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Fala-se em crise dos valores e na necessidade de um retorno à ética,como se esta fosse uma coisa
que se ganha, se guarda, se perde e se acha e não a ação intersubjetiva consciente e livre que se
faz à medida que agimos e que existe somente por nossas ações e nelas
por Marilena Chaui
Embora ta ethé e mores signifiquem o mesmo, isto é, costumes e modos de agir de uma
sociedade, entretanto, no singular, ethos é o caráter ou temperamento individual que deve
ser educado para os valores da sociedade e ta éthiké é uma parte da filosofia que se dedica
às coisas referentes ao caráter e à conduta dos indivíduos e por isso volta-se para a análise
dos próprios valores propostos por uma sociedade e para a compreensão das condutas
humanas individuais e coletivas, indagando sobre seu sentido, sua origem, seus
fundamentos e finalidades. Toda moral é normativa, pois cabe-lhe a tarefa de inculcar nos
indivíduos os padrões de conduta, os costumes e valores da sociedade em que vivem, mas
nem toda ética precisa ser normativa (a de Espinosa, por exemplo, não o é). Uma ética
normativa é uma ética dos deveres e obrigações (como é o caso, por exemplo, da ética de
Kant); uma ética não-normativa é uma ética que estuda as ações e as paixões em vista da
felicidade, e que toma como critério as relações entre a razão e a vontade no exercício da
liberdade como expressão da natureza singular do indivíduo ético que aspira pela felicidade.
No entanto, quer a ética seja ou não normativa, não há ética enquanto investigação filosófica
se não houver uma teoria que fundamente as idéias de agente ético, ação ética e valores
éticos. Sob essa perspectiva geral, podemos dizer que uma ética procura definir, antes de
mais nada, a figura do agente ético e de suas ações e o conjunto de noções (ou valores) que
balizam o campo de uma ação que se considere ética. O agente ético é pensado como sujeito
ético, isto é, como um ser racional e consciente que sabe o que faz, como um ser livre que
decide e escolhe o que faz, e como um ser responsável que responde pelo que faz. A ação
ética é balizada pelas idéias de bom e mau, justo e injusto, virtude e vício, isto é, por valores
cujo conteúdo pode variar de uma sociedade para outra ou na história de uma mesma
sociedade, mas que propõem sempre uma diferença intrínseca entre condutas, segundo o
bem, o justo e o virtuoso. Assim, uma ação só será ética se for consciente, livre e
responsável e só será virtuosa se for realizada em conformidade com o bom e o justo. A ação
ética só é virtuosa se for livre e só será livre se for autônoma, isto é, se resultar de uma
decisão interior ao próprio agente e não vier da obediência a uma ordem, a um comando ou a
uma pressão externos. Como a palavra autonomia indica, é autônomo aquele que é capaz de
dar a si mesmo as regras e normas de sua ação. Evidentemente, isso leva a perceber que há
um conflito entre a autonomia do agente ético e a heteronomia dos valores morais de sua
1) tudo o que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar);
4) todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade
define como justas e como um direito;
A esse quadro, contrapõe-se a palavra de ordem do "retorno à ética" como panacéia geral.
Como é pensada essa ética, à qual se pretenderia "retornar"?
Em primeiro lugar, como reforma dos costumes (portanto, como moralidade) e como
restauração de valores e não como análise das condições presentes de uma ação ética.
Em segundo lugar, como dispersão de éticas (ética política, ética familiar, ética escolar, ética
profissional, ética da empresa, ética médica, ética universitária) desprovida de qualquer
universalidade porque espelha sem análise e sem crítica a dispersão e fragmentação
socioeconômica. Mais do que ideologia, essa pluralidade de éticas exprime a forma
contemporânea da alienação, isto é, de uma sociedade totalmente fragmentada e dispersa
que não consegue estabelecer para si mesma sequer a imagem da unidade que daria sentido
à sua própria dispersão. Fragmentada em pequenas éticas locais, a que se reduz a ética?
Passa a ser entendida como competência específica de especialistas (as comissões de ética)
que detêm o sentido das regras, normas, valores e fins locais e julgam as ações dos demais
segundo esses pequenos padrões localizados, os quais, freqüentemente, estão em
Em terceiro lugar, é entendida como defesa humanitária dos direitos humanos contra a
violência, isto é, tanto como comentário indignado contra a política, a ciência, a técnica, a
mídia, a polícia e o exército, quanto como atendimento médico-alimentar e militar dos
deserdados da terra. É o momento no qual as ONGs deixam de ser vistas e pensadas como
partes de movimentos sociais mais amplos ligados à cidadania, para serem reduzidas à
condição assistencial que a imagem das vítimas impõe à consciência culpada dos
privilegiados.
