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Resumo
Com uma breve leitura da obra Um falcão no punho, da portuguesa Maria Gabriela
Llansol, veremos como a escrita se torna objeto de reflexão em muitos textos
contemporâneos. Para isso, são usados certos procedimentos, como a ruptura com
gêneros literários cristalizados e a tematização da relação entre obra, escritor e leitor,
cabendo a este último um papel também de criação.
Abstract
With a brief reading of the book Um falcão no punho, written by the Portuguese Maria
Gabriela Llansol, we will see how the writing becomes a subject of reflection in many
contemporary texts. Some procedures are used in order to do this, like the rupture with
crystallized literary styles and the discussion about the relation among text, writer and
reader, this last one also serving as a creator.
significados, que permitem e até mesmo solicitam uma leitura múltipla” (2005: 61).
Segundo a pesquisadora, cada vez mais os estudos literários vêm mostrando que o
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Mestranda em Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela Universidade
Federal Fluminense.
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Edição n.04 / outubro de 2010
com a ilusão de um tal “sentido correto” que precisa ser descoberto por quem lê. Sendo
que se vive, os discursos sacralizados e, por fim, a linguagem que quer dizer tudo
quando, ao lermos, somos levados a passear por diferentes gêneros, lidando com uma
prosa que se faz poesia, e vice-versa. “As fronteiras entre os gêneros literários tornaram-
se fluidas” nos diz Linda Hutcheon (1991: 26), a respeito das obras chamadas pós-
modernas. Além dessa desconstrução de gêneros fechados em si, vemos, ainda com
passado, não de uma maneira nostálgica, mas sim a partir de uma reavaliação crítica –
limitação da/na linguagem, muitas obras têm proposto uma reflexão metalinguística
que, além de pensar criticamente sobre si, inclui nesse caminho os atos de escrita e de
leitura.
Llansol, autora de mais de 25 livros que nasceu em 1931, na cidade de Lisboa, e faleceu
em março de 2008. Com este trabalho, adentraremos no bosque labiríntico criado pela
escritora a partir de sua obra Um falcão no punho, publicada em 1985. Nossa busca será
por entender de que maneira a própria escrita é tematizada, começando pela ruptura com
gêneros sacralizados e passando pela relação entre autor – obra – leitor, proposta por
uma escritora que diz considerar sua obra “suspensa” e nunca acabada, como mostram
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as epígrafes escolhidas para a introdução deste trabalho. É por isso que escolhemos a
imagem do labirinto cunhada por Umberto Eco, ao retomar a metáfora criada pelo
Um bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam. Mesmo quando não existem num
bosque trilhas bem definidas, todos podem traçar sua própria trilha, decidindo ir para a
esquerda ou para a direita (...). Num texto narrativo, o leitor é obrigado a optar o tempo
todo. (ECO, 1994: 12)
contrário disso, a ideia de “morte do Autor”, de Barthes, é retomada não para apagá-lo
conta as imposições do próprio texto e da própria linguagem? O que Llansol nos sugere
com/em seu diário? Recorremos à imagem de Eco mais uma vez, lembrando que um
bosque é território público (1994: 16), e não o jardim particular de qualquer leitor...
Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
(“O Lutador”, Carlos Drummond de Andrade)
relação a esse texto em prosa (?) é a ruptura com o(s) gênero(s) e, portanto, com
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que toda leitura realiza é inseparável das imposições de gêneros, ou seja, de suas
do jogo, informa o leitor sobre a maneira pela qual ele deverá abordar o texto,
A própria escritora do diário assume sua recusa às distinções claras entre gêneros:
março de 1979 a setembro de 1983), nos orienta, à primeira leitura, a esperar fatos que
reflexões que partiriam de situações concretas. Entretanto, não é bem isso que
denso de reflexões, dúvidas, desabafos e até mesmo ficções, como o encontro entre
definida como “a transparência que lhe permite (ao autor de um diário) não lançar
sombras sobre a existência confinada de cada dia. É preciso ser superficial para não
faltar com sinceridade” (2005: 271). Para o escritor e ensaísta francês, a um diário não
caberia a profundidade, pois esta exigiria a resolução de não manter o juramento que
nos liga a nós mesmos e aos outros por meio de alguma verdade.
