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A CONSTITUIÇÃO
por
ANTÔNIO DA SILVA LEAL
ANTÔNIO LEITE
ANTONIO MONTEIRO FERNANDES
GERMANO MARQUES DA SILVA
JOAQUIM DA SILVA LOURENÇO
JORGE MIRAJJDA
J08S DE SOUSA E BRITO
MANUEL PIRES
MARCELO REBELO DE SOUSA
RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA
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portugueses de território nacional: art. 23.°, n.° 1; privação,
por motivos políticos, da cidadania portuguesa, da capacidade
civil ou do nome: art. 30.% n.° 4), que proíbem a transmissibili-
dade das penas (art. 30.°, n.° 3), delimitam o sentido, o âmbito
de aplicação no tempo ou adaptam outras norma3 penais não
constitucionais (art. 29.°, n.0B 1 a 4), ou recebem na Constituição
normas penais anteriores (art. 309.", que mantém em vigor a
Lei Constitucional n.° 8/75 de 25 de Julho, que pune os agentes
e responsáveis da PIDE/DGS). As restantes fontes de direito
penal são especialmente reguladas na Constituição: a lei no
art. 164.°, alínea e) e no art. 29.°; os princípios gerais de direito
internacional no n.° 2 do art. 29.° Salvas as especialidades destes
artigos, as normas de direito penal são criadas segundo os pro-
cessos de produção e revelação do direito previstos ou autori-
zados, pelo menos indirectamente, pela Constituição para todos
os ramos do direito.
198
Não se trata apenas da compatibilização legislativa, por
adaptação e reforma do direito anterior, das definições de bens
jurídicos e valores que resultam das normas penais com as
que resultam da Constituição. Há ainda o trabalho de harmo-
nização axiológica da doutrina e da jurisprudência, que se re-
flecte no próprio conteúdo das normas penais, que não devem
ser aplicadas na medida da sua inconstitucionalidade (arts. 280.°
a 282.°), e que no mais se devem interpretar em harmonia com
a Constituição. Há aqui um enorme espaço a percorrer, em
particular pelo juiz através da medida judicial da pena, sempre
dentro dos limites impostos pelo princípio da legalidade, visto
que há grande disparidade entre a visão do mundo do Código
de 1852, que no essencial ainda nos rege, e a do legislador cons-
tituinte.
Mais do que isso, a Constituição estabelece, nomeadamente
através da definição dos direitos, liberdades e garantias, o qua-
dro dos valores fundamentais da ordem jurídica portuguesa.
Esses valores funamentais são a base dos princípios de política
criminal, que inspirarão não só a actividade do juiz e do intér-
prete, mas sobretudo a do próprio legislador penal. Esses prin-
cípios, mesmo quando não estão expressos, integram a cons-
tituição em sentido material, que inclui todos os princípios
fundamentais da ordem jurídica portuguesa, a que subordina o
legislador ordinário, estejam expressos ou apenas implícitos no
texto constitucional, constem de outras leis e das regras aplicá-
veis de direito internacional (art. 16.°). Assim, são princípios
constitucionais de política criminal o princípio da culpa, o prin-
cípio da necessidade da pena e das medidas de segurança, os
princípios 3a legalidade e da jurisdicionalidade da aplicação do
direito penal, o princípio da humanidade e o princípio da igual-
dade.
O princípio da culpa deduz-se da dignidade da pessoa hu-
mana art 1.°) ( 2 ) e do direito à liberdade (art 27.°, n.° 1). Sig-
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nifica que a pena se funda na culpa do agente pela sua acção ou
omissão, isto é, em um juízo de reprovação do agente por não
ter agido em conformidade com o dever jurídico, embora tivesse
podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo. A culpa pres-
supõe a consciência ética e a liberdade do agente, sem admissão
das quais não se respeita a pessoa nem se entende o seu direito
à liberdade. Implica que não há pena sem culpa, excluindo-se a
responsabilidade penal objectiva, nem medida da pena que ex-
ceda a da culpa. Mas já não significa que toda a culpa seja
punida.
Uma vez que a pena se traduz em restrições ou sacrifícios
importantes dos direitos fundamentais do criminoso, cujo res-
peito é uma finalidade essencial do Estado (art. 2.°), é indis-
pensável que esse sacrifício seja necessário à paz e conservação
sociais, isto é, à própria defesa dos direitos e liberdades e garan-
tias em geral que são a base do Estado, fi este o princípio da
necessidade ou da máxima restrição da pena e das medidas de
segurança (art. 18.°, n.°» 2 e 3), que está ligado ao princípio
da legalidade (art. 29.°), porque as penas ilegais não são ne-
cessárias, e ao princípio da jurisdiciondlidade da aplicação do
direito penal, como garantia da máxima objectividade e do
mínimo abuso (arts. 27.°, n.° 2; 23.°, n.° 4; 30.°, n.° 2).
Temos ainda o princípio da humanidade no tratamento do
criminoso e na definição e aplicação das penas e das outras
sanções criminais, como se revela na proibição da pena de morte
(art. 25.°, n.° 1), da tortura e de tratos ou penas cruéis, degra-
dantes ou desumanos (art 26.", n.° 2), da expulsão de cidadãos
portugueses do território nacional (art. 23.°, n.° 1), e que pre-
side ao regime jurídico da execução da pena e da recuperação
do criminoso e sua reintegração na sociedade.
200
Finalmente, o princípio da igualdade (art. 13.°) implica a
não discriminação das pessoas sujeitas ao direito penal, a irre-
levância penal, em princípio, de circunstâncias como a ascen-
dência, o sexo, a raça, a língua, o território de origem, a reli-
gião, as convicções políticas ou ideológicas (art. 30.°, n.° 4), a
situação económica ou a condição social.
201
duos. No desenvolvimento histórico e no fundamento filosófico
dessa interpretação teve papel importante uma certa teoria da
lei penal que lhe atribui uma função de garantia dos direitos
individuais. A função de garantia da lei penal exprime-se atra-
vés da particular configuração do princípio da legalidade em
direito penal, que é inseparável do princípio da necessidade
das penas e das medidas jurídico-penais e do princípio da juris-
dicionalidade da aplicação do direito penal. Essa configuração
implica os seguintes desvios entre a teoria geral dag fontes de
direito — que tem fundamento constitucional — e a teoria
da lei penal: o princípio nullum crvmen sine lege; a proibição
da interpretação extensiva; a retroactividade da lei penal mais
favorável. A exposição seguinte limita-se precisamente à lei
penal como garantia constitucional dos direitos.
Ficam, portanto, de fora os aspectos judiciais e processuais
da garantia, que pertencem ao direito processual penal e ao
direito judiciário, e que explicitam o princípio da jurisdicio-
nalidade. Também ficarão por tratar os restantes princípios
que determinam as demais incidências do princípio do Estado
de direito no direito penal. Correlativamente, não só ficam na
sombra os aspectos do Estado de direito relacionados com os
outros princípios constitucionais em matéria penal, como toda
a restante problemática do Estado de direito, nomeadamente
a que justifica o qualificativo de «democrático» do preâmbulo
da Constituição.
202
Valeria, que submeteu a sentença de morte do cidadão romano
à confirmação pela cidade ... A partir de então não há em
Roma delito sem lei criminal, processo penai sem lei de pro-
cesso, pena sem lei penal» A íntima ligação entre o direito
penal e o princípio da legalidade é tão evidente para um espí-
rito moderno, que Mommsen faz começar o direito penal ro-
mano, na frase de Lange, com «o Feuerbach romano* ( 7 ).
O texto é um bom exemplo da dificuldade, típica do historia-
dor, de compreender com conceitos seus ordens sociais estru-
turalmente diferentes da sua própria. A continuação revela que
Mommsen afinal não quer dizer mais do que a tautologia de
que em Roma não há pena sem lei penal no âmbito de aplica-
ção dessa lei penal ...: «O arbítrio do magistrado não foi de
modo algum afastado; ainda agora o magistrado pode castigar
arbitrariamente sem processo determinado, sem medida deter-
minada da pena, quer dentro dos limites do direito de guerra,
quer dentro dos limites da coercitio; mas a par desta coertitio
não vinculada do magistrado existe a judicação vinculada do
magistrados
O princípio da legalidade em matéria penal não nasce com
o direito penal mas com o constitucionalismo. A sua história
acompanha a par e passo a do princípio da rule of law no mundo
jurídico anglo-americano e a do princípio da constitucionalidade
do Estado no continente europeu. Isto não é negar a herança
clássica e cristã, e sobretudo as doutrinas medievais da pri-
mazia do direito e sua continuação na filosofia e teologia cató-
lica e protestante.
É assim que já na Magna Charta lÁbertatis, de 15 de Junho
de 1215, o princípio é claramente entendido como restrição do
direito de punir e, portanto, como garantia dos direitos indivi-
duais perante as sanções penais, e não, em primeira linha, como
( ' ) PAULU3 Dig. 50, 16, 131, 1: poena non irrogatur, nisi quae
lege vél quo alio iure spectalite.r huic delicio imposita. est.
(') Der Rechtsstaat ais Zentralbegrlff der neuesten Strafrechts-
enUoicklung, 1952, p. 62.
203
garantia da liberdade de agir. Isto resulta da redacção da céle-
bre cláusula 29: «Nullus liber homo capiatur vel imprisonetur
aut dissaissiatur aut utlagetur aut exuletur auc aliquo modo
destruatur, nec super eum ibimus nec super eum mittemus, nisi
per legale judicium suorum vel per legem terrae» ('). Tem-se
discutido o carácter exclusivamente processual ou também ma-
terial desta cláusula ( 9 ), mas parece que só uma interpretação
do princípio da legalidade que o restringe à lei em sentido
formal negará a sua aplicabilidade à common lavo. A vincula-
ção ao precedente permite uma determinação tanto ou mais
rigorosa das regras existentes de direito penal do que, muitas
vezes,a interpretação da lei escrita 0°).
