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Gestão de Águas: pricípios e práticas

Book · January 2003

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2 authors:

José Nilson B. Campos Ticiana Marinho de Carvalho Studart


Universidade Federal do Ceará Universidade Federal do Ceará
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Gestão de
Águas
princípios e práticas
2001
Fortaleza-Ce

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Gestão de Águas
princípios e práticas
EDITORES
Nilson Campos
Ticiana Marinho de Carvalho Studart

AUTORES

Francisco de Assis Souza Filho


José Adonis Callou de Araújo Sá
José Carlos de Araújo
Larry Simpson
Luciana Ribeiro Campos
Marco Aurélio Holanda de Castro
Marisete Dantas de Aquino
Nilson Campos
Raimundo Oliveira de Sousa
Sandra Tédde Santaella
Sila Xavier Gouveia
Suetônio Mota
Ticiana Marinho de Carvalho Studart
Vicente de Paulo Pereira Barbosa Vieira

Fortaleza, 2003
Copyright @ 2003, de .......

Reservados todos os direitos autorais.

Nenhuma parte desse livro poderá ser reproduzida sejam quais forem os
meios empregados sem a permissão, por escrito, da Editora ..... Aos
infratores se aplicam as sanções previstas nos artigos 122 e130 da Lei
5.988 de 14 de dezembro de 1973.

I- Gestão de Águas. 2. Planejamento de Recursos


Hídricos

CDU
“Vista de longe a Terra é pura água;
Mas não é água pura.
Essa é rara e cada vez mais cara.”

Ricardo Arnst
Agradecimentos
Os editores do livro agradecem à Financiadora de Estudos e Projetos –
FINEP, pelo patrocínio ao projeto de pesquisa Instrumentos de Gestão
dos Recursos Hídricos(RECOPE/REHIDRO/SUB-REDE 4). Ao
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico –
CNPq, pelo suporte ao projeto de pesquisa Gerenciamento Integrado dos
Aspectos Qualitativos e Quantitativos dos Recursos Hídricos em Regiões
Semi-Áridas.(Processo 521169/97-6).

Aos Professores Fazal Chaudry e Antônio Eduardo Leão Lanna,


respectivamente Coordenador Geral do RECOPE/REHIDRO e
Coordenador da Sub-Rede 4, pela eficiente condução do projeto.

Ao Professor Ernesto da Silva Pitombeira, Diretor do Centro de


Tecnologia, ao Professor Joaquim Bento Cavalcante Filho, Chefe do
Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental e ao Professor Horst
Frischkorn, Coordenador do Curso de Mestrado e Doutorado em Recursos
Hídricos da UFC, pelo apoio institucional recebido.

Ao Professor Alber Uchoa, pela valiosa revisão dos textos. A srta. Marisa
Lopes Freire, pelo seu trabalho de secretariado nos vários projetos de
pesquisa.
Prefácio

As preocupações relacionadas ao gerenciamento de recursos hídricos têm


estado presente na sociedade desde muito tempo atrás. Porém, somente
nas últimas décadas, conceitos como gestão da demanda, gestão da
qualidade das águas e gestão ambiental de bacias hidrográficas
incorporaram-se de forma proeminente nos modelos de gerenciamento
dos recursos hídricos. Esse assunto, tornou-se um capítulo importante no
novo paradigma do desenvolvimento sustentável.

A Agenda 21, documento emanado da Conferência das Nações Unidas


sobre meio ambiente e desenvolvimento, dedicou o Capítulo 18 à
proteção da qualidade e do abastecimento dos recursos hídricos. O
documento aborda temas como a integração de medidas de proteção e
conservação dos mananciais; o desenvolvimento de técnicas de
participação do público na tomada de decisões; a mobilização dos
recursos hídricos, particularmente em zonas áridas e semiáridas; o
desenvolvimento de novas alternativas de abastecimento de água, como
dessalinização de águas do mar, reuso e reposição de águas subterrâneas.

Toda essa mudança refletiu também em mudanças na Engenharia. A


gestão de águas que no passado era área de domínio de engenheiros,
passou a ser trabalhada também por administradores, economistas,
biólogos, químicos, sociólogos e outros profissionais. A formação de
recursos humanos na área de gestão de recursos hídricos, nas
universidades brasileiras, ainda se dá predominantemente em mestrados
e doutorados em Engenharia Civil. Porém, o importante é que nesses
cursos participam também geógrafos, biólogos, matemáticos e de outras
formações. Nesse processo, a convivência com diferentes visões
enriquece tanto o engenheiro como os outros profissionais, levando ao
aprendizado do trabalho em equipe.
O presente livro procura suprir uma lacuna deficiência na literatura
técnica e se destina a estudantes, professores, técnicos e, em geral, a
interessados em gestão de águas.

O texto foi organizado em treze capítulos. No primeiro capítulo, Gestão


de Águas: Novas Visões e Paradigmas, Nilson Campos aborda conceitos
históricos e atuais sobre o tema central do livro. Nos segundo e terceiro
capítulo, o mesmo autor trata, respectivamente de Política de Águas,
com base em experiências em curso no Brasil e dos princípios e
procedimentos para o estabelecimento de um Modelo Institucional.

No quarto capítulo, Planos de Bacias Hidrográficas, Nilson Campos e


Raimundo de Sousa apresentam algumas experiências brasileiras e
mostram como o desenvolvimento dos planos de gerenciamento de
bacias hidrográficas no Brasil vêm sendo procedidos com filosofias
distintas para os diferentes estados, embora todos tenham sofrido
influência do modelo francês. Aspectos inseridos na Lei Brasileira de
Águas também são apresentados.

No quinto capítulo, Gestão da Demanda, Ticiana Studart e Nilson


Campos discutem as diversas medidas chamadas “não-estruturais” para o
aumento da eficiência de sistemas hídricos. O texto aborda a experiência
de alguns países na gestão da demanda.

No sexto capítulo, Sistemas de Suporte às Decisões, Assis Filho e Sila


Gouveia discorrem sobre as linhas gerais de um sistema de suporte a
decisão, definindo marcos conceituais para o projeto e para a
implantação de um sistema deste tipo.

No sétimo capítulo, A Cobrança pelo Uso da Água, Nilson Campos e


Ticiana Studart fazem uma retrospectiva histórica do processo de
cobrança pela água bruta – da Roma Antiga aos tempos atuais. Os
autores mostram que, embora a cobrança pelo uso da água bruta seja
uma ferramenta considerada moderna, a mesma vinha sendo praticada
por muitos séculos, em casos específicos e particulares.
No oitavo capítulo, Gestão Ambiental, Suetônio Mota e Marisete Aquino
discutem a gestão de bacias hidrográficas, com ênfase à conservação
ambiental. São comentados aspectos legais e institucionais da gestão de
recursos hídricos e é apresentado um roteiro para elaboração de um
plano de conservação ambiental de uma bacia hidrográfica.

Vicente Vieira, no nono capítulo, Análise de Risco, conceitua e identifica


riscos e incertezas e apresenta exemplos de aplicação da análise de risco
como instrumento de gestão das águas, tanto a nível de engenharia de
projeto quanto a nível de prática administrativa.

No décimo capítulo, Gestão da Qualidade, José Carlos de Araújo e


Sandra Santaella apresentam conceitos ligados ao gerenciamento da
qualidade da água. São abordadas a poluição, a eutrofização e ainda
mostrados alguns exemplos de degradação da qualidade de reservatórios
superficiais devido ao deficiente manejo e proteção das margens desses
corpos de água.

No décimo primeiro capítulo, Mercado de Águas, Nilson Campos e


Larry Simpson apresentam conceitos ligados ao uso do mercado como
instrumento de gestão. Seis pré-requisitos para o funcionamento do
mercado de água são discutidos. Algumas situações favoráveis para a
aplicação dessa ferramenta são apresentadas.

No décimo segundo capítulo, Águas Subterrâneas, Marco Aurélio de


Castro apresenta os conceitos ligados à hidrologia de águas subterrâneas,
essenciais para o entendimento do funcionamento de aquíferos como
reservatórios hídricos.

O décimo terceiro capítulo, O Direito e a Gestão das Águas, José Adonis


Callou de Araújo Sá e Luciana Campos expõem os aspectos legais na
gestão de águas e apresentam, sob a ótica do Direito, uma interessante
experiência de direito de águas que tem lugar no Sul do Ceará.

Finalmente, o décimo quarto Capítulo, Nilson Campos aborda os


conceitos relacionados ao conflito de águas, tema de muita importância
nos dias atuais. O Capítulo apresenta alguns exemplos históricos de
conflitos de água em todo o mundo.

Ao formularmos o projeto desse livro, nós, editores, buscamos a


companhia de profissionais competentes e de variadas formações no
intuito de propiciar ao leitor uma visão mais abrangente sobre tema
Gestão de Águas. A eles, colegas co-autores, o nosso agradecimento por
compartilhar conosco essa experiência.

Nilson Campos e Ticiana Studart


Autores
Nilson Campos (EDITOR)

Engenheiro Civil e Mestre pela Universidade Federal do Ceará, PhD em


Planejamento e Gestão de Recursos Hídricos pela Universidade do
Estado do Colorado (CSU), Professor Titular da Universidade Federal do
Ceará.

Ticiana M. de Carvalho Studart (EDITORA)

Engenheira Civil, Mestre e Doutora em Recursos Hídricos pela


Universidade Federal do Ceará, Professora Adjunto da mesma
Universidade.

Francisco de Assis Souza Filho

Engenheiro Civil pela Universidade Federal do Ceará, Mestre em


Recursos Hídricos pela Universidade de São Paulo, Professor da
Universidade de Fortaleza.

José Adonis Callou de Araújo Sá

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará, Advogado,


Procurador da República, Mestrando em Direito pela Universidade
Federal do Ceará.

José Carlos de Araújo

Engenheiro Civil pela Universidade Federal do Ceará, Doutor em


Recursos Hídricos pela Universidade de São Paulo, Professor Adjunto da
Universidade Federal do Ceará.
Larry Simpson

Engenheiro Civil e Geotécnico, Mestre em Engenharia de Solos e Minas


pela Escola de Minas do Colorado, Mestre em Finanças pela
Universidade da California em Los Angeles (UCLA), Licenciado em
Engenharia nos estados do Colorado e Califórnia.

Luciana Ribeiro Campos

Graduada em Administração de Empresas pela Universidade Estadual do


Ceará, Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Ceará,
Procuradora do estado de Alagoas.

Marco Aurélio Holanda de Castro

Engenheiro Civil pela Universidade de Brasília, Mestre em Recursos


Hídricos pela Universidade de New Hampshire (UNH), Doutor pela
Drexel University, Filadélfia, Professor Adjunto da Universidade Federal
do Ceará.

Marisete Dantas de Aquino

Engenheira de Pesca pela Universidade Federal do Ceará, Mestre em


Recursos Hídricos pela Universidade Federal do Ceará, Doutora pela
Universidade de Ponts et Chaussés de Paris, Professora Adjunto da
Universidade Federal do Ceará.

Raimundo Oliveira de Sousa

Engenheiro Civil pela Universidade do Amazonas, Mestre pela


Universidade do Estado do Colorado (CSU), Doutor em Recursos
Hídricos pela Universidade de São Paulo com pós doutorado na
Universidade de Cornell, Professor Titular da Universidade Federal do
Ceará.

Sandra Tédde Santaella

Química e Doutora em Saneamento pela Universidade de São Paulo,


Professora Adjunto da Universidade Federal do Ceará.
Sila Xavier Gouveia

Engenheiro Civil pela Universidade Federal do Ceará, Trinta anos de


experiência em consultoria de recursos hídricos em vários estados
brasileiros. É consultor da Secretaria de Recursos Hídricos do Ceará.

Suetônio Mota

Engenheiro Civil pela Universidade Federal do Ceará, Mestre e Doutor


em Saneamento pela Universidade de São Paulo, Professor Titular da
Universidade Federal do Ceará.

Vicente de Paulo Pereira Barbosa Vieira

Engenheiro Civil pela Universidade Federal do Ceará, Mestre pelo


Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, PhD em Planejamento e Gestão de Recursos Hídricos
pela Universidade do Estado do Colorado (CSU), Professor Titular da
Universidade Federal do Ceará.
Sumário
1 - Gestão de Águas: Novas visões e paradigmas 1
Nilson Campos
2 - Políticas das Águas 11
Nilson Campos
3 - O Modelo Institucional 31
Nilson Campos
4 - Planos de Bacias Hidrográficas 48
Nilson Campos e Raimundo Oliveira de Sousa
5 - Gestão da Demanda 63
Ticiana M. de Carvalho Studart e Nilson Campos
6 - Sistemas de Suporte às Decisões 86
Francisco de Assis Souza Filho e Sila Xavier Gouveia
7 - A Cobrança pelo Uso da Água 111
Nilson Campos e Ticiana M. de Carvalho Studart
8 - Gestão Ambiental 127
Suetônio Mota e Marisete Dantas de Aquino
9 - Análise de Risco 150
Vicente de Paulo Pereira Barbosa Vieira
10 - Gestão da Qualidade 165
José Carlos Araújo e Sandra Tédde Santaella
11 - Mercado de Águas 189
Nilson Campos e Larry Simpson
12 - Águas Subterrâneas 201
Marco Aurélio Holanda de Castro
13- O Direito e a Gestão das Águas 216
José Adonis Callou de Araújo Sá e Luciana Ribeiro Campos
14- Conflitos em Gestão de Águas 238
Nilson Campos
Gestão de Águas:
1 novas visões e
paradigmas
Nilson Campos
1.1. AS NOVAS VISÕES DE GESTÃO DE ÁGUAS

As preocupações da sociedade com problemas ligados ao uso e ao


manejo das águas levaram a debates e inovações nas últimas décadas.
Expressões como gerenciamento de recursos hídricos, gestão de águas e
uso racional das águas passaram a fazer parte do dia-a-dia das pessoas e
dos meios de comunicação. Todavia, a maneira de abordá-las, de
entendê-las e, principalmente, de praticá-las varia de pessoa para pessoa
e, mesmo, de técnico para técnico. Apesar das diferenças de
entendimento, há algo novo nascendo na sociedade: a aceitação de que
devemos mudar o modo de tratar os recursos hídricos do planeta,
conservando-os para nosso futuro e para as futuras gerações.

Essa mudança de atitude foi ocasionada por desastres ecológicos que


resultaram em poluição de corpos de água e também da ocorrência de
secas com graves conseqüências para alguns segmentos da sociedade.
Muitos estudiosos passaram a alertar que o modelo de administrar o
recurso água então em prática era insustentável. O aumento da demanda,
acompanhado pelo declínio na qualidade das águas, pode levar, segundo
os mais enfáticos, a uma nova guerra mundial.

O consenso atual é que há uma premente necessidade de novos


paradigmas para racionalizar o uso das águas. Por outro lado, uma
retrospectiva histórica há de mostrar que a busca por uma prática
sustentável de uso da água já era objeto da preocupação de muitos
filósofos. São esses os pontos abordados no presente capítulo: os velhos
e os novos paradigmas de gestão de águas.

1.2. O QUE É GERENCIAMENTO DE RECURSOS HÍDRICOS

Grigg (1996) nos oferece a definição de gerenciamento de recursos


hídricos como sendo a aplicação de medidas estruturais e não estruturais
para controlar os sistemas hídricos, naturais e artificiais, em benefício
humano e atendendo a objetivos ambientais. As ações estruturais são
aquelas que requerem a construção de estruturas, para que se obtenham
controles no escoamento e na qualidade das águas, como a construção de
barragens e adutoras, a construção de estações de tratamento de água etc.
As ações não-estruturais são programas ou atividades que não requerem
a construção de estruturas, como zoneamento de ocupação de solos,
regulamentos contra desperdício de água etc.

A análise da definição de Grigg permite que se identifiquem no processo


de gerenciamento “o sujeito, o objeto e a ação. ” Os objetos da gestão
são os sistemas hídricos, naturais e artificiais. O sujeito é a sociedade
que atua sobre os sistemas hídricos com vistas a atingir seus objetivos.
As ações são as estruturais e não estruturais aplicadas pela sociedade no
meio ambiente, nos corpos de águas e na administração dessas águas.
Por sua vez os sistemas hídricos são formados por estruturas artificiais
de controle e transmissão de águas e por elementos naturais geográficos
que executam as funções de armazenamento e transporte de águas.

2
1.3. RETROSPECTIVA HISTÓRICA NO MANEJO DAS ÁGUAS

“Ciência sem história é como um homem sem memória. Os resultados de


tal amnésia coletiva são medonhos. ” Assim escreveu Collin Russel em
Nature, em 1984. Dentro dessa idéia, apresentamos no primeiro capítulo
deste livro uma breve retrospectiva histórica, com a finalidade de alertar
os leitores para a necessidade de ver, com espírito crítico, o uso das
águas no passado, para planejar bem o futuro.

Quando o tema em análise é gestão de águas, essa abordagem crítica


desempenha papel de grande relevância. Não se pode perder de vista que
a gestão de águas reflete os processos econômicos, políticos e sociais
que ocorrem no âmbito de uma sociedade (Perry e Vanderklein, 1996).
A abordagem apresentada a seguir procura caracterizar o problema da
gestão de recursos hídricos como uma área de conhecimento em
evolução cujos valores variam ao longo do tempo.

1.3.1. A água na Roma antiga

Durante 441 anos, após a fundação da cidade, os romanos se


abasteceram de água através de retiradas diretas no rio Tibre ou de fontes
ou poços. No ano 312 a.C., os romanos iniciaram a construção do
aqueduto Aqua Appia. Quarenta anos depois, foi construído o Anio Vetus
e, em seguida, construíram-se sucessivos aquedutos que formaram uma
complexa rede hidráulica para abastecimento da cidade. Quando o
atendimento da demanda entrava em crise, buscavam-se novas fontes
que tivessem quantidade e qualidade. As pessoas que procuravam essas
novas fontes eram chamadas de caçadores de água e a elas eram rendidas
homenagens. Assim, vieram a existir muitos aquedutos que hoje são
monumentos da Roma moderna.

3
Para gerenciar o sistema assim formado, os romanos foram
gradativamente formulando modelos de organização e estruturas
administrativas. No ano 97 d.C., Julius Frontinus VI foi nomeado
Comissário de Águas de Roma (Curator Aquarum) pelo Imperador
Augustus Nerva. Frontinus tinha sob sua responsabilidade um complexo
sistema de aquedutos que captava água em fontes afastadas e as conduzia
até reservatórios distribuídos ao longo da cidade.

Sob o comando de Frontinus, mais de 700 homens exerciam funções


variadas como as de inspetor geral, engenheiros, registradores de uso de
água, mensuradores, bombeiros, zeladores de reservatórios e outras.

“Os usos das águas eram divididos nas classes: nomine Caesari, privatis
e usus publici. A classe usus publici era subdividida em castra, opera
publica, munera e lacus. As águas nomine Caesari destinavam-se ao
palácio imperial e aos prédios diretamente sob o controle do Imperador.
As águas privati, eram concedidas aos particulares por ato do Imperador
(beneficio principis) e estavam sujeitas ao pagamento de uma taxa. As
águas usus publici, destinavam-se a prédios públicos, a balneários,
instalações militares e para-militares, fontes ornamentais e reservas de
emergência”.

O nosso conhecimento da história da gestão das águas de Roma deve-se


ao legado escrito de Frontinus VI, De aquedutu, o qual tem sido objeto
de muitos estudos e análises. Nota-se nessas análises que muitas
estruturas modernamente utilizadas têm algum tipo de similar no sistema
de gestão de águas da Roma antiga.

1.3.2. A atitude perante a água pós Idade Média

Houve um período na História, que se seguiu à Idade Média, no qual as


pessoas tinham pavor da água. Os hábitos de higiene, como o banho, não
eram praticados com a freqüência hoje recomendada. Para combater o
4
odor, as pessoas recorriam aos perfumes. Essa prática e a sua
racionalização pelo ser humano fizeram que odores fortes gerados por
perfumes fossem tomados como um sinal de prosperidade.

Nesse contexto não houve evolução mais significativa na maneira de


administrar as águas. Somente no final do século XVIII é que os hábitos
de higiene ganharam vulto.

1.3.3. A atitude perante a água pós revolução industrial

Depois da revolução industrial, a rápida concentração de populações em


cidades fez que sérios problemas ligados à qualidade da água passassem
a aparecer. As cidades já não podiam ser abastecidas por fontes em suas
vizinhanças. Por falta de um adequado sistema de esgotamento sanitário,
as águas próximas tornavam-se imprestáveis.

Certamente, essa maneira pouco racional de uso da água é insustentável.


O resultado é o aumento gradativo da poluição e dos custos de obtenção
da água. Como exemplo, o rio Tietê, ao passar pela cidade mais
industrializada do Brasil, São Paulo, torna-se a maior vítima dessa
maneira de “tratar” a água.

1.3.4. O moderno ciclo de uso da água

Modernamente, com o agravamento dos problemas de poluição dos


corpos de água, foram estabelecidos conceitos e técnicas necessários a
um sistema correto de abastecimento das cidades. São eles:
 Captação das águas brutas em rios, poços, lagos, reservatórios
etc.
 Adução das águas brutas da fonte de captação aos pontos de
consumo, através de canais, adutoras, túneis etc.
5
 Tratamento da água bruta para melhorar as características das
águas nos aspectos físico, químico, bacteriológico e
organoléptico, para torná-las próprias para o consumo.
 Distribuição das águas tratadas nos locais de consumo, através
de um sistema de tubulações de distribuição.
 Coleta das águas usadas, esgotos, através de uma rede de
tubulações, para afastá-las para um local seguro.
 Tratamento das águas usadas para atingir o padrão assimilável
pelo corpo receptor final.

Infelizmente, muitas grandes cidades modernas, que cresceram


desordenadamente, continuam com o processo de pós-revolução
industrial. No Brasil, de fato, nenhuma grande cidade é atendida por um
moderno sistema de água, no rigor de sua definição.

1.4. PARADIGMAS DE HOJE, FILÓSOFOS DE ONTEM

Segundo Jean Piaget, o cientista que não passa pela filosofia permanece
portador de uma doença incurável. Considera Piaget a filosofia
indispensável a todo homem completo, “por mais cientista que ele seja.”
Nesse espírito, procurou-se desenvolver na presente seção uma rápida
abordagem histórico-filosófica da gestão da água e dos recursos naturais,
confrontando-se os paradigmas de hoje com o pensamento de filósofos
do passado. Assim, são abordados conceitos “modernos” como
desenvolvimento sustentável, visão holística e a cobrança de água bruta.

6
1.4.1. O desenvolvimento sustentável

A Terra provê o suficiente para a necessidade de todos, mas não para a


voracidade de todos. De alguma maneira, Mahatma Ghandi, famoso
pacifista indiano, ao expressar essas idéias, antecipava o que os
dirigentes dos países desenvolvidos aceitaram, na teoria, ao definirem o
conceito de desenvolvimento sustentável. No livro Nosso Futuro
Comum, o desenvolvimento sustentável é definido como aquele que
atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das
gerações futuras (CMMAD, 1987). Em outras palavras, é o
desenvolvimento no qual o homem procura atender a suas necessidades,
sem a voracidade de consumir o capital ambiental das futuras
sociedades. Como transformar esse discurso em prática é o grande
desafio.

1.4.2. A visão holística

“Primeiramente, queremos ter a visão total de um bosque para depois


conhecer demoradamente cada uma das árvores. Quem considera as
árvores primeiro e somente está dependente delas, não se dá conta de
todo o bosque, se perde e se desnorteia dentro dele.” Este primor de
pensamento filosófico de Hegel, adequa-se muito bem aos conceitos
modernos de visão holística. Embora isto hoje pareça o óbvio, em
passado recente muitos estudos, planos, programas e ações foram
executados de forma totalmente setorial, sem se enquadrarem no
contexto geral. Assim, planos de irrigação não se compatibilizavam com
planos hídricos; planos de grandes obras não se enquadravam nos
projetos econômicos. O resultado desse procedimento fragmentário,
normalmente, são obras inacabadas ou, no pior caso, desastres
ambientais.

7
Dentro dos novos paradigmas, a Agenda 21 recomendou para a década
de 90 e anos futuros, o manejo holístico da água doce, tratada como um
recurso finito e vulnerável, e a integração de planos e programas hídricos
setoriais aos planos econômicos e sociais nacionais.

1.4.3. A cobrança da água bruta

Na China antiga, o Li-Chi estabelecia:

"Na primavera toda a vida começa e as chuvas do


Paraíso caem na Terra, e, portanto, deixem as águas
correrem e irrigarem os campos, nos meses de verão
construam-se barragens e diques e estoque-se água
para uso posterior; (...) nos meses de inverno a vida
cessa e a dureza chega, faça-se a inspeção dos
trabalhos, a coleta de taxas de água e a punição dos
ofensores” (Caponera, 1992).

A determinação mostra que a cobrança pelo uso da água já era praticada


há milênios. Porém é importante contextualizá-la. O texto do Li-Chi, por
exemplo, por certo não colocava a cobrança como um instrumento para
racionalizar o uso da água. Provavelmente, a cobrança a que se referia o
Li-Chi funcionava mais como um instrumento de coleta de impostos
para o Imperador. Modernamente, esse objetivo seria classificado como
instrumento financeiro.

Nesse aspecto, há ainda alguma confusão conceitual. Algumas vezes, à


cobrança tem sido dado tanta ênfase, que há aqueles que defendem que a
mesma seja efetuada em qualquer circunstância e a qualquer usuário.
Afirma-se, porém, no próprio texto da Agenda 21, capítulo 18, item 18.8,
que ao se desenvolverem e usarem os recursos hídricos deve-se dar
prioridade à satisfação das necessidades básicas e à proteção dos

8
ecossistemas e que, satisfeitas essas necessidades, o uso das águas
devem ser pagos com tarifas adequadas.

1.5. RESUMO

Embora muitos segmentos da sociedade ainda sonhem com os caçadores


de água, tão eficientes e produtivos no tempo da Roma antiga, já se sabe
que novas práticas de gestão de águas são extremamente necessárias.
Essas práticas baseiam-se em estabelecimento de medidas de médio e
longos prazos para a proteção e conservação das águas.

Conforme o consenso em encontros internacionais sobre o assunto, essas


medidas devem incluir: 1) uma visão abrangente de planejamento e
gerenciamento que leve em conta os fatores físicos, econômicos, sociais
e ambientais; 2) participação da sociedade nos processos de decisão e
operação; 3) descentralização das decisões para os níveis mais baixos
possíveis; 4) aumento de confiança nas técnicas de gestão da demanda e
5) proteção da qualidade das águas e dos ecossistemas aquáticos
(Moigne et alii, 1994).

É nessa linha que a gestão dos recursos hídricos tem caminhado. Os


profissionais de várias formações trabalham em equipe. A esses
profissionais de visão abrangente destina-se este livro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAPONERA, Dante A. Principles of water law and administration.


Rotterdam, Netherlands: A.A. Balkema Publishers, 1992, 260 p.
COMISSÃO MUNDIAL SOBRE O MEIO AMBIENTE. Our Common
Future. New York: Oxford University Press, 1987, 383p.
FRONTINUS VI, J. De aquaeductu urbis Romae. Reprint. Harvard,
Massachusetts: Havard University Press, 1997, 495 p.

9
GRIGG, NEIL. Water resources management: principles, regulations
and cases. New York: McGraw-Hill,, 1996, 540 p.
MOIGNE, G., SUBRAMANIAN, A., XIE, M., e GILNER, S. A guide
to the formulation of water resources strategy. Washington DC:
World Bank Technical Paper Number 263, 1994, 102 p.
JAPIASSU, Hilton. A revolução científica moderna. De Galileu a
Newton. São Paulo: Letras & Letras, 1997, 284 p.
.

10
2 Política de Águas

Nilson Campos
2.1. VISÃO GERAL DO TEMA

Uma política é definida como um conjunto de princípios e medidas


postos em prática por instituições governamentais ou outras, para a
solução de certos problemas da sociedade. No caso específico da política
de recursos hídricos, os princípios e objetivos referem-se ao uso das
águas, respeitando os objetivos das políticas sociais do País.

Dessa forma, o estabelecimento de uma política de recursos hídricos visa


proporcionar meios para que a água, recurso essencial ao
desenvolvimento social e econômico, seja usada de forma racional e
justa pelo conjunto da sociedade. Entende-se como justa uma política na
qual as necessidades vitais tenham suprimento prioritário sobre os
demais usos. Como racional, entende-se uma política na qual o uso se dá
com parcimônia, sem desperdícios e atendendo aos modernos conceitos
da gestão dos recursos hídricos.

A política de recursos hídricos, como a de qualquer outro recurso, é


formada por: 1) objetivos a serem alcançados, 2) fundamentos ou
princípios sob os quais deve ser erguida, 3) instrumentos e mecanismos
para executá-la, 4) uma lei, ou arcabouço legal para lhe dar a sustentação
e 5) instituições para executá-la e fazer seu acompanhamento
As políticas devem ser moldadas para determinados espaços geográficos
e respeitar as peculiaridades locais. No que se refere ao Brasil, como
uma federação, há estabelecidas várias políticas de recursos hídricos
estaduais e uma Política Nacional. A Política Nacional deve ser
suficientemente geral para abrigar os aspectos que podem ser aplicados a
todos os estados. As políticas estaduais devem respeitar a Política
Nacional e inserir suas peculiaridades. Essas políticas devem também,
por consistência com o princípio da descentralização, deixar para os
comitês de bacias as questões particulares de interesse das diferentes
bacias hidrográficas. Não se pode esquecer que o Brasil é um país
imenso e que nele existem realidades bem distintas nos aspectos
hidrológicos, culturais e econômicos.

O presente capítulo apresenta e comenta os fundamentos, as diretrizes, e


os instrumentos para o estabelecimento de uma política de águas com
base nos textos da Política Brasileira estabelecidos na Lei 9.433/97.
Adicionalmente são feitas análises sobre a aplicabilidade ou não-
aplicabilidade da Lei a esse País de dimensões continentais, que engloba
culturas e ambientes tão diversos.

2.2. PRINCÍPIOS E FUNDAMENTOS DA LEI

A Lei 9.433/97, que dispõe sobre a Política de Nacional de Recursos


Hídricos, estabelece meios legais e direciona a Sociedade Brasileira para
um novo modelo de gestão de águas. A Lei, seguindo os rigores técnicos
para o estabelecimento de uma Política, foi construída sobre os seis
fundamentos a seguir
1. O domínio das águas;
2. O valor econômico;
3. Os usos prioritários;
4. Os usos múltiplos;

12
5. A unidade de gestão;
6. A gestão descentralizada.
Esses fundamentos ou princípios são apresentados e comentados nos
itens subsequentes.

2.2.1. Fundamento I - Do domínio das águas

A Política de Águas Brasileira tem como primeiro fundamento a


assertiva de que a água é um bem de domínio público. De fato, esse
fundamento é uma repetição de um Artigo Constitucional que a Lei não
poderia mudar.

No ponto de vista do Direito, há autores que consideram a repetição de


uma norma constitucional em uma lei totalmente desnecessária. Outros
encaram essa repetição como uma ênfase que se dá ao assunto e que
resulta em uma melhor estrutura do texto.

No estabelecimento de políticas estaduais, muitas leis incorporam o texto


constitucional relativo ao domínio. Se uma nova lei está para ser
formulada e aprovada, a repetição, ou não, do domínio das águas é uma
questão local que deve refletir também a cultura e a política local.

2.2.2. Fundamento II – Do valor econômico da água

A Lei 9.433 estabelece como fundamento que a água é um recurso


limitado, dotado de valor econômico e estabelece a cobrança da água
bruta com os seguintes objetivos: a) reconhecer a água como bem
econômico; b) dar ao usuário uma indicação do seu real valor; c)
incentivar a racionalização do uso da água e d) gerar recursos financeiros
para o financiamento de programas formulados nos planos de recursos
hídricos (Kettelhut et. al., 1999).

13
Até a julho de 2000, todas as leis estaduais consideraram a água como
um bem econômico e estabeleceram mecanismos para viabilizar a sua
cobrança.

Deve ser lembrado que o fato de se adotar esse fundamento na Política


não implica necessariamente que a retirada de águas brutas deva ser
cobrada em qualquer quantidade, em qualquer tempo e em qualquer
lugar. Em vários estados da Federação, como a Amazonas e o Pará, a
água ainda não é um bem escasso. Muitos outros estados têm colocado
limites mínimos de retirada, abaixo dos quais não incide qualquer taxa.
A Lei de Águas do Ceará estabelece esse limite em 2.000 litros por hora.
A Lei Federal isenta de outorga e de pagamento o uso de águas para a
satisfação das necessidades de pequenos núcleos populacionais e as
derivações e captações considerados insignificantes (artigos 12 e 13).

2.2.3. Fundamento III - Do uso prioritário

O terceiro fundamento na Lei de Águas Brasileira estabelece que, em


situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o
consumo humano e a dessedentação de animais.

Esse princípio consta no Código de Águas (art. 36), o qual estabelece


que, quando o "uso da água depende de derivação, em qualquer hipótese,
terá preferência aquela para o abastecimento das populações".

Pode-se dizer que, quanto a este aspecto, a Lei 9.433 é menos rigorosa
que o Código de Águas, pois este é enfático ao estabelecer a prioridade
em qualquer hipótese enquanto que a Lei 9.433 estabelece a condição
em situação de escassez, deixando margem para que se defina em que
situação fica caracterizada a escassez.

Nas leis estaduais, fica definido o uso prioritário pela Lei Federal.
Porém, a hierarquia para os outros usos pode ser definida nos próprios
14
estados ou, quiçá, nas próprias bacias hidrográficas, pelos Comitês de
Bacias. O estado do Ceará adotou em sua lei a seguinte ordem de
prioridade: 1) abastecimento doméstico; 2) abastecimentos coletivos
especiais, como em hospitais, colégios, etc. 3) abastecimentos coletivos
de cidades, inclusive em indústrias, 4) indústrias e comércios por
captação direta; 5) irrigação e 6) outros usos (Decreto 123.067, art. 15).

Uma maneira a ser pensada, seria deixar a decisão da hierarquia inferior


ao consumo humano para os Comitês de Bacias. Há vários motivos para
isto. As prioridades de uso podem variar de região para região e de
tempos em tempos. Uma região agrícola teria certamente, no uso com
irrigação, uma prioridade mais elevada do que no uso industrial. Uma
região mais industrializada, principalmente em épocas de crise de
desemprego, certamente estabeleceria uma escala inversa de prioridades.

Ficaria para as políticas e leis estaduais a decisão de colocar, ou não toda


a hierarquia de prioridades de uso.

2.2.4. Fundamento IV- Dos usos múltiplos das águas

A Política Nacional de Águas estabelece que a gestão dos recursos


hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas. Trata-se de
um princípio de caráter técnico, que tem por objetivo otimizar o
aproveitamento das disponibilidades em água. Na maior parte dos rios e
lagos esse princípio é atendido naturalmente pelas populações
ribeirinhas.

Talvez a palavra sempre esteja forte demais. Pode haver situações de


escassez em que seja necessário adotar um uso prioritário, em detrimento
de todos os demais usos conflitantes. Nessas situações, os usos múltiplos
seriam restritos àqueles que não conflitassem com o uso para consumo
humano (como explicitado no Fundamento III)

15
2.2.5. Fundamento V – Da unidade de gestão das águas

A Lei 9.433 estabelece a bacia hidrográfica como unidade territorial para


a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e a atuação
do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

Em princípio, pode-se observar que a Lei não utilizou explicitamente a


terminologia bacia hidrográfica como unidade de gestão, sempre
presente nos meios técnicos. No modelo francês, no qual se inspirou o
modelo brasileiro, a bacia hidrográfica foi adotada como unidade de
gestão onde se tomam decisões políticas importantes sobre a aplicação
de vultosas quantias de recursos financeiros. O processo de definição dos
comandos político desses comitês passou por uma ampla disputa
política. Resolveu-se que a presidência dos comitês deve ser exercida por
uma autoridade política, como o prefeito de uma das províncias das
bacias. No Brasil, a presidências de alguns comitês de bacia ainda se
encontram nas mãos de técnicos. Isso reflete duas coisas: o processo é
incipiente e ainda não se decide sobre grandes orçamentos.

Não se pode também afirmar que haja uma unanimidade na aceitação do


conceito de bacia hidrográfica como unidade de gestão para qualquer
local. Kemper (1997), reportando-se ao modelo de gestão de águas em
prática no Ceará, concluiu que a experiência local sugere que a bacia
hidrográfica, enquanto unidade de gestão ou de análise pode ser uma
escolha equivocada.

2.2.6. Fundamento VI – Da gestão descentralizada das Águas

O sexto Fundamento da Lei 9.433 estabelece que a gestão dos recursos


hídricos deva ser descentralizada e contar com a participação do Poder
Público, dos usuários e das comunidades. Esse princípio de
administração vem sendo, se não empregado, pelo menos propagado em

16
quase todos os segmentos da administração pública. O fundamento tem
por base a premissa de que não se deve levar a uma decisão superior o
que pode ser solucionado em uma hierarquia inferior.

Como esse princípio sairá da teoria para a prática? Certamente isso só


será possível quando os comitês de bacias tiverem condições plenas de
exercer as funções que lhes são atribuídas pela Lei 9.433. Contudo,
mesmo limitadamente esse princípio vem sendo praticado em alguns
comitês.

A Agência Nacional de Águas (ANA) criou vários programas e


incentivos para que os Comitês de Bacia exercitassem a prática de tomar
decisões no âmbito da bacia hidrográfica. A priorização dos projetos de
saneamento das bacias PCJ (Piracicaba, Capivari e Jundiaí) tem como
base as definições da Deliberação Conjunta dos Comitês PCJ nº 077/07.
Essa deliberação define as regras de hierarquização dos
empreendimentos submetidos para o financiamento com recursos
oriundos das cobranças pelo uso dos recursos hídricos em rios de
domínio da União e dos Estados de São Paulo e Minas Gerais,
localizados nas bacias PCJ (CAMPOS,V. 2012).

2.3. INSTRUMENTOS DE GESTÃO

A Lei 9.433, em seu Capítulo V, define seis instrumentos da Política


Nacional de Recursos Hídricos.

 Os planos de recursos hídricos;

 O enquadramento dos corpos de água em classes;

 A outorga dos direitos de uso dos recursos hídricos;

 A cobrança pelo uso dos recursos hídricos;


17
 A compensação a municípios;

 Os sistemas de informação de recursos hídricos.

2.3.1. Os planos de recursos hídricos

O que vem primeiro, o Plano ou a Política? Esta é uma questão por


vezes argüida por especialistas da área. Esta questão tem origem na
diversidade dos processos de implantação de novas políticas de águas
nos diferentes estados.

Prosseguindo-se, poder-se-ia questionar: como pode ser o Plano, se o


mesmo é um instrumento da Política? Para responder a essa questão,
deve-se recorrer à história do estabelecimento de políticas nacionais e
estaduais.

Examinando a cronologia da formulação das novas políticas de recursos


hídricos, vamos encontrar situações distintas que levam ao
questionamento expresso no início desta seção. Para os estados do Ceará
e São Paulo, precursores nacionais da nova política de águas, o processo
se deu na seguinte ordem:
 Tomou-se a decisão de formular uma nova política de águas;
 Formaram-se grupos para formular um plano estadual de
recursos hídricos;
 Desenvolveram-se os planos estaduais englobando e
documentando a política;
 Formularam-se as leis e ajustaram-se as instituições para a
execução da política.

Muitos outros estados seguiram caminhos semelhantes, porém


considerando suas próprias peculiaridades. Por sua vez, a Política
18
Nacional de Recursos Hídricos teve uma trajetória bem distinta. Talvez,
até, como conseqüência de as unidades federação estarem mais
adiantadas do que a União.

As tratativas políticas resultaram na criação da Secretaria Nacional dos


Recursos Hídricos, como unidade do Ministério do Meio Ambiente. A
Secretaria, usando de suas prerrogativas e com a participação da
sociedade, através da Associação Brasileira de Recursos Hídricos
(ABRH), escreveu uma proposta de Lei, apresentada pelo Poder
Executivo ao Poder Legislativo. A proposta foi relatada na Câmara de
Deputados pelos deputados Fábio Feldman e Aroldo Cedraz e no
Senado, pelo Senador Bernardo Cabral. O resultado foi a promulgação
pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso da Lei 9.433, em 08 de
janeiro de 1997. A Lei instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos
e criou o Sistema Nacional de Recursos Hídricos.

Em um segundo momento, foi iniciado o processo de formulação do


Plano Nacional de Recursos Hídricos, que terminou por não alcançar
seus objetivos, por vários motivos. O Capítulo 4 desse livro discute, com
maior abrangência e profundidade, as formulações dos planos de
recursos hídricos.

Para executar a Política Nacional de Águas a Lei 9.984 de 17 de julho de


2000 criou a Agência Nacional de Águas (ANA). A ANA tem como
missão implementar e coordenar a gestão compartilhada e integrada dos
recursos hídricos e regular o acesso a água, de modo a promover o uso
sustentável em benefício da atual e das futuras gerações.

19
Instituição integrante do Sistema Nacional de Gerenciamento dos
Recursos Hídricos, com o objetivo de implementar a Política Nacional
de Recursos Hídricos.1

2.3.2. O enquadramento dos corpos de água em classes

Não há, nos meios técnicos, consenso quanto a considerar o


enquadramento dos corpos de água em classes como instrumento de
gestão propriamente dito. Considerando-se que o enquadramento dispõe
sobre os padrões de qualidade dos corpos de água, ele poderia ser
classificado como um instrumento. Por outro lado, considerando-se o
enquadramento como um padrão de qualidade que se deseja para o corpo
de água, o mesmo poderia também ser classificado como uma meta
ambiental (Ribeiro, 2000).

Dois são os motivos para enquadrar dos corpos de água em classes: 1)


assegurar que os corpos de água tenham qualidade compatível com os
usos que lhes forem atribuídos; 2) agir preventivamente para reduzir
custos com tratamento de água e combate à poluição (Ribeiro, 2000).
Deve ser observado que, embora a Lei 9.433 utilize o enquadramento
como instrumento de gestão, a competência para enquadramento nas
classes definidas pela Resolução 020/86 CONAMA é dos órgãos
ambientais.

2.3.3. A outorga dos direitos de usos dos recursos hídricos

A outorga é classificada na literatura como um instrumento de Comando


e Controle em que uma cota (porção) das disponibilidades hídricas é
concedida para um dado uso, por um tempo limitado, a determinado
usuário. Os principais objetivos da outorga são assegurar o controle

1
Projeto de Lei Complementar n0 3 de 2.000, submetido à sanção Presidencial
em 28/06/2000.
20
quantitativo e qualitativo dos usos das águas e proporcionar o direito ao
acesso às águas (Ribeiro, 2000).

Duas questões são relevantes no estabelecimento de uma Lei de


Recursos Hídricos: o máximo valor outorgável (volume ou vazão, ou
ambos) e como dividir o racionamento nas épocas de escassez. Essas
decisões são bastantes regionais, pois dependem fortemente do regime
dos rios e de seus controles. Dessa maneira, o estabelecimento de normas
de amplitude nacional para regulamentar a outorga deve ser visto com
muita cautela.

2.3.3.1. A vazão máxima outorgável

Uma das questões centrais na concessão das outorgas diz respeito ao


estabelecimento, ou não, de limites nos totais de outorgas, que podem ser
concedidos em uma determinada fonte hídrica ou em um sistema de
fontes (reservatórios, aqüíferos etc.). Dois tipos de critérios para essa
definição podem ser encontrados na literatura: o da vazão de referência e
o da vazão excedente.

O critério da vazão de referência tem sido o preferido pelos estados do


Nordeste. Normalmente, tem sido adotada como vazão de referência uma
fração, próxima da unidade, da vazão regularizada com 90% de garantia
por reservatórios superficiais.

Nos rios perenes, há preferência por se tomar como vazão de referência a


vazão média mínima de sete dias consecutivos com período de retorno
de dez anos, denotada por Q(7,10).O critério da vazão excedente foi
proposto por Pereira e Lanna (1996) e testado para a bacia dos Sinos, no
Rio Grande do Sul.

21
Outro modo de definir a vazão máxima outorgável é deixar que a área
técnica decida, após análises hidrológicas, decida se um determinado
pedido de outorga deve ser aceito ou não. Esse é o procedimento adotado
pela Secretaria dos Recursos Hídricos do Estado do Ceará.

Em resumo, na formulação de uma Política de Águas, a questão da vazão


máxima a outorgar pode receber vários tratamentos. Sua incorporação à
Lei e à Política deve ser objeto de decisão política local, após análise e
simulações das conseqüências da adoção de qualquer um dos critérios
disponíveis na literatura.

2.3.3.2. Como proceder em épocas de racionamento

A menos que as demandas por água na região em análise sejam bem


inferiores às disponibilidades naturais (por exemplo, às margens do
Tocantins), o estabelecimento de um limite superior para a concessão de
outorgas torna-se recomendável. Todavia, o estabelecimento desse limite
não tem o poder de evitar que haja períodos de escassez no fornecimento
de água quando algum racionamento se torna inevitável.

Nesse ponto, o do início do racionamento, entram em jogo as prioridades


dos diversos usos. Resguardadas as prioridades estabelecidas na Lei
Federal (consumo humano e dessedentação), os estados podem
estabelecer critérios para os demais usos.

Há duas principais linhas que podem ser estabelecidas em leis estaduais:


1) fixação de prioridades na própria Lei e 2) na permissão de que as
negociações, respeitadas as prioridades da Lei Federal, sejam procedidas
no âmbito dos comitês. Não se deve, contudo, perder de vista que a
convivência com um racionamento de águas está sujeita a tantas
variáveis e envolve tantos conflitos, que seria quase impossível
estabelecer em lei um procedimento a ser adotado em todos os casos e

22
em todos os locais. Alguma reflexão e visão local será sempre necessária
para se decidir o que colocar em Lei.

2.3.4. A cobrança pelo uso dos recursos hídricos

A cobrança pelo uso da água como instrumento de gestão pode ser


entendida como dispositivo de aplicação do Fundamento II da Política
Nacional, que vê a água como um bem escasso dotado de valor
econômico.

No Brasil, o processo de cobrança de água bruta, na atual lógica da


Política, está em seus momentos iniciais e ainda há muito a aprender.
Todavia, tem sido dada tanta ênfase à cobrança de águas, que se pode ter
a falsa impressão de que esta é panacéia para os problemas no uso das
águas. A racionalização do uso das águas seria conseqüência da cobrança
como mecanismo econômico (as pessoas consumiriam menos, para
pagar menos). Muitos estudos mostraram que, no atual nível de valor da
água, essa racionalização não tem sido aumentada por conta da cobrança.
Ribeiro (2000) considera que, no Brasil e em outros países, a cobrança
tem sido mais utilizada como mecanismo financeiro.

Há também a questão de que limites e condições devem ser estabelecidos


para que os usuários estejam isentos de cobrança. Muitas das leis em
vigor, no Brasil e no mundo, já estabelecem esses limites.

2.3.5. A compensação a municípios

A compensação a municípios não é um instrumento de gestão de águas


propriamente dito, apesar de assim ter sido considerado na Lei 9. 433/97.
Trata-se de um assunto controverso, com conflitos de interpretação e
duplicidades com o setor elétrico. Como consequência dessas
indefinições, na Sessão V da Lei 9.433, que trata da compensação a
23
municípios, não consta sequer um artigo a respeito. O resultado é um
instrumento de gestão que somente tem o título.

No caso de formulação de novas leis e decretos, a questão de


transferência de água entre bacias hidrográficas distintas merece alguma
análise e deveria ser objeto de algum artigo, não necessariamente rígido,
que não dificultasse as negociações entre usuários. Nesse caso, a
compensação a municípios poderia ser vista mais como um instrumento
de negociação política.

2.3.6. Os sistemas de informação de recursos hídricos

Os sistemas de informação de recursos hídricos são condições


indispensáveis para o gerenciamento das águas. Independente de constar
na Lei, Os avanços na informática e nas comunicações pela Internet
fizeram com que a maioria dos estados brasileiros desenvolvesse Portais
na WEB com disponibilidade de muitas informações em recursos
hídricos. Cuidados especiais devem ser tomados para que não se relegue
a segundo plano a obtenção, em campo, de dados fluviométricos e
climatológicos.