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Já o diário llansoliano, ou o texto que se quer diário, nos leva a outros caminhos.
Tal como sou acompanhada pelos lagos – águas adormecidas naturais e duráveis -, de igual
modo deve fazer parte da sombra,
que se desloca comigo,
inscrever os dias estendidos por longo período de tempo. (LLANSOL, 1998: 8)
Por que então recorrer a um diário, se dele se foge – ou pelo menos daquilo que se
espera dele? Essa pergunta pode ser respondida com uma afirmação feita pela própria
escritora no início de seu livro, quando assume que precisa recorrer ao diário para tentar
agarrar-se a uma objetividade: “um diário pode ser mais objectivo que uma vida
pessoal” (LLANSOL, 1998: 62). Também há nessa opção a busca por um ordenamento
calendário que traga estabilidade ao meio, e dê protecção à Casa que, com um sentido
abissal, podia tornar-se o universo, e desaparecer” (LLANSOL, 1998: 8). Sendo assim,
momentaneamente sob a proteção dos dias comuns, colocar a escrita sob essa proteção,
que, mesmo que se tente escapar e que o ordenamento dos dias dê uma ilusão de
37), uma luta (vã) com as palavras já carregadas de sentido, para a qual já havia
atentado o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade. E é para encarar esse duelo e
enfrentar esse desafio que surge a figura do leitor, entendendo que quem lê também cria,
produz: é agente.
decretado que o autor não é soberano, e que há sempre algo que lhe escapa. É uma
destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse
oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o branco-e-preto em que vem se perder toda
identidade, a começar pela do corpo que escreve”. (BARTHES, 2004: 57). Sendo
múltipla, a estrutura de uma obra poderia ser apenas desfiada, e não decifrada – imagem
ainda de Barthes (BARTHES, 2004: 57), pois é feita do tecido de escrituras várias que
texto não está em sua origem, mas sim em seu destino – o leitor.
Essa pequenez do autor, ou seja, o fato de ele não ser autoridade, é referida em
Um falcão no punho: “Agora, o sol, o solo, a solo, encadeiam-me nas palavras. Esta
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47); “subitamente reparei que era Esse do livro, enfim, o único Esse” (LLANSOL,
1998: 50). A escritora, pelo uso da voz passiva, mostra reconhecer sua passividade
diante das palavras, sendo o texto um ser próprio. Entende que as palavras não são
neutras, mas sim sujeitas a uma “rotina de códigos”, pois estão previamente habitadas
Pode-se dizer que, ao preferir uma escrita que persegue a crise e/ou o avesso do
mundo figural, busca-se romper com uma certa “convenção familiar” que vem desde a
época da infância, tempo em que a escritora era “corça prisioneira” dos sentidos
cristalizados pela impostura da língua e por associações banalizadas: “Se eu tivesse que
voltar do exílio voluntário, escreve a rapariga que temia a impostura da língua (...)”
(LLANSOL, 1998: 35); “Na realidade, nós já falamos tanto e sabemos tão pouco, que
origem de palavras, de associações não conformes” (LLANSOL, 1998: p. 131). Por isso
mesmo é que decide inverter o nome de Fernando Pessoa, passando a chamá-lo apenas
Aossê: “precisava de alterar a ordem das letras do nome de Pessoa para fazê-lo involuir,
arrancá-lo ao hábito inveterado que tinha dele (...) Pessoa, lido da direita para a
Pensar em escrita logo nos leva a pensar sobre a leitura. Para Llansol e outros
grupo de leitores e sua entrega total à leitura: esse é seu objetivo desde a primeira
mancha no papel. Lembramos Sartre quando nos diz que escrever e ler são atos
conexos:
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O ato criador não é senão um momento incompleto e abstrato da produção de uma obra; se
o autor existisse sozinho, ele poderia escrever tanto quanto quisesse, nunca a obra como
objeto seria conhecida e seria preciso que ele desistisse de escrever ou se desesperasse. Mas
a operação de escrever implica a de ler como seu correlativo dialético e estes dois atos
conexos necessitam de dois agentes distintos. (apud COMPAIGNON, 2003: 145)
Entender que todo texto literário possui uma certa “abertura”, “suspensão”, ou
uma certa incompletude pode levar à conclusão de que tal situação poderia ser desfeita
uma espécie de ideal projetado pelo autor. Mais uma vez voltamos a Umberto Eco,
quando diferencia o “leitor-modelo” do “leitor empírico”. Este último pode ser qualquer
um que se debruce sobre uma obra, deixando agir suas emoções e paixões particulares.
