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SIGNIFICADOS E INTERPRETAÇÕES:

Apropriações do espaço e o habitar no conjunto Ismael Silva – Zé


Keti

TROTTA, Carolina de Carvalho Gambôa. (1); MACHADO-MARTINS, Maíra. (2)

1. Pontifica Universidade Católica do Rio de Janeiro. Programa de pós-Graduação em


Arquitetura
Rua Marquês de São Vicente, 225, Gávea - Rio de Janeiro, RJ - Brasil
CEP: 22451-900 - Cx. Postal: 38097
carolinatrotta@hotmail.com
2. Pontifica Universidade Católica do Rio de Janeiro. Programa de pós-Graduação em
Arquitetura
Rua Marquês de São Vicente, 225, Gávea - Rio de Janeiro, RJ - Brasil
CEP: 22451-900 - Cx. Postal: 38097
maira_martins@puc-rio.br
RESUMO:

O propósito deste artigo é delinear os significados e interpretações dos espaços, com maior
enfoque naqueles destinados ao uso comum do conjunto na visão dos moradores do Conjunto Ismael
Silva – Zé Keti do Programa Minha Casa Minha Vida construído na Rua Frei Caneca, no bairro
Estácio, zona central do Rio de Janeiro, inaugurado em 2014. Neste conjunto, tal como em outros
empreendimentos do PMCMV, vivem moradores provenientes de diversas partes da cidade,
contemplados por terem sido removidos de suas antigas moradias ou porque se inscreveram no
Programa. Embora este conjunto esteja inserido em um bairro no centro da cidade, foram
identificados aspectos semelhantes a conjuntos construídos em áreas periféricas, que não contam
com essa mesma infraestrutura urbana, tais como a conversão de parte de unidades habitacionais
em local de trabalho (comércio e prestação de serviços), e a sensação de segregação por parte de
alguns moradores. Tomando o conjunto Ismael Silva – zé Keti como estudo de caso, pretendo
evidenciar conceitos teóricos como a apropriação do espaço, o lugar e o habitar articulando-os com a
pesquisa de campo realizada no conjunto, a partir dos relatos dos moradores e da observação de
como os espaços do conjunto são de fato apropriados.

Palavras-Chave: Apropriação do espaço, Habitar, Programa Minha Casa Minha Vida.


Introdução

O Programa Minha Casa Minha Vida surge como uma resposta em larga escala para
a questão do déficit habitacional, tema recorrente nas políticas públicas do país. Apesar de
contar com um volume de investimento nunca antes concedido para tais fins, muitos
pesquisadores (Andrade, 2013; Leitão, 2007; Benetti, 2012) consideram que os resultados
urbanísticos e arquitetônicos desta proposta representam, na verdade um retrocesso em
relação a outras políticas habitacionais, como as dos IAPs (Institutos de Aposentadoria e
Pensão) e alguns exemplos de conjuntos construídos, como o do Cafunda e o
Pedregulho.Tais exemplares, anteriores ao PMCMV,buscavam a implantação próxima aos
locais de trabalho, bem como a qualidade espacial e construtiva.Por outro lado, não foram
capazes de alcançar os números (relativos a unidades habitacionais) que o Minha Casa
Minha Vida alcança hoje. (cf. BENETTI, 2012).

Apesar dos impactos negativos, que vão desde aspectos urbanísticos, pela
implantação em áreas periféricas e sem infraestrutura, à qualidade arquitetônica dos
edifícios e apartamentosfrequentemente comentados por estes autores, entendo que por se
tratar de uma espécie de tábula rasa, uma construção feita do zero que ignora os aspectos
físicos, simbólicos e históricos do seu entorno, com fraca regulação por parte do governo (cf.
ANDRADE e LEITÃO, 2007) e com relações sociais ainda por se consolidarem, as
apropriações do espaço ocorrem de maneira mais livre, experimental e sem tantas amarras.