Uma das maiores vantagens desses sistemas está na democratização das


informações. À medida que algumas instituições federais e estaduais
forem avançando na divulgação de informações na Internet, as demais
instituições serão forçadas a adotar a mesma política de informações.

2.4. AS DIRETRIZES

O estabelecimento de diretrizes consta em todas as leis estaduais de


recursos hídricos. A Lei 9.433 traçou as seguintes diretrizes para a
implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos:
1. Gestão integrada qualidade – quantidade;
24
2. Adequação ao ambiente e às culturas;

3. Integração com a gestão ambiental;

4. Articulação com os usuários e diversos níveis de planejamento;

5. Articulação com o uso do solo;

6. Integração de bacias hidrográficas, sistemas estuarinos e zonas

costeiras.

2.4.1. Gestão integrada qualidade – quantidade

A demanda por água se dá por uma dada quantidade, em um


determinado local, em certo tempo e com um grau desejável de
qualidade. A gestão integrada tinha o status de princípio na Carta de
Gramado da Associação Brasileira de Recursos Hídricos (ABRH) e
talvez ainda mereça esse status, tal a sua importância.

Em essência, essa diretriz (ou princípio) é inserida nas políticas de água


e de meio ambiente, visto que a qualidade das águas e o uso e a
ocupação dos solos são fortemente relacionadas. No campo institucional,
qualidade e quantidade muitas vezes estão em diferentes instituições da
administração pública. A gestão da quantidade cabe às Secretarias de
Recursos Hídricos e a da qualidade cabe às secretarias que tratam da
questão ambiental. A ênfase à integração quantidade–qualidade é
importante para a articulação Política Ambiental–Política de Águas.

2.4.2. Adequação aos ambientes e às culturas

A diretriz de adequação aos ambientes e às culturas combina totalmente


com as necessidades de um país imenso como o Brasil. A Lei Nacional

25
deve ser o mais geral possível, contemplando as características comuns a
todo o País. Pode-se dizer também que essa diretriz está relacionada com
o Fundamento VI da gestão descentralizada.

2.4.3. Integração com a gestão ambiental

De alguma maneira essa diretriz engloba a diretriz da gestão integrada


quantidade–qualidade. Mesmo que não houvesse sido inserida na Lei,
representaria uma necessidade para a formulação das políticas de usos de
qualquer que seja o recurso natural. De fato, a mesma representa um
grande desafio para a sociedade e especialmente para os governantes,
legisladores e magistrados. Em geral, os governantes buscam
popularidade através de melhoria nos indicadores de desenvolvimento.
Muitas vezes, o desenvolvimento acelerado resulta do uso intensivo e
não sustentável dos recursos ambientais. Então, a diretriz deve nortear a
busca de um ponto de equilíbrio: usar as águas sem causar grandes danos
ao meio ambiente.

2.4.4. Articulação com os usuários e diversos níveis de planejamento

Talvez uma melhor interpretação dessa diretriz, fosse a de recomendação


de que a participação da população seja aceita e incorporada na tomada
de decisões importantes para a política das águas. Essa diretriz está
ligada ao Fundamento VI que trata da gestão descentralizada. O
instrumento adequado para a prática dessa diretriz está no fortalecimento
dos comitês de bacias.

2.4.5. Articulação com o uso do solo

A ênfase dada ao uso do solo decorre de sua grande influência nos


processos de formação de cheias e de recarga dos aqüíferos. O caos
decorrente das cheias em muitas cidades brasileiras, de dificílima e
26
onerosa solução, deve-se em grande parte ao uso inadequado do espaço
urbano. A grande dificuldade em estabelecer uma política apropriada
para o uso do solo decorre, fundamentalmente, dos interesses
econômicos envolvidos. Quanto mais intensivamente for usado o espaço
urbano, mais valor econômico lhe é agregado. Essa diretriz deve ser
também entendida como um desafio para a sociedade, visto que, embora
seja importante colocá-la no texto da Lei, mais importante e desafiante é
colocá-la em prática.

2.4.6. Integração de bacias hidrográficas, sistemas estuarinos e zonas


costeiras

Essa diretriz ambiental dá ênfase aos sistemas estuarinos e às zonas


costeiras. São sistemas integrados pela natureza que devem ser
considerados na formulação das políticas de uso da água. Nas áreas
urbanas, em especial, muitos manguezais vêem sendo destruídos, ou
intensamente poluídos por uma ocupação irresponsável e predatória. A
colocação de uma diretriz específica para esses sistemas vai ao encontro
de novos paradigmas. Os modernos tratados de recursos hídricos, como
Grigg (1996), Perry e Vanderklein (1996), Harper e Ferguson (1997) e
outros, costumam dedicar um capítulo a esses sistemas.

2.5. RESUMO DO CAPÍTULO

Neste capítulo foi analisado o estabelecimento de uma política de águas


com base em experiências em curso no Brasil. A formulação da Política
Nacional foi tomada como linha central de análise.

Os elementos apresentados podem ser úteis para a análise crítica das leis
existentes, bem como, do ponto de vista técnico, para o estabelecimento
de novas leis, normas e regulamentos para a gestão de recursos hídricos.

27
PARA REFLETIR

 Consulte seu dicionário e veja as definições de princípios,


fundamentos, diretrizes. Leia a Lei de seu estado e a Lei Nacional.
Comente: Você acha que os princípios e diretrizes dessas leis estão
de acordo com as definições que você encontrou?

 Que você entende por adotar a bacia hidrográfica como unidade de


gestão? Firme um conceito e escreva. Depois consulte a Lei
Nacional, a Lei de seu Estado e a atual prática de gestão de águas
adotada. Procure detectar os pontos nos quais seu conceito foi
atendido e aqueles nos quais deixou de ser atendido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Lei Federal nº 9.433, de oito de janeiro de 1997. Institui a


Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional
de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso
XIX do art. 21 da Constituição Federal e altera o art. 1 0da Lei
8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a Lei 7.990, de 28
de dezembro de 1989.
CEARÁ. Lei Decreto nº 23.067 de 11 de fevereiro de 1994.
Regulamenta o art. 40 da Lei 11.996 de 24 de julho de 1992 na
parte referente à outorga do direito de uso dos recursos hídricos,
cria o Sistema de Outorga para Uso da Água e dá outras
providências.
GRIG, N. S. Water resources management: principles, regulations and
cases. New York: McGraw-Hill, 1996,540 p.
HARPER, D. M. e FERGUSON, A. J.D. The ecological bais for river
management. Chichester, England: John Wiley & Sons, 1997, 614
KEMPER, K.E. O Custo da água gratuita: alocação e uso dos recursos
hídricos no vale do Curu, Ceará, Nordeste Brasileiro. Linköping
Studies in Art and Science. – 152. Linköping, 1997, 236 p.
KETTELHUT, J.T.S , RODRIGUEZ, F.A, GARRIDO, R.J., PAIVA, F.
CORDEIRO NETO, O. RIZO, H. Aspectos legais e gerenciais.
28
In: O Estado das águas no Brasil- 1999. Agência Nacional de
Energia Elétrica ANEEL. Brasília,, D.F.
PEREIRA, J.S. e LANNA, A.E.L. Análise de critério de outorga nos
direitos de uso da água. In: III Simpósio de Recursos Hídricos do
Nordeste (Anais). Associação Brasileira de Recursos Hídricos
Salvador, 1996, p. 335-342.
PERRY, J. e VANDERKLEIN, E. Water quality: management of a
natural resource. Massachusetts: Blackwell Sciences, 1996, 639.
RIBEIRO, M.M.R. Alternativa para a outorga e a cobrança pelo uso da
água: simulação de um caso. Porto Alegre. Tese de
Doutoramento, 2000, 196 p.

29
O Modelo
3 Institucional

Nilson Campos

3.1. VISÃO GERAL DO TEMA

A implementação dos novos paradigmas de gestão de águas no Brasil,


em diversos estados da Federação, tem-se dado acompanhada por
mudanças no aparato institucional vigente. Essas mudanças variam desde
as de pequena monta, limitando-se a modificações nas atribuições das
instituições existentes, até as de grande monta, com a criação de
instituições ou mesmo de um sistema específico.

O capítulo apresenta uma sistemática para a formulação de um modelo


institucional de gestão de águas. As etapas da formulação abrangem a
definição das funções hídricas em benefício da sociedade, a organização
dos sistemas institucionais para desempenhar essas funções, o
desenvolvimento de um diagnóstico do quadro institucional vigente e a
formulação e verificação do novo modelo institucional.

3.2. ATRIBUTOS DESEJÁVEIS AO MODELO

No desenvolvimento de um modelo institucional, é essencial o


conhecimento das funções que são desempenhadas e a serem
desempenhadas no segmento de águas, bem como em outros segmentos
da administração pública. Além dos aspectos técnicos, a análise dos
condicionantes políticos também é de fundamental importância. Pouco
adianta conceber um modelo tecnicamente perfeito, porém de pouca
aceitação política.

O sistema institucional deve ser concebido de modo a proporcionar


eficiência na execução das tarefas que lhe são atribuídas. Assim, o
modelo proposto deve ser dotado de alguns atributos que o caracterizem
como um bom modelo. Os três principais atributos de um bom modelo
são apresentados a seguir:

 Consistência com a realidade local, política e financeira;

 Harmonia com as demais funções desempenhadas em outros


segmentos da administração pública;

 Inserção no Modelo Nacional.

Formular um modelo com esses atributos não é algo que possa ser
executado isoladamente por um único profissional. Trata-se, em
essência, de um trabalho de equipe no qual a humildade e a sensibilidade
dos membros que a compõem são fundamentais para o sucesso da tarefa.

3.3. FORMULAÇÃO DO MODELO

Para sistematizar a formulação de um modelo institucional, deve-se


partir de premissas sobre o sistema a ser estruturado e de sua interação
com os demais sistemas da administração pública e com a sociedade. No
presente texto, admite-se que se busca uma nova estruturação do
segmento de águas e que os demais segmentos da administração devem
permanecer sem modificações importantes. Dentro dessa premissa,
concebeu-se uma sistemática de formulação do modelo nas quatro etapas
a seguir discriminadas.

32
 ETAPA 1 – Caracterização das funções no setor hídrico e
identificação das funções dos outros setores da administração
pública. O que é feito? O que deve ser feito?

 ETAPA 2 – Diagnóstico do modelo institucional vigente: Quem faz


o quê? Há duplicidade de funções? Algumas funções importantes
estão sem instituição responsável? Há funções desempenhadas
informalmente?

 ETAPA 3 – Formulação do novo modelo. Quem vai fazer o quê?

 ETAPA 4 – Verificação de homogeneidade entre modelo, princípios


e leis. O modelo proposto atende aos princípios de gerenciamento?
O modelo está inserido no sistema Nacional? O modelo é
politicamente viável?

Esta seqüência foi seguida no Ceará quando da formulação do modelo


institucional em vigência no Estado. O modelo concebido foi
implementado, com pequenas modificações, e vem obtendo sucesso ao
longo de sua aplicação.

3.4. FUNÇÕES E SISTEMAS NO MODELO

A fase inicial de desenvolvimento do modelo é essencialmente


conceitual. Deve-se entender inicialmente que funções devem ser
desempenhadas para o uso racional e sustentável da água. Definidas as
funções, deve-se partir para uma arquitetura abstrata dos sistemas, para o
desempenho competente das funções. Esses são os pontos-chave
abordados nesta seção.

33
3.4.1. Caracterização das funções hídricas

A caracterização das funções desempenhadas, direta ou indiretamente,


para o aproveitamento e controle dos recursos hídricos pode ser feita
segundo várias classificações. Apresenta-se, neste texto, a classificação
adotada no Plano de Recursos Hídricos do Ceará (SRH, 1992), o qual se
baseou em modelos propostos e pela no Plano Integrado de Recursos
Hídricos do Nordeste (SUDENE, 1980) e por Barth e Pompeu (1987).

Foram definidas e caracterizadas cinco funções principais, com as


respectivas subfunções, a seguir descritas e esquematizadas, na Tabela
3.1. Essas grandes funções são: gestão, oferta, uso e preservação.

3.4.1.1. A gestão

Em sentido amplo, a gestão das águas é definida como o conjunto de


procedimentos organizados no sentido de solucionar os problemas
referentes ao uso e ao controle dos recursos hídricos. O objetivo da
gestão é atender, dentro das limitações econômicas e ambientais e
respeitando os princípios de justiça social, à demanda de água pela
sociedade a partir de uma disponibilidade limitada. A gestão é formada
por três subfunções: o planejamento, a administração e a
regulamentação.

O planejamento é constituído pelo conjunto das atividades necessárias à


previsão das disponibilidades e das demandas de águas, com vistas a
maximizar os benefícios econômicos e sociais. O planejamento consta
das atividades: inventário dos recursos hídricos, estudo da qualidade das
águas, estimativa das demandas, estudos prospectivos do balanço oferta
x demanda, e da avaliação e controle do próprio planejamento.

34
Tabela 3.1 – Funções do sistema de gestão de água e demais sistemas,
consideradas no Plano de Recursos Hídricos do Ceará.
FUNÇÕES
Planejamento
GESTÃO Administração
Regulamentação
Nucleação artificial
Represamento
OFERTA Poços
Cisternas
Abastecimento
Irrigação
CONSUNTIVO Abastecimento industrial
U Aqüicultura
Abastecimento urbano
S Geração hidrelétrica
Navegação fluvial
O NÃO CONSUNTIVO Lazer
Pesca e piscicultura
extensiva
Assimilação de esgotos
PRESERVAÇÃO
Ciência e tecnologia
Meio ambiente
COMPLEMENTARES Planejamento global
Incentivos econômicos
Defesa civil
A administração constitui-se das ações que dão suporte técnico ao
planejamento e dos mecanismos de avaliação da efetividade dos planos
anteriores, tendo em mente uma realimentação dos futuros planos. A
administração engloba a coleta e a divulgação de dados hidro-
meteorológicos, as estatísticas do uso da água, o poder de política
administrativa e a programação executiva e econômico-financeira das
obras previstas nos planos.

35
A regulamentação é formada pelas ações desenvolvidas na formação de
um suporte legal para o desempenho da gestão das águas, a partir do
disciplinamento e normatização do funcionamento do Sistema Estadual
de Recursos Hídricos. A regulamentação se consolida através de
sugestões de leis, decretos, portarias, instruções e regulamentos.

3.4.1.2. A oferta

A gestão das águas, pelo lado da oferta, dá-se no sentido de aumentar as


disponibilidades hídricas através da ativação das potencialidades. Assim,
classificam-se como funções da oferta as diversas ações, em obras ou
serviços, através das quais a água se torna disponível para utilização no
tempo e no local onde ocorre a demanda. A função oferta compreende a
construção de barragens para a formação de reservatórios, a perfuração e
recuperação de poços, a captação de águas em lagos naturais, a captação
de águas da chuva através de cisternas, etc.

3.4.1.3. O uso

A gestão dos usos das águas, também denominada gestão da demanda,


dá-se no sentido de utilizar, da melhor maneira possível, as
disponibilidades hídricas viabilizadas pela oferta. Classificam-se como
funções do uso, o conjunto de ações necessárias para que a água se torne
efetivamente útil aos homens, às plantas, aos animais e às paisagens. O
uso acontece sob duas formas: o consuntivo, que ocorre quando há
perdas, derivação ou consumo, havendo diferença entre o que é derivado
e o que retorna ao corpo d’água; o não-consuntivo, quando não há
consumo, derivação ou desperdício da água. São basicamente usos nos
corpos de água.

36
Os usos consuntivos envolvem: o abastecimento rural, a irrigação, a
aquicultura, o abastecimento industrial e o abastecimento humano.
Dentre os usos não-consuntivos, estão: a geração hidrelétrica, a
navegação fluvial, o lazer, a pesca e piscicultura extensiva, e a
assimilação de esgotos. Vale ressaltar que a assimilação de esgoto,
embora não implique em consumo real de água, pode tornar as águas
imprestáveis para os usos mais nobres.

3.4.1.4. A preservação

Engloba as ações preventivas e corretivas voltadas para garantir o correto


escoamento das águas, evitar a erosão do solo, promover a manutenção
da vegetação e a implantação de novas áreas verdes. As ações de
preservação também criam barreiras que impedem ou reduzem a
poluição de fontes de água.

3.4.1.5. As funções complementares

São formadas essencialmente pelas ações de suporte ao funcionamento


do setor hídrico. Constituem atividades de apoio como o treinamento
para capacitação de pessoal técnico, o desenvolvimento de pesquisas, a
orientação técnica dos produtores usuários de água; o aparelhamento,
com máquinas, laboratórios e aeronaves, para a realização de serviços e
obras das diversas funções e o financiamento, antecipando receita para as
instituições públicas e privadas no desempenho das funções hídricas.

3.4.2. Os sistemas

Para executar ou fazer executar as funções hídricas, são organizadas


instituições, que podem ser agrupadas em forma de sistemas.
Tradicionalmente, os sistemas são agrupados em secretarias (ministérios,
37
na esfera federal). Geralmente, as secretarias são instáveis, visto que
sempre estão sujeitas a pressões políticas. Não é fato raro, a criação e
extinção de várias secretarias em um único mandato de governo. Além
do mais, como já foi comentado, o modelo proposto procura ver os
sistemas de dentro para fora, sendo a formulação do modelo abstrato de
sistemas importante para o processo de interação do sistema de gestão
com os demais sistemas.

No presente documento, de natureza técnica e didática, os sistemas são


agrupados por afinidades de funções. A classificação empregada seguiu
o modelo da ABRH, que consiste no agrupamento das instituições em
três sistemas:
 Sistema de gestão;
 Sistemas afins;
 Sistemas correlatos.

A prática mostra que dificilmente esses sistemas podem ser puros. Isto é,
muitas vezes uma instituição do sistema de gestão desempenha funções
de outros sistemas, da mesma forma que instituições de outros sistemas
por vezes desempenham funções do sistema de gestão. Na formulação
conceitual, os sistemas devem ser agrupados por suas funções mais
importantes.

3.4.2.1. O sistema de gestão

É formado pelas instituições que desempenham a função gestão, através


das funções de segundo nível – planejamento, administração e
regulamentação. Admite-se que o comando do sistema de gestão seja de
uma única instituição, denominada Órgão Gestor. As demais instituições
componentes do sistema desempenham a função de gestão delegada pelo

38
Órgão Gestor. Entende-se que o sistema de gestão deve ter as seguintes
atribuições:
 Promover a articulação institucional e comunitária no âmbito
estadual;
 Formular políticas de água, preservação e saneamento;
 Promover a articulação com órgãos municipais;
 Elaborar planos plurianuais de investimento (serviços,
equipamentos e obras hídricas);
 Estabelecer critérios para a outorga de águas públicas estaduais;
 Estabelecer normas e critérios para a construção de açudes em
rios de domínio estadual;
 Executar as funções de planejamento, administração e
regulamentação;
 Gerenciar as reservas hídricas, superficiais e subterrâneas.

3.4.2.2. Os sistemas afins

Esse conjunto se compõe dos sistemas que desempenham as funções


oferta, utilização e preservação dos recursos hídricos. Englobam sistema
de oferta, o sistema de utilização e o sistema de preservação.

O sistema de oferta é formado pelas instituições com competência para


desempenhar a função oferta. As atividades de Planejamento da própria
função, como projeto executivo de barragens, devem ser executadas no
âmbito desse sistema. São suas atribuições:
 Projetar e executar obras de represamento e de captação de
águas subterrâneas;

39
 Projetar e executar obras de transferência de água entre bacias
hidrográficas;
 Desempenhar suas atribuições, no que couber, dentro dos
princípios e normas oriundos do Sistema de Gestão.

O sistema de utilização contempla as instituições que desempenham


formalmente as funções de usos de água e tem na água um fator
importante de produção. A esse sistema compete:
 Projetar e construir obras de irrigação, abastecimento urbano,
rural e industrial, aquicultura, etc.;
 Administrar, na condição de usuário, as águas concedidas pelo
sistema de gestão;
 Desempenhar funções, dentro do que couber, conforme os
princípios e normas oriundos do Sistema de Gestão.

O Sistema de preservação é formado pelo conjunto de instituições que


desempenham a função preservação. São atribuições desse sistema
 Elaborar o zoneamento de uso dos solos;
 Proteger os mananciais usados como fonte de abastecimento de
água;
 Desenvolver programas educativos da população;
 Executar suas atribuições, no que couber, em consonância com a
política delineada pelo Sistema de Gestão.

3.4.2.3. Os sistemas correlatos

Essa designação abrange o conjunto de sistemas que, embora não-


associados a recursos hídricos diretamente como área de atuação,
40
desenvolvem atividades que interagem com os sistemas afins e de
gestão. São definidos como correlatos os seguintes sistemas:
Planejamento e Coordenação Geral; Incentivos Econômicos e Fiscais;
Ciência e Tecnologia; Defesa Civil e Meio Ambiente.

O sistema de Planejamento e Coordenação Geral é formado por


instituições que cuidam do planejamento e coordenação geral da ação do
Estado (basicamente a Secretaria de Planejamento – SEPLAN). Executa
as atividades de:
 Planejamento do desenvolvimento estadual;
 Orçamento público;
 Acompanhamento, controle e avaliação dos planos, programas e
projetos governamentais.

O Sistema de Incentivos Econômicos e Fiscais é composto por


instituições que, através de incentivos econômicos e fiscais, procuram
induzir o desenvolvimento do Estado. Esse sistema desenvolve
atividades ligadas a recursos hídricos, através do incentivo a projetos de
desenvolvimento hidroagrícola, projetos agro-industriais, etc. As
atividades executadas são:
 Planos de investimento em empreendimentos de
aproveitamentos múltiplos dos recursos hídricos;
 Planos de desenvolvimento industrial com base em
disponibilidade de água e potencial de poluição das indústrias.

O Sistema de Ciência e Tecnologia é formado por instituições que lidam


com a capacitação de recursos humanos e o desenvolvimento de
conhecimentos e tecnologias para o Estado. Atribuem-se a esse sistema
as seguintes atividades:
 Formação e especialização de recursos humanos;
41
 Desenvolvimento de pesquisas na área de recursos hídricos;
 Desenvolvimento de tecnologia para prospecção, captação, uso,
conservação e controle de recursos hídricos.

O Sistema de Defesa Civil lida com o socorro e assistência à população


em situações de calamidade. Parte destas situações advém de excesso ou
falta de água, isto é, da ocorrência de enchentes e secas, por isso há forte
interligação entre o Sistema de Gestão e o Sistema de Defesa Civil. A ele
competem as atividades de:
 Instalação de uma rede de alerta contra as cheias;
 Programas de assistência às populações atingidas por cheias ou
secas.

O Sistema do Meio Ambiente atua na preservação do meio ambiente


com vistas, em última análise, à preservação dos seres vivos. A água é
assumida como elemento vital, devendo ter, portanto, sua qualidade
preservada de acordo com os padrões requeridos para os usos a que se
destina. Por outro lado, o Sistema de Gestão considera a água um bem a
ser utilizado para múltiplas finalidades, inclusive para o
desenvolvimento econômico. Em uma visão mais abrangente, não
deveriam existir interesses conflitantes entre os dois sistemas, porquanto
a boa qualidade da água, objetivo do Sistema de Gestão, depende
fortemente do uso correto do meio ambiente. Além do mais, é muito
difícil estabelecer uma fronteira bem definida entre os dois, no sentido
de que qualidade e quantidade de água são indissociáveis. Do ponto de
vista institucional, cabem ao Sistema do Meio Ambiente as seguintes
atividades:
 Estabelecimento dos padrões de qualidade das águas de acordo
com o usos a que se destina;

42
 Fiscalização da qualidade das águas em rios, reservatórios e no
subsolo.

3.4.2.4. A interação entre os sistemas

Para que a água possa ser utilizada e controlada em níveis satisfatórios


de quantidade e qualidade, seja pela geração atual, seja pela geração
futura, são necessários mecanismo de planejamento e gerenciamento
integrado, descentralizado e, sobretudo, participativo. Essa filosofia
norteou a instituição de um Sistema Integrado de Gestão dos Recursos
Hídricos para o Ceará, o SIGERH.

Esse Sistema Integrado constitui um dos instrumentos da Política


Estadual de Recursos Hídricos e, na medida em que impõe mudanças
significativas de postura daqueles envolvidos com a utilização, proteção,
conservação e recuperação de água, sua consolidação associa-se a um
processo político e social.

3.5. DIAGNÓSTICO DO MODELO VIGENTE

Definidas as funções e os sistemas institucionais que as desempenham, a


etapa seguinte deste trabalho consiste em estabelecer um diagnóstico de
como essas funções estão sendo executadas no âmbito da unidade da
Federação onde se planeja estabelecer uma nova política de águas.

Dois procedimentos devem ser seguidos no estabelecimento dessa


Matriz: 1) Uma pesquisa documental nos regimentos das instituições do
Estado; 2) Entrevistas aos dirigentes e funcionários das instituições.
Quatro condições ao desempenho das funções devem ser pesquisadas:
 A instituição é formalmente competente para o desempenho da
função e a desempenha;
43
 A instituição é formalmente competente para o desempenho da
função, porém não a desempenha;
 A função não é competência formal de qualquer instituição,
contudo é desempenhada por uma dada instituição;
 A função não é competência formal de qualquer instituição e
não é desempenhada (há demanda da sociedade pelo função).

Forma-se então uma matriz de análise e procura-se identificar distorções


que devem ser corrigidas e/ou carências que devem ser supridas.

Além da avaliação da execução das funções, é necessário que se faça


uma avaliação dos recursos humanos disponíveis, em quantidade e em
especialidade, para a execução das funções. O quadro de recursos
humanos deve ser feito dentro dos sistemas de gestão e dos sistemas
afins.

3.6. FORMULAÇÃO DO NOVO MODELO

Em essência, a formulação de um novo modelo institucional consiste em


projetar a nova matriz institucional livre, dentro do possível, de atributos
indesejáveis aos bons modelos.

Deve-se ter em mente, durante o desenvolvimento do novo modelo, que


o processo de mudança institucional interfere com vários segmentos do
setor público e da sociedade em geral. Nesses processos, uma discussão
prévia de propostas com os setores interessados deve facilitar o seu
andamento.

Na hipótese de criação de novas instituições, deve-se proceder a um


projeto completo da nova instituição, definindo um estatuto, avaliando os
recursos humanos necessários, os custos de capital e operacionais da
44
nova instituição e as possibilidades de captação de recursos financeiros
através da tarifa da água bruta.

A etapa subsequente ao projeto da matriz é o esboço de uma minuta de


um decreto do executivo para ser submetido à apreciação da Assembléia
Legislativa. Somente após a aprovação na Assembléia Legislativa e a
sanção pelo Governador do Estado é que o novo modelo entra
legitimamente em vigor.

3.7. TESTES DO MODELO INSTITUCIONAL

O modelo institucional deve ser submetido a três tipos de teste:


 O de consistência;
 O de viabilidade política;
 O de execução

No primeiro, a ser procedido na etapa final de formulação, deve-se


verificar se o modelo proposto está de acordo com os princípios e os
paradigmas que o fundamentaram. Alguns questionamentos podem ser
feitos. Por exemplo: Será que as ferramentas propostas pelo modelo
atendem ao princípio da descentralização? Será que o modelo realmente
adota a bacia hidrográfica como unidade de gestão? Esse teste, em
essência, é um teste da harmonia entre discurso e prática.

O segundo teste depois da formulação do modelo se dá na instância


parlamentar. Nessa instância, o modelo, ou parte dele, transforma-se em
um Projeto de Lei e enfrenta o teste de viabilidade política. O Projeto
será relatado por um Deputado, que certamente terá a vontade de
contribuir com o processo e a aptidão para fazê-lo. A equipe técnica que
o formulou deve estar preparada para aceitar e negociar modificações.
Nas negociações deve-se sempre tentar preservar a consistência entre o

45
modelo e seus fundamentos. Se um fundamento, considerado essencial
na esfera técnica, não é aceito na esfera política, deve-se tentar excluir da
Lei todos os artigos justificados por aquele fundamento. Uma boa Lei
resultará sempre como produto de um bom projeto e uma sábia
negociação entre técnicos e políticos.

O terceiro e mais decisivo teste se dá na fase de aplicação. Nessa fase, o


modelo, já transformado em Lei, deverá ser aplicado e, se for bom,
propiciará o uso mais racional da água, considerando-se a função social
da mesma. O acompanhamento da aplicação do modelo permitirá futuros
ajustes que o tornarão ainda melhor e mais adaptado ao meio para o qual
foi concebido.

3.8. A IMPLANTAÇÃO DO MODELO DO ESTADO DO CEARÁ

Foi desenvolvido, em sua primeira versão, de 1988 a 1992, por uma


Empresa de Consultoria (AGUASOLOS) contratada pela Secretaria dos
Recursos Hídricos do Ceará. A metodologia de trabalho consistiu na
formulação de relatórios e propostas elaborados pela empresa consultora,
que eram levados a cada 15 dias para debate com professores da
Universidade Federal do Ceará e técnicos da SRH. Houve consenso que,
para o desenvolvimento das funções de gerenciamento dentro da nova
política, seria necessária a criação de uma nova instituição. Houve
também consenso que naquele momento era politicamente inviável a
criação de um novo órgão público. Foram formuladas alternativas com
as funções de gestão atribuídas a uma instituição fictícia que recebeu o
nome de Órgão Gestor.

Em um segundo momento, foram articuladas ações com outras


secretarias setoriais, e o modelo ganhou viabilidade financeira e política
ao ser incorporado a um programa financiado pelo Banco Mundial,
denominado PROURB, envolvendo ações urbanas e hídricas. Nesse
46
novo contexto, foi criada pela Lei no 11.996 de 24 de julho de 1992
Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Ceará (COGERH) com
a missão de implantar o sistema de gerenciamento de oferta das águas de
domínio estadual.

3.9. CONCLUSÕES

O capítulo apresentou uma seqüência de fundamentos e etapas para o


desenvolvimento de um bom modelo institucional. A seqüência e os
princípios apresentados devem ser entendidos como uma linha mestra
em torno da qual se poderá desenvolver um bom modelo.

Um dos pontos fundamentais enfatizados no capítulo diz respeito ao


estabelecimento dos fundamentos que servirão de base para o modelo e
dá consistência entre o modelo projetado e estes fundamentos. No caso
de um modelo, adaptado ao novo paradigma do desenvolvimento
sustentável, não é válida a máxima se queres paz, prepara-te para a
guerra. Nesse caso, o mais apropriado seria: se queres um
desenvolvimento sustentável, preparas a Sociedade para usar seus
recursos naturais com parcimônia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTH, F.T. Fundamentos para a gestão de Recursos Hídricos In:


Modelos para Gerenciamento de Recursos Hídricos. IN: Coleção
ABRH de Recursos Hídricos vol.1. Associação Brasileira de
Recursos Hídricos. Porto Alegre, 1987.
SUDENE. Plano Aproveitamento Integrado dos Recursos Hídricos do
Nordeste do Brasil . Recife, Pernambuco, 1980.

47
Planos de Bacias

4 Hidrográficas

Nilson Campos e
Raimundo Oliveira de Sousa
4.1. VISÃO GERAL DO TEMA

As idéias de planejamento são largamente discutidas hoje em dia.


Discute-se planejamento em educação, em economia, em ciências e
tecnologia e, como no presente capítulo, em recursos hídricos. As
definições de planejamento usadas em uma área de conhecimento são
plenamente aplicáveis em outras áreas. De uma maneira geral, o
processo de planejamento busca mudar, ao menor custo possível, de um
cenário tendencial para um cenário desejável. Uma definição de
planejamento é dada por Dror (1968): “É o processo que consiste em
preparar um conjunto de decisões tendo em vista agir, posteriormente,
para atingir determinados objetivos”.

Nessa visão, o planejamento é a busca do melhor caminho para se atingir


determinados objetivos. Por sua vez, um plano é um documento que
materializa, em textos, um planejamento, e viabiliza sua materialização
em termos de ações. Os planos podem ser temáticos e ter uma maior ou
menor abrangência espacial. Assim, têm sido formulados planos
estaduais, planos de bacias, e está ainda em formulação um Plano
Nacional.
Neste capítulo, são abordadas as regras para o estabelecimento de um
bom Plano e as características dos planos de bacias hidrográficas nos
modelos americano, francês e brasileiro.

4.2. ONZE REGRAS PARA UM BOM PLANO

Muitos têm sido os planos desenvolvidos no mundo e no Brasil que, por


falta da observação de alguns detalhes técnicos, terminam por se destinar
às prateleiras e aí permaneceram por muitos e muitos anos, ressuscitando
somente como referência em outros planos.

O aumento da complexidade da Sociedade e das intervenções no


ambiente tornaram indispensáveis modificações no processo de
planejamento. Um painel de engenheiros da American Society of Civil
Engineers (ASCE) sugeriu onze regras básicas para a elaboração de um
bom plano que são apresentadas e discutidas a seguir.

Ser um documento que, sem dúvidas, é um Plano. Um documento, para


ser um plano, deve conter objetivos alcançáveis, e conter cursos de ações
alternativas para atingir esses objetivos.

Estabelecer os objetivos e metas de forma clara. Um bom plano deve


apresentar de forma clara e sucinta os objetivos e as metas que se espera
atingir com sua implementação.

Cobrir uma área racional de planejamento. A área de planejamento


deve ser ampla o bastante para tirar vantagem das oportunidades e das
economias de escala, mas, por outro lado, não deve ser mais ampla que o
necessário.

Ter o nível de detalhe adequado para ajustar-se ao tipo de ação


proposta. O nível de detalhe apresentado para as ações propostas deve
ser compatível com as dimensões dessas ações. Medidas propostas para
50
as ações estruturais como as referentes a reservatórios e sistemas de
transmissão de água devem ser desenvolvidos esquematicamente, com
dimensionamentos preliminares que permitam uma avaliação de custos.
Para ações não-estruturais, como programas de conscientização, o nível
de detalhamento deve chegar ao de um anteprojeto. Para ações de
organização, como as destinadas ao desenvolvimento de bases de dados,
pode-se chegar ao desenvolvimento dos termos de referência para a
contratação das mesmas.

Ajustar-se ao planejamento multi-setorial. Um bom Plano deve ajustar-


se aos outros de atividades sócio-econômicas desenvolvidos em áreas
correlatas como saneamento básico, conservação ambiental, irrigação e
drenagem, geração de energia, controle hidrológico - manejo de bacias e
controle de inundações, transporte fluvial; turismo e lazer e outros.

Apresentar vantagens e desvantagens das alternativas propostas. As


alternativas devem não somente ser identificadas. Elas devem ser
analisadas com vistas à apresentação de suas vantagens e desvantagens e
facilitar a tomada de decisão pelos setores competentes.

Alocação eqüitativa dos recursos. Um bom Plano deve informar quais


são os recursos necessários para sua implementação e como eles devem
ser usados. Essa apresentação irá incorporar informações confiáveis,
compatíveis com nível de planejamento, sobre os custos diretos e
indiretos envolvidos, sobre os benefícios econômicos, sobre as
consequências intangíveis, apresentado um quadro detalhado que indique
como os recursos disponíveis e possíveis de captar podem ser alocados.

Ter um balanceamento apropriado para adequar-se às incertezas. A


grande defesa contra as incertezas, inerentes a todos os planejamentos de
médio e longo prazo, deve ser o desenvolvimento de um plano bastante
flexível que possa ajustar-se a futuras condições sem grandes perdas ou
traumas. Essa flexibilidade pode ser conseguida analisando-se as ações
51
de planos anteriores, planejando-se ações para atender as necessidades de
horizonte curto e mantendo-se algumas opções para atender às
necessidades de horizonte longo. Grandes alocações de recursos hídricos
de difícil revogação devem ser evitadas, quando se dispuser de
alternativas mais flexíveis viáveis. Na matriz de alternativas com as
vantagens e desvantagens das linhas de ação propostas, a análise do
horizonte de comprometimento a alocação dos recursos hídricos e da
rigidez dessas alocações será incorporada.

O plano deve ser implementável politicamente, tecnicamente,


financeiramente e legalmente. No Brasil e no mundo, muitos são os
planos que foram desenvolvidos e se acumularam em prateleiras, por
falta de atendimento de somente um dos quatros condicionantes
relacionados. O que se propõe é que todas as grandes linhas de ação
propostas sejam avaliadas em suas viabilidades políticas, técnicas,
financeiras e legais.

O plano de ser desenvolvido com o adequado envolvimento público. O


processo de planejamento moderno requer que haja participação das
populações envolvidas desde os estágios iniciais. Uma das maneiras de
proceder este envolvimento é a discussão com vários públicos durante o
desenvolver do plano. Os comitês de bacia, previstos no art. 37 da Lei
Federal 9.433, poderiam ser foros adequados para a discussão.

O plano deve ter uma boa base técnica. Para que o plano possa definir
programas e projetos tecnicamente apropriados, é necessário que haja
uma boa base de dados e uma avaliação adequada dos planos anteriores.
Propõe-se iniciar o processo com a compilação e ordenação dos dados
existentes, caracterizando convenientemente o sistema físico, os recursos
hídricos e a qualidade ambiental. Um bom plano deve apresentar
considerações sobre a futura operação e um planejamento de um sistema
de gerenciamento e monitoramento de sua execução.

52
4.3. OS PLANOS DE BACIA NO MODELO AMERICANO

O planejamento dos recursos hídricos nos Estados Unidos é tão remoto


quanto a História daquele país. No início esses planos eram
desenvolvidos para atender a uma única aplicação dos recursos hídricos.
Naquela época, a água era vista como um agente de desenvolvimento e,
em conseqüência, requeria uma política nacional para sua utilização.

Assim, ao longo do século XX, foram criadas várias agências nacionais,


as quais ficaram responsáveis por atividades específicas no contexto do
planejamento dos recursos hídricos. Dentre elas, pode-se destacar o
Corps of Engineering, responsável pelas construções e operações de
obras de engenharia tais como estruturas portuárias, barragens, e obras
hidráulicas para controle de enchentes; o Bureau of Reclamation,
responsável pelo atendimento dos programas destinados aos projetos de
irrigação, bem como toda infra-estrutura necessária para atender a esta
finalidade; a Environmental Protection Agency, responsável pelos
programas de proteção ambiental e outras, como a U.S. Geologic
Survey; o Soil Conservation Service e a Tennessee Valley Authority.

Por outro lado, em 1965, o Congresso dos Estados Unidos aprovou uma
resolução que tratava, especificamente, do estabelecimento de normas
para o gerenciamento dos recursos hídricos naquele país, contidas no
Water Resources Planning Act, confeccionado nesse mesmo ano.965. A
resolução, dividida em três títulos, tinha como principais objetivos:

 Criar o Conselho de Recursos Hídricos, com a competência de


formulação de princípios, padrões de uso e procedimentos de uso da
água pelas as agências federais;

 Criar comissões de grandes bacias, cujos membros eram compostos


pelo Governo e pelo Estado. Membros. Estas comissões permitiam

53
que os estados e o governo federal dividissem responsabilidades, na
busca de meios para a implementação de um plano;

 Criar programas federais de concessões, os quais permitiam que os


estados aumentassem suas capacidades, para atuar como
coordenadores desses planos, incluindo o desenvolvimento de uma
diretoria que poderia trabalhar junto às agências federais.

O Conselho de Recursos Hídricos teve um papel fundamental na criação


de programas de desenvolvimento regional, pois promoveu a criação e o
fortalecimento de comissões e comitês de bacias, nos níveis estadual e
municipal, além de ter o papel de providenciar financiamentos para os
estados que tinham programas de planejamento bem definidos. O
Conselho preparava, em nível nacional, avaliações periódicas das
atividades hídricas no país; estabelecia princípios, padrões de uso e de
qualidade e criava procedimentos para projetos de natureza hídrica, além
de monitorar os planos de bacias. Aos estados, ficava a função de tratar
de programas, tanto de interesse interno como de interesses
interestaduais.

As Comissões de Grandes Bacias, por sua vez, tinham como metas


básicas coordenar os planos de uso de água, bem como manter uma ativa
coordenação local para o controle desses usos.

O planejamento de bacias de longa escala tem um nível de complexidade


muito grande, causada por problemas políticos interinstitucionais. De
uma forma natural, um rio nada mais é do que uma unidade. Porém, nas
normas para planejamento de uma bacia, esta mesma unidade pode ser
dividida em várias unidades, de acordo com os interesses políticos
locais. Desta forma, pode-se dizer que é muito difícil definir um arranjo
organizacional que otimize um planejamento integrado de bacias.

54
Com a extinção do Conselho de Recursos Hídricos, nos anos 80, os
estados passaram a desenvolver suas próprias políticas de água, com a
participação de corporações privadas. Assim, estados como Califórnia,
Colorado, Arizona e Texas desenvolveram seus próprios departamentos
de recursos hídricos, responsáveis pelos planejamentos dos projetos
pertinentes a esta matéria. A título de exemplo, pode-se citar o caso da
Califórnia. Naquele estado, o Plano de Recursos Hídricos é um dos mais
significativos, dentro dos planos não-federais existentes nos Estados
Unidos. Este plano tem como metas a identificação das necessidades de
água; programas para transferência de água, em grande escala;
regionalização; construção de represas; construções de reservatórios;
construções de canais, e outras. Para ilustrar, os grandes mananciais da
Califórnia se encontram no norte do estado, enquanto que as grandes
populações se encontram concentradas no sul do estado. Este fato leva à
necessidade do desenvolvimento de planos de gerenciamento hídrico.

Outro exemplo de plano não federal que tem dado certo é o Projeto Big
Thompson, no estado do Colorado. Este Projeto, formado por um
conjunto de reservatórios e estruturas hidráulicas, transfere água da costa
Oeste para a costa Leste das Montanhas Rochosas, atendendo a uma
enorme parcela populacional, distribuída em 23 cidades. A
administração do Projeto Big Thompson envolve o Bureau of
Reclamation, no nível federal, agências estaduais de água e usuários de
água, além de grupos de interesses, o que mostra a participação de todos
os segmentos da Sociedade no gerenciamento do programa.

Hoje, pode-se dizer que o governo federal participa dos planos estaduais
de forma muito tímida. Sua participação é limitada em função da escala
de valores e comprometimento que cada projeto requer. As agências
nacionais têm como função prestar consultorias e o exercer o controle
direto da legislação nacional, ficando a tomada de decisão, quase
sempre, para os níveis estadual e municipal, através dos comitês locais.

55
4.4. OS PLANOS DE BACIA NO MODELO FRANCÊS

Para atender ao fundamento de um planejamento plurianual


participativo, foram estabelecidos na França vários instrumentos de
gestão, dentre os quais devem ser destacados os seguintes:

Planos Diretores de Aproveitamento e Gestão de Água (SDAGE -


Schémas Directeurs d'Aménagement et de Gestion des Eaux Esses
planos, executados em nível de bacias hidrográficas, fixam as
orientações fundamentais para a gestão equilibrada da água e definem os
objetivos de quantidade e qualidade, bem como os arranjos necessários
para atingi-los.

Planos de Aproveitamento e Gestão das Águas (SAGE- Schémas


d'Aménagement et de Gestion des Eaux. São planos executados pelas
comissões locais de água em perímetros delimitados pelo SDAGE e
fixam objetivos gerais de utilização, de valorização e de proteção
qualitativa e quantitativa dos recursos hídricos superficiais e
subterrâneos e dos ecossistemas aquáticos.

O modelo francês no desenvolvimento e no aparato institucional, está


fortemente relacionado aos princípios estabelecidos na Lei. Assim, os
princípios da descentralização, da bacia como unidade de gestão, são
praticados, no modelo institucional, pelos comitês e agências de bacias
hidrográficas e o desenvolvimento dos planos é feito pelos próprios
comitês e agências com parte dos recursos financeiros gerados na própria
bacia. O princípio de que a água deve pagar a água é só parcialmente
atendido. No momento atual, este princípio representa mais uma meta do
que uma prática.

56
4.5. OS PLANOS DE GESTÃO DE ÁGUAS NO BRASIL

Os primeiros marcos dessa nova política de águas acontecem nos meios


acadêmicos técnicos, no âmbito da Associação Brasileira de Recursos
Hídricos, com a carta de Foz de Iguaçu, emanada no VII Simpósio
Brasileiro de Recursos Hídricos em novembro de 1989. Os princípios da
carta de Foz de Iguaçu apresentavam a forte influência do modelo
francês e incorporavam os princípios da bacia hidrográfica como unidade
de gestão, do usuário poluidor-pagador e da indissociabilidade de
qualidade e quantidade.

No lado governamental, a busca de um novo modelo de gerenciamento


inicia-se nos estados de São Paulo, Ceará e Bahia. Os estados do Ceará
e São Paulo começaram desenvolvendo planos estaduais nos quais
reformaram o aparato institucional na parte de competência das águas. A
Bahia mantém a estrutura institucional e começa pela elaboração dos
planos de bacia. O modelo baiano não criou os comitês de bacias, em
função de experiências anteriores não bem-sucedidas.

No contexto federal, as iniciativas só acontecem depois de os estados


terem avançado substancialmente no processo de gestão. A Política
Nacional de Recursos Hídricos foi oficialmente instituída com a Lei
9.433 de 8 de janeiro de 1997. A Lei tem fundamentos semelhantes aos
do modelo francês: como a adoção da bacia hidrográfica como unidade
de gestão, o uso múltiplo da água, o valor econômico e ainda a gestão
com participação do poder público, dos usuários e da comunidade.

Cabe observar que a Lei 9433 define o Plano de Recursos Hídricos como
um dos instrumentos de gestão e estabelece que os planos devem ser
elaborados por bacia hidrográfica, por estado e para o País. O conteúdo
mínimo dos planos é especificado no art. 7o e consta de diagnóstico,
análise de alternativas, balanço, oferta demanda, metas de

57
racionalização, medidas e programas para atendimento às metas,
estabelecimento de prioridades para a cobrança e propostas de criação de
áreas de proteção. Como em muitos estados as leis estaduais foram
sancionadas bem anteriormente à Lei Federal, pode-se esperar que
muitos ajustes devam ser necessários.

A Lei Federal estabelece em seu Capítulo I os fundamentos da Política


Nacional de Recursos Hídricos. Em um desses fundamentos, diz-se que
“a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a
participação do poder público, dos usuários e das comunidades".

No Capítulo IV, a Lei estabelece, em seu art. 7o, que os planos de


recursos hídricos são planos de longo prazo, com horizonte de
planejamento compatível com o período de implantação de seus
programas e projetos. No mesmo artigo, a Lei estabelece também o
conteúdo mínimo dos planos.

Por sua vez, o art. 8o estabelece que os planos devem ser elaborados por
bacia hidrográfica, por estado e para o País.

Cabe neste ponto uma análise. O Brasil é um país extremamente grande


e apresenta grande diversidade climática e cultural. A Lei 9.433 engloba
um importante e moderno princípio: o da descentralização. Este
princípio torna-se mais importante ainda no caso de decisões a serem
tomadas em cenários de diversidade climática e cultural como o do
Brasil. Ao estabelecer o conteúdo mínimo dos planos – de Bacia, por
Estado e para o País –, a Lei desconheceu a diversidade e foi de encontro
ao próprio princípio da descentralização. Estados de pequenas
superfícies não necessariamente deveriam desenvolver planos de bacias,
visto que um plano estadual poderia contemplar todas as necessidades do
planejamento. A decisão de desenvolver ou não um plano estadual de
recursos hídricos deveria ser dos próprios estados. Ademais, uma vez
que um dado estado houvesse decidido desenvolver um plano estadual e
58
planos de bacias, os conteúdos desses planos deveriam ser definidos
também pelos estados.

A grande diversidade climatológica é marcante quando se examina as


particularidades da Região Semi-Árida. Analisando-se a velha política,
nota-se que estas diferenças haviam sido percebidas na elaboração do
Código de Águas de 1934, que tratou o Polígono das Secas de modo bem
distinto (Campos e Vieira, 1993).