Já o primeiro seria exatamente esse leitor projetado pelo escritor durante o ato de
criação, com capacidade para ler da “maneira correta”; ou seja, “uma espécie de tipo
ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar” (ECO, 1994:
15).
Reconhecendo ser necessário pensar a literatura como elemento que envolve dois
“leitor ideal” ou então “leitor competente” corre o risco de reduzir seu papel a apenas
adquirir a esperteza necessária para seguir as instruções dadas pelo autor. E então o
leitor real se encontraria diante de apenas duas alternativas, tal como observado por
cada vez mais indeterminados – e nesse grupo não seria possível deixar de incluir as
relata uma entrevista concedida a uma jornalista, Regina Louro, na qual avalia que o
O público dos leitores é inicialmente múltiplo. Comecei, a uma dada altura, a ter a visão de
um só leitor, de forma azulada, sem aspecto humano. Mas eu soube que posteriormente
essa forma azulada podia tornar-se num apelo a um livro porque ela desejava intensamente
compreender a decifração dos meus próprios sinais. O que podia suscitar só por si a
dinâmica de um novo texto. (...) A figura nunca é um inerte, mas um princípio activo.
(LLANSOL, 1998: 131)
É por isso que Barthes considera que o que há é, na verdade, uma multiplicidade
leitura, porque não há a possibilidade de fechar a lista desses níveis” (BARTHES, 2004:
32). Para ele, o saber-ler não possui regras, nem graus, nem termo, sendo a im-
pertinência, tal qual a perversão, algo inerente a qualquer leitura. Como diz a própria
Sendo assim, uma leitura verdadeira, total, seria uma leitura louca, não naquilo
vista, de estruturas. É por isso que cabe ao leitor escolher dentre os diversos caminhos
momento da leitura.
Conclusão
Llansol prefere a perversão, já que sua escrita sombria não busca nem pretende
realidade:
A história moderna e a literatura moderna rejeitaram o ideal de representação que por tanto
tempo as dominou. Atualmente as duas encaram seu trabalho como exploração, testagem,
criação de novos significados, e não como exposição ou revelação de significados que, em
certo sentido, já “existiam” mas não eram percebidos imediatamente. (GOSSMAN apud
HUTCHEON, 1991: 34)
obra/linguagem não possui um poder pleno, assim como quem a lê e quem a escreve. A
escritora chegou a cunhar dois termos - escrevente e legente – para mostrar que ambos,
autor e leitor, são agentes criadores e não devem ser confundidos com a biografia dos
indivíduos empíricos, nem com um autor e um leitor ideais, sendo o primeiro soberano
e dono total dos sentidos possíveis, e o segundo detentor de uma competência para
A dupla autor/leitor pensada por Llansol é bem diferente, criada pela própria obra
no momento de sua feitura e de sua leitura. É por isso que a autora nos diz diversas
vezes que a escrita, antes de ser fácil, é um duelo, um combate, e que cada leitor, antes
de ser um ser inerte, é um princípio ativo. É nele que a obra se realiza, e sendo a
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARTHES, Roland. O rumor da língua. Trad. de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad. de Hildegard Feist. São
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Martins Fontes, 2005.