Além disso, os próprios moradores trazem consigo um modo próprio de habitar, uma
relação com o espaço público e com a casa que se mescla, reage e se transforma tanto com
o ideal de moradia que surge do fato de estarem se mudando para um condomínio quanto
com os modos de morar dos outros. A casa, para as camadas populares, não é
simplesmente abrigo, mas a “possibilidade de reprodução e inserção social” (BENETTI,
2012, p.87). A moradia é o lugar que pode expandir, no caso do crescimento da família, e
que tem papel econômico, no sentido de abrigar atividades comerciais e de serviços, bem
como pela possibilidade de se expandir, criando cômodos para aluguel. O uso do espaço
público, da rua, como área de lazer e de convivência entre os vizinhos é um exemplo do que
se mantém, bem como o uso da habitação como forma de complementação de renda.
O conjunto Ismael Silva – Zé Keti, inaugurado em 2014, foi construído no lugar do
Complexo Penitenciário Frei Caneca, no bairro Estácio, zona central da cidade do Rio de
Janeiro, conta com 998 unidades habitacionais com apartamentos de 47m². Este conjunto,
que mantém ainda parte do muro e o grande portão do antigo presídio, é formado por dois
condomínios, separados entre si por uma clínica da família e uma praça central, um espaço
gramado com caminhos de concreto por onde por onde todos os moradores entram ou
saem de seus respectivos condomínios. Nos condomínios vivem famílias que perderam
suas casas nas chuvas de 2010 nos morros dos Prazeres, na Rocinha, no Turano e no São
Carlos, bem como os índios da Aldeia Maracanã (ocupação do antigo museu do índio, no
Maracanã) e famílias que ocupavam ilegalmente edifícios públicos abandonados
(OLIVEIRA, 2014).

Embora este conjunto esteja inserido em um bairro na zona central da cidade, foram
identificados aspectos semelhantes a conjuntos construídos em áreas periféricas, que não
contam com essa mesma infraestrutura urbana, tais como a conversão de parte de unidades
habitacionais em local de trabalho (comércio e prestação de serviços), e a sensação de
segregação por parte de alguns moradores. É possível observar neste conjunto formas de
apropriação do espaço por parte dos moradores que, apesar de não acontecerem de forma
radical como a construção de puxadinhos observada em outros conjuntos habitacionais,
aparecem na forma de cuidado e do uso feitos pelos moradores nas áreas de uso comum
do condomínio.

Dentre outros fatores, é através da atribuição de significado pelas pessoas e da


capacidade de absorção de diferentes interpretações pela forma construída que um espaço
se torna passível de apropriação. A atribuição de significados se relaciona a sistemas de
valores carregados por indivíduos ou grupos, conformando o uso do espaço e ao mesmo
tempo conformada por esse uso, através das atividades cotidianas. Por outro lado, a forma
construída assume também um papel no processo bem sucedido ou não de apropriação e
uso do espaço por parte das pessoas. Hertzberger explica a capacidade da forma de abrigar
diferentes interpretações através dos termos competência e desempenho: “Pode-se dizer
que competência é a capacidade da forma de ser interpretada, e desempenho é o modo
pelo qual a forma é/foi interpretada em uma situação específica.”.
Apropriação do espaço é um processo que se dá ao longo do tempo, através das
práticas cotidianas dos moradores, ou seja, do uso destes espaços, que pode deixar ali as
marcas pessoais de quem os usa ou não. Um lugar pode ser pensado como um espaço que
foi apropriado pelas pessoas, que cria entre eles vínculo, afeição; que deixou de ser “um
espaço vazio para se tornar um lugar com sentido” (POL, 1996, p.3); é por onde as pessoas
se relacionam com o mundo e está, assim, intimamente ligado ao habitar.

Através do estudo de caso deste conjunto habitacional do Programa Minha Casa


Minha Vida pretendo, neste artigo, trazer à tona algumas situações que evidenciem a
discussão dos temas da apropriação do espaço, do lugar e sobre como os próprios
moradores atribuem significados aos espaços do conjunto, no que diz respeito à
responsabilidade, manutenção, pertencimento e às possibilidades de uso dos espaços do
condomínio. A discussão teórica destes temas permite elucidar questões observadas em
campo, do mesmo modo que o campo instiga novas questões teóricas.

Este trabalho é um estudo preliminar que faz parte do desenvolvimento de minha


dissertação de mestrado no Programa de Pós Graduação em Arquitetura na PUC-Rio, com
bolsa da CAPES e com apoio do Decanato do CTCH da PUC-Rio, sob a orientação da
professora Maíra Machado Martins. A pesquisa em geral começou no início deste primeiro
ano de mestrado, enquanto que as idas a campo ocorrem desde Setembro, em companhia
da graduanda Juliana Correia, bolsista PIBIC.

