facetas de uma sé verdade, em si mesma misteriosa, & qual a reflexdo s6 se-aplica para se submeter. A primeira condig&o tradicionalmente obrigatéria do belo, da parte do objeto, é que ele seja "inteiro”, Esta inteireza, ou istegritas, consiste em que nada lhe pode faltar, que pertenga 4 sua propria natureza, e como € precisa- mente o ser o que lhe poderia faltar, a integridade do objeto é idéntica ao seu ser. A mesma observacao é valida para um outro nome que se dé a esta qualidade do belo no objeto, ou seja, a perfeigdo (integritas vel perfectio). Pois, © que € perfeito, senao o ser? Diz-se do ser perfeito que nao the falta nada. E o que os antigos metafisicos diziam: que o ser € perfeito na medida em que éem ato, pois ser apenas em poténcia é ainda nao ser; atualizando-se, o ser se 38 | INTRODUGAO As Artes DO BELO realiza a si mesmo ao mesmo tempo em que atinge a sua perfeicao, ficando, entdo, feito e perfeito. Tais determinagées, de resto, implicam uma outra nogéo, e é somente em relagao a cla que ganham algum sentido. Dizer que o ser de que se fala é “in- teiro”, “perfeito” ou plenamente “atualizado” é pressupor que ele se define por um certo numero de condig6es obrigatérias, a fim de que seja plenamente o que deve ser. O que nao é “inteiro” nao tem alguma coisa que deveria ter. O que ainda é imperfeito se acha privado de um certo némero de determinagdes ne- cessarias para que se possa dizer que é, sem nenhuma restriggo — ou, em outras palavras, que realizou completamente as suas potencialidades, de tal modo que tudo o que pode ser, é. A nogdo que tais determinagdes do belo pressupdem, assim como as determinagdes do bem, aliés, do qual o belo é um caso particu- lar, 6a nogao de “forma”, também chamada de “esséncia”, ou “ideia”. O nome escolhido pouco importa, desde que designe claramente um tipo de nogao que define, no aideia do ser como tal, mas a ideia de um certo ser. Para correspon- der a esta nocdo, o ser em questo deve igualmente satisfazer as condigdes da definiggo de todo ser que realiza um tipo distinto. O ser esta dado, sempre, na experiéncia, sob a forma deste ou daquele ser, de tal modo que o que chamamos aqui de tipo, ideia ou forma nao parece sendo uma das modalidades do ser como tal. Com efeito, o ser real, tal como nds o conhecemos, sé é possivel se determi- nado e definido por uma forma, sua integridade nao é sendo a auséncia de muti- lag&o, propria aos tipos plenamente realizados, e é também a primeira condigéo objetiva da beleza. Dizia-se antigamente que uma coisa é feia na medida em que € imperfeita, ¢ a experiéncia mais banal o confirma. Dado um objeto qualquer, é bem possfvel que o sentimento de que the falta alguma coisa nos cause tamanho. incémode que nao descansemos um momento sequer enquanto o ndo tivermos completado. Isto € sinal de que 0 ser, para nés, esta ligado 3 forma, em fungo da qual se define a sua integridade. Para sua completa determinagdo, estas nogées requerem ainda uma outra. Ea que se chamava outrora de harmonia (harmonia). A beleza, dizia Plotino, é"o acordo na proporgio das partes entre si, e delas com o todo” (Entadas, |, 6, 1). Com efeito, todo ser concreto se compée de um certo numero de partes, ¢ Capfruto I! - As aa TEs 00 B10 | 39 é preciso que essas partes observem uma ordem de determinagées reciprocas para que se unam na forma comum que thes define o conjunto. Ea forma do iodo que confere unidade as partes e, visto que o uno e © ser so convertiveis, éa mesma unidade que faz deste todo um ser uno e, portanto, um ser. Somente a mediacao pessoal destas equivaléncias pode nos fazer reconhecer a sua reali- dade e a sua importancia para a interpretagio do real. Nao é preciso que nossa incapacidade de demonstr4-las nos chegue a desencorajar, pois elas ndo sio demonstraveis. Sendo, como s&o, evidéncias intelectuais inclusas na nogao do primeiro principio, basta que sejam percebidas — mas € imprescindivel que o sejam. Aqueles, porém, que se gabam de desdenha-las, nao deixam de usé-las a cada vez que, declarando-as vazias, se poem, nao obstante, a falar a seu respeito, independentemente do nome que lhes deem. Resta uma Ultima determinagéo do belo, nio menos dificil de descrever que as precedentes, ¢ mesmo ainda mais dificil, embora por uma razao diferen- t a que os antigos denominavam de claritas, o brilho. Em Santo Agostinho, que se inspira em Cicero (Tusculanas, 1V, 31), este elemento é simplesmente a cor € o prazer que ela causa: coloris quaedam suavitas. A despeito do nome que The atribuamos, nao apreendemos esta modalidade como uma relacao do ser * consigo mesmo; ela é, no ser sensfvel, o fundamento objetivo de uma de nossas relagdes com ele. Um objeto precisa de fato ser inteiro ou perfeito para simples- mente ser; ¢ para ser uno ~- vale dizer, pois, para ser ~ 0 mesmo objeto precisa da ordem ¢ da harmonia que a forma the confere; mas o seu “brilho” é aquilo que, nele, prende o olhar e 0 retém. F, pois, o fundamento objetivo de nossa percepcao sensivel da beleza. A palavra em si mesma é uma metdéfora. Mesmo no interior da ordem da sensibilidade, “brilho” (claritas) se aplica a objetos de natureza diversa. Fala-se do brilho sonore das trompas, como de brilho de certos tons de vermelho, amarelo ou verde; aplica-se o termo inclusive aquela misteriosa palpitagao do ouro puro, que esplende surdamente qual gléria amortalhada, e nos faz deseja- lo. Pois o amor do ouro é bem diferente do amor do dinheiro, que amamos pela sua utilidade. Mas o ouro merece ser amado por si mesmo, come as pérolas e pedras preciosas: por sua mera beleza. 40 | InTaopucac As Artes Do Beto A bem da verdade, o termo é duplamente uma metafora, pois ndo evoca 0 brilho de certas qualidades sensfveis sendo como s{mbolo de toda uma gama de outras qualidades das quais este mesmo brilho € 0 caso mais digno de nota. Uma paisagem cinza, cores bagas, timbres surdos e palavras sussurradas podem agir sobre a sensibilidade com tanta ou mais eficdcia que o brifho propriamente dito. As qualidades deste género tém em comum o mesmo poder de captar e reter a atengdo, como que por feitigo. Eis af o fato primitivo sobre o qual a experiéncia estética repousa em todos os dominios, tudo o que podemos fazer € aceitd- lo como tal, sem pretender explicd-lo. As qualidades sensiveis tém o poder de agit sobre nossa afetividade. Elas nao s6 emocionam, mas é incontestavel que as emogdes que nos causam diferem conforme as qualidades sensiveis que as causam. A correspondéncia é frouxa. Os esforgos despendidos para estabelecer relagdes precisas entre as variagdes da sensibilidade e as dos seus corresponden- tes sensiveis néo produziram nenhum resultado preciso, mas ninguém ousaria contestar esta realidade, a saber, que as qualidades sensiveis tém 0 poder de nos emocionar, e que as harmonias afetivas correspondentes ndo tém relagdes reais com essas qualidades. As linhas, as formas, os volumes € as cores ora se har- monizam melhor com a alegria, ora com a tristeza, ora com o contentamento, ora com a melancolia, ora com o desejo, ora com a célera ou o entusiasmo — numa palavra, um tipo de tonalidade afetiva acompanha naturalmente cada tipo de qualidade sensfvel, e estas combinagdes podem muito bem variar. Ainda na Antiguidade — e se inspirando, como seria natural, no exemplo da misica -, ninguém menos que o proprio Quintiliano fez a mesma observacio. Séculos depois, o abbé Du Bos recolheria as principais passagens das Iusti- tutiones Ovatoriae relativas ao problema no terceiro volume das Réflexions Critiques, volume que os seus contemporaneos trataram como uma espécie de apéndice, quando, na verdade, seia talvez a parte mais preciosa da sequéncia. Conside- remos, pois, a Segao IIE, "De la Musique Organique ou Instrumentale”, onde tudo o que ha de mais essencial se diz numa sé frase, que nfo cansamos de meditar: sentimo-nos afetados de diversas maneiras pelos instrumentos da ma- sica, embora no se possa fazer com que falem: “cum organis quibus sermo exprimi rom potest, affici animos in diversum habitum sentiamus” (last., J, 12). E ainda (lnst., 1X, ‘Capituto If - As artes po geto | 41 4): “Ea natureza que nos conduz aos modos musicais. Nao fosse assim, como se explicaria que os sons dos instrumentos, embora nio emitam palavras, pro- duzam no ouvinte emocées téo diferentes?”. O fato evidente prescinde de provas, mas a reflexdo filos6fica deve demorar- se nele como num dos sustentéculos da filosofia da arte. Desde logo, ¢ preciso notar-the a generalidade. Todas as obras de arte so objetos materiais relacionados A percepgio sensivel. O que é verdadeiro para a mtisica, pois, é-o também para a poesia, que é uma espécie de musica da linguagem articulada. Com muito mais ra- zao ainda, o mesmo se aplica igualmente as artes plasticas, cujas obras se destinam sobretudo ao tato ea visio. E empresa va, portanto, tentar constituir uma filosofia da arte que apele apenas as operacdes da inteligéncia para explicar a génese das obras que os artistas criam. Essas obras incluem, na sua mesma estrutura e substéin- cia, a relagdo do sensivel com a sensibilidade e a afetividade, o que thes ha de asse- gurar o efeito que pretendem ter sobre 0 leitor, espectador ou ouvinte. A arte ora- téria tal como Cicero a compreendia, uma das artes mais utilitarias ¢ impuras que existem ~a tal ponto que um “amigo da verdade” teria vergonha de pratica-la -, conferia suma importincia ao que se chama de “acdo oratéria”, parenta prdxima, embora distinta, da agdo teatral. Todo artista cioso de agradar deve se tornar mes- tre na arte de utilizar os recursos da matéria com que trabatha em vista da produ- Go de obras cuja apreensio agrade e inspire o desejo de ser repetida. Os inimigos da sensibilidade sio muitas vezes gente que nao tem nenhuma. Tenhamos pena deles, porque os prazeres da arte Ihes foram recusados, e com tais prazeres a consolago mais segura de muitas penas. E por meio da arte que a matéria entra por antecipagao naquele estado de gloria que os tedlogos lhe prometem quando, no fim dos tempos, ela hé de ser como que espiritualizada. Um universo onde tudo nao teria outra fungdo além de ser belo seria literal mente uma beleza; ndo é preciso que aqueles que nao veem sentido numa tal nogao impegam os outros de sonhar com o mundo que ela promete, ou de fruir das suas primicias. Primicias que somente as artes do belo podem-lhes proporcionar. Lima segunda consequéncia geral deste fato é a relatividade inata e como que essencial das apreensées do belo. A ontologia da arte estabelece aqui alguns dos fundamentos da estética. Nada € mais objetivo que a beleza de um objeto 42. | INTRONUCAO As ARTES DO BELO feito para o prazer dos olhos, mas nada é mais varidvel e desigual que os olhos a que se oferece. Tomemos aqui a visio como simbolo de todas as faculdades de apreensdo a que as diversas artes se destinam, incluindo o intelecto cuja fungio consideraremos mais adiante, e diremos que, embora praticamente nada deixe de participar do dominio da arte, reina uma desigualdade fundamental neste domi- nio. O que se chama de “dom” constitui-se em grande parte daquela sensibilida- de a qualidade das linhas, dos volumes, dos sons e das palavras que varia confor- me os individuos. O nimero muito considerdvel de pintores que sofrem de pro- blemas visuais, ou de masicos que perdem a audigao, faz-nos pensar numa espé- cie de hipersensibilidade quase mérbida como se fosse o prego, digamos assim, dos eminentes dons artisticos de certos artistas. Eugéne Delacroix, Cézanne, Maurice Dennis na pintura, e Beethoven na musica, representam