Pensada dessa maneira, a ética se torna pura e simples ideologia e, como tal, propícia ao
exercício da violência. Por quê?
Em primeiro lugar, porque o sujeito ético ou o sujeito de direitos está cindido em dois: de um
lado, o sujeito ético como vítima, como sofredor passivo, e de outro lado, o sujeito ético
piedoso e compassivo que identifica o sofrimento e age para afastá-lo. Isto significa que, na
verdade, a vitimização faz com que o agir ou a ação fique concentrada nas mãos dos
não-sofredores, das não-vítimas que devem trazer, de fora, a justiça para os injustiçados.
Estes, portanto, perderam a condição de sujeitos éticos propriamente ditos para se tornar
objetos de nossa compaixão. Isto significa que para que os não-sofredores possam ser
éticos é preciso duas violências: a primeira, factual, é a existência de vítimas; a segunda, o
tratamento do outro como vítima sofredora passiva e inerte. Donde o horror causado pelo
movimento dos sem-terra que se recusam a ocupar o lugar da vítima sofredora, passiva,
muda e inerte, que recusam a compaixão e por isso mesmo, numa típica inversão ideológica,
são considerados não sujeitos éticos e sim agentes da violência.
Em segundo lugar, porque, como tão lucidamente observou Alain Badiou num pequeno
ensaio Sur le Mal, enquanto na ética é a idéia do bem, do justo e do feliz que determina a
autoconstrução do sujeito ético, na ideologia ética é a imagem do mal que determina a
imagem do bem, isto é, o bem torna-se simplesmente o não-mal (não ser ofendido no corpo e
na alma, não ser maltratado no corpo e na alma é o bem). O bem se torna a mera ausência de
mal ou privação de mal, não é algo afirmativo e positivo, mas puramente reativo. Eis porque a
ética como ideologia salienta e sublinha o sofrimento individual e coletivo, a corrupção
política e policial, pois com tais imagens ela oferece fatos visíveis que sustentam seu
discurso e consegue obter o consenso da opinião: somos todos contra o Mal, porém, não
nos perguntem sobre o Bem por que este divide a opinião, e a "modernidade", como se sabe,
é o consenso.
Em terceiro lugar, porque a imagem do mal e a imagem da vítima são dotadas de poder
midiático: são poderosas imagens de espetáculo para nossa indignação e compaixão,
acalmando nossa consciência culpada. Precisamos das imagens da violência para nos
considerarmos sujeitos éticos.
A ética como ideologia significa que, em lugar da ação reunir os seres humanos em torno de
idéias e práticas positivas de liberdade e felicidade, ela os reúne pelo consenso sobre o mal.
Com isso, a ética como ideologia é duplamente perversa: por um lado, ela procura fixar-se
numa imagem do presente como se este não só fosse eterno, mas sobretudo como se
existisse por si mesmo, isto é, como se não fosse efeito das ações humanas e como se não
1) uma narrativa da origem reiterada em inúmeras narrativas derivadas que repetem a matriz
de uma primeira narrativa perdida;
2) opera com antinomias, tensões e contradições que não podem ser resolvidas sem uma
profunda transformação da sociedade no seu todo e que por isso são transferidas para uma
solução imaginária que nega e justifica a realidade;
3)cristaliza-se em crenças que são interiorizadas num grau tal que não são percebidas como
crenças, mas como a própria realidade e torna invisível a realidade existente;
4) não é apenas crença, mas ação, pois resulta de ações sociais e produz como resultado
outras ações sociais que o confirmam, isto é, um mito produz valores, idéias,
comportamentos e práticas que o reiteram na e pela ação dos membros da sociedade;
Muitos indagarão como o mito da não-violência brasileira pode persistir sob o impacto da
violência real, cotidiana, conhecida de todos e que, nos últimos tempos, é também ampliada
por sua divulgação e difusão pelos meios de comunicação de massa. Ora, é justamente no
modo de interpretação da violência que o mito encontra meios para conservar-se: ele
permanece porque, graças a ele, se pode admitir a existência empírica da violência e pode-se,
ao mesmo tempo, fabricar explicações para denegá-la no instante mesmo em que é admitida.