Apropriação do espaço

Em Quando a rua vira casa [1980 (2017)], bem como nos estudos originados deste
trabalho, Marco Mello e Arno Vogel colocaram como foco de sua observação a apropriação
dos espaços livres, principalmente aqueles que serviriam como espaços de lazer, no bairro
do Catumbi, zona central do Rio de Janeiro e em um caso de controle, o conjunto Selva de
Pedra, no Leblon, zona sul do Rio. Neste estudo os autores afirmam que, para que haja
apropriação de um espaço, é necessário antes que ele faça sentido às pessoas, ou seja,
que elas possam antes dar-lhes significado. Este dar significado vem de um conjunto de
convenções, valores e “códigos próprios de leitura” que cada sociedade teria e que
“determinariam o aproveitamento dos lugares, definindo pertinências e impertinências.
Assim, se constituiria uma prática que seria, ao mesmo tempo, estruturada em função de e
estruturante com relação a certos valores vigentes na ‘comunidade’.” (MELLO, VOGEL,
2015, p. 295).

Ao sistema de valores atribuídos aos espaços, que “dizem” como estes devem ou
não ser usados, Mello e Vogel incluem o componente das atividades cotidianas, ou seja,
ações que acontecem em determinados espaços, sendo moldadas por eles e, ao mesmo
tempo mondando-os de volta. O componente verbal dessa sintaxe – que teria os lugares
como substantivos que são dotados de valores, os adjetivos –, é fundamental para que
determinados espaços mantenham ou mesmo mudem seu significado. A apropriação do
espaço é um fenômeno que se dá na passagem do tempo, através destas atividades, as
quais “como que ‘escolhem’ seus espaços, apropriando-se deles, conformando-os, e sendo
conformadas de volta”. (MELLO, VOGEL, 2015, p. 303).

O componente temporal da apropriação do espaço aparece também nas relações de


familiaridade, descritas por Enric Pol em La Apropiación del espacio, que podem ser
cognitivas ou afetivas. O sentimento de familiaridade cognitiva se desenvolve conforme
utilizamos o espaço, à medida que vamos adaptando nossa ideia do que é o espaço e de
como ele se configura ao que existe ali na realidade. A familiaridade afetiva, por outro lado,
tem a ver com a capacidade de “associar o desejo com a representação e o uso dos objetos
no espaço”. (LAUWE, 1976 in POL, 1996)

De acordo com Pol, a forma como nos apropriamos do espaço é também uma forma
de mostrarmos nossa identidade, perante os outros e a nós mesmos. Esse tipo de
apropriação se dá não somente na forma como o espaço é usado, mas nas marcas e
transformações ali feitas, que no fim, além de espelharem a personalidade, o modo de vida
de seus habitantes, também fixam estas mesmas características, como uma reafirmação da
identidade daquelas pessoas. Espaço e sujeito se influenciam mutuamente.

Dentre as semelhanças entre a leitura de Pol e a de Mello e Vogel, está a ideia de


que, para que um espaço seja apropriado é preciso que antes nos identifiquemos com eles,
que seja possível ler, dar significado e que isso é fruto de modelos culturais, papéis sociais e
estilos de vida. Esse ler o espaço, dar significado, ou se identificar, aparece também em
Lições de arquitetura (1996) de Herman Hertzberger, na forma de interpretação do espaço.
Entretanto, diferente dos primeiros, em que essa leitura vem por parte das pessoas, em
Hertzberger o enfoque é na capacidade do espaço de oferecer essas interpretações. O
arquiteto holandês afirma que os espaços, principalmente aqueles cuja estrutura se ancora
nos arquétipos que aparecem ao longo do curso da história da arquitetura têm uma
capacidade interpretativa. Certas formas são mais convidativas que outras, oferecendo-se
assim à apropriação.

Hertzberger explica a capacidade da forma de abrigar significados e o modo como as


pessoas fazem isso através dos termos competência e desempenho: “Pode-se dizer que
competência é a capacidade da forma de ser interpretada, e desempenho é o modo pelo
qual a forma é/foi interpretada em uma situação específica”. (HERTZBERGER, 1999). Além
disso, este autor discute como diversas formas de demarcações no espaço podem ser mais
ou menos sugestivas para que as pessoas se sintam convidadas a deles se apropriar.
Hertzberger destaca, por exemplo, a importância dos espaços intermediários (o Intervalo),
lugar do encontro e da reconciliação entre o domínio público e o privado. A partir destes
conceitos, considero também que o ambiente construído em si tenha um importante papel
no processo bem sucedido ou não de apropriação e uso por parte das pessoas.