Este entendimento do princípio é confirmado pela tradi-
ção anglo-americana de petições ( n ) e cartas de direitos ( 12 ),
que culmina numa clara formulação do princípio da írre-
troactividade da lei penal nas declarações de direitos de De-
laware (11.9.1776), Maryland (3.11.1776) e North Carolina
(14.12.1776) ('')• A declaração de Maryland é aqui a mais com-
pleta e o seu texto, anteriormente preparado, influenciou as
outras duas: «That retrospective laws, punishing acts com-
mited before the existence of such laws, and by them only
m
declared criminal, are oppressive, injust, and incompatible with
libèrty; wherefore no ex post facto law ought to be made»
(art. 15.°). E um caso particular e significativo de lei penal
retroactiva, o biU of atteinder, que era uma lei ad hoc comina-
tória de morte e confisco para pessoas determinadas (nomea-
damente em casos de crime político), é expressamente proibido
no art. 16.® Além disso, as constituições dos estados americanos,
a começar pela de Virginia (12.6.1776), contêm uma regula-
mentação precisa do princípio da jurisdicionalidade da aplica-
ção de lei penal e várias afirmações dos princípios da neces-
sidade e da humanidade da pena (secção 9 da Constituição de
Virginia). A proibição da ex post facto law e do biU of atteinder
é recolhida no § 9." da Constituição Federal de 1787 e os
princípios da necessidade e da humanidade da pena no S.° Amen-
dejnent a esta Constituição (15.12.1791) ( 14 ). O Supremo Tri-
bunal dos E. U. A. esclareceu defintivamente em 1798 que uma
lei ex post facto é uma lei que torna criminosos actos que eram
inocentes quando praticados, que agrava um crime ou a puni-
ção dele depois do acto, ou que altera as regras de prova em
desfavor do réu depois do acto pelo qual é julgado ( " ) .
205
tuada do seu espírito, pois não se liga aos princípios da neces-
sidade e da humanidade da pena. Ê antes um meio de garan-
tir a estrita aplicação das penas excessivas e desumanas que
prevê O7).
A. fórmula fundamental, que influenciou toda a evolução
posterior, é aqui a do artigo 8.° da Declaração francesa dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: «La loi ne doit établir
que des peines strictement et évidemment nécessaires, et nul
ne peut être puni qu'en vertu d'une loi établie et promulguée
antérieurement au délit et légalement appliquée.» O Código
Penal francês de 1791 contém nas suas disposições finais a pri-
meira consagração legal da retroactividade e da ultra-activi-
dade da lei penal mais favorável, embora restritas à questão
da punibilidade, não às da espécie e medida das penas: «Pour
tout fait antérieur à la publication du présent Code, sí le fait
est qualifié crime par les lois actuellement existantes, et qu'il
ne le soit pas par le présent décret; ou si le fait est qualifié
crime par le présent Code, et qu'il ne le soit pas par les lois
ancieunes, l'accusé sera acquitté, sauf à être correctionnelle-
ment puni, s'il y échoit. Si le fait est qualifié crime par les
lois anciennes et par le présent décret, 1'accusé qui aura étê
déclaré coupable sera condamné aux peines portées par le pré-
sent Code.» P") Esta última restrição explica-se, aliás, pela
substituição radical do sistema de penas, pela indeterminação
das penas no sistema anterior e pela maior suavidade do novo
sistema.
É interessante acompanhar a história do princípio da lega-
lidade das penas durante a revolução, pois ilustra a sua depen-
dência do regime político, e esclarece assim a relação entre
aquele e outros princípios do Estado de direito. Assim, a Cons-
tituição francesa de 24 de Junho de 1793 acentuará no art. 14.%
de uma forma patética, o carácter suprapositivo ou supralegal
m
dos princípios da legalidade e da jurisdicionalidade em direito
penal: «Nul ne doit être jugé et puni, qu'après avoir été entendu
ou légalement appelé et qu'en vertu d'une loi promulguée antê-
rieurement au délit. La loi, qui punirait des délits commis avant
qu'elle exista t, serait une tyrannie; l'effet rétroactif donné à
loi serait un crime.» ( " ) Este «crime» tinha sido cometido pou-
cos meses atrás pelas leis de 19 de Março e de 10 de Maio de
1793 que declaravam «fora da lei» «os que estão ou serão acusa-
dos de participar» era movimentos revolucionários «pelo que
não podem beneficiar das disposições das leis relativas ao pro-
cesso criminal e à instituição do júri». A lei de 19 de Março
punia uns de morte (art. 6.°) em função de certas qualidades
pessoais («os padres, os ex-nobres, os ex-senhores, os emigra-
dos, os agentes e domésticos de todas estas pessoas; os funcio-
nários públicos», etc.) e reservava a determinação da pena dos
outros a futura lei penal retroactiva. A 10 de Maio restringia
a pena de morte aos chefes e instigadores dos revoltados. Con-
tudo, onze dias depois de promulgada a Constituição de 1793
e em plena vigência, a lei de 5 de Julho de 1793 considera chefes
e instigadores da revolta aquelas ditas pessoas e mais algumas
(como «os juízes, os homens de lei que participaram nas ditas
revoltas») pelo que «como os próprios chefes» são punidos com
a morte ( M ),
Aqui se viu, pela primeira vez, que o governo convencional
ou de assembleia, que tende para, debaixo da face arquidemo-
207
crática da concentração de poderes na assembleia legislativa,
entregar o governo de facto a um ditador, comité, junta ou
partido autocráticos, com capacidade executiva e controlo da
assembleia ( J1 ), igualmente tende para não garantir a efectivi-
dade dos princípios do Estado de direito em matéria penal,
mesmo quando os consagra formalmente. O exemplo repetir-
-se-á, como veremos ainda, no principal modelo contemporâneo
de governo convencional, a União Soviética, pouco depois da
restauração do princípio da legalidade no Código Penal russo
de 1960. Também em Portugal numa certa fase da revolução,
quando, sem alteração da legalidade, se criou uma estrutura
constitucional em que a Assembleia do MFA legitimava o poder
de facto autocrático do Conselho da Revolução, se verificou que
não estavam garantidos og princípios da legalidade, da jurisdi-
cionalidade (2C) e da culpa ( " ) , não obstante continuassem
formalmente consagrados.
De um modo geral, como estes exemplos sugerem, a histó-
ria do princípio da legalidade depois da Declaração de 1789
confirmará a sua estreita relação com aquela outra componente
do Estado de direito que a Declaração de 1789 também consa-
grou : o princípio democrático.
Assim, as ditaduras soviética, de 1922 a 1958, e nacional -
-socialista, de 1935 a 1945, representam as violações frontais,
historicamente mais significativas ("*), das proibições de ana-
208
logia e de retroactividade, que dão conteúdo à legalidade das
penas. O art. 10." do Código Penal russo de 1922 estabelecia que
«nos casos em que o Código Penal não prevê expressamente
um determinado crime, a pena ou as medidas de defesa social
são aplicadas em conformidade com os artigos do Código Penal
que prevêm crimes análogos em gravidade e em espécie», e
disposições semelhantes foram repetidas nos «Princípios Fun-
damentais do Direito Penal Soviético» de 1925 (art, 3.°) e no
Código Penal de 1920 (art. 16.°). Como exemplo do uso de ana-
logia por tribunais populares cita-se, entre outros, o da sentença
do Tribunal da Circunscrição de Gavrilovsk de 21 de Maio de
1937, em que se condena um cidadão, que circuncidara outro,
por aborto analógico { " ) ! Quanto à irretroactividade da lei pe-
nal, embora afirmada no Código de processo penal no caso de
a nova norma ser mais severa que a precedente (art. 27.°), foi
várias vezes derrogada como, por exemplo, pela lei de 1 de
Dezembro de 1934, aplicada retroactivamente no processo do
assassínio de Kirov — e ainda, pelos sucessores de Estaline,
na condenação de Berija em 1953—, que autorizava nos cri-
mes de terrorismo a audiência sem intervenção das partes
—acusado, assistente ou testemunhas—, e retirava ao acusado
os direitos de impugnar a sentença e de pedir indulto ( " ) .
O naeional-socialismo alemão começou por autorizar o go-
verno a desviar-se da Constituição (Lei de Alívio da Indigência
do Povo e do Império, de 24.3.1933). Ainda assim, aproveitou-se
m
14
de uma corrente doutrinária que negava valor constitucional à
proibição de agravar retroactivamente as penas para, pela «lex
van der Lubbe», impor retroactivamente a pena de morte ao
crime de fogo posto (incêndio do Reichstag). Seguir-se-ia nu-
merosa legislação penal retroactiva. Em 28.6.1935 foi alterado
o § 2." do Código Penal alemão, que passou a ter a seguinte
redacção: «Aquele que pratica um facto que a lei declara puní-
vel, ou que, segundo o pensamento fundamental de uma lei penal
ou segundo o são sentimento do povo é merecedor de pena, será
punido. Se nenhuma lei penal é imediatamente aplicável ao
facto, será este punido pela lei cujo pensamento fundamental
melhor corresponde ao facto.»
Esta legislação nacional-socialista foi revogada pelas potên-
cias aliadas e os princípios da legalidade e da jurisdicionalidade
com todas as suas consequências têm hoje dignidade constitu-
cional nos dois estados alemães (Lei Fundamental da R. F. A.,
art. 103.", U; Constituição da R. D. A., art. 135.°) (27).
Na União Soviética o superamento da fase da ditadura do
proletariado ou do «socialismo», pela progressiva passagem ao
comunismo, na interpretação oficial do XXI Congresso (1961:
Kruhchev), trouxe consigo a reafirmação do princípio da lega-
lidade, com todas as suas tradicionais aplicações, nos Princípios
Fundamentais da Legislação Penal da U. R. S. S. e das Repú-
blicas Federadas (arts. 3.° e 6.°) e nos consequentes Códigos
Penais destas últimas. Por último, os princípios da legalidade
e da jurisdicionalidade em matéria penal alcançaram valor cons-
titucional na Constituição de 1977 (art. 160.°). Mas visto que
se mantém a anterior estrutura constitucional do regime polí-
tico, cumpre duvidar da real eficácia destas garantias dos direi-
tos individuais. Casos como o da sentença do Supremo Tribunal
da república russa de 19 de Julho de 1661 ( " ) , a que voíta-
210
remos adiante, e o conhecido internamento psiquiátrico dos opo-
sitores ao regime, confirmam essa dúvida.