É isso que temos visto na produção recente de uma imagem da violência obtida pela
construção de várias imagens da violência que ocultam a violência real no instante mesmo
em que são exibidos atos violentos. Se, por exemplo, fixarmos nossa atenção ao vocabulário
empregado pela imprensa, pelo rádio e pela televisão, observaremos que os vocábulos se
distribuem de maneira sistemática:
- fala-se em indistinção entre crime e polícia para referir-se à participação de forças policiais
no crime organizado, particularmente o jogo do bicho, o narcotráfico e os seqüestros;
- fala-se em guerra civil tácita para referir-se ao movimento dos sem-terra, aos embates entre
garimpeiros e índios, policiais e narcotraficantes, aos homicídios e furtos praticados em
pequena e larga escala, mas também para referir-se ao aumento do contingente de
desempregados e habitantes das ruas, aos assaltos coletivos a supermercados e mercados,
e para falar dos acidentes de trânsito;
- fala-se em debilidade das instituições políticas para referir-se à corrupção nos três poderes
da república, à lentidão do Poder Judiciário, à falta de modernidade política;
- fala-se, por fim, em crise ética para referir-se ao crime imotivado (como o assassinato do
índio pataxó), aos laços secretos entre a burguesia e os poderes públicos para obtenção de
recursos públicos para fins privados (como os precatórios, no município de São Paulo ou o
caso Naya), à ausência de decoro político, à impunidade no mau tratamento dado aos
consumidores pela indústria e o comércio, e à impunidade no mau exercício da profissão.
Essas imagens têm a função de oferecer uma imagem unificada da violência que seria como
que o núcleo delas. Chacina, massacre, guerra civil tácita e indistinção entre polícia e crime
pretendem ser o lugar onde a violência se situa e se realiza; fraqueza da sociedade civil,
debilidade das instituições e crise ética são apresentadas como impotentes para coibir a
violência, que, portanto, estaria localizada noutro lugar. As imagens indicam a divisão entre
dois grupos: de um lado, estão os grupos portadores de violência, e de outro lado, os grupos
impotentes para combatê-la. É exatamente essa divisão que nos permite falar numa ideologia
da ética ou da ética como ideologia.
Como explicar que a exibição contínua, pelo menos nos últimos 15 anos, da violência no
país, possa deixar intocado o mito da não-violência e ainda suscitar o clamor pelo retorno à
ética? Para responder, precisamos examinar os mecanismos ideológicos de conservação da
mitologia. Que mecanismos são esses?
Em resumo, a violência não é percebida ali mesmo onde se origina e ali mesmo onde se
define como violência propriamente dita, isto é, como toda prática e toda idéia que reduza um
sujeito à condição de coisa, que viole interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetue
relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural. Mais do que isto, a
sociedade não percebe que as próprias explicações oferecidas são violentas porque está
cega ao lugar efetivo de produção da violência, isto é, a estrutura da sociedade brasileira.
Dessa maneira, as desigualdades econômicas, sociais e culturais, as exclusões econômicas,
políticas e sociais, a corrupção como forma de funcionamento das instituições, o racismo, o
sexismo, a intolerância religiosa, sexual e política não são consideradas formas de violência,
isto é, a sociedade brasileira não é percebida como estruturalmente violenta e a violência
aparece como um fato esporádico de superfície. Em outras palavras, a mitologia e os
procedimentos ideológicos fazem com que a violência que estrutura e organiza as relações
sociais brasileiras não possa ser percebida, e, por não ser percebida, é naturalizada e essa
naturalização conserva a mitologia da não-violência com a qual se brada pelo "retorno à
ética".
- estruturada segundo o modelo do núcleo familiar, nela se impõe a recusa tácita (e, às vezes
explícita) para fazer operar o mero princípio liberal da igualdade formal e a dificuldade para
lutar pelo princípio socialista da igualdade real: as diferenças são postas como
desigualdades e, estas, como inferioridade natural (no caso das mulheres, dos trabalhadores,
dos negros, índios, migrantes, idosos) ou como monstruosidade (no caso dos
homossexuais).
- estruturada a partir das relações familiares de mando e obediência, nela se impõe a recusa
tácita (e às vezes explícita) de operar com o mero princípio liberal da igualdade jurídica e a
dificuldade para lutar contra formas de opressão social e econômica: para os grandes, a lei é
privilégio; para as camadas populares, repressão. A lei não deve figurar e não figura o pólo
público do poder e da regulação dos conflitos, nunca definindo direitos e deveres dos
cidadãos porque a tarefa da lei é a conservação de privilégios e o exercício da repressão. Por
este motivo, as leis aparecem como inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para serem
transgredidas e não para serem transformadas. O Poder Judiciário é claramente percebido
como distante, secreto, representante dos privilégios das oligarquias e não dos direitos da
generalidade social.