Através da relação psicológica e afetiva criada ao longo do tempo e do uso de


determinados espaços, a apropriação pode também envolver a criação de laços mais
profundo com o lugar, que incluem um senso de responsabilidade e de cuidado:

“Só podemos desenvolver afeição pelas coisas com as quais nos


identificamos – as coisas sobre as quais podemos projetar nossa própria
identidade e nas quais podemos investir tanto cuidado e dedicação que elas
se tornam partes de nós mesmos, absorvidas pelo nosso próprio mundo
pessoal.” (HERTZBERGER, 1999, p.170)

Lugar

Para Edward Relph (2012), de forma simplificada e usual, qualquer localidade é um


lugar, mas “em um sentido mais complexo, lugar se refere às configurações diferenciadas
de seu entorno, pois são focos que reúnem coisas, atividades e significados” (RELPH, 2012,
p. 25). Algumas localizações se diferenciam de outras e isso depende também da pessoa ou
grupo que as vivencia. Lugar não é uma definição fixa; uma localidade não é absolutamente
um lugar ou um não-lugar, mas existem gradações, que podem ser melhor compreendidas
através da ideia de lugaridade, ou qualidade de lugar. Ao falar dos lugares-sem-lugaridade,
Relph fala sobre uma luta entre “os processos que levam à diferenciação de lugar contra
aqueles que levam à ausência de lugaridade” (RELPH, 2012 p.25)

Para explicar a forma como uma localidade se torna um lugar, Relph define algumas
características e condições, que ele chama de aspectos de lugar. Dentre eles a condição de
ter um nome e de reunir, não só pessoas, mas também “qualidades, experiências e
significados em nossa experiência imediata” (RELPH, 2012, p. 22). Outroaspecto que
pretendo ressaltar neste trabalho é a ideia de construção de lugar, que pode, contudo,
permanecer como uma intenção que nunca conseguiu se materializar.

Para além destes aspectos, que dizem respeito a uma relação física, psicológica e
afetiva com o mundo, Relph aponta uma dimensão existencial do lugar:

“O núcleo do significado de lugar se estende, penso eu, em suas ligações


inextricáveis com o ser, com a nossa própria existência. Lugar é um
microcosmo. É onde cada um de nós se relaciona com o mundo e onde o
mundo se relaciona conosco.” (RELPH, 2012, p.31).

Todas as nossas experiências têm lugar no mundo. O lugar é não apenas um espaço
diferenciado, dotado de significado em que acontecem nossas experiências, mas também
onde podemos revisita-las, um “onde” realizado e localizado, onde nos encontramos com o
outro e com nós mesmos.

Habitar

É através dessa relação com o mundo que o arquiteto finlandês Juhani Pallasmaa
fala sobre o habitar. Para este autor, uma arquitetura que não reflete um modo de vida, uma
imagem de vida, representando principalmente valores de eficiência, buscando menores
custos de produção e de materiais nos afasta de uma relação direta com o mundo; são
casas que “satisfazem, quem sabe, a maior parte de nossas necessidades físicas, mas que
não conseguem abrigar nossa identidade”. (PALLASMAA, 2017, p. 12). Para este arquiteto
tais construções e o estilo de vida do mundo moderno nos levam a um “desalojamento
metafísico” (PALLASMAA, 2017, p. 13).
O habitar envolve as relações de troca e de familiaridade quetambém se fazem
presentes no processo de apropriação do espaço pelas pessoas. Do mesmo modo, faz
parte do habitar o componente temporal, e nossas atividades e experiências no mundo:

“O ato de habitar é o modo básico de alguém se relacionar com o mundo. É


fundamentalmente um intercâmbio e uma extensão; por um lado, o
habitante se acomoda no espaço e o espaço se acomoda na consciência do
habitante, por outro, esse lugar se converte em uma exteriorização e uma
extensão de seu ser, tanto do ponto de vista físico quanto mental.”
(PALLASMAA, 2017, p.7).

Para Pallasmaa, fortemente influenciado pela fenomenologia da imagem poética de


Bachelard, a essência do lar se aproxima mais dos territórios psíquicos da mente do que
das propriedades físicas da casa. O lugar em que vivemos deve ser capaz de abrigar e
acomodar nossas mentes, memórias, sonhos e desejos: “Habitar é parte de nosso próprio
ser, de nossa identidade” (PALLASMAA, 2017 p.07).