bem um con- junto de fatos muito conhecidos, Mas o amante da arte, que tudo julga com a mais tranquila seguranga, cometeria um grande erro ao considerar a relacao de sua propria sensibilidade com a obra de arte como idéntica 4 que, no caso do artista, preside & sua produgio. Aqueles para os quais a musica é sobretudo um anddino sucedineo da morfina nfo tém sendo uma leve admiracio por Camille Saint-Saéns. De nada adiantaria se thes disséssemos que o compositor sabia ttido o que um homem do seu tempo podia saber sobre masica, nem que podia escrever o que bem quisesse, mas thes faria muito bem se se perguntassem o quanto a sua sensibilidade aos sons pode realmente ser comparada 4 do autor da Quarta Sinfonia com Orgio, ou do charmoso Carnaval dos Auimais, “Certa noite”, escreveu este musico austero, “gracas ao siléncio absoluto do campo, eu ouvi um imenso acorde, de uma sutileza extrema; aumentando a sua intensidade, este acorde se resolveu numa tnica nota, produzida pelo voo de um inseto”. E preciso saber ouvir o canto das cigarras e seguir indefinidamente as sempre cambiantes variagdes dos seus ritmos; € preciso poder ouvir o mundo de harmo- nias incluido no zumbido de um inseto para julgar corretamente o que é aarte para aqueles que a produzem. Sabemo-nos incapazes de compor como Mozart ou pintar como Delacroix, mas jé seria muito bom se pudéssemos ouvir a musica e ver a pintura como a ouviam e viam Mozart e Delacroix. Invejemos a Racine pelo prazer que sentia lendo Sofocles, ndo porque o compreendesse, coisa que Captruto Il - As arres D0 peLo | 43 qualquer helenista pode, mas pela qualidade soberanamente poética desse pra- zer. Precisamos de muita modéstia para chegar 4 familiaridade com as grandes obras. Assim como o mundo da natureza, também o da arte é uma aristocracia, onde cada um deve aceitar o seu lugar; ¢ ainda que, em certa medida, se possa democratizar 0 acesso a esse mundo, democratizar esse proprio mundo seria 0 mesmo que o aniquilar. 44 | Intropucao As Ares Do BELO Corolérios para a estética Quando se atesta que a ontologia do belo, ou calologia, néo fornece nenhu- ma regra de julgamento para discernir entre as obras belas ¢ as que 0 nao séo — ainda que possibilite reflexes bastante titeis sobre as razGes desta impossibili- dade —, 0 resultado quase sempre é uma certa decepcao. Se ambas, diretamente, se limitam a fundamentar uma filosofia da arte, calologia e ontologia definem ao menos as condigdes gerais da possibilidade da estética e daquele género de julgamentos que costuma acompanhéa-la. Saber se toda percepcao estética se acompanha ou nao de um julgamento e, em caso afirmativo, se 0 julgamento precede e causa tal percepgao — ou antes se € sua consequéncia ou parte constituinte — ¢ questao pertinente 4 estética, que € a ciéncia das apreensdes da obra de arte, e nao a filosofia da arte propriamente dita, que, por sua vez, € a ciéncia das condigées gerais da produgao da-arte. Quanto a ontologia, seu papel é definir os caracteristicos gerais dos julgamentos que afir- mam ou negam a existéncia do belo em cada caso. O mais surpreendente desses caracteristicos gerais é que os julgamentos estéticos sio também dogmiticos e absolutos — ou seja, eles nao sao justificd- veis. Cada qual pode se certificar disso observando-se a si proprio, e, alias, a mais ligeira conversa sobre arte com os amigos nos ha de mostrar neles mesmos a nossa propria conduta, fazendo afirmagdes sem reservas, e inclinados até a exagera-las e defendé-las calorosamente se somos contestados ~- no entanto, incapazes, se nao de argumentar em favor da prépria opiniao, ao menos de jus- tificd-la objetivamente de maneira a convencer um suposto ouvinte Em certo sentido, tal dogmatismo se explica por esta mesma incapacidade. E justamente porque nos sentimos desprovides de provas que insistimos com tanta forga na afirmagao. Stendhal o observou no tocante a musica, onde o fato é particularmente evidente: "E porque nao se consegue saber a razao das sen- timentos musicais que o homem mais sdbio é fanatico por mtisica”, Nada tio patente quanto carater arbitrario e fandtico da afirmagao. Contudo, esta nio é uma explicagae suficiente, pois o fanatismo dos gostos estéticos, se néo univer- sal, ao menos muite constante, também requer uma justificagdo. A prépria natureza do belo artistico, porém, talvez nos forneca uma ex- plicagao suficiente, ou, quando menos, um ponto de partida a partir do qual a estética, considerando o fenédmeno, pedeé-lo-ia explicar. Visto que o belo é o bem do intelecto ¢ da sensibilidade, € objeto do desejo e do amor. As emogées fortes, no mais das vezes, ¢ até desconcertantes, que acompanham a experiéncia estética sio a causa e o alimento deste amor. O amigo da arte ama a obra pelo prazer que lhe causa, e é-[he grato por isso; como a experiéncia do belo vem sempre acompanhada de alguma emogio, ele, pois, se alivia dela declarando o seu reconhecimento € o seu amor. Pode-se tratar de manifestagdes corporais discretas ¢ até mudas, como uma lagrima furtiva; ou de gritos que chegam ao tumult, como aqueles auditérics descontrolades que explodem em aplausos, urras, ¢ 4s vezes em berros semelhantes aos dos cies; ou ainda, uma vez apazi- guada a emogio, podem ser jufzos de valor langados como desafios e prontos para se defenderem do que quer que seja. Quando pensamos que se trata de uma pelicula colorida sobre uma tela, ou de sons tirados de instrumentos cujas cordas sac feridas por animais racionais com o auxilic de arces ou dos préprios dedos, espantamo-nos com a desproporgio entre a causa e o efeito. Mas ela se explica se considerarmos tamanha violéncia como o efeito de um amor, e tal dogmatismo como a vontade de defender o objeto. Pois perder o objeto é perder o prazer que ele causa. Ora, a despeito do seu dagmatisme e do que eventualmente afirme sobre a possibilidade de perder o seu objeto, a experién- cia estética é vulnerdvel. Uma palavra dita no momento certo basta, as vezes, para revelar uma beleza até entao desprezada, assim como basta também outra palavra para estragar alguns prazeres para sempre, envenenando a sua fonte. 46 | INrRoDUGAG As AgTEs DO BELO Todos temos medo disso, e com toda a justiga, pois, jd que os prazeres da arte sao bons simplesmente por existirem, 9 instinto de preservagao que nos leva a protegé-los contra qualquer ataque contém em si mesmo a sua propria justifica- ho. E nao éa psicologia nem o empirismo que nos leva a constata-lo. Pois ainda continuamos a afirmar, com Stendhal, que a impossibilidade de se justificar leva asubstituir a razio pelo fanatismo, mas com o reparo de que esse sentimento de nao poder justificar racionalmente uma certa evidéncia sé atinge aqui, excepcio- nalmente, um ponto critico, porque se exige uma justificagio objetiva de uma certeza que, por sua vez, nao pertence ao dominio da verdade, mas ao do amor. E preciso variar um pouco, como Dom Quixote, para exigir de todos que vejam Dulcineia com os olhos do seu gentil cavaleiro. Quem vé a obra de arte como a fonte da sua alegria certamente nZo se engana afirmando que assim ¢; ele o afirma dizendo que cla é bela, e € preciso que ela o seja para que the cause tanto prazer assim; ele se equivoca, porém, querendo impor como universalmente vélido um juizo que, a despeito de sua fundamentacio objetiva, é absolutamente verdadeiro apenas para uma experiéncia particular, e outras experiéncias seme- thantes. Querer aplicar a beleza as regras de julgamento pertinentes a verdade, ¢ somente a ela, é engajar-se em dificuldades inextricaveis. Demais, diante de quem se engaja nao adianta nada querer apelar a razdo; é somente ao “engajado” que cabe submeter a sua paixio pela arte as purificagdes necessarias; o que, tal- vez, ele venha a fazer se refletir sobre a exata natureza do seu objeto de amor. A maioria hesita em fazé-lo. Preferem passar a vida dogmatizando, solita- rios € (coisa por vezes mais cOmica que tragica) cheios de célera. E porque os fandticos temem perder o seu objeto de amor e as alegrias que o acompanham aceitando criticar a sua validade universal. No que também se equivocam, pois ha pelo menos um sentido em que a experiéncia estética alcanga um objeto ab- solutamente digne da aprovagdo que o julgamento the concede. A justificagao ontolégica do valor absoluto que o julgamento estético se atribui assim com tanta forga, e as vezes até com violéncia, é que em ultima anilise este julgamen- to considera o ser no seu proprio caréter de necessidade. Uma relagio tal que a experiéncia do belo é um absoluto por ser necessariamente o que deve ser, dada a natureza dos seus termos (um dos quais, pelo menos, é ele proprio um Captruto TIT - Coro.arios para estinica | 47 absoluto). Certamente no se pode universalizar este absoluto, e isto precisa- mente por nao pertencer, afinal, 4 alcada da verdade. A verdade sendo também uma relacao, estabelecida, porém, entre o ser € 0 intelecto que o apreende, a ligagao que a constitui é absoluta como o ser e, como os produtos do intelecto, passivel de universalizacao. A beleza, a0 contratio, é uma relagao entre 0 ser € a sua apreensao pela sensibilidade particular de um sujeito inteligente. Nio é razoavel que se ponha em divida a validade absoluta da experiéncia estética, sob o pretexto de que nao se pode universaliza-la. Ela sé pode encontrar em si mesma as razées da critica a que esté sempre livre para se submeter; a cada mo- mento dessa critica, ela é sua propria regra e sua propria justifieacio. A reflexio alcanga aqui um limite intransponivel. Em todas as ordens convém aceitar certas realidades primitivas a partir das quais — e somente delas -- se pode ordenar todo oresto. No caso em questo, 0 primeiro desses dados € a existéncia de estrutu- ras sensiveis, naturais ou artificiais, cuja percepgio é acompanhada de prazer € inspira o desejo de sempre se renovar. CO fato de que as estruturas de tal género possam ser ou dadas na natureza, ou produzidas por uma das artes do belo, é provavelmente a fonte mais abun- dante de confusées e mal-entendidos nas doutrinas que tratam da arte, bem como nos gostos, opinides € julgamentos que se thes relacionam. Com efeito, € possivel ser insensivel 4s obras de arte, mas profundamente sensivel as bele- zag da natureza, e, portanto, nao conceber para a arte nenhuma outra fungiio legitima senao a reprodugdo dessas belezas naturais. O niimero dos que so deste alvitre € deveras consideravel; trata-se, provavelmente, da imensa maioria dos usuarios da arte, ¢ como, por definigio, os que tém este parecer nao tém ideia nenhuma do que seja a arte do belo, seus fins e os meios de que dispée para atingi-los, pode-se recear que a maioria dos homens viva e morra na mais invencivel ignorancia, nao sé do que, afinal, a arte €, mas também da sua mesma ignorancia do lugar que ela ocupa. Nao se pode esperar que tamanha confusao venha algum dia a se dissipar, e nao hd talvez nenhum inconveniente em que ela permanega nos espiritos a que convém. Do lado dos artistas, ela permite aos que nao tém o poder de criar a beleza por si mesmos que ao menos se deem ao prazer de reproduzir, mais 48 | INrropucdo As Aates Do Beto ou menos livremente, a beleza do mundo natural, Esta no € uma atividade desprezivel, tanto mais que, aplicando-se a este trabalho de imitagao, que exige esforgos continuos, grande habilidade ¢ dons incomuns, o artista frequente- mente utiliza os seus dons criativos, dos quais cle préprio, talvez, nao tenha a justa consciéncia. Tal como Ingres, ele se zanga se he dissermos que cria, tama- nha é a sua