211
futuros crimes do próprio delinquente (prevenção especial), cri-
ticou oa desvios que o princípio da legalidade impunha à teoria
geral da lei. Mas a sacudidela do nacional-socialismo juntou os
partidários da «defesa social» aos defensores das teorias retri-
butivas em firmes declarações do princípio ( S2 ).
21%
de guerra» por crimes de guerra, contra a humanidade e de
guerra de agressão, criando retroactivamente direito interna-
cional penal, embora no caso dos crimes de guerra apenas de-
terminassem costume internacional já estabelecido ( " ) .
Finalmente, o art. 7.° da Convenção europeia foi reprodu-
zido no art. 15.° do Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos de 1966, da O. N. U. Mas inclui um aditamento no
n . " 1 que consagra expressamente a retroactividade da lei penal
mais favorável («se posteriormente ã infracção, uma disposi-
ção legal prevê uma pena mais leve, o delinquente deve bene-
ficiar da sua aplicação»). E em lugar da referência aos «prin-
cípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas»,
menciona no n.° 2 «os princípios gerais de direito reconhecidos
pela comunidade das nações» (no texto francês: «pelo conjunto
das nações»).
18
A consequência da não-retroactividade da incriminação só é
explicitada no art. 5.° do Código Penal de 1852, que também
introduziu no art. 18.° a proibição de interpretação extensiva.
O art. 1.° da Novíssima Reforma Penal de 1884, que se trans-
formou no art. 6." do Código Penal de 1886, determinou a re-
troactividade e uitra-actividade da lei penal mais favorável.
A Constituição de 1933 explicitou apenas a legalidade e a não-
-retroactividade da incriminação (art. 8.°, n.° 9: «Não ser sen-
tenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que
declare puníveis o acto ou omissão»), a que acrescentou na re-
visão de 1971 a não-retroactividade da agravação da pena e
a legalidade e não-retroactividade das medidas de segurança
(«bem como não sofrer pena mais grave do que a fixada ao
tempo da prática do crime, nem medida de segurança fora dos
casos previstos em lei anterior»).
Este n.° 9 do art. 8.°, a legislação penal ordinária e os men-
cionados textos internacionais parecem ter sido as principais
fontes do actual art. 29." da Constituição.
m
do Estado, nem com a problemática moderna da divisão dos
poderes e do princípio da legalidade.
Este ponto é fácil de demonstrar quanto à proibição de
analogia e ao consequente carácter «fragmentário» do direito
penal. Esta implica que as acções ou omissões não previstas
na lei não sejam punidas, quando precisamente os mesmos fins
da pena que justificam a punição do caso análogo previsto na
lei, justificam também a punição dessas acções ou omissões.
Para negar esta conclusão, seria necessário mostrar que a falta
de previsão de certa acção na lei penal é suficiente para negar
o fundamento da analogia com as acções previstas. Isso é, seria
preciso que uma acção, por não ser prevista na lei penal, dei-
xasse de ser culposa e, portanto, de merecer retribuição; ou
deixasse de ser causa de perigosidade e, portanto, de justificar
prevenção. Ora a culpa não pressupõe a previsão na lei penal,
mas apenas a ilicitude do comportamento. E a perigosidade nem
sequer a ilicitude pressupõe: certas formas de anomalia mental
são perigosíssimas mesmo antes de se revelarem na prática de
actos ilícitos.
O mesmo se verifica quanto à mais antiga aplicação do
princípio da legalidade: a proibição da retroactividade. Alguns
autores, seguindo também aqui o exemplo, agora mau, de Feuer-
bach, têm pretendido o contrário. A sua discussão permite escla-
recer e aprofundar a argumentação antecedente. Assim, para
Sax, a não-retroaetividade «é a consequência inevitável de, no
momento da decisão do facto, o critério dela: a lei penal espe-
cificadora do facto ilícito, ter de existir antecipadamente».
A não-retroaetividade, tal como a própria legalidade não seria,
portanto, «nada mais do que a especificação do princípio da
culpa do direito penal» ( S4 ). Nas palavras de Eduardo Correia,
que apresenta também este fundamento, além de outros, do
princípio da não-retroactividade, sem ela a pena «não poderia
realçar os seus fins de retribuição porque, não sendo um facto
criminalmente censurável no momento da sua prática, excluído
215
fica o juízo de censura, que está na base da imputação» ( M ).
Em contrário, deve dizer-se que o princípio constitucional da
não-retroactividade não se baseia na culpa, como se deduz de
a Constituição o alargar, bem como todo o restante regime em
que se traduz o princípio da legalidade, às medidas de segu-
rança, que não se baseiam na culpa, mas sim na perigosidade.
Além disso, tal fundamentação do princípio nunca serviria nos
casos em que há ilicitude da conduta sem tipicidade penal da
mesma (ilícito civil, administrativo, de direito internacional,
ete.), pois em todos estes casos, havendo culpa, mas não incri-
minação, deixaria de justificar-se a não-retroactividade da lei
penal ( 50 ). O ponto já foi claramente visto por Binding: a culpa
só pressupõe uma norma de ilicitude. Esta pode ser criada com
a lei penal ou não; não se deduz apenas do direito penal, mas
de todas as fontes do direito. Por isso Binding, defendendo que
as normas não podem ter efeito retroactivo, não hesitou tam-
bém em defender a retroactividade das leis penais como «o
único princípio justo e equitativo», «sejam assim abolidas, ate-
nuadas, mudadas ou agravadas as leis penais anteriores» (")•
Com a mesma lógica de ferro e a mesma insensibilidade política
considerava Binding a proibição da analogia como «algemas
indecorosas» da ciência ( S8 ).
A justificação também não está nos fins preventivos da
pena, ligados à intimidação: «a pena não poderia realizar os
seus fins de intimidação no momento de ameaça, porque, não
existindo esta quando se praticou o facto, a pena não actuou
nem podia actuar no ânimo do agente» ( ss ). Tal é a justifica-
B16
ção já usada por Feuerbach, que referimos atrás. Mas a pos-
sibilidade da motivação pela intimidação em geral, não ê pres-
suposto das medidas de segurança. E tão pouco é pressuposto
da pena a possibilidade de motivação em concreto pela pena
determinada previamente na lei penal, pois tal motivação supõe
conhecimento não só da punibilidade mas da pena aplicável.
Ora elemento essencial do crime, como pressuposto da culpa,
é apenas a possibilidade de conhecimento da ilicitude. Além de
que o efeito da prevenção geral não está dependente do conhe-
cimento da cominação da pena aplicável, mas resulta sobretudo
da aptidão do sistema das sanções no seu conjunto (e não só)
para promover a vivência e a vigência dos valores morais e
sociais que a lei penal defende. Ora essa aptidão não é especí-
fica da pena e não depende demonstravelmente do respeito pelo
princípio da legalidade. Na lógica da prevenção geral está antes
o princípio que o nacional-socialismo contrapôs ao nullum crimen
sine lege: «não há crime sem pena».
Que as teorias da prevenção especial não permitem fundar
a não-retroactividade da lei penal, resulta do que se disse acerca
da proibição da analogia: a perigosidade futura do delinquente
pode deduzir-se de factos não previstos na lei penal e até de fac-
tos lícitos. Vários defensores da prevenção especial advogaram,
aliás, a retroactividade e a analogia na aplicação do direito
penal, com base na própria doutrina dos fins das penas, sendo
mesmo essas teses típicas de certa fase da escola positiva ita-
liana (Florian) e dos seus seguidores em Portugal, como Caeiro
da Mata <40).
Se as teorias tradicionais dos fins das penas não justifi-
cam o princípio nullum crimen nuMa poena sine lege ainda
menos explicam a proibição da interpretação extensiva. E não
217
podem integrar ambos com a retroactividade da lei penal mais
favorável em uma teoria unitária, um regime ou instituto jurí-
dico do princípio da legalidade em direito penal.
O verdadeiro fundamento do princípio é a segurança jurí-
dica e, especialmente, a segurança do indivíduo frente ao Estado,
que se traduz num Estado de direito, no direito do indivíduo
de não ser afectado nos bens essenciais da sua vida, senão na
medida exigida por lei à realização dos fins do Estado.
0 princípio formal da legalidade funda-se assim no prin-
cípio material da necessidade ou da máxima restrição da pena
e das medidas de segurança, como já sugeria o célebre art. 8."
da Declaração de 1789, que ambos inclui.
O princípio restritivo, por sua vez, implica uma noção
material do Estado de direito e deduz-se como esta da digni-
dade da pessoa humana.
Entende-se que as sanções penais só se justificam quando
forem necessárias, isto é, indispensáveis tanto na sua existên-
cia como na sua medida, à conservação e à paz da sociedade
civil. Uma vez que as sanções penais se traduzem numa limita-
ção mais ou menos grave dos direitos individuais, o princípio
restritivo dirá que essa limitação será a menor que as neces-
sidades da conservação e da paz sociais consentirem. Haverá
que adquirir em cada caso a convicção de que, se a sanção fosse
suprimida ou reduzida, a ordem social poderia ser posta em
causa. Senão não seria respeitada a dignidade da pessoa hu-
mana, para salvaguarda da qual se constitui todo o direito (hotni-
num causa omne ius constitutum est), e da qual decorrem os
direitos do homem. Seria melhor que as sanções penais, como
quaisquer outras restrições desses direitos (cfr. art. 18.", n."" 1
e 2 da Constituição), não fossem necessárias, que a justiça
penal ficasse no mundo das ideias, e não viesse ferir com a
sua mão os bens da vida. Neste sentido — e só nele —- as
sanções penais são detestáveis e, portanto, de restringir (odioso
restringenda). Acresce serem falíveis os juízes humanos e a
necessidade da pena muitas vezes duvidosa no caso concreto.
218
Eata maneira de pôr a questão encaminha-nos para os
critérios da prevenção geral. Como realiza o direito penai a
prevenção geral de crimes futuros? O que interessa não
é tanto a efectiva e frequente punição de cada facto culposo
singular, que em si mesmo só raras vezes chega a ter qualquer
relação imediata com a vida da maioria dos cidadãos. O que é
decisivo é o facto da jurisdição penal no seu conjunto contribuir
para se erigirem tábuas de valores socialmente relevantes, que
influenciem o comportamento de cada um de maneira a ser
capaz de resistir aos estímulos criminosos.