O lugar do lazer e as jardineiras

No conjunto Ismael Silva – Zé Keti, dois aspectos chamaram nossa atenção logo nas
primeiras idas a campo. Em primeiro lugar, os blocos de apartamentos não foram todos
implantados no terreno lado a lado, alinhados de forma quase que perfeitamente regular
com as ruas internas e estacionamentos, como no caso de outros conjuntos do PMCMV,
como os de Triagem, Santa Cruz e Duque de Caxias. Nestes casos, os conjuntos são
divididos em condomínios cercados, cada um com seu portão de entrada. Os moradores, a
pé ou em veículos, acessam seus respectivos blocos de apartamentos por uma rua-
estacionamento, retilínea e tão extensa quanto necessário para que se alcance a entrada de
todos os blocos, dispostos lado a lado ao longo desta via. Nem todos os blocos de
apartamentos têm acesso direto por esta via, mas permanecem sempre dentro da mesma
lógica regular de implantação que reina em absoluto nestes casos. Os espaços entre os
edifícios destes conjuntos, que exemplificam a maioria dos casos do PMCMV, são a sobra
mínima de uma ocupação que visa uma eficiência máxima em colocar o maior número de
unidades habitacionais por metragem quadrada de espaço livre.
No conjunto da Frei Caneca, nosso estudo de caso,existe também a divisão em dois
condomínios cercados, e onde também se faz presente a rua-estacionamento. Contudo,
alguns blocos se voltam uns para os outros, não mais de forma perfeitamente ortogonal,
mas mais soltos, criando percursos tortuosos e espaços residuais de tamanhos e formas
variáveis. Alguns destes espaços residuais se conformam o que poderiam ser chamados
espaços intermediários. São áreas de interseção entre público e privado, que amenizam a
força de cada um: não são espaços privados, mas pelo menor grau de visibilidade e de
acesso, perdem também parte do aspecto de público.

A primeira vez que percebemos estes espaços não foi através de uma análise da
implantação e da forma dos espaços vistos de cima, em planta. Foi ao caminhar por eles,
percebendo que existe de fato uma diferença com relação ao caminhar nas ruas-
estacionamento, áridas, fustigadas pelo sol. É nestes caminhos, feitos para pessoas, com
saliências e reentrâncias, sombreados e bem ventilados que encontramos o maior número
de pessoas usando o espaço comum entre os blocos de edifícios. Vimos crianças
brincando, pessoas com cadeiras de plástico conversando, pessoas fazendo churrasco, e
até mesmo vizinhos conversando, em pé, pela janela com um morador do térreo, enquanto
comiam e bebiam.

Nos condomínios Ismael Silva e Zé Keti, como em cada unidade condominial dos
conjuntos do PMCMV, há um salão de festas, uma quadra gramada com alambrado e um
parquinho infantil. Estas duas últimas áreas designadas para o lazer foram, de acordo com
os moradores, destruídas por outros moradores – em sua maioria adolescentes, de acordo
com relatos de moradores – logo nos primeiros anos após a inauguração do conjunto. O
parquinho infantil foi, por isso, removido, enquanto que as quadras, agora sem o alambrado,
permanecem como um retângulo de terra em meio aos condomínios, uma área degradada
na visão dos moradores, que guarda a promessa de que o Estado ou a administração do
condomínio, o síndico, irá intervir, arrumando este espaço.

O salão de festas, responsabilidade direta do síndico (que controla as datas e o


recebimento do valor das reservas), se mantém preservado, mas não inalterado. No
condomínio Zé Keti foi construída uma churrasqueira de tijolos, enquanto que no
condomínio Ismael Silva um dos banheiros deu lugar a uma expansão da cozinha. Apesar
de já termos presenciado, em diversas ocasiões o uso deste espaço para festas, privadas
ou organizadas de forma coletiva pelos moradores, algumas pessoas com quem
conversamos preferem usar outros espaços do condomínio. Dentre os motivos apontados
por estas pessoas está o custo, considerado alto para reservar o salão de festas e o fato de
este ser um espaço aberto, com pouca privacidade para um evento mais íntimo, como um
simples churrasco de fim de semana entre vizinhos.