crenga no dever de imitar. Do lado do usuirio, o beneticio é ainda maior, porquanto versos que contam historias agraddveis ou que se enderegam aum sentimentalismo sempre pronto a responder, musicas previsiveis de ritmos francamente marcados ¢ melodias faccis, ¢ quadros que representam paisagens apraziveis e sugestivas formas humanas — todos Ihe permitem imaginar 0 quanto é sensivel 4 poesia, 4 musica e a pintura. Lim mecenas nao precisa saber o que € aarte, mas é muito importante que acredite conhecé-la. Quando wm erro tem tantas consequéncias felizes para um numero enorme de pessoas, nao se poderia desejar a sua desaparicao. E em cada um de nds, se somos filésofos, que convém combater esse erro, a fim de procurar a beleza da arte onde verdadeiramente est4. Desde logo, trata- se de ver claramente que a beleza de uma obra escrita ou pintada se deve a sua unidade, integridade € perfeicio, mas que essas qualidades devem ser as da propria obra, nao do que ela representa. Os objetos representados ou descritos podem nao ser belos, desde que a obra o seja. E a integridade da obra que conta, nio a do tema. Até aqui, tudo muito simples, mas as situagSes concretas possuem uma com- plexidade inextricavel que é talvez a grande responsavel pela completa desordem que reina na critica de arte. Na maior parte do tempo é igualmente impossivel, tanto para o artista quanto para o usudrio, discernir o que a beleza da obra deve 4 natureza que ela imita ou a arte que a cria. Em outras palavras, o problema é saber se o que agrada na obra € a sua propria beleza ou a daquilo que ela representa. As duas podem estar presentes ao mesmo tempo. Neste caso, o prazer da beleza natural se junta ao da arte; mas como se distinguiria, entao, na experiéncia total do belo, o que propriamente se deve a cada uma dessas duas causas? Para evitar que a admiragao destinada 4 obra se perca no tema de que tra- ta, alguns pintores se engajaram sistematicamente na representaggo ou bem do Capiruxo II] - Coronarios para a ssrénica | 49 feio, que é a auséncia de ser, ou bem do disforme, que é 0 defeito da forma, ou bem de coisissima nenhuma. A extraordin4ria aventura moderna da arte abstra- ta exprime precisamente a decisao de praticar uma arte cuja beleza nao deve nada 4 beleza do tema. Mas essas decisées heroicas substituem uma dificuldade antiga por varias dificuldades novas, pois representar o feio natural néo é sim- plesmente se privar de uma facilidade em ultima instancia legitima: é contrariar prazer que o belo artistico deve proporcionar opondo-lhe o desprazer que naturalmente o feio proporciona. Quanto 4 obra esculpida, pintada ou escri- ta esvaziada de qualquer sentido, ela aborrece diferentemente ac colocar um enigma para o espectador. Enquanto ele se esforca por resolvé-lo, a heleza da obra [he escapa, Entre aborrecer-se com a feitira do tema e aturdir-se com a sua auséncia total, a arte classica buscou sempre um equilibrio. Eis o que amide a fez preferir a banalidade ¢ o lugar-comum na escolha dos temas. Mas este € um problema da arte, nao da filosofia. Aqui, trata-se de precisar que a beleza de que falaremos serd sempre, ao menos em principio, a beleza produzida pelas artes do belo -- que justamente por isso chamamos de belas-artes. As mesmas observagGes se aplicam ao problema~tdo espinhoso, na pratica~ das relacdes entre a arte ¢ a moralidade. O tinico bem que a arte como tal deve perseguir é a perfeigao da obra. Assim como a sua tarefa nao é dizer a verdade, que é o bem do conhecimento, assim também nao é promover a perfeigéo mo- ral, que € o bem da vontade. O bem que hhe € préprio € construir um objeto tal que a sua apreensdo sensivel seja agradavel a um ser inteligente. Nada impede que o artista coloque a sua arte a servico de uma causa moral ou religiosa, muito pelo contrario; mas podem-se promover boas causas por meio de obras tuins, ¢ a qualidade artistica das que as servem nio deve absolutamente nada a dignidade de tais causas. Inversamente, ¢ com muito mais razdo, obras que tendem a corromper os costumes nao obtém nenhum mérito artistico sim- plesmente por fazé-lo. Quanto ao perigo pratico que elas oferecem, deve ser julgado do ponto de vista da moral, nado da arte. Eis por que, contrariamente ao que sucede na moral, podemos dizer que em arte o fim justifica os meios. Escolhendo livremente o seu fim, o artista também ¢ livre para escolher os seus meios, cuja justificagao € total se lhe permitirem atingi-fo. Em arte, o bom 50 | InraopUcAG As Artes DO BELO €0 bem-sucedido. Porque a arte consiste em incorporar uma forma em certa matéria com 0 objetivo de produzir o belo; a arte que alcanga tal fim é, por isso mesmo, boa. Mas a sua “bondade” se define no interior do sistema definido pelo seu fim ¢ pelo sucesso dos meios que emprega para atingi-lo. A arte de Baudelaire deve ser julgada exclusivamente deste ponto de vista, mas precisa- rfamos ser muito ingénuos para imaginar que o seu sucesso se deva a algo de outro gue no 8 arte do poeta. As Flores de Bem simplesmente nao venderiam. Procurar a cumplicidade do leitor aliciando-Ihe os instintos tanto acrescenta & arte quanto apelar As aspiracdes mais nobres deste leitor; isto significa, na verdade, nivelar por baixo, além de comprometer-se totalmente com a levian- dade. Baudelaire se recusava a fazé-lo, pois, no seu caso, tratava-se de escrever poemas, nao de bajular os proprios sentimentos, que floresciam sem 0 auxilio da arte; mas se, por sua vez, se pudesse conbecer a proporgio de leitores que leem esta poesia em poetas, a cifra sem diivida nao seria elevada. Abaixo da esca- la dos artistas se encontra o porndgrafo, homem atormentado pela necessidade de escrever, mas, em geral, sem 0 dom da imaginagio criativa. Resta-lhe, pois, vender a seus leitores o quadro de suas obsessdes sexuais, certo de que sempre ha de encontrar um pablico para alimentar as suas, comprando o que ele escre- ve. Aplaudir um artista por causa de suas auddcias é uma grande ingenuidade neste dominio, pois no hé af sucesso mais facil, nem mais estranho & arte em si mesma. Se, pois, nos ativermos ao princfpio, n3o teremos problemas, pois a arte como tal € boa e, por definigao, também pura, na medida em que atualiza a sua prdpria esséncia exercendo a funcao produtora do belo. As puras obras de arte, porém, sao raras, e é devido a tudo aquilo que carregam de pretensdes diddticas e ambigdes moralizantes que se expdem ao julgamento do bem e da verdade. Sendo assim, o problema no aceita mais uma solugio geral, pois aos puros tudo € puro; mas, se se trata de beleza, tal assertiva significa apenas que aapreensao de uma obra de arte exclusivamente percebida como tal é pura por definigao. Seria esta a pura apreensao do efeito da arte como arte, a qual, po- rém, € demasiado pura que perceba dessa mesma maneira as obras concebidas para sugerir imagens que o homem normal gostaria de esquecer? Neste caso, © que teremos serao casos particulares. Cariruro HE - Corotarios para a esrénica | 51 A discussio de cada um desses casos, no entanto, deverd se inserir no quadro de uma verdade geral, que ¢ a distingdo especifica entre o ponto de vista do artista ¢ o do espectador, ouvinte ou leitor. Precisamente porque a arte é fabricagao, é também trabalho, esforgo, labuta, cuidado técnico — cei- Sas, em suma, que nio afagam o sentimento nem engendram qualquer paixio. Tristdo e Isolda pode ser uma obra estupefaciente para o ouvinte, mas, quanto mais ele a ouve Como um miusico, mais a emogo que o arrebata muda de ob- jeto; nao € mais o amor que o emociona, mas a arte. O proprio Wagner pode ter precisado de um choque passional para liberar suas energias criadoras, mas escrever cada uma das notas de uma partitura dessa magnitude é um calmante tdo eficaz que a paixdo dominante na alma do artista nao é mais a de Tristéo por Isolda, ow a do compositor por Mathilde Wesendonck, mas a imperiosa necessidade que ele sente de criar, enfim, a obra tao sonhada ha tanto tempo. Um poema pode inspirar imagens de volpia no leiter, mas nae ha nada de voluptuoso em escrever uma obra do género; muito pelo contrério, o esforgo de escrevé-la seria o meio mais seguro e mais aconselhdvel de “purgar” uma tal paixdo. Baudelaire, que conbecia muito bem o problema, afirmou-o ex- pressamente numa das notas de Mow Coeur Mis d Nu, cuja crueza, infelizmente, desencoraja a citagio literal. O sentido do trecho, porém, é muito simples; é que, longe de favorecer o desejo sexual, o exercicio da arte nos afasta dele; somente o animal faz essas coisas muito bem; quanto ao homem, o erotismo é"o lirismo do povo”. O mal-entendido nasce, pois, frequentemente, porque o artista, ainda que néo usufrua de seus possiveis beneficios, parece esquecer que o efeito purifi- cador do trabalbo da arte, tio eficaz-no que concerne a ele préprio, no existe para o publico. Onde esta o leitor suficientemente artista para ler Baudelaire no interior de préprio sentimento que conduziu a sua mao na composigao dos poemas, isto ¢, para se deleitar como puro artista com aquilo que desde 0 inicio ele sentiu como suas obras literdrias? Ora, e a nao ser que a arte deliberada- mente renuncie a exprimir ou representar o que quer que seja, que obra é tio estabelecida que nenhum leitor ou espectador ousara desonrar o seu tema por uma indesejavel conivéncia com os sentimentos mais sérdides, coisa de que 52 | Inrropucde As Artes D0 BeLo- ninguém, afinal, se acha isento? Stendhal observa a Madonna della Sedia, de Rafael, passa a desejar o seu modelo; portanto, tudo pode acontecer. A observagio deve ser generalizada, Ela revela, talvez, a fonte mais geral de confusao no dominio dos julgamentos estéticos. Trata-se do que se pode chamar de totalidade da experiéncia estética. A obra de arte age sempre por si mesma, € 05 elementos de que se compée produzem uma impressdo total em que o sujeito nao distingue o que se deve & arte daquilo cuja causa é especifi- camente diferente, O julgamento estético exprime a emogao ou o sentimento total causado pela obra tal como ¢, ¢ nao aquilo que, nessa impressao total, se deve, em particular, A arte do artista. Como o julgamento estético exprime uma relacdo particular entre certa obra e o sujeito que a percebe, é natural que os julgamentos estéticos variem ao infinito segundo os sujeitos e mesmo segundo as disposicdes particulares dos sujeitos no momento em que se produz a expe- riéncia. Alguns se espantam com a circunstancia de que obras por que foram se- duzidos no passado tenham uma acdo mais fraca ou mesmo, até, nenhuma acdo posteriormente. Acusam as obras, mas nem sempre sio elas que envelheceram: s&o eles. Secaram neles proprios certas fontes de emogio e 0 artista, que con- tava com elas para comover, nao encontra mais resposta ao seu apelo. Eis por qué a Gnica beleza universal ¢ perpétua é a que a obra deve a arte de produzi-la. Ligada & estrutura de uma obra feita unicamente para produzi-la, ou daquilo gue, no interior de uma obra, esté ai unicamente para este fim, esta beleza é imperecivel. E a beleza do “cl4ssico”, em todo 0 vigor da palavra Na verdade, a obra de arte carrega todo 0 tipo de elementos estrangei- ros. A distingao tradicional entre o belo € o “sublime” é um exemplo notavel. O sublime, com efeito, corresponde aos mais elevados sentimentos morais. E uma beleza real. O "Qu’il mouratt", de Corneille, 6 emocionante, sobretudo na primeira vez que o ouvimos, ¢ € sem duvida de uma beleza.sublime, mas esta beleza nao é a da arte do belo como tal. Quando muito, é a beleza da arte do dramaturgo habil em colocar do seu