Há uma grande diferença entre o modelo francês e o brasileiro no que diz


respeito à interpretação do que seja adotar a bacia hidrográfica como
unidade de gestão. No modelo francês, uma grande parte dos recursos
financeiros são gerados na própria bacia hidrográfica no setor de água;
no Brasil, não aconteceu o mesmo. Se, na França, gerenciamento por
bacia significa manejo hidrológico e descentralização de poder para os
comitês de bacia, no Brasil o termo está mais ligado ao manejo
hidrológico. De fato, o poder político para a tomada de decisões relativas
a aplicação de dinheiro público permanece nos poderes executivos e
legislativos. O poder só passará gradativamente para os comitês quando
houver geração de recursos financeiros específicos dentro da própria
bacia. Nesse caso, a adoção da bacia como unidade de gestão, em seu
sentido mais amplo, deve ser entendida mais como um projeto de longo
prazo do que uma prática que venha a ser implementada em breve.

A elaboração de um plano, além do enquadramento dentro das políticas


gerais municipais, estaduais e nacionais, deve seguir uma série de
técnicas de administração e planejamento. Assim é que se apresentam, a
seguir, regras para o desenvolvimento de um bom plano

59
4.6. CONCLUSÕES

As análises procedidas no capítulo mostram que os desenvolvimentos


dos planos de gerenciamento de bacias hidrográficas no Brasil vêm
sendo procedidos de filosofias distintas para os diferentes estados.
Embora todos tenham sofrido influência do modelo francês, as maneiras
de aplicar os princípios desse modelo variam de local para local.

A Lei Federal procurou disciplinar e definir conteúdos mínimos de


planos de gerenciamento e, ao fazer isto, na visão do autor deste artigo,
introduziu uma rigidez não compatível com a diversidade regional ou
mesmo com o princípio de descentralização da própria Lei Federal.

Todavia, a implementação da nova política de águas implica em um


grande processo de mudança cultural, tanto no nível da população, como
no nível de dirigentes e legisladores, e estas inconsistências devem ser
corrigidas com o tempo. O que mais importa é que o caminho que se
busca deve conduzir a um processo mais racional de gestão das águas.

A análise comentada das onze regras para testar a qualidade de um plano


é apresentada para propiciar um caráter reflexivo àqueles que
desenvolvem planos de recursos hídricos. Espera-se que o presente texto
possa colaborar na formação do espírito crítico de planejadores de
recursos hídricos, de forma que possam refletir sobre planos do passado
e planos do presente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL, Senado Federal. LEI N0 9.433, Brasília, DF 1997.


CAMPOS, J.N.B. E VIEIRA V.P.P.B Gerenciamento dos Recursos
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Pública. Fundação Getúlio Vargas. n.2 v. 27. Rio de Janeiro,
1993.
60
DROR, V. In: ANDERSON, C.A. Le contexte social de la palnificacion
de l’education. Paris, UNESCO, 1968. P. 10.
GRIGG, N. S. Water Resources Planning. McGrall Hill. 1985.
GRIGG, N. S. Water Resources Management: Principles, Regulations,
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University. Fort Collins, Co, 1985.
MINISTERE DE L'ENVIRONNMENT, FRANCE, Les SDAGE
Schémas Directeurs dÁménagement et de Gestion des Eaux. Paris
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MINISTERE DE L'ENVIRONNMENT, FRANCE, Office International
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Paris 1996.
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DEVELOPMENT: Water Management – Basic Issues. 1972.
SAHA, S. K., BARROW, C. J. : River Basin Planning: Theory and
Pratice. John Wiley & Sons. 1981.

61
62
Gestão da
5 Demanda

Ticiana M. Carvalho Studart e


Nilson Campos
5.1. VISÃO GERAL DO TEMA

A água tem sido gradativamente reconhecida como um recurso escasso


em escala mundial, seja devido às suas limitações relacionadas à
qualidade, seja devido às suas limitações relacionadas à quantidade
(Kemper, 1996). No Brasil, a escassez qualitativa ligada à poluição dos
corpos hídricos tem sido associada, principalmente, ao Sul e Sudeste do
País. No Nordeste Semi-Árido, a poluição constitui-se não no foco
principal, mas em um problema adicional. Mesmo com este problema
resolvido, a escassez permaneceria, uma vez que é fruto da alta
variabilidade temporal (intra e interanual) e espacial das precipitações,
altas taxas de evaporação e solos predominantemente cristalinos,
condições estas agravadas pelas demandas urbanas e industriais
crescentes e pelo uso ineficiente.

Historicamente, o equacionamento do problema relativo ao desequilíbrio


entre demanda e oferta de água, em âmbito mundial, tem passado
invariavelmente pelo aumento do suprimento de água, pela exploração
de novos recursos, em ações denominadas Gestão da Oferta. Entretanto,
o aumento da capacidade do sistema também pode, e deve passar pela
conservação e realocação da água, principalmente quando os recursos
financeiros e a água, em si, são ambos escassos, e com obras de grande
porte se tornando cada vez menos aceitável sob o ponto de vista
ambiental.

Segundo Grigg (1996), o significado de “conservação” sofreu alterações


nos últimos anos. O que antes significava armazenar água e guardá-la
para futuros usos produtivos significa hoje reduzir ao máximo o uso da
água para uma dada finalidade. Assim, no abastecimento urbano,
conservar água significa usar o mínimo necessário para lavagem, higiene
pessoal e outros usos domésticos; na indústria, significa usar o mínimo
possível para produzir um bem e, na agricultura, aplicar o mínimo
necessário para uma dada cultura.

A famosa máxima “cada centavo poupado é um centavo ganho”, de


Benjamim Franklin, parece se aplicar bem à conservação dos recursos
hídricos, já que a economia da água, juntamente com seu reuso, reduzem
significativamente os custos de tratamento e da infra-estrutura envolvida
(Grigg, 1996). Entretanto, a necessidade de conservar a água nem
sempre foi evidente. Na maioria dos países, a água vinha sendo tratada
como se estivesse disponível em quantidades ilimitadas e sendo
fornecida a um preço muito baixo, o qual não refletia o seu valor
econômico. As alocações nos vários setores foram feitas ignorando as
implicações econômicas e os investimentos, sempre guiados pela
necessidade, ignorando o papel do preço da água e seus efeitos
potenciais na quantidade consumida.

Uma nova percepção da água veio a se firmar no início desta década,


com a Informal Copenhagen Consultation (1991) pedindo que água fosse
reconhecida não apenas como um bem social, mas também como um
bem econômico, ou seja, um recurso escasso com valor econômico
distinto em cada um de seus usos. Essa mudança de paradigma também
viria a ser refletida na Declaração de Dublin e na Agenda 21, ambas de
1992, as quais pedem a busca e a implantação de novos mecanismos que
aumentem a eficiência na alocação e no usos dos Recursos Hídricos.
64
Aceitar a água como um bem econômico tem algumas implicações. A
principal delas é tornar os usuários da água suscetíveis aos incentivos
dados, ou seja, caso recebam grandes quantidades de água a um custo
muito baixo, tenderão a usá-la em abundância; caso recebam a água
irregularmente, tenderão retirar mais do que o necessário, a fim de
armazená-la para uso futuro; se a água for cara, tenderão a usá-la de
forma mais eficiente (Kemper, 1996).

Os incentivos podem ser dos mais variados tipos, desde cobrança pelo
uso da água, taxação da poluição e realocação para usos de maior valor
até campanhas educativas. A este conjunto de medidas, que influenciam
o comportamento do usuário, induzindo-o à redução do volume, dá-se a
denominação de Gestão da Demanda. A gestão da demanda foi relegada
a segundo plano por muitos anos, uma vez que se acreditava que sua
análise consistia, basicamente, em se traçar curvas representando o
consumo ao longo do tempo, como função de algumas variáveis
independentes, tais como o crescimento populacional. Hoje se tem
consciência de que o processo é muito mais complexo, uma vez que
envolve o comportamento humano e suas necessidades, os quais podem
mudar ao longo do tempo e do espaço (Brooks, 1997).

A terminologia também é confusa. Freqüentemente, são encontrados na


literatura termos como “exigência”, “necessidade” e “demanda”. Neste
texto, exigência refere-se à quantidade mínima necessária para um
determinado fim; necessidade é a percepção da exigência (Grigg, 1996),
não coincidindo normalmente com o mínimo exigido, e demanda, por
sua vez, é uma solicitação.

5.2. DIFERENTES PERSPECTIVAS DA GESTÃO DA DEMANDA

A gestão da demanda há que ser compreendida sob perspectivas


diversas, que vão desde a visão individual, na ótica do consumidor
65
doméstico e de uma indústria em particular, até uma visão mais ampla,
em que se leva em conta os interesses da coletividade como um todo.

Uso industrial e uso doméstico. A utilidade da água nos usos


industrial e doméstico pode ser analisada da mesma forma, uma vez os
usuários de ambos são unidades econômicas individuais e que, de uma
maneira geral, tendem a minimizar seus custos. Para cada um deles, a
gestão da demanda de água é simplesmente uma questão de efetividade
de custo. Ou seja: o retorno (sob qualquer forma) compensará os
investimentos (de tempo, dinheiro ou esforço) empregados na economia
de água? É importante observar ainda se os incentivos não estão mal
alocados (sob o ponto de vista econômico). Um exemplo clássico é o
rateio da conta de água de um edifício pelo número de apartamentos, não
considerando o consumo de cada unidade.

Sociedade. Uma gama muito maior de variáveis aparece quando o


gerenciamento da demanda é visto sob a perspectiva da sociedade como
um todo. As preocupações aqui aparecem porque a água, que é
parcialmente renovável e parcialmente não-renovável, é dinâmica,
transpões fronteiras e tem uma enorme capacidade de absorção.
Entretanto, o uso da água por uma pessoa/comunidade/indústria “A”
afeta a capacidade (ou mesmo a possibilidade) da
pessoa/comunidade/indústria “B” de usar essa mesma água. Sendo assim
precisamos de regras, no nível de sociedade, que definam quem pode
usar a água, quanto e quando.

5.3. CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS SOBRE A GESTÃO DA


DEMANDA

Horizonte de planejamento. É aconselhável não projetar ações para um


horizonte muito distante. Se assim se procede, parecerá que a água doce
se extinguirá do planeta (Raskin et al., 1996). O horizonte de tempo
66
adequado para o planejamento de recursos hídricos se situa entre 2 e 20
anos.

Soluções de alto-custo. Soluções caras, tais como usina de


dessalinização e construção de grandes aquedutos, ainda não são
acessíveis para a maior parte dos países do mundo (Brooks, 1997).

O valor da água in situ. Os analistas do setor energético costumam


dizer que ninguém deseja a energia per si, mas pelos serviços que ela
presta. Isto não se aplica à água. Se, por um lado, a água proporciona
muitos usos, tais como abastecimento, diluição, habitat para plantas e
animais, por outro, a sua simples presença na paisagem, seja em forma
de lagos ou de rios, faz bem ao homem. Isto quer dizer que a água tem
um valor intrínseco (Brooks, 1997).

Bacia hidrográfica x bacia social. É comum na literatura especializada


se adotar a bacia hidrográfica como unidade de gestão, entretanto a
experiência recente no estado do Ceará sugere que esta pode ser uma
escolha equivocada. Nas áreas mais distantes dos vales úmidos, os
usuários têm uma preocupação maior com os arredores de seu açude,
cuja água é usada localmente e não levada a outro lugar na mesma bacia.
Segundo Kemper (1996), esta característica ficou evidente para a
COGERH desde o primeiro encontro de usuários organizado na Bacia do
Curu; enquanto os usuários situados ao longo do Rio Curu estavam
preocupados com as questões das alocações entre os diferentes setores,
os usuários de áreas distantes estavam preocupados em discutir as
possibilidades de aproveitamento e as questões de qualidade de água em
seus açudes locais.

67
5.4. INSTRUMENTOS PARA A GESTÃO DA DEMANDA

Os instrumentos para a gestão da demanda podem ser classificados em


três grandes grupos: Medidas Conjunturais, Incentivos e Intervenção
Direta (adaptado de Brooks (1997) e de Bhatia et. al.(1993). Os
instrumentos não são excludentes; pelo contrário, reforçam-se um ao
outro.

5.4.1. Medidas conjunturais

São as regras básicas para o suprimento e uso da água, tais como direitos
de uso da água, propriedade de terra, instituições sociais e civis, e
legislações formais e informais. É neste contexto que o usuário é
motivado, ou não, a agir de forma mais racional quanto ao uso da água.
Elas envolvem elementos variados, como mudanças institucionais e
legais, privatização e medidas macroeconômicas.

5.4.1.1. Arranjos legais e institucionais

As legislações que controlam o uso da água e as instituições que


surgiram ao longo do tempo para gerenciá-las são, freqüentemente, os
maiores obstáculos para seu uso racional. Em muitos casos, os arranjos
legais e institucionais têm sido bem-sucedidos, todavia, não há um
modelo único que possa se ajustar universalmente às diversas situações.
As instituições são produtos da história, da cultura e da economia de
cada país (Okun, 1991). A dependência da trajetória (“path
dependence”), como este fenômeno é conhecido, é um dos pilares da
Economia Institucional (Kemper,1996) e sugere que as estruturas
institucionais atuais e históricas condicionam as futuras mudanças.

68
Um exemplo clássico de dependência de trajetória é o do teclado
QWERTY, cujo layout permanece até hoje, embora alternativas mais
eficientes tenham sido desenvolvidas ao longo dos anos. David (1985)
explica que quando os condicionantes que forçaram a configuração deste
teclado deixaram de existir, o sistema já havia se adaptado ao layout
existente e os custos de transação se tornaram tão altos que, mesmo
hoje, com a substituição da máquina de escrever por computadores
potentes, o teclado usado é o mesmo de 100 anos atrás. Desta forma, o
teclado QWERTY se perpetuou e os avanços posteriores tiveram que
levar em consideração o caminho já trilhado.

A dependência da trajetória ajuda a explicar por que o mesmo tipo de


mudanças institucionais pode dar em resultados bastante distintos se
aplicados a cenários diferentes, frutos de raízes históricas, culturais,
econômicas e sociais próprias. Essas raízes, segundo Putnam (in
Kemper, 1996), constituem o capital social de uma sociedade e,
juntamente com o conceito de dependência da trajetória, demonstram a
necessidade de se analisar a evolução e a situação atual das estruturas
institucionais, tanto para explicá-las quanto para analisar as
possibilidades de mudança.

Kemper (1996) distribui os arranjos institucionais e legais em três


categorias: a dos arranjos formais direcionados ao setor de recursos
hídricos, a dos arranjos informais no setor de recursos hídricos
(intimamente ligados ao capital social) e a dos arranjos direcionados a
outros setores, que afetam indiretamente o setor de recursos hídricos.

5.4.1.2. Privatização

A forte atuação do setor público no desenvolvimento e gerenciamento


dos recursos hídricos é justificada pelas características das atividades de
um setor que lida com um bem público: a água. Entretanto sabe-se que
69
grande parte das agências governamentais responsáveis por sua gestão
apresenta sérias deficiências institucionais. Assim sendo, um grande
número de países, notadamente aqueles ditos desenvolvidos, tem
resolvido envolver a iniciativa privada neste setor. Na França,
companhias privadas de abastecimento de água atendem cerca de 40% da
população e coletam e tratam cerca de 40% do esgoto; nos Estados
Unidos esta participação chega a 56%; na Inglaterra, mesmo antes da
ampla privatização do setor, 25% da água já era fornecida pela iniciativa
privada. Na Argentina, dois consórcios privados prestam serviços de
abastecimento e saneamento básico na Grande Buenos Aires e na
província de Corrientes.

Segundo Bhatia et. al. (1993), existem diversas opções para a


participação do setor privado. A primeira opção é manter a água sob
propriedade do Estado, mas deixar o setor privado participar através
contratos de gestão, leasing e concessões. Uma segunda opção é
privatizar completamente esta atividade, e uma terceira seria transferir a
propriedade da água e a responsabilidade operacional para a
comunidade.

5.4.1.3. Políticas macroeconômicas

O estabelecimento de uma política econômica apropriada é condição


necessária, mas não suficiente, para se tratar a água como um bem
econômico. Partindo-se de uma situação de desequilíbrio sob o ponto de
vista macro, a restauração da estabilidade econômica acarreta um sem
número de benefícios no setor de recursos hídricos, uma vez que reduz a
incerteza, o que, por sua vez, beneficia o planejamento em longo prazo.

Num nível mais micro, as barreiras alfandegárias, os subsídios às


exportações, os preços de insumos, as taxas de juros e a fixação de
preços mínimos para alguns produtos são os fatores determinantes que
70
incentivam a produção e consumo de bens e serviços, os quais variam
quanto ao seu consumo de água e potencial poluidor. Estas políticas
econômicas setoriais podem influenciar, de modo positivo ou não, o
alcance de um uso mais racional da água nos níveis intra e intersetoriais
(Winpenny, 1994).

As medidas direcionadas ao setor de recursos hídricos, portanto, serão


inócuas se vierem apartadas das diretrizes macroeconômicas do país.
Neste caso, o incentivo a práticas de irrigação mais eficientes não surtirá
o resultado esperado, caso os preços de mercado ou subsídios favoreçam
culturas de alta demanda hídrica. O mesmo ocorre no setor industrial,
onde qualquer política de preços para o uso da água perderá força, caso
medidas protecionistas favoreçam setores que demandem mais água,
como as indústrias de papel e celulose e petroquímica, prática comum
em países em desenvolvimento.

Winpenny (1994) cita o exemplo da Jordânia, onde a expansão da


fronteira agrícola tem sido incentivada desde o início da década de 50. A
expansão da agricultura irrigada levou o país, através dos anos, a uma
produção crescente de culturas de baixo valor e de alta demanda hídrica.
A superprodução destes itens levou à exportação do excedente em
condições pouco competitivas, devido à política de câmbio do país,
dando exemplo de como uma política setorial pode afetar o setor de
recursos hídricos em um país carente deste bem.

5.4.2. Incentivos

Os incentivos à conservação e realocação da água para usos de maior


valor, objetivos básicos da gestão da demanda, podem ser classificados
como incentivos econômicos e não-econômicos. Os econômicos
envolvem o estabelecimento de tarifas de água, cobrança pela poluição,
incentivos fiscais e diversas modalidades de transferência do direito de

71
uso da água ou da propriedade da água. Os incentivos não-econômicos
abrangem restrições e sanções, o estabelecimento de quotas de consumo
e normas de utilização da água, além de campanhas educativas.

5.4.2.1. Incentivos econômicos

Os incentivos econômicos estão fundamentados em um dos princípios


básicos da teoria econômica, a qual supõe ser o indivíduo um homo
economicus, ou seja, um ser racional que procura maximizar a utilidade
que pode obter do bem ou serviço adquirido.

A realidade mostra, no entanto, que o homem age freqüentemente de


modo diferente do ideal, ou seja, suas ações nem sempre parecem
baseadas na razão. Segundo Simon (1982), que introduziu o conceito de
racionalidade limitada, isto ocorre porque o homem realmente tenta ser
racional e maximizar a utilidade de um bem, mas é incapaz de fazê-lo
porque no mundo real ele nunca tem informações completas e mesmo
que as tivesse, não estaria capaz intelectualmente de processá-las,
tornando assim sua racionalidade restrita (Kemper, 1996).

Embora reconhecendo as limitações do homem, este conceito admite sua


tentativa de racionalidade no sentido econômico. Isto é de fundamental
importância, pois implica que o homem reage a certos incentivos
econômicos de forma previsível.

Embora a cobrança seja amplamente defendida, especialistas alertam que


a mesma é condição necessária, mas não suficiente, para se atingir a
eficiência, a eqüidade e a sustentabilidade. Defende-se ainda que os
subsídios sejam explicitamente justificados e que as tarifas sejam
calculadas no sentido de se encorajar a conservação da água e não apenas
para recuperação dos custos, o que implica que a tarifa deve ser alta o
suficiente para se mover dentro da porção elástica da curva da demanda.

72
Entretanto há que existir uma forma de prover água para necessidades
básicas de populações carentes. Obviamente, é pressuposto básico que
haja um sistema eficiente de medição dos volumes de água consumidos.

Tarifa de água

Um meio viável de se alcançar a eficiência na alocação de um recurso é a


utilização do custo social marginal. Nestas bases, o usuário irá consumir
a água até que o seu valor marginal seja igual ao custo marginal do seu
suprimento. Ou seja, o benefício de se consumir a última unidade de
água equivale ao custo de provê-la. A aplicação deste princípio requer
que o consumo de água seja medido, que a cobrança seja proporcional à
quantidade consumida e que o cálculo dos custos marginais do
suprimento de água seja razoavelmente preciso. É necessário ainda que
sejam incluídos os custos de oportunidade, de tratamento e de transporte,
além dos custos ambientais (Bhatia et. al., 1993).

Winpenny (1994) observa que, embora sejam amplamente utilizadas em


países dos mais variados graus de desenvolvimento, as tarifas de água
usualmente são percebidas pelo gestor apenas como um meio de
recuperação dos investimentos e não como um instrumento de gestão da
demanda.

A tarifa de água pode ser um meio eficiente de conservação da água, mas


o seu impacto na redução do volume consumido depende de como o
consumidor responde ao aumento dessa tarifa. De uma maneira geral, o
comprador tem interesse em adquirir determinado produto em
quantidades maiores quando o preço baixa, assim como é levado a
restringir ou reduzir seu consumo quando o preço se eleva. Sendo assim
pode-se afirmar que a quantidade de água demandada tende a variar
inversamente ao preço, tendo a curva da demanda uma inclinação
negativa.

73
Estudos efetuados em países desenvolvidos – Austrália, Canadá,
Inglaterra, Israel e Estados Unidos – mostram que a elasticidade da
demanda no setor de abastecimento doméstico tende a cair à razão de –
0,3 a –0,7, ou seja, a demanda decresce entre 3 e 7 % a um aumento de
10% no preço da tarifa (Winpenny, 1994).

Estudos empíricos mostram que o setor industrial responde melhor às


variações de preços da tarifa que o doméstico (Tabela 5.1). A
elasticidade da demanda relativamente alta na indústria reflete um leque
maior de alternativas de suprimento e de medidas de conservação e reúso
de água, como opção ao aumento da tarifa.

Nos países em desenvolvimento, uma vez que o setor industrial conta


com baixas tarifas de água e facilidade de obtê-la, é comum o uso de
tanques de resfriamento e de processos “once-through”, ou seja,
processos nos quais a água é usada uma única vez e jogada fora, em
detrimento de processos de resfriamento que utilizem a água de modo
mais eficiente. Além do mais, não há incentivos para que o setor trate os
seus efluentes e façam o reúso destas águas, seja devido à inexistência de
legislação ou à fiscalização ineficaz.

Tabela 5.1 - Estimativas empíricas da elasticidade da demanda de água


por setor

Setor Elasticidade da Demanda

Residencial - 0,20 a – 0,60

Industrial - 0,45 a –1,37

Irrigação - 0,37 a –1,50


Fonte: Bhatia et. al. (1993)

74
No setor de irrigação, a elasticidade da demanda é função da existência
de alternativas quanto ao tipo de cultura e ao método de irrigação.

Cobrança pela poluição

Existem duas abordagens para a cobrança pela poluição: a do


“consumidor pagador”, na qual o poder público cobra uma taxa do
usuário para que o mesmo possa usufruir de água de boa qualidade, e a
do “poluidor pagador”, na qual o poder público cobra uma compensação
financeira pela poluição causada pelo usuário. Esta última, de larga
aceitação, facilitou sobremaneira a introdução de cobranças sobre a
descarga efluente em nível mundial.

Teoricamente, a cobrança pela poluição deveria estar diretamente


relacionada aos danos ambientais causados pelos efluentes e/ou aos
custos de prevenção, tratamento e recuperação do corpo d´água. Na
prática, entretanto, as taxas tendem a ser estabelecidas em um patamar
mais baixo que os valores gastos no monitoramento, administração e
tratamento (Bernstein, 1991).

A cobrança pela poluição produzida pelo usuário é importante no


contexto deste trabalho, pela influência que exerce na quantidade de
água demandada. Caso, por exemplo, o poluidor seja cobrado pelo
volume dos efluentes lançados nos corpos d’água, terá incentivos para
reduzir seu consumo, assim como para reciclar suas águas servidas. Esta
ferramenta é particularmente útil no caso de indústrias que utilizam água
subterrânea e cuja quantidade de água efetivamente consumida é de
difícil quantificação.

Os impactos ambientais dos efluentes industriais dependem de sua


qualidade, da presença de substâncias tóxicas, do local de lançamento e
do volume lançado. A experiência brasileira no uso da cobrança pela
poluição como instrumento de gestão da demanda de água é abordada

75
pela OECD (1987). Neste estudo, realizado entre 1980 e 1982, em 3
indústrias no estado de São Paulo, a redução entre 40 e 60% no consumo
de água em apenas 2 anos aparece como um “efeito colateral” positivo
da medida adotada pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de
São Paulo – SABESP. Esta, na realidade, via na cobrança pela poluição
apenas um instrumento para a minimização dos custos de tratamento dos
efluentes industriais e a otimização de suas estações de tratamento de
esgoto. O estudo da OECED relata ainda reduções de consumo da
mesma ordem – 30% – nos seis anos que se seguiram à implantação da
cobrança pela poluição na Holanda, em 1969.

A cobrança pela poluição, entretanto, não pode ser vista de maneira


isolada. Há que se encontrar uma perfeita sintonia entre a mesma e a
tarifa de água, por exemplo. Quando o preço da água é estipulado a
níveis muito baixos, a conservação e reúso não se tornam atraentes para
o usuário sob o ponto de vista financeiro. Na cidade de Jamshedpur, no
leste da Índia, a cobrança pela poluição dos efluentes industriais,
associada a um baixo custo da água, incentivaram a um consumo maior,
uma vez que a opção mais economicamente viável seria usar água bruta
para a diluição dos efluentes.

Incentivos fiscais

Existem casos em que os incentivos fiscais constituem-se no modo mais


rápido de encorajar a conservação de água e a diminuição da poluição
nos corpos hídricos. Algumas vezes, artifícios simples são mais
eficientes que tentar mudar o hábito de consumo dos habitantes de uma
cidade. Em algumas cidades do estado da Califórnia (Bhatia et. al.,1993),
o artifício consistiu na redução do valor cobrado pela taxa de ligação de
água de novas edificações que utilizassem válvulas de descarga
sanitárias com jatos de menor vazão.

76
Na China, onde o setor secundário responde por aproximadamente 75%
da demanda urbana, consumindo de 3 a 10 vezes o volume de água
necessário para a produção do bem (comparando com indústrias
similares em países desenvolvidos) uma das medidas adotadas foi a
estipulação de cotas de água por indústria, em função das características
da indústria e do bem produzido. Recentemente foi introduzida uma
recompensa, sob a forma de desconto na conta de água, para aqueles
usuários que consumissem um volume inferior àquele estipulado em sua
cota (Bhatia et. al., 1993).

Subsídios e empréstimos bancários para o setor industrial a juros abaixo


de mercado para projetos de conservação da água também são
freqüentemente encontrados na literatura especializada. Há, entretanto,
que se analisar a viabilidade do projeto sob duas perspectivas distintas: a
da sociedade como um todo e a da empresa. Sob o ponto de vista
público, um projeto é justificável quando seu custo total for igual ou
inferior ao custo marginal do suprimento de água. Sob o ponto de vista
individual, o investimento somente será interessante se o valor
economizado com a tarifa de água for igual ou superior ao valor gasto
para a melhoria da eficiência no uso da água. Bhatia et al. (1993) citam o
exemplo de Israel, que, juntamente com outras medidas importantes,
financiava até 80% do valor do projeto a juros subsidiados.

Realocação de água

Um recurso é alocado eficientemente quando é usado para maximizar o


seu valor. Pode-se prever, para a água, um grande número de usos
diferentes e parcialmente concorrentes – agricultura, abastecimento
humano, abastecimento industrial, turismo, lazer, piscicultura, etc.
Alcançar a eficiência significa, muitas vezes, a mudança do uso da água,
ou realocação, intra ou intersetorial, como, por exemplo, entre culturas
de baixo e alto valor e da agricultura para a indústria, respectivamente
(Kemper, 1996).
77
Realocação de recursos hídricos é um item que vem rapidamente
ganhando importância, pois, à medida que a população e as atividades
econômicas se expandem, demandas maiores são geradas para um
suprimento de água relativamente limitado

Atualmente, demandas municipais e industriais estão competindo


diretamente com outros usos, especialmente a agricultura. Sendo assim,
a realocação da água deste setor para usos municipais vem se tornando
uma opção para os tomadores de decisão, no sentido de reduzir a
distância entre a demanda e a oferta no setor urbano. Muitas vezes,
entretanto, este uso é garantido por alocações anteriores ou costumes, os
quais não levam em conta o valor econômico da escassez da água
(Bhatia et. al., 1993).

A despeito das inúmeras vantagens da realocação da água, a


possibilidade de que estas transferências possam afetar terceiros não
diretamente envolvidos no processo tem causado certa preocupação. Tal
fato talvez seja decorrente das conseqüências das primeiras
transferências de água ocorridas no Oeste Americano, feitas sem
qualquer consideração à eqüidade social, à economia regional e ao meio
ambiente. Estas transferências são muitas vezes denominadas
“apropriação de água” uma vez que, freqüentemente, os ganhos obtidos
pelos usuários receptores da água se dão a expensas dos usuários de água
do local de origem, no que diz respeito à confiabilidade no fornecimento
e na oportunidade de seu uso. Um exemplo clássico é o de Owens
Valley, na Califórnia, onde, no início do século, representantes da cidade
de Los Angeles compraram grandes extensões de terras, apenas com
intenção de se apropriar da água associada a elas. Os impactos
ambientais e econômicos no Owens Valley foram devastadores e a
região nunca se recuperou (U.S. Office of Technology Assessment,
1993).

78
A literatura aponta basicamente 4 modalidades para a realocação intra e
intersetorial: mercado de água, leilões de água, banco de água e
transferência da outorga pelo direito de seu uso.

Mercado de Água. O objetivo principal desta forma de realocação de


água é promover o seu uso mais eficiente. De um modo geral, a
realocação é facilitada quando se permite a comercialização da água, ou
seja, transferir os direitos de uso de usuários dispostos a vender para
usuários dispostos a comprar.

A água tem custos diferentes para diferentes usos e, freqüentemente, tem


seu menor valor exatamente nos setores que mais a consomem. A
disparidade entre os preços relativamente altos pagos pelo abastecimento
urbano e os baixos preços pagos pelo setor agrícola sugere que existem
oportunidades para usar mercados ou outro instrumento de transferência
de direitos, para permitir a distribuição mais eficiente da água.

A experiência dos mercados de água existentes no Chile e no Colorado


mostram que eles não funcionam sozinhos, ficando longe do modelo de
mercado perfeito, onde se pressupõe, entre outras coisas, a existência de
um grande número de atores, entrada e saída livres, informações
completas, homogeneidade e divisibilidade do produto, ou seja, não
existem custos de transação. Segundo Kemper (1996) algumas possíveis
dificuldades para a implantação dos mercados de água estão relacionadas
à característica da água como bem público, à dificuldade de definir e
medir um bem em fluxo, às externalidades e aos monopólios. Nos locais
onde existe mercado de água – Chile, Colorado e Espanha –, vários
arranjos institucionais foram criados para lidar com estes complicadores.

Segundo Simpson (1994), existe uma série de condições indispensáveis


para o funcionamento satisfatório de mercados de água:
 Direitos de propriedade de água bem definidos no que diz
respeito à quantidade de água;
79
 Demandas competindo por um bem escasso;
 Um nível razoável de confiabilidade do recurso hídrico;
 Aceitabilidade por parte da sociedade do conceito de
transferência de direitos de água;
 Uma boa estrutura administrativa e reguladora;
 Uma adequada infra-estrutura para assegurar a mobilidade da
água;
 Uma alocação inicial dos direitos de água adequada e justa;
 Um sistema justo para realocação dos direitos de água a medida
que a mesma se torne necessária;

Leilões de água. Leilões de água são raros, embora existam no estado de


Victoria, Austrália (Simon and Anderson, 1990), e tenham uma longa e
bem-sucedida história em Alicante, na Espanha (Winpenny, 1994).

A condição básica para a existência do leilão é que o governo seja livre


para vender a água pelo maior lance, o que significa que os usuários não
possuem quaisquer direitos sobre a água, sejam eles de caráter legal ou
pelo uso histórico de certa quantidade de água (customary rights). Os
leilões permitem que a percepção do valor econômico da água por parte
dos usuários seja revelada através dos lances, e que o setor público tenha
lucro com a venda.

Bancos de água. Os bancos de água são instituições que têm como


finalidade permitir e facilitar as transferências de água nos estados do
oeste americano. Os bancos de água estabelecem uma conta única para o
total de água vendida e comprada, intermediando as transações entre
potenciais vendedores e compradores de água.

80
Alguns bancos de água funcionam em caráter permanente, como o
Idaho Water Bank Supply, enquanto outros são temporários, atuando
apenas em períodos críticos, como os criados na Califórnia durante as
secas de 1976-1977 e 1987-1991.

Segundo Bhatia et. al. (1993), podem-se tirar algumas lições valiosas da
experiência californiana, especialmente no que diz respeito ao banco de
águas como um meio de transferência de água em longo prazo e como
um mecanismo eficiente de realocação de água para usos de maior valor.
Durante a seca de 1991, o preço oferecido aos potenciais vendedores de
água era alto o suficiente para compensar o lucro que teriam ao cultivar
culturas de menor valor como arroz, milho e tomate. Como resultado
desta ação, 80% do total da água vendida foi realocada para o setor
urbano, enquanto que os 20% restantes foram realocados para culturas
permanentes e vinícolas, as quais embutiam um alto capital investido.

Transferência de outorgas de direito de uso. A transferência da


outorga do direito de uso da água existe na bacia do rio Murray, em New
South Wales (Austrália) desde 1984. Desde então as quantidades de
água alocada para fins de irrigação, industrial, lazer e para fins
ambientais podem ser transferidas, estando, entretanto, sujeitas a veto
pelo governo estadual, caso a transferência não seja interessante sob o
ponto de vista da sociedade.

Esse instrumento é também utilizado no oeste americano, no sentido de


persuadir irrigantes com contratos de longo prazo com o Federal Bureau
of Reclamation a conservar e vender parte ou a totalidade da água
conferida a eles por outorga, para que seja realocada de modo mais
eficiente sob o ponto de vista econômico (Winpenny, 1994).

81
5.4.2.2. Incentivos não- econômicos

Umas variedades enormes de medidas não-econômicas podem ser


consideradas no sentido de promover um gerenciamento eficiente da
demanda de água, tais como campanhas educativas, normas para
controle do tempo e da quantidade do fornecimento, restrições e sanções,
entre outras. Basicamente, os incentivos não-econômicos podem ser
agrupados em voluntários e compulsórios.

Restrições e sanções

Os usuários podem ser forçados a conservar água de vários modos. Em


sistemas autoritários, onde o usuário tem pouco ou nenhum poder, a água
pode ser ligada e desligada e mesmo realocada ao bel-prazer dos
administradores do sistema. O fornecimento de água pode ser cortado em
tempos de escassez, acarretando a conservação do recurso, de modo
involuntário. Algumas medidas podem ser eficazes, mas não garantem a
eficiência e a eqüidade.

Sanções legais podem ser aplicadas a usuários que não obedecem às


regras estabelecidas por lei. Restrições são usualmente aplicadas a
atividades não essenciais, em tempos de escassez temporária, como por
exemplo, a proibição de lavar calçadas e carros e regar gramados, entre
outras.

Quotas e Normas

Quotas de água e normas podem ser impostas aos usuários, no intuito de


alocar um suprimento escasso da maneira mais eqüitativa possível. O
racionamento pode ser efetuado através do estabelecimento de quotas de
consumo por usuário ou de tarifas punitivas para aqueles que
consumirem mais que a quantidade preestabelecida. Esta última
modalidade pode ser considerada de caráter híbrido, uma vez que
82
envolve também um instrumento econômico, tendo um efeito semelhante
ao de uma multa, sendo, no entanto, mais eficiente, por cobrar em função
do volume que excedente àquele estipulado previamente.

Bhatia et al. (1993) citam o exemplo do East Bay Municipal Utility


District, na Califórnia, que usa uma estrutura tarifária progressiva.
Aqueles que consumem 140% do valor alocado por sua quota, por
exemplo, pagam uma tarifa seis vezes superior à tarifa normal.

Penalidades pelo uso da água em quantidades superiores àquelas


estabelecidas em normas também são utilizadas em Tianjin, China, onde
o setor industrial paga de 3 a 50 vezes o valor da tarifa normal,
dependendo da transgressão: usuários que consomem quantidades de 1 -
10% superiores à quota não são sobretaxados; de 11-20% , pagam 20
vezes o valor da tarifa normal; de 21 - 30% , 30 vezes; de 31 – 40% , 40
vezes e acima de 40% , 50 vezes (Winpenny, 1994).

Campanhas educativas

Segundo Bhatia et.al. (1993), campanhas educativas e de apelo ao


espírito público do usuário são freqüentemente utilizadas, com sucesso,
como um instrumento de conscientização do usuário quanto à
necessidade da conservação de água durante períodos de escassez
temporária. Segundo os autores, durante uma seca severa na Califórnia, a
cidade de San Diego conseguiu reduzir em 30% a demanda de água,
apenas com esta medida.

Na maioria das vezes, entretanto, o conjunto de medidas para a gestão da


demanda incluem também, além de campanhas educativas e de
conscientização, instrumentos de caráter econômico, sendo, desta forma,
de difícil quantificação o impacto individual das campanhas na redução
da demanda.

83
Apesar de não se dispor de números que traduzam a eficácia desta
medida no que diz respeito à redução efetiva da demanda de água em
longo prazo, é patente a importância das campanhas educativas na
redução dos impactos negativos de medidas mais duras, como
racionamento e cobrança pelo uso da água.

5.4.3. Intervenção direta

A gestão da demanda também inclui intervenções diretas do poder


público no sentido de melhorar a eficiência da rede de distribuição de
água ou de criar programas para o incentivo da eficiência, da reciclagem,
do reúso e da diminuição da poluição, entre outros.

5.5. RESUMO

O capítulo discute as diversas alternativas de aumento da capacidade do


sistema hídrico pelo lado da demanda, através de medidas que
influenciam o comportamento do usuário, induzindo-o à redução do
volume consumido, mas conservando o mesmo nível de serviço. Tais
medidas, que podem ser classificadas em três grandes grupos - medidas
conjunturais, incentivos (econômicos e não-econômicos) e intervenção
direta, não exigem, em geral, maiores gastos, mas a aplicação de
algumas significa mudanças culturais. O texto aborda ainda a
experiência de alguns países na gestão da demanda e os instrumentos
adotados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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waste management: regulatory and economic instruments –
UNDP – World Bank – UNCHS Urban Management Program
Discussion Paper Series, Nº 3 , Washington, D.C., April, 1991.
84
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policy implementation – planning workshop: water demand
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DAVID, P.A. Clio and the economics of Qwerty – american economic
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U.S. OFFICE OF TECHNOLOGY ASSESMENT. Preparing for an
uncertain climate. Washington, DC, 1993.
WINPENNY, J.T. Managing water as an economic resource.- London:
Routledge, 1994.

85
Sistemas de

6 Suporte às
Decisões

Francisco Assis de Souza Filho e


Sila Xavier Gouveia
6.1. VISÃO GERAL DO TEMA

A modernização da legislação dos recursos hídricos, no País, vem


demandando um estágio de planejamento em que os fatores quantidade e
qualidade são peças fundamentais para o equacionamento das políticas
relativas ao setor. Informações cada vez mais complexas são utilizadas e
cada estado da Federação, mesmo com graus diferenciados de
desenvolvimento, vem enfrentado o problema mediante a criação de
organismos adaptados, tanto técnica quanto institucionalmente, à
minimização das deficiências no setor de recursos hídricos. Assim, os
estados preocupam-se cada vez mais com a criação de uma base de
dados que possibilite a condução, a mais racional possível das políticas
hídricas.

A Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos do Estado do Ceará,


(COGERH), por exemplo, vem elaborando um Sistema de Suporte a
Decisão Espacial (SSDE), para dar apoio ao planejamento operacional
de várias bacias hidrográficas. As decisões a serem apoiadas visam à
operação de sistemas de reservatórios, à outorga para o uso da água e à
licença para a construção de obras hídricas.

O presente capítulo apresenta conceitos gerais ligados a sistemas de


suporte às decisões. O texto é apresentado em seis partes, a saber: a) O
gerenciamento de recursos hídricos e negociação de conflitos; b) O
SSDE como parte constituinte de um Sistema de Informações; c) O
usuário do SSDE e o nível de decisão a que o sistema pretende dar
apoio; d) O SSDE, sua arquitetura e a função de cada um dos seus
componentes; e) Os princípios gerais para implantação do SSDE; f) As
tarefas necessárias à implantação do SSDE.

6.2. GERENCIAMENTO DE RECURSOS HÍDRICOS E


PROCESSOS DE NEGOCIAÇÃO DE CONFLITOS

O gerenciamento de recursos hídricos, para múltiplos propósitos, usos e


objetivos, freqüentemente envolve diversos interesses que acarretam
disputas. O gerenciamento dos conflitos assim gerados está associado às
incertezas no suprimento, na demanda, nas modificações decorrentes das
restrições institucionais e legais e, a uma série de outros fatores inerentes
ao ambiente gerencial.

As decisões a serem tomadas pelos órgãos encarregados do


gerenciamento (agências, comitês de bacias...) ocorrem, portanto, em
situações de mudanças, restrições e incertezas, (Thiessen & Loucks,
1992). Um processo privilegiado para a resolução destes conflitos é a
negociação, cujo principal propósito é a identificação de alternativas com
a possibilidade de serem aceitas por todas as partes.

O processo de negociação é interativo e iterativo. Durante o seu


desenvolvimento, torna-se necessário o conhecimento das implicações
inerentes a cada uma das alternativas e os benefícios associados as
mesmas, o que se mostra indispensável para identificar preferências
relativas a cada uma das partes, tornando viável uma negociação
racional.

88
Geralmente, o tomador de decisões, por força de suas atribuições, possui
uma visão abrangente de seu campo de atuação e dos programas de ação,
com os quais almeja a realização de seus objetivos. Para isso se
articulam políticas, programas e projetos, os quais se transformarão em
instrumentais no cumprimento de suas metas. No entanto, ao passar à
fase de implementação, os dirigentes ressentem-se de ferramentas
prospectivas apropriadas, que permitam resolver os problemas práticos
encontrados na implementação de suas metas.

No campo dos recursos hídricos, a tomada de decisões técnicas e


operacionais necessita de modelos de previsão confiáveis, que
proporcionem respostas rápidas e tenham manuseio amigável. Estes
modelos deverão levar em conta as condições de ambiência dos
hidrosistemas (sistemas hidráulico/hidrológico) as restrições e os
condicionamentos de natureza jurídico-administrativa. As condições de
incertezas hidrológicas são inerentes ao processo, pois são ocasionadas
pelo caráter estocástico dos fenômenos da natureza, pelas incertezas dos
parâmetros dos modelos e ainda pelas incertezas dos próprios modelos
utilizados. Portanto, a metodologia de construção de uma ferramenta,
que dê suporte às decisões de um Sistema Sócio-Técnico, deve ser
entendida como a montagem de um Sistema Técnico em um ambiente
Sócio-Político (Grigg, 1996).

Para os órgãos de planejamento de recursos hídricos, esta ferramenta


deverá dar suporte à operação de sistemas de reservatórios, aos cursos
dos rios e ou aos grandes vales perenizados do semi-árido, aos sistemas
de abastecimento das cidades, à concessão de outorgas para o uso da
água e ao licenciamento para a construção de obras hídricas.

89
6.3. O SSDE COMO PARTE DE UM SISTEMA DE
INFORMAÇÕES DE RECURSOS HÍDRICOS

Um Sistema de Informações de Recursos Hídricos (SIRH) consiste em


um conjunto de conhecimentos necessários à gestão dos Recursos
Hídricos e ao acompanhamento das políticas governamentais deste setor,
no âmbito de unidades que tratam destas questões. A Figura 6.1
apresenta as partes essenciais de um sistema de informações, em
camadas:

A geração da informação, responsável pela contínua atualização dos


dados;

A base de dados, constituída por séries históricas e pelo conhecimento


gerado, a partir das informações básicas;

Uma política que torne acessível a informação;

O processo de tomada de decisão, o qual é, em última análise, o


objetivo final do sistema de informação.

A complexidade de cada uma das camadas constituintes da pirâmide,


pode apresentar-se de modo diferenciado, segundo a ótica de usuários
diversos, como função do uso pretendido.

De maneira geral, a importância das camadas superiores cresce com o


horizonte da decisão tomada, (curto, médio e longo prazo), e com o nível
da decisão no processo de planejamento (operacional, tático ou
estratégico).

90
Tomada de
Decisão

Disponibilização da
informação

Base de Dados, Informações e


Conhecimentos

Geração da Informação

Figura 6.1 - Estrutura do sistema de geração da informação

As informações referentes aos recursos hídricos são oriundas de diversas


fontes e processos como:
 Compilação nos planos de bacias hidrográficas;
 Monitoramento de demandas, medida de utilização e estimativa
das necessidades concernentes ao uso industrial, agrícola,
turístico e urbano e/ou outros;
 Informações do sistema de outorga e da cobrança pelo uso da
água;
 Informações referentes ao licenciamento, para implantação de
novas obras hídricas (poços, barragens, adutoras);

91
 Dados resultantes da operação dos hidrossistemas;
 Dados oriundos da participação popular e pública na gestão dos
recursos hídricos;
 Monitoramento hidroambiental (medida de parâmetros
fluviométricos, estoques de água, pluviométricos, de aqüíferos,
dados sobre qualidade da água superficial e subterrânea e
parâmetros climáticos).

A base de dados, informações e conhecimentos de um SIRH, pode ser


armazenada em diversos meios (papel, magnético, microfilme) e nas
mais diversas formas possibilitadas por estes meios em variados locais
(banco de projetos, bibliotecas, banco de dados e sistemas de
informações georeferenciadas – SIG), dispersos por instituições distintas.
Nenhum destes meios e formas de armazenamento pode deixar de ser
levado em conta quando da formatação do SIRH.

A disponibilização da informação pode ser entendida como o sistema de


informação “Stricto Sensu”. É no âmbito desta camada que se estabelece
a política de circulação da informação e as articulações
interinstitucionais, para troca da base de dados, informações e
conhecimentos, gerados a partir da demanda e oriundos de suas funções
e atribuições. Esta camada possui importantes ingredientes políticos e
institucionais.

A tomada de decisão é o ápice e o objetivo final do sistema de


informação. As decisões podem ser divididas em três grandes classes: as
operacionais, as táticas e as estratégicas.

Um exemplo das decisões operacionais é a operação de um reservatório


isolado, quando se procede a pequenos ajustes na liberação de suas
vazões, ou ainda a transferência de água através de canais e ou adutoras.

92
Para as decisões táticas: podemos citar, como exemplo, a outorga de
caráter anual, a definição da regra de operação anual dos hidrossistemas.
Por sua vez, as decisões estratégicas podem ser exemplificadas pela
definição da hierarquia de construção de obras hídricas e pelos planos de
recursos hídricos que definem as outorgas de longo prazo.

6.4. OS DECISORES

A Política de Recursos Hídricos tem várias instâncias de decisão,


dependendo do tipo e da abrangência.

Por tipo: Parlamentar, executivo ou arbitragem de conflito;

Por abrangência: Articulação de Políticas Públicas, Sistema de Recursos


Hídricos, problemas hídricos na bacia hidrográfica e em escala local.

As decisões que dizem respeito, mais de perto, a este trabalho, são


aquelas referentes às bacias hidrográficas, que têm como órgãos
gestores, no caso do Ceará, o Comitê de Bacia (CB), a COGERH e a
SRH, e como principais atribuições a alocação e a realocação dos
recursos hídricos na bacia.