Um grupo de moradores do condomínio Zé Keti explicou que vale mais a pena, até
mesmo financeiramente falando, fazer o churrasco nos fundos do condomínio, o que, de
qualquer forma inclui pedir permissão para o síndico. No condomínio Ismael Silva vimos
esse tipo de reunião mais íntima dos moradores acontecer na entrada de um dos blocos de
apartamentos, nesta área que não se volta diretamente para a rua-estacionamento. Estes
moradores reclamaram também do alto custo da reserva do salão de festas, apontando que
ali, onde eles faziam o churrasco, era “o lugar dos vizinhos”. De fato, enquanto
conversávamos com estes moradores, vimos outros entrando e saindo do edifício, parando
para conversar neste ponto com os anfitriões e, eventualmente, entregando ferramentas ou
mais carne para o churrasco, ou pegando um pouco do que já estava pronto para ser
comido.

Estes moradores nos informaram que essa prática era comum, que outros
moradores também costumam fazer churrascos ou colocar cadeiras em frente à entrada de
seus respectivos edifícios. Vimos isso realmente acontecer, em outras entradas e nos
espaços entre os edifícios, mas até o momento, nesta pesquisa, ainda não vimos o mesmo
acontecer no caso dos blocos que dão diretamente para a rua-estacionamento, exceto
quando existe por ali algum atrativo fixo, como os dois pontos de vendas de bebidas e
artigos de merceariamantidos por moradores de apartamentos térreos. Nestes pontos, é
comum que as pessoas se agrupem para beber e conversar entre si ou mesmo para uma
conversa rápida com o dono de um destes pontos.

Aos diferentes espaços dos condomínios são dados diferentes significados e


descrições pelos moradores. Para os adultos a quadra é uma área degradada que nem o
Estado nem o síndico, os responsáveis por este espaço do condomínio, consertaram ainda;
enquanto que para os meninos é um ótimo local de brincadeiras depois da escola, para
jogar bola e soltar pipa; já para as meninas, que brincam por entre os prédios e na rua-
estacionamento, ali é o lugar dos meninos, o lugar de jogar bola e soltar pipa. Para os
moradores que fazem o churrasco nos espaços dos vizinhos, o salão de festas é
excessivamente caro, e o valor que eles pagam de condomínio não é bem aplicado na
manutenção daquele espaço, que, além disso, poderia ser mais bem aproveitado, dando
lugar a eventos, principalmente para crianças, mas que “eles” (o síndico e quem mais
gerencia o condomínio) não fazem nada disso; já para outro grupo, composto de pessoas
que trabalham ou moram no conjunto, que se organizou para fazer uma festa do dia das
crianças, o salão de festas é um excelente espaço, bem estruturado e que ainda vai abrigar
muitas festas, inclusive integrando os moradores do outro condomínio.

Os espaços são o que é feito deles em cada ocasião e na variação de interpretações


e significados que cada grupo social faz, conforme a descrição de Mello e Vogel:

“Assim como a rua é a forma de utilizá-la, o espaço é o uso que permite. Os


significados que um determinado suporte material (esquina, calçada,
quintal, rua, etc.) pode assumir, resultam da sua conjuração com uma
atividade e mudam de acordo com ela. (...) E o que pode acontecer varia.
Mas, na variação mesma dos eventos possíveis, existe uma estrutura que
torna o espaço apenas mais uma dimensão do social.” (MELO, VOGEL,
2015, P. 48).

Outro aspecto deste conjunto que chamou nossa atenção foram as jardineiras,
pequenos cercados dos mais variados tipos (desde os mais elaborados, usando bambu, aos
mais simples e improvisados, feitos com pequenas estacas de madeira fincadas no chão)
protegendo pequenas áreas ajardinadas junto aos blocos de apartamentos. Elas aparecem
principalmente junto à entrada dos edifícios, muitas vezes se estendendo por suas laterais,
ou até mesmo pelos espaços residuais entre os edifícios (laterais ou fundos).

Todos os edifícios do conjunto, vistos de cima, têm a forma de um “H”, sendo a


entrada sempre por uma das duas reentrâncias, através de um estreito caminho de
concreto. A maioria dos edifícios, cada um a seu modo, abriga essas jardineiras, sendo que
em alguns casos, contudo, moradores optaram por concretar completa ou parcialmente a
entrada do edifício, ou simplesmente não fizeram nada, deixando o gramado original como
estava. No caso do edifício em que encontramos alguns moradores em meio a um
churrasco entre vizinhos, por exemplo, uma parte da área de entrada foi concretada, criando
um espaço de permanência em que os moradores não precisassem colocar suas cadeiras
diretamente sobre a terra. Na parte não concretada da entrada do edifício uma pequena
cerca simples acolhe um cantinho ajardinado.