lado todas as chances de sucesso, fazendo apelo a todas as emogées do coragdo e, em especial, 4s mais violentas e mais nobres. Existem almas vulgares que o sublime faz rir, ou a que inspira uma ir- resistivel necessidade de caricaturd-lo. O sacrilégio € um tipo de homenagem Captruno Hl - CoronArios para a astérica | 53 que se faz ao sagrado, De qualquer maneira, é-nos impossivel discernir, no seio da experiéncia da obra de arte, o que se deve a sublimidade dos sentimentos, ao contagio das paixdes ou as emogées religiosas, morais, patridticas, sociais, familiares, pessoais ou quaisquer outras. Apenas 0 critico ou a reflexao analitica do espectador ou leitor podem discernir como convém, mas toda consciéncia éo lugar de encontro de sentimentos e ideias distintas como que constituidas pela emogio total que a obra produz. Nao sdo apenas os seus contemporaneos que o critico se arrisca a julgar erradamente. Eles tém muitas paixées em comum para quc o critico consiga sempre ultrapassar a crosta das aparéncias superficiais € nao seja enganado pela falta ou pelo excesso. Na verdade, nao é a cegueira de Sainte-Beuve que nos surpreende, mas suas admiragGes fora de lugar. O mesmo yale para Robert Schumann como para Baudelaire. E isto porque nao se sabe bem qual € a causa do prazer naquilo que apraz. Mesmo no passado, porém, © coeficiente pessoal do critico afeta todos os julgamentos que profere. E di- ficil imaginar que chegue um dia em que possamos isolar as componentes da experiéncia estética para distinguir-Thes a influéncia da arte como tal. Ainda mais sutil é 0 género de complexidade cuja origem se deve a natu- reza cumulativa de belezas diversas. A linguagem tem sua beleza, a natureza “mineral, vegetal, animal e humana tem a sua. Se o artista tiver habilidade para combinar na mesma obra as forgas emotivas exercidas por todas as formas de beleza natural, a experiéncia estética inevitavelmente ganhar4 em profundida- de ¢ intensidade devido a ago convergente dessas causas diversas. A despeito de suas possiveis justificagdes, 0 fato é que a repulsa de muitos 4 arte abstrata se explicaria muito bem pelo que vimos de dizer. O espectador insensivel arte propriamente dita, e que frequentemente nao sabe que o é, nfo tera prazer algum em ler, ver ou ouvir uma obra cuja aceitagao depende apenas € tao somente do seu puro valor artistico. Quem “nao acha nada” numa obra nao poderia admira-la. }4 que ela frustra a sua expectativa, o espectador vai se irritar com ela. O artista em busca de sucesso, portanto, fara o contrario disso. Contando com a propriedade cumulativa das belezas, oferecerd ao publico as da natureza quando as da arte, embora presentes, puderem passar desperce- bidas. De resto, que artista poderia desprezar essa conspiragio de belezas, 54 | InTRODUGAO As Artes DO BELO quando 0 seu fim é precisamente agradar? Quer se trate de um belo nu, de uma bela paisagem ou de qualquer outro “tema” cuja mera beleza natural bas- taria para agradar, ndo nos interrogamos sobre o que se deve 4 natureza e o que se deve A arte neste prazer, que a beleza concede a quem a vé ¢ a quem apenas a imagina. Mesmo os retoques que o artista faz na natureza para lhe su- blinhar ou realgar o que € belo engendram uma beleza mista, tanto da natureza quanto da arte. Ante o prazer de uma pintura de Canaletto, quem dira o que se deve ao pintor € 0 que se deve a Veneza? Mas Veneza, ela propria, também éuma obra de arte. Nao surpreende, pois, que tantos pintores ¢ desenhistas montem o cavalete diante da piazzetta, onde tantos arquitetos acrescentam belezas & do mar que basta imitar tudo tal como é para jf entdo agradar aos olhos. No limite, basta uma fotografia. Possuimos uma tmica sensibilidade para belezas de origem diferente. A reflexdo critica esta livre para fazer as dis- tingdes oportunas no campo dessas emogées totais, mas que critico se gabaré de distinguir para todo o mundo 0 que a experiéncia de cada um deve 4 arte e o que deve A natureza? Todas as belezas formam uma sé. Essas nogdes 40 abstratas e devem sé-lo, pois, sendo metafisicas, excluem aimaginacao, nao obstante, o comum sentimento dos artistas ¢ do piblico pa- rece ao seu modo confirmé-las, e mesmo a histéria da arte, dir-se-ia, testemu- nha ao seu favor: por que, afinal, a arte classica da Grécia ou do Renascimento italiano goza de uma supremacia inconteste aos olhos da histéria, sendo por- que cura quem sofre de cegueira estética oferecendo-the a beleza natural, que cle percebe, no lugar da artistica, que Ihe escapa? Interrogando-se sobre essa mesma arte que o artista exerce, ¢ da qual nada sabe senao exercé-la, o usud- rio a representa como um conjunto de dons misteriosos, a cada um dos quais confere um nome e cujo conjunto define para ele um ser excepcional, quase milagroso, que € 0 artista. O procedimento espontineo do conhecimento comum ao se exprimir nesses assuntos consiste em transformar as marcas do belo, presentes na obra, em qualidades que se supdem inerentes ao espirito do artista. Cada uma dessas qualidades se torna, pois, a suposta explicagdo das que se encontram na obra. isto se pode observar, por exemplo, na distingSo tradicional entre o génio ¢ Capfruno HI - Coro.anios para a estérica | 55 o talento. Devido a existéncia de obras cuja natureza e grau de exceléncia sugerem classes objetivamente distintas, das quais fariam parte, explicamo-las supondo que exprimem dons artisticos especificamente distintos. Mas um verdadeiro artista, como Robert Schumann, nao se engana e pro- cura nas préprias obras 0 principio de sua distingdo. Diz, entéo, que as reco- nhecemos por um sinal, que as partes de uma obra de génio esto como que ligadas por um “fio de ouro”, o qual nfo existe nas obras do simples talento Com efeito, o talento compée ajustando de maneira habil ¢ muito feliz as par- tes da obra, mas o génio engendra-a inteira a partir da forma seminal que € 0 seu gérmen. Por mais longa que seja a sua gestacdo, e mesmo se tiver de ser retomada muitas vezes para chegar onde deve, ela é algo, na verdade, “de um jorro sé", porque nasce inteiramente da Gnica forma que a informa, princfpio exclusivo de todas as escolhas ¢ exclusdes do artista. O “fio de ouro” de que Schumann fala é precisamente essa forma, pois assim como presidiu ao nasci- mento da obra, ela esta presente em todas as suas partes. E exatamente essa presenca, de resto, que lhe constitui a unidade. Ora, a unidade € 0 ser indiviso de si mesmo: €, pois, pela presenga dessa forma no todo e, ao mesmo tem- po, em todas as partes, que a obra deve existir ¢ ser um todo completo que apresente uma harmonia suprema entre todas as suas partes. A lingua comum simplesmente nomeia a causa no lugar dos efeitos e situa essa causa no poder criador do artista em vez de procurd-la na estrutura mesma da obra. O seu instinto, porém, nao a engana. Na falta de uma regra precisa para formar juizos particulares de beleza sobre tal ou qual obra de arte, essa linguagem comum sugere certas distingdes gerais que vale a pena ter em mente quando se trata das artes do belo e dos seus produtos. A distingdo entre o génio e o talento nao se deve & circunstancia de que este tomaria emprestado, enquanto aquele criaria tedo. Todo artista toma emprestado, ele é aluno de seus mestres ¢ produto de uma civilizagao definida no tempo € no espago, a qual [he fornece a matéria de sua obra. E precisamente neste nivel que o género de “filosofia da arte” praticado por Taine ganha todo o seu valor, mas segundo este ponto de vista 0 talento € 0 génio estdo na mes- ma situagao. O que no-los permite distinguir nao € o empréstimo em si, mas 0 56 | INTRODUGAO AS Artes DO BELO modo de tomé-lo. Visto que agencia, organiza e compée, o talento costura os seus empréstimos na obra que produz, ou, antes, os insere e adapta nela. Mas 0 génio os toma tao perfeitamente que os faz seus, os absorve e de algum modo os precipita no metal em fuso da obra que se ajusta no molde Gnico da sua for- ma. O génio nao pega emprestado, ele toma e faz seu o que toma submetendo-o 4 forma seminal que é verdadeiramente sua. O talento cede a facilidade de ex- pressao ou, quando muito, segue um plano que os elementos da obra vao pre- encher; o génio acata as exigéncias profundas da ideia da obra nascente ¢ é por isso que a sua obra se impde com a forga de um ser natural saido do seu espirito. Falamos entdo de génio, e a palavra tem um sentido preciso desde que arelacionemos a qualidade ontolégica da obra. Eis af a unidade, como j4 dizia Santo Agostinho, que éa forma da beleza: "Onmis porro pucbritudinis forma unitas est” (5 Epist. 18). © talento fabrica essa unidade desde fora e a obtém de maneira artificial, mas o génio a engendra desde dentro concebendo a forma que se ha de tornar a da propria obra, na arte como na natureza, os graus do ser seguem os graus da unidade. Uma reflexdo muito simples, pois, nos permitiré seguir, a partir de entao, toda uma cadeia de nogdes familiares, 4s quais haveremos de atribuir um sentido bem preciso. Dizemos que o grande artista é “original” e ele o é, certamente, porque a fonte das suas obras ¢ a forma seminal de cada uma delas no espirito de quema cria, O grande artista é original por definiggo porque o génio faz seu tudo 0 que ele toca. Liszt se recusava a admitir que Wagner jamais the tomasse emprestado o que quer que fosse, e tinha razao. Visto que os exemplos mais faceis de citar em fivro sio, porém, os da arte da escrita, taquemos no seio da originalidade lendo uma obra como La Henriade, de Voltaire, cujo autor havia lido tudo, sabia tudo em matéria de poesia e dispunha de uma habilidade literdria tal que se pode muito bem enxergar nele o talento feito homem. Frequentemente se en- contram versos deste tipo: Valois régnait encore, et ses mains incertaines Del Etat Goranlé laissaitfiotter tes rénes, Capiruro HE - Coro.aaios para a estétics | 57 a cujo propdsito nenhum leitor deixaré de exclamar: Racine, Fedra! Mas Voltaire ainda faz melhor, pois nado hesita em escrever: Hf regrettait des temps si chers a sou grand coeur, sobre o qual o mesmo leitor hd de recitar a si mesmo um outro verso de Racine, Bajazet, f, 1: Tis rearettent le temps a leur grand coeur si dow... O erro de Voltaire nado € tomar emprestado, € nao ter a forca de simples- mente tomar para si. Ora, justamente La Henriade € 0 protétipo da composigio de talento; é obra literalmente “informe”; todos os empréstimos vém & sua tona como folhas mortas sobre um tanque. Quando esta no seu melhor, Baudelaire € totalmente diferente. Ao escrever: Men cocur comme um tambour aoilé Va battant des marches fundbres, ele simplesmente faz o que quer com Gray e ninguém se da por achado. Com efeito, nao é Baudelaire que toma um verso de Gray emprestado, éa forma do seu poema que lanca mao deste verso. O fio de ouro esta af ¢ constitui-lhe a obra. Eis por que Baudelaire é um poeta original mesmo quando toma empres- tado, enquanto Voltaire é no maximo um versificador de talento mesmo quando a sua prodigiosa meméria 0 livra da tentagdo do empréstimo. Dizemos também que o grande artista tem um “estilo”. E é verdade, pois um estilo (o de um tempo, de uma sociedade, de um certo tipo de arte ou de um artista} é um caracteristico constante de formas particulares, e a sua presenga nos permite conceber essas formas como um tnice grupo. A fonte do estilo, no artista de génio, é precisamente a afinidade das formas seminais que, concebidas por um sé € mesmo espirito, se assemelham entre si como a posteridade de um mesmo avé. Conhecedor é quem se tornou sensivel aos