- a indistinção entre o público e o privado não é uma falha ou um atraso, mas é, antes, a
forma mesma de realização da sociedade e da política: não apenas os governantes e
parlamentares praticam a corrupção sobre os fundos públicos, mas não há a percepção
social de uma esfera pública das opiniões, da sociabilidade coletiva, da rua como espaço
- forma peculiar de bloquear a esfera pública da opinião como expressão dos interesses e
dos direitos de grupos e classes sociais diferenciados eou antagônicos. Esse bloqueio não é
um vazio ou uma ausência, mas um conjunto de ações determinadas que se traduzem numa
maneira determinada de lidar com a esfera da opinião: os mass media monopolizam a
informação, e o consenso é confundido com a unanimidade, de sorte que a discordância é
posta como atraso ou ignorância.
- fascínio pelos signos de prestígio e de poder: uso de títulos honoríficos sem qualquer
relação com a possível pertinência de sua atribuição, o caso mais corrente sendo o uso de
"Doutor" quando, na relação social, o outro se sente ou é visto como superior. "Doutor" é o
substituto imaginário para os antigos títulos de nobreza; manutenção de criadagem
doméstica cujo número indica aumento de prestígio e de status etc...
Ao lado do movimento dos sem-terra, eu gostaria de lhes dizer alguma coisa sobre o
movimento dos desempregados franceses e do papel que poderá ter na Europa. Esse
movimento pareceria impossível nos quadros do neoliberalismo porque estamos
acostumados a pensar que trabalhadores se organizam a partir do local de trabalho e que,
portanto, não há como organizar-se um movimento social dos sem-trabalho. Para
compreendermos sua existência e a peculiaridade de suas reivindicações, devemos levar em
conta as idéias de Viviane Forrester, cujo livro, O horror econômico, foi um dos grandes
inspiradores para o surgimento e para o conteúdo do movimento dos desempregados
franceses. Não se trata aqui de examinar todas as teses desse pequeno e instigante livro,
mas de mencionar alguns dos aspectos que inspiraram os desempregados franceses.
Qual o primeiro ponto que precisamos compreender? Que há uma contradição surda entre o
desenvolvimento tecnológico ou o trabalho morto cristalizado no capital e o trabalho vivo,
isto é, o desenvolvimento tecnológico torna inútil e desnecessário o trabalho vivo. Isto
significa que, para a economia contemporânea, o trabalho não cria riqueza, os empregos não
dão lucro, os desempregados são dejetos inúteis e inaproveitáveis e que é preciso fazer o
luto de uma sociedade fundada no sacrossanto dever de trabalhar, se se quiser reagir e
encontrar soluções para a sociedade por vir. Enquanto os desempregados dos países ricos e
pobres, enquanto os sub-empregados desses países e enquanto os super-explorados dos
países pobres acreditarem na Ética Protestante e por isso se sentirem culpados e
envergonhados pelo desemprego e pelo subemprego; enquanto as políticas de promessa de
mais empregos forem acreditadas, e enquanto acreditarmos que o desemprego em massa é
uma "crise" (portanto, algo passageiro e solucionável) nada será pensado e nada será feito.
O Muro de Berlim pôde cair porque um outro, invisível e intangível, já havia sido erguido pela
economia capitalista: o muro que, no interior de cada sociedade e entre os países, separa os
privilegiados que fruem a realidade virtual de suas ações (a finança internacional, o jet set) e
os desempregados, massa de humilhados e ofendidos, dos envergonhados e culpados por
não possuírem aquilo que o capitalismo não lhes deixa possuir e os faz crer que têm o dever
moral e social de possuir, o emprego. Não foi casual que Ronald Reagan houvesse dito que a
queda do Muro não era o fim da Guerra Fria e sim a vitória dos "Países Livres" contra a
"Cortina de Ferro".
Nada mais exemplar do que a grande solução britânica: o "trabalho a hora zero" em que o
empregado é remunerado quando trabalha, mas só é empregado de vez em quando, devendo
ficar em casa disponível e não remunerado enquanto uma empresa não o chamar e o usar
pelo tempo que julgar necessário. Melhor ainda é o conceito que, diz Forrester, nem o
Essas idéias orientam o movimento social dos desempregados franceses que possui três
características principais:
2) os desempregados não reivindicam uma nova jornada de trabalho que permitiria uma nova
divisão social do trabalho, mas reivindicam a distribuição social da riqueza pelo Estado,
através da política fiscal e das políticas sociais;