A criminologia tem sobejamente comprovado que a maior
eficácia da pena vem de se aliar à sanção social da reprovação
do criminoso, que sabe que o crime é causa de desonra e infâ-
mia aos olhos dos outros. Para alcançar este desiderato o di-
reito criminal só deve abranger aqueles factos que a moral social
censura fortemente e evitar uma proliferação de castigos de
pequenas faltas que «toda a gente» comete e por isso mesmo
não envolvem particular censura.
Por outro lado, uma vez que o efeito de prevenção geral é
um efeito global, pode o direito penal limitar-se a punir os
casos mais típicos de actos censuráveis, e pode igualmente
permitir-se uma descrição precisa desses factos, desistindo, por-
tanto, da punição de algum caso anómalo que não caiba nessa
descrição, sem que aquele efeito global seja afectado (41). Uma
vez que o possível delinquente tem a maior parte das vezes
um conhecimento mais do que impreciso dos exactos contornos
das várias incriminações, e é movido mais pelo receio duma
pena qualquer do que por certa pena determinada que mal
calcula, há também que contar com um efeito preventivo re-
flexo em relação aos factos não previstos semelhantes, e uma
eficácia reflexa das penas aplicadas que é compatível com a
219
maior diferenciação e individualização delas, e com uma espe-
cial benignidade nos casos menos graves. Tudo isto justifica o
carácter essencialmente fragmentário e exemplificativo do di-
reito criminal e a proibição de analogia.
Aceite o principio restritivo, tudo isto justifica também que,
sem prejuízo da prevenção geral, se tenham organizado as
outras garantias dos direitos do indivíduo frente às sanções
penais, que se incluem no princípio da legalidade: a reserva
de lei, a irrectroactividade da cominação e da agravação da
pena, a proibição da interpretação extensiva. A coexistência
de todas elas não diminui demonstravelmente o efeito da pre-
venção geral do sistema penal. Ao apelar para o respeito pela
dignidade da pessoa humana e do cidadão, contribui mesmo
para reforçar a vigência social dos valores fundamentais da
ordem jurídica e, assim, potenciar aquele efeito.
Não deixa de ser esclarecedor observar como os autores
concordam no princípio da necessidade da pena, seja qual for a
teoria dos fins das penas que adoptam. Beccaria, a quem prin-
cipalmente se deve o princípio e a sua vitoriosa carreira, inte-
grou-o com «uma teoria relativa» dos fins das penas, segundo
a qual estas visavam apenas a prevenção geral e especial dos
crimes futuros O-). «A pena», escreve, «deve ser essencial-
mente ... necessária, a mínima das possíveis nas circunstancias
dadas» (•"). «Eis em que se funda o direito do soberano de
punir os delitos: a necessidade de defender o depósito da saúde
pública das usurpações particulares; e tanto mais justas são
as penas, quanto mais sagrada e inviolável é a segurança, e
maior a liberdade, que o soberano conserva aos súbditos» (**).
Na mesma linha preventiva de Beccaria, que explicitamente
invoca, dirá Liszt no seu famoso «Programa de Marburgo»:
«Só a pena necessária é justa. A pena é um meio para um fim.
(«) Dei íelitii e deite pene, 1764 (retmp, 1964), pp. 6, 31, 46.
(«) Ob. cit., p. 104.
(") 0&. cit., pp. 6 e aeg.
220
Ora a ideia de fim exige adequação do meio ao fim e a máxima
poupança no seu emprego.» «Não se pode conceber mais grave
ofensa à ideia de fim do que o emprego perdulário da pena, do
que a aniquilação das condições físicas, éticas e económicas
de um cidadão, quando ela não for irrecusavelmente exigida pe-
las necessidades da ordem jurídica.» ( " ) Mas, numa orientação
perfeitamente antitética quanto aos fins das penas, um firme
partidário das «teorias absolutas», da concepção meramente re-
tributiva da pena, como é o neo-hegeliano Hellmuth Mayer,
não dirá afinal outra coisa: «A pena em si justa só está justi-
ficada na realidade, quando é ao mesmo tempo exigida pela
necessidade estadual. A pena não ê, de maneira nenhuma, um
imperativo categórico, como pensava Kant. Antes pelo contrá-
rio ; o homem só tem legitimidade para usar da justiça, quando
e na medida em que o exige a prossecução dos fins necessários
do Estado. Nomeadamente o Estado só se conserva dos limites
da sua missão em conformidade com o Direito, quando não
emprega desnecessariamente o direito penal. Só haveria que
decidir doutro modo, se a Ideia (Deus) se dissolvesse comple-
tamente na realidade — Hegel não pode, mais, não deve, enten-
der-se assim. Mas se o Estado é só uma coisa terrena, não
pode propor-se o restabelecimento da total harmonia das coisas
por meio da pena.» ( " )
Ora esta concordância de autores representativos de teorias
tão tipicamente opostas quanto à essência da pena, é precisa-
mente a prova de que o problema que nos ocupa, a não ser
outro, é de âmbito mais vasto. Ultrapassa-ee, assim, a dis-
cussão escolástica das teorias dos fins das penas, restituindo-se
à pergunta pela justificação da pena a sua verdadeira dimensão.
Do que se trata agora é da posição do indivíduo perante o Es-
tado e o direito, numa palavra, da problemática do «Estado
221
direito». E sob este ponto de vista, Beccaria, Liszt e Hellmuth
Mayer não se opõem, todos três são liberais convictos e con-
fessos.
222
tros a defendê-lo. O conjunto destas mínimas porções possíveis
forma o direito de punir; tudo o mais é abuso e não justiça;
é facto, não já direito.» ( " )
Este texto encerra uma evidente confusão. Ou bem que o
direito de punir é constituído com as porções mínimas de liber-
dade sacrificadas no controlo social ou bem que é delimitado
pelas leis positivas. Neste último caso nada pode impedir o
sacrifício das liberdades individuais em toda a medida que as
leis positivas determinarem, mesmo para lã da medida mínima.
Esta ambiguidade do pensamento de Beccaria compreende-se
melhor situando-o no clima espiritual da sua época. Com efeito,
Beccaria está na confluência de duas correntes ideológicas, de
cuja profunda contradição não tinha —nem tinham os seus
contemporâneos— perfeita consciência. Â primeira chamou
Radbruch «liberal», à segunda «democrática» ( 4 Í ). A primeira
é a de Lock, de Montesquieu, de Voltaire, dos enciclopedistas,
a segunda é a de Rousseau. Perante a divisa revolucionária,
aquela põe o acento na liberdade, esta na igualdade.
Segundo a primeira, o indivíduo cede no contrato social
apenas aquela «porção mínima» (Beccaria) de liberdade, que
é indispensável à segurança das liberdades que não cede. Esta
esfera de liberdade natural fora do Estado é um limite para
as próprias leis positivas. Os direitos naturais do individiduo
são anteriores e superiores à soberania que oe serve. Há, pois,
que afastar o perigo de o Estado usurpar abusivamente direitos
pertencentes àquela esfera reservada de Uberdade e, para isso,
se organiza o mecanismo da divisão dos poderes. Na melhor
linha deste pensamento, a Declaração de Direitos da Virgínia
de 1776 reconhecerá no seu art. l.° que «todos os homens ...
têm certos direitos inerentes, dos quais, quando entram num
estado de sociedade, não podem, por nenhum pacto, privar ou
despojar a sua posteridade» ( í a ).
223
Na ideologia liberal o contrato social legitima uma certa
teoria dos fins do Estado: único fira do Estado é a segurança
dos direitos individuais. Ao Estado, dirá Kant, cumpre garantir
«a cada um a sua liberdade, por meio de leis: este fica assim
livre de procurar a sua felicidade pela via que melhor lhe pa-
rece, desde que não ofenda aquela geral liberdade conforme
à lei, e portanto os direitos dos outros consúbditos» ( " ) . Pode
e deve haver uma concepção comum da segurança de que todos
têm igual necessidade, mas cada um tem a sua ideia e vivência
da felicidade individual e querer impor a todos a mesma, seria
paternalismo insuportável do Estado, incompatível com a digni-
dade da pessoa humana. O Estado teria apenas por funções
a legislação, a jurisdição, a defesa e a polícia, no sentido res-
trito de protecção geral frente a perigos internos, que se opõe
à identificação entre policia e administração, típica do «estado
de polícia». Não se negavam deveres de solidariedade social,
mas incumbiriam à Bociedade civil autónoma e não ao Es-
tado ( " ) .
Rousseau e a corrente que nele se inspira pensam de
modo diferente. No contrato social opera-se «alienação total
de cada associação com todos os seus direitos à comunida-
de» (Coritr. Soe. I, c. 6). O indivíduo troca a sua liberdade
natural por uma liberdade cívica, que é a sua participação
e integração no todo, cuja «vontade geral» ê a expressão
da liberdade alienada e, «portanto», a «Uberdade» de cada
um. Correspondentemente, a doutrina de divisão dos pode-
res será repudiada por Rousseau, porque a soberania é indi-
visível e a vontade geral manifesta-se em toda a sua pleni-
22$
tude em cada acto do Estado, não se pode alienar por partes
em favor de certos órgãos diferenciados. Não há aqui qualquer
limitação de princípios aos fins do Estado. A tradição consti-
tucional francesa, não obstante a indiscutível influência das
declarações americanas, situa-se muito mais nesta linha demo-
crática rousseauniana, e não poderá impedir, por isto, a ten-
tação sempre possível do totalitarismo democrático: a ditadura
dos Jacobinos não tardou a demonstrá-lo, como vimos.
A estas duas grandes correntes da filosofia política do
Iluminismo correspondem modos diversos de entender a su-
bordinação do Estado ao direito e, assim, temos dois conceitos
diversos de Estado de direito: em sentido formal e em sentido
material. Convém, no entanto, lembrar novamente que a cons-
ciência da diversidade e até da contradição profunda entre as
duas referidas correntes políticas é tardia. Sucedeu, por um
lado, à denúncia, feita pelo socialismo, da mentira de um libe-
ralismo apenas legal e sem conteúdo, de direitos individuais
para todos no papel, que eram de facto privilógios de alguns ( " ) .