A alocação e a realocação dos recursos hídricos decorrem de dois


processos: 1) negociação da regra de operação de utilização dos estoques
de água e, 2) através do processo de outorga de uso. Estas decisões
serão tomadas com mais segurança com o auxílio de um Sistema de
Suporte a Decisão (SSD).

O pressuposto fundamental de um Sistema de Suporte a Decisão é o de


que o processo seja racional. E, para isso, segundo Grigg (1996), é
necessário percorrer os seguintes passos:
 Reconhecimento e identificação do problema;
93
 Definição da meta a ser alcançada;
 Estabelecimento de critérios e magnitude da meta definida;
 Formulação de alternativas;
 Projeção das alternativas, no tempo e no espaço, e análise dos
impactos;
 Escolha de uma alternativa;
 Sua implementação.

Muitas vezes, o processo político perturba ou frustra uma tomada de


decisão racional, introduzindo elementos imprevisíveis ou de difícil
entendimento. Estas interferências se apresentam como reflexos de
debates ideológicos no processo decisório das políticas públicas, as quais
fixam o nível de decisão do Sistema de Recursos Hídricos. Também,
identificam-se estas interferências sob a forma de conflitos de interesses
específicos, em esferas de decisões inferiores.

A regra anual, de operação dos reservatórios, que fixa a alocação de água


é um processo político dentro do modelo cearense. Este tipo de modelo,
conforme bem definiu Grigg (1996), pressupõe:

 Identificação dos grupos interessados no problema;


 Identificação das trocas potenciais e estratégias que podem
ocorrer nas negociações;
 Participação popular;
 Estabelecimento de alternativas que possibilitem aproximações,
no sentido da resolução dos conflitos;
 Identificação das preferências individuais e grupais;

94
 Análise comportamental, votação e outros conceitos adidos às
ciências políticas.

A decisão é tornada irrevogável, quando submetida a valores, crenças e


interesses das partes que constituem o processo. Neste sentido, o SSD
apresenta-se como ferramenta apta a dirimir conflitos realmente
existentes ou aparentes e apresentar alternativas de trocas entre as partes,
no processo de negociação.

6.5. O SISTEMA SUPORTE A DECISÃO ESPACIAL

O modelo a ser descrito é o de um Sistema de Suporte a Decisão


Espacial (SSDE), o qual será parte constituinte do Sistema de
Informações de Recursos Hídricos (SIRH).

O SSDE se constitui em uma nova classe de sistemas computadorizados,


que combinam técnicas de Sistema de Informação Geográfica (SIG) e
Sistema de Suporte a Decisão (SSD), auxiliando os tomadores de decisão
na análise de problemas que possuem dimensão espacial, (Walsh, 1993).
Devido ao fato dos problemas em Engenharia de Recursos Hídricos
envolverem, predominantemente, a dimensão espacial e do SSDE
contemplar as vantagens do SGI e SSD, escolheu-se a construção do
SSDE como ferramenta básica de apoio ao processo de decisão da
COGERH.

6.5.1. Estrutura do sistema de suporte a decisão

O SSD é um sistema computacional de fácil entendimento e utilização,


cujo objetivo é ajudar pessoas ou grupos decisórios a solucionar
problemas não estruturados ou parcialmente estruturados. Entenda-se por
problemas não estruturados aqueles que não são passíveis de serem

95
sistematizados por equacionamento matemático ou por não possuírem
estrutura conceitual lógica, Porto (1997)2.

Basicamente, os SSD são compostos de três partes:


 Um módulo de diálogo (geralmente uma interface gráfica);
 Uma base de dados/conhecimentos;
 Uma base de modelos (otimização e simulação).

A Figura 6.2 apresenta a interligação dos diversos componentes de um


sistema deste tipo.

Figura 6.2 - Arquitetura de um sistema de suporte a decisão (Fonte: Walsh,


1993)

Em sua concepção, os SSDs têm as seguintes características peculiares:


 São orientados aos tomadores de decisão ou aos usuários de
recursos hídricos. Os usuários deverão constituir o principal foco
no processo de construção do SSD;
 São interativos;

2
Porto, R.L. Comunicação pessoal
96
 São direcionados a problemas não-estruturados ou parcialmente
estruturados;
 Possuem componentes modulares, integrando a interface do
usuário, modelos e banco de dados.

6.5.2. Estrutura de um sistema de suporte a decisão espacial

A união da tecnologia de um SIG a um SSD propicia a formação dos


Sistema de Suporte a Decisão Espacial (SSDE) que, em suma, é um SSD
direcionado a dar suporte à tomada de decisão com relação a problemas
não-estruturados com dimensão espacial. A estrutura dos SSDEs baseia-
se em uma interface padrão entre SIG e o modelo.

A Arquitetura de um SSDE é apresentada a seguir:

Sistema de Informação Geográfica - O Sistema de Informação


Geográfica (SGI) é um sistema computacional de ajuda à aquisição,
armazenamento, análise e apresentação de dados geográficos (Eastman,
1995). Os dados geográficos podem ser naturais, (rios, lagos, relevo,
vegetação) ou antrópicos (reservatórios, estradas, cidades).

O SGI proporciona a manipulação espacial dos dados, sendo portador de


ferramentas de análises ágeis e adaptadas à organização, edição,
armazenamento, análise, localização e informação de atributos de dados
geográficos. Tornam ainda possíveis operações aritméticas entre as
variáveis dos diversos planos de informação, respeitando sua distribuição
espacial. No entanto, os SGI existentes têm pequena capacidade de
modelagem, como decorrência da simplicidade de suas ferramentas de
transformação. As partes componentes de um SGI são a base de dados
espaciais e a base de atributos dos dados.

97
Banco de Dados Espaciais e de Atributos: Constituído por espaço
devidamente organizado no computador, no qual estão armazenadas as
informações geográficas descritivas dos elementos da superfície
terrestre, forma e posição, (banco de dados espaciais) e as qualidades ou
atributos relativos a tais elementos, (banco de dados de atributos). O
núcleo central do SGI é a base de dados espaciais e de atributos. A base
de dados espaciais refere-se à localização e posição relativa dos objetos.
Estes, no formato vector, são pontos, linhas e polígonos e no formato
raster são células de uma grade. Os atributos, por sua vez, são as
características não espaciais, associadas aos objetos, como por exemplo:
volume do reservatório, curvas cota/área/volume.

Sistema de Digitalização de Mapas: Componente que permite a


conversão de dados espaciais, derivados de mapas existentes canalizados
para o formato digital;

Sistema de Gerenciamento do Banco de Dados: Tem como principal


função oferecer condições para edição, manipulação e análises, no banco
de dados de atributos;

Sistema de Análise Geográfica: É a ferramenta que dá ao SIG sua


verdadeira identidade. É o módulo que distingue o SIG dos sistemas
tradicionais de pesquisa em banco de dados, pois, neste caso, as
ferramentas analíticas utilizadas têm capacidade de trabalhar de fato,
com os dados distribuídos espacialmente.

Sistema de Apresentação Cartográfica: É o sistema que garante


produção de mapas a partir das informações contidas no banco de dados
espaciais e de atributos.

O SIG pode, ainda, ter como componentes acessórios, mas não


essenciais:

98
Sistema de Processamento de Imagens: Adiciona ao SIG a capacidade
de trabalhar com imagens de satélite, fornecendo os meios necessários ao
tratamento e à análise deste tipo de informação;

Sistema de Análise Estatística: Torna possível o tratamento estatístico,


tanto com o banco de dados espaciais como com o de atributos,
resultando em relatórios estatísticos.

6.5.3. Sistemas de Informações Geográficas

Os quatro componentes básicos de um SIG são: hardware, software,


dados geográficos e pessoais. O componente hardware se constitui de
todos os equipamentos necessários para desempenhar funções de coleta,
processamento e apresentação de informações, em forma digitalizada.

No desenvolvimento das atividades de gestão de recursos hídricos,


trabalha-se com uma variedade muito grande de informações distribuídas
espacialmente, devendo estas serem devidamente atualizadas,
necessárias às previsões inerentes aos cenários futuros do
desenvolvimento do Estado, com vistas a um melhor planejamento dos
recursos hídricos. Isto pode ser bastante facilitado através da aplicação
da capacidade dos SIGs de trabalharem de forma dinâmica as
informações.

6.5.4. Banco de dados

O banco de dados é uma coleção de dados organizados e integrados,


armazenados em forma de tabela. As tabelas de dados devem ser
sistematizadas por assunto tendendo a reduzir a ocupação de espaço com
armazenamentos repetidos de uma mesma informação. As tabelas devem
estar interligadas através de chaves e através de conotação relacional.
Isto posto além de proporcionarem diminuição do espaço ocupado pelo
99
banco de dados evitam o seu crescimento exagerado, tornando a
manipulação mais eficaz.

Na organização dos modelos gerenciais de recursos hídricos é desejável


que se disponha de:
 Uma gestão integrada e descentralizada, ou seja, cada elemento
institucional a compor o Sistema de Gerenciamento, tendo
atribuições peculiares e que prestem, consequentemente,
contribuições específicas à atualização das informações;
 Um modelo gerencial deste tipo exige que a informação flua de
forma ágil e precisa. Deste fato decorre que os bancos de dados
das diferentes instituições, componentes de um Sistema de
Gerenciamento, tenham que procurar, em sua arquitetura,
estarem preparados para a manipulação, através de um sistema
gerenciador de banco de dados relacional e distribuído.

O sistema deverá ter propriedades de integração e compartilhamento.


Entende-se por sistema integrado a unificação dos diversos arquivos de
dados que, do contrário, seriam distintos, eliminando-se total ou
parcialmente qualquer redundância dos mesmos e, por sistema
compartilhado, a capacidade de diferentes usuários manipularem as
mesmas partes dos dados simultaneamente (acesso concorrente); todos
os usuários podem ter acesso às mesmas parcelas de dados (propósitos
diferentes).

6.5.5. Modelos

A linguagem adotada nas ciências relativas ao domínio físico provém da


Matemática. Através desta linguagem, traduz-se o fenômeno natural, o
mundo existente, para o domínio das representações humanas. Estas
100
representações ou a forma de realizá-las são os modelos numéricos, que
consubstanciarão o banco de modelos do SSDE.

Os modelos devem satisfazer plenamente os critérios listados em Porto


& Azevedo (1997), quais sejam: precisão, simplicidade, robustez,
transparência e adequação e, ao serem implantados, deverão cobrir um
amplo leque de possibilidades de análises, contemplando os aspectos
relacionados ao tratamento e projeção temporal e espacial da informação,
recuperada do banco de dados ou avaliada pelo usuário.

Os modelos a serem incorporados no SSDE podem ser classificados


segundo as categorias:
 Modelos de simulação e otimização do sistema rio -
reservatório;
 Projeção e estimativa da demanda atual;
 Modelos de água subterrânea;
 Modelos de escoamento na bacia;
 Modelos de transporte de sedimento;
 Modelos de qualidade da água, em rios e reservatórios, e
modelos ecológicos;
 Modelos hidrodinâmicos;
 Programas de propósito geral.

A implantação destes tipos de modelos no SSDE pode seguir três


caminhos básicos: o primeiro, pertinente ao desenvolvimento de modelo
específico para o SSDE; o segundo, incluindo a escolha de modelo de
uso geral e sua implantação no sistema, e o terceiro, variante do segundo,
utiliza o modelo de uso geral como núcleo encapsulado e um pré e pós

101
processador, que produz interface amigável (exemplo interfaces
Windows dos modelos HEC2, QUAL2E).

Modelos de Simulação, Otimização da Alocação da Água. Yeh (1985) e


Wurbs (1993) realizaram revisão da literatura sobre os modelos de
simulação e otimização de sistemas de reservatórios. Loucks et al (1981)
apresentaram em seu livro “Water Resource Systems Planning and
Analyses” a elaboração conceitual e numérica da modelagem para a
operação de sistemas de reservatórios. Modelagem de quantidade e
qualidade pode ser encontrado em Mays (1997).

Souza Filho & Porto (1996) estudaram a alocação de águas para o


sistema de reservatórios da região metropolitana de Fortaleza utilizando
o modelo de rede de fluxo MODSIM desenvolvido por Labadie et al.
(1986).

Apresentado pelo professor Loucks, o modelo IRIS (Interative River


System Simulation) foi desenvolvido pela International Institute for
Applied Systems Analyses (IIASA) e pela Cornell University. O modelo
opera os reservatórios como função da estocagem e da estação do ano e
opera o sistema de reservatórios de forma combinada.

Wurbs e Karama (1995) desenvolveram o modelo RESSALT, que


contempla a operação de sistemas de reservatórios sujeitos a processos
de salinização.

Os modelos HEC 5 (HEC,1982), bem como o HEC 3, são muito


utilizados, tendo sido o último, HEC 3, utilizado na realização do Plano
Estadual de Recursos Hídricos do Estado do Ceará, SRH-Ce (1991).
Lund et al (1995) propuseram modelo de rede de fluxo para alocação de
água, baseado em simulador desenvolvido pelo Corps Engineering, no
modelo HEC-PRN.

102
Fontane (1997) desenvolveu modelagem do planejamento da operação
de reservatórios, utilizando lógica Fuzzy na definição da função objetivo.
Esta linha de pesquisa é compartilhada por Russell et al (1996), e Huang
(1996).

Modelos de qualidade e modelos ecológicos. Existem diferentes tipos de


modelos de qualidade da água. A adequação do modelo e os dados
básicos exigidos dependem do propósito do estudo.

A modelagem numérica de bacias hidrográficas tem sido contemplada


com grande número de modelos que avaliam o impacto ocasionado por
cargas pontuais, mas são poucos os modelos que analisam o efeito das
cargas difusas.

A modelagem da qualidade das águas / modelos ecológicos, em


ambientes aquáticos superficiais, encontram revisões e sistematização
nos trabalhos de Thoman e Muller (1983), Chapra (1997) e Jorgensen
(1993); Porto (1991) e Wrobell (1989).

Em rios:

Diversos modelos são encontrados na literatura, que simulam a


qualidade da água dos rios. O modelo QUAL2E (Enchanced Stream
Water Quality Model), Brown et alli (1987), é um modelo
unidimensional, que opera com escoamentos hidraulicamente
permanentes e pode simular até 18 constituintes diferentes. Este modelo
foi desenvolvido pela EPA (Enviromental Protection Agency), dos
Estados Unidos, sendo, provavelmente, o modelo de qualidade de água
mais utilizado na atualidade.

O modelo WASP5 (Ambrose,1993) foi também desenvolvido pela EPA,


simulando escoamentos transientes em rios, reservatórios e estuários,
simulando o processo de advecção e difusão nos corpos d’água,

103
simulando processos de eutrofização, DBO e OD, bem como o
lançamento de uma substância tóxica no corpo d’água.

O modelo CE-QUAL-RIV1 foi desenvolvido pela Waterway Experiment


Station e associa o modelo de propagação de cheias que resolve as
equações de Saint Venant, associadas aos parâmetros de qualidade da
água, temperatura, OD, DBO e nutrientes (ciclo do fósforo e nitrogênio).

O modelo DESERT, desenvolvido pela IIASA, é um modelo de análise


de cenários de tratamento e impactos nos cursos d’água, ocasionados em
decorrência dos lançamentos.

Outros modelos, como o SWMM, destinam-se a aplicações em regiões,


enquanto que o SWRRB trabalha com fontes difusas, em regiões rurais,
Arnold (1991). Existem ainda modelos que apresentam componentes de
canais naturais como parte de um processo de simulação de rede
rio/reservatórios em um sistema. Exemplos deste tipo de modelo são o
WQRRS (HEC, 1985) e o HEC 5Q (HEC, 1986) desenvolvidos pelo
Hydrologic Engineering Center.

Em reservatórios:

Chapra (1997) apresentou modelo mecanicista de predição de processo


de eutrofização em reservatórios dimíticos, ou seja, modelo com duas
estratificações e duas misturas anuais. É utilizado para a simulação do
processo de eutrofização em reservatórios, baseando-se no ciclo do
fósforo. Souza Filho (1997) apresentou modelo de previsão da
concentração de sais em reservatórios, que satisfaçam a hipótese de
mistura completa.

A modelagem unidimensional, vertical, em reservatórios, tem


apresentação conceitual em Ford & Johnson (1986) e Bross & Harleman
(1979).

104
O CE-QUAL-R1 (USACE, 1986) é um modelo unidimensional, sendo a
direção considerada a vertical, para simulação transiente em
reservatórios. Os parâmetros de qualidade da água são temperatura e
salinidade, considerando a possibilidade de estratificação, condições
aeróbias e anaeróbias, alcalinidade-pH-CO2, estado trófico, coliforme e
carga orgânica, entre outros parâmetros.

Outro modelo unidimensional, vertical, é o WESTEX (Fontane et alli,


1993), que simula o efeito do vento e da temperatura, bem como OD,
DBO e três constituintes conservativos.

Exemplo de modelo bidimensional de qualidade da água é o CE-QUAL-


W2, Cole et al (1995). É um modelo simulador da hidrodinâmica,
utilizando integração das equações de quantidade de movimento,
lateralmente.

Hidrodinâmicos:

A importância da modelagem hidrodinâmica na qualidade da água surge


da necessidade de se quantificar o processo de mistura nos corpos
d’água. Ficher et al (1979) descrevem, de forma minuciosa, o processo
de mistura em rios, reservatórios, estuários e regiões costeiras. A
modelagem hidrodinâmica tem tido grande avanço com o progresso da
Informática. A aplicação da modelagem da turbulência na resolução de
problemas hidrodinâmicos tem uma apresentação sistemática em Rodi
(1980) e ASCE (1988).

Diversos trabalhos aplicam modelagem da hidrodinâmica para avaliação


e predição da qualidade da água, como atesta King (1994 a,b) RMA-2 e
RMA-10, modelos estes utilizados e desenvolvidos pelo grupo de
Modelagem em Mecânica dos Fluidos Ambiental da Universidade
California, Davis.

105
Falconer (1980 e 1991), Yu & Righetto (1998) e Jin et al (1993), Souza
Filho (1995), Souza Filho e Araújo (1998) para citar apenas alguns,
apresentaram modelagem hidrodinâmica que possibilitam análise de
problemas de qualidade da água localizados de forma multidimensional.

6.6. INTEGRAÇÃO MODELO/SISTEMA GEOGRÁFICO DE


INFORMAÇÕES

Diversas estratégias são utilizadas na realização da integração de


modelos numéricos e SIG. A associação mais intima entre SIG e
modelos dá-se nos modelos hidroambientais distribuídos. Estes modelos,
porém, necessitam de uma base de dados avantajada, nem sempre
disponível.

Assim, os modelos apresentados são do tipo concentrado ou do tipo


semidistribuído. Segundo Liao e Tim (1997), as três arquiteturas têm as
seguintes características:
 Acoplamento frouxo do SIG-Modelo: procura as tarefas mais
apropriadas do GIS, de gerar, organizar e apresentar os dados de
entrada e saída dos modelos.
 Acoplamento Íntimo: este acoplamento é obtido a partir de
pequena modificação feita no código do programa SIG, de
forma a possibilitar transferência de dados entre o modelo e o
programa, através de interface que possibilite troca de arquivos
entre modelo e SIG.
 Acoplamento completo: caracteriza-se pela incorporação dos
componentes funcionais do SIG no MODELO ou vice-versa.
Elimina-se a interface, diminuindo-se redundâncias de
desenvolvimento dos módulos do modelo e do SIG. Este tipo de
106
modelo facilita a construção e análise de cenários, porém
apresenta complexa interação entre módulos, impondo a
utilização de modelos mais simplificados.

6.7. RESUMO

O atual estágio de desenvolvimento dos processos de manejo e


gerenciamento dos recursos hídricos no Brasil e mais particularmente no
Estado do Ceará, apresentam-se cada vez mais complexos no que tange a
sua administração. Os problemas decorrentes do manejo das águas
atualmente armazenadas e das possibilidades futuras do aumento destes
estoques, as localizações dos mananciais face aos centros de consumos,
aliados ainda aos aspectos de qualidade, serão, sem dúvida, os grandes
desafios que administradores do setor enfrentarão nos próximos anos.

Os instrumentos para que medidas necessárias a um planejamento mais


racional dos recursos hídricos sejam tomadas pelos administradores, de
modo eficiente e em tempo hábil, serão os Sistemas de Suporte a
Decisão, os quais têm por base modelos matemáticos e base de dados
versando sobre os vários atributos que interessam a determinado capítulo
no campo do planejamento dos recursos hídricos.

Este trabalho esboça, de forma resumida, as linhas gerais de um Sistema


de Suporte a Decisão, incorporando bibliografia do assunto e definindo
marcos conceituais para o projeto e implantação de um sistema deste
tipo.

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110
A Cobrança pelo

7 Uso da Água

Nilson Campos e
Ticiana M. Carvalho Studart
7.1. VISÃO GERAL DO TEMA

O dia, a água, o sol, a lua, a noite - são coisas que eu não tenho que
comprar com dinheiro. Assim escreveu Titus Muccius Plautus,
dramaturgo romano, há muitos séculos passados. A analogia de Plautus
entre os cinco entes provavelmente baseava-se no caráter cíclico de
eventos que aconteciam independentemente das vontades das pessoas.
Esses cinco entes são conseqüências dos ciclos de rotação dos astros -
Sol, Terra e Lua. Contudo, a água tem particularidades não evidentes
naquela época e, por isso, não percebidas por Plautus: a limitação
quantitativa e a vulnerabilidade à poluição.

Foi na visão expressa por Plautus que se desenvolveram muitas


sociedades. As pessoas moravam nas proximidades de fontes de água e,
quando dela tinha necessidade, a ela se deslocavam. Com o crescimento
das cidades e populações, este método primitivo de abastecimento de
água foi se tornando ineficiente. As demandas por água multiplicaram-
se; novos problemas foram gerados; novas soluções tornaram-se
necessárias.

O processo acelerou-se a partir da Revolução Industrial. Durante os


períodos de estiagem, as ofertas de água passaram a ser insuficientes
para o atendimento das demandas. A técnica secular de transportar água
ao longo do tempo, das épocas de cheias paras as épocas de estiagem, foi
intensificada. Grandes reservatórios foram construídos, envolvendo
consideráveis custos econômicos. A água bruta passou a ter um custo
significativo. Nos rios, as águas já não mais corriam somente pela força
da natureza: o homem intervira na parte terrestre do no ciclo hidrológico.

A evolução na maneira de usar a água, acarretou inevitáveis mudanças


no modo de administrá-la. Os corpos d'água - rios, lagos e açudes -
passaram a receber cargas poluidoras em quantidades superiores às suas
capacidades de depuração. As águas foram se tornando mais e mais
poluídas. Para usá-las, a sociedade passou a pagar elevados custos de
tratamento. O aspecto poluição das águas, associado a recorrentes
desastres ambientais, fez a sociedade acordar, aos poucos, para uma nova
maneira de ver e administrar os recursos hídricos e meio ambiente. A
busca de novos paradigmas se tornou mais acentuada

Estudar a história da administração e cobrança das águas constitui-se no


principal objetivo do presente capítulo, o qual também avalia a evolução
do processo histórico do uso da água e o comportamento da Sociedade,
em diferentes culturas. As abrangências temporal e espacial - da Roma
Antiga ao Ceará de hoje - limitam o artigo às linhas filosóficas de razões
para cobrar e situações onde não cobrar.

7.2. A HISTÓRIA ANTIGA DA GESTÃO DAS ÁGUAS

Até cerca de 440 anos após a fundação de Roma, a demanda por água era
satisfeita através da adução do rio Tiber, de poços e fontes. Com o
crescimento da cidade eterna, os romanos desenvolveram o primeiro
sistema de distribuição de água da História, ainda no início da era Cristã.
A água passa, assim, a vir ao encontro da população – e não mais o
inverso – através de longos aquedutos como Appio, Anio Vetus, Acqua
Marcia, Tepula, Virgo e Alsietina. Na Roma Antiga a administração das
112
águas era competência da Comissão de Águas (Statio Aquarum),
liderada pelo Comissário de Águas (Curator Aquarum) - cargo vitalício,
nomeado pelo Imperador, com aprovação do Senado - auxiliado por dois
Pretorianos.

No ano de 97, o Imperador Nerva Augustus nomeia Julius Frontinus VI


Comissário de Águas. Como tal, Frontinus tem autoridade para
administrar um sistema de adução e de distribuição de água complexo,
onde se estimava a taxa de consumo através do diâmetro da tubulação. A
unidade de vazão era denominada quinaria, a qual, até os dias atuais, não
foi avaliada comparativamente as unidades correntes.

Tentando organizar sua gestão, Frontinus escreve dois livros, nos quais
registra fatos e descreve o sistema de distribuição de Roma àquela época.
Seus livros constituem a principal fonte de informação da gestão das
águas no passado.

A Comissão de Águas mantinha registros com dupla entrada: um para


avaliar as disponibilidades hídricas; outro para registrar as demandas
atendidas (conceito moderno de outorga).

Havia, entretanto, certo grau de corrupção espalhado no poder da


estrutura administrativa da água. Segundo Caponera (1992), há indícios
de corrupção entre os comissários de água da Roma Antiga, que
retiravam a água mais pura do sistema público para vendê-las em
benefício próprio, substituindo-as por água de qualidade inferior. Como
foi posto por Lanciani (1880): É instinto dos antigos e modernos
guardas de água cometer tais fraudes.

7.2.1. A cultura da água livre

As idéias expressas por Plautus certamente não eram originais.


Tratavam-se de idéias antigas, já inseridas em costumes e leis, que o
113
dramaturgo colocou de maneira elegante em uma frase. Uma
retrospectiva histórica permite captar trechos que comprovam a cultura e
o direito do livre acesso à água.

A Lei Talmúdica, escrita entre os séculos quinto e terceiro antes de


Cristo, estabelece: rios e riachos que formam fontes, estes pertencem a
todos os homens (cives). A Lei reconhecia ainda a existência de poços
públicos e o direito de acesso a todo viajante (peregrini). A Lei dos
Visigodos (Lex Vishigothorum), do século VII DC, estabelecia, para os
maiores cursos de água (flumina maiora), a liberdade de acesso para
navegação, pesca e outros usos comunitários (Caponera, 1992).

7.2.2. Indícios de cobrança de água bruta

Se, ao longo de todos os tempos, há provas da cultura e do direito de


livre acesso a água, há também provas de civilizações onde a
organização da distribuição de águas em sistemas mais complexos se
dava sob a administração do estado e com cobrança de alguma taxa. Na
China antiga, o Li-Chi estabelecia:

"Na primavera toda a vida começa e as chuvas do Paraíso caem na


Terra, e portanto, deixem as águas correrem e irrigarem os campos; nos
meses de verão construam-se barragens e diques e estoque-se água para
uso posterior; ... nos meses de inverno a vida cessa e a dureza chega,
faça-se a inspeção dos trabalhos, a coleta de taxas de água e a punição
dos ofensores. ”

Mesmo na época de Frontinus, na Roma Antiga, embora quase toda a


água fosse distribuída para uso público, havia uma parte destinada ao
Imperador e a particulares. Os particulares recebiam água através de uma
autorização escrita (epistula a principe) e eram sujeitos ao pagamento de
uma taxa de água. (Frontinus, reprint 1997).

114
7.2.3. Razões para a cobrança da água

Ao analisar-se estes fragmentos de textos sobre a administração das


águas na Antiguidade, pode-se detectar possíveis razões para diferentes
sociedades adotarem, ou não, a cobrança da água. A filosofia de Plautus
se referia ao acesso às águas que corriam, por força da natureza,
livremente em rios riachos ou afloravam em fontes. Esta era a filosofia
predominante.

Por outro lado, a cobrança da água bruta na China antiga certamente não
tinha os mesmos objetivos que se pretende hoje. A palavra taxa poderia
ter um significado diferente. O certo é que havia situações onde a água
era cobrada. Na Roma Antiga, por sua vez, a cobrança das águas aos que
tinham o privilégio de recebê-las em casa, muito se assemelha aos
sistemas atuais de abastecimento de água.

As experiências relatadas mostram que, nos tempos antigos, a cobrança


pela água, ou o seu livre acesso, podiam ser encontrados em diferentes
situações, tais quais:
 As pessoas tinha livre acesso a rios e fontes;
 Em situações em que as águas eram distribuídas às pessoas, estas
pagavam uma taxa de água;
 Em situações onde eram necessárias barragens para a agricultura
irrigada, havia uma taxa de água.

Muitas das situações de gestão de águas enfrentadas nos tempos antigos


podem ser encontradas na sociedade moderna e os procedimentos
adotados são similares. Provavelmente, a grande diferença reside na
preocupação atual com os impactos dos efluentes industriais e
municipais na qualidade da água dos rios e lagos.

115
7.3. A ATITUDE PERANTE A ÁGUA PÓS IDADE MÉDIA

No período pós idade média as pessoas tinham pavor à água, utilizando-a


com muita parcimônia. A lavagem de roupas também não se fazia com
freqüência. Era feitas uma a duas vezes por ano.

Nesse contexto, fica evidente que qualquer evolução mais significativa


na maneira de administrar as águas não podia ter ocorrido. No final do
século XVIII, entretanto, os hábitos de Higiene ganham vulto. A
mudança cultural em relação à água marca um ponto de inflexão na sua
curva de consumo e representa o início da aceleração do processo de
degradação da sua qualidade.

7.4. A ADMINISTRAÇÃO DAS ÁGUAS NA ATUALIDADE

As últimas décadas foram marcadas por um crescimento acelerado na


demanda por água, a qual experimenta hoje taxas nunca vistas na
História. O consumo doméstico cresceu mais que 35 vezes nos últimos
três séculos e quadruplicou desde 1940 (Easter and Hearne, 1995). Fica
em evidência, assim, a busca de novas políticas para administração das
águas em diversas partes do mundo.

Vários países encararam o problema da degradação da qualidade das


águas. Em 1964, a França inicia uma nova política de águas baseada em
seis princípios fundamentais. No aspecto cobrança da água bruta, o
princípio estabelece a mobilização de recursos financeiros específicos
para a água, ou seja, que a água deve pagar a água e que os
consumidores-poluidores devem ser os pagadores (Office International
de l´Eau, 1996). O modelo francês ganha evidência e tem grande
influência nas ações que aconteceram no Brasil, no campo dos recursos
hídricos, nas décadas seguintes.

116
7.5. A COBRANÇA PELA ÁGUA BRUTA NO BRASIL

Para entender a evolução do processo de cobrança de água bruta, nas leis


e nos costumes, é importante a classificação do meio geopolítico onde se
dá o processo. Dessa forma, inicia-se essa seção por classificar as regiões
segundo as ocorrências das águas de sua poluição.

Em um exercício didático, que tivesse como pano de fundo a cobrança


de água bruta, os possíveis critérios para classificação de uma região
seriam a disponibilidade - ou escassez - de água e o nível de atividades
poluidoras da região. Dessa maneira, três classes poderiam ser definidas:

 Regiões com água em abundância e poucas atividades poluidoras


 Regiões com água em abundância e muitas atividades poluidoras
 Regiões com escassez de água e com alguma atividade poluidora

Por completitude, poder-se-ia também pensar em regiões com escassez


de água e sem atividades poluidoras. Essas regiões seriam desertos, ou
semi-desertos, e não interessam ao presente estudo. Analisando-se a
geopolítica do Brasil de hoje, chegar-se-ia a três “Brasis”:
 Brasil 1 - representado pela região Norte, do rio Amazonas e
seus tributários;
 Brasil 2 - representado pelo Sul-Sudeste onde o nível de
industrialização já torna a poluição das águas preocupante;
 Brasil 3 - representado pelo Nordeste, onde a escassez de água
atrasou a industrialização, que se inicia atualmente com alguma
velocidade, e que começa a preocupar.

117
Cada um desses “Brasis” apresenta uma cultura e uma maneira própria
de tratar o problema da água. Pensar em cobrar água bruta, hoje, na
Amazônia seria um absurdo equivalente a cobrar areia no deserto de
Saara. Portanto, no que se refere à cobrança de água bruta, o Brasil 1 se
insere em um futuro muito distante. No Brasil 2, ao contrário, a cobrança
por água bruta já está em processo de ampla discussão e, em muitos
estados, inserida nas leis estaduais. No Estado do Ceará, no Brasil 3, o
processo de cobrança já está em vigor.

7.5.1. O histórico da cobrança de água no Brasil

A cobrança de água já se encontra inserida na legislação brasileira desde


o final da década de 70. Sua aplicação se restringia, entretanto, a
somente um único uso da água: o da irrigação. A Lei de Irrigação (Lei
6.662, de 25 de junho de 1979) dispõe, em seu artigo 21, que a utilização
de águas públicas para fins de irrigação e atividades decorrentes,
dependerá da remuneração a ser fixada de acordo com a sistemática
estabelecida em regulamento.

O Decreto 89.496, de 29 de março de 1984, que regulamentou a Lei,


classifica as águas públicas em permanentes e eventuais de acordo com
os seguintes critérios:
 São permanentes as águas públicas que correspondem à vazão
mínima em todas as estações do ano;
 São eventuais as águas excedentes às vazões mínimas dos rios.

No seu art. 24 fica estabelecido que os autorizados (que recebem águas


eventuais) pagarão 50% dos valores estabelecidos para os
concessionários (águas permanentes). Fica claro, portanto, que a Lei já
incorporava o princípio de que o custo da água cresce com a garantia do
seu fornecimento. Porém, a Lei limita-se a apenas dois níveis de
garantias: o primeiro, associado à água com suposta garantia de 100% e,
118
o segundo, com garantia não definida. Fica claro, também, que a citada
lei não consegue ter aplicabilidade nos os três “Brasis”.

7.5.1.1. A cobrança na nova política de águas do Brasil

A nova visão da Política de Águas no Brasil, sofre grande influência do


processo em andamento na Europa, principalmente na França. A
Associação Brasileira de Recursos Hídricos - ABRH, através de seus
congressos e suas cartas, constitui-se na principal instituição a conduzir a
Política de Águas. Um grande marco desse processo acontece no
Congresso de Gramado. Vários são os princípios propostos para a
Política de Águas, que se referem a cobrança de águas brutas. Por
exemplo: A água, como recurso limitado que é, desempenha importante
papel no processo de desenvolvimento econômico e social, impõe custos
crescentes para sua obtenção, tornando-se um bem econômico de
expressivo valor, decorrendo que:
 A cobrança pelo uso da água é entendida como fundamental para
a racionalidade de seu uso e conservação e instrumento de
viabilização de recursos para seu gerenciamento;
 O uso da água para fins de diluição, transporte e assimilação de
esgotos urbanos e industriais, por competir com outros usos,
deve também ser objeto de cobrança.

A Lei 9.433, de 8 de janeiro de 1997, estabelece a cobrança e as


situações onde as retiradas de água estão sujeitas, ou não, à outorga. A
Lei estabelece situações que independem de outorga do poder público
como:

119
 Uso dos recursos hídricos para a satisfação das necessidades de
pequenos núcleos populacionais distribuídos no meio rural;
 As derivações, captações e lançamentos considerados
insignificantes;
 As acumulações de volumes de água consideradas
insignificantes.

Não fica claro, todavia, se nessas situações a retirada fica, ou não, sujeita
a pagamento. Não há ênfase, também, ao papel social da água.

7.6. A ADMINISTRAÇÃO E A COBRANÇA DE ÁGUA NO


CEARÁ

Do início do Século XX até aproximadamente o final do terceiro quartil,


a política de águas no Ceará era praticamente definida e executada pelo
Governo Federal pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas
(DNOCS). Somente nas três últimas décadas é que o governo estadual
passou a influir e atuar diretamente nessa política. Dessa forma, a
história e a política de águas no Ceará é apresentada em duas partes: a
primeira parte referindo-se aos três primeiros quartis e a segunda parte
referindo-se ao último quartil do século.

7.6.1. As políticas dos três primeiros quartis do Século XX

Há no estado do Ceará, desde o início do século situações reais onde a


água bruta é cobrada pelo Governo. Algumas destas situações são
relatadas a seguir.

120
7.6.1.1. A cobrança da água para irrigação no início do século

As águas regularizadas pelos reservatórios eram aproveitadas para uso


em irrigação obedecendo aos seguintes critérios:

 os canais eram construídos em terras particulares com permissão


dos proprietários;
 a utilização da água era feita mediante o depósito de uma caução
correspondente à quantidade de água pretendida;
 o preço da água era fixado em portaria ministerial;
 havia um guarda de água em cada açude encarregado da
liberação e da condução do volume de água aduzido para os
canais de irrigação.

Essa política foi praticada durante muito tempo. Todavia com os tempos
de alta inflação os valores cobrados tornaram-se irrisórios e a máquina
burocrática não conseguiam reajustar com a devida velocidade.

7.6.1.2. A cobrança para geração de energia elétrica

No início da implantação da infra-estrutura hidráulica do Nordeste, o


Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), tinha por
prática implantar uma mini-usina hidrelétrica em seus reservatórios.
Assim foi feito no açude General Sampaio, Pentecostes e Araras, todos
no Ceará. Com a criação da CHESF e o estabelecimento de uma nova
Política para o setor elétrico, a geração de energia passou a ser
exclusividade da Eletrobrás. O DNOCS deixou de utilizar as turbinas
instaladas.

121
Todavia, a CHESF continuou usando a geração de energia nas turbinas
do açude Araras nos horários de pico. Dessa forma, pode-se dizer que
mesmo na antiga política de águas do estado já havia cobrança de água
bruta no estado do Ceará para geração de energia elétrica, setor este que,
muitas vezes, usa o argumento de não consumir água para não pagar pelo
uso da mesma.

7.6.2. O último quartil do século: a nova política de água

Juntamente com outros estados brasileiros, como São Paulo e Bahia, o


Ceará iniciou no final dos anos 80 a implementação de uma nova política
de águas. Como nos demais estados, a cobrança passou a ser um dos
instrumentos centrais da política de águas.

7.6.2.1. A cobrança de água no abastecimento das cidades

O processo político para a cobrança da água bruta no Ceará passa pela


discussão entre duas secretarias. A Secretaria dos Recursos Hídricos
(SRH), através de sua vinculada Companhia de Gestão de Águas do
Estado (COGERH), tem a competência para o gerenciamento das águas
e efetuar a cobrança. Pelo lado do consumo, tem-se a Secretaria do
Desenvolvimento Urbano (SEDURB) e sua vinculada, a Companhia de
Águas e Esgotos do Estado do Ceará – CAGECE, esta última uma
empresa de economia mista responsável pelo setor de saneamento. Até
antes da Lei, a CAGECE gerenciava as fontes de água usadas para
abastecimento humano – principalmente as de Fortaleza. Os custos com
água bruta eram inseridos nas planilhas de custo da água tratada e
transferidas aos consumidores.

Com a nova Política, a CAGECE passou para a COGERH a


administração dos reservatórios de águas superficiais. Ficou estabelecido

122
que a CAGECE pagaria um centavo de real por metro cúbico de água
captada nos reservatórios.

7.6.2.2.A cobrança de água na indústria

A cobrança da água bruta para setores da indústria no Ceará se dá de


maneira bastante peculiar, como conseqüência da própria estrutura física
do fornecimento de águas e da topologia institucional. Um grande
número de indústria do estado do Ceará concentra-se no distrito de
Maracanaú. Essas indústrias eram abastecidas pela CAGECE através de
dois sistemas: um que distribuía água tratada e outra, que distribuía água
bruta para as indústrias onde os produtos químicos postos pela CAGECE
eram prejudiciais. O preço cobrado pela água bruta, em ambos os casos,
era de R$ 1,20 por metro cúbico. A algumas indústrias era dado, como
incentivo fiscal, um abatimento de 50% resultando em uma tarifa de R$
0,60/m3.

Com a nova Política de Águas do Estado, o gerenciamento de águas


brutas passa a ser de competência da COGERH. Todavia, o domínio das
tubulações de distribuição da água bruta continua sendo da CAGECE. É
feito então um acordo entre as duas companhias: o preço da água bruta é
unificado em R$ 0,67 por metro cúbico e a CAGECE repassa R$ 0,30
por metro cúbico para a COGERH, que fica com a fonte d’água e adução
da água bruta.

7.6.2.3. A cobrança de água na agricultura

Embora a tarifa da água bruta para a irrigação já estar estabelecida por


Lei (o mesmo do setor industrial) devem ser esperadas grandes
resistências políticas e sociais à implementação da cobrança neste setor.
Os irrigantes localizados ao longo do rio não têm tradição de serem
123
cobrados pela água captada diretamente do leito do rio perenizado; os
irrigantes dos perímetros públicos, por sua vez, têm a percepção que já
pagam pela água, através do K2 ; esta taxa, da ordem de R$ 6 a 10 reais
por mil metros cúbicos, cobre, na verdade, unicamente os custos de
operação e manutenção do sistema.

É importante lembrar ainda que a cobrança é condição necessária, mas


não suficiente, para se atingir a eficiência, a eqüidade e a
sustentabilidade. Há casos em que o efeito da cobrança é anulado por
outros arranjos. No caso dos perímetros de irrigação públicos, por
exemplo, se as contas de água (ou de energia) continuarem únicas para
todo o projeto e rateadas pelo número de irrigantes, independentemente
do tipo de produto que cultivem, elas terão pouca influência no uso da
água ou na escolha das culturas.

O acesso dos produtos ao mercado é outro fator que pode tornar sem
efeito o estímulo ao cultivo de culturas de maior valor, através da
cobrança. Os obstáculos à venda do produto são fatores decisivos na
escolha do tipo de plantação, sendo assim, as lavouras de subsistência
são, na maioria das vezes, a opção mais segura, já que podem ser
consumidas pela família caso não sejam comercializadas.

7.6.2.4. A cobrança pelo Sr. Pedro e Dona Rita.3

É interessante e compõe a História das Águas do Ceará o episódio


ocorrido na cidade de Milhã – Zona Central do Estado. A cidade tinha
seu abastecimento de água sob a responsabilidade da Fundação SESP,
que usava como fonte de água, um pequeno açude situado na
propriedade do Sr. Pedro. No ano de 1993, quando se dá o episódio, o
processo de cobrança de água bruta já era objeto de discussão pela

3
Os nomes dos personagens são fictícios. O fato é real
124
Sociedade e muitas vezes o assunto – em suas diferentes facetas – era
analisado e debatido na imprensa do Estado.

Nesse contexto, o Sr. Pedro teve a percepção do novo momento em que


vivia a Sociedade e, percebendo que seria prejudicado em sua produção
agrícola se a FSESP continuasse a retirar água de seu reservatório, teve
uma idéia: cobrar a água.

O Processo teve solução administrativa no âmbito da Secretaria de


Recursos do Estado do Ceará. A rigor, Sr. Pedro não foi pago pela água
que cedeu e, sim, pelos lucros cessantes. Porém, deixando de lado os
rigores da Lei e da Semântica, o Sr. Pedro recebeu dinheiro, ao conceder
à FSESP, o direito de retirar água de seu açude. E, nesta ótica, pode ser
considerado o precursor da nova política de cobrança de água bruta no
Estado do Ceará.

7.7. RESUMO

A demanda crescente por água caminha lado a lado de uma qualidade


declinante. Os locais propícios para novas barragens - a baixo custo -
estão dada vez mais escassos. A obtenção da água bruta - no tempo certo
- está cada vez mais dispendiosa. Buscam-se alternativas: a
dessalinização, a transposição de bacias etc. Todavia, mesmo com o
avanço tecnológico, o custo da água continua crescente. A Sociedade
deve partir para medidas não estruturais. Medidas que, mesmo sem
envolver construções, resultem em economia de água. Assim se chegou à
época do Gerenciamento dos Recursos Hídricos. Conservar a água,
reduzir o consumo. São criados diversos instrumentos. Dentre estes, a
cobrança da água, quer como água bruta, quer como água tratada.

Este ente água, todavia, mesmo tendo um custo e um preço, mesmo


podendo ter seu direito de uso negociável, não pode ser confundido com
125
uma mercadoria comum. Não se trata de ideologia – esquerda ou direita.
A cobrança é, sim, um instrumento poderoso na defesa do meio ambiente
e não se deve pensar que, o simples fato de cobrar, implica,
necessariamente, em privatização do setor de águas brutas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAPONERA, D. A. Principles of water law and administration. A.


Balkema Publishers. Rotterdam, Netherlands, 1992.
FRONTINUS VI, J. De aquaeductu urbis Romae. (Reprint), 1997.
LANCIANI R. Topografia di Roma Antica: I commentarii di Frontino
intorno alle acque e gli acquedotti. In: Arti dell Accademia dei
Lincei. Série 3a Vol. IV Rome, 1880
OFFICE INTERNATIONAL DE L'EAU. A organização da gestão da
água na França. 1996, 36p.

126
Gestão
8 Ambiental
Suetônio Mota e
Marisete Dantas de Aquino
8.1. VISÃO GERAL DO TEMA

O aumento populacional e suas conseqüências têm acelerado o


acréscimo da demanda de água, conduzindo a um risco crescente das
disponibilidades naturais não serem suficientes para o suprimento das
necessidades dos vários usos potenciais, em diversas regiões. Além
disso, grande parte dos usos da água, pelo homem, torna-a imprópria
para utilizações posteriores.

A crescente demanda de água e a multiplicidade de seu uso têm


provocado, em grande parte, crises de escassez e conflitos de interesses,
competição institucional, perturbações sociais e até obstáculos ao
crescimento econômico e à preservação ambiental, resultando, daí a
necessidade de gerenciamento dos recursos hídricos, sob os aspectos
quantitativos e qualitativos.

A inclusão dos aspectos ambientais nos planos de gestão de bacias


hidrográficas é recente. Os planos elaborados anteriormente
preocupavam-se muito mais com os aspectos quantitativos do que com
os de qualidade da água. Com o agravamento dos problemas ambientais,
os aspectos qualitativos passaram a integrar os programas de
gerenciamento de bacias hidrográficas.
A visão atual é a de que a qualidade das águas dos recursos hídricos de
uma bacia hidrográfica depende das atividades desenvolvidas na mesma.
Assim, a gestão dos recursos hídricos deve ser feita considerando o uso
do solo da bacia como um todo.

Neste capítulo, são discutidos os diversos aspectos a serem considerados


na gestão de bacias hidrográficas, dentro de uma visão ambiental, no
sentido de se alcançar a conservação dos recursos hídricos.

8.2. A BACIA HIDROGRÁFICA COMO UNIDADE DE GESTÃO

A adoção da bacia hidrográfica como unidade territorial de planejamento


e de gestão das águas é uma tendência internacional já consagrada
(vejam-se as experiências francesa, alemã, inglesa), que transforma a
cooperação Estado-Município, através dessa interface regional, no centro
das políticas nacionais das águas e do meio ambiente.

A adoção da bacia hidrográfica como unidade de gestão, apesar da


dificuldade inicial inerente à delimitação dos espaços físicos de
planejamento, tem mostrado resultados positivos, devido à possibilidade
de divisão de bacias maiores em sub e micro-bacias hidrográficas.

Atualmente, verifica-se a existência de um consenso, a nível nacional, no


sentido de adotar-se a bacia hidrográfica como unidade de
gerenciamento dos recursos hídricos, entendendo-se a mesma como um
todo indivisível, independente das fronteiras político-administrativas, nas
quais todos os recursos naturais (solo, cobertura vegetal, organismos
vivos, ar e água) e atividades econômicas devem ser levados em conta
como um sistema, interagindo em conjunto.

É da competência do Estado o estabelecimento de Planos de Gestão de


Recursos Hídricos, que deverão conter diretrizes e metas em nível

128
regional, que possam orientar os planos diretores municipais, sobretudo
no que concerne ao crescimento urbano, localização industrial, proteção
dos mananciais, exploração mineral, irrigação e saneamento, de acordo
com as necessidades de recuperação, proteção e conservação dos
recursos hídricos das bacias hidrográficas correspondentes.

Evidentemente, a implantação de um programa deste porte não pode


prescindir de uma base legal.