tragos caracteristicos de certo estilo e suas modificagdes por meio de longa familiaridade com a obra do seu autor. Um certo desenho, ow meros elementos familiares a este desenho, um intervalo musical favorito, um volteio frasal ou apenas uma certa maneira 58 | INTRODUCAO As ARTES DO BELO de conduzir a frase so como marcas que o autor imprime na sua obra tal qual a garra de um ledo. Mas somente o génio é um ledo,; o talento nao tem estilo porque falta as suas obras aquela unidade primeva que somente a forma semi- nal lhes pode conferir. Ele escreve bem, porque um talento, mas nao escreve como apenas e tao somente um Gnico homem pode escrever. Alguns artistas tém consciéncia disso. Porque uma facilidade natural cultivada por muito estu- do os levou a “saber” tudo a respeito da sua arte, sentem-se capazes de escre- ver em todos os estilos, mas no ousam fazé-lo, pois isso significa justamente que cles préprios nao tém nenhum. Eis ai o compositor que se torna maestro, Alguns artistas criadores tém obras de fatura perfeita que, porém, em nada se distinguem de obras alheias. Quando uma obra nao tem nada que no possa ter sido produzido por outro artista que ndo o seu autor, ela nado tem originalidade. Nao ter originalidade na escolha do tema pouco importa. Geralmente, é s6 por favorecer o exercicio dos dons do artista que um tema como Orfeu, lfigénia ou Fausto foi tratado tantas vezes. Partindo daf, o que fica em causa é tao sé a arte mesma do artista, e € a vez do seu estilo e de sua originalidade. As nogSes secundarias que acabamos de ver se relacionam com a arte do ponto de vista do espectador das obras, Falta examinar uma outra, que se rela- ciona com ela sobretudo do ponto de vista dos artistas, ¢ a cujo respeito grassa uma tal confusio no seu espirito a ponto de esterilizar a sua mesma arte. Trata-se do “belo ideal”, o ideal na arte, o belo natural ¢ o belo ideal, e outras formulas sobre as quais se tem disputado sem fim ¢ sem qualquer resultado, Para que ndo entremos numa interminavel dialética, examinaremos essa nogao sob a sua for- ma mais simples. Porque percebem muito bem a diferenga especifica da beleza dada na natureza e daquela que eles préprios produzem, muitos artistas con- cebem a beleza da arte como algo que existiria em si, numa espécie de mundo platénico, e acreditam que a funcao do artista € descobrir, entrever se possivel ¢, tendo entrevisto, imitar a beleza. As dificuldades em que tal doutrina aca- bou por colocar os artistas sido inumeraveis; em certas épocas, elas formaram a propria substancia da vida da arte. As querelas entre “realistas” e partiddrios do ideal na arte no tiveram outra causa. Nao levaram a jugar algum, pois simples- mente lhes faitava objeto. Captruto It - Corotarios para a ssrénica | 59 CO ideal na arte nao € um modelo imaterial ¢ transcendente que ao artista caberia descobrir ¢ imitar, mas nem tampouco € uma nogao sem fundamento no pensamento do artista, pois a devemos identificar & forma seminal que ele busca materializar na obra. Se refietirmos nisso, veremos que cssa forma tem todos os caracteristicos tradicionais atribuidos ao belo ideal. Como ele, também ela é objeto de pensamento € no de percepgio sensivel, atuando como uma espécie de guia que o artista se esforga por seguir na execugSo da obra. Ela é, em suma, sempre um arquétipo parcialmente irrealizavel, em virtude do seu mesmo ca- rater exemplar ¢ ideal. Limitando-se a exprimir uma experiéncia conhecida de todos, o mtisico Ch.-M. Widor escreveu certa feita: “A obra-prima vé-se de re- lance; quando a obra esta terminada, nao hd mais obra-prima”. Ele falava entdo de Massenet, mas também de si prdéprio e de todos que j4 tentaram dar corpo a uma ideia da obra que traziam dentro de si, Nao podemos dizé-lo melhor, mas isso nao nos leva a concluir que o objeto da arte, retomando uma férmula de Charles Gounod, é encarnar o ideal no real, pois uma vez que tentemos definir a natureza desse belo ideal e suas relagdes com o belo real, fracassamos na empresa, Para fazer jus a uma tal formula, digamos que o objeto da arte é encarnar algum ideal em algo real, esse ideal sendo sempre ¢ a cada vez a forma ou ideia da obra par- ticular —e, pois, singular por definicg&o — que o artista se engaja a produzir. Tam- pouco ela é totalmente acess{vel. Concepgao do espirito, ela é muito rica para se fechar na singularidade do objeto material em que 0 artista quer enclausurd-la, A obra pronta sempre se empobrece com os sacrificios a que teve de se submeter para se tornar real. £, pois, natural que nunca realize o ideal, mas isso ndo € azo suficiente para concluir que nunca seja uma obra-prima. Muito pelo contrério, a obra-prima ideal nem sequer é uma obra; é a obra real que realiza a obra-prima, € para 0 artista senhor dos seus meios ela € sempre a obra-prima que ele queria fa- zer, porque foi ele quem a fez. A verdade € que ele se sente capaz de fazer outras, cuja beleza, ainda ideal, nao se realizou naquela que fez, mas ele erra ao depreciar © ser saido de suas maos, e que ao menos existe, em beneffcio de uma pura pos- sibilidade que nfo existe. Quando existir, ainda entéo hao de sobrar candidatos Aexisténcia atual. Existe, pois, um belo ideal que o artista persegue, mas ele se encontra dentro do préprio artista: a criatividade do seu espirito. 60 | INvRopuCAO As Artes Do Bao. As artes poiéticas A nogao de arte € bastante confusa ¢ uma das razdes por que € assim parece ser o estado em que a herdamos da Antiguidade ¢ da Idade Média. A Renascenga das letras e das artes no século XVI nde mudou a situacéo, pois se evidenterente havia arte antes dessa época, nao havia teoria das belas-artes ou do artista, ea situagio permaneceu quase que a mesma, a despeito do que se costuma afirmar, no tempo de Michelangelo e de Leonardo da Vinci. Ne que concerne 4 filosofia da arte, os Cadernos se limitam a receitas de uma simplicida- de desconcertante, enquanto 0 Tratado da Pivtura nao vai além das ideias que o artista pode tomar emprestado. Nao € antes do século XVI que artistas € es- pectadores ou ouvintes comecam a se interrogar tecnicamente sobre o sentido €a natureza das artes do belo. Até entao, afora alguns livros de receitas praticas © uma ou outra metafisica do belo, 0 tnice a fazer da sua arte o objeta de uma histéria e de uma reflexao quase filosdfica é Vasari O fato é ainda mais paradoxal porque a nogio de arte, num sentido muito préximo & techné dos gregos, era familiar a todos. A Idade Média foi dominada por um sistema de educagio fundado nas sete artes liberais. A légica era uma arte na medida em que ensinava as regras e maneiras de operar na ordem do raciocinio. O acento, porém, da denominagao recaia sobre 0 termo “liberais”, que as designava como pertencentes ao espirito, em oposigao as artes “servis”, associadas & nocio de servidao precisamente por causa do carpe. Ainda hoje, os tedloges chamam de “obras servis” aquelas “em que a parte do corpo é maior que ado espirito”. Da légica 4 matematica, astronomia ou musica, tude se aprendia e se ensinava por meio da palavra ou da escrita, as artes consistindo quase que exclusivamente em certo numero de conhecimentos a adquirir e regras a seguir para a diregao do espirito, em matérias que absolutamente nao exigiam o uso das mos. Os que se dedicavam a elas eram os “arteiros”; nunca houve um atelié ou um laboratério em qualquer faculdade de artes do periodo medieval. Facgamos, porém, uma reserva de suma importancia, assim como nunca houve laboratério ou atelié numa faculdade medieval de artes, assim tam- bém os medievais jamais perderam o sentimento da relagao essencial entre a nocgao de arte ¢ a de producao. Eles distinguiam mais ou menos claramente © conjunto das regras do conhecimento, ou légica, do das regras da agao, ou moral ~ ¢ ambos, finalmente, do conjunto das regras da fabricagdo, que constitufa a arte propriamente dita. Dai a distingdo classica entre a moral, concebida como a reguladora do bem agir ~ recta ratio agibilium ~, ¢ a arte ou técnica, concebida como regra da boa maneira de produzir ou fabricar — recta ratio factibilium. Em todos esses casos, atribuja-se a operagao total uma parte de conhecimento e uma parte de execucdo ou pratica. A questdo da relagio entre as partes se colocava desde o dominio da pura especulagdo: a légica é€ uma arte, uma ciéncia, ou ambas, ¢ em qual propor¢’o? Podemas seguir sem erro as regras da Idgica ainda que as nado conhecamos, ¢ € evidente que conhecer essas regras ndo confere aptidéo para 0 seu correto manejo. Discutia-se muito a esse respeito nas escolas medievais, mas o fato € que em [égica o conhecimento se distingue muito mal da pratica. Em moral, por sua vez, a distingao se impde com toda a forga, pois se é verdade que male- voléncia é ignorancia, 0 mesmo nfo vale para a virtude, que n4o se poderia simplesmente identificar com 0. saber. Também se discutia esse problema. © mesmo problema da arte, alids, o teria por si proprio colocado, se nos tivéssemos lembrado de mencionar a classe socialmente inferior constituida pelos artistas, trabalhadores que usavam as mios. E perfeitamente exato que, para os fildsofos da Idade Média e todos aqueles que ainda hoje fazem uso desta tradico, a arte consista essencialmente em saber como proceder para produzir determinada coisa, e nao tanto em ser capaz de produzi-la. Arrcta ratio da fabricaggo € a propria arte de fabricar. Numa palavra, a arte, 62 | INTRODUCAO As ARTES Do BELO para tais fildsofos, estd totalmente do lado do conhecimento, e é bom que justamente aqui fagamos notar esse ponto. Isso porque sempre houve certa hesitagao e a suspeita de que a nogdo mesma de arte fosse algo diferente, como demonstra o fato de que os maiores escritores, refletindo sobre a sua arte, perceberam que por maior o lugar do conhecimento, do saber e da observacio das regras na arte da escrita, a obra é sempre resultado de uma produgio. Aristételes era um observador admiravel. Ele criou quase todas as ciéncias maiores, se n&o em si mesmas, ao menos nas suas Nocdes principais, distinguin- do-as segundo o respective objeto. O principal mérito da sua Pottica, além da informagio histérica que todos lhe devemos, foi talvez reconhecer a especifici- dade da ordem do fazer e falar das obras de arte como produtos, objetivamente descritiveis, de uma fecundidade andloga 4 da natureza na ordem que the € pré- pria. Ja o mero titulo da obra é prova suficiente de que o seu autor reconheceu a especificidade da ordem da arte como distinta das da ciéncia e da moral. De resto, é natural que grandes escritores hajam refletido sobre a natureza da sua arte e tentado estabelecer as suas regras. As retéricas de Cicero e seus didlogos sobre a eloquéncia sio “artes oratérias”, assim como a epistola de Horacio aos Pisées ¢ a Art Poétique de Boileau so os modelos classicos da maneira como um poeta pode formular, para si e para todos, as regras principais da arte da poesia. Nio deixa de ser ainda mais admiravel que todos, em certo sentido, acabem por reconhecer a aporia de tal empresa. Nao porque a descrigao das regras iria ao infinito, como € evidente, mas devido a uma dificuldade fundamental e muito mais séria. E que, tomadas em conjunto, e mesmo se se supdem completamente definidas, as regras da arte nio sio nada sem a capacidade pratica de aplicé-las, sem 0 pouvoir faire. Este dom da natureza, que € uma espécie de fecundidade pri- meira, ndo se pode nem ensinar, nem aprender, nem tampouco adquirir quando nao se tem. Grandes espiritos privados do dom da poesia trabalharam a vida inteira para