Sucedeu também, por outro lado, às primeiras amargas ex-
periências de totalitarismo democrático. De modo paralelo, a
noção de Estado de direito em sentido material é quase con-
temporânea e veio reencontrar o velho desiderato liberal, apro-
fundado, por via mais socialista do que liberal.
No Estado de direito em sentido formal o Estado é limitado
pelo direito que cria. Na doutrina publicista alemã, que elaborou
o conceito, levando às últimas consequências a doutrina do
contrato social ( " ) , esta limitação é essencial ao conceito jurí-
225
15
dico do Estado. O Estado é constituído, não já por um hipo-
tético contrato social, mas pelo direito, na medida em que
todas as suas actividades são reguladas pelo direito, em que
todas as relações dos órgãos do Estado entre si e do Estado
com os indivíduos são relações jurídicas. O Estado é assim uma
pessoa jurídica com direitos subjectivos relativamente aos in-
divíduos, entre eles o direito de punir (ÕB), bem como os indi-
víduos têm direitos subjectivos relativamente ao Estado. Estes
direitos subjectivos do Estado e dos indivíduos delimitam-se
mutuamente segundo o escopo da sua atribuição e deles deriva
uma regulamentação da actividade dos órgãos do Estado e da
actividade pública dos indivíduos. Num contexto de divisão do
trabalho e de multiplicidade de órgãos do Estado, isto implica
o carácter processual da actividade estadual, a consequente
existência de relações jurídicas interorgãnicas, e a realização
dos fins do Estado através da colaboração entre os vários
órgãos e destes com os indivíduos. Da forma como se definem
esses fins e se organiza essa colaboração depende o carácter
mais liberal ou mais totalitário do Estado, e a função mais
limitada ou mais promotora da actividade deste desempenhada
pelo direito. Mas, e é um ponto decisivo, a noção de Estado
de direito em sentido formal não envolve qualquer limitação
ao conteúdo da lei que não seja estabelecida na lei constitucio-
nal, nem qualquer limitação ao arbítrio administrativo ou ju-
dicial que não resulte também da lei. Implica a legalidade da
administração e da jurisdição, quando existam separadamente,
mas não implica qualquer separação de poderes de conteúdo
226
determinado. Portanto, os direitos individuais só têm existência
e protecção na medida em que a lei, ou mais simplesmente a
actividade legal do Estado, lhos reconhece.
No Estado de direito em sentido material a subordinação
do Estado ao direito tem outro significado mais profundo.
Agora o Estado não está apenas limitado pelo direito que
cria, está essencialmente vinculado à ideia de direito ou, noutra
fórmula, ao direito natural. A Constituição fala aqui, simples-
mente, no art. 1.°, de «dignidade da pessoa humana». O conceito
de Estado de direito em sentido material está, na tradição
filosófica, essencialmente ligado à ideia da dignidade da pessoa
humana, em que se fundam os direitos do homem ( M ) . Quer
isto dizer que o Estado está obrigado a servir uma certa tábua
material de valores. A validade dos actos dos órgãos do Estado
não ê, pois, apenas condicionada pela regularidade formal do
seu processo de produção, mas também pela concordância mate-
rial do seu conteúdo cora uma tábua de valores que lhe é ante-
rior e superior ( ST ).
227
Nesta orientação, os direitos individuais não estão apenas
garantidos pela lei frente à administração e aos tribunais, mas
mesmo contra a lei, porque se situam num plano jurídico su-
perior ao da lei: a lei que os não reconhecer é inválida. Sendo
esta a posição do Estado frente aos direitos individuais, não
parece defensável que cumpra ao Estado limitar esses direitos
— mesmo para aplicar justiça — noutra medida que não seja
a necessidade de defesa e protecção dos outros direitos indi-
viduais. A noção de Estado de direito em sentido material
desemboca assim no princípio da necessidade ou máxima res-
trição das sanções penais.
Afinal, é o Estado de direito em sentido material que funda
o princípio da separação dos poderes —abstraindo agora de
quais os critérios da separação—, porque sem ela não estão
seguros os direitos individuais, como demonstra a história.
E funda o próprio Estado de direito em sentido formal, que
se deriva agora do respeito pela dignidade da pessoa humana
nas relações desta com o Estado. Mas não implica a limitação
dos fins do Estado à realização e defesa do direito, como pre-
tendeu o liberalismo. O Estado pode e deve, também, promover
a educação, a cultura, a saúde, a segurança social, a economia,
numa palavra, o bem-estar. De resto, nunca existiu, em forma
pura, o «Estado guarda noturno» do liberalismo, e hoje menos
que nunca. Mas o Estado de bem-estar não tem que se contrapor
ao Estado de direito porque, ao prosseguir esses outros fins,
o Estado tem que proceder de forma legal e respeitar os direitos
individuais, acomodar o próprio objectivo do bem-estar com a
dignidade da pessoa humana.
228
Temos assim que só uma concepção material do Estado de
direito poderá fundamentar o princípio restritivo das sanções
penais, com todas as consequências que lhe são habitualmente
atribuídas, entre elas o princípio da legalidade com todas as
aplicações que historicamente lhe foram sendo dadas e a Cons-
tituição recolheu. No sentido inverso, dir-se-á que a história e a
teoria do princípio da legalidade contribuem para iluminar vários
aspectos importantes da teoria do Estado de direito. È assim
que os vários princípios em que se analisa o Estado de direito
são, em certo sentido, independentes de uma certa ideologia do
próprio Estado de direito. Já o verificamos, a propósito das
ideologias liberal e democrática. Isto também se revela no facto,
por exemplo, de o art. 4.° do actual Código Penal da República
Democrática da Alemanha, consequentemente derivar os prin-
cípios da legalidade e da jurisdicionalidade daa sanções penais
«do respeito pela dignidade da pessoa humana, que orienta a
sociedade socialista mesmo em face do infractor da lei» ( " ) , não
229
obstante a ideologia do Estado repudie o conceito «burguês»
do Estado de direito { " ) . Mas as relações entre esses vários
princípios também subsistem independentemente da posição que
relativamente a cada um deles tomam ideologias diversas.
Assim a história revela que a consagração formal do prin-
cípio da legalidade, mesmo quando ligado ao seu lógico funda-
mento na dignidade de pessoa humana, como na revolução fran-
cesa e agora no código da Alemanha socialista, não é eficaz
senão for também o princípio democrático, incluindo a separa-
ção de poderes. Embora possa haver variações históricas no
reconhecimento e na eficácia dos vários princípios que integram
o Estado de direito, não se trata de um conceito tipicamente
graduável ( 00 ) —embora o possam ser as violações e a efi-
cácia daqueles princípios— mas tendencialmente indivisível:
os vários princípios que o constituem estão entre si em rela-
ções de dependência lógica ou empírica. O seu estudo pode
ser matéria de ciência e não de ideologia.
280
com certas passagens dos Evangelhos, como o mandamento
do perdão (Mat. 6 12, 14; 18 22), o mandamento de responder
ao mal com o bem (Mat. 5 39-45; cfr. Rom. 12 14-21; 1 Pedro 39)
e a proibição de julgar o próximo — o Juízo é reservado a Deus
(Mat. 7 1; Rom. 12 19).
Nesta linha se podem situar muitas defesas do princípio
restritivo que admitem, no entanto, a pena como mal necessário,
mas cuja maldade não pode ser apagada por considerações
utilitárias. O penalista teria sempre uma «má consciência» (Rad-
bruch) e a sua honorabilidade moral estaria precisamente em
confessá-lo. Vem aqui a propósito referir as opiniões de dois
autores recentes que denunciam a pretensa irracionalidade, o
absurdo da pena, com particular veemência: Cossio e Schmid-
hãuser.
O jusfilósofo argentino Carlos Cossio parte da constatação
da irracionalidade axiológica da pena. «Nas sanções de cum-
primento forçado — escreve— a relação ontológica entre os
termos comparados (conteúdo da sanção e conteúdo do dever
transgredido) é de identidade. Na indemnização, esta relação
é de equivalência. Mas no castigo deparamos com uma relação
ontológica de incomparáveis. Isto significa que a valoração ju-
rídica das duas primeiras espécies de sanções, é uma variação
racional porque gira em torno do igual. Não assim a terceira
que emerge irracionalmente ...» «Não há relação racional entre
torto e sanção, não tão-pouco nas penas entre si.» (b2) Esta
irracionalidade da sanção penal, que Cossio pretende provar
com os argumentos tradicionalmente aduzidos contra a teoria
retributiva clássica («ao morto e ao lesionado nada se lhes
restitui com o castigo», «tirar os olhos a quem os tirou a ou-
trem, deixa c o m o saldo dois cegos em vez de um», « n ã o há
critério racional algum para determinar porque a pena dura
tanto para .este delito e tanto para aquele»), é que fundamen-
2S1
taria verdadeiramente a máxima nulla poena sine lege. Escreve:
«A extensão penal por analogia resulta pouco conforme à razão,
uma vez que já carece de racionalidade a relação entre o dever
transgredido e a pena que teria de tomar-se como ponto de
partida. Não é racional estender o irracional e por isso a ra-
zão tem que opor-se a qualquer derrogação do princípio nuUa
poena sine lege» ( , 1 ). Também Eberhard Schmidhãuser, depois
de uma inquirição sistemática dos sentidos positivos do valor
que a pena pode ter para aqueles que têm algo a ver com ela,
conclui sobre esta questão fundamental do sentido da pena em
si mesma: «Não se encontra um só postulado ético que nos
autorize a retribuir o mal com um mal: e nem o facto de o
fazermos em intenção de uma próspera vida social, altera no
que quer que seja o desvalor daquele poder vindicativo, com
que tratamos outro homem. O nosso punir é sem sentido.» ( " )
A crítica desta espécie de «anarquismo» penal deverá acen-
tuar dois pontos. De modo negativo, por redução ao absurdo,
dirá que a única conclusão lógica de tal tomada de posição é
a ilegitimidade de toda e qualquer pena e, portanto, o impera-
tivo da sua abolição, com que o problema seria mais suprimido
do que resolvido. De um modo positivo, procurará uma justi-
ficação ética e jurídica da pena e dos limites da sua aplicação
por parte do Estado. Foi o que precisamente tentámos atrás,
quanto a estes últimos, com a teoria do Estado de direito. Em
qualquer caso, o «anarquismo penal» é incompatível com o sis-
tema de valores constitucionais, como ressalta do inventário,
atrás feito, dos princípios da Constituição em matéria penal.