Apesar de ser alvo de críticas por ser uma forma altamente replicada em conjuntos
habitacionais, criando cenários monótonos, a forma do edifício em “H” proporciona este
pequeno espaço de reentrância que pode ser lido pelos moradores como uma espécie de
soleira, em outras palavras, constitui uma área que se diferencia do resto do espaço público
e que, ao mesmo tempo, não pertence inteiramente aos moradores daquele bloco, como os
corredores internos do edifício ou os interiores dos apartamentos que só podem ser
acessados pelos moradores, que possuem a chave.Tanto estes como o espaço entre os
edifícios descrito anteriormente como espaço intermediário possuem a qualidade de
Intervalo. De acordo com Hertzberger, “esta dualidade existe graças à qualidade espacial da
soleira [o intervalo] como um lugar em que os dois mundos se superpõem em vez de
estarem rigidamente demarcados” (HERTZBERGER, 1999, p. 32).

Este tipo de cuidado para com o espaço externo, uma marca do domínio privado no
espaço público, que pode ser visto na maioria dos edifícios, mesmo aqueles voltados para a
rua-estacionamento, deve-se, em grande parte à forma dos edifícios. Mesmo de forma sutil
e provavelmente não imaginada por quem os projetou, foi “o bastante para estimular a
expansão da esfera de influência pessoal, e, deste modo, a qualidade do espaço público
será consideravelmente aprimorada no interesse comum” (HERTZBERGER, 1999, p. 41).
Além disso, continua Hertzberger, “É aqui que cada morador desempenha o papel que
revela o tipo de pessoa que quer ser e, por conseguinte, como deseja que os outros o
vejam. Aqui se decide também o que o indivíduo e a coletividade podem oferecer um ao
outro.” (ibidem, p. 41).

Uma moradora, por exemplo, não tinha dúvidas de que aquela reentrância
conformada pela forma do edifício pertencia aos moradores daquele bloco, e falou do jardim
da entrada como uma resposta quase que óbvia para o que deveria ser feito daquele
espaço: “é o cartão postal do edifício”. Para outra moradora, o espaço ao redor do edifício
atraía a presença indesejada e demasiadamente próxima de sua janela de outros
moradores que usavam o espaço para sentar e conversar. O plantio obstruindo o acesso
aos locais próximos à sua janela foi a solução para este problema. Para outros moradores,
este é um espaço de convivência, então é conveniente que, ao menos em parte, seja
concretado para abrigar cadeiras, mesas e uma churrasqueira.

Fomos informadas de que em alguns casos a iniciativa de plantar e manter essas


jardineiras é fruto dos moradores de cada edifício em conjunto, mas que muitas vezes parte
de um só morador, que pode contar ou não com o apoio e ajuda dos outros. Em um dos
blocos de apartamentos, um morador nos informou de que conhece de vista, mas não de
nome, a senhora responsável pelo suntuoso jardim na entrada de seu edifício. De acordo
com ele, esta senhora, que mora no quarto andar, descia todos os dias com um balde para
aguar as plantas e ele, apiedando-se da situação, resolveu comprar uma mangueira e, ele
mesmo, do primeiro andar regaria o jardim para ela. Tendo em vista este caso e o fato de
que alguns blocos de apartamentos, pergunto-me se da mesma forma que estas jardineiras
podem criar vínculos entre alguns moradores, a falta delas, ou sua presença em estado
precário pode sugerir uma menor ou problemática sociabilidade entre os vizinhos.

Ouvimos o relato de um morador que plantou pequenas mudas de espada de são


Jorge ao longo do caminho de entrada do edifício, mas seus pequenos canteiros são
constante alvo de pessoas descuidadas, que acabam pisando ou esbarrando nas plantas,
quebrando-as.Para que as jardineiras possam existir, se faz necessário uma espécie de
compromisso: um ou mais moradores se deram ao trabalho de criar e de manter a área
ajardinada; resta então, aos outros, respeitar esta iniciativa. Deve haver a segurança de que
o investimento feito não será perdido, principalmente se considerarmos a sina dos
equipamentos de lazer do condomínio (o parquinho e a quadra). Assim, levando em conta
também que o espaço entre público e privado é por onde os moradores começam a
expandir sua zona de influência sobre o espaço público, uma das questões que pretendo
investigar ao longo deste trabalho é se as jardineiras foram um primeiro passo para as
apropriações do espaço nestas áreas, ou foram encorajadas pela segurança oferecida por
estas apropriações?