adquiri-lo, e depois para substitus-lo por algo que Ihes permitisse escrever poesia auténtica sem serem poetas, mas isto foi sempre em vao. Na fonte de toda arte e de todo saber concernente a arte hé um elemento que nao depende do saber propriamente dito, que nao se basta a si mesmo, € verdade, Capiruno FV - As agres portricas | 63 mas que nada pode substituir e que, em ultima andlise, pode prescindir do resto mais que o resto dele. Os poetas clissicos tinham fd as suas ilusdes: acreditavam que a beleza de um poema se deve a ordem ¢ & clareza das ideias, que sio grandes virtudes da prosa. Horacio e Boileau, porém, concordam ao afirmar que regras sem veia poética ndo bastam (nec studium sine divite vena) e que, se 0 céu ndo o fez poeta, “Cest en vain gu'an Parnasse wn téméraire auteur / ose de Vart des vers affronter la hauteur"; mas no dizem palavra sobre o que, afinal, é “veia poética” e “nascer poeta”. A razio do scu siléncio é que, com efeito, nao ha nada a dizer. Pode-se explicar tudo acerca da arte poética, exceto como e por que 0s poetas sio poetas e produzem poesia, O proprio poeta esté reduzido ao siléncio sobre tais assuntos se se dis- puser a ensiné-lo, pois neste caso ele se engaja na ordem do conhecimento e da palavra, aos quais a ordem do fazer € naturalmente estrangeira. Os antigos poe- tas comegavam as suas obras com uma invocagio as Musas. E isso porque tudo 0 que se nos da sem explicagéo nem justificagio razodvel parece-nos depender da graca. Porque o entendimento nao consegue explicar a arte completamente, procura a sua fonte numa divindade qualquer. Diz-se que as artes pocticas, pois, negligenciam o essencial, mas como © poeta, por sua vez, tem consciéncia disso, o sentido de seu poema parece escapar a todo leitor que néo tenha ele proprio escrito ou tentado escrever um poema. A arte de fazer s6 é plenamente inteligivel a quem faz, e isso vale para todas as artes do belo ou belas-artes. A linguagem comum o testemunha, pois se hoje causaria certa surpresa a afirmacdo de que um légico € um artista, como se afirmava na Idade Média, nao hesitamos em chamar assim a um escultor ou um pintor, E de notar também que a linguagem denuncie uma outra hesitagao do espirito quando fala de “artistas e escritores” e “artes e letras”, como se os escritores ndo fossem artistas, nem as belas-letras, belas-artes. No entanto, o “poeta” é bem aquele que exerce a atividade do poiein: o poietés € essencialmente quem faz, o fazedor. Todo aquele que faz obras escritas, pintadas ou esculpidas é, pois, nesse sentido, “poeta” — ou, como se diz, “criador”, pois é precisamente “CE. Boileau, Art Potiqne [Arte Poetical: “é em vio que no Parnaso um temerério autor / cousa da arte dos versos afrontar a altura”. (N.T) 64 | INrRODUGAO As Ares DO Bato ao artista que as obras devem a sua existéncia. E claro que ele nao cria a partir do nada. © exercicio da arte pressupde a existéncia do artista ¢ dos materiais de que langa mao, mas 0 resultado do seu trabalho € que ao fim € ao cabo exis- te alguma coisa que nao teria existido sem ele. E assim é no caso de todo tipo de fabricagéo, mas conviria reservar o epiteto de “poiética” aquelas operagSes cujo fim € produzir um objeto belo, e precisamente porque € belo. Em outros termos, a poiética inclui em si todo o dominio da factividade, na medida em que esta se prop6e a produzir 0 belo. A confusao entre verdade e beleza, conhecimento e produgio, saber e fa- zer, ciéncia ¢ arte € de longe a fonte mais grave de mal-entendidos neste do- minio. Ora, assim como a ciéncia ¢ a moral, também a arte é obra do homem; as mesmas faculdades do mesmo espirito estdo, pois, em jogo, em todos os dominios de sua atividade. Ha mister de inteligéncia, raciocinio, gosto, senso de ordem e de beleza por toda a parte, pois se pensar no é fazer, comegamos a fazer assim que falamos, e ainda mais assim que escrevemos ~ ou seja, assim que tratamos de comunicar 0 proprio pensamento a outrem ou a formulé-lo para nés mesmos. Faz-se um discurso ou um livro da mesma maneira como um quadro ou uma gravura, mas a palavra “arte” nao se aplica sendo analogicamente a esses casos. Na ordem do pensamento, a arte s6 intervém para encontrar a expressdo perfeita do saber que se comunica ou apenas se formula. A arte de pensar ¢ de falar seguramente produz alguma coisa no pensamento ou no discurso, mas os seus efeitos nao passam de modalidades de um e de outro. A perplexidade dos antigos, que se punham a distinguir entre logica docens e logica uiens, nao teve outra origem, pois a realidade das duas Idgicas é a mesma, assim como a “divina beleza das equagdes de Lagrange”, tao cara a Whitebead, nao cram senao as proprias equagdes, as quais, por sua vez, 6 0 proprio pensamento matematico €a propria ciéncia, cujo objeto € exprimir segundo a verdade aquilo que é, tal como €. Qualquer que seja a arte posta a servigo do conhecimento, a tarefa dele é sempre duplicar o mundo, afinal, oferecendo-the uma imagem de si mesmo. As prodigiosas faculdades de invengio, imaginagao ¢ criagdo de que nasce a ciéncia se empregam inteiramente a dizer a realidade tal ¢ qual se apresenta a inteligéncia; ao fim e ao cabo deste esforco imenso, o homem pode utilizar a Capiruta IV - As axres poséricas | 65 ciéncia a servico das artes do util, mas na medida em que é um conhecimento do mundo expresso na linguagem, a ciéncia nao acrescentou uma unidade se- quer ao ntimero de seres existentes. Numa palavra, toda a arte do homem de ciéncia se pde a servigo do seu conhecimento do mundo e da expresso deste conhecimento, enquanto a arte poiética esta inteiramente a servigo da obra que O artista executa. Os exemplos da légica e da matematica podem ajudar a formular uma regra geral para discernir de um sé golpe entre as operagdes do conhecimento e as da arte. Ha conhecimento toda vez que se houver compreendido uma operagao para saber executa-la, Este é tao evidentemente o caso dessas duas “artes libe- tais” que toda a gente € capaz de raciocinar logicamente sem haver aprendido ldgica, ¢ nao é raro encontrar pessoas capazes de resolver problemas elemen- tares de cdlculo sem haver aprendido matemética. O fato se verifica naqueles casos em que, como dissemos, ha a necessidade de “estudos” para aprender a executar certas operagdes. Convém, pois, colocar na ordem do saber tudo o que somos capazes de fazer unicamente porque compreendemos em que con- siste a operag4o em pauta. Se o esquecermos, o que além de possivel € também frequente, basta reaprendé-lo para poder executa-lo mais uma vez. A definigao de arte como recta ratio factibilium supde que seja assim em todos ‘os casos, quando na verdade ela sé se aplica corretamente as artes do conhe- cimento, em que, com efeito, compreender a regra é uma sé € a mesma coisa que ser Capaz de aplic4-la. As artes da fabricagao, por sua vez, diferem das do conhecimento nisso, pois conhecer os métados ou procedimentos de operagio nao habilita ninguém a aplica-los. As raz6es so varias, mas a principal é que, na ordem do fazer, afirmar que sabemos fazer alguma coisa depois de submeter as suas regras 4 prova da pratica nao basta; é preciso ir além e afirmar que este “saber” consiste precisamente na prépria execug4o. Se examinarmos em detathe ‘os casas deste género, veremos que toda verdadeira arte do fazer se distingue do simples saber nisso que exige do espirito que obtenha do corpo a execugéo de certas operagdes, Essas operagées sio tais que ndo basta conhecé-las para poder executd-las. No caso de sujeitos particularmente dotados, 0 sucesso é facil ¢ imediato; em outros casos, muito tempo e trabalho serdo necessarios para 66 | Inrrooucko As Artes Do BELO formar os habitos motrizes que a pratica de certa arte exige e requer. Sdo anos de aprendizagem para aprender a pintar, esculpir, cantar, tocar um instrumento, compor musica e até mesmo, no caso do escritor, para adquirir o dominio com- pleto da lingua e criar um estilo préprio. Quem fala sobre uma arte qualquer sem a ter exercido pessoalmente sempre sé arrisca a reduzir um poder a um mero saber, E um abuso, alids, atribuir a Aristdteles a definigdo que faz da arte uma ratio e, pois, um logos, quando no uma simples regra. O filésofo concebia a arte como uma éxis poieliké, ou seja, para sermos exatos, “uma aptidao adquirida para fazer uma certa coisa”. Trata-sc, portanto, de um habito formade pelo exercicio e gracas ao qual quem o possui torna-se capaz de produzir certos objetos cuja causa € a sua arte. Podemos, pois, manter esses dois critérios para discernir as operagées que dependem da arte propriamente dita, isto é, da arte de fabricar em geral ¢, particularmente, da factividade na ordem do belo. Em primeiro lugar, que, diferentemente do que se dé na ordem do conhecimento e da verdade, basta saber para poder, a eficdcia sendo por assim dizer a verdade da factividade. Em seguida, e por uma consequéncia necesséria, que, a diferenga do papel que executa quando € posta a servico do conhecimento, a arte do artista nado esta jamais a servico de si mesma, sendo da obra que fabrica em vista de sua beleza. A beleza da ciéncia é um seu subproduto, como a da natureza ou a da industria. A beleza da obra de arte € 0 seu verdadeiro fim. Quando o artista imagina que a sua obra cumpre uma fungao profética qualquer, engana-se redondamente, assim como todos os que o transformam numa espécie de demiurgo ou grande iniciado numa qualquer verdade superior. J4 que tudo o que entra de arte no conhecimento esta a servigo da verdade, o que entra de verdade numa obra de arte s6 o faz para servir 4 beleza, quer se trate de um poema didatico, como as Georgicas, de uma arte poética, como as de Horacio e de Boileau, ou de uma epopeia, como A Divina Comédia. Essa distingao quase ingénua de tao elementar nem sequer mereceria ser lembrada se ndo fosse esquecida com tanta frequéncia. A reducio da arte ao conhecimento é uma ilus3o indestrutivel que jamais conse guiremos exorcizar per completo, pois todos os homens utilizam o conhecimento, mas poucos Capiruto IV - As agres potiricas | 67 praticam aarte. Poderiamos citar inidmeros exemplos, mas seria vo; basta re- sumir aqui, como caso-tipo, as paginas que D’Alembert consagrou a natureza da arte no Discours Préliminaire de l'Encyclopédie. Nao espanta que um enciclope- dista inscreva a arte no lugar que acredita ser o seu, isto 6, entre os diversos ramos do conhecimento humano. Depois de descrever uma primeira classe de operagées cognitivas, as quais consistem em receber “nogées diretas” ou “ideias primitivas” ¢ entéo combind-las entre si ~ o que dé origem as cién- cias -, D’Alembert acrescenta: “Mas as nogGes formadas pela combinagio das idcias primitivas nao sao as tinicas de que nosso espirito é capaz. Hé uma outra espécie de conhecimentos reflexivos de que também se deve falar. Sao as ideias que formamos por nés mesmos, imaginando e compondo seres se- methantes aos gue sdo objeto de nossas ideias diretas: eis o que se chama de imitag3o da Natureza, tao conhecida e recomendada pelos antigos”. Eis ai um engenhoso desvio. A imaginagao imita a natureza formando ¢ combinando imagens de objetos percebidos; imitando essas imagens nas pré- prias obras, o artista imita indiretamente, por sua vez, os seus modelos naturais. A ambiguidade da nogio é evidente, mas era inevitavel; entre exprimir nossas ideias por palavras ou exprimi-las por imagens, nao ha diferenca essencial; se nos ativermos ao préprio ato de significar, trata-se num ¢ noutro caso de ex- primir nogdes concebidas pelo espirito segundo modelos que a