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Tânia Stolze Lima
1 Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada na Mesa Redonda: “Redes
sem centro, corpos múltiplos — considerações sobre a produção do corpo e da
subjetividade em diferentes contextos etnográficos”, coordenada por Clara
Mafra, durante o Seminário “Sociedade Civil: O que há de novo?” — ISER-30
anos. Rio de Janeiro, 27 de junho de 2000. Agradeço as sugestões de Clara
Mafra, Regina Novais, Sérgio Carrara e Elsje Lagrou. Este artigo inscreve-se
também no quadro de um projeto de pesquisa que conta com a participação de uma
bolsista de iniciação científica, Michele Pinheiro de Souza, a quem sou muito
grata. Agradeço também à Propp-Pró-Peitoria de Pesquisa e Pós-Gradução, UFF,
pela bolsa concedida a Michele através do Programa PIBIC.
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um dia com pessoas da Nova Caledônia que recebiam sua instrução religiosa
desde vários anos e, com o propósito (segundo ele mesmo afirma) de avaliar o
progresso que haviam feito, arriscou a seguinte sugestão: “Afinal, foi a noção
de espírito que introduzimos no pensamento de vocês, não foi?” Mas eis que
um homem chamado Boesoou, que havia sido mestre do discurso ritual (e, de
acordo com Clifford 1998, acabou se tornando pastor), declarou então o se-
guinte: “Espírito? Que nada! Vocês não nos trouxeram o espírito. Já sabíamos
da existência do espírito. Agíamos segundo o espírito. O que vocês trouxeram
foi o corpo”!
Parece legítimo supor que a declaração tinha tudo para chocar o
missionário, pois a força com que pode atingir-nos é evidente. Oferece-nos
uma perspectiva um tanto desconcertante, pelo menos momentaneamente,
sobre nós mesmos, ao pôr em xeque a grande divisória que nossa história
desde alguns séculos procura realizar na direção de um acantonamento da
religião em uma esfera da vida social supostamente específica e autônoma.
Pois o que Boesoou está sugerindo é, nada menos, que o cristianismo tem uma
amplitude bem superior àquela que lhe conferiríamos de bom grado. De todo
modo, mais tarde a declaração terá um valor bem grande para o etnógrafo,
como é notável nesse trecho que gostaria de citar:
1º) o corpo tem uma existência própria, é algo físico ou objetivo e, por
isso, independente das relações que mantém com outros corpos;
nada adiantará tentar fugir pelas pedras ou por um lajedo do rio: estes se
tornam moles e grudentos, quer dizer, essa pessoa se descobrirá atolada na
resina de almecegueira. Quem ficar sob a mira do pa÷¥ estará condenado a
assumir a perspectiva dele.
Pode-se objetar que, uma vez que o pa÷¥ não existe, isso que ofereço
como ilustração da máquina cosmológica, em sua estreita ligação com o
antagonismo de perspectivas, pouco justifica a importância que estou
pretendendo conferir-lhe no plano mesmo da experiência humana. O discurso
mítico, com efeito, efetua uma abordagem do problema muito mais elaborada,
evidenciando mais diretamente sua natureza que o relato de experiências pes-
soais concretas, como a de Taykap¥, um homem que estava pescando em sua
canoa quando um trairão fisgou o anzol. Taykap¥ desmaiou (quer dizer, sofreu
uma forma atenuada de morte) e foi acordar a grande distância rio abaixo, sem
anzol, linha, nem peixe. Ele me disse: O trairão olhou para mim! Durante
semanas não conseguiu comer trairão: sentia-se embriagado ao olhar para a
carne desse peixe. Algo estava acontecendo, algo levara-o a ver o trairão como
o trairão se vê. Taykap¥ estava virando xamã! Ele não me relatou com detalhe
a atuação do trairão em seus sonhos, mas segundo o acontecimento onírico
habitual que os Juruna afirmam ser a regra, poder-se-ia afirmar que ‘o trairão
virou gente para ele’!
Até aqui, penso ter mostrado que na acepção de i-bi∂a, assim como na
acepção de i-˚ab¥, o que um corpo é depende, intrinsecamente, de uma
perspectiva. Sendo assim, todo corpo é disponível para vir a ser o que é para
uma perspectiva alheia. Por outro lado, e como já mostrou Viveiros de Castro
(1996), a perspectiva própria é dependente do corpo. Antes de prosseguir a
análise, gostaria de enfatizar que o que estou propondo significa antes de
tudo que a dicotomia entre corpo e alma não se aplica à cosmologia juruna.
Nem poderia exprimir a dicotomia entre unidade e diversidade (como parecem
afirmar Århem 1993 e Vilaça 2000 para as cosmologias Makuna e Uari’5).
Talvez, em algumas cosmologias indígenas da Amazônia, a diferença entre as
muitas espécies de pessoas esteja inscrita no corpo. Talvez essa noção ofereça
a única base da relação de diferença, enquanto a noção de alma seria
8 Dos arbustos da beira do rio, por exemplo, os Juruna dizem que são “o
milharal dos peixes”. A relação disso com a realidade é, porém, tida como
metafórica e sem qualquer significado para a experiência humana.
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Referências Bibliográficas
Clastres, Pierre: 1973. “De la Torture dans le Sociétés Primitives” In: La Société
contre l’État. Paris: Minuit. 1974.
9 Nem é preciso lembrar que em uma máquina condicionada por uma posição de
sujeito, essa posição, além de não pertencer a ninguém fixamente, supõe a
posição do outro e a do objeto. Tenho consciência da necessidade de efetuar
uma reflexão etnográfica a respeito dos limites e das especificidades que a
noção de sujeito apresenta na etnografia juruna.
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_____ : 1999. “Para uma teoria etnográfica da distinção entre natureza e cultura
na cosmologia juruna”. RBCS vol. 14 nº 40:43-52.
Nietzsche, Friedrich: 1992. Além do Bem e do Mal. São Paulo: Companhia das
Letras.