Este pequeno exemplo das diferentes formas de tratamento dadas pelos moradores
ao entorno imediato de seus edifícios torna visível também as ideias de competência e
desempenho descritas por Hertzberger. Aqui vemos como uma determinada forma pode
conter em si diferentes possibilidades de apropriação e de uso, e como estas se fazem
presentes através da interpretação e da atribuição de significados feitas por aqueles que ali
vivem. São também fruto visível da relação entre os vizinhos e um aspecto que gera
questionamentos, por se tratar de um pequeno espaço que recebe enorme cuidado e
atenção dos moradores em um lugar em que a maioria dos espaços foi depredada ou
recebe o mínimo de manutenção (serviço de limpeza).

Considerações finais

O conjunto habitacional se ergue por sobre um passado demolido. Sabe-se que ali
era a antiga Penitenciária Frei Caneca; restam ainda parte do muro e o portão como
testemunhas do que se foi, mas os edifícios, os gramados, as áreas de lazer, quando
entregues aos moradores, vieram do zero, vieram como espaços ainda não vividos. Enric
Pol (1996) afirma que a apropriação do espaço é tornar um espaço vazio em um lugar com
sentido, um processo construído ao longo do tempo e que “faz parte da dimensão do vivido,
da experiência cotidiana” (MELLO, VOGEL, 2015 p. 294). É através desta vivência que as
pessoas se acomodam no espaço e este, ao mesmo tempo, se acomoda na consciência
destas pessoas, que habitam o conjunto.

Os espaços do conjunto são capazes de abrigar diferentes significados, e seu caráter


varia conforme as atividades a que dão lugar. O lugar dos vizinhos, também é o lugar das
brincadeiras das crianças. O lugar dos meninos, para jogar bola ou soltar pipa, também
representa o descaso por parte daqueles que devem a devida manutenção do condomínio
aos moradores. Nem toda apropriação do espaço gera o que pode ser chamado de lugar, no
sentido de reunir pessoas, mas pode reforçar o sentido de lugar, como no caso das
jardineiras.

Cabe aos moradores a interpretação e o uso dos espaços, mas importa também a
forma destes espaços, que pode convidar ou inibir. Estudar de que forma as pessoas
interpretam e dotam de significados o ambiente a sua volta, e como esse mesmo ambiente é
capaz ou não de absorver essas interpretações e significados, nos aproxima da
compreensão de como os lugares são construídos pelas pessoas ao longo do tempo,
através de suas experiências vividas. Assim, do mesmo modo que a forma construída é
capaz de propiciar ou não a apropriação do espaço, pode estimular ou inibir a criação de
lugares:
“os lugares só podem feitos por quem vive e trabalha neles, pois são tais
pessoas que conseguem entender de forma conjunta as construções,
atividades e significados. (...). Planejadores e arquitetos não podem fazer
lugar, mas se forem sensíveis às condições locais, podem prover de
infraestrutura e construir ambientes que facilitem a criação de lugares por
aqueles que vivem neles” (RELPH, 2012 p.26).

Neste sentido, estudar de que forma as pessoas interpretam e dotam de significados


o ambiente à sua volta, e como esse mesmo ambiente é capaz ou não de absorver essas
interpretações e significados, nos aproxima da compreensão de como os lugares são
construídos pelas pessoas ao longo do tempo, através de suas experiências vividas. As
questões sobre apropriação do espaço, lugar e habitar tornam visíveis a importância e o
significado de pequenos gestos, como o uso ocasional de alguns espaços para um encontro
entre vizinhos ou para brincadeiras, bem como no caso do cuidado e atenção dados às
entradas dos edifícios, para os moradores do conjunto.

Bibliografia

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VOGEL, Arno; MELLO, Marco Antonio. Apêndice: Lições da rua: O que um racionalista pode
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Leticia de Luna. Pensando o Rio – políticas públicas, conflitos urbanos e modos de habitar.
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