232
a proibição do costume), da sua aplicação (proibição da ana-
logia) e da sua eficácia temporal (não-retroactividade). Antes
de as descrever em pormenor, pergunta-se se têm todas um
âmbito comum de aplicação, que corresponda à unidade histó-
rica e de fundamento filosófico e político nos princípios do
Estado de direito e da necessidade ou máxima restrição das
sanções penais, e à consequente e comum função de garantia
dos direitos individuais. A resposta cabal a esta pergunta só
pode ser dada depois daquela descrição. Mas pode desde já de-
finir-se o âmbito de aplicação que deriva logicamente do prin-
cípio: ele abrange apenas as normas penais («leis penais» na
terminologia de Binding) em sentido restrito, isto é, as normas
que para acções ou omissões nelas previstas estatuem penas
ou medidas de segurança (<"). Isto é, restringe-se ao direito
penal como conjunto de normas sancionadoras. Não abrange
as outras normas de ilicitude («normas» na terminologia de
Binding), que proíbem ou permitem acções ou omissões de
acções (além das que se traduzem na aplicação de sanções
penais) em certas circunstâncias. E relativamente às normas
penais, o principio apenas se aplica aos modos da sua criação
(fontes) e aplicação de que resulta no caso concreto a aplica-
ção de penas ou de medidas de segurança (ou de mais grave
pena ou medida de segurança) ( as ). Ê que o princípio tem a
233
função de garantir os direitos individuais, na medida em que
são sacrificados ou limitados pela aplicação de penas ou medidas
de segurança. Não faria sentido aplicá-lo com resultado oposto.
Em tudo o mais aplicam-se aqui os princípios gerais de direito.
O princípio aplica-se, portanto, em primeira linha, às dis-
posições legais que prevêm crimes ou contravenções na parte
especial do Código Penal e na legislação penal extravagente.
Mas não só. As disposições da parte geral que estabelecem os
critérios positivos de punibilidade (lato sensu) das primeiras,
os pressupostos genéricos das medidas de segurança, as causas
de agravação das penas e das medidas de segurança (não ape-
nas as circunstâncias agravantes), e a extensão da punibilidade
a outras formas de infracção (cláusulas de extensão da tipi-
cidade dos factos previstos) — a tentativa, a participação —
estão também sujeitas ao princípio. Não têm, pois, razão aque-
les autores O7) que pretendem exceptuar toda a parte geral da
aplicação do princípio da legalidade.
A Constituição parece estabelecer uma distinção entre a
reserva de lei da alínea e) do art. 167.° e as restantes aplicações
do princípio no art. 29.° Enquanto que na alínea e) do art. 167.°
a reserva de lei formal se limitaria à «definição dos crimes»
mas se estenderia à definição das penas e medidas de segurança,
sem excepção, já no art. 29." a reserva de lei material, a proi-
bição de analogia e a de retroactividade estender-se-iam a todas
as infracções e pressupostos de medidas de segurança, mas
limitar-se-iam, quanto a estas, às privativas da liberdade. Esta
distinção é, decerto, injustificada nos termos da sua expressão
literal, e tem que ser resolvida por interpretação, a propósito
de cada uma das aplicações do princípio.
234
sentido formal, isto é, em lei da Assembleia da República. Ê o
que resulta da alínea e) do art. 167.® A disposição fala apenas
de «definição de penas e medidas de segurança», mas a definição
não é apenas de espécies de penas e medidas, é de penas e me-
didas aplicáveis, «cominadas» (art. 29.° n.° 3), a pressupostos
de facto de certa descrição ,como exprime o n.° 1 do art. 29."
para as medidas de segurança, e vale, sem dúvida, também para
as penas. A «lei anterior que declara punível a acção ou omis-
são» é também a lei em virtude da qual alguém «pode ser sen-
tenciado criminalmente», o que implica a cominação da pena
aplicável na lei incriminadora.
Ê, decerto, concebível uma definição separada, por um lado,
dos factos puníveis e pressupostos das medidas de segurança e,
por outro, das sanções aplicáveis à prática desses factos ou
realização desses pressupostos. Tal foi a técnica legislativa dos
projectos de Silvestre Pinheiro Ferreira ( us ) e, recentemente,
do Código Penal da Gronelândia de 1954 (0O). E a Comissão
Constitucional já considerou (Parecer 3/76 de 22.12.1976) que
a definição das medidas de segurança não implica, implicita-
mente, a fixação dos respectivos pressupostos. A Comissão fun-
dou-se «no facto de a lei poder fixar o elenco das medidas de
segurança, como, aliás, o faz o art. 70.° do Código Penal, sem
que simultaneamente se fixem os respectivos pressupostos» e em
que «a própria Constituição distingue claramente entre as duas
questões» no n.° 1 e no n.° 3 do art. 29. (™).
Ora é claro que os pressupostos de facto se distinguem
conceptualmente das sanções penais e que pode haver disposi-
ções legais classificatórias e definitórias só de uns ou doutros.
A parte geral de qualquer código penal contém numerosas dis-
235
posições deste tipo, como a do art. 70.° do Código Penal. Mas
a lei penal, como norma jurídica, só nasce com o estabeleci-
mento do nexo entre certa descrição dos pressupostos e certa
descrição da sanção penal. O art. 70.° do Código Penal só ganha
pleno sentido normativo quando conjugado com o § 5,° do
mesmo artigo, o § único do art. 68.°, e o art. 71.° do mesmo
Código (e similar legislação extravagante), que descrevem os
pressupostos das medidas de segurança do art, 70.° Na reserva
de lei da alínea e) do art. 167.° da Constituição e, em geral,
no princípio da legalidade, é de normas penais que se trata.
De outra forma, ficariam desprotegidos os direitos individuais
que o princípio visa garantir: assim, de pouco valeria a garantia
de fixação do elenco das medidas de segurança possíveis pela
Assembleia da República, se qualquer decreto ou postura pu-
desse definir os pressupostos das memas. Não há aqui razão
para distinguir entre penas e medidas de segurança. E este o
fundamento de «homologia» que o referido Parecer da Comissão
Constitucional reconhece «entre a correspondência crime-pena,
por um lado, e a correspondência pressupostos de perigosidade
criminal-medidas de segurança», para o efeito de justificar
«uma interpretação extensiva do disposto na alínea e) do
art. 167.°» (71)- Deve, pois, exigir-se não bó a legalidade formal
da pena (nuTla poena sine lege), como a do crime (nullum cri-
men sine lege), e ainda a da conexão entre ambos {niãla poena
sine crimine; nullum crimen sine poena legali), como já reconhe-
cia Feuerbach, a quem se devem também os brocardos men-
cionados por último ( " ) . O mesmo vale para as medidas de
segurança e respectivos pressupostos. E deve entender-se que
este «princípio da conexão» entre as penas e medidas de se-
gurança, por um lado, e os respectivos pressupostos, por outro,
está consagrado expressamente no art. 29." da Constituição,
236
uma vez que a exigência de conexão não deriva da peculiar
natureza daa medidas de segurança privativas de liberdade,
pelo que este ponto de divergência entre o âmbito dos dois
artigos sempre seria aqui irrelevante, se não o for em geral (TS).
Pressupostos das medidas de segurança são aqueles factos,
circunstâncias e características pessoais que a lei considera fun-
damento suficiente da perigosidade e que corresponde a medida
de segurança. A Comissão Constitucional fala aqui de «factores
ou sintomas de perigosidade erigidos à categoria de pressupos-
tos» {lug. cit.). Não é, pois, de aplaudir a conclusão da Comissão
Constitucional no Parecer referido ao considerar constitucional
um decreto-lei do Governo que estabeleça que certas contraven-
ções previstas no Código de Estrada passem a ser fundamento
da inibição temporária ou definitiva de conduzir (art 61.",
n.os 1 e 2 do Código de Estrada), que é uma medida de segu-
rança não privativa da liberdade. Só não seria assim se o
pressuposto da medida fosse certo tipo de perigosidade cor-
respondente a certo tipo de medida (neste caso: «perigosidade
quanto à prática de crimes cometidos no exercício da condu-
ção») e não os factos que fundamentam o juízo de perigosidade.
Tal equivaleria a abandonar a exigência de determinação dos
pressupostos (que quando mencionados teriam valor exemplifi-
cativo). A particularidade de esses pressupostos serem contra-
venções legalmente previstas é irrelevante, porque essas con-
travenções estavam legalmente conexas com as respectivas
penas e não com a medida de segurança.
A exigência constitucional de conexão formal entre as pe-
nas e medidas de segurança e os respectivos pressupostos per-
mite interpretar extensivamente a alínea e) do art. 197.® no
sentido de abranger não só os crimes e os pressupostos das
medidas de segurança mas também as contravenções. Assim se
237
deve decidir um ponto em que a doutrina da Comissão Cons-
titucional tem sido contraditória (Parecer n.° 2/76 de 21.12.
1976 —Pareceres, I, p. 27—, pela inclusão das contraven-
ções, «por ser da exclusiva competência da Assembleia da Re-
pública toda a definição de penas»; Parecer n.° 19/77 de 28.7.
1977—Pareceres, U, p. 149, pela exclusão) ('*).
Tudo isto não preclude, porém, a possibilidade de a deter-
minação dos pressupostos das penas e medidas de segurança
que é exigida pela «definição» de umas e outras, em face do
princípio da conexão expresso no art. 29.°, não ser necessaria-
mente coincidente com a «definição» desses pressupostos, nos
termos em que a alínea e) do art. 106.' a exige para os crimes.