8.3. COMITÊS DE BACIAS

Os Comitês de Bacias Hidrográficas são criados para promover o


gerenciamento das intervenções nessas áreas. Eles são, normalmente,
constituídos por representantes de Secretarias de Estado ou de órgãos e
entidades da administração indireta, cujas atividades se relacionem com
o gerenciamento ou uso da água, o planejamento estratégico e a gestão
financeira, com atuação na bacia correspondente; representantes dos
municípios contidos na bacia; representantes da sociedade civil, na
forma de universidades, institutos de ensino superior, pesquisa e
desenvolvimento tecnológico, usuários das águas, associações
especializadas em recursos hídricos, entidades de classe e associações
comunitárias, todos com sede na bacia. Geralmente, é assegurada a
participação paritária dos municípios em relação ao estado.

Os comitês têm, normalmente, as seguintes atribuições:


 Aprovar a proposta referente à bacia hidrográfica respectiva,
para integrar o Plano de Recursos Hídricos e suas atualizações;
 Aprovar o plano de atualização, conservação e proteção dos
recursos hídricos da bacia hidrográfica;

129
 Aprovar a proposta de programas anuais e plurianuais de
aplicação de recursos financeiros;
 Promover entendimentos, cooperação e eventual conciliação
entre usuários dos recursos hídricos;
 Proceder a estudos, divulgar e debater, na região, programas
prioritários de serviços e obras, a serem realizadas no interesse
da coletividade, definindo objetivos, metas, benefícios, custos e
riscos sociais, ambientais e financeiros;
 Fornecer subsídios para elaboração do relatório anual sobre a
situação dos recursos hídricos na bacia hidrográfica;
 Elaborar calendários anuais de demanda e enviar ao órgão
gestor;
 Executar as ações de controle no âmbito de bacias hidrográficas;
 Solicitar apoio do órgão gestor, quando necessário.

Nas bacias hidrográficas, onde os problemas de recursos hídricos


justifiquem, poderá ser criada uma entidade jurídica, com estrutura
administrativa e financeira próprias, denominada Agência de Bacia, por
decisão do respectivo Comitê e com aprovação do Conselho de Recursos
Hídricos. As atribuições da Agência seriam as de elaborar os planos de
bacia hidrográfica e gerenciar os recursos financeiros gerados pela
cobrança do uso da água e outros.

8.4. POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE

A Política Nacional do Meio Ambiente foi instituída pela Lei nº 6.938,


de 31 de agosto de 1981, tendo sido regulamentada pelo Decreto nº
97.632, de 10 de abril de 1989, e alterada, em sua redação, pelas Leis nº
130
7.804, de 18 de julho de 1989 e 8.028, de 12 de abril de 1990. Por estes
instrumentos legais, também foi instituído o Sistema Nacional do Meio
Ambiente (SISNAMA).

O SISNAMA é constituído por um órgão superior, na forma de um


Conselho de Governo, com “função de assessorar o Presidente da
República na formulação da política nacional e nas diretrizes
governamentais para o meio ambiente e os recursos ambientais” (Art.6º,
inciso I).

No que concerne ao órgão consultivo e deliberativo, foi criado o


Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), com funções de
“assessorar, estudar e propor ao Conselho de Governo diretrizes de
políticas governamentais para o meio ambiente e os recursos naturais, e
deliberar, no âmbito de sua competência, sobre normas e padrões
compatíveis com os propósitos do SISNAMA” (Art. 6º, inciso II).

A Secretaria do Meio Ambiente da Presidência da República, que era o


Órgão Central, foi transformada, posteriormente, no Ministério do Meio
Ambiente e da Amazônia Legal.

O Órgão Executor da política é o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente


e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), que tem como finalidade
“executar e fazer executar, como órgão federal, a política e as diretrizes
governamentais fixadas para o meio ambiente” (Art. 6º, inciso IV).
Nesse sentido, a ação do IBAMA pode ser suplementada pela atuação de
Órgãos Seccionais, no âmbito dos Estados, e de Órgãos Locais, no
âmbito dos municípios.

Os principais instrumentos da política Nacional do Meio Ambiente são:


 O estabelecimento de padrões de qualidade ambiental;
 O zoneamento ambiental;

131
 A avaliação de impactos ambientais;
 O licenciamento e a revisão de atividades efetiva ou
potencialmente poluidoras.

8.5. CLASSIFICAÇÃO E ENQUADRAMENTO DE CORPOS DE


ÁGUA

A classificação dos corpos de água superficiais foi inicialmente instituída


pela Portaria MINTER, GM 0013, de 15 de janeiro de 1976,
estabelecendo padrões de qualidade e de emissão para efluentes, em 4
classes.

Esta Portaria foi substituída, em 1986, pela Resolução do Conselho


Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, N.º 20, de 18 de julho de
1986. Nesta Resolução foram definidas em nove classes, as águas doces,
salobras e salinas do Território Nacional, sendo cada classe avaliada por
parâmetros e indicadores específicos, de modo a assegurar seus usos
preponderantes. É um instrumento para a preservação dos níveis de
qualidade dos corpos de água, que considera que a saúde e o bem-estar
humano, bem como o equilíbrio ecológico aquático não devem ser
afetados em conseqüência da deterioração da qualidade das águas.

O enquadramento dos corpos de água não se baseia necessariamente no


seu estado atual, mas nos níveis de qualidade que deverão possuir, para
atender as necessidades da comunidade.

O enquadramento dos corpos de água em classes, segundo os usos


preponderantes da água, é um dos instrumentos da Política Nacional de
Recursos Hídricos, instituídos pela Lei N.º 9.433, de 8 de janeiro de
1997. Os objetivos deste instrumento são: assegurar às águas qualidade
compatível com os usos mais exigentes a que forem destinadas e

132
diminuir os custos de combate à poluição das águas, mediante ações
preventivas permanentes. Este mecanismo permite fazer a ligação entre a
gestão da qualidade e a gestão de quantidade da água. Em outras
palavras, fortalece a relação entre a gestão dos recursos hídricos e a
gestão do meio ambiente.

O enquadramento está referido nos artigos 5, 9, 10, 13 e 44 da Lei N.º


9.433/97. O artigo 13 estabelece que toda outorga estará condicionada às
prioridades de uso estabelecidas nos Planos de Recursos Hídricos e
deverá respeitar a classe em que o corpo de água estiver enquadrado e a
manutenção de condições adequadas ao transporte aquaviário, quando
for o caso. Já o artigo 44, estabelece que o enquadramento deve ser
proposto pelas Agências de Água aos respectivos Comitês de Bacias. As
classes dos corpos de água serão estabelecidas pela legislação ambiental.

8.6. PLANO DE CONSERVAÇÃO AMBIENTAL

A conservação de uma bacia hidrográfica, assim entendida a utilização


racional de seus recursos, de modo a manter sua qualidade e seu
equilíbrio sempre em níveis aceitáveis, é o objetivo maior a ser
alcançado em um plano de gestão ambiental.

Um plano de gerenciamento das águas de uma bacia hidrográfica deve


resultar no manejo adequado, não só dos recursos hídricos, mas de todos
os seus recursos ambientais, de modo que seja proporcionado
desenvolvimento social e econômico da área, garantindo a sua utilização,
hoje e sempre.

O gerenciamento da bacia deve, assim, conter diretrizes visando à


proteção dos seus recursos naturais, as quais devem integrar o Plano de
Conservação Ambiental da Bacia Hidrográfica.

133
O Plano de Conservação Ambiental deve ser desenvolvido a partir do
diagnóstico ambiental da área da bacia, observando as etapas indicadas
na Figura 8.1.

8.6.1. Diagnóstico ambiental

O diagnóstico tem por objetivo fornecer um "retrato" da situação


existente na bacia hidrográfica, no momento da elaboração do Plano.
Deve abranger informações sobre os meios físico, biótico e antrópico da
bacia, que devem servir de base para as propostas de conservação
ambiental.

Assim, não deve simplesmente constar de dados compilados de


publicações e estudos existentes, mas de informações que possibilitem o
real conhecimento das características ambientais da bacia, favorecendo à
formulação das propostas de preservação ou de uso racional dos recursos
naturais.

O diagnóstico deve conter informações tais, como:


 Condições climáticas, aspectos geológicos, aspectos
geomorfológicos, características do solo, topografia, recursos
hídricos;
 Meio biótico; fauna e flora; ecossistemas naturais;
 Aspectos sociais, econômicos e culturais; uso do solo;
atividades primárias, secundárias e terciárias;
 Condições ambientais existentes; qualidade da água; destino dos
resíduos sólidos, líquidos e gasosos;
 Levantamento e estimativa das cargas poluidoras.

134
DIAGNÓSTICO AMBIENTAL
 Meio Físico
 Meio Biótico
 Meio Antrópico

IDENTIFICAÇÃO DE ÁREAS FRÁGEIS E DE ÁREAS CRÍTICAS

DISCIPLINAMENTO DO USO E OCUPAÇÃO DO SOLO
 Zoneamento Ambiental
 Proteção de Áreas Frágeis
 Unidades de Conservação
 Manejo do Solo, Água e Vegetação

RECUPERAÇÃO E CONTROLE DE ÁREAS CRÍTICAS

AÇÕES LEGAIS E INSTITUCIONAIS
 Enquadramento dos recursos hídricos
 Legislação ambiental e de uso do solo
 Sistema de Informações / Monitoramento
 Gerenciamento participativo / Comitês
 Educação ambiental

AVALIAÇÃO PERMANENTE
Figura 8.1 - Etapas de um plano de conservação ambiental de uma bacia
hidrográfica

8.6.2. Identificação de áreas frágeis e de áreas críticas

Áreas frágeis são aquelas que apresentam características que


recomendam a sua preservação ou proteção. Numa bacia hidrográfica,
são consideradas como áreas frágeis: nascentes de rios, terrenos
marginais aos recursos hídricos, incluindo a mata ciliar, áreas de
vegetação nativa, morros, montanhas, serras e terrenos com declive
135
acentuado, áreas de recarga de aquíferos, zona costeira, áreas definidas
como Unidades de Conservação.

Áreas críticas são as que apresentam problemas ambientais, resultantes


das atividades humanas desenvolvidas na bacia. Como exemplo de áreas
críticas, podem ser citadas: áreas desmatadas, degradadas e em processo
de erosão ou desertificação; áreas urbanas onde há problemas de
poluição por resíduos sólidos e esgotos domésticos e industriais; áreas de
perímetros de irrigação; áreas de mineração.

As áreas frágeis e críticas merecem atenção especial em um plano de


conservação ambiental. As primeiras, no sentido de serem protegidas
através da preservação total ou do controle mais rigoroso de sua
ocupação. As segundas, através da proposição de medidas para sua
recuperação.

8.7. DISCIPLINAMENTO DO USO E OCUPAÇÃO DO SOLO

O planejamento territorial que considera a bacia hidrográfica como


unidade de gestão, incluindo todos os componentes dos meios físico,
biótico e antrópico dessa área, é a melhor forma de realizar a sua
ocupação e utilização, garantindo-se a conservação dos recursos naturais.

De acordo com Newson (1992), o desenvolvimento de bacias


hidrográficas envolve um sistema complexo, incluindo recursos do meio
rural, do meio urbano, hídricos e humanos, cada um requerendo manejo
e avaliação de impactos.

O disciplinamento do uso e ocupação do solo constitui medida


importante para o controle das atividades a serem desenvolvidas em uma
bacia e, consequentemente, para minimizar os impactos das mesmas
sobre o meio ambiente.

136
Este disciplinamento deve ser feito considerando os condicionantes
naturais do meio físico, tais como: cobertura vegetal, topografia, tipos de
solos, características geológicas e geomorfológicas; sistema de drenagem
natural das águas, incluindo reservatórios e cursos d'água, recarga de
aquíferos subterrâneos.

A partir do conhecimento dos condicionantes naturais (diagnóstico) e da


identificação das áreas frágeis e críticas são propostas diretrizes para o
uso e ocupação do solo da bacia.

A seguir, são comentadas algumas medidas de disciplinamento de uso e


ocupação do solo de bacias hidrográficas.

8.7.1. Macrozoneamento

O macrozoneamento consiste na definição do uso do solo das diversas


áreas da bacia hidrográfica, em função da capacidade de seus
condicionantes naturais de suportarem os impactos resultantes de suas
atividades. A bacia hidrográfica é mapeada, sendo dividida em diversas
áreas, para as quais são propostos usos aceitáveis, não aceitáveis e
aceitáveis com restrições. A definição desses usos depende das
características ambientais do cada trecho (Mota, 1997).

São exemplos de zonas que podem ser definidas para uma bacia
hidrográfica:
 Urbana e de expansão urbana
 Agrícola
 Agrícola e de pecuária
 Pecuária e de reflorestamento
 Reflorestamento e preservação
 De preservação permanente
137
 Unidades de conservação
 Áreas de ocupação restrita, tais como terrenos adjacentes à mata
ciliar, de encostas, de recarga de aquíferos.
 Áreas industriais
 Áreas institucionais.

Muitas vezes, uma bacia hidrográfica abrange áreas de vários Estados e


municípios. Assim, o macrozoneamento deve fornecer diretrizes que
servirão de base para os programas de planejamento territorial, a níveis
estaduais e municipais. Cada Estado ou município deverá aprofundar os
estudos ambientais na escala de sub-bacias e aperfeiçoar o zoneamento,
de modo a garantir o uso e a ocupação do solo com o menor impacto
ambiental possível.

De acordo com a Constituição do Brasil, a política de desenvolvimento


urbano deve ser executada pelo Poder Público Municipal. É necessário,
portanto, que os municípios, ao elaborarem seus Planos Diretores de
Desenvolvimento Urbano, procurem adequar-se às diretrizes de uso e
ocupação do solo propostas para a bacia hidrográfica.

8.7.2. Controle de áreas frágeis

As áreas de uma bacia hidrográfica consideradas frágeis merecem


controle especial quanto ao uso e ocupação. Algumas devem ser
preservadas totalmente (áreas de preservação permanente), enquanto
outras podem ser ocupadas de forma controlada, com baixas taxas de
ocupação.

Para a Bacia Hidrográfica do Rio Jaguaribe, no Estado do Ceará, foram


consideradas as seguintes áreas frágeis, para as quais foram propostas

138
medidas especiais de controle do uso/ocupação do solo (Governo do
Estado do Ceará, 1999):
 Nascentes de rios
 Áreas marginais aos recursos hídricos, incluindo a mata ciliar
 Áreas com relevo acidentado
 Áreas com solo ou cobertura vegetal que recomendem práticas
de conservação
 Unidades de Conservação
 Áreas de recarga de aquíferos
 Zona costeira
 Áreas de caatinga

A Lei Federal Nº 7.754, de 14 de abril de 1989, considera como de


preservação permanente as florestas e demais formas de vegetação
natural existentes nas nascentes dos rios, devendo ser constituída, nesses
locais, uma área em forma de paralelograma, denominada
Paralelograma de Cobertura Florestal, na qual é vedada a derrubada de
árvores, como também qualquer forma de desmatamento.

De acordo com o Código Florestal (Lei Federal Nº 4.771, de 15 de


setembro de 1965, alterada pela Lei Nº 7.803, de 18 de julho de 1989) e
com a Resolução Nº 04, do Conselho Nacional do Meio Ambiente, de 18
de setembro de 1985, são consideradas como de preservação
permanente as florestas e demais formas de vegetação natural situadas:
 Ao longo de cursos d'água e ao redor de lagos, lagoas e
reservatórios naturais e artificiais (Ver item seguinte);
 No topo de morros, montes e serras;

139
 Nas encostas ou parte destas, com declividade superior a 45º,
equivalente a 100 % na linha de maior declive;
 Em altitude superior a 1.800 metros, qualquer que seja a
vegetação;
 Nas restingas, em faixa mínima de 300 metros, a contar da linha
de preamar máxima;
 Nos manguezais, em toda a sua extensão;
 Nas dunas, como vegetação fixadora.

As áreas da bacia onde se encontram essas e outras características


indicadas na legislação devem ser consideradas como de preservação
permanente.

As áreas de recarga de aquíferos, utilizadas para o abastecimento


humano ou para outros fins, devem ser identificadas e ter uso controlado,
sendo recomendados aqueles que não resultem em grandes reduções na
infiltração da água.

Para essas áreas, são recomendados usos tais como recreação,


preservação ecológica ou paisagística, silvicultura, agricultura e outros
com baixas taxas de ocupação (no máximo 0,10 a 0,20). Nelas, deve-se
reduzir, ao máximo, a impermeabilização do solo e o desmatamento.
Além do aspecto da recarga, deve-se controlar, nessas áreas, as fontes
poluidoras, de modo a reduzir os riscos de poluição dos aquíferos (Mota,
1995).

As zonas costeiras, devido à sua importância ecológica e paisagística,


devem ter uso e ocupação controlados. Essas áreas são compostas por
estuários, manguezais, dunas, praias, falésias, restingas, lagoas,
ambientes que devem ser preservados ou ter baixa taxa de ocupação.

140
8.7.3. Áreas marginais aos recursos hídricos

Os terrenos situados nas margens de cursos d’água e reservatórios têm


grande importância, principalmente porque são, geralmente, cobertos por
vegetação natural, considerada como de preservação permanente; a
vegetação existente protege o solo contra a erosão, evitando o
assoreamento dos corpos de água, além de garantir o escoamento das
águas pluviais e constituir áreas de amortecimento das cheias; podem
constituir barreiras ao acesso superficial e sub-superficial de poluentes
para os mananciais.

É necessário que os terrenos localizados em planícies de inundação


tenham uso restrito, de forma a garantir, ao máximo, que os mesmos
permaneçam livres.

As áreas adjacentes à planícies de inundação devem ter uso com baixas


taxas de ocupação, de modo que seja proporcionada a infiltração da água
e, consequentemente, reduzido o escoamento. Nessas áreas, deve-se
exigir que os terrenos permanecem permeáveis em pelo menos 50 % da
superfície.

A Figura 8.2 mostra um esquema de como deve ser o uso do solo nas
margens de recursos hídricos.

As florestas e demais formas de vegetação natural, situadas ao longo de


cursos d’água, são consideradas pelo Código Florestal como de
preservação permanente, em faixa marginal com largura mínima de:
 30 metros, para cursos d’água com menos de 10 metros de
largura;
 50 metros, para cursos d’água que tenham de 10 a 50 metros de
largura;

141
 100 metros, para cursos d’água que tenham de 50 a 200 metros
de largura;
 200 metros, para cursos d’água que tenham de 200 a 600 metros
de largura;
 500 metros, para cursos d’água que tenham largura superior a
600 metros.

Para os lagos, lagoas e reservatórios naturais e artificiais, a Resolução N o


04/85, do CONAMA, estabelece como reservas ecológicas as florestas e
demais formas de vegetação situadas ao redor desses mananciais, numa
faixa marginal com largura de:
 30 metros, para os situados em áreas urbanas;
 100 metros, para os situados em áreas rurais, exceto os corpos
d’água com até 20 hectares de superfície, cuja faixa será de 50
metros.
 100 metros, para as represas hidrelétricas.

Na Bacia do Rio Jaguaribe, no Estado do Ceará, foram estabelecidas as


seguintes faixas de controle do uso/ocupação do solo:

Faixa de preservação: composta pelos terrenos com mata ciliar,


identificada com base em imagens de satélites, nas margens de cursos
d'água e reservatórios.

Faixa de proteção: faixas de terra com largura mínima de 300 metros,


adjacentes às faixas de preservação, para as quais foram feitas as
seguintes recomendações: 50 % da área dos terrenos deverão permanecer
sem impermeabilização, com cobertura vegetal; é proibida a disposição
de resíduos sólidos ou de lodos e a construção de cemitérios; uso de

142
pesticidas e fertilizantes deve ser proibido ou ter controle rigoroso dos
órgãos competentes; atividades geradoras de grandes volumes de esgoto
só poderão instalar-se nessas áreas se contarem com adequados sistemas
de tratamento, a critério do órgão competente.

Baixa Taxa Ocupação Nenhuma Ocupação Ocupação Baixa Taxa


de Ocupação Restrita Restrita de Ocupação

Área de Inundação

Planície de Inundação

Figura 8.2 - Uso do solo em planícies de inundação e áreas adjacentes

8.7.5. Unidades de Conservação

Na bacia hidrográfica existem áreas de valor ambiental que devem ser


protegidas por um instrumento legal: federal, estadual ou municipal. Em
um Plano de Conservação Ambiental devem ser levantados os locais já
estabelecidos, como unidades de conservação e outros, cujas
características ambientais justifiquem sua definição como tal. Essas áreas
devem merecer atenção especial, em termos de medidas que garantam
sua preservação e ou proteção.

A Resolução No 011, de 03 de dezembro de 1987, do CONAMA,


declarou como Unidades de Conservação as seguintes categorias de

143
Sítios Ecológicos de Relevância Cultural, criadas por atos do poder
público:
 Estações Ecológicas;
 Reservas Ecológicas;
 Áreas de Proteção Ambiental, especialmente zonas de vida
silvestre e os Corredores Ecológicos;
 Parques Nacionais, Estaduais e Municipais;
 Reservas Biológicas;
 Florestas Nacionais, Estaduais e Municipais;
 Monumentos Naturais;
 Jardins Botânicos;
 Jardins Zoológicos;
 Hortos Florestais.

8.7.6. Recuperação e controle de áreas críticas

O Plano de Conservação Ambiental deve propor medidas de recuperação


e controle das áreas consideradas críticas, na bacia, tais como:
 Programa de recuperação da vegetação e das áreas degradadas,
que deve ter como base o florestamento e reflorestamento,
práticas de conservação do solo e manejo sustentável da
vegetação.
 Medidas de controle da erosão do solo, incluindo ações de
caráter edáfico, vegetativo e mecânico.

144
 Controle da poluição resultante de resíduos líquidos de cidades e
indústrias, através da execução de sistemas coletores e estações
de tratamento de esgotos.
 Recuperação dos depósitos inadequados de resíduos sólidos,
implantação de aterros sanitários e de outras formas corretas de
destinação final do lixo.
 Manejo correto do solo e da água e controle do uso de
fertilizantes e pesticidas, nas áreas de irrigação, com incentivo à
utilização de adubos orgânicos e tomada de medidas ecológicas
de controle de pragas e doenças.
 Recuperação das áreas de mineração, adoção de medidas
visando a minimizar impactos ambientais decorrentes dessa
atividade.
 Programas específicos para recuperação e controle de outras
áreas degradadas, em função das características das atividades
causadoras.

8.7.7. Ações complementares

Algumas ações complementares são necessárias, para garantir a eficácia


de um Plano de Conservação Ambiental.

(1) Enquadramento dos Recursos Hídricos: classificação dos recursos


hídricos da bacia hidrográfica, de acordo com o seu uso, observando a
Resolução Nº 20, de 18 de junho de 1986, do Conselho Nacional do
Meio Ambiente, conforme discutido anteriormente.

145
A partir do enquadramento, são adotadas medidas visando a garantir que
os corpos d'água alcancem os requisitos das classes definidas para eles.

(2) Legislação: todo programa de conservação ambiental deve apoiar-se


em legislação de controle da poluição e de disciplinamento do uso e
ocupação do solo.

São muitos os dispositivos legais existentes, a nível federal, estadual e


municipal, embora nem sempre eles sejam obedecidos. Em função de
cada situação, pode ser necessária a aprovação de legislação adicional.

(3) Sistema de Informações e Monitoramento: "O sistema de


informações deve ser considerado como base técnica para a gestão da
bacia, orientando as ações do setor público, as atividades do setor
privado, fundamentando a fiscalização e subsidiando o processo de
avaliação. A informação não pode ser confundida com a simples
disponibilidade de dados. A proposta de um sistema de informações
abrange a recuperação, armazenamento e difusão de informações sobre a
bacia, em todos os aspectos abordados no plano" (SANEPAR, 1996).

O Monitoramento deve alimentar o sistema de informações com dados


sobre diversas variáveis ambientais. Através do monitoramento será
possível verificar se as medidas de controle estão alcançando os
objetivos de conservação ambiental da bacia.

(4) Gerenciamento Participativo: De acordo com o que estabelece a


Política Nacional de Recursos Hídricos, a gestão de bacias hidrográficas
deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público,
dos usuários e da comunidade.

Os Comitês, como comentado anteriormente, constituem fóruns


participativos, que promovem a descentralização do gerenciamento,

146
permitindo a interveniência de representantes dos diversos segmentos da
sociedade.

No Estado do Ceará, a participação dos usuários é realizada levando em


consideração três níveis de atuação (Ceará, 1997):

Açude: é o núcleo básico de organização dos usuários, onde pescadores,


vazanteiros, irrigantes e até mesmo o abastecimento das cidades
dependem de um mesmo reservatório de água e devem, portanto, decidir
conjuntamente sobre sua utilização. Neste nível, é apoiado o
fortalecimento ou a constituição de associações e/ou conselhos gestores.

Vale perenizado: este é um nível um pouco mais complexo de atuação,


envolvendo um ou mais açudes e trechos perenizados, onde se
encontram, normalmente, grandes perímetros públicos irrigados,
irrigantes privados, agroindústrias, indústrias e o abastecimento de várias
cidades, os quais devem deliberar, conjuntamente, sobre a operação de
um sistema perenizado. Neste nível, são constituídas as comissões de
usuários das águas dos vales perenizados.

Bacia hidrográfica: é o nível de atuação mais complexo, abrangendo


toda a área de uma bacia hidrográfica, que deve ser entendida como uma
unidade de planejamento e gestão, com todos os seus conflitos e
potencialidades, onde, a partir da consolidação do processo de
organização dos dois níveis anteriores (açude e vale perenizado), serão
constituídos os Comitês de Bacia, visando à concretização do processo
de gestão participativa dos recursos hídricos.

(5) Educação ambiental: é indispensável para que a população se


conscientize da importância da conservação ambiental. Nenhum
programa de conservação ambiental terá êxito se não contar com a
participação da comunidade da área.

147
A educação ambiental é um processo participativo, através do qual o
indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, adquirem
conhecimentos, tomam atitudes, exercem competência e habilidades
voltadas para a conquista e manutenção do meio ambiente
ecologicamente equilibrado (Ministério da Educação e Desporto, 1997).

(6) Órgão Responsável: O Plano de Conservação Ambiental deve ser


executado sob a coordenação de um órgão com estrutura adequada para a
implementação das medidas constantes do mesmo, o qual deve interagir
com outros órgãos, cujas atividades se relacionem com o controle
ambiental e o disciplinamento do uso do solo.

(7) Avaliação Permanente: Um Plano deve ser um documento


dinâmico, constantemente avaliado e reformulado, quando necessário.
Assim, deve haver discussão e avaliação permanentes do mesmo, pelo
Poder Público em conjunto com a comunidade.

RESUMO DO CAPÍTULO

O capítulo discute a gestão de bacias hidrográficas, com ênfase à


conservação ambiental. Inicialmente, são comentados aspectos legais e
institucionais da gestão de recursos hídricos. Depois, é apresentado um
roteiro para elaboração de um Plano de Conservação Ambiental de uma
bacia hidrográfica, destacando-se que a qualidade e a quantidade dos
recursos hídricos dependem do uso e ocupação do solo de sua área
contribuinte. Alguns exemplos de gestão e de conservação ambiental são
comentados, ressaltando-se a experiência do Estado do Ceará.

148
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CEARÁ O caminho das águas: informações básicas sobre o


gerenciamento dos recursos hídricos. Fortaleza, Ceará, 2ª edição,
1997.
CEARÁ. Plano de gerenciamento das águas da bacia do Jaguaribe.
conservação ambiental. Companhia de Gestão dos Recursos
Hídricos do Ceará – COGERH/SRH/ENGESOFT. Fortaleza,
Ceará, 1999.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DESPORTO. Educação ambiental.
MEC, Coordenação de Educação Ambiental, Brasília, 1997.
MOTA, S. Introdução à engenharia ambiental. Rio de Janeiro:
Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental, 1997.
MOTA, S. Preservação e conservação de recursos hídricos. Rio de
Janeiro: Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e
Ambiental, 1995.
NEWSON, M. Land, water and development. river basin systems and
their sustainable management. New York: Routledge, 1992.
SANEPAR. Manual para elaboração de plano de manejo e gestão de
bacia de mananciais. Companhia de Saneamento do Paraná,
Curitiba, 1996.

149
9 Análise de Risco

Vicente Vieira
9.1. VISÃO GERAL DO TEMA

A Análise de Risco no processo de planejamento e gestão dos recursos


hídricos tem crescido de importância substancialmente com o
conhecimento do caráter aleatório das grandezas hidrológicas, tanto
quanto com as variáveis econômicas, sociais e ambientais que envolvem
os sistemas de recursos hídricos e com as quais interagem. No passado, a
não inclusão das incertezas hidrológicas nos processos de gestão de
águas decorriam sobremaneira das dificuldades inerentes aos
tratamentos, matemático e estatístico, do fenômeno. Todavia, muitos
avanços nas ciências matemáticas e a rápida evolução dos recursos
computacionais permitiram, aos estudiosos e gestores de água, incluir
esse importante tema no planejamento e gestão de recursos hídricos.

9.2. O PROBLEMA DA GESTÃO

A crescente demanda de água e a multiplicidade de seus usos têm


provocado, em toda parte, crises de escassez, conflitos de interesse,
competição institucional, perturbações sociais e até obstáculos ao
crescimento econômico e à preservação ambiental.

Não é sem razão que, desde 1990, vinha se consolidando a idéia da


criação de um Conselho Mundial de Água (World Water Council), na
convicção de que “uma eficiente conservação, proteção,
desenvolvimento, planejamento, gerenciamento e uso da água, em todas
as suas dimensões, numa base sustentável e equitativa, para o benefício
de todos os povos, é de vital importância para todas as nações” (Abud-
Zeid, 1997).

Muitos governos estão vivamente empenhados em melhorar ou


implantar seus sistemas de gerenciamento de recursos hídricos, sob as
mais variadas formas e de acordo com suas especificidades jurídicas e
institucionais. Neste sentido, constata Caponera (1992) que “inúmeros
países, quer em estágio industrializado ou em desenvolvimento, em
zonas tropicais, desérticas ou temperadas, estão reexaminando sua
legislação de água ou estudando a possibilidade de aprovar novas
provisões legais para controlar seus recursos hídricos”.

O Banco Mundial, analisando sua atuação na área de recursos hídricos,


nas últimas três décadas, verificou que os países, em geral, têm
permitido a “alocação indevida e o desperdício de água, e ainda a
deterioração ambiental, como resultado de fraquezas institucionais,
falhas de mercado, políticas distorcidas e investimentos mal
direcionados” (World Bank, 1993).

Neste contexto internacional, o Brasil certamente se insere, merecendo


destaque o preceito constitucional de 1988 (art. 21, item XIX), que
determina a criação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos e a recente lei n. 9433, de janeiro de 1997, que o regulamenta.

Os diversos estados brasileiros, por seu turno, introduziram, explícita ou


implicitamente, em suas constituições, artigos, cláusulas e até capítulos
relacionados a recursos hídricos, estabelecendo princípios e diretrizes
que deverão nortear a gestão da água em todos os níveis e formas. E,
muitas leis estaduais, específicas, estão sendo editadas.

152
Reconheça-se, portanto, que uma gestão hídrica bem conduzida é
questão de absoluta prioridade para o País, cabendo aos governos
federal, estadual e municipal, em articulação com a iniciativa privada e
organizações não governamentais, unirem esforços nesse sentido.

9.3. OS INSTRUMENTOS DA GESTÃO

A viabilização de uma gestão integrada, racional, consistente,


minimizadora de conflitos e maximizadora do bem-estar social, passa
pela identificação e implementação de instrumentos de gestão
compatíveis com a realidade física e cultural do país, harmônicos entre si
e, sobretudo, capazes de propiciar o exercício eficiente e eficaz das
funções e atividades administrativas.

A Lei 9433/97 estabelece como instrumentos básicos de gestão, a nível


nacional, os que seguem (art. 5o): a) os planos de recursos hídricos; b) o
enquadramento dos corpos de água em classes, segundo os usos
preponderantes da água; c) a outorga dos direitos de uso de recursos
hídricos; d) a cobrança pelo uso dos recursos hídricos; e) o sistema de
informação sobre recursos hídricos.

As leis estaduais seguem a mesma linha. A de São Paulo, por exemplo


(Lei n. 7663/91, Cap. II), define como instrumentos: outorga de direitos
de uso; infrações e penalidades; cobrança pelo uso dos recursos hídricos;
rateio de custo das obras. No Estado do Ceará, para citar mais um, a Lei
11.966/92 especifica os seguintes instrumentos de gerenciamento:
outorga de direitos de uso dos recursos hídricos; cobrança pela utilização
dos recursos hídricos; rateio de custo das obras de recursos hídricos.

Evidentemente, essas indicações, enfatizadas na legislação maior, não


exaurem o elenco de instrumentos de que se valem os gestores de
recursos hídricos, tais como: os planos em todos os níveis; os sistemas de
153
operação e controle; o monitoramento hidroambiental; a cogestão; a
colaboração privada; a participação dos usuários; os incentivos
financeiros e tantos outros, mais específicos e peculiares. O importante é
que todos esses instrumentos procuram viabilizar a implantação de uma
política hídrica, tornando operacional o exercício das diversas funções e
atividades que caracterizam a gestão da água.

9.4. AS ATIVIDADES DA GESTÃO

A administração dos recursos hídricos compreende, naturalmente, todas


aquelas funções típicas de qualquer administração, ligadas ao
planejamento, coordenação, controle, organização e tomada de decisão,
que se materializam, em geral, nas seguintes atividades: avaliação de
potencialidades e disponibilidades de recursos hídricos; avaliação de
qualidade e enquadramento dos corpos de água; estimativas de demandas
e usos; formulação de planos, programas e projetos; avaliação e controle
da implantação e operação de sistemas hídricos; viabilização da
sustentabilidade técnica, econômica e político-institucional das obras e
serviços hídricos; implantação de sistemas informáticos de recursos
hídricos; exercício do poder de polícia administrativa; controle do uso da
água, através da outorga, cobrança e fiscalização; articulação
intersetorial e interinstitucional; implantação de sistemas de alerta e
assistência durante as calamidades climáticas; avaliação e
monitoramento hidroambiental.

9.5. AS INCERTEZAS DA GESTÃO

Todas as atividades humanas são eivadas de incertezas, quer decorrentes


da própria limitação biológica, quer oriundas da randomicidade dos
fenômenos naturais e da complexidade de seu interrelacionamento.

154
Na área de recursos hídricos, a fortiori, a aleatoriedade dos eventos
hidrológicos, a adoção de modelos imprecisos, as hipóteses
simplificadoras, a relatividade dos princípios adotados e, ainda, a forte
interconexão com componentes ambientais e socioeconômicos
extremamente variados, fazem com que a gestão hídrica, em todas as
suas funções, atividades e instrumentos, conviva com uma vasta gama de
incertezas, tanto endógenas quanto exógenas aos sistemas hídricos de
que se ocupa.

Muitas vezes, torna-se útil classificar as incertezas em termos de suas


fontes ou origens, que compreendem, conforme indicam Morgan e
Henrion (1993): a variação estatística decorrente do erro randômico em
medidas de quantidade; o julgamento subjetivo, causador de erros
sistemáticos e tendenciosidades; a imprecisão linguística que conduz ao
entendimento impreciso de eventos ou quantidades; a variabilidade de
eventos ou quantidades, que variam no tempo e no espaço; a
randomicidade inerente a certos fenômenos ou eventos; a discordância
de opiniões entre técnicos e ou cientistas; a aproximação decorrente da
simplificação de modelos.

9.6. OS RISCOS NA GESTÃO HÍDRICA

As incertezas subentendem, geram ou implicam em riscos, entendendo-


se por risco a probabilidade ou possibilidade da ocorrência de valores,
eventos ou fenômenos indesejáveis ou adversos. Assim, as medidas,
observações, avaliações e tomadas de decisão do administrador de
recursos hídricos contêm variadas formas de incertezas e propiciam a
convivência continuada e inevitável com inúmeros tipos de risco.

Entendemos que essa convivência precisa ser explicitada, para ensejar a


identificação e a quantificação da intensidade desses riscos e, se
possível, sua prevenção, minimização ou mitigação.
155
O gerenciamento do risco pode tornar mais eficiente o uso dos recursos
hídricos disponíveis, incorporando-se ao processo de decisão
mecanismos de otimização de comportamento perante os riscos.

Eis alguns benefícios, apontados por Raftery (1994), da adoção de uma


prática de gerenciamento de risco: há uma redução geral da exposição ao
risco; o preplanejamento conduz à utilização de providências rápidas e
pré-avaliadas, no caso dos riscos se materializarem; decisões mais
explícitas sobre o projeto; mais clara definição de riscos específicos,
associados a determinados projetos; uso mais completo da qualificação e
experiência do pessoal envolvido; boa documentação, assegurando
acumulação individual de conhecimento dos riscos dos projetos, e não
apenas de determinados indivíduos. Em situações em que há poucos
dados ou estes não são confiáveis, a análise torna-se ainda mais
importante.

9.7. A ANÁLISE DE RISCO NO PROCESSO DE DECISÃO

A análise de risco, como instrumento de gestão, compreende, de um


modo geral, quatro etapas ou fases: a) identificação ou qualificação dos
riscos; b) quantificação dos riscos; c) minimização dos riscos; d)
mitigação ou remediação dos efeitos dos riscos.

Por outro lado, os riscos a serem avaliados e gerenciados podem ser


classsificados em: físicos ou estruturais, econômicos, sociais, ambientais
e administrativos, que, por sua vez, podem se desdobrar em componentes
e sub-componentes, em sucessivos níveis de detalhamento. Podemos, a
partir daí, construir uma matriz indicadora dos tipos de medidas ou ações
a serem realizadas, em função dos tipos de risco considerados, para cada
tipo de atividade que se deseje gerenciar.

156
9.8. A PRÁTICA DA ANÁLISE DE RISCO

A análise de risco não é um instrumento teórico, acadêmico,


impraticável. Ao contrário, vem se tornando, em diversos campos de
atividade, notadamente na área de recursos hídricos e setores afins, uma
prática desejável, objetiva, promissora. A seguir, apresentaremos alguns
exemplos de aplicação da análise de risco, em estudo de casos por nós
realizados:

Risco de deslizamento de talude de uma barragem de terra. A partir


das distribuições de probabilidades da coesão e ângulo de atrito interno
do material que compõe o maciço da barragem e, utilizando-se o método
de simulação Monte Carlo, determinou-se a distribuição do coeficiente
de segurança do talude e a probabilidade de assumir valor menor que a
unidade, o que representa risco de deslizamento (Vieira e
Miranda,1990).

Risco de fracasso econômico de uma obra de proteção contra


inundações. Os benefícios econômicos foram calculados como
distribuição de probabilidades e, a partir daí, a relação benefício/custo
também foi determinada de forma probabilística. Foram utilizados os
métodos Monte Carlo e MFOSM. Determinou-se, então, o risco
econômico , que é a probabilidade de B/C ser menor que a unidade
(Vieira e Vieira, 1991).

Análise benefício/risco para a escolha de nível ideal de proteção de


áreas inundadas. Foi elaborada uma matriz de decisão, compreendendo
níveis de proteção, benefícios líquidos, riscos físicos e riscos
econômicos, de modo a propiciar uma escolha conveniente ao porte da
obra (Vieira e Campos, 1991).

157
Risco de transbordamento de um vertedouro de barragem. Foi
determinada a função-desempenho do vertedouro, bem como as
distribuições das variáveis básicas e, com a utilização do método
AFOSM, a probabilidade de as vazões excederem à capacidade do
vertedouro, o que se constitui, então, no risco físico de transbordamento
(Vieira, 1992).

Risco de fracasso econômico na construção de reservatórios. Em


função de níveis de garantia das vazões regularizadas pelos reservatórios
e, com o uso de séries geradas pelo método Monte Carlo, foram
calculadas as distribuições de B/C e os riscos econômicos associados
(Vieira, 1993).

Risco de impactos ambientais desfavoráveis na construção de


reservatório. A partir da qualificação e quantificação dos impactos
ambientais de um reservatório específico e, com o uso de distribuições
triangulares subjetivas, foram determinados os riscos ambientais de
deterioração dos vários componentes ambientais impactados (Mota e
Vieira, 1995).

Riscos econômicos e ambientais na construção de obras hídricas. A


quantificação dos riscos, com a utilização da Lógica Difusa, assume
aspectos peculiares. Sua caracterização se dá na forma de níveis de
pertinência ou plausibilidade, ou seja, através da distribuição de
possibilidades e da definição de riscos difusos (Vieira, 1996).

Para não ficar apenas em exemplos de quantificação de riscos, é


oportuno mencionar a prática do Banco Mundial, de explicitar, nos
projetos que financia, a qualificação dos riscos de caráter administrativo
do empreendimento, de modo que o monitoramento e a convivência
com os mesmos possa garantir sua desejável minimização (World Bank,
1997).

158
9.9. O CASO DA GESTÃO DE BACIA

Se a gestão hídrica, em geral, apresenta um sem número de incertezas e


riscos, que dizer da gestão operacional de uma bacia hidrográfica,
através do binômio Agência/Comitê !

A partir do próprio caráter, ainda experimental, desses dois institutos, em


termos de forma jurídica, organização administrativa, poder de decisão,
autonomia financeira e participação social, percebe-se uma nuvem de
incertezas pairando sobre o gerenciamento e, consequentemente, a
existência real de riscos operacionais de ineficiência e, mais que isso, de
riscos de ineficácia na consecução dos objetivos econômicos, sociais e
ambientais.

Apresentamos, a seguir, a título de exemplo, as atribuições de uma


Agência de Bacia, bem como as fases do Processo de Cobrança e, de
forma especulativa, suas respectivas incertezas, seus riscos associados e
possíveis medidas - preventivas, corretivas e/ou de convivência
monitorada (tabelas 9.1 e 9.2).

Dependendo, naturalmente, da experiência e conhecimento dos técnicos


e administradores envolvidos na análise, as tabelas poderão ser
detalhadas em níveis e componentes cada vez mais específicos e
mensuráveis.

9.10. RESUMO

O capítulo apresentou a análise de riscos com exemplos de aplicação,


tanto em engenharia de projeto quanto de prática administrativa. Foram
apresentados, em seqüência: os principais instrumentos de gestão, as
atividades típicas da administração hídrica, as incertezas e riscos que
lhes são inerentes, os componentes básicos da Análise de Risco e o
159
contexto de alguns estudos já realizados. Ao final, analisou-se o caso
específico da “Gestão de Bacia Hidrográfica”, com detalhamento de suas
diversas atribuições e destaque para o “Processo de Cobrança” pelo uso
da água, apresentando-se, em ambos os temas, uma matriz de atribuições
ou fases administrativas, com identificação de incertezas e riscos
envolvido, e respectivas medidas acautelatórias ou preventivas de
convivência com o risco.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Council. In: Journal of the AWRA, vol. 33, n.3, Junho, Virgínia,
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National and International, RBA, Rotterdam, Netherlands, 1992.
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with Uncertainty in Quantitative Risk and Policy Analysis. Un.
Press, Cambridge, 1993.
MOTA, F. S. e VIEIRA, V.P.P.B. Avaliação Qualitativa e Quantitativa
dos Impactos Ambientais de Reservatórios de Água no Nordeste
Brasileiro. In: XI Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos,
ABRH, Publ. n.1, vol. 3, Recife, 1995.
RAFTERY, J. Risk Analysis in Project Management, E&FN SPON,
London, 1994.
VIEIRA, V.P.P.B. e MIRANDA, A. N. Avaliação Probabilística da
Estabilidade de Taludes de uma Barragem de Terra. In: Anais do
Seminário Regional de Engenharia Civil, Recife, 1990.
______________e VIEIRA, L.A.A. Avaliação Econômica Probabilística
de Obras de Proteção contra Inundações. In: RBE/Caderno de
Recursos Hídricos, vol.3, n.2, Rio de Janeiro, 1991.
______________ e CAMPOS, J.N.B. Análise Benefício/Custo de
Diques de Proteção contra Inundações. In: IX Seminário
Brasileiro de Recursos Hídricos, ABRH, Rio de Janeiro, 1991.
______________Análise de Risco Aplicada ao Comportamento
Hidráulico de Vertedouro de Barragem. In: XX Seminário
Nacional de Grandes Barragens, Curitiba, 1992.
160
______________CAMPOS, J.N.B. e VIEIRA, L.A.A . Níveis de
Garantia de Vazões Regularizadas em Rios Intermitentes e Riscos
Econômicos Associados - Estudo de Caso. In: X Simpósio
Brasileiro de Recursos Hídricos, Rio de Janeiro, 1993.
______________Teoria dos Conjuntos Difusos e sua Aplicação a
Projetos de Recursos Hídricos. In: Revista Brasileira de Recursos
Hídricos, vol. 1, n. 1, ABRH, São Paulo, 1996.
WORLD BANK. Water Resources Management, Policy Paper, ISBN 0-
8213-2636-8, Washington, D.C. 1993.
________________ Report n. 16587-BR, Washington, D.C, 1997.

161
Tabela 9.1. Atribuições e riscos de uma agência de bacia prevista na Lei 9.433/97
ATRIBUIÇÕES INCERTEZAS RISCOS MEDIDAS
Balanço atualizado das disponibilidades de Dados e modelos hidrológicos/ Conceito Superestimação das disponibilidades/ Aprimorar base de dados e modelos/ Quantificar o
recursos hídricos de disponibilidade Déficit de suprimento risco de demanda insatisfeita
Cadastro de usuários de recursos hídricos Qualificação dos usuários/ Subestimação dos usuários e das Melhorar o sistema de cadastro/ Quantificar o
Quantificação dos usuários demandas / Déficit na arrecadação risco de deficit financeiro
Cobrança pelo uso dos recursos hídricos Sistema de cobrança/ Capacitação dos Receita insuficiente/ Corrupção Treinamento adequado/ Controle rígido/
agentes/ Eficiência dos fiscais Quantificação do risco financeiro
Análise de projetos e obras financiados com Quant. De custos e benefícios/ Estimativa Custos subestimados/ Benefícios Melhorar sistema de apropriação de custos e de
recursos gerados pela cobrança da eficiência econômica e financeira superestimados / Ineficiência econ. e estimativa de benefícios/ Quantificar riscos
financeira econômicos e financeiros
Acompanhamento da administração Controle contábil / Qualificação dos Desorganização contábil/ Corrupção Aprimorar a organização contábil/ Aumentar o
financeira dos recursos arrecadados com agentes administrativos Déficit financeiro nível de controle/ Quantificar o risco financeiro
cobrança
Gerenciamento do Sistema de Informações Coleta, processamento e transmissão de Falta de comunicação/ Informações Aperfeiçoamento do sistema de informações/
sobre recursos hídricos em sua área de dados/ Níveis de informação necessários errôneas Treinamento de pessoal/ Quant. o risco de falhas e
atuação erros de informação
Celebração de convênios e contratação de Ident. Das cláusulas essenciais / Inadimplência/ Perdas financeiras Melhorar o setor jurídico/ Quantificar os riscos
financiamentos e serviços Cumprimento dos termos contratuais/ Base financeiros
legal
Elaboração de proposta orçamentária Previsão de custos / Previsão de receitas Custos subestimados / Receitas Aprimorar sistema de orçamentação/ Quantificar o
superestimadas/ Déficit orçamentário risco de déficit orçamentário
Promoção dos estudos necessários para a Identif. Dos estudos necessários/ Qualidade Estudos incorretos/ Decisões Melhorar as metodologias de estudo/ Qualificar os
gestão dos estudos realizados inadequadas vários tipos de risco
Elaboração do Plano de Recursos Hídricos Definições de objetivos/ Estratégias e Objetivos conflitantes/ Estratégias Melhorar o setor de planejamento/ Qualificar
da Bacia instrumentos/ Metas e produtos inexequíveis/ Metas e produtos possíveis riscos/ Quant. riscos de não cumprir os
superestimados objetivos
Proposta de: a)enquadramento dos corpos Levantamento e análises nos corpos de Enquadramento Inadequado/ Falta de Melhorar análises/ Avaliar o poder aquisitivo dos
de água; b)valores a serem cobrados; água/ Enquadramento conforme os usos capacidade de pagamento dos usuários/ Adotar sistema de rateio simples
c)planos de aplicação de recursos/ d)rateio previstos/ Estimativa dos valores a serem usuários Qualificar, e se possível quantificar os riscos de
de custos das obras de uso múltiplo cobrados/ Rateio de custos justo e Rateio de custos inaceitável mau enquadramento, de inadimplência e de
negociável rompimento de parcerias
Tabela 9.2. Fases e riscos no processo de cobrança
FASES INCERTEZAS RISCOS MEDIDAS
Enquadramento do corpo de água Adequação do enquadramento Enquadramento incorreto Melhoria do processo de enquadramento
Avaliação da disponibilidade local Quant.e qualidade disponíveis Erros na avaliação qualitativa e quantitativa Aperf. do método de avaliação/ Quant. do erro
Identificação do grau de regulariz. de Vazão regularizada Falta de água Quantificação do risco de falha no suprimento
obras hidráulicas
Determinação da vazão captada Valor da vazão captada Vazão subestimada/ Déficit de receita Quantificação do déficit provável
Det. do regime de variação Coeficiente de variação Erro no valor do coeficiente Quantificação do erro provável
Estimativa do consumo efetivo Água consumida Consumo subestimado Quantificação do déficit provável
Identificação da finalidade Uso da água Uso inadequado Quantif. do risco de poluição e de perda financeira
Determinação da carga poluente lançada Quantificação e qualificação das Quantificação subestimada e qualificação Melhoria dos métodos de análise/ Quantificação
cargas poluidoras inadequada dos erros e de perdas financeiras
Identificação da natureza da atividade Fontes poluidoras e forma de Subestimação da capacidade poluiodora Melhoria dos levantamentos/ Quantificação de
poluidora poluição erros prováveis
Escolha da metodologia de cálculo Adequação à realidade local Impraticabilidade da metodologia Qualificação dos riscos ou Subst. de método
Cálculo do valor a cobrar Estimativa de receita Perdas financeiras Quantificação do risco de déficit
Negociação do valor a cobrar Êxito da negociação Inaceitabilidade ou impasses Qualificação dos riscos
Registro do débito Contabilidade Falha contábil Melhoria do sistema
Execução da cobrança Capacidade de pagamento Falta de pagamento Quantificar o risco financeiro
Recebimento do valor cobrado Eficiência do sistema de Falta de controle Quantificar o risco financeiro
cobrança
Registro da quitação Contabilidade Falha contábil Melhoria do sistema

164
Gestão da
10 Qualidade
José Carlos de Araújo e
Sandra Tédde Santaella
10.1. VISÃO GERAL DO TEMA

Não se pode pensar em desenvolvimento sustentável sem que se faça


referência à água e, sabe-se que, sem água em quantidade suficiente e
qualidade adequada aos diferentes usos e fins, o desenvolvimento
sustentável jamais será atingido.