realidade the oferece. Daf a formula de D’Alembert: todas as artes sio “conhecimentos que consistem na imitagao”. Nao contente com afirmé-lo, D’Alembert também o demonstra. A frente dos conhecimentos que consistem na imitagao devem estar a pintura ¢ a escul- tura, porque sio as mais préximas dos objetos que representam, e falam mais diretamente aos sentidos. Para D’Alembert, isso € uma simples evidéncia, tanto € visivel o papel da imitag4o nessas artes que podemos afirmar sem receio que elas consistem em imitar. Passemos entio a arquitetura. O problema, aqui, nao é tao simples e, natu- ralmente, D’Alembert se deu conta disso. Ele reconhece que a imitagdo, neste caso, € muito mais “restrita” que nos precedentes. Com efeito, a arquitetura se limita a tornar agradaveis aos olhos as moradas sem as quais a vida humana nao 68 | INTRODUCAC As ARTES DO BELO diferiria em nada da dos animais. Seguindo a sua evolugao, desde as habitacées primitivas até os paldcios modernos, veremos que ela se reduz a ser, em certa medida, “a mascara adornada de uma de nossas maiores necessidades”, Nao obstante, em que sentido ela seria imitagdo? Fla “se limita a imitar pelo ajunta- mento e unido dos diferentes corpos que utiliza aquele arranjo simétrico que a natureza respeita mais ou menos sensivelmente em cada individuo, e que tanto contrasta com a bela variedade do conjunto”. Temos de louvar D’Alembert por nao haver recorrido & conhecida escapatéria: as casas sio, em certa medida, cavernas construidas artificialmente a céu aberto, o que vale para qualquer ca- bana, evidentemente, mas néo explica por que, sendo assim, a arquitetura é uma das belas-artes. Sua honestidade o impede, porém, de responder 4 questio, pois mesmo supondo que a disposigao dos edificios imita a ordem interna ¢ 0 equilibrio das partes do corpo humano, € dificil crer que uma analogia assim tao longinqua tenha chamado a atengao dos primeiros arquitetos. Entre © corpo humano, o Parthenon ou o templo circular de Vesta, em Roma, as diferencas superam as semelhangas. O minimo que se poderia dizer desta hipétese é que ¢ gratuita; tanto Ihe falta consisténcia que nem sequer pode ser refutada. Tratemos agora das artes da palavra e do som. “A poesia, que vem depois da pintura ¢ da escultura, e que imita com palavras que se dispéem segundo uma harmonia agradavel ao ouvido, fala antes 4 imaginago que aos sentidos; representa-lhe de maneira viva e tocante os objetos que compdem este uni- verso, € parece que os cria em vez de os pintar, pelo calor, movimento e vida que lhes sabe conferir”. Relevemos o fato de que a harmonia das palavras para oouvido parece nao ter relagao nenhuma com qualquer espécie de pintura, ex- ceto ao nivel da harmonia imitativa, que € o mais baixo de todos. Observemos que D’Alembert permanece fiel 4 sua nogio primeira segundo a qual a arte € um dos modos do conhecimento. Com efeito, a poesia representa 3 imaginagao do leitor imagens concebidas por uma outra imaginacao, a do poeta; ela é, pois, transmissora de representagées, que sio conhecimentos. O filésofo permanece escrupulosamente fiel & sua prdépria posicio. Mas o que diremos a respeito da mtisica? Essa arte é a pedra no sapato de toda estética deste género e D’Alembert concede, alias, que “ela ocupa o ultimo Caputo IV - As antes porénicas | 69 posto na ordem da imitagao”. A necessidade de incluir a musica em sua doutrina geral inspira-Ihe, porém, uma solugao. A mtisica, diz, imita tao bem quanto qual- quer arte, desde que se trate de algo que possa imitar; sua inferioridade a esse respeito deve-se unicamente a circunstancia de nao dispor senao de um namero muito restrito de imagens e, consequentemente, ter encontrado apenas um rol minimo de coisas a imitar. O seu dominio préprio parece ser o dos sentimentos. Neste ponto preciso, D’Alembert desce a ladeira natural que conduz a nogao de imitagao por meio de signos & de linguagem: “A mésica, que na origem nao estava, talvez, destinada a representar senao o ruido, tornou-se pouco a pouco uma espécie de discurso, ou mesmo lingua, pela qual exprimimos os diferentes sentimentos da alma, ou antes suas diferentes paixdes”. A ideia diretriz perma- nece a mesma, pois ha imitagdo a cada vez que um pensamento, imagem, senti- mento ou paixdo, conhecida pelo sujeito que a experimenta ou possui, se torna ao mesmo tempo um conhecimento comunicavel por meio de signos. Exprimir éimitar. D’Alembert estima além disso que o campo aberto 3 expressio musical possa ser aumentado, ¢ o que diz a respeito é ainda mais revelador. Além das paixdes, a midsica tal como ele a concebe deveria poder exprimir também as sensagées. Eis o que entende por esta formula um tanto desconcertante. Supo- nhamos que quiséssemos “pintar um objeto aterrorizante” ou, pelo contrario, um objeto agradvel: bastaria procurar “na natureza a espécie de ruido que pode produzir em nds a emogio mais semelhante a que este objeto excita”. A teoria parece supor que numeroses objetos tém o poder de nos suscitar emogdes tio determinadas que, basta um som que nos cause a mesma emogao, ¢ a imagem do objeto a que tal emogio habituaimente se liga ¢ imediatamente evocada. D’Alembert pensa que haveria mister de génio para apreender tais ligagées, de gosto para senti-las ¢ de espirito para percebé-las; mas ndo duvida da sua exis- téncia. O sentido de uma tal mdsica estaria irremediavelmente perdido para o valgo; cla nao deixaria de ser 4 sua mancira uma pintura, ¢ € preciso que o seja para ser o que é: “A muisica que nao pinta nada nao passa de ruido". Cada um desses problemas mereceria ser retomado a propésito de cada arte particular, mas a utilidade de escutar D’Alembert esta em que a sua descricao das artes nos mostra o quanto é dificil distinguir as nogédes de conhecimento, 70 | INTaODUGAO As Artes DO BELO imitagio e linguagem. Toda vez que D’Alembert se pée a falar de uma delas, vemo-lo sub-repticiamente passar 4s outras e, com efeito, n3o poderia ser de ou- tra maneira, Nido podemos renunciar a distinguir claramente essas nogdes, nem consegui-lo, Porque todas tém raizes na nocao de conhecimento, a qual se pode enxertar a de arte de trés maneiras distintas, conforme a concebamos como visio privilegiada do real, como linguagem que exprime esse real ou como sistema de signos que o simboliza. Intuigao, expressao, simbolismo — trés interpretagdes da arte que tém 14 a sua verdade, evidentemente, mas contra as quais € preciso defender a verdade fundamental que acabam ofuscando, tanto que mal se distin- guem entre si. Todas as trés tm em comum a certeza imediata de que, a despeito de como a interpretemos, a obra é portadora de uma mensagem, e que a sua fungdo é comunica-la a quem a desfruta. A primeira hipédtese € que a arte seja essencialmente uma cosmovisio privilegiada, ou, como se diz, uma intuigio. Nao € sempre que se concorda quanto ao que, afinal, esta visio revela ao artista, mas talvez nao fosse inexato dizer que, em regra geral, o filésofo identifica o objeto da intuicio do artista com 0 que a sua propria filosofia considera ser o fundamento da realidade. Se for pessimista, como Schopenhauer, o filésofo ha de tomar a arte como uma espécie de redengao, em cujo caso 0 que o artista privilegiado vé e tema missio de revelar seria aquilo que liberta o homem da realidade, do seu fardo. Asubjetividade dessas determinagdes é demasiado visivel para que precisemos insistir no fato, tanto mais que as perpassa a mais comum de todas elas, aquela segundo a qual o artista, rodeado de simpatizantes ¢ entusiastas, ¢ uma espécie de Vidente por cuja intercessio podemo-nos aproximar de um mistério univer- sal, encarnado em sua obra. As dificuldades inerentes a tal nogao sio evidentes. Desde logo ela é igual- mente aplicdvel a toda forma de conhecimento que se gaba de transcender o dado empirico, mas, sobretudo, ela engaja a reflexdo sobre o artista na busca de um objeto de conhecimento que a sua arte teré o dever de imitar. Deste ponto de vista, a nogio de arte-intuigio conduz inevitavelmente a de arte-expressio ¢ arte-simbolismo que teremos de examinar, mas, considerada em si mesma, ela topa com a dificuldade, ta0 conhecida desde que Aristételes a levantou a ‘Capiruto IV - As artes pouricas | 71 Platio, que constitui a passagem do conhecimento 4 acdo. Nada se faz sem conhecimento, mas, por si mesmo, o conhecimento nao faz nada. E possivel, talvez, que haja Ideias, mas, se as houver, elas nada executam por si mesmas, © que um espitito as conhega n&o constitui o inicio de uma operacdo eficaz © Time continua a ser a mais perfeita ilustragao concreta dessa verdade. A dou- trina das Ideias da conta da inteligibilidade do universo, mas, no momento de explicar a sua existéncia ¢ estrutura, Platéo compreende a necessidade de apelar a um filésofo dublé de fabricante. O “demiurgo” tem os olhos fixos nas Ideias ou ao menos se lhes refere ¢ se inspira nelas na execugao do seu trabalho, mas ele préprio permanece um artifice, e, com efeito, a origem e 0 comego da arte nao é um desejo de conhecer, mas de fazer; no é uma visio, mas um projeto. Confusa em si mesma, a doutrina que reduz a arte a um qualquer tipo de intuigdo é ainda mais confusa nas consequéncias que dai deriva. Para lbe conferir um sentido, precisa admitir que o seu objeto lhe é de alguma forma preexisten- te. Toda doutrina desse género é finalmente levada a supor a existéncia de uma realidade transcendente, que seria o Belo, ¢ a conferir ao homem o poder de se fazer uma certa “ideia” deste belo. O artista nao faria senao transcrever o me- thor possive! na matéria de suas obras os tracos desse modelo. Conhecemos o gigantesco lugar ocupado por essa doutrina na filosofia da arte, como também na propria histéria da arte, haja vista que muitos artistas se persuadiram de que a sua missao era primeiro descobrir este belo ideal, depois imita-lo. Mas a maioria reconheceu que, mesmo supondo que existisse, este belo ideal seria puramente inteligivel ¢, portanto, nao poderia jamais servir de modelo para obras realizveis na mera matéria sensivel. Reduzida, pois, a pre- tensdo, considerou-se que 0 modelo da arte era um “reflexo” sensivel dessa be- leza inteligivel. Depois de o haver descoberto na natureza, sé restava ao artista que 0 imitasse. Mas nenhum artista jamais pdde dizer em virtude de qual princi- pio era capaz de distinguir, nos préprios objetos naturais, 0 que era indiferente, disforme e feio, e 0 que era reflexo desse belo ideal que a sua arte devia imitar. Para fugir ao embarago, grandes artistas admitiram que artistas anteriores j4 ha- viam resolvido o problema, de tal modo que, tomando-os por modelo, imitavam a beleza em si que os havia inspirado. Ingres continua a ser uma privilegiada 72 | INTRODUCAO As AnrEs D0 BELO testemunha desta tentativa, como também das dificuldades que comporta. Com efeito, identificar, como identificou, a beleza ideal com a arte de Fidias e, em geral, a estatudtia grega do periodo classico importava em fazer da arte, no a imitagao do belo ideal, mas de uma escola de arte particular vista através de uma nogio muito incompleta a seu respeito. Quando se chegou a definir a mesma arte grega, foi preciso constatar que incluia varios cinones diferentes de beleza, entre os quais se podia escofher. Mas em nome de qual princfpio se podia justi- ficar tal escolha, isso nao se chegou a saber. Tais dificuldades, entre outras tantas, levaram a enfatizar a invengao de pre- feréncia a imitagao em matéria de arte; persistindo, porém, a nogao que faz da arte uma espécie de conhecimento, tal nogio foi concebida