A palavra «definição» seria assim empregada num sentido forte,
que só valeria para os crimes, para as penas e para as medidas
de segurança, mas não para as contravenções e os pressupostos
das medidas de segurança. Estas duas espécies de pressupostos
só teriam que ser determinadas por lei formal na medida em
que essa determinação é exigida pela conexão entre sanções
penais e respectivos pressupostos consagrada no art. 29." O es-
clarecimento deste ponto leva-nos a avançar no elenco das fon-
tes do direito penal.
21%
A prática constitucional portuguesa e a doutrina anteriores
à Constituição de 1933 sempre entenderam que o princípio da
legalidade das penas, expresso no § 10.° do art. 145.° da Carta
e reproduzido, com idêntico teor, no n.° 21 do art. 3.° da Cons-
tituição de 1911, não era violado pela aplicação de penas a
contravenções e crimes determinados em regulamentos adminis-
trativos e posturas municipais, desde que dentro dos limites da
lei ( " ) . A Constituição de 1933 nada alterou neste ponto. Os
limites da lei eram sempre os da competência dos órgãos emi-
tentes, devendo negar-se a competência em matérias já regu-
ladas por fonte hierarquicamente superior; e nas posturas e
outros regulamentos autónomos o respeito pela medida máxima
da pena das contravenções, determinada pelo art. 486.a do Có-
digo Penal e pelas leis administrativas (por último: arts. 52.°,
99.', 255.n, 408." do Código Administrativo; art. 2." do Dec.-Lei
n." 41 074 de 17.4.1957); nos regulamentos administrativos com-
plementares eram, além dos anteriores, ainda os limites assi-
nalados pelas leis ou regulamentos superiores que os permitir
ou impuser (78). O que a Constituição de 1933 introduziu foi
a equipararão às leis dos decretos-leis do Governo (art. 109.°).
Sempre se entendeu, contudo, que os crimes eram matéria de
lei (ou fonte equiparada), ao passo que as contravenções apenas
teriam que ser determinadas em conformidade com a lei, po-
dendo bastar a simples delegação por lei da competência em
matéria de prevenção geral ou de polícia, e o respeito da rele-
239
vante medida legal da pena de contravenção. O princípio da
legalidade das penas considerava-se respeitado desde que a lei
material determinadora da contravenção fosse delegada por lei
em sentido foraml (ou fonte equiparada), que definisse, no
mínimo, a matéria da contravenção e o limite máximo da res-
pectiva pena.
É difícil conceber que o legislador constitucional tenha que-
rido retirar ao Governo e aos órgãos legislativos e regulamen-
tares das regiões autónomas e das autarquias locais todo o
poder de criar contravenções e de sancionar, assim, penalmente,
algumas das disposições genéricas dos seus órgãos legislativos
e regulamentares. A eficácia do executivo, a autonomia regional
e local, que são princípios constitucionais, seriam gravemente
afectadas.
Resta então saber em que medida a determinação da con-
travenção pode ser deixada a esses órgãos, sem prejuízo da
definição da pena, que vimos implicar constitucionalmente a
sua conexão com o facto punível, e uma determinação deste
que seja compatível com os princípios constitucionais em que
se baseiam os arts. 146.° alínea e) e 29.° Ora esta reserva de
lei tem como fundamento específico, combinado com o princípio
da necessidade da pena, uma aplicação do próprio princípio
democrático: traduzindo-se as Banções penais em sacrifícios
graves dos bens jurídicos correspondentes a direitos do homem,
só a Assembleia da República, como «assembleia representativa
de todos os cidadãos portugueses» tem legitimidade para exigir
esse sacrifício ( rT ). Essa exigência, que é feita com a cominação
da pena, tem que ser suficientemente explicita para que a pena
final aplicada ainda possa ser imputada pelo cidadão à Assem-
bleia da República e aos seus representantes nela. Quer isto
dizer que a delegação de competência deve ser inquívoca e des-
crever o conteúdo, o fim e os limites da delegação de tal forma
que os pressupostos da punibilidade sejam genericamente pre-
visíveis com base no texto legal da delegação e não apenas com
F) Assim, GRtlNWALD, lug. cit., p. 16; JESCHECK, ob. cit.,
p. 105.
BiO
base no texto do acto governamental, regional ou local dele-
gado (78).
A Constituição parece adoptar idêntico regime quanto aos
pressupostos das medidas de segurança, para que também não
exige a «definição» acabada que reserva aos crimes e à «defini-
ção» da espécie e limite máximo da pena ou medida de segu-
rança aplicáveis.
Em conclusão: o poder regulamentar do Governo (art. 201.°,
n.° 1, alínea c); art. 202.", alínea c)), das regiões autónomas
(art. 229.°, alínea 6)) e das autarquias locais (art. 242.°) pode
exercer-se pela especificação dos elementos de facto de contra-
venções (ou dos pressupostos de medidas de segurança) que
sejam genericamente previsíveis com base na lei regulamen-
tada. Decretos-leis, decretos, decretos regionais, regulamentos
podem nestes termos ser fontes de direito penal, além das
leis, dos decretos-leis ratificados expressamente {'"), dos decre-
tos-leis do Conselho da Revolução sobre direito penal militar
(art. 148.°), dos assentos — em função interpretativa ( 80 ):
arts. 608.° a 670.° do Código de Processo Penal e art. 2.° do
Código Civil— e dos tratados internacionais (art. 8.°, n.° 2
da Constituição).
241
15
14. O costume estã, por consequência, excluído como modo
de criação ou delimitação positiva de normas penais {nvMa poena
sine lege scripta). Pode apenas revogar total ou parcialmente,
delimitar negativamente e interpretar normas penais ( 81 ); e
pode prencher o conteúdo de conceitos normativos utilizados
na lei penal. Exceptua-se apenas o costume internacional
(art. S.°, n.° 1 e art. 29.°, n.° 2 da Constituição), cujas normas,
no entanto, só podem ser aplicadas depois de transformadas
em, ou pelo menos, adaptadas por, lei formal interna («nos
limites da lei interna»: n.° 2 do art. 29.°). Casos de transfor-
mação do direito internacional penal em direito interno seriam,
segundo alguns deputados (82) a Lei n.° 8/75 de 25 de Julho,
a Lei n.° 16/75 de 23 de Dezembro e a Lei n.° 18/75 de 26 de
Dezembro, que a Constituição recebeu no art, 309.°, bem como
as leis regulamentares das primeiras autorizadas pelo n.° 2
do mesmo artigo e posteriormente publicadas (Decreto-Lei
n.° 349/76 de 13 de Maio e Lei n.° 1/77 de 12 de Janeiro). Mas
é duvidoso se já há «princípios gerais de direito internacional»,
ou costume internacional, que sejam normais penais (83). E
2^2
mesmo que se entenda serem-no todas as incriminações dos
julgamentos de Nuremberga e de Tóquio (crimes de guerra,
crimes contra a humanidade e crime de guerra de agressão),
como o próprio n.° 2 do art. 29.° parece pressupor, em face da
sua óbvia inspiração no n.° 1 do art. 7.° da Convenção europeia
dos direitos do homem e no n.° 2 do art. 15.° do Pacto Interna-
cional de Direitos Civis e Políticos (embora não seja esse o
conteúdo normativo de tais preceitos), nem assim se podem
considerar abrangidas pelo ii.no 2 do art. 29.° as leis de incrimi-
nação dos agentes, responsáveis e colaboradores da PIDE/DGS.
O direito internacional penal não prevê a punição em razão da
mera qualidade das pessoas, da sua pertença a organizações,
ou da sua colaboração com organizações, independentemente do
dano {"'). O art. 9.° do Estatuto do Tribunal Internacional Mi-
litar, ao permitir declarar grupos ou organizações como crimi-
nosos, apenas pretendeu preparar a prossecução penal, por
autênticos crimes, dos membros dessas organizações.
MS
os pressupostos genéricos a que está ligada, Previsões legais
vagas, ou de outro modo indeterminadas são um modo de des-
virtuar a função de garantia da reserva de lei e do princípio
da legalidade por inteiro. Isto vale tanto para os crimes, como
para as contravenções, como para os pressupostos das medidas
de segurança.
Por outro lado, uma total determinação é impossível devido
à própria natureza da linguagem. Uma enumeração demasiado
casuística multiplica as lacunas e tende a ser contraproducente,
por dificultar a determinação do que é essencial em cada caso.
Com efeito, o caso concreto nunca é um puro facto, mas uma
unidade de sentido socialmente relevante mais ou menos com-
plexa e normalmente integrada por elementos culturais difíceis
de definir. Para o descrever, a previsão legal contém muitas
vezes expressões que não se deixam reduzir a conceitos pre-
cisos. Assim será quando a lei se serve de noções de vida social
típicas, isto é, de contornos um tanto vagos mas em que é de-
terminante uma certa imagem ou ideia de conjunto, como
«lugar ermo» (arts. 343.°, § 1.°, 435.tu 0 1 do Código Penal),
«miserável» (art. 399.", n.° 3), «sedução» (art. 392."), «corrup-
ção ou devassidão» (arts. 405.°, 406.°), «rigor» (art. 293.°), etc.
O mesmo acontece com o recurso a valorações vigentes na so-
ciedade e implícitas em conceitos normativos como «pudor»
(art. 390.°), «honestidade» (art. 390.°), «fim honesto» (arts.
395.°, 396.°), «honra e consideração» (art. 407.°), «imperícia,
inconsideração, negligência» (art 3 6 8 . b e m como com a re-
missão para todo um sistema de normas: «omissão voluntária
de um dever» (art. 2."), «ultrage à moral pública» (art. 420.[>),
«legitimamente» (art. 329.°), «facto ilícito» (art. 368.°, § único),
acto «a que a lei o não obrigar» (art. 187."), «coisa que lhe
não pertença» (art. 421.°); e até com simples conceitos de gra-
duação, do género de «veemente» (art. 393.°). Uma forma de
combinar a essencialidade da descrição com a sua maior con-
cretização é a técnica legislativa dos exemplos de regra: a enu-
meração exemplificativa de hipóteses de menor generalidade
m
que acompanha a regra mais geral ( " ) . Mas as dificuldades de
principio mantêm-se: a indeterminação das previsões legais é
o «calcanhar de Aquiles» do princípio da legalidade. No en-
tanto, se é difícil sustentar a inconstitucionalidade dos artigos
do Código Penal que se acabaram de mencionar, nenhuma dú-
vida haverá sobre a inconstitucionalidade da seguinte «lei» da
república dos conselhos de Munique de 1919: «toda a violação
dos princípios revolucionários será punida. A espécie da pena
fica ao livre critério do juiz» (88). Trata-se, pois, de uma questão
de grau que transforma numa questão de qualificação: a fa-
mosa mudança de quantidade em qualidade.