Embora a avaliação da oferta da água, tanto em termos qualitativos


quanto em termos quantitativos, seja essencial à vida e sobrevivência do
homem, até recentemente a importância da água era reconhecida apenas
do ponto de vista da quantidade, enquanto o reconhecimento da
importância da qualidade foi lento e gradativo. Inicialmente, a avaliação
da qualidade da água estava associada somente às suas características
físicas, mais especificamente à presença de sólidos e compostos que
causam odor e sabor na água. Com a evolução da Química, Biologia e
Medicina é que se pode relacionar a qualidade da água com a saúde
humana (ou falta dela). As primeiras notícias documentadas sobre
qualidade da água datam da metade do século XIX. Em 1854, um
sanitarista inglês, Dr. John Snow, correlacionou vários casos de cólera e
outras doenças ao uso de água de uma fonte da Broad Street, em
Londres. Porém, nesta época, os contemporâneos do Dr. Snow não
aceitaram esta evidência e seu trabalho ficou esquecido. Passados 46
anos, com os trabalhos de Pasteur e outros cientistas da época, é que a
teoria de Snow foi confirmada e aceita e, passou-se então a considerar a
importância da qualidade da água (Pringle,1977).

A idéia primitiva de que os dejetos e águas residuárias domésticas e


industriais podem ser dispostas em corpos d’água, pois estes têm
capacidade de diluir e degradar os resíduos e poluentes neles despejados,
passou a ser combatida com mais intensidade. A partir dos anos 70, a
degradação da qualidade da água passou a preocupar os estudiosos e,
então, surgiu uma nova geração de limnólogos, preocupados em resolver
os problemas de degradação da qualidade da água. No Brasil, os estudos
limnológicos direcionados para a qualidade da água foram iniciados
também na década de 70, de modo muito discreto, e vêm, deste então,
crescendo em quantidade e qualidade (Esteves, 1998).

Embora nosso planeta seja praticamente coberto por água e, por isso,
muitas vezes chamado de Planeta Água, só uma parcela diminuta se
encontra disponível para suprir nossas necessidades. Segundo dados
apresentados por Mota (1997), a quantidade de água na Terra chega à
ordem de 1.370.000.000 Km3 , sendo que somente 8.200.000 Km3
apresentam-se na forma de água doce e, destes, apenas 98.400 Km3
apresentam-se como rios e lagos e 4.050.800 Km3 como água
subterrânea acessível, pois a outra metade da água subterrânea encontra-
se confinada a profundidades superiores a 800m, ainda inatingíveis.

Em termos percentuais, divulga-se que dos 100% de água existente na


Terra, 97% são de águas salgadas e 3% de águas doces. Dos 3% de
águas doces, 2,3% estão congelados, 0,2% estão envolvidos em
constantes processos de evaporação e transpiração e apenas 0,5% estão
disponíveis para a humanidade.

166
O consumo médio de água, para uma cidade industrializada, é de
aproximadamente 300L/pessoa.dia; se considerarmos que a população
mundial no século XXI atingirá valores aproximados de 7.000.000.000
hab, o consumo diário de água seria equivalente a 1/4 do total disponível
e esgotaria em 4 dias, caso não houvesse renovação através do ciclo da
água que, principalmente por influência de fatores físicos retorna à terra
toda água que dela foi extraída. Sendo assim, a quantidade de água
disponível é muito superior à quantidade consumida, porém, dois fatores
são preocupantes: o primeiro é a distribuição não eqüitativa da água na
Terra, havendo regiões com grande escassez e outras com excesso de
água e, o segundo é que, mesmo nas regiões em que há fartura de água,
sua qualidade está sendo deteriorada em função da grande demanda que
não permite que a própria natureza se incumba de purificar a água, para
que a tenhamos com qualidade adequada às nossas necessidades.

O crescente e acelerado avanço tecnológico tem conduzido à melhoria da


qualidade de vida e, como conseqüência, ao aumento desenfreado da
população, gerando excessiva demanda de água. Está claro que a
quantidade de água não é problema, pelo menos por alguns milhares de
anos, porém, sua qualidade limita seu uso e existe o risco iminente de
não se ter água de boa qualidade num futuro próximo.

10.2. QUALIDADE DA ÁGUA

Qualidade de água é o termo empregado para expressar a adequabilidade


desta para os mais variados fins: abastecimento doméstico, uso industrial
e agrícola, para recreação, dessedentação animal, aqüicultura,
piscicultura, etc.

A água pura, como H2O, só existe no estado de vapor. Imediatamente


após sua condensação, ela passa a dissolver gases presentes na atmosfera
e já chega à superfície com sua composição alterada. Em contato com o
167
solo, ela provoca a dissolução de vários sais, metais e compostos
orgânicos, enriquecendo-se ainda mais. Mesmo a água bidestilada ou
deionizada não é pura, pois dissolve quantidades ínfimas do recipiente
que a contém, ou das mangueiras que a transportam.

A composição, qualidade e classificação da água dependem de sua


“história”, ou seja, dos caminhos que a água percorreu para chegar ao
seu fim. De modo geral, a composição da água da chuva é diferente da
composição da água superficial e ambas diferem da água subterrânea.
Num mesmo meio, seja superficial, subterrâneo ou aéreo, existem
diferenças entre as águas de diferentes regiões. Por exemplo: águas de
chuva, nos grandes centros urbanos, apresentam enxofre, ácido sulfúrico
e clorídrico e compostos orgânicos, enquanto que águas de chuva
próximas ao litoral contêm muitos sais.

De modo geral, a qualidade da água é afetada por fatores climáticos


(insolação, vento, precipitações pluviométricas, temperatura) origem do
manancial (rios, lagos ou águas subterrâneas), pelas características do
manancial (solo, vegetação costeira, tamanho e forma, ganho e perda de
água, espécie de seres vivos presentes, dinâmica das comunidades) e
fatores antrópicos (atividades variadas que poluem o ar, o solo e a água).
Sendo assim, a qualidade da água deve ser determinada por suas
características químicas, físicas e biológicas que, por sua vez, são
representadas por diversos parâmetros, geralmente aceitos mundialmente
(Branco e Rocha, 1982).

Os principais parâmetros físicos, químicos e biológicos que definem a


qualidade da água são: cor, turbidez, pH, alcalinidade, dureza, demanda
química de oxigênio (DQO), demanda bioquímica de oxigênio (DBO),
oxigênio dissolvido (OD), nitratos, nitritos, amônia, nitrogênio total,
sílica reativa, cloretos, sulfatos, fosfatos, metais pesados, sólidos,
coliformes, fertilizantes, pesticidas, fitoplâncton, zooplâncton, clorofila
a., penetração de luz e produção primária (Sewell, 1978).
168
10.3. USOS MÚLTIPLOS

Dos recursos naturais, a água talvez seja o mais utilizado pela


humanidade, sendo utilizada para inúmeros fins, assim, dependendo do
uso a que se destina (abastecimento doméstico, comercial e industrial;
irrigação; dessedentação de animais; preservação da flora e da fauna;
recreação e lazer; geração de energia elétrica; navegação e diluição de
despejos), a água deve apresentar determinadas características que lhe
conferirão qualidade específica. De acordo com essas características as
águas são divididas em classes. À classe especial pertencem as águas
destinadas ao abastecimento público, após simples desinfecção e à
preservação do equilíbrio natural das comunidades aquáticas. As águas
que podem ser utilizadas para abastecimento público, após tratamento
simplificado, pertencem à classe 1 e, aquelas que necessitam do
tratamento convencional para se tornarem boas para o abastecimento
doméstico pertencem à classe 2. Atualmente, consideram-se 9 classes de
águas, sendo 5 para águas doces, 2 para águas salobras e 2 para águas
salinas (Resolução CONAMA no 20/1986).

Quando são considerados os usos industriais, a água deve atender a


requisitos específicos, por exemplo: a água empregada em caldeiras não
pode conter carbonato de cálcio ou apresentar dureza, pois estes
compostos causarão problemas de incrustações ou obstrução de canais.
A água utilizada em tecelagens deve estar isenta de ferro, manganês e
substâncias húmicas, que podem alterar a pigmentação dos tecidos ou
manchá-los. Águas destinadas a indústrias alimentícias devem possuir
características específicas também. Quando o destino da água é
irrigação, esta não pode conter alto teor de sais, nem coliformes fecais e,
assim, para cada uso, a água deve apresentar qualidade diferente.

169
10.4. POLUIÇÃO

A crescente industrialização, os avanços tecnológicos e a explosão


demográfica têm feito com que os parâmetros físicos, químicos e
biológicos da água sejam alterados, provocando poluição destas águas,
seja por águas residuárias industriais, por efluentes domésticos, por
precipitações pluviométricas em regiões cujo ar está poluído ou por
escoamento superficial de grandes centros urbanos ou de regiões com
intensa atividade agro-pastoril, modificando, assim, sua qualidade. De
modo geral, a poluição das águas pode ocorrer principalmente por
esgotos sanitários; águas residuárias industriais; lixiviação e percolação
de fertilizantes e pesticidas; precipitação de poluentes atmosféricos e má
disposição de resíduos sólidos (lixo).

Segundo Branco e Rocha (1982), os principais grupos de compostos


causadores de poluição das águas são

 Compostos biodegradáveis;

 Compostos recalcitrantes;

 Metais pesados;

 Compostos radioativos.

Os compostos biodegradáveis são provenientes, na grande maioria, dos


esgotos domésticos e a poluição causada por eles ocorre de forma
indireta, uma vez que é conseqüência do aumento excessivo de
microrganismos, devido à grande quantidade de nutrientes presentes nos
esgotos, que servem a esses como fonte de alimento. Como os
microrganismos presentes na água são predominantemente aeróbios ou
facultativos, eles passam a consumir muito oxigênio e a competir com
outros organismos aquáticos pelo oxigênio dissolvido na água. Nesta
170
competição, os peixes são os primeiros animais a morrerem, por
necessitarem de mais oxigênio que outros seres aquáticos. Assim, águas
residuárias quimicamente inócuas, como esgotos domésticos, águas
residuárias do processamento da cana de açúcar e de indústrias
alimentícias, tornam-se muito poluidoras, dependendo do grau de
dispersão e de diluição, da vazão e concentração de oxigênio dissolvido
do manancial que as recebe, bem como da presença de compostos
tóxicos, da carga orgânica e da vazão do efluente despejado.

Os compostos recalcitrantes, com poucas exceções, são obtidos como


subprodutos de vários processos industriais. Estes compostos são muito
estáveis e resistentes ao ataque microbiológico, persistindo no meio
durante longos períodos, que podem variar de vários meses a muitos
anos. Desta forma, estes compostos tendem a se acumular no meio
aquático, atingindo concentrações elevadas e provocando diversas
perturbações no meio.

Dentre estes compostos, destacam-se os pesticidas sintéticos, que


persistem no meio por mais de 50 anos, os detergentes sintéticos
sulfonados de cadeia ramificada e a celulose presente no licor preto
formado no processo de fabricação do papel. Entre os compostos
recalcitrantes naturais, devem ser considerados a lignina e as substâncias
húmicas que conferem cor à água e que, quando na presença de cloro,
reagem, formando trihalometanos que são compostos cancerígenos.
Vários bifenis policlorados e polifenóis, tanto de origem natural como
sintética, apresentam-se como poluentes preocupantes, por causa de sua
característica recalcitrante.

Outro grupo de poluentes a ser considerado é o dos metais pesados, que


são cumulativos no meio e, quando sua concentração supera
determinados valores, tornam-se letais a muitos seres vivos e nocivos ao
homem; entre eles citam-se: cobre, zinco, chumbo e mercúrio.

171
As substâncias radioativas têm propriedades degenerativas e
cancerígenas, apresentando-se também como muito nocivas aos seres
vivos.

Outra classificação dos poluentes aquáticos diz respeito à sua natureza:


física, química e biológica. A poluição física ocorre principalmente
quando ocorrem alterações nas características físicas dos corpos hídricos,
como temperatura, densidade, cor, turbidez etc. A poluição química,
como é sabido, é conseqüência da intrusão de compostos químicos
orgânicos e inorgânicos, naturais ou sintéticos (matéria orgânica, sais,
metais, pesticidas, fertilizantes etc.). A poluição biológica ocorre pela
intrusão de seres vivos em meios aquáticos diferentes daqueles a que
estes seres são naturais ou originários, de tal forma que esta interferência
venha causar alterações na qualidade da água. Este aporte de organismos
para o meio aquático pode ocorrer por atividade antrópicas e também por
enchentes, enxurradas, lixiviação e escoamento de solos. Dificilmente a
poluição ocorre por um único meio e de uma única maneira. Assim, o
controle da poluição das águas tem sido considerado um dos grandes
desafios para aqueles que estão incumbidos dessa árdua tarefa.

As principais conseqüências da poluição das águas são:

 Eutrofização;

 Salinização;

 Acidificação;

 Alteração ou destruição da fauna e da flora aquáticas;

 Extinção de espécies (tanto aquáticas quanto terrestres, que se


alimentam destas ou fazem sua dessedentação nos mananciais);

172
 Transmissão de compostos nocivos através da cadeia trófica,
atingindo o homem;

 Contaminação direta do organismo humano por consumir águas


poluídas;

 Proliferação de doenças.

10.5. EUTROFIZAÇÃO

A eutrofização pode ser definida como o processo de fertilização das


águas, principalmente de lagos e reservatórios, nos quais o aporte de
nutrientes, tais como nitrogênio e fósforo, ocasiona o crescimento de
plantas aquáticas até níveis que podem interferir nos usos desejáveis da
água. Embora a eutrofização possa ser um fenômeno natural em lagos e
reservatórios, se não houver interferência humana, um recurso hídrico
deste tipo demorará séculos para eutrofizar. Porém, a atividade antrópica
tem acelerado este processo, reduzindo o tempo de eutrofização a alguns
anos ou décadas. Se for possível controlar a eutrofização, ela passa a ser
benéfica, pois aumenta a produtividade dos corpos hídricos. Em níveis
excessivos, ela é prejudicial, principalmente por quebrar o equilíbrio
natural das cadeias tróficas, alterando os ciclos químicos e biológicos no
corpo d’água (Chapra, 1997).

De um modo geral, o mecanismo de eutrofização de um corpo hídrico


passa por algumas etapas principais: (i) primeiro ocorre o aporte de
nutrientes ao manancial; (ii) estes nutrientes servem de fonte de alimento
para algas e plantas aquáticas, que proliferam em abundância; (iii) como
as algas são organismos fotossintetizantes, estas produzem muito
oxigênio durante o dia e o corpo d’água se apresenta com supersaturação
de oxigênio, particularmente na zona fótica; (iv) durante o período
noturno, essas mesmas algas consomem o oxigênio que produziram e
173
começa a haver um déficit de oxigênio no ambiente; (v) com a falta de
oxigênio durante a noite, os organismos aquáticos aeróbios mais
exigentes morrem por falta de oxigênio; (vi) quanto mais as algas e as
plantas aquáticas se proliferam, mais organismos aquáticos de outras
espécies sucumbem, até que se atinge um ponto em que não há mais
oxigênio suficiente. (vii) Nesse ponto as próprias algas começam a
morrer e a se depositar no fundo do manancial, diminuindo sua
profundidade e servindo de fonte de alimento para microrganismos
anaeróbios. (viii) No estágio final, o manancial se transforma em
pântano, podendo secar completamente.

Os principais indicadores de eutrofização são o aumento excessivo na


concentração de oxigênio dissolvido durante o dia e sua diminuição
brusca, durante a noite; pH elevado, entre 9 e 11; aumento na quantidade
de sólidos dissolvidos; aumento na quantidade de sólidos suspensos;
diminuição da penetração da luz; aumento na concentração da matéria
orgânica; mudança na população planctônica de algas diatomáceas para
algas verdes ou azuis. Entre os problemas causados pela eutrofização,
citam-se o prejuízo dos usos recreacionais, devido ao acúmulo de algas
na superfície, causando aspecto e odor desagradáveis; a sedimentação da
biomassa de algas, ocasionando aumento na demanda bentônica, que
pode provocar um déficit de oxigênio dissolvido nas camadas profundas;
a obstrução de filtros durante o tratamento da água para abastecimento; o
crescimento extensivo de macrófitas, interferindo na aeração e
evaporação, além de servir de meio para o desenvolvimento de parasitas
e mosquitos e de prejudicar a navegação e a capacidade de escoamento
de canais, o desenvolvimento de algas tóxicas e o prejuízo na produção
de peixes com valor comercial e/ou ambiental.

Há muitas causas possíveis para um processo de eutrofização. O despejo


de efluentes ricos em nutrientes, sejam industriais ou residenciais, assim
como o refluxo de água fertilizada na agricultura são os mais comuns.
Pesquisa realizada em três reservatórios rurais de pequeno porte, no
174
Ceará (açude Nova Conquista, Canindé, e açudes Tejuçuoca e Jereissati,
Tejuçuoca), no entanto, indica ter sido outra a causa da eutrofização. Nas
duas bacias verificou-se que as causas acima citadas não explicavam o
alto nível de eutrofização dos reservatórios. Observou-se, no entanto,
que a dessedentação do gado (verificou-se, nestas comunidades, a posse
de uma cabeça de gado bovino para cada pessoa), dava-se sempre a
montante da parede do reservatório, ou seja, dentro da área da bacia
hidráulica, uma vez que os lagos se encontram frequentemente com
nível bem abaixo da soleira do vertedor. Assim, as fezes desses animais
são depositadas dentro da bacia e, na próxima estação chuvosa, são
incorporadas ao conteúdo dos lagos, gerando intenso aporte de nutrientes
à água. A recomendação apontada indica remoção do material já
depositado, instalação de cerca com restrição de acesso do gado à área de
montante, e execução de obras de tomada d’água, para que o gado tenha
acesso à água somente à jusante da parede do reservatório.

É importante mencionar que as grandes escolas de limnologia se


encontram em climas temperados, assim como os modelos
desenvolvidos sobre o tema (Vollenweider, 1975; Chapra, 1997) e,
portanto, estudaram reservatórios temperados. Recentemente, Datsenko
(2000) apresenta estudos referentes a reservatórios tropicais, tendo como
base estudos realizados em barragens no Semi-Árido Brasileiro.

10.6. SEDIMENTOS

Um relevante aspecto na qualidade das águas é a presença de


sedimentos, trazidos aos corpos d’água, quer devido à erosão quer
devido a intervenções antrópicas no meio. As principais consequências
da presença de sedimentos nos reservatórios são assoreamento, isto é,
sedimentação dos sólidos com redução da capacidade de reservação,
aumento da turbidez com conseqüente redução da zona fótica, aporte de
nutrientes e de microrganismos patogênicos.
175
Para estimativa de erosão devido ao efeito das chuvas utiliza-se
principalmente a equação universal de perda de solos (USLE), de
Wischmeier e Smith, segundo a qual
E B  R  K  LS  C  P   A B (10.1)

em que EB é a massa erodida, R o fator de erosividade da chuva, K o


fator de erodibilidade do solo, LS o fator de relevo, que considera o
comprimento de rampa e a declividade média do terreno, C o fator que
considera vegetação e uso do solo, P o fator de práticas
conservacionistas e AB a área da bacia em questão (Carvalho, 1995).

Fernandes (2000) avaliou o processo hidrossedimentológico na bacia de


contribuição do açude Acarape do Meio (210 km2), no Ceará, entre os
anos de 1924 e 1997, aplicando a USLE e o conceito de taxa de evasão
de sedimentos (ou em inglês, sediment delivery ratio, SDR), definida
como a razão entre a massa de sedimentos que chega aos drenos da bacia
(rios, riachos, contorno de lagos, etc.) e a massa de sedimento deslocada
no solo devido à chuva, normalmente calculada através da USLE.

De acordo com a literatura, a SDR varia geralmente de 20% a 40%. O


complemento da SDR (isto é, 1 – SDR) é a taxa de retenção difusa de
sedimentos, ou seja, a fração de sedimentos que, destacada de sua
localização inicial, permanece sobre o solo da bacia, retida por raízes,
depressões ou obras civis ou ainda, sob outro ponto de vista, a SDR
representa a probabilidade média de uma partícula, deslocada pela
chuva, de chegar aos drenos. Assim, para se estimar a massa de
sedimentos que chega aos drenos (ED), é suficiente fazer
E D  SDR  E B .

Para o cálculo de SDR, Fernandes (2000) recomenda, com base em


verificação de campo, a utilização dos modelos de Maner ou de Roehl.
Em média, o aporte de sedimento no açude estimado com base nesses
modelos, entre 1924 e 1997, apresenta diferenças de 5% em relação ao
176
valor medido. É fundamental atentar que somente uma fração dos
sedimentos que chegam a um reservatório fica retida aí. A fração  pode
ser estimada por meio do ábaco de Brune (Carvalho, 1995), em função
do tempo de residência do reservatório, ou seja, da razão entre o volume
máximo de acumulação e a vazão média afluente.

Para o caso do açude Acarape do Meio, Fernandes (2000) verificou que


o método de Brune superestimou a fração de retenção no lago: segundo o
ábaco de Brune  = 85%, porém, o valor calibrado pelas medições foi de
70%. A razão para isto está, certamente, nas grandes diferenças entre a
variabilidade hidrológica de regiões temperadas (para as quais foi
desenvolvido o ábaco de Brune) e aquela de regiões semi-áridas (como a
região em estudo). Em síntese, recomenda-se calcular o volume de
assoreamento de um reservatório “Vass,” devido ao efeito erosivo das
chuvas pela Equação 10.2, em que “ap” é a massa específica aparente do
material sedimentado.
Vass    SDR  E B  / ap (10.2)

Pesquisa realizada no reservatório urbano de Santo Anastácio (Fortaleza,


Ceará) aponta, no entanto, que, do assoreamento ocorrido entre 1918 e
1992, apenas 2% são devidos ao efeito erosivo das chuvas, ou seja, 98%
do material assoreado provêm de intervenção antrópica no meio. Esta
intervenção se dá de duas maneiras: através de contribuição difusa
(admitida como diretamente proporcional à população) e através de
contribuições pontuais por meio de despejos de esgoto na rede de
drenagem do reservatório. A Equação 10.3 apresenta, entre colchetes,
três termos de contribuição de sedimentos para um reservatório urbano
(ou semi-urbano) nesta ordem: a contribuição da erosão pluvial, a
contribuição antrópica difusa e a contribuição antrópica pontual.

Vass 
ap
 
 SDR  E B   C pc  Pop   Q i  C sed  (10.3)

177
onde “Cpc” representa a contribuição difusa per capita de sedimentos;
“Pop” a população de contribuição; “Qi” a vazão afluente ao reservatório
e “Csed” a concentração de sedimentos correspondente. Para o
reservatório em estudo (Santo Anastácio), verifica-se alta correlação
entre o aporte de sedimentos e o intenso processo de eutrofização.

10.7. DISPERSÃO DE POLUENTES EM CORPOS HÍDRICOS

Uma das principais tarefas do técnico responsável pela gestão da


qualidade da água é conhecer, monitorar e prever os impactos dos
processos de poluição, verificando, espacial e temporalmente, as
conseqüências do lançamento de matéria poluente nas águas. Neste
sentido, tem-se utilizado a modelagem matemática como poderosa
aliada.

Os poluentes (ou constituintes) podem ser divididos em conservativos


(sua ocorrência está ligada somente a processos de transporte e
deposição, como os sais e sedimentos minerais) ou não-conservativos
(poluentes cuja ocorrência é afetada por processos químicos e
biológicos). Os constituintes podem ser classificados, também, em
ativos, quando alteram as condições de escoamento ou passivos, quando
não.

Os três processos fundamentais de transporte hidrodinâmico de


poluentes são a advecção, a convecção e a difusão molecular. Entende-se
por advecção o processo de transporte de massa e calor através do
movimento do fluido, de sua velocidade ou cinética. A convecção
corresponde ao processo de transferência resultante das diferenças de
densidade do fluido, e a difusão molecular ao processo de transferência
causado devido aos choques moleculares no âmbito do fluido.
Conceitua-se, também, o termo difusão turbulenta como o processo de
transporte causado pelos turbilhões existentes nos escoamentos
178
turbulentos. Este é, a rigor, um processo advectivo, porém, por analogia
com o processo de choques moleculares, tem sido modelado como um
termo difusivo (Eiger, 1991). Quando o transporte de constituintes
ocorre devido aos gradientes de velocidade, fala-se em advecção
diferenciada. O conjunto dos processos de difusão e advecção
diferenciada denomina-se dispersão.

Suponha que um fluido em repouso receba pontualmente uma massa de


poluente passivo e conservativo. Segundo a lei de 1855, de Adolf Fick
(Chapra, 1997), devido à difusão molecular (Equação 10.4):
C
 D   2C (10.4)
t

sendo “C” a concentração do poluente, “D” a difusividade, “t” o tempo e


o operador    x   y   z , em que “x”, “y” e “z” são as três
coordenadas ortogonais.

Caso o escoamento seja dotado de uma velocidade U, o processo será de


difusão advectiva (Equação 10.5):

C
 D   2 C  U  C (10.5)
t

Da equação da continuidade, U  0 , ou seja


C
 D   2 C  U  C (10.6)
t
Na Equação 10.6 as variáveis “C” e “U” são funções do espaço e do
tempo. Acontece que tais variáveis são de difícil determinação em
escoamentos turbulentos. Para modelar transporte em regimes
turbulentos, usa-se a hipótese de Reynolds, de que as variáveis temporais

179
( C( t ); U( t ) ) são a soma de seus valores médios temporais ( C; U ), com
suas respectivas flutuações ( c' ( t ); u ' ( t ) ), de modo que, em
C(t )  C  c' (t ) ; U(t )  U  u' (t ) , seja  o coeficiente de difusão
turbulenta. Então,

C
t

 U   C  D   2 C  ( u  c)   ( D  )   C  (10.7)

que é a equação genérica do transporte hidrodinâmico de poluentes.

A equação simplificada de dispersão de poluentes não-conservativos,


com decaimento de primeira ordem, pode ser representada pela Equação
10.8. Adote-se o eixo “x” na direção longitudinal do escoamento e, na
hipótese de dispersão, seja  o coeficiente de dispersão, W o termo
fonte-sumidouro, Kd o termo de precipitação e consumo e Ux a
componente da velocidade U no eixo “x”. A equação de dispersão de
poluentes não-conservativos fica, portanto,
C C 2C
 Ux     2  Kd  C  W (10.8)
t x x
Os modelos de qualidade de águas superficiais, quando tridimensionais,
usam as equações 10.7 e 10.8, em conjunto com as equações que
definem os campos de velocidade e de pressão (p) da água, já que se
admite que o poluente se desloque com a mesma velocidade do fluido
que o contém. Um sistema completo apresentaria um conjunto de cinco
incógnitas (C, p, Ux, Uy, Uz), a cada ponto. Para solucioná-lo, podem ser
usadas a Equação 10.7, a equação da continuidade ( U  0 ), assim
como três equações do princípio da conservação da quantidade de
movimento, como apresentadas por Navier-Stokes. O sistema formado é
complexo e só pode ser resolvido por meio de métodos numéricos. É
importante mencionar que as equações de Navier-Stokes introduzem
novas incógnitas de turbulência, que podem ser solucionadas por

180
métodos como os da viscosidade turbulenta de Boussinesq ou o modelo
k-, por exemplo.

Nos rios, estas equações devem ser utilizadas, podendo ser simplificadas
à medida em que as dimensões secundárias possuam baixos gradientes.
Nos estuários, há que se considerar as diferenças de massa específica
causadas pela presença de sal em teores diferenciados, no tempo e no
espaço. Assim, o sistema anteriormente mencionado apresenta mais uma
incógnita, a massa específica  = (x, y, z, t), necessitando de mais uma
equação para que possa apresentar solução única.

A rigor, pode-se modelar a dispersão de poluentes em reservatórios


usando as mesmas equações, porém, sua complexidade e a necessidade
de grande volume de dados nem sempre permitem solucioná-las. Muitos
processos ocorridos nos reservatórios podem ser descritos somente
através de seus valores médios, à medida em que apresentem baixos
gradientes de concentração. Para casos como esses, foram elaborados
modelos que se baseiam na hipótese de mistura completa ou modelos
ditos zero-dimensionais, que consideram os lagos como volumes de
controle simples. As equações da continuidade e da concentração de
poluentes (equações 10.9 e 10.10, respectivamente) são apresentadas
por:
dV
 Qi  Qo (10.9)
dt
d(V  C )
 Qi  Ci  Qo  Co  K d  C (10.10)
dt
sendo “V” o volume de água do reservatório, “Qi” e “Qo”,
respectivamente, as vazões de entrada e saída do reservatório, “Ci”, “Co”
e C , respectivamente, as concentrações do poluente na entrada, na saída
e no interior do reservatório. É comum a hipótese Co = C para
reservatórios zero-dimensionais, no entanto, a hipótese Ci = C pode se

181
afastar muito da realidade, fazendo-se necessário modelar e/ou monitorar
valores de concentração do poluente na entrada do reservatório.

10.8. AUTODEPURAÇÃO DOS CORPOS HÍDRICOS

Os corpos d’água, principalmente os rios, apresentam a capacidade de


purificar suas águas através de processos naturais. A este conjunto de
processos chamamos “autodepuração”. A autodepuração ocorre,
principalmente, mas não exclusivamente, devido ao efeito dos raios
solares, da precipitação de particulados e da reaeração da água. O
principal indicador da “saúde” e, portanto, da autodepuração dos corpos
hídricos é a concentração de oxigênio dissolvido (Davis e Cornwell,
1991; Chapra, 1997; Mota, 1997).

Suponha que um corpo hídrico (um rio, por exemplo) com saturação
total de oxigênio dissolvido (OD) receba poluentes orgânicos ou
inorgânicos que demandem oxigênio, causando sua depleção. Caso não
houvesse reaeração do rio, o teor de OD decairia exponencialmente.
Acontece que, devido à sua capacidade autodepuradora, o corpo d’água
recupera o oxigênio a partir da troca com a atmosfera (tão mais intensa
quanto maior for a turbulência do escoamento) e do processo
fotossintético. A evolução do teor de OD, com o tempo, considerando-se
um despejo pontual no curso d’água, pode ser caracterizada pela equação
de Streeter-Phelps (Equação 10.11) e pela Figura 10.1, onde se vê o
impacto inicial do lançamento do poluente e a posterior recuperação do
curso d’água.

182
10,00

8,00
OD (mg/L)

6,00

4,00

2,00

0,00
0 2 4 6 8 10
tempo (dias)

Figura 10.1 - Curva de depleção de oxigênio em curso d’água

Caso uma série intensa de lançamento de poluentes se suceda, o nível de


OD pode ser insuficiente para a sobrevivência dos seres vivos. Este
limite crítico é admitido, via de regra, como 40% da concentração de
saturação do oxigênio na água. Para os peixes, admite-se que teores de
OD inferiores a 4 mg/L podem ser irreversivelmente prejudiciais.

kd  DBO 0 kd t
 e  e krt   D0  e krt
(10.11)
D(t ) 
kr  kd

D é o déficit de OD; D0 o déficit inicial; DBO0 a demanda bioquímica de


oxigênio inicial; kd o coeficiente de desoxigenação, em dia -1, que varia
entre 0,7 e 7,0 dia-1; e kr o coeficiente de reaeração, em dia -1, que varia
de 0,05 a 18 dia-1.

183
O cálculo estimado do coeficiente de desoxigenação a 20 oC (dia-1),
segundo Bosko, (1966, apud Davis e Cornwell, 1991), pode ser feito
com base na Equação 10.12.

k d (20 0 C)  k DBO  U x  (10.12)
H
em que “ kDBO” é a taxa de decaimento da DBO, obtida em laboratório, a
20oC; “Ux” a velocidade principal média do curso d’água; “” o
coeficiente de atividades do leito, que varia de 0,1 para águas estagnadas
e até em 0,6 para águas velozes; e “H” a profundidade média do curso
d’água. Para estimar o valor do coeficiente a outras temperaturas, Davis
e Cornwell sugerem a seguinte regra de correção (Equação 10.13), para
temperaturas entre 20oC e 30oC.

k d (T)  k d (20 0 C) 1,056 T  20 (10.13)

em que T é a temperatura em graus Celsius. Para o cálculo do coeficiente


de reaeração a 20oC (dia-1), sugere-se o uso da Equação 10.14.

3,9  U x
0, 5

k r (20 C) 
0
(10.14)
H 1,5
Caso se deseje fazer a correção de temperatura, pode-se, por analogia,
utilizar a Equação 10.13. Observe, na Figura 10.1, o ponto crítico na
curva de depleção de OD, ou seja, aquele em que o OD é mínimo.
Derivando-se a Equação 10.11 e igualando-a a zero, pode-se calcular o
tempo crítico (tc) para o qual o efeito de um lançamento é mais intenso.

1 k  k  kd 
tc   ln  r  1  D0  r  (10.15)
kr  kd  k d  k d  DBO 0 
Araújo, Oliveira e Mota (1998) aplicaram a metodologia acima
apresentada para trecho de 15 km de um rio poluído (Cocó, Ceará). Os
184
resultados, de acordo com as equações 10.11 a 10.14, distanciaram-se
dos dados medidos em 10%, enquanto que a aplicação da Equação 10.11
com a calibração dos parâmetros kd e kr distanciou-se dos dados medidos
em 8,5%. Isso indica uma boa capacidade, da formulação apresentada, de
prever os parâmetros da equação de Streeter-Phelps, mesmo
considerando sua aplicação a um curso d’água em condições tropicais.

10.9. MEDIDAS DE CONTROLE DA POLUIÇÃO DAS ÁGUAS

A poluição das águas pode ser evitada, controlada ou até mesmo extinta,
se diversas medidas forem adotadas com compromisso e seriedade, tanto
pelos órgãos governamentais, quanto pelas empresas privadas e pela
população. Destacam-se a seguir, algumas destas medidas, de caráter
preventivo e corretivo, que podem atenuar ou solucionar definitivamente
a poluição da água. Deve-se lembrar, entretanto que, geralmente, as
medidas preventivas são mais simples e menos onerosas que as
corretivas e que, nenhuma dessas medidas tem efeito isoladamente ou se
adotadas momentaneamente. é necessário que um conjunto muito
abrangente de medidas seja adotado, por um longo tempo, muitas vezes
por décadas ou séculos.

10.9.1. Preventivas

Quando se dá início ao processo de gestão dos recursos hídricos, é


fundamental a adoção de medidas que previnam a poluição das águas,
uma vez que suas conseqüências são normalmente drásticas. Tais
medidas, sejam estruturais ou não, visam fundamentalmente a prevenir
que as atividades urbanas e/ou rurais comprometam a qualidade das
águas, por sua vez essenciais para essas mesmas atividades. Entre as
medidas preventivas de controle da poluição das águas podem ser
citadas:

185
 Preservação, proteção e monitoramento dos mananciais;
 Planejamento territorial;
 Sistemas adequados de coleta de águas resíduárias;
 Pré-tratamento e tratamento de águas residuárias industriais e
domésticas;
 Reutilização e reciclagem de águas residuárias tratadas;
 Disposição e tratamento adequados de resíduos sólidos;
 Controle da poluição atmosférica;
 Controle da poluição do solo;
 Educação ambiental;
 Aplicação da legislação pertinente.

10.9.2. Corretivas

Quando as águas já apresentam marcas do efeito poluidor da sociedade,


faz-se necessário tentar corrigir esses efeitos através de medidas
estruturais e não-estruturais. A não aplicação simultânea de medidas
preventivas, no entanto, pode caracterizar o insucesso das medidas
corretivas. São possíveis medidas corretivas:
 despoluição de rios, reservatórios e lagos;
 limpeza do fundo e das margens dos mananciais;
 tratamento de águas para abastecimento;
 tratamento de efluentes domésticos e industriais;
 aplicação da legislação existente.

186
10.10. RESUMO

O Capítulo refere-se à gestão dos aspectos qualitativos da água.


Descrevem-se os conceitos de qualidade da água e seus principais
parâmetros, a realidade dos usos múltiplos da água e do índice de
poluição no contexto atual. De modo mais detalhado, discutem-se os
processos de eutrofização e assoreamento dos corpos d’água. São
discutidas e apresentadas formulações referentes à dispersão de
poluentes e à autodepuração dos corpos hídricos; assim como possíveis
medidas de controle da poluição das águas.

PARA REFLETIR:

 Suponha que você deve gerenciar uma bacia na qual há


reservatórios eutrofizados. Quais as medidas que você proporia
para a recuperação desses reservatórios?
 Considerando-se o efeito poluidor dos efluentes domésticos,
industriais e agrícolas, assim como a capacidade de auto-
depuração dos corpos d’água, proponha uma estratégia para
definição dos padrões de emissão de poluentes em uma bacia.
 Todo empreendimento leva à melhoria da qualidade de vida da
população?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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dos coeficientes de desoxigenação e reaeração do rio Cocó, Ceará.
In: VIII Simpósio Luso Brasileiro de Engenharia Sanitária e
Ambiental, v.2, p. 324-333, João Pessoa, 1998.

187
BRANCO, S.M. e ROCHA, A .A. Elementos de ciências do ambiente.
CESTESB, São Paulo, 2ª Edição, 206 p, 1982.
CARVALHO, N. Hidrossedimentologia prática. CPRM, Rio de Janeiro,
1995.
CHAPRA, S.C. Surface water-quality modeling. McGraw-Hill Int.
Editions, Civil Eng. Series, New York, 844p, 1997.
DATSENKO, I.S. Estudo da qualidade da água dos reservatórios do
estado do Ceará. Relatório Técnico, CNPq/UFC, Fortaleza, 2000.
DAVIS, M.L. e CORNWELL, D. A. Introduction to environmental
engineering. McGraw-Hill, Chemical Eng. Series, 2nd. Edition,
822 p, 1991.
EIGER, S. Qualidade da água em rios e estuários. In: Hidrologia
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ESTEVES, F. A . Fundamentos de limnologia. 2a. Ed., Interciência, Rio
de Janeiro, 602p, 1998.
FERNANDES, L. Avaliação do processo hidrosedimentológico na bacia
do açude Acarape do Meio, Ceará. Dissertação de mestrado.
Departamento de Eng. Hidráulica e Ambiental, UFC, Fortaleza,
2000.
MOTA, S. Introdução à engenharia ambiental. 1ª Ed. ABES, 280p,
1997.
PRINGLE, L. Ecologia e ciência da sobrevivência. Biblioteca do
Exército Editora, Rio de Janeiro, 1977.
SEWELL, G.H. Administração e controle da qualidade ambiental. EPU-
EDUSP- CETESB, São Paulo, 295p, 1978.
VOLLENWEIDER, R.A. Input-output models with special reference to
phosphorus loading concept in limnology. Schweiz. Z. Hydrol.
(37), p.53-84, 1975.

188
Mercado

11 de Águas

Nilson Campos e
Larry Simpson
11.1. VISÃO GERAL DO TEMA

O último quartil do Século XX caracterizou-se, no que diz respeito à


maneira como a Sociedade ver a água, por acentuadas mudanças. A água
passou a ser encarada como um bem escasso e dotado de valor
econômico. Como recurso escasso, a água precisa de técnicas eficientes
de alocação. Técnicas desenvolvidas em economia adentraram no campo
dos recursos hídricos, anteriormente área de domínio dos engenheiros.
Economistas passaram a ser profissionais importantes nos estudos de
alocação de água. Os extremos do campo econômico – mercado e
planejamento centralizado – passaram a exercer grande influência no
desenvolvimento de modelos de alocação de água.

Os modelos de alocação de águas vigentes no início do século, e ainda


predominantes, sempre foram bastante concentrados nos governos.
Muitos autores passaram a questionar a eficiência dos mesmos.
Anderson e Leal (1988) discorreram sobre a transformação das
necessidades em águas e da necessidade de mudanças institucionais.
Questionaram eles referindo-se ao modelo de gestão de águas no oeste
americano, vigente na época: será que as instituições correntes atendem
189
aos requerimentos da sociedade de hoje? Partiram, então, na defesa de
um modelo com a introdução do mercado de águas.

11.2. MOTIVAÇÕES E PRÉ-REQUISITOS PARA O MERCADO


DE ÁGUAS

Tecnicamente, o mercado de águas é um instrumento de alocação e


realocação de águas, que busca dar a água uso mais eficiente. Em termos
práticos, o bem negociado seria o direito de uso da água. Este seria
transferido do vendedor, titular do direito, para o comprador, que
passaria à condição de titular. Em termos de tempo, a transação poderia
ser um direito permanente ou limitado a um certo período. Em termos de
espaço, a institucionalização do modelo poderia restringir-se a um país, a
um estado, a uma bacia hidrográfica ou mesmo a uma área específica,
dependendo dos costumes, das leis e também das estruturas disponíveis
para transferência de águas.

A alocação das águas pelo mercado é justificada na suposição que leve a


um uso mais eficiente das águas. O mercado de águas repousa nas
mesmas premissas do mercado de bens, de uma maneira geral. O modelo
supõe que o usuário, podendo promover usos privados mais eficientes da
água, esteja propenso a pagar pelo direito de uso de outro usuário que
faça uso menos eficiente. O valor máximo a que o possível comprador
estaria limitado, seria pelo valor incremental de seus lucros com o
adicional de água. O preço mínimo a que o vendedor estaria disposto a
aceitar estaria limitado pelo o que deixaria de ganhar com a água de que
vendeu o direito de uso (Lanna,1994).

Aceitando-se a premissa, deve-se avaliar quais as condições necessárias


para que o direito de uso da água possa ser tratado como um bem de
mercado. Simpson (1993), apresenta cinco pré-requisitos, que considera
desejáveis para o estabelecimento do mercado de águas. São eles:
190
 Deve existir um produto definido. Esse produto deve ser
passível de ser controlado, medido e trocado como um bem
comercial;
 Deve existir uma demanda para o produto e esta deve exceder à
oferta;
 O produto deve ser capaz de ser provido, quando necessário;
 O produto deve ter suficiente mobilidade para ser transferido do
local de excesso para o local de escassez;
 Deve haver aceitação, pela sociedade envolvida, que a livre
comercialização do produto é do interesse da Sociedade;
 Deve haver mecanismos de administração e regulamentação que
assegurem justiça e eqüidade.

Simpson (op.cit.) não coloca o atendimento rigoroso e total dos seis pré-
requisitos como condição indispensável ao estabelecimento do Mercado.
Todavia, argumenta que o atendimento mais completo aos pré-requisitos
implica em um melhor funcionamento dos mecanismos do mercado.

11.3. DIFICULDADES A UM MERCADO DE AMPLITUDE


ESTADUAL

Analisado do ponto de vista da alocação dos recursos hídricos, a


introdução do mercado de águas no Semi-Árido Nordestino e,
provavelmente no Brasil, com um todo, dificilmente poderia passar no
teste dos seis pré-requisitos. Se o entendimento dos fenômenos de
aparecimento da água é complexo em Hidrologia, o entendimento do
direito a seu acesso e uso é igualmente ou mais complexo, na Lei e nos
costumes populares. Vários dos pré–requisitos seriam seriamente

191
comprometidos. Dificilmente teríamos um clima social que entendesse e
aceitasse a transformação da água em um bem de mercado.

A própria cobrança de uma taxa pelo uso das águas brutas, bem
entendida por técnicos da área de recursos hídricos, enfrenta e deve
continuar enfrentando sérias dificuldades, no que tange à aceitação pela
Sociedade e pela Lei. Vários exemplos destas dificuldades foram
observados no estado do Ceará, nos últimos anos. Uma análise da
evolução do processo de gestão de água no Ceará leva à conclusão do
comprometimento dos pré-requisitos.

 Seca hidrológica de 1998. Na movimentação de água em um longo


trecho do rio Jaguaribe, para atender o Canal do Trabalhador, o
aumento de vazão liberada, a partir do açude Orós foi bem superior
ao necessário. Vários usuários não identificados aumentaram,
significativamente, seus consumos, ao perceberem que as águas no
rio estavam mais caudalosas. Este fato mostra que em geral, a água,
mesmo entendida como um produto bem definido, ainda não é
passível de ser controlada e medida em todo o Estado. Fica
comprometido o pré-requisito 1.

 No semiárido, com grande variabilidade da oferta de água, em


geral, a demanda é maior que a oferta de água. Dentro de limites
de tempo e de quantidade, difíceis de quantificar, o produto água
poderia ser entregue. No sentido geral, há algumas estruturas que
permitem a mobilidade das águas. Todavia, ainda bastante limitadas.
Dessa forma, os pré-requisitos, dois, três e quatro, seriam limitados,
porém não impeditivos ao estabelecimento do mercado de águas.

 Na verdade, os dois últimos pré-requisitos não seriam atendidos. A


Sociedade em geral ainda está por aceitar a cobrança de uma taxa de
água bruta e bem longe de aceitar um mercado de águas. Mesmo nos
meios técnicos, a experiência dos autores é a de que a grande maioria
192
externa grandes resistências a um mercado de águas generalizado.
Essa não aceitação da Sociedade, por si mesma, pode ser
considerada um impeditivo à aplicação de um mercado de águas
generalizado no Estado do Ceará.