como uma intuigdo. capaz de criar o proprio objeto. Se se trata apenas de palavras, o problema nao tem qualquer importancia. A ideia nao é mais concebida como o protétipo de um objeto possivel que ao artista basta conhecer ¢ imitar, mas antes como a for- ma, imanente a imaginagao do artista, que a execucao da obra deve materializar. Reconhece-se em doutrinas deste género a influéncia da teologia crista tradi- cional, em que a ideia divina € considerada como dependente do conhecimento “pratico”, j4 que € essencialmente wn conhecimento-em-vista-da-acdo. Fis af uma feliz modificagao da doutrina, na medida em que se inspira numa nogao de arte que respeita a sua criatividade essencial, mas herda as dificuldades inerentes a toda interpretacio que, para permanecer fiel ao intelectualismo num dominio em que ele ndo ocupa o posto principal, concebe a fecundidade criati- va da arte como andloga 4 invengdo de uma ideia nova. Mas entao € possivel que a comparacao com a teologia do ato criador esteja equivocada. Sem entrar numa discusséo detalhada da nogio teoldégica de “arte divina”, pode-se ao menos ob- servar que toda deducao da arte humana a partir da divina esta sujeita a caugdo. Em Deus, a ideia é 0 conhecimento que Ele tem de si mesmo como imitavel pela criatura humana, mas esta ideia, o ato por que Deus a conhece, a vontade por que escolhe livremente realizé-la entre uma infinidade de outras ideias possiveis, a onipoténcia, enfim, por que a tira do nada e a afirma no ser, sio em realidade o proprio ser de Deus em sua absoluta simplicidade. Retomaremos mais tarde esse problema. Por ora, basta notar que na medida em que temos 0 direito de Capiruzo IV ~ As artes poigticas | 73 distinguir, mediante andlise, no seio da simplicidade perfeita do ato divino, os diferentes momentos deste ato, a criagdo de um certo ser pressupde uma intui- cdo da sua esséncia eternamente vista pelo intelecto divino. Infinito e perfeito ao mesmo tempo, ¢ um em razao do outro, Deus mao descobre nada que lhe seja novo, nao inventa nada que lhe fosse desconhecido, no faz nenhum esfor- 0 para adivinhar, engajando-se em produzi-lo, a natureza do que a sua eficdcia produz no ser. A arte divina inclui, pois, com efeito, uma espécie de intuigao criadora, mas o homem néo tem Ideias, tem apenas conceitos, uns formados a custo abstraindo aos objetos materiais a nocao de sua esséncia, outros de que Janga mio para levar seres possiveis 4 existéncia, ou hem porque sao titeis, ou bem porque so belos. O que falta ao homem para ter a intuicdo criadora desses seres possiveis € 0 poder de conceber nogdes puramente inteligiveis anteriores A mesma experiéncia sensivel e capazes de The causar os objetos. O homem nao possui intuigdo inteligivel pura; portanto, nao possui intuigdo criadora, donde © cardter hesitante e cauteloso da sua arte. O homem esta pois, condenado a engendrar o que no pode ver de antemiic como o fruto de um esforgo que conhecera verdadeiramente apenas depois de o fevar a termo. Em vez de criar como Deus cria, o homem procura, inventa e engendra as suas obras até mesmo ‘em suas nogées seminais. Eis por que a filosofia da arte deve procurar ela mesma o seu objeto no dominio da factividade, que é o andlogo humano da criatividade divina, e nao no do conhecimento, que antes pressupée a existéncia dos seus objetos que propriamente os engendra. Foi o sentimento dessas dificuldades que inspirou as poiéticas da expres- séo. Com efeito, exprimir é um ato; ao mesmo tempo, como se vé pelo modo de expressfo préprio do homem, que é a palavra, o ato de exprimir é pratica- mente indiscernivel do de conhecer ou pensar. Eg, pois, natural que, tomando por tipo de toda arte justamente a poesia, que € a arte da linguagerm na qual © papel da expressao é evidente, se tenha identificado a fungao da arte como tal com a expressao. Mesmo aqui, porém, nao faltam dificuldades. A hipdtese de que o poeta ou © artista exprimem nas obras suas emog6es se explica por um fato inconteste. Ha toda uma classe de artistas que produzem principal mente sob o impacto de 74 | INTRODUCAO As Artes Do Bao uma emocio. Esta é amitide o amor, mas pode ser a célera {facit indiguatio versum, diz Juvenal}, ou a piedade, ou a dor, ou o vinho, ou uma outra droga qualquer que lhes estimule a verve. Nao poderiamos contestar as evidéncias, mas a ques- tao é bem outra. Trata-se de saber se a obra do artista é ou nio é a expressio de uma emogao ou sentimento, dos quais seria a tradugo artistica. Como o ptblico nio se compe de artistas, jamais o impediremos de pensar assim. Os historiadores, psicdlogos, fildsofos e outros intelectuais que nao falam nunca senao para dizer alguma coisa, sempre se recusarao a admitir que a obra de arte no seja uma expresso andloga A sua, c j que a tinica coisa que Ihes importa é 0 ato de exprimir-se, dizer que a arte ndo exprime nada importa em dizer que nfo possui qualquer sentido, que a arte nado é nada. Todavia, quando thes per- guntamos o que, afinal, a obra de arte exprime, ou bem se limitam a considerar o que faz dela, nao propriamente arte, mas finguagem, em cujo caso a questo permanece sem resposta, ou bem nao respondem absolutamente nada. Considerando a questéo em conjunto, pode-se dizer que mesmo quando criada sob o impacto de uma emogio, como acontece frequentemente, alids, a obra de arte nao passa de uma reagao. Todos nos emocionamos, mas os artistas sf0 poucos. A emogio aciona a atividade produtora, mas nao se exprime nela. O fato € comum. Um filésofo volta de um concerto para a casa e, sob o impacto da musica que acaba de ouvir, escreve sobre metafisica. Fé-lo porque a criatividade € contagiosa, mas a filosofia que concebe absolutamente nio traduz a emogio que acabou de sentir. Objetar-se-4 que o caso do poeta ¢ diferente, mas nio o € senao na aparéncia. O homem pode se emocionar, mesmo se aturdir, mas € 0 escritor que senta a escrivaninha ¢ a partir de entao, se for um artista, cuida apenas e tio somente de produzir uma obra de arte. E verdade que muitos artis- tas erram a mao. Erradamente persuadidos de que exprimem emogdes sinceras, que 0s leitores nao deixarao de compartilhar, deixam a pena correr solta. Eis por que tantos jovens enamorados, ¢ as vezes ndo tdo jovens assim, creem que se tornaram poetas, mas o fato é que, se poetas j4 nao forem, a ocasiao, neste caso, jamais hd de fazer o ladrao. Porque Goethe era poeta em grau maximo, seu amor senil por Ulrike von Levetzow f€-lo escrever a imortal Elegia de Marienbad. Ulrike tem dezenove anos, Goethe, setenta e quatro, e a jovem o considera como seu Captruno fV - As anves portricas | 75 avd, mas a idade pouco importa, pois o que faz desta uma obra-prima nao é 0 amor de Goethe, é a sua arte, que ele domina com muito mais perfeicao que aos vinte anos, tendo comegado a escrever a segunda parte do Fausto quase 1a pelos oitenta. O poeta escreve para aliviar o sentimento ou a emogio, mas $6 possui dois modos de fazé-lo. Pode se contentar com derramar-se, como se diz, em cima dos seus leitores, em cujo caso a sua obra resultard da confisséo, do lamento, do grito, mas, sendo assim, se tornar4 rapidamente ilegivel como tan- tos versos de Lamartine, de Anna de Noailles ¢ de outros poetas e poetisas do coracao. Para que o sentimento se torne um auxilio em vez de um obstaculo, é preciso que o artista tome conta dele, o domine e the aproveite apenas o convite que ele costuma fazer para produzir uma obra de arte. A partir de entdo, tudo se da entre o artista, sua arte e sua obra. O problema que se lhe coloca é escolher os melhores meios para produzir uma obra bela; retomando a expresso de Paul Valéry, o problema é agora de “rendimento”. Bastaria um pouco de reflexdo para convencer 0 leitor de que esta é a verda- de, se tudo 0 que vé em si mesmo nao o levasse a pensar 0 contrario. Que senti- mento 0 artista exprimiria? Aquele sentimento todo pessoal que experimenta ao comegar a escrever? Todos sabemos que nao é nada disso. O artista aborreceria muito contando as suas miudezas, cujo interesse nao é maior que as dos outros homens, talvez até menor. Ele quase nao o faz, tanto menos quanto mais os his- toriadores da literatura o julgam importante, por se tratar da histéria, e se poem a discernir as obras escritas para Fulana das obras escritas para Beltrana, com 0 tisco de descobrir que nao foi um lindo e puro amor que inspirou o tal artista, mas um capricho totalmente momentaneo. Se 0 artista quisesse explicar a sua emo- do, féto-ia melhor em prosa, comegando por dizer: “Eu nao saberia exprimir 0 que sinto” Eo que levava Max Jacob a dizer: “A poesia é uma mentira, pois nao desejamos dizer o que sentimos quando 0 sentimos, mas somente quando nao o sentimos mais, ou nao ainda”. Na verdade, a poesia verdadeira nunca € mentira, precisamente porque o seu objeto proprio é dizer bem, nao exprimir. Isto € tio evidente que os partidarios da arte-expressdo acabam por acei- tar uma posigio menos ambiciosa. O que a obra exprime, dizem entao, nao ¢ © sentimento do préprio artista, € um certo sentimento em geral, ou mesmo, 76 | INrRODUCAC As ARTES DO BELO para generalizar completamente, o sentimento em si, feeling, que é, em suma, 0 sentimento da vida. Tentemos admitir esta nova posigio. Em que sentido, de que maneira uma obra de arte pode exprimir um sentimento qualquer, por mais geral que ele seja? A confusao reinante neste ponto reflete a confusao da propria lingua. Tudo depende, com efeito, do sentido que se atribui & palavra exprimir. Originalmen- te, exprimir significa “espremer", isto ¢, “comprimir ou apertar para extrair o suco, o liquido”. Daf, o sentido se estendeu a toda agao de extrair o contetido de um objeto. E neste sentido que o termo se aplica 4 linguagem. Porque é in- visivel, estima-se que o pensamento se esconde no interior do homem, isto é, na sua cabeca; o objeto da linguagem, pois, seria extrair, manifestar e comunicar este pensamento. Este é 0 sentido préprio do termo “exprimir" na sua acepgao costumeira, pelo que se poderia dizer de toda obra de arte que exprime, na medida em que langa mio da linguagem como o seu material, mas o problema € precisamente saber se, porque emprega a linguagem com o fito de significar, por isso mesmo é uma obra de arte. Num sentido ainda mais geral, emprega-se 0 termo “exprimir” como sinénimo de “trazer a marca ou o traco de alguma coisa". E assim que em inglés, por exemplo, o homem “exprime a Deus” por sua mera presenga, ou ainda, jé que se invocou este exemplo, 0 leito seco “exprime o rio” cujas curvas € pogas ainda se percebem sobre as antigas margens. Ora, qual destes sentidos, pois, devemos escolher? O terceiro sentido naéo é uma extensdo do segundo, mas uma sua transpo- sigéo que leva a um equivoco. No segundo sentido, que € o mais comum, expri- mir € sempre 0 ato que da a conhecer um pensamento comunicando-o por meio da linguagem. Uma coisa jamais exprime o que quer que seja, simplesmente porque nao pensa nem fala; somente um ser dotado de conhecimento tem algo a exprimir e dispde do meio de fazé-lo. No terceiro sentido, a mesma palavra, “exprimir", significa uma coisa inteiramente diferente. O leito seco nao exprime orio que o escavou, ele somente existe, mas como € efeito deste rio, permite a um ser inteligente que infira da sua presenga a existéncia passada do tal rio. Do mesmo modo, a pedra enegrecida pela fumaca que o espeleologista encontra nao diz nada, nao exprime nada, mas quem a encontra infere “fogo", e pode ‘Capiruto IV - As antes pottricas | 77

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