Critérios formais ("7) não ajudam a decidir conveniente-
mente do mais a do menos. A letra da Constituição não é, só
por si esclarecedora. Já vimos que a, alínea e) do art. 107.°
245
implica uma certa determinação dos pressupostos das penas e
das medidas de segurança, compatível no caso dag contraven-
ções e, parece, no das medidas de segurança, com a sua parcial
determinação por regulamentos delegados. Mas a definição dos
crimes, como a da medida máxima das penas e medidas de
segurança terá de fazer-se em lei da Assembleia da República
(ou fonte equiparada). Os n.°9 3 e 4 do art. 29.° referem-se ge-
nericamente às penas e medidas de segurança privativas da
liberdade, implicando uma certa determinação dos pressupos-
tos delas; mas a parte final do n.° 4 também se refere às leis
penais, sem distinção. Finalmente o n.° 1 do mesmo artigo
refere-se apenas à declaração da acção ou omissão «criminal-
mente» punível —excluindo as contravenções— e à fixação
dos pressupostos das medidas de segurança privativas de liber-
dade. Falamos aqui da referência literal, bem entendido. Se a
estas diferenças literais correspondessem diferenças de níveis
de determinação das previsões legais teríamos: primeiro, os
crimes: exige-se definição em lei formal (art. 167.°, alínea e))
e declaração da acção ou omissão como punível (art. 29.-, n.° 1);
segundo, os pressupostos das medidas de segurança privativas
de liberdade: terão de ser fixadas (art. 29.°, n.° 1); terceiro,
as contravenções e as medidas de segurança não privativas
de liberdade: terão que ser determinadas na medida exigida
pela «definição» e «cominação» das penas e medidas de segu-
rança (art. 167.°, alínea e)), que inclui a determinação do ca-
rácter mais ou menos favorável do seu conteúdo (art. 29.°,
COLA, oh. cit., pp. 250 e segs., fala de uma «reserva de carácter refor-
çado», í. e., s6 o legislador primário pode prover, e com limites, neste
caso formais: o art. 25.°, n.° 2 da Constituição italiana «vincula o legis-
lador ordinário a adoptar uma certa técnica — t a x a t i v a — de previsão».
N o mesmo sentido, GRASSO, Jl principio .tnullum crimen si«e lege
nella costitusione italiatta, 1072, p. 76 critica a expressão reserva de lei,
que só com um «significado impróprio» se aplicaria ao principio da lega-
lidade, Mas ao exigirem carácter taxativo para todas as previsões penais,
estes dois últimos autores propendem a exigências incompatíveis com
toda a prática constitucional italiana.
U6
n.° 4 in fine). Mas são os critérios de determinação em cada
caso realmente diferentes? É pergunta a que só a exegese de
cada preceito permite responder.
Pode, contudo, desde já dizer-se que uma diferenciação é,
em princípio, justificada, uma vez que a uma maior ameaça
dos direitos individuais deverá corresponder uma maior garan-
tia. Ê um princípio da proporcionalidade entre a gravidade da
sanção penal e o grau da garantia. Ora as penas dos crimes,
as medidas de segurança privativas da liberdade, as restantes
medidas de segurança e as penas de contravenções representam
uma série de gravidade decrescente. Este princípio implica, no-
madamente, combinado com o já dito:
2Jf7
Tudo o que se disse — e dirá— acerca das normas que
estatuem penas e medidas de segurança se aplica, as normas
que estatuem efeitos penais da condenação penal (arts. 75.",
n.° 1, 76.°, 77.° e 78.° do Código Penal), que não são mais do
que penas ( es ).
2-48
A proibição da analogia (nulla poena swie lege siricta),
corno modo cie integração de lacunas, é uma mera consequência.
Ê claro que outros métodos de integração de lacunas, como o
recurso à criação livre do direito «dentro do espírito do sis-
tema» (art. 10.", n.° 2 do Código Civil), aos princípios gerais
de direito ou ao direito natural, são proibidos a fortiori.
Nada disto veda a possibilidade de raciocínios por analogia
na aplicação da lei penal. É um raciocínio por analogia aquele
em que, da semelhança entre certo facto a considerar e outro
facto previsto na lei, se deduz que valem para o primeiro as
consequências que a lei estatui para o segundo. Ora nenhum
trabalho interpretativo teleológico, que atenda aos fins e ao
sentido do preceito e que admita um progresso no conhecimento,
dos casos mais evidentemente previstos para os mais duvidosos,
se pode passar de raciocínios por analogia, baseados na seme-
lhança entre os casos a considerar e outros casos reconhecida-
mente abrangidos pelo preceito. Tais raciocínios são apenas um
meio de interpretação.
O art. 18." que parece implicar o contrário, deve antes
interpretar-se do seguinte modo: a proibição de analogia da
primeira parte do artigo só tem lugar quando não se verifica
a hipótese da segunda parte, isto é, quando não «se verifiquem
os elementos essencialmente constitutivos do facto criminoso,
que a lei penal expressamente declarar». Por outras palavras;
a «indução» por paridade ou maioria de razão» é proibida para
integrar, mas é indispensável para interpretar.
2^9
democrático e representativo, como a reserva de lei e a proibi-
ção de integração, pois representa uma limitação do próprio
poder legislativo. Mas a consideração de politica criminal que
já vimos relevar na proibição da analogia, torna-se aqui parti-
cularmente forte. Trata-se, em especial, de evitar leis ad hoc
— como eram os biUs of atteinder —, que podem ser ditadas
por emoções de momento ou objectivos particulares dos deten-
tores do poder político e, como tais, são facilmente injustas.
Como já dizia o nosso Lopes Praça: é preciso que as leis (pe-
nais) «sejam previamente fixadas no meio da reflexão fria e
imparcial; criar a competência e as leis depois do facto é subs-
tituir à razão a paixão, à ordem prudencial o arbitrário, à
imparcialidade a suspeita e a vindicta» (62).
Momento relevante para decidir da retroactividade, além
do momento da entrada em vigor da lei, é o da verificação do
facto criminoso, ou tempo da prática do crime. Para tal efeito,
nas palavras do art. 3." da Proposta de lei n.° 117/1 da Revisão
do Código Penal (Parte Geral), «o facto considera-se praticado
no momento em que o agente actuou ou, no caso de omissão,
deveria ter actuado, independentemente do momento em que o
resultado típico se tenha produzido» (°3). Nos crimes continua-
dos e nos crimes duradouros ou permanentes (como a rebelião
armada — art. 168.*° do Código Penal; o cárcere privado: art
330.°) é todo o tempo da acção e/ou omissão ( 0í ).
A proibição da retroactividade abrange também a retro-
actividade da agravação da pena ou medida de segurança, como
deriva dos princípios e expressamente consagra o art. 29.°
n.° 4 da Constituição.
250
Pode perguntar-se se o artigo 29.°, n.°" 1, 3 e 4 pretende
reduzir a garantia constitucional de não retroactividade das
sanções penais, que na Constituição de 1933 se estendia a todas
as medidas de segurança (art. 8.°, n.° 9), às medidas de segu-
rança restritivas da liberdade. Em favor desta tese, além da
letra, poderia invocar-se o argumento que as medidas de se-
gurança são dominadas pelo princípio da utilidade ou conve-
niência da medida, pelo que deveriam aplicar-se sempre que
útil ou conveniente, se necessário retroactivamente. Com este
argumento o Tribunal Federal Alemão (BGHSt 24, p. 106) e
parte da doutrina alemã têm considerado constitucional o § 2.°,
secção VI do Código Penal alemão, que manda aplicar às medi-
das de segurança a lei em vigor no momento da sentença (,m).
No direito português só não seria assim quanto às medidas
privativas da liberdade, devido à importância constitucional do
direito de liberdade (art. 27.°). Contra, deve lembrar-se que o
princípio da legalidade se funda no sacrifício dos direitos, que
resulta da aplicação não só das penas como de todas as formas
de reacção ao crime de gravidade semelhante (9B). E que as
medidas de segurança se fundam também numa relação de Jus-
tiça distributiva, que inclui o princípio da necessidade ou má-
xima restrição da medida de segurança ( nT ). A inibição tempo-
251
ráría ou definitiva de exercer a profissão ou mesmo de condu-
zir podem ser muito mais gravosas dos direitos individuais do
que qualquer multa ou mesmo a prisão.
252
o sentido possível das palavras é precisamente o limite até ao
qual pode ir, segundo a doutrina portuguesa, a interpretação
declarativa ( l01 ).
Deve entender-se que uma interpretação que vá além do
sentido possível das palavras é incompatível com o fundamento
de segurança jurídica do princípio nullum, crimen nuila poena
sine lege} embora não esteja, em rigor, abrangida por ele. Com
efeito, entre o sentido possível das palavras e «o mínimo de
correspondência verbal» a que se refere o n." 2 do art. 9." do
Código Civil, há ainda um espaço a ser percorrido pela inter-
pretação. A interpretação que, embora tendo na lei um mínimo
de correspondência verbal, excede o sentido possível das pala-
vras de lei, é interpretação extensiva e deve considerar-se proi-
bida pelo art. 18." do Código Penal e pelo art. 29.° da Consti-
tuição.
Sendo, nestes termos, a proibição da interpretação exten-
siva inteiramente justificada, não se vê porque limitá-la às
«normas incriminadoras» ( I I "), isto é, as disposições que indi-
cam os elementos constitutivos essenciais do crime — ficando
de fora as disposições relativas às circunstâncias agravantes
ou às penas—; ou até apenas ao «momento da incrimina-
nação» O'13), para o fim do enquadramento numa disposição
que estabelece uma pena mais grave.
Nada justifica dar-lhe outro âmbito que o das proibições
de analogia e de retroactividade.
253
6. A retroactividade da lei penal mais favorável
25/f