Não será o sucesso do mecanismo, em outras partes do mundo que deva


levar, necessariamente, a sua aplicação generalizada em nosso ambiente.
Não se pode acreditar que uma Sociedade chegue ao desenvolvimento
baseada em premissas desenvolvidas em ambientes e sociedades bem
diferentes. Nessas condições, a adoção do mecanismo não passaria de
uma excessiva valorização de idéias geradas em sociedades mais
desenvolvidas (complexo de subdesenvolvimento). Por outro lado, a
aplicação de um mecanismo que obteve sucesso em outra parte do
mundo não deve ser descartada pelo simples fato do sucesso ter ocorrido
em outro lugar e em outra sociedade. Isso seria evidente manifestação,
de xenofobia. No caso, há também o pêndulo do planejamento
concentrado no Estado; no outro extremo da oscilação, a utopia do
mercado, como uma panacéia para todos os males sócio-econômicos.

A sabedoria, no entanto, está no meio. O caminho sensato seria verificar


e analisar os limites de aplicabilidade do modelo em importação e
procurar áreas para sua verificação. Aos poucos, dependendo do sucesso,
poderá haver uma mudança cultural e aceitação do novo modelo. Os
limites de aplicação poderiam ser conhecidos gradativamente e, somente
assim, estabelecidos.

11.4. UM MERCADO LIMITADO NO ESPAÇO E NO TEMPO

Busca-se definir limites espaciais e temporais para aplicação do mercado


de águas. Esta experiência pode representar uma contribuição, um
avanço, para novos modelos de alocação que conduzam a um uso mais
eficiente da água, sem cometer a imprudência de comprometer o modelo
193
através de uma experiência malsucedida. No espaço, pode-se analisar a
atual organização das áreas irrigadas e, a partir deste conhecimento,
procurar limites de aplicação para o modelo mercado de águas.

11.4.1 Atendimento ao requisito 1

A organização da água nos distritos de irrigação, em sua grande maioria,


é feita por um plano que depende da infra-estrutura de distribuição da
água. No caso de irrigação por gravidade, utiliza-se o processo de turno
de água, em que lotes individuais recebem turnos de água. A estrutura de
administração de água é controlada por estruturas de regulagem de vazão
– como módulos Neyrpic, comportas de nível constante e outras. Em
distritos de irrigação, por aspersão; a água pode ser distribuída sob
pressão e conta com estruturas de controle tipo válvulas e registros de
gaveta, etc. De qualquer maneira, qualquer que seja o distrito de
irrigação, há sempre uma estrutura administrativa e hidráulica que
permite o controle e a medida da água ofertada.

Então, dentro de um distrito de irrigação, a água, como insumo básico de


produção, é um produto bem definido, passível de ser controlado,
medido e trocado como um bem comercial. Fica atendido, deste modo o
pré-requisito 1.

11.4.2. Atendimento ao requisito 2

De acordo com a Lei de Outorga no Estado do Ceará, o total de água


outorgável, a partir de um determinado reservatório, é igual à 90% da
vazão regularizada pelo reservatório e com 90% de garantia. No período
em que acontece déficit, os estoques de água só podem atender parte da
demanda. Então, deve haver negociação entre usuários ou uma decisão
de Governo, estabelecendo cotas de águas para os diversos usuários da
bacia.
194
Na prática da gestão das águas no Estado do Ceará, anualmente, após a
estação úmida, reúnem-se usuários e comitês de bacias para decidirem a
operação dos reservatórios para o restante do ano. As reuniões são
organizadas pela Companhia de Gestão de Recursos Hídricos
(COGERH). Nos anos de déficit, as disponibilidades de água
remanescentes são distribuídas entre os usuários da Bacia, respeitados os
usos prioritários definidos em Lei. Sem entrar no mérito sobre o método
de distribuição das disponibilidades de águas em toda a bacia
hidrográfica, o resultado é que se chega ao final da negociação com uma
condição:

Um distrito de irrigação que, em anos normais, recebe uma dotação de


água X suficiente para atender todas as necessidades hídricas, passa a
receber uma dotação kX, sendo k menor do que 1. A demanda no distrito
de irrigação continua sendo X e a oferta passa a ser menor que X. Logo,
existe para o produto água uma demanda que á maior do que a oferta.
Fica atendido deste modo o pré-requisito 2.

11.4.3. Atendimento ao requisito 3

Nos anos normais, supõe-se haver um planejamento para a escolha das


culturas a plantar. Supõe-se, também, que o processo não seja autoritário
e que se respeite a vontade dos irrigantes. Desta forma, alguns irrigantes
devem escolher culturas temporárias de menores investimentos em
semeadura e tratos culturais, porém de menor valor econômico na
comercialização. Outros devem escolher culturas nobres, com maiores
investimentos e maiores valores econômicos. A diversidade de culturas e
de comportamento dos irrigantes por certo irá conduzir a que, em um
determinado momento, dependendo da circunstância do mercado de
produtos agrícolas, um dado tipo de cultura seja o mais procurado
naquela instância. Os agricultores que têm estrutura hidráulica e agrícola
mais apropriadas para o momento, por certo aceitarão deixar de produzir
195
naquele período e permitirão que as águas que lhes eram destinadas
sejam providas a outro agricultor, desde que haja uma compensação
financeira.

Nessas circunstâncias, no momento necessário, em período crítico de


oferta, o produto terá a chance de ser provido ao usuário comprador em
virtude de não ser mais demandado pelo usuário vendedor. Fica
atendido, deste modo, o pré-requisito 3.

11.4.4. Atendimento ao requisito 4

Dentro do limite espacial em análise, a água chega a um ponto de


recepção (estação de bombeamento principal), entregue pela COGERH.
A partir desse ponto, a água é distribuída pela rede de canais e
tubulações do distrito. Todas as tubulações e canais são dimensionadas
pela demanda de pico do respectivo lote ou setor de irrigação.

A água que deixa de ser ofertada ao Usuário Vendedor pode ser entregue
ao usuário comprador, através da infra-estrutura hidráulica existente.
Nestas circunstâncias, o produto, a água, tem suficiente mobilidade para
ser transferida do local de excesso (onde deixou de ser necessária por
venda do direito de uso) para o local de escassez. Fica atendido, deste
modo, o pré-requisito 4.

11.4.5 Atendimento ao requisito 5

Em se tratando de um grupo de pessoas relativamente pequeno, de uma


mesma área de atuação, não se pode esperar reação a este mecanismo de
alocação de água nos anos críticos. Mesmo porque todas as transações
somente acontecem por vontade dos participantes. Não se pode esperar,
também, grandes obstáculos jurídicos, visto que a transação, interna ao
distrito, pode ser encarada como decisão administrativa.
196
Pode-se, portanto, esperar da sociedade onde se instalará o mercado a
aceitação de que o modelo ocorre no interesse deles e que as transações
ocorrem de maneira totalmente livre. Fica atendido, deste modo, o pré-
requisito 5.

11.4.6. Atendimento ao requisito 6

A estrutura de administração das águas do perímetro deve simplesmente


ser notificada da transação e fazer com que as águas, que seriam
entregues nos lotes dos vendedores, passem a ser entregues nos lotes dos
respectivos compradores.

Neste contexto, os mecanismos das administrações existentes são


suficientes para assegurar a justiça e a equidade das transações no
modelo proposto. Fica, então, deste modo, atendido o pré-requisito 6.

Se o mercado proposto pode ser considerado limitado, pode, por outro


lado, ser entendido como uma maneira prudente de se caminhar em
busca de uma eficiente alocação de águas. Afinal de contas, se não temos
certeza de que esse caminho nos conduz a um bom porto, por que tanta
pressa?

11.5. UMA EXPERIÊNCIA NO SUL DO CEARÁ

No Sul do Ceará, na Região do Cariri, foi estabelecido, desde 1854, um


processo totalmente peculiar de alocação de águas. A ocorrência das
águas também é peculiar dentro da geografia do Estado. Uma descrição
completa do processo de alocação de água é apresentada por Kemper et.
al.(1999), em documento do Banco Mundial. O resumo a seguir
apresentado tem por objetivo a comparação com o projeto proposto a
SEAGRI.

197
11.5.1. Aspectos hidrológicos da Região

A Região em análise situa-se ao sopé da Chapada do Araripe, um platô


de altitude média de 1.000m, com ocupação de baixa densidade e grande
área verde. Na chapada encontra-se a Floresta Nacional do Araripe, a
maior reserva Florestal em solo cearense. A parte superior do maciço é
constituída por solos arenosos, constituindo a denominada Formação
Exu. Essa formação ocupa o maciço até uma profundidade de 300m
(altitude 700m), quando se inicia uma formação rochosa impermeável
denominada Formação Santana. A parte superior da camada rochosa tem
uma ligeira inclinação em direção ao Norte, conduzindo o fluxo das
águas até o sopé da chapada, onde surgem 307 fontes de água cristalina.

Dessas 307 fontes, 256 surgem no Ceará, 43 em Pernambuco e 8 no


Piauí. Entre essas fontes, a Batateiras está entre as mais importantes,
pelos aspectos ligados à produção de águas - vazão escoada - e pela
maneira como os usuários administram suas águas. A fonte Batateiras
forma o rio Batateiras, afluente da margem direita do rio Salgado. A
perenidade das fontes formava um trecho de rio perene, que, em tempos
antigos, segundo relatam moradores da Região, estendia-se até o rio
Salgado.

As vazões escoadas eram medidas em uma unidade portuguesa


denominada telha. Uma telha correspondia à vazão escoada por um tubo
de 18 cm de diâmetro com uma ligeira inclinação de 1:1.000 (Figura
11.1). Uma telha corresponde a 64,8 m3/hora (Kemper et. al.,1999). No
ano de 1854, a vazão média da fonte Batateiras era estimada em 23
telhas e em 1999 é estimada em 5 telhas, havendo, portanto, uma
substancial redução da vazão.

198
Figura 11.1 - Representação esquemática da vazão passando através de
uma parede com tubos para medidas das vazões liberadas em telhas ( 1
telha = 64,8 m3/hora). Fonte: (Kemper et.al., 1999 )

11.5.2. Aspectos da alocação de águas

Foi ao lado desse trecho de rio perene que se instalaram, no século


passado, alguns agricultores que buscaram na produção da Cana de
Açúcar a desenvolvimento de suas economias. Inicialmente, os
proprietários das fazendas vizinhas às águas correntes optaram por
distribuir 22 telhas entre eles, deixando a vazão correspondente a uma
telha para escoamento no rio para jusante. Acordaram também os
fazendeiros em que, caso houvesse redução de vazão nas fontes, os
direitos seriam perdidos de jusante para montante.

Entre as regras estabelecidas ficou ainda a possibilidade de: 1) vender-se


a titularidade do direito em caráter permanente; 2) vender por tempo
determinado e por volume determinado; 3) caso as vazões das fontes
diminuíssem, a perda de direito ocorreria de jusante para montante.

199
Em cem anos, o processo evoluiu pacificamente, sem grandes conflitos,
permanecendo assim ainda hoje.

11.5.3. Aspectos da alocação de águas

Um exemplo de venda de água por tempo limitado ocorreu em 1925,


quando um fazendeiro vendeu o direito ao uso de 58 horas de três telhas,
a cada segunda semana dos meses, pelo valor de 2.000 cargas de
rapadura. Uma operação mais de escambo que de venda.

Segundo relato de Kemper et. al.(1999), há apenas um caso de demanda


judicial na qual um ex-titular tentou recuperar seus direitos perdidos com
o tempo, tendo sido julgado segundo as regras estabelecidas no
documento de acordo de 1854.

11.5.4. Semelhanças entre o processo no Cariri e o proposto para as


áreas de irrigação

A experiência do Cariri se refere a uma área restrita, abastecida por uma


vazão bem definida e mensurável. O grupo de pessoas envolvidas na
negociação é relativamente pequeno. Acordaram elas com regras simples
e transparentes, fáceis de administrar e verificar.

A diferença fundamental, ainda não prevista, é a possibilidade de venda


permanente do direito. A Lei de Irrigação, que estipula relações de áreas
mínimas entre lotes empresariais e lotes individuais para pequenos
produtores, representa um impeditivo à venda do direito de uso da água,
em caráter definitivo, de um agricultor individual para uma empresa
agrícola.

200
11.6. RESUMO

A atual estrutura de organização da Sociedade e das instituições de águas


no Estado do Ceará não é ainda a apropriada para a criação de um
mercado de águas amplo, abrangendo todo o Estado ou mesmo uma
bacia hidrográfica importante.

Já existe, no Estado, a experiência de um modelo de alocação de águas


que incorpora mecanismos de Mercado. A experiência do Cariri, que
sobrevive por mais de um século, mostra que local e, restritamente, a
aplicação do mercado de água pode ser aceita e ter sucesso, sem
conflitos e sem interferência do Governo.

O Estado do Ceará está implantando, atualmente, uma Secretaria de


Agricultura Irrigada, que, dentre seus objetivos, incorpora a gestão da
demanda das águas como maior consumidor. No modelo de gestão da
demanda está sendo incluído o modelo de mercado de águas, como a
política de produzir mais alimentos com menos água. Várias técnicas
estão sendo analisadas, dentre estas a gestão das águas com trocas
temporárias nos direitos de uso da água e com políticas de incentivo aos
métodos mais eficientes de irrigação.

O modelo de alocação descrito, incorporando mecanismos de mercado,


poderá ser iniciado restringindo as trocas aos distritos de irrigação, para,
em uma segunda fase, estender-se a trocas entre dois distritos que
captam água de um mesmo rio.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDERSON, T. e LEAL, D. Going with the flow: expanding the water


markets. Policy analysis n°. 104, 1988.

201
KEMPER, K., GONÇALVES, J.Y.B. e BEZERRA, F.W.B. Water
allocation and trading in the Cariri region – Ceará, Brazil. World
bank technical paper n. 427. Washington D.C., 1999.
LANNA, A.E.L. Cobrança e mercados de água como instrumentos de
gerenciamento dos recursos hídricos no semi-árido do nordeste
brasileiro. In: II Simpósio de recursos hídricos do Nordeste.
Fortaleza, Ceará, 1994.
SIMPSON, L. Factors pre-requisite to market-based transfers of water.
Trabalho não publicado. Banco Mundial, 1993.

202
Águas

12 Subterrâneas

Marco Aurélio H. de Castro

12.1. VISÃO GERAL DO TEMA

A exploração racional e sustentável dos recursos hídricos se torna cada


vez mais importante atualmente, tendo em vista o aumento da população
mundial. Tal exploração assume vital importância, especialmente em
regiões que apresentam um desequilíbrio entre a oferta e a demanda de
água devido à pluviosidade irregular e/ou altas taxas de evaporação,
como é o caso do Nordeste Brasileiro. Quando se fala em recursos
hídricos, normalmente é pressuposto tratar-se apenas dos recursos
hídricos superficiais (rios, lagos, etc.). Tal percepção pode levar a
importantes erros na avaliação da quantidade e qualidade dos recursos
hídricos de uma determinada região, visto que, neste caso, a água
subterrânea é desprezada. Normalmente, os recursos hídricos são ligados
apenas aos superficiais, devido ao fato de serem visíveis e prontamente
exploráveis. Entretanto, especialmente em regiões com altas taxas de
evaporação, como é o caso do Nordeste Brasileiro, é fundamental uma
investigação sobre os modos de se armazenar água e sua eficiência.

Uma das medidas tomadas, historicamente, pelo Governo Federal e


governos estaduais no Nordeste tem sido a construção de reservatórios
superficiais (açudes), sem nunca ter havido um questionamento sobre a
eficiência deste tipo de armazenamento de água, tendo em vista as perdas
por evaporação. Tais perdas afetam não só a quantidade de água
disponível como também a qualidade desta água, podendo fazer com que
os parâmetros de qualidade desta água (especialmente a salinidade)
atinja valores intoleráveis para o consumo humano.

Várias medidas foram propostas, visando à diminuição da evaporação de


açudes, sem que se tenha chegado a resultados que validem tais medidas
como eficazes. É necessária, então, uma proposta, para regiões
semelhantes ao Nordeste do Brasil, de mecanismos alternativos de
armazenamento de água. A água subterrânea pode ser uma dessas
alternativas. A principal vantagem é a de que a evaporação nos aqüíferos
é praticamente nula. Tal vantagem se reflete não só na conservação de
uma quantidade garantida de água para os períodos de estiagem, mas
também na manutenção da qualidade desta reserva, visto que, não
havendo evaporação considerável, os parâmetros de qualidade de água
subterrânea tendem a se manter constantes ou pelo menos não tendem a
variarem rapidamente.

No caso de reservatórios superficiais, como os açudes, a quantificação da


água disponível depende apenas do conhecimento de características
geométricas (topografia, batimetria e nível d’água) do açude. Entretanto,
quando se trata de água subterrânea, além da determinação da topografia
da área onde está inserida o aqüífero e do conhecimento do nível d’água,
a determinação da quantidade de água disponível depende do
conhecimento da geologia da área (através de um levantamento
geofísico) e também do conhecimento de parâmetros hidrogeológicos de
cada camada do solo já identificada pelo levantamento geofísico. Tais
parâmetros são: a porosidade efetiva, o coeficiente de permeabilidade e o
coeficiente de armazenamento específico. Podemos concluir, então, que
as duas razões pelas quais os aqüíferos são bem menos usados como
reserva de recursos hídricos é que, neste caso, o escoamento é mais
complexo do ponto de vista hidrodinâmico e, para se quantificar a água
subterrânea disponível, muito mais parâmetros devem ser conhecidos,
quando comparados aos reservatórios superficiais. Entretanto,
principalmente em regiões como o Nordeste do Brasil, devido ao
202
problema da alta evaporação, os aqüíferos não podem ser desprezados,
pois, em alguns casos, quando a estiagem atinge seus valores mais
críticos, os aqüíferos são a única fonte hídrica disponível. Desta forma,
iremos abordar as principais características dos aqüíferos, aquelas que
são necessárias à quantificação e gestão dos recursos hídricos
subterrâneos.

12.2. CONCEITOS E DEFINIÇÕES

Veremos nas próximas seção os conceitos que servirão de base para a


compreensão do fenômeno do fluxo de água subterrânea. Tais conceitos
envolvem não só as propriedades dos aquíferos, mas também
propriedades inerentes à água subterrânea.

2.1. Propriedades físicas dos aqüíferos

Um aqüífero é uma formação geológica que contém água e permite que a


mesma se movimente em condições naturais. Um aqüífero consiste de
um conjunto de partículas sólidas entre as quais existe um espaço que
pode estar, total ou parcialmente, preenchido com água. Dessa forma,
um aqüífero é um sistema formado por três fases: a sólida, a líquida e a
gasosa. Como vimos, o volume de vazios (VV) pode se dividir em um
volume de água (VA) e um volume de ar (VAR). O volume total (VT) é
composto de um volume de sólidos (VS) mais o volume de vazios (Vv)
(Freeze e Cherry, 1979) e (Todd, 1980). Um dos parâmetros de um
aqüífero, que é a sua porosidade (n) , é dado por:
VV (12.1)
n
VT

O conteúdo volumétrico de água () é dado pela Equação 12.2.

203
VA (12.2)

VT

Quando um determinado volume de solo não está saturado, ou seja,  <


n, a água fica submetida, nos vazios do solo, a pressões negativas (em
relação à pressão atmosférica). Esta pressão negativa tende a diminuir
(aumentando em módulo) à medida em que o conteúdo de água diminui.
A variação desta pressão p com , para um solo comum, pode ser
descrita pela Figura 12.1.


r n
Sy
p

Figura 12.1 - Curva p vs. .

Como mostra a Figura 12.1,  tende a um valor constante à medida em


que p cresce (em módulo). Este valor de  é denominado retenção
específica ( r). Para ensaios de laboratório, o valor de  para p=-3,33
mca é utilizado para a retenção específica.

O termo porosidade efetiva (S y) é usado para definir a diferença entre a


porosidade e a retenção específica (ver Figura 12.1), ou seja:
Sy  n  r (12.3)

204
e pode ser interpretado como o conteúdo volumétrico de água de um
aqüífero efetivamente disponível para o uso.

12.2.2. Potencial hidráulico ou carga hidráulica

O potencial hidráulico ou carga hidráulica é uma quantidade física capaz


de ser medida em qualquer ponto de um meio onde está ocorrendo um
escoamento, o qual ocorre, sempre, de um ponto de maior potencial
maior para um ponto de menor potencial. O potencial ou carga de um
fluido em movimento é a energia mecânica total por unidade de peso do
fluido e é definido por (Fetter, 1994):
p V2 (12.4)
h z
 2g

onde p/ é o chamado potencial de pressão ( = peso específico do


fluido), z é o chamado potencial gravitacional (altura medida a partir de
um referencial arbitrariamente escolhido e V²/2g é o chamado potencial
de velocidade ou potencial cinético.

Para um escoamento em um meio poroso (aqüífero), as velocidades são


normalmente extremamente baixas (exceto na vizinhança de poços de
bombeamento). Assim, neste caso, V²/2g  0, e, portanto, o potencial de
velocidade pode ser desprezado.

O aparelho usado para a medição do potencial no campo é o piezômetro,


o qual consiste em um tubo em que a altura d’água pode ser medida. A
Figura 12.2 mostra o esquema de um piezômetro e os potenciais
relativos ao ponto 1.

205
Superfície do terreno

p1/ Nível d’água


. h1
1 z1
Referencial
Figura 12.2 - Piezômetro

Os piezômetros são geralmente instalados em grupos. Assim, a direção


do escoamento pode ser determinada do seguinte modo: se um grupo de
piezômetros é instalado (não-alinhado) em um aqüífero, é possível traçar
linhas de um mesmo potencial hidráulico (equipotenciais).O conjunto
das equipotenciais determina a superfície piezométrica. As trajetórias das
partículas de água são perpendiculares às equipotenciais e as partículas
se movem no sentido decrescente de potencial. Essas trajetórias são
chamadas de linhas de fluxo.

12.2.3. Gradiente hidráulico

Dados dois pontos em um aqüífero, cujos potenciais são h1 e h2, e cuja


distância entre eles é x, o gradiente hidráulico entre os pontos 1 e 2 é
definido pela equação 12.5.
 h h 2  h1 (12.5)
i 
x x
206
12.2.4. Lei de Darcy

Em 1856, o Engenheiro francês, Darcy, realizou experimentos em filtros


de areia através dos quais escoava uma vazão Q e nos quais haviam sido
instalados dois piezômetros (Figura 12.3).

O resultado destes experimentos levou Darcy a concluir que a vazão Q é


proporcional à área da seção transversal A e à h, além de ser
inversamente proporcional à x. A principal conclusão de Darcy foi que,
mesmo variando Q, h, x e A, a constante de proporcionalidade
permanecia constante, ou seja:
A h (12.6)
Q  K
x
observando que o sinal negativo se deve à h ser negativo.

h
Q
p1/
p2/
h1 .1
.2 h2
x
Q
z1
z2

Referencial

Figura 12.3 - Experimento de Darcy

A constante K é um coeficiente de proporcionalidade chamado de


condutividade hidráulica ou coeficiente de permeabilidade.

207
Ao definirmos q = Q/A como a vazão específica ou velocidade de Darcy
e considerarmos x infinitesimal, nós podemos chegar à lei de Darcy em
uma dimensão (Equação 12.7).
dh (12.7)
q  K
dx
É importante observar que a velocidade de Darcy não é igual à
velocidade real da água no aqüífero e que esta é sempre superior à
velocidade de Darcy. O coeficiente de permeabilidade é a característica
hidrogeológica mais importante e, é necessária a sua determinação com
uma precisão compatível com a precisão do modelo de simulação de
exploração do aqüífero. Existem vários métodos para determinação do
coeficiente de permeabilidade. Os testes de bombeamento estão entre os
mais precisos, porque eles são feitos no campo (sem extração de
amostras) e os valores de permeabilidade fornecidos por eles são válidos
para uma vasta área em torno dos poços. Entretanto, tais testes são
também os mais demorados, complexos e caros. Entre outros testes de
campo, bastante eficientes, estão os chamados testes de recuperação,
“Slug Tests”, os quais são bem mais rápidos, simples e baratos que os
testes de bombeamento. Entretanto, abrangem uma área bem menor em
torno do poço de teste e sua principal desvantagem em relação aos testes
de bombeamento é que só podem ser feitos em poços cujo nível d’água
se encontre razoavelmente próximo à superfície do terreno (máximo de
cinco metros). Finalmente, o coeficiente de permeabilidade pode ser
determinado em laboratório, através de aparelhos chamados
permeâmetros, os quais podem ser de dois tipos: de carga constante e de
carga variável. Contudo, existem três grandes desvantagens no uso dos
permeâmetros em relação aos dois tipos de testes anteriores: a primeira é
que eles requerem amostras retiradas do aqüífero, o que pode implicar
numa excessiva deformação dessas amostras, como resultado do
manuseio. Em segundo lugar, o fato dessa amostra ter sido retirada de
um ponto arbitrário do aqüífero, a uma profundidade arbitrária, pode
208
levar a resultados enganosos, visto que este ponto e esta profundidade
podem não representar a média das características do aqüífero.
Finalmente, o fato dos permeâmetros imporem uma direção arbitrária ao
fluxo pode também levar a erros, pois se o aqüífero for fortemente
anisotrópico, esta pode não ser a direção natural do fluxo (geralmente
horizontal). A norma que trata da determinação da permeabilidade,
usando permeâmetros, é a NBR13292 da ABNT.

A simulação de exploração de aqüíferos é, geralmente, tridimensional.


Portanto, a lei de Darcy pode ser generalizada para três dimensões
ortogonais cartesianas: x’, y’, e z’ (Equação 12.8).

q x '  K x 'x ' K x 'y ' K x 'z '  h / x '


     (12.8)
q y '    K y 'x ' K y 'y ' K y 'z '  h / y'
q   K z 'x ' K z 'z '   h / z' 
 z'   K z 'y '

onde a matriz acima contém o valor da permeabilidade nas direções x’,


y’e z’. É importante notar que esta matriz é simétrica, ou seja, K ij = Kji
para i  j. Devido a esta simetria, existem 6 componentes distintos na
matriz de permeabilidade tridimensional. Todavia, se nós rotacionarmos
os três eixos cartesianos, x’, y’e z’, é possível encontrar três novos eixos
cartesianos, x, y e z, para os quais Kij = 0 se i  j. Neste caso, a Lei de
Darcy fica:

q x  K xx 0 0  h / x 
    
0  h / y 
(12.9)
q y     0 K yy
q   0 K zz   
 z 0 h / z 
ou, como é mais encontrada na literatura:

q x  K x 0 0  h / x 
    
0  h / y 
(12.10)
q y     0 Ky
q   0 K z   
 z 0 h / z 
209
As direções x, y e z, que tornam a matriz de permeabilidade diagonal,
são chamadas de direções principais e, nessas direções e somente nelas,
Kij atinge seus valores máximos e mínimos.

Se Kx = Ky = Kz , então o aqüífero é considerado isotrópico e, se a matriz


[K] não varia de ponto para ponto no aqüífero, este é considerado
homogêneo.

12.2.5. Classificação dos aqüíferos

Os aqüíferos classificam-se em confinados e não-confinados. Em um


aqüífero não-confinado, também conhecido como livre ou freático, a
superfície piezométrica coincide com o nível da água. Em um aqüífero
confinado, também conhecido com artesiano, a água subterrânea está
confinada sob uma pressão maior que a pressão atmosférica, devido à
existência de uma camada confinante impermeável, acima do aqüífero.
Tal situação faz com que a superfície piezométrica se situe acima do
topo saturado do aqüífero, podendo, em alguns casos, está posicionada
acima da superfície do terreno.

Na maioria dos casos reais, os aqüíferos não podem ser classificados


como exclusivamente confinados ou não-confinados, visto que, um
aqüífero real, raramente é composto de apenas uma camada. Sendo
assim, deve-se classificar as camadas de um aqüífero como tendo
comportamento confinado ou não. Em um aqüífero, apenas a camada na
qual está localizada o nível d’água pode ser classificada como livre. É
importante notar, também, que uma camada confinada pode
eventualmente se comportar como uma camada livre, desde que o nível
d’água atinja esta camada.

A classificação das camadas de um aqüífero, como livres ou confinadas,


não se justifica apenas pelo ponto de vista didático. O mecanismo de
liberação de água de uma camada confinada é completamente diferente
210
do mecanismo de uma camada livre, sendo que as camadas livres são
muito mais eficientes como reservatórios de água subterrânea. A
principal razão de se classificar camadas como livres ou confinadas, é
que a equação que rege o fluxo subterrâneo varia conforme o tipo de
camada, como veremos a seguir.

12.3. EQUAÇÕES FUNDAMENTAIS DO FLUXO


SUBTERRÂNEO

Visando uma exploração racional e sustentável de aquíferos é necessária


uma simulação do fluxo hídrico subterrâneo visando prever as
consequências de uma determinada exploração. Tal simulação é feita
através da solução das equações diferenciais que regem o fluxo hídrico
subterrâneo. Existem basicamente dois tipos de equações diferenciais
que regem este fluxo, uma se aplica a camadas confinadas e outra se
aplica a camadas livres, como veremos a seguir.

12.3.1. Camadas confinadas

A equação diferencial parcial, que rege o fluxo subterrâneo transiente,


em uma camada saturada confinada, pode ser obtida através de um
balanço de massa em um elemento infinitesimal desta camada. O
resultado deste balanço é a Equação 12.11.

2 h 2 h 2 h h (12.11)
Kx  K  K  F( x , y, z)  SS
x y z t
2 y 2 z 2

onde Ss é o chamada coeficiente de armazenamento específico desta


camada (o qual também é fornecido pelo teste de bombeamento) e
F(x,y,z) é uma função matemática equivalente à recarga (infiltração, rio,
lago, etc.) ou retirada de água do aqüífero (por exemplo, através de um
poço de bombeamento).
211
No caso da camada ser considerada isotrópica (Kx = Ky = Kz = K), então
a Equação 12.11 se transforma em:

2 h 2 h 2 h S h (12.12)
   F( x , y, z)  S
x 2
y 2
z 2
K t

e, considerando o regime como permanente (h/t = 0):

2 h 2 h 2 h (12.13)
   F( x , y, z)  0
 x 2  y2  z2
a qual é conhecida como equação de Laplace, quando F (x,y,z) = 0.

12.3.2. Camadas livres

Neste caso, também é feito um balanço hídrico. Mas, devido ao fato de


que parte da camada não se encontra saturada, a equação diferencial é
diferente da equação para camadas confinadas. Considerando fluxo
horizontal (não há fluxo na direção z), a equação que rege o fluxo é a
seguinte (Bear, 1979):
 h  h
 h      h    
 x   y 
(12.14)
  h
Kx  Ky  F( x , y)  S y
x y t

onde  é a distância entre o referencial adotado e a superfície limite


inferior da camada livre (ver Figura 12.5). Deve-se notar que a equação
acima é classificada como não-linear e sua solução é bem mais complexa
de que a equação que rege o fluxo em camadas confinadas.

12.4. SIMULAÇÃO DA EXPLORAÇÃO DE AQUÍFEROS

Uma vez determinadas as características hidrogeológicas e geofísicas do


aquífero, o passo seguinte para o estudo da capacidade de utilização do
212
aqüífero como reservatório hídrico é a simulação de sua utilização,
através da solução das equações que regem o fluxo no aqüífero. As
equações apresentadas anteriormente são de difícil solução analítica (ou
exata). Para solucioná-las, é necessário a utilização de ferramentas
computacionais. Para exemplificar a aplicação dessas metodologias,
vamos considerar um aqüífero aluvial onde existe um bombeamento
(Figura 12.4).

Piezômetro

A
Piezômetro

Poço A
RIO
y
de Bombeamento

x
z

Figura 12.4 - Vista em planta de um aqüífero aluvial.

Piezômetro
Poço de
corte A-A
Bombeamento
F(x,y)

h(x,y,t)
z
(x,y)
Referencial
x

Figura 12.5 - Perfil transversal do aqüífero aluvial.

213
Devido à complexidade da geometria e da heterogeneidade das
características hidrogeológicas dos aqüíferos reais, o passo seguinte para
a simulação computacional da exploração seria a discretização da
geometria ou domínio em subdomínios mais simples, nos quais a
equação diferencial do fluxo pode ser solucionada de maneira
aproximada. O passo final seria a junção das soluções dos subdomínios,
para a obtenção da solução global para o aqüífero. Estes passos são a
base dos diversos métodos computacionais, disponíveis para a obtenção
da solução das equações de fluxo.

Os métodos computacionais mais utilizados são: o Método das


Diferenças Finitas, o Método dos Elementos Finitos e, mais
recentemente, o Método dos Elementos de Contorno (Anderson e
Woessner, 1979). Se nós estivéssemos usando o Método dos Elementos
Finitos, a discretização do nosso aqüífero aluvial da Figura 12.4 poderia
ter a forma mostrada na Figura 12. 6. Finalmente, a solução para o
problema seria o valor da carga hidráulica em cada nó da malha.

Elemento

Nós

RIO
y

x
z

Figura 12.6 - Discretização do aqüífero em uma malha de elementos


finitos

214
12.5. RESUMO

O principal objetivo deste capítulo residiu em fornecer conceitos básicos


de água subterrânea, essenciais para o entendimento do funcionamento
de aqüíferos como reservatórios hídricos. Tais conceitos envolvem,
desde as noções básicas das propriedades hidrogeológicas dos aqüíferos
até as equações que regem o fluxo de água subterrânea. Foi também
apresentada uma introdução às metodologias computacionais, atualmente
utilizadas para solução destas equações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEAR, J. Hydraulics of groundwater. McGraw-Hill, New York, 1979.


FETTER, C. W. Applied hydrogeology, 3rd Edition - McMillan
Publishing Company, New York, 1994.
FREEZE, R. A. e CHERRY, J. A. Groundwater, Prentice-Hall, New
Jersey, 1979.
ANDERSON, M. P. e WOESSNER, W. W. Applied groundwater
modeling simulation of flow and advective transport. - Academic
Press, New York, 1992.
TODD, D. K. Groundwater hydrology, 2nd Edition, John Wiley & Sons,
1980.

215
O Direito e a
13 Gestão de Águas

José Adonis Callou de Araújo Sá e


Luciana Ribeiro Campos
1. LEGISLAÇÃO SOBRE ÁGUAS NO BRASIL

No passado, a água era considerada um recurso inesgotável, e por isso a


gestão era descomprometida com a preservação ambiental, apresentando
rara preocupação com a otimização de seu uso. A legislação, não
obstante reconhecesse a importância da água como condição elementar
para a sobrevivência do homem, da fauna e da flora, não refletia ainda a
idéia de escassez futura do recurso natural. As mudanças na legislação
refletiam as espécies de uso das águas. No princípio, a navegação e a
flutuabilidade, depois a produção de energia elétrica, o aproveitamento
em atividades industriais e agrícolas, além do abastecimento das
populações.

Quando foi editado o Código de Águas, Decreto nº 24.643, de 10 de


julho de 1934, na análise de Macedo (1993):

“A compreensão da sua definição e da sua consequente


concepção conceitual ainda estava inteiramente voltada para os
setores de navegação e da energia hidráulica, a política de
açudagem e de combate às secas ainda refletia uma visão
emergencial e os efeitos das calamidades climáticas ainda

216
acalentavam, de forma piedosa e impressionante, o ‘leitmotiv’
dos nossos romancistas. ”

Afirma-se, tradicionalmente, no Brasil, conforme registra Antunes


(1998), que as águas podem estar submetidas ao regime de Direito
Privado e de Direito Público. Sob a óptica do Direito Privado,
encontramos no Código Civil, na seção relativa aos direitos de
vizinhança, a disciplina acerca do livre fluxo das águas entre prédios.
Tais regras convivem com a disciplina do Código de Águas, naquilo que
evidentemente não caracterize antinomia, solucionável pelo critério
cronológico e de especialidade.

No sistema do Código de Águas, verifica-se a existência de três


categorias: a) águas públicas, que seriam os mares, as correntes, canais,
lagos e lagoas navegáveis ou flutuantes, as correntes de que se façam
estas águas, as fontes e reservatórios públicos, as nascentes quando
forem de tal modo consideráveis que, por si só, constituam o caput
fluminis, os braços de quaisquer correntes públicas, desde que os
mesmos influam na navegabilidade e flutuabilidade (art. 2º); b) águas
comuns, as correntes não navegáveis ou flutuáveis e de que essas não se
façam; c) águas particulares, as nascentes e todas as águas situadas em
terrenos que também o sejam, quando as mesmas não estiverem
classificadas entre as águas comuns e as públicas (art. 8º) (Andrade,
1996).

Atualmente, considera-se a água um recurso limitado, finito, já escasso,


essencial para os múltiplos usos a que se destina, e por isso um bem
econômico. Surgiu, então, a necessidade de uma legislação sobre gestão
sintonizada com essa importância e peculiaridades, pois dela depende a
implementação de decisões políticas sobre os recursos hídricos para que
sejam utilizados racionalmente.

217
A visão atual considera a água como um bem integrante do patrimônio
ambiental e por isso um bem de uso comum de todos. É o que consagra a
regra do artigo 225 da Constituição Federal, que também reparte, nos
artigos 20 e 26, o domínio entre a União e os Estados. O novo regime
jurídico, instituído com a Constituição e pela Lei nº 9.433, de 8 de
janeiro de 1997, impõe o domínio público sobre as águas, e, portanto,
extingue a apropriação privada exclusiva, ficando revogadas as
disposições sobre águas particulares (Machado, 1998: p.354).

13.2 A ÁGUA NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

Registra Antunes (1998) que a Constituição de 1824 foi omissa sobre o


tema. Contudo, uma lei de 1º de outubro de 1828 atribuiu às câmaras de
vereadores a competência legislativa sobre águas, e a Lei nº 15, de 12 de
agosto de 1834, estabeleceu a competência das assembléias legislativas
provinciais para legislar sobre obras públicas, estradas e navegação nos
respectivos territórios, o que tinha evidentes reflexos quanto às águas.
Também a Constituição republicana de 1891 foi silente quanto à
disciplina das águas. Entendia-se, então, que o tema incluía-se na
competência federal para legislar sobre Direito Civil, campo no qual se
inseria o tratamento jurídico da água, visto sob o mesmo enfoque do
direito de propriedade.

A Constituição de 1934 cuidou da matéria, tanto no tocante à


competência legislativa quanto sob o aspecto dominial. A regra do art. 5º
atribuía à União legislar sobre "bens do domínio federal, riquezas do
subsolo, mineração, metalurgia, águas, energia hidroelétrica, caça e
pesca e a sua exploração". O art. 20, inciso II, incluía entre os bens da
União "os lagos e quaisquer correntes em terrenos do seu domínio, ou
que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países ou
se estendam a território estrangeiro".

218
A Carta de 1934, no título sobre a ordem econômica, já enfocava a água
como elemento importante no processo econômico, sobretudo como
fonte de energia elétrica, e disciplinava a distinção entre a propriedade
do solo e a das riquezas do subsolo (art. 118). O aproveitamento
industrial das águas e da energia hidráulica dependida de autorização ou
concessão federal (art. 119).

A Constituição de 1937 atribuía competência privativa à União para


legislar sobre os bens do domínio federal, águas e energia hidráulica. Na
regra do art. 143, estabelecia distinção entre a propriedade do solo e das
riquezas do subsolo, submetendo também à autorização federal, o
aproveitamento industrial de minas e jazidas minerais, das águas e
energia hidráulica, ainda que de propriedade privada.

A Constituição de 1946 atribuía à União a competência para legislar


sobre riquezas do solo, mineração, metalurgia, águas, energia elétrica,
florestas, caça e pesca, sem excluir a legislação supletiva ou
complementar. Entre os bens da União incluía os " lagos e quaisquer
correntes de água em terrenos do seu domínio ou que banhem mais de
um Estado, sirvam de limite com outros países ou se estendam a
território estrangeiro, e bem assim as ilhas fluviais e lacustres nas zonas
limítrofes com outros países". Pertenciam aos Estados membros "os
lagos e rios em terrenos de seu domínio e os que têm nascente e foz no
território estadual".

A Constituição de 1967 e Emenda de 1969 não trazem significativa


alteração relativamente ao domínio sobre as águas, continuando a
pertencer à União "os lagos e quaisquer correntes de água em territórios
de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, constituam limite
com outros países ou se estendam a território estrangeiro". Entre os
bens dos Estados estavam incluídos "os lagos em terrenos de seu
domínio, bem como os rios que neles têm nascentes e foz, as ilhas
fluviais".
219
13.3 A ÁGUA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

13.3.1. Domínio sobre as águas

Ensina Silva (1999, p.85) que a “água é um bem insuscetível de


apropriação privada, por ser, como dissemos, indispensável à vida,
ainda que na legislação e na doutrina se fale, freqüentemente, em águas
do domínio particular e águas do domínio público. Isso não pode ter
outro sentido, hoje, quanto às primeiras, de águas que se situam ou
passam em propriedade do domínio privado, e assim, enquanto estão
dentro dela, ficam sujeitas à apropriação e à administração do
proprietário desse domínio.“

Na verdade, as águas, como integrantes do patrimônio ambiental, são


bens de uso comum de todos. É o que consagra a regra do artigo 225 da
Constituição Federal de 1988. A Lei Fundamental publicizou as águas,
repartindo o domínio entre a União e os Estados. Houve sensível
modificação no regime do Código de Águas, “sem deixar espaço para a
inclusão das águas municipais, das particulares e das comuns, como
anteriormente existia”, segundo anota Pompeu (1994).

A Constituição reservou à União, nos termos do inciso III do art. 20, o


domínio sobre os lagos, rios e quaisquer correntes de água que se
encontrem em terrenos de seu domínio, que banhem mais de um Estado,
sirvam de limites com outros países, estendam-se a território estrangeiro
ou dele provenham.

Destinou a Constituição, conforme art. 26, I, aos Estados, o domínio


sobre "as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em
depósito". Assim, pertencem aos Estados os lagos e os rios que tenham
nascente e foz no seu território. A norma constitucional ressalva,

220
contudo, as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em
depósito, que sejam decorrentes de obras da União.

Como registra Antunes (1998, p. 352), a nova Constituição caracterizou


a água como um recurso econômico e prevê o fim da privatização dos
recursos hídricos, rompendo com a concepção até então vigente. Essa
apropriação privada dos recursos hídricos acarretou, ao longo do tempo,
a geração de riquezas para seus usuários, com a distribuição das
repercussões negativas sobre toda a coletividade.

Atualmente, a água é um bem de domínio público, repartido entre a


União e Estados membros. A Constituição não confere ao Município o
domínio sobre quaisquer espécies de águas, não mais existindo, portanto,
águas municipais. Contudo, como observa Machado (1998), as águas
não constituem bens dominiais da União e Estados, no sentido da regra
do art. 66, inciso III, do Código Civil, ou seja, como objeto de direito
real. O Poder Público, na verdade, assume o papel de gestor do recurso
em benefício coletivo.

13.2. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA

A Constituição Federal arrola, no art. 22, as matérias da competência


legislativa privativa da União, no que se incluem as águas, no inciso IV.
A norma do parágrafo único do mesmo artigo diz que a lei
complementar pode autorizar os Estados a legislarem sobre questões
específicas das matérias relacionadas como da competência legislativa
privativa da União. Note-se, por outro lado, que a Constituição também
atribui à União a competência material exclusiva para instituir sistema
nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de
outorga de direitos de seu uso (art. 21, XIX). Vale, observar, ademais,
que toda matéria de competência da União é suscetível de
regulamentação mediante lei (Silva, 1996, p.475).
221
Cuida o art. 24 da Constituição Federal da competência legislativa
concorrente da União, com Estados e Distrito Federal, nela não estando
incluídos os recursos hídricos. A norma do art. 25, § 1º, explicita a
competência remanescente dos Estados, reservando-lhes as competências
que não lhes sejam vedadas implícita ou explicitamente pela
Constituição. O Distrito Federal tem as mesmas competências
legislativas reservadas aos Estados e Municípios (art. 32, § 1º).

Os Municípios, nos termos dos incisos I e II do art. 30, da Constituição


Federal, receberam competência para legislar sobre assuntos de interesse
local e para suplementar a legislação federal e a estadual no que couber,
formulando normas que desdobrem o conteúdo de princípios ou normas
gerais federais ou estaduais, ou que supram a ausência ou omissão
destas.

Constata-se, pois, que os Estados não receberam competência para


legislar sobre águas, porquanto a Constituição reservou-a privativamente
à União (art. 22, inciso IV). Somente mediante lei complementar
autorizadora, poderá o Estado legislar sobre a matéria (art. 22, parágrafo
único). Há de se levar em conta, por outro lado, que a água é considerada
hoje um fator ambiental e está também inserida dentre os bens do
domínio dos Estados, podendo merecer tratamento legislativo sob este
aspecto.

Moreira Neto (1998), em abordagem sobre o poder concedente para o


abastecimento de água, observa que a água está inserida na Constituição
da República como "recurso natural, como elemento primário do
saneamento básico" e como "fator ambiental", circunstância essa que
tem implicações no sistema de competências legislativas e executivas.
Como recurso natural, aponta o autor, a "partilha do domínio entre a
União e os Estados (arts. 20, III e 26, I); a atribuição de competência
privativa à União para legislar sobre águas (art. 22, IV); e instituir

222
sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir
critérios de outorga de direitos de uso (art. 21, XIX)".

Como elemento primário de saneamento básico, na expressão de Moreira


Neto, a Constituição Federal "atribui competência à União para
estabelecer diretrizes em nível nacional (art. 21, XX); atribui
implicitamente competência aos municípios para prestar serviços de
água onde prevaleça o interesse local (art. 30, V); e atribui competência
aos Estados para definir as regiões metropolitanas, as aglomerações
urbanas e as micro-regiões (art. 25, § 3º)".

Como fator ambiental, a Constituição Federal "atribui competência


concorrente à União e aos Estados para legislar sobre a conservação de
recursos naturais e meio ambiente (art. 24, VI); atribui aos três níveis
federativos competência administrativa para a proteção do meio
ambiente (art. 23, VI)".

Desse modo, pode-se concluir que, aos Estados, é validamente possível


legislar sobre águas, não apenas quando autorizado por lei complementar
(art. 22, parágrafo primeiro), mas também como um recurso natural
integrante do seu domínio (art. 26, I), como elemento primário de
saneamento, na instituição de regiões metropolitanas (art. 25, § 3º) e
como fator ambiental, tendo em vista a competência legislativa
concorrente (art. 24, VI).4

13.4 A NOVA LEI DE ÁGUAS

A Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 997, instituiu a Política Nacional de


Recursos Hídricos, baseada em princípios dentre os quais destacamos
(art. 1º, incisos I a IV):

4
No sentido da competência dos estados para legislar sobre os seus bens, vale
conferir o trabalho de Macedo (1993).
223
"a água é um bem de domínio público; a água é um recurso
natural limitado, dotado de valor econômico; em situações
de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o
consumo humano e a dessedentação de animais; a gestão
de recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso
múltiplo das águas".

Dentre os instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos,


destacamos (art. 5º, incisos II, a IV): "o enquadramento dos corpos de
água em classes, segundo os usos preponderantes da água; a outorga
dos direitos de uso de recursos hídricos; a cobrança pelo uso de
recursos hídricos".

O regime de outorga de direitos de uso de recursos hídricos, nos termos


do art. 11, da Lei nº 9.433/97, tem como objetivos assegurar o controle
quantitativo dos usos da água e o efetivo exercício dos direitos de acesso
à água. A regra do art. 12 relaciona os diversos usos de recursos hídricos
sujeitos à outorga pelo Poder Público. A cobrança pelo uso de recursos
hídricos objetiva, conforme a regra do art. 19, "reconhecer a água como
bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor;
incentivar a racionalização do uso da água; obter recursos financeiros
para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos
Planos de Recursos Hídricos".

A outorga dos direitos de uso de recursos hídricos cabe aos poderes


executivos federal e dos Estados, nas suas respectivas esferas de
competência, definidas estas pela titularidade dos corpos hídricos (art.
19). Trata-se de importante instrumento destinado a permitir o controle
sobre a captação e o lançamento de efluentes nos corpos de água. A
efetividade da nova legislação permitirá superarmos a situação até aqui
vigente, marcada pela apropriação privada do bem público água, gerando
riquezas para o usuário ficando o ônus para a coletividade.

224
A água passa a ser considerada um bem limitado e de valor econômico,
sendo cobrados seus usos sujeitos a outorga (art. 20). Porém como
adverte Machado (1998, p.354) a gestão das águas, como bem de uso
comum do povo, pelo Poder Público, não o transforma em comerciante
desse bem. Como já dissemos, as águas não são bens dominicais que se
caracterizam pela alienabilidade. A propósito, a regra do art. 18 da Lei nº
9.433/97 estabelece que a outorga não implica a alienação parcial das
águas que são inalienáveis, mas o simples direito de seu uso.

13.5 ESTUDO DE CASO: A POSSE E USO DAS ÁGUAS DAS


FONTES DA CHAPADA DO ARARIPE

As águas das fontes existentes na Chapada do Araripe, na Região do


Cariri cearense, estão partilhadas entre proprietários de terras ali
situadas, por documentos formalizados ainda no século passado. No caso
do corpo de águas que forma o Rio Batateiras, na Cidade do Crato, foi
realizada a partilha entre os foreiros dos sítios situados à margem do
referido rio, no ano de 1855.

O documento de partilha, de valor histórico incontestável, referencia


como fundamento legal o artigo 58 da Resolução Provincial nº 640, de
17 de janeiro de 1854. Na época, a Lei nº 645, de 17 de janeiro de 1854,
tratava da repartição das águas de todas as nascentes existentes no
Município do Crato entre os foreiros, insinuando já uma atenção do
poder público para a gestão dos recursos hídricos, porém baseada na
apropriação privada dos mesmos.

Cabe investigar, todavia, a validade do modelo de partilha e uso das


águas das fontes existentes na Chapada do Araripe, bem como de outras
que estejam ainda submetidas ao mesmo regime de repartição, diante da
nova ordem jurídica pátria. A questão que se apresenta envolve a partilha
e uso de águas, realizada sob a regência de uma legislação que não
225
contemplava a água como recurso ambiental ameaçado de escassez, e o
novo regime jurídico, que considera a água como bem integrante do
domínio público do uso comum de todos.

É necessário, pois, enfrentarmos um problema de Direito Constitucional


intertemporal, para aferir a validade das situações constituídas quanto à
partilha de águas fontes, como é o caso do Rio Batateiras e de outras da
Chapada do Araripe, em face do novo regime dominial e de gestão de
águas inaugurado com a Constituição de 1988.

13.6. UMA QUESTÃO DE DIREITO INTERTEMPORAL

É importante, para os objetivos desse estudo, analisarmos aspectos


decorrentes da sucessão temporal das leis que trataram do tema e a
segurança das relações jurídicas constituídas. A lei, promulgada e
publicada, entra em vigor na data por ela indicada ou, sendo omissa, no
prazo de 45 (quarenta e cinco) dias definido no art. 1º do Decreto-Lei nº
4.657, de 4 de setembro de 1942.

Constitui valor inerente ao Estado de Direito a garantia da segurança


jurídica, entendida esta como estabilidade dos direitos subjetivos. A
segurança jurídica vincula-se à relativa certeza de que as relações
jurídicas constituídas sob a regência de uma lei devem perdurar, mesmo
quando essa lei venha a ser substituída.

Esse valor segurança jurídica, que supõe possíveis conflitos de normas


no tempo, está incorporado como garantia fundamental no art. 5º, inciso
XXXVI, da Constituição Federal: "a lei não prejudicará o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". Disposição no
mesmo sentido encontramos no Decreto-Lei n.º 4.657/42, denominada
Lei de Introdução ao Código Civil, que enuncia: "a lei em vigor terá

226
efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito
adquirido e a coisa julgada".

Parece-nos desnecessário, no âmbito do presente trabalho, enfrentarmos


as controvérsias acerca da caracterização dos direitos adquiridos, do ato
jurídico perfeito e da coisa julgada, que nem as definições normativas
contidas na Lei de Introdução ao Código Civil conseguiram afastar (art.
6ª, §§ 1º, 2º e 3º). O mais importante a considerar é a situação dos
direitos adquiridos em face das normas constitucionais.

Em princípio, afirma a doutrina que a norma constitucional originária, ou


seja, decorrente do poder constituinte originário, não se vincula a
nenhum preceito jurídico-positivo anterior. Poder constituinte originário,
no dizer de Silva (1998), “é o que produz normas constitucionais
originárias, que compõem uma Constituição, quer seja a primeira que
constitui o Estado, quer seja a que sucede outra existente e a substitui”.

O Poder Constituinte originário é manifestação da soberania popular.


Frente ao constituinte originário, não surgiria relação de direito
constitucional intertemporal, porque não haveria normas constitucionais
a condicioná-lo. Assim, o poder que faz a Constituição é juridicamente
ilimitado e incondicionado. Não fica sujeito a nenhuma regra jurídica do
ordenamento anteriormente existente, porquanto há verdadeiro
rompimento com o sistema substituído.

A explicação de Silva (1998) põe nos devidos termos a questão dos


direitos adquiridos e a norma constitucional originária:

“não é que o Poder constituinte não respeita os direitos


adquiridos anteriores. A tese é diferente. Ele não está
jungido aos direitos anteriores, adquiridos ou não. Ele tem
a faculdade de desfazê-lo explícita ou implicitamente. Pois
as normas constitucionais originárias também estão
227
submetidas ao mesmo princípio geral que regem todas as
leis jurídicas, qual seja o princípio da incidência imediata e
geral, passando a reger as situações e condutas presentes e
futuras, desde sua entrada em vigor. A irretroatividade das
normas, inclusive das normas constitucionais, é um
princípio geral de direito, a diferença é que a norma
constitucional originária, por não se submeter a limitações
jurídicas, pode colher fatos a ela anteriores,( ...)”

Quando a Constituição pretende manter um direito adquirido segundo o


sistema constitucional revogado, procede à ressalva expressa. É o caso
do art. 177 da Constituição de 1967, que manteve a vitaliciedade dos
professores catedráticos e dos titulares de ofícios de justiça adquirida
antes de sua vigência, bem assim estabilidade de funcionários amparados
pela legislação anterior, conforme observa Silva (1998).

No mesmo sentido a doutrina de Dantas (1996), para quem o texto


constitucional resultante de um rompimento com a ordem anterior “não
se vincula a nenhum preceito jurídico-positivo que lhe seja anterior,
muito embora, também nesta hipótese, os valores sociais e o Direito
Natural funcionem como limitações ao exercício do Poder Constituinte.
Por isso, e em conseqüência, poderia a nova Constituição desconstituir
direitos adquiridos tal como aconteceu com a atual constituição de
1988”.

Neste sentido já se pronunciou o Min. Moreira Alves, do Supremo


Tribunal Federal, afirmando que “a Constituição se aplica de imediato,
alcançando, sem limitações, os efeitos futuros de fatos passados” (RE
117.870-RS, DJ, 5.5.89). Também na ementa da decisão proferida na
ADIn nº 189-RJ, rel. Min. Celso de Mello, lê-se que “a inoponibilidade
de situações jurídicas consolidadas a quanto prescrevem normas

228
constitucionais supervenientes deriva da supremacia, formal e material,
de que se revestem os preceitos de uma Constituição.”5

Não é assim, contudo, com a reforma constitucional efetivada pelo Poder


Constituinte derivado, através de emendas. Temos nesse caso uma
competência instituída e portanto limitada, condicionada por normas da
própria Constituição. A Constituição da República, no art. 60, § 4º,
enuncia limitações materiais à reforma constitucional, vedando a
deliberação de proposta de emenda tendente a abolir "a forma federativa
de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos
Poderes e os direitos e garantias individuais".

A digressão sobre o tema justifica-se para a análise das situações


constituídas quanto à partilha de águas do Rio Batateiras e de outras
fontes da Chapada do Araripe, na Região do Cariri, e as mudanças no
sistema jurídico advindas com a Constituição de 1988.

Como foi dito acima, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu que


praticamente todas as águas do domínio da União, dos Estados e por
extensão também Distrito Federal são públicas. Deixaram de existir,
portanto, as águas comuns, as municipais e as particulares, conforme era
previsto no Código de Águas.

A Constituição Federal de 1988 incluiu entre os bens dos Estados "as


águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito,
ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da
União". Não há dúvida, dessarte, que as águas das fontes do Cariri
integram o domínio do Estado do Ceará, de modo que sua utilização há
de submeter-se aos princípios, objetivos, diretrizes e instrumentos da
Política Nacional de Recursos Hídricos, fixada na Lei n.º 9.433, de
janeiro de 1997, e seu regulamento.

5
Decisões referidas por Barroso (1999, p.64).
229
Descabe alegar a existência de direito adquirido ou de ato jurídico
perfeito contra as transformações no regime dominial e de
gerenciamento dos recursos hídricos, surgidas com a Constituição
Federal de 1988 e disciplinadas na Lei nº 9.433/97.

13.7 A PREVISÃO DE TOMBAMENTO E DESAPROPRIAÇÃO NA LEI


ORGÂNICA DO MUNICÍPIO DO CRATO-CEARÁ

A Constituição Federal vigente conferiu especial proteção ao patrimônio


cultural brasileiro, considerando-o como constituído de bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira. Entre esses bens incluem-se
"as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver, as criações
científicas, artísticas e tecnológicas, as obras, objetos, documentos,
edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-
culturais, os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,
artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico" (art. 216,
incisos I a V).

A regra do art. 216 § 1º, da Constituição Federal determina ainda que “o


Poder Público promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro,
por meio de inventário, registro, vigilância, tombamento,
desapropriação e de outras formas de acautelamento e preservação.” A
regra do artigo 23, inciso III, atribui a competência comum à União, aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para proteger os
documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural,
os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos.
O dispositivo constitucional cuida de competência material, executiva,
relativamente a serviços compartilhados entre os diversos níveis da
federação.

230
A competência legislativa sobre a proteção ao patrimônio histórico,
cultural, artístico, turístico e paisagístico, bem como sobre a defesa do
solo e dos recursos naturais é concorrente à União, aos Estados e Distrito
Federal, nos termos do art. 24, VII, da Constituição Federal. À União
cabe estabelecer normas gerais, que não excluem a competência
suplementar dos Estados (§§ 2º e 3º). O Município pode também
suplementar a legislação federal e a estadual, com força no art. 30, II, da
Constituição da República.

Pode-se afirmar, portanto, que o Município, tal como as outras esferas do


poder, possui a competência comum executiva para a proteção do
patrimônio cultural e do meio ambiente, o que pode ser exercitado por
meio de tombamento que, ressalte-se, é apenas uma das formas possíveis
de proteção, conforme anota Silva (1996, p.770) Possui também o
Município a competência para suplementar a legislação federal e a
estadual, no que couber (art. 30, II).

O tombamento, na lição de Meirelles (1989, p.483), consiste na


“declaração feita pelo Poder Público do valor histórico, artístico,
paisagístico, turístico, cultural ou científico de coisas ou locais que, por
essa razão devem ser preservados, de acordo com a inscrição em livro
próprio”. Para Moreira Neto (1990, p.318), o tombamento pode ser
conceituado como “intervenção ordinatória e concreta do Estado na
propriedade privada, limitativa de exercício de direitos de utilização e
de disposição, gratuita, permanente e indelegável, destinada á
preservação, sob regime especial, dos bens de valor cultural, histórico,
arqueológico, artístico, turístico ou paisagístico.”

Considerando a competência comum fixada no artigo 23, e a imposição


ao Poder Público de proteção do patrimônio cultural brasileiro, conclui-
se que qualquer das entidades federativas pode exercitar o tombamento
dos bens em seu território, inclusive simultaneamente, conforme
sustentava Pontes de Miranda (apud Machado(1998)). Pode também
231
haver desapropriação, por uma entidade da federação, de bem já
tombado por outra, pois o ônus do tombamento acompanha o bem,
qualquer que seja o proprietário. 6

O tombamento não implica transferência do domínio do particular,


porém um regime jurídico de tutela pública 7, cuja caracterização enseja
controvérsia doutrinária. Diversas são as posições doutrinárias acerca da
caracterização do regime jurídico do tombamento, conforme sejam
maiores ou menores as restrições ao exercício do direito de propriedade,
de modo a compatibilizar o interesse do particular com o interesse
público. Assim é que alguns entendem o tombamento como limitação
administrativa ao direito de propriedade, outros como servidão
administrativa, e ainda como domínio eminente do Estado. Há também
correntes de pensamento que atribuem ao bem cultural tombado a
natureza de bem imaterial, vinculam-no ao princípio da função social da
propriedade ou caracterizam-no como bem de interesse público,
conforme noticia Machado (1998, p.743/745).

A abordagem que aqui se realiza sobre o tema presta-se a introduzir a


análise da validade e efetividade da norma do art. 206, inciso XIII, da
Lei Orgânica do Município do Crato, no Estado do Ceará, que prevê a
utilização do tombamento como instrumento de proteção dos recursos
hídricos da Chapada do Araripe. Com efeito, dispõe a referida norma da
Lei Orgânica do Município do Crato:

Art. 206 – O meio ambiente equilibrado e uma sadia


qualidade de vida são direitos inalienáveis do povo,

6
Neste sentido o acórdão do STF, no RE 90581/RJ, Rel. Min. Décio Miranda,
DJ 24.08.1979.
7
Sobre o tema conferir acórdãos do STJ: RESP 30519/RJ, Rel. Min. Torreão
Brás, DJ 20/06/1994; RESP 25371/RJ, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJ
24.05.1993.
232
impondo-se ao Município e à comunidade o dever de
preservá-lo e defendê-lo.

Parágrafo Único – Para assegurar a efetividade desses


direitos, cabe ao Poder Público:

.........................................

XIII – desenvolver ações de proteção aos recursos hídricos


do sopé da Chapada do Araripe, de modo especial das
fontes que jorram no Município, através de meios comuns
de tombamento e desapropriação.

O dispositivo encontra-se em aparente harmonia com a ordem


constitucional vigente, porquanto orientado a preservar o meio ambiente
como o faz também a Constituição Federal (art. 225) e a Constituição do
Estado do Ceará (art. X). Saliente-se a competência legislativa
suplementar do Município (arts. 320 e 325 da Constituição Estadual e
art. 30, II, da Constituição Federal).

Todavia, há um aspecto importante a considerar, que compromete a


aplicabilidade da aludida norma da Lei Orgânica do Município do Crato.
É que, na ordem constitucional vigente, não mais subsistem as águas
municipais ou particulares de que tratava o Código de Águas, cujas
disposições neste aspecto não foram recepcionadas pela Constituição
Federal de 1988. A Lei Fundamental vigente, como já explicitado acima,
repartiu o domínio sobre as águas entre a União e os Estados.

Cabe indagar, neste passo, se, mesmo pertencendo as águas das fontes da
Chapada do Araripe ao Estado, poderia o Município efetuar o
tombamento. Ainda que seja positiva a resposta, a verdade é que,
considerando-se a natureza do tombamento, que apenas impõe restrição
ao exercício normal dos poderes inerentes à propriedade, a utilização do

233
instrumento não seria o caminho mais adequado á proteção, diante de
outros instrumentos jurídicos criados para a proteção e gestão dos
recursos hídricos. A preservação do meio ambiente e de dos recursos
hídricos deve ser implementada pela criação de unidades de conservação,
no termos da legislação ambiental, e pelo gerenciamento de que trata a
nova Lei n° 9.433/97.8

O tombamento, dessarte, não é o instrumento jurídico mais adequado à


proteção dos recursos hídricos da Chapada do Araripe. Estes
caracterizam-se atualmente como bens do domínio do Estado, e sua
utilização deve submeter-se ao regime de outorga e cobrança instituído
pela Lei n.º 9.433, de 8 de janeiro de 1997. A aplicação dos instrumentos
contidos no referido estatuto legal pode propiciar a efetiva extinção da
apropriação privada das águas, assegurando o uso compatível com a
qualidade de bem de domínio público.

De outra face, a desapropriação dos recursos hídricos, prevista como


instrumento de proteção no art. 206, parágrafo único, inciso XIII, da Lei
Orgânica do Crato, é inaplicável, tendo em vista pertencerem aquelas
águas ao domínio do Estado. É cediço que os Municípios não podem
desapropriar bens do Estado e este não pode desapropriar bens da União.
Na desapropriação9, prevalece o princípio da hierarquia entre as unidades
federativas. Ademais, se as águas são atualmente bens de domínio
público, vale dizer, estão sob afetação de uso comum, não mais são
suscetíveis de desapropriação. Impende registrar que não se confunde a

8
Neste sentido o pensamento de Meirelles (1989, p.484), a respeito da
utilização do tombamento para preservação de florestas.
9
O STF ( RE 172.816, Rel. o Min. Paulo Brossard, DJ 13.05.94, RDA
195/197), considerou ilegítima a desapropriação promovida pelo Estado do Rio
de Janeiro sobre bens da Cia. Docas do Rio de Janeiro, sociedade de economia
mista federal que executa serviço reservado à União. O fundamento é a
gradação de poder entre os sujeitos ativos da desapropriação, vale dizer a
estruturação hierárquica do Estado Federal.
234
propriedade do solo com a propriedade das águas que já integram o
domínio público por força da Constituição Federal.

13. 8. CONCLUSÕES

A água é hoje um bem integrante do patrimônio ambiental, e por isso um


bem de uso comum do todos ( CF art. 225). O domínio sobre as águas foi
repartido entre a União e Estados, não mais existindo as categorias de
águas particulares e municipais. O novo regime jurídico, instituído com a
Constituição e disciplinado pela Lei nº 9.433/97, estabelece que todas as
águas são públicas, extingue a apropriação privada exclusiva, ficando
revogadas as disposições do Código de Águas sobre águas particulares

As alegações de direito adquirido ou de ato jurídico perfeito não são


oponíveis às transformações no regime dominial e de gerenciamento dos
recursos hídricos, surgidas com a Constituição Federal de 1988 e
disciplinadas na Lei nº 9.433/97. A Constituição se aplica de imediato,
alcançando, sem limitações, os efeitos futuros de fatos passados (RE
117.870-RS, DJ, 5.5.89). As normas produzidas pelo Poder Constituinte
originário não sofrem limitações jurídicas, podendo colher situações
consolidadas segundo a legislação revogada.

A Constituição Federal de 1988 incluiu entre os bens dos Estados as


águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito,
ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da
União. As águas das fontes do Cariri integram o domínio do Estado do
Ceará, de modo que a sua utilização há de submeter-se aos princípios,
objetivos, diretrizes e instrumentos da Política Nacional de Recursos
Hídricos, fixada na Lei n.º 9.433, de janeiro de 1997, e seu regulamento.

Qualquer das entidades federativas pode exercitar tombamento dos bens


em seu território (CF, art. 24, VII). Contudo, o tombamento não seria o
235
caminho mais adequado à proteção das fontes, diante de outros
instrumentos jurídicos de gerenciamento dos recursos hídricos instituídos
pela Lei nº 9.433/97, que podem ensejar a extinção da apropriação
privada das águas, assegurando o uso compatível com a qualidade de
bem de domínio público. O tombamento não implica transferência do
domínio, mas instituição de um regime que importa limitações ao direito
de propriedade.

A desapropriação dos recursos hídricos, prevista como instrumento de


proteção no art. 206, parágrafo único, inciso XIII, da Lei Orgânica do
Crato, é inaplicável, tendo em vista pertencerem aquelas águas ao
domínio do Estado. É cediço que os Municípios não podem desapropriar
bens do Estado e este não pode desapropriar bens da União. Na
desapropriação, prevalece o princípio da hierarquia entre as unidades
federativas. Ademais, não se confundem a propriedade do solo com a
propriedade dos recursos hídricos

A Lei nº 9.433/97, art. 1º, impõe o uso prioritário dos recursos hídricos
para consumo humano e dessedentação de animais, em situações de
escassez, autorizando inclusive a suspensão da outorga (art. 15, V). No
consumo humano somente se compreende as necessidades primárias de
cada pessoa, não incluindo o uso para o lazer, como piscinas, tampouco
para a jardinagem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Darcy de Oliveira Bessone. Direitos reais. 2.ed. Rio de


Janeiro: Saraiva, 1996.
ANTUNES, Paulo Bessa. Direito Ambiental. 2.ed. Rio de Janeiro:
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236
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134, out/dez, 1996.
MACEDO, Dimas. Os recursos hídricos e a Constituição. Revista da
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SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo:
Malheiros, 1999.

237
Conflitos em

14 Gestão de Águas

Nilson Campos

Na década de 1980 e anteriores, a temática do conflito das águas tinha


enfoque central na análise de objetivos de usos que competiam entre si.
O exemplo clássico da literatura reportava-se ao conflito na operação de
reservatórios entre os objetivos proteção contra as cheias e
abastecimento de água.

Para a proteção contra as cheias, os reservatórios devem ser operados


liberando as águas de cheias rapidamente, mantendo-os, sempre que
possível, à espera de novos eventos de cheias. Para o abastecimento de
águas, libera-se somente as águas solicitadas para consumo, mantendo os
reservatórios o mais cheio possível, preparando-se para futuras secas
hidrológicas. O conflito é resolvido alocando-se parte da capacidade do
reservatório para abastecimento de água e parte para proteção contra as
cheias.

Nos anos atuais, quando as águas passaram a ser tratadas com maior
abrangência, no âmbito da gestão de recursos hídricos, ou na gestão de
bacias hidrográficas, o tema conflito também ganhou maior abrangência.
Os estudos dos conflitos em gestão de águas, ou de bacias hidrográficas,
passaram a ser analisados em suas consequências sobre a sociedade e
sobre os indivíduos, em vez de restringir-se às consequências nas
disponibilidades hídricas.

238
No presente capítulo, a questão dos conflitos é apresentada em sua visão
mais abrangente e multidisciplinar. Inicialmente, apresentam-se
conceitos e definições relacionados ao tema. Em seguida, apresenta-se
uma análise de diversas causas que dão origem a conflitos. Apresentam-
se também exemplos de conflitos internacionais, nacionais e locais
registrados na História.

14.1 DEFININDO CONFLITO

Entre as várias acepções da palavra conflito estão: “Embate dos que


lutam. Discussão acompanhada de injúrias e ameaças; Colisão, choque. ”
(Aurélio, Dicionário Eletrônico). No contexto dos estudos ambientais,
onde se insere a água Carvalho e Scotto (1995) definem como conflito
ambiental, a luta entre atores sociais que disputam diferentes formas de
acesso e/ou gestão dos recursos ambientais.

Outra definição, voltada para o entendimento dos conflitos em gestão de


bacias hidrográficas , é devida ao CTIC (2003)

14.2 OS INGREDIENTES DOS CONFLITOS

Os ingredientes dos conflitos entre pessoas decorrem dos seguintes


elementos: necessidades, percepções, poder, valores e sentimentos e
emoções,

14.2.1.Necessidades

Em seu sentido mais geral, a palavra necessidade é definida como coisas


essenciais ao bem-estar de indivíduos ou grupo de indivíduos. Os
conflitos decorrem quando indivíduos, ou grupos de indivíduos, ignoram
as necessidades de outros indivíduos, ou grupo de indivíduos. Deve-se,
239
contudo, fazer distinção entre necessidade e ambição. A necessidade
relaciona-se ao desejo de algo essencial, enquanto que a ambição refere-
se ao “desejo veemente de alcançar aquilo que valoriza os bens materiais
ou o amor-próprio (poder, glória, riqueza, posição social, etc. ) (Aurélio-
Dicionário Eletrônico).

Como não há uma linha rígida separando necessidade de ambição, visto


que o próprio conceito de bem-estar engloba alguma subjetividade, para
que se faça uma distinção entre ambas, deve-se recorrer ao bom senso, e
ao sentido filosófico da palavra.

14.2.2 Percepções

A palavra percepção, derivada do latim, percipere, significa apreender


pelos sentidos. Um mesmo problema pode ser visto de maneira diferente
em termos de severidade, causas e consequências por distintos atores
sociais. As percepções imprecisas, que podem iniciar ou acirrar
conflitos, decorrem de visões estritamente pessoais, que não consideram
os interesses e sentimentos de outros.

14.2.3 Poder

A maneira como as pessoas exercem o poder tem grande influência no


número e no tipo de conflitos que ocorrem em uma dada sociedade. O
modo de exercício do poder também influencia a negociação de
conflitos. Conflitos iniciam quando uma pessoa, ou grupo de pessoas,
exerce algum tipo de pressão para que outros mudem suas ações, com
objetivos de usufruir ganhos, ou tirar vantagens indevidas.

As sociedades e atores sociais são fortemente influenciados pelo modo


de agir dos detentores do poder político de uma nação. Em períodos nos

240
quais os governantes de um país valorizam mais a hegemonia do que a
harmonia, há tendência de aumentar os conflitos reais ou potenciais.

14.2.4 Valores

No léxico, o termo valores denota as normas, as crenças, os princípios,


ou os padrões sociais aceitos ou mantidos por indivíduos, classes,
sociedades etc. Muitas vezes ocorre que uma determinada coisa seja
muito importante para uma pessoa e sem qualquer importância para
outra. Sérios conflitos podem acontecer quando uma das partes se recusa
a aceitar os valores da outra parte.

14.2.5 Sentimentos e emoções

Muitas pessoas deixam seus sentimentos e emoções preponderarem na


maneira como lidam com os problemas e conflitos do dia a dia. Alguns
conflitos decorrem do fato de uns ignorarem os sentimentos de outros.
Os conflitos tendem a se agravarem quando são tratados com grande
emoção, prejudicando a racionalidade necessária ao processo de
mediação.

Por vezes, conflitos em gestão de águas, como a construção de barragens


e transposição de vazões entre bacias hidrográficas, tornam-se bandeiras
políticas. Nessas situações, são feitos apelos aos sentimentos das pessoas
com objetivo de conseguir e mobilizar partidários para as ideias. Nesses
casos, as pessoas são rotuladas em “prós” e “contras”. As posições
sensatas, avaliando aspectos positivos e negativos, são rotuladas de “em
cima do muro. ” Conflitos quem evoluem para o estágio maniqueísta, o
bem contra o mal, encontram sérias dificuldades de serem negociados e
chegarem a uma solução de consenso.

241
14.3 ESTRATÉGIAS PARA NEGOCIAÇÃO DE CONFLITOS

Entre os princípios do atual modelo de gestão de águas, estão a


participação dos usuários nas decisões e a bacia hidrográfica como
unidade de gestão. Os órgãos gestores e os comitês de bacias estão em
busca de procedimentos de mediação de conflitos no nível mais baixo da
escala hierárquica.

A maneira como a água ocorre na natureza é extremamente complexa. A


ciência que estuda o aparecimento e a distribuição da água na Terra é a
Hidrologia. Por outro lado, os conflitos decorrem do comportamento das
pessoas. Assim, as estratégias de negociação de conflitos em águias
requerem conhecimentos multidisciplinares que englobam as ciências
factuais, como a Hidrologia, e as ciências humanas, como a Sociologia.

A negociação de conflitos poder ser dividida em quatro etapas: a análise


do conflito, a escolha de uma estratégia de gerenciamento do conflito, a
pré-negociação; a negociação propriamente dita; e a pós-negociação
(CTIC, 2003).

14.3.1 A análise do conflito

A primeira etapa para a solução de um problema, ou conflito, é procurar


conhecê-lo em profundidade. As origens e essências dos conflitos podem
ser podem ser conhecidas a partir de uma linha sistemática de perguntas
e respostas (Tabela 14.1). As respostas podem vir da própria experiência
do negociador do conflito, dos atores envolvidos no conflito e das
coberturas da mídia local. Entrevistas com os grupos envolvidos são de
fundamental importância.

242
Tabela 14.1 Análise de conflitos em bacias hidrográficas (CTIC
2003)

Análise dos grupos envolvidos no conflito

Quais grupos estão envolvidos no conflito? A quem esses grupos


representam? Como são organizados? Qual a base de poder? Os grupos
têm condição de trabalhar em conjunto? Quais as relações históricas
entre os grupos?

Análise da substância do conflito

Como surgiu o conflito? Quais os pontos, principais e secundários, de


divergência? Podem as abordagens negativas serem reformuladas para
positivas? São negociáveis os pontos de divergência? Foram tomadas
algumas posições e, em caso positivo, são elas de interesse comum?
Que informações estão disponíveis, e que outras informações são
necessárias?

14.3.2 Escolha da estratégia de gerenciamento do conflito

Após adquirir bom conhecimento do conflito, pode-se partir para a


definição da estratégia de gerenciamento do mesmo. Em muitos casos, é
necessário contar com um mediador externo, neutro ao problema, para
ajudar às partes a caminharem para o consenso. As possíveis estratégias
de gerenciamento são: colaboração, compromisso, competição,
acomodação, e, fuga (CTIC, 2003).

Colaboração: Essa estratégia deve ser a escolhida quando as perdas,


para ambos os grupos, com a continuação ou acirramento, são
significativamente elevadas. O resultado da negociação é “ganha/ganha”,
pois ambas as partes têm muito a ganhar. Essa estratégia ajuda a
243
construir o espírito de colaboração e de comedimento das partes. Como
ponto desfavorável tem-se que o tempo necessário para construir a
solução, que pode ser relativamente longo. Muitos conflitos
internacionais usaram essa estratégia e resultaram em assinatura de um
tratado.

Compromisso: Essa estratégia deve ser escolhida quando as


preocupações de um dos grupos são grandes, enquanto que as do outro
grupo são moderadas. O resultado na negociação é “ganha alguma coisa/
perde alguma coisa. A estratégia deve ser utilizada para achar soluções
provisórias que evitem fortes disputas, ou quando há premência de
tempo para que se chegue a alguma solução.

Competição: Essa estratégia deve ser selecionada quando as


preocupações de um dos grupos são relativamente maiores do que as do
outro grupo. O resultado na negociação é “ganha/ perde. A estratégia
engloba, principalmente, tentativas de barganhas. O contraponto dessa
estratégia está nos riscos de os perdedores tentarem retaliar os
vencedores.

Acomodação: Essa estratégia deve ser indicada quando um grupo tem


pouco a perder, enquanto que o outro tem grandes perdas com a
continuação do conflito. O resultado na negociação é “perde/ganha”. A
perda pode ser considerada como um voto de boa vontade do grupo
perdedor, em prol da harmonia do conjunto. Essa estratégia tem
condições de contorno semelhante ao compromisso. A diferença está no
grupo que toma a iniciativa das ações. No “compromisso” a iniciativa é
do grupo de maiores preocupações, enquanto que na acomodação, a
iniciativa é do grupo com menores preocupações.

Fuga: Essa estratégia é selecionada quando as preocupações de ambos


os grupos são de menores importância. O resultado na negociação é
“perde/perde”. Essa é a estratégia preferida quando as questões
244
envolvidas são triviais, ou quando há outras questões mais importantes
requerendo uma solução mais rápida. A estratégia também é indicada
quando há riscos de confrontos com grandes prejuízos para ambos os
grupos.

14.3.3 A pré-negociação

A pré negociação pode ser sistematizada nas seguintes fases:

Início — Uma parte vislumbra a possibilidade de negociação e inicia o


processo. Se nem uma das partes se dispõe a tomar a iniciativa, é
indispensável a participação de um moderador externo.

Avaliação — Nessa fase, deve-se avaliar se condições do momento


estão apropriadas para que haja negociação. Algumas vezes, uma
negociação prematura, antes que as partes envolvidas no conflito estejam
convenientemente preparadas, pode diminuir as chances de sucesso da
negociação. Assim, deve-se identificar e convidar os atores sociais
chaves envolvidos no conflito. Deve-se avaliar se ambos os lados estão
dispostos a uma colaboração em busca do consenso. As partes devem
delimitar com clareza e racionalidade o que pode e o que não pode ser
negociado. É também necessário também que as partes concordem sobre
a metodologia a ser empregada na formulação de perguntas e obtenção
de respostas.

Definição da agenda e das regras básicas — Os grupos devem entrar


em acordo quanto às regras básicas para negociação, comunicação e
tomadas de decisões. Devem também concordar nos objetivos e no
processo de negociação. Deve ser desenvolvida uma agenda cobrindo
todos os pontos de negociação.

Organização — Devem ser organizadas assembleias logísticas


acordadas entre os grupos litigantes quanto às datas e locais. Na seleção
245
dos locais deve-se dar preferência a prédios de órgãos públicos. O local
onde se reúne o comitê de bacia é bastante conveniente. O público
envolvido no conflito deve ser convocado e estimulado a comparecer.
Deve ser estabelecida uma pauta para cada reunião esclarecendo aos
participantes o que se pretende debater e aonde se deseja chegar.

Juntada das informações relevantes — Os grupos devem concordar


em quais informações são relevantes para a mediação do conflito. A
discussão de pontos não relevantes conduz à perda de tempo e retarda a
tomada de decisão. A formulação de um texto síntese, descrevendo, em
linguagem neutra, os antecedentes e pontos centrais do conflito ajuda a
objetivar as assembleias.

14.3.4 A negociação

A negociação pode ser considerada como o coração do processo de


resolução de conflitos. O processo de negociação pode ser dividido nas
seguintes fases: avaliação dos interesses, colocação das opções,
avaliação das opções, formulação do acordo e a assunção de
compromissos. Essas fases são descritas a seguir.

Colocação dos interesses — Durante o processo de negociação, as


partes devem afirmar com clareza os seus interesses e evitar conduzir o
debate para posições previamente assumidas. Os interesses devem incluir
as razões, as necessidades, as preocupações e motivações que o
justificam. A busca de atender, equitativamente, os interesses de ambas
as partes deve ser objetivo comum. Normalmente, é necessário que cada
parte ceda alguma coisa na busca do ponto de equilíbrio.

Colocação das opções — Na fase de negociação de conflito deve-se ser


criativo na formulação de alternativas que atendem, ou conciliem, os
interesses das partes envolvidas. As ideias apresentadas como

246
alternativas não devem ser imediatamente julgadas. As opções sugeridas
devem ser listadas para discussão em um outro momento.

Avaliação das opções — Somente após os participantes terem esgotado


a apresentação de opções, deve iniciar o debate de avaliação das
mesmas. Deve-se determinar que ideias contribuem para o atendimento
dos interesses das partes. Durante o debate é possível que surja uma nova
solução formada a partir das opções propostas anteriormente.

Formulação do acordo escrito — Os pontos de acordo e discórdia


devem ser documentados por escrito para que haja um entendimento
comum do problema e de sua solução. Essa ação ajuda a assegurar que
os pontos do acordo possam ser lembrados e comunicados com clareza.

Compromissos —A confiança mútua é ponto essencial para o sucesso


do acordo assinado. Assim, cada uma das partes deve confiar que a outra
parte cumprirá fielmente o acordado. Devem ser discutidos e acordados
os métodos que assegurem que as partes entendem e honrarão seus
compromissos.

14.3.5. Etapa 5 —A pós-negociação

Após a conclusão e estabelecimento do acordo, os grupos devem ratificar


e implementar as decisões tomadas.

Ratificação — As partes envolvidas devem buscar suporte do acordo


nas instituições que têm papel importante a desempenhar na
implementação do acordo. Nos conflitos em água, em sua instância mais
baixa, os comitês de bacias devem endossar os acordos. Caso o conflito
haja sido dirimido em uma instância superior, como o Conselho Estadual
de Recursos Hídricos, este deve participar da ratificação do acordo.

Implementação — O trabalho de dirimir o conflito não se encerra com a


assinatura e ratificação do acordo. Após o acordo, os atores sociais
247
passam de litigantes a parceiros, sendo importante que continuem
trocando informações e atitudes de colaboração. Os parceiros precisam,
durante a implementação, de um plano de monitoramento e
documentação dos sucessos obtidos. A imprevisibilidade hidrológica,
sempre presente nos conflitos em usos de água, pode tornar necessária a
renegociação do acordo.

14.4 CLASSES DE CONFLITOS

Muitos pesquisadores têm compilado dados sobre os conflitos históricos


no uso de águas ao longo do mundo. Nessa seção apresenta-se exemplos
de conflitos organizados segundo os limites políticos ou na maneira
como a água é usada

Quanto aos limites políticos

Internacionais, quando envolvem mais de uma nação.

Nacionais, quando dentro de um mesmo País.

Quanto à inserção da água:

1) A obra hídrica usada como arma: são conflitos que, por razões
diferentes do domínio das águas, evoluíram para confronto armado e
uma das partes ou ambas, destroem, ou danificam, obras hídricas com
objetivos militares.

2) Pelo domínio das águas: são conflitos em que os atores disputam o


domínio das águas.

3) A água como pretexto para ação militar: Podem acontecer quando


uma das partes resolve investir militarmente contra outra utilizando-se
corno), pretexto a escassez de água. Embora, não haja ainda registro
248
histórico de conflitos assim classificados, julgou-se importante inserir
essa classe em decorrência das afirmações de que a Terceira Guerra
Mundial será por água.

14.4 CONFLITOS INTERNACIONAIS

O Pacific Institute compilou 343 histórias de conflito da água, no


período de 3000AC (O Instituto inseriu a grande cheia de Noé), a 2014.
Nos conflitos listados há duas classes bem distintas: 1) os conflitos pelo
controle do uso das águas ou decorrentes da poluição das águas pelas
nações situadas a montante dos cursos de água; 2) conflitos que usam a
água como instrumento de guerra (Pacific Institute, 2015)

14.4.1 Conflitos que usam obras hídricas como arma

A água, como arma de guerra, pode ser usada de várias maneiras,


ocasionando artificialmente fenômenos naturais indesejáveis. Assim, as
táticas de guerra podem provocar situações como: 1) ocorrência de
grandes cheias — arrombamento de diques e barragens; 2) ocorrência de
secas — desviando-se os cursos de água impedindo-os de chegarem aos
inimigos; 3) poluição dos corpos de água — ação visa tornar a água
imprestável para o consumo humano.

Conflito entre Pisa e Florença — Trata-se do mais antigo conflito da


lista de Gleick (op.cit.). O conflito ocorreu no ano de 1503, durante a
guerra entre Pisa e Florença, quando Leonardo da Vinci e Maquiavel
planejavam derivar as águas do rio Arno afastando-as de Pisa e deixando
os inimigos sem fonte de água.

Segunda Grande Guerra — Em 1943, a Força Aérea Britânica


bombardeou e arrombou barragens nos rios Mohne, Sorpe e Eder. A
ruptura da barragem Mohne na Alemanha resultou na morte de mais de

249
1200 pessoas, e arrombou todas as barragens de jusante em um trecho de
50 km.

Guerra ente China e Japão — Em 1938 Chiang Kai-shek ordenou a


destruição dos diques de controle de cheias da seção de Huayuankou do
rio Amarelo (Yellow River) para inundar as áreas ameaçadas pelo
Exército Japonês. A cheia provocada destruiu parte do Exército Japonês
e seus equipamentos pesados afundaram em uma espessa camada de
lama. As estimativas para o número de chineses mortos no evento
situam-se entre dezenas de milhares e um milhão.

14.4.2 Exemplos de conflitos pelo domínio das águas

Os conflitos pelo domínio das águas envolvem nações que compartilham


os mesmos cursos de água, ou nações colonizadoras em defesa das águas
de suas colônias. Em muitos desses conflitos resultam em manobras
militares ou mesmo em confronto armados. A seguir são relatados alguns
conflitos importantes dessa classe, dois dos quais o Brasil está
envolvido.

Bangladesh e Índia pelas águas do Rio Ganges — Esse conflito


iniciou em 1947 e ainda hoje persiste em forma latente. Em 1962, as
tensões cresceram com a construção da barragem de Farakka, pela Índia.
Ocorreram alguns acordos de curta duração (1977-82; 1982-84 e 1985-
88) que acomodaram a situação. Em 1996 foi assinado um acordo de 30
anos de duração.

Brasil e Paraguai pelo controle da cachoeira Guaíras — Em 1962


manobras unilaterais militares do Exército Brasileiro interromperam as
negociações sobre o controle do local da cachoeira. As forças militares
brasileiras ocuparam a região e assumiram o controle sobre as
cachoeiras. As forças armadas retiraram-se em 1967, em seguida a um

250
acordo de uma comissão Brasil — Paraguai para o desenvolvimento da
região.

Brasil, Argentina e Paraguai pelas águas do rio Paraná— O conflito


inicia na década de 1970, quando Brasil e Paraguai anunciaram o
propósito de construir a barragem de Itaipu. A Argentina teme pelas
repercussões ambientais a jusante da barragem, e pela possibilidade de
usar a barragem como arma. Inicialmente, a Argentina demanda ser
consultada sobre o planejamento da barragem, o que não foi aceito pelo
Brasil. Um acordo entre os três países é assinado em 1979 para a
construção da barragem de Itaipu pelo Brasil e a de Yacycreta pela
Argentina.

Iraque e Síria durante uma seca hidrológica do rio Eufrates—


Durante o ano de 1975, quando a vazão do rio Eufrates esteve muito
baixa, a Síria reteve a maior parte das águas para encher um reservatório
em seu território. O Iraque considerou intolerável receber uma vazão tão
reduzida. A Síria argumentou que a vazão do rio estava menos da metade
da vazão normal. A Síria fechou seu espaço aéreo a voos de aviões
iraquianos. Ambos os países movimentaram tropas para suas respectivas
fronteiras. A Liga Árabe criou um comitê técnico para avaliar o conflito
e propor soluções. A Arábia Saudita mediou o conflito com sucesso.

Namíbia e Botsuana pelas águas do rio Okavango — A Namíbia está


encravada em uma região de rios efêmeros, que correm com muita
violência após eventos de chuvas torrenciais. A capital do País,
Windhoek depende de três represas que acumulam o suficiente para
alguns anos. Porém, em 1996/ 97 uma intensa seca deixou a Windhoek à
beira de um colapso. A Prefeitura anunciava diariamente, em letreiros
luminosos no centro da cidade, quantos dias restavam para o
esvaziamento total dos reservatórios. O rio Okavango nasce em Angola,
forma fronteira com a Namíbia e corre para Botsuana, onde banha a
região denominada Joia do Kalahari. Para os ecologistas Botsuanos, o rio
251
Okavango é considerado sagrado. Durante a seca acima referida, a
Namíbia ressuscitou um antigo projeto de desviar um por cento da vazão
média do Okavango para Windhoek. O projeto era considerado
inaceitável pelos botsuanos. Quando faltavam 30 dias para o colapso no
abastecimento de água da Capital, a Namíbia iniciou os preparativos para
fazer a derivação das águas do Okavango, gerando forte tensões entre os
dois países. A ocorrência de eventos de chuvas intensas resolveu o
problema de Windhoek.

14.5 CONFLITOS NACIONAIS

São conflitos que ocorrem dentro de um mesmo País. Embora, em sua


maioria, estejam relacionados a questões ligadas a transferência de água
entre fronteiras políticas, há registros de uso das águas e obras
hidráulicas como arma. Mesmo sendo assim, a história registra episódios
onde as obras hidráulicas foram usadas como arma (Guerra da Secessão
nos Estados Unidos). No Brasil, o conflito em que os debates foram mais
acirrados foi o da Transposição do São Francisco no período 2000- atual,
no qual embora não tenha havido uso de forças militares, registraram-se
manifestações públicas com ações que impediram a realização de
audiências públicas agendadas pelo Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente (IBAMA).

14.5.1. Conflitos nacionais que usaram a água como arma

No Brasil não há registros conhecidos que obras hídricas hajam sido


usadas como arma. Contudo, durante os governos militares havia uma
grande preocupação com a segurança nacional. Houve um início de
levantamento de barragens brasileiras com vistas a criar um plano de
defesa de possíveis ataques de subversivos (terroristas na terminologia
atual).

252
Grant arrombaram os diques para provocar cheias direcionadas aos
exércitos confederados que se encontravam na área.

Governo do Iraque, Xiitas e Mulçumanos — Para a oposição a seu


governo, por parte dos Xiitas e Mulçumanos, Saddam Hussein ordenou o
envenenamento das águas na região em que viviam os mulçumanos
opositores de seu Governo (Ver Gleick 1993).

14.5.2 Conflitos nacionais pelo domínio das águas

Arizona e Califórnia — Em 1935, o Governo do Arizona movimenta a


Guarda Nacional e outras unidades militares para a fronteira com a
Califórnia, para protestar contra a construção da barragem Parker e
derivações de água do rio Colorado. A disputa foi solucionada na Corte
Suprema (Ver Reisner 1986 e 1993).

Estados do Nordeste brasileiro pelas águas do rio São Francisco —


Em 2000, o Ministério da Integração Nacional, incluiu, em sua
programação, mais uma vez, a transposição de águas do rio São
Francisco para o Nordeste setentrional. A transposição havia sido
promessa de campanha do então Presidente de República. O projeto
previa, em uma primeira fase desviar cerca de 70 m3/s ( xo,/o da 2000
m3/s regularizados pela barragem de Sobradinho). Nos estados de Bahia,
Alagoas, Sergipe formaram-se fortes movimentos contra o projeto
liderados por parlamentares e técnicos. Nos estados do Ceará, Rio
Grande do Norte e Paraíba havia movimentos favoráveis liderados por
parlamentares.

O Instituto Brasileiro (IBAMA) organizou uma série de audiências


públicas para discutir o Projeto. Foram realizadas sessões públicas no
Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba (Estados beneficiados pela obra
projetada). A audiência pública prevista para Aracaju foi suspensa
devido às fortes manifestações populares que ocorreram. O Estado de
253
Sergipe não conseguiu dar garantia para a realização da audiência. O
projeto foi paralisado. Buscou-se uma outra alternativa de transposição
que também não evoluiu.

14.6 CONLUSOES

A abordagem sobre conflitos, nas últimas décadas, tem se concentrado


bem mais nos seus aspectos sociológicos e em seus impactos sobre as
sociedades e obre as nações. A crença, ou presunção, de uma guerra
mundial pelas águas tem sido um importante motivador para a ênfase a
esse enfoque.

A história das águas e de gestão de seus conflitos mostram a água mais


como um elemento que, embora objeto de conflitos e disputas, conduz
mais a negociados acordos pacifistas do que a soluções belicosas. Da
mesma maneira que estruturas hidráulicas são usadas como armas de
guerra, nada impede que um Chefe de Estado, com um forte exército a
sua disposição, venha a usar a água como pretexto para iniciar uma
Guerra.

A única verdadeira guerra resultante de disputa por água aconteceu há


cerca de 4.500 anos quando duas cidades mesopotâmicas disputaram o
domínio dos rios Tigres e o Eufrates. Todavia, há vários registros de que
conflitos sobre o domínio e uso das águas que se acirraram a ponto de os
países realizarem manobras militares. Isso aconteceu, por exemplo, no
projeto de Itaipu, quando o Brasil chegou a efetuar manobras militares
na fronteira com a Argentina.

Assim, a Amazônia, com o rio mais caudaloso do mundo, se ameaçada


de internacionalização, não o será em razão de suas águas. Seria mais
fácil e económico para um País distante dessalinizar água do aduzi-las
desde a bacia amazónica.

254
Em conclusão, o estudo dos conflitos das águas em seus aspectos
multidisciplinares, além do lado didático, pode ser visto como a busca de
compreensão histórica do fenômeno. Assim de tudo, essa abordagem
pode permitir aos cidadãos ver a águas e a gestão de bacias hidrográficas
como um processo de aprendizado da cooperação entre pessoas. Enfim,
como repartir um bem escasso sem recorrer a meios belicosos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARVALHO, L.; SCOTTO, G. Conflitos Sócio-Ambientais no Brasil .


Rio de Janeiro: Green Ibase, 1995. vol. 1.
CTIC. (26 de abril de 2003). Conservation Technology Information Center .
Fonte: Site da CTIC:
http://www.ctic.purdue.edu/media/files/Managing%20Conflict.pdf
CURTIN, FIONA. Transboundary Impacts of Dams. Nota de Discussão
preparada para a Comissão Mundial de Barragens. Green Cross
International , Geneva, 2000.
HONAN, W.H. Scholar sees Leonardo´s influence on Machiavelli. The
New York Times (8 de dezembro) 1996 p.8.
Pacific Institute. (03 de novembro de 2015). http://worldwater.org/.
Fonte: Site do Pacific Institute:
http://www2.worldwater.org/conflict/list/

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