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Antropologia da Religião
Silas Guerriero
A religião sempre esteve presente como tema nos estudos antropológicos. Não
existe até os dias atuais uma definição clara do que se compreende por antropologia da
religião, a começar pela própria singularidade ou pluralidade da temática em foco. Para uns,
não é possível falar em antropologia da religião no singular, pois essa unicidade indicaria a
ideia de busca de uma essência da religião. Para outros, essa é uma questão menor. É por
antropologia da religião que a disciplina ficou conhecida e não se faz exigência que o tema
permaneça no singular ou no plural. No entanto, essa questão já aponta para um debate
bastante sério que diz respeito ao objeto próprio. Afinal, qual o conceito de religião que se
está utilizando?
James George Frazer, outro dos grandes heróis civilizadores da antropologia, afirma
ser a magia uma forma primitiva de ciência, mas que fracassou pela sua precocidade. Esse
fracasso da magia em atingir os resultados materiais esperados leva o primitivo a
desenvolver a religião. Frazer estabelece uma sequência evolutiva que vai da magia, passa
pela religião e atinge o ápice na ciência moderna.3 Ele percebe a superstição como um
desvio intelectual que desvirtuava o pensamento lógico. Frazer vê no feiticeiro alguém que
acreditava compreender as leis que regem o mundo e assim controlar os fenômenos da
natureza. Da mesma forma que a ciência, a magia também trabalha a partir da associação de
ideias, numa relação causa e efeito. Se para Frazer a magia utiliza de maneira errônea o
princípio de associação de ideias, pode então ser considerada como uma falsa ciência. Para
ele, a magia é a primeira forma de pensamento humano. O primitivo procura controlar, por
1
Cf. E. Tylor, Primitive culture.
2
Cf. E. Durkheim, As formas elementares da vida religiosa.
3
Cf. J.G. Frazer, O ramo de ouro.
GUERRIERO, S. . Antropologia da religião. In: PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank. (Org.). Compêndio de ciência da religião.
1ed.São Paulo: Paulinas; Paulus, 2013, v. 1, p. 243-256
seus próprios meios, as forças da natureza. Após perceber que não consegue utilizar essas
forças, abandona a magia para se dedicar à adoração de seres divinizados e superiores.
Passa, assim, a uma etapa mais evoluída que, por meio da prece e do sacrifício em nome
desses deuses, procura o caminho da salvação. Este seria o momento da religião para
Frazer. Quando, enfim, percebe os limites da religião, o ser humano volta para o princípio
da causalidade, mas dessa vez não mais de maneira mágica, mas sim experimental e
científica. Desta forma, atinge o grau mais evoluído, ou seja, a moderna ciência da
civilização ocidental. Frazer exerceu papel fundamental na legitimidade dos estudos de
religião. Sua influência não se limitou ao meio acadêmico, mas teve forte impacto também
entre os religiosos e na população em geral. Enfatizou a erudição e o estudo comparativo de
civilizações antigas e trouxe para um público mais amplo o gosto pela busca das origens da
religião.
Nesses dois casos vemos que a religião, ou mesmo a magia, ganha espaço não como
uma temática central, mas como instrumento de compreensão das formas mais primitivas e
arcaicas da humanidade. A preocupação com as origens gerou muita especulação sobre qual
teria sido a primeira religião da humanidade. Várias foram as escolhidas. Falou-se em
fetichismo, baseado em feitiçarias, ou ainda em animismo ou o totemismo, visto que o culto
ao totem, ou ancestral, assemelhava-se a um culto aos deuses. Embora essas teses tenham
sido há muito tempo refutadas pela antropologia, permaneceram impregnadas no senso
comum e no imaginário da nossa sociedade. De certa maneira influenciaram nossos
modelos de pensamento sobre a religião dos outros.
Não é fácil apagar a herança evolucionista. Permanece até hoje, sem seu cunho
etnocêntrico, quando busca explicações mais amplas, genéricas, a partir de grandes
comparações, sem se ater a particularidades muito específicas. Da busca de uma origem da
religião permanece a dívida da procura, num amplo sentido, por uma essência ou natureza
da religião. A negação dessas origens, por sua vez, trouxe a ênfase nos particularismos, nas
negações das grandes comparações e também na busca das funções dos elementos culturais
olhados numa totalidade circunscrita do grupo estudado. Esse olhar só poderia ser o das
particularidades empíricas. Na antropologia da religião, como preferem os que tendem a
pensar numa natureza religiosa do ser humano, ou na antropologia das religiões, para
aqueles em que só é possível enxergar os aspectos empíricos ou as particularidades,
qualquer teorização mais geral só ocorre a partir de infindáveis casos concretos. De acordo
4
R. Winzeler, Anthropology and religion, p. 13.
GUERRIERO, S. . Antropologia da religião. In: PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank. (Org.). Compêndio de ciência da religião.
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com Obadia, existem alguns postulados de base que servem a todos.5 Trata-se de um
empirismo que rompe com qualquer perspectiva fenomenológica, não no que ela pode
trazer de reflexões para a análise (com foco nas formas observáveis de religião), mas com o
objetivo empreendido de busca de uma essência, suprassocial. Olhar para as outras culturas,
diferentes da ocidental, força um olhar que nega uma universalidade do religioso
identificada nos monoteísmos largamente conhecidos. Cada forma nova e diferente de
sistema religioso que a antropologia foi desvendando foi estabelecendo a certeza que não se
poderia mais pensar num sagrado para além das constituições históricas e nem mesmo para
um continuum entre formas primitivas e civilizadas de religião. A religião do outro ganhou
reconhecimento e valor. A magia, as feitiçarias em geral, os mitos e tudo que envolve
qualquer sistema de crenças passaram a ser vistos no valor que trazem em si mesmos.
Essa nova perspectiva está muito longe de uma antropologia religiosa. Não existe
uma preocupação com a veracidade daquilo que é preconizado pelas religiões ou qualquer
sistema de crenças. Em última instância isso significa dizer que não parte, como método de
análise, do pressuposto da existência de uma essência do sagrado ou de uma divindade.
Essa é uma questão que não cabe aos antropólogos. É famosa a colocação de Evans-
Pritchard de que não se trata do antropólogo ter ou não uma religião, pois esse não está
preocupado com a verdade ou falsidade do pensamento religioso uma vez que as crenças
são fatos sociais. 6 O que importa para a antropologia da religião são os significados
subjacentes aos sistemas de crenças religiosas de um ou mais grupos sociais. Acrescenta-se,
ainda, a preocupação com os hábitos, práticas e costumes desses mesmos grupos advindos
desses sistemas. Para Radcliffe-Brown7, a função social da religião é independente da sua
verdade ou falsidade. Todas as religiões, por mais excêntricas que possam parecer,
desempenham papéis importantes no mecanismo social. Esse autor, assim como outros da
primeira metade do século XX que buscaram inspiração a partir das ideias de Durkheim,
como Marcel Mauss, Malinowski e Evans-Pritchard, romperam com o modelo explicativo
dos evolucionistas, que viam a religião reduzida aos mecanismos mentais (falsos), e
buscaram fundamentar suas análises a partir de um consistente conjunto de dados
empíricos. O contato com o outro, com suas maneiras particulares de se comportar e de
crer, possibilitado pelo imprescindível trabalho de campo, deslocou a preocupação sobre as
origens da religião para o campo das funções sociais. Nesse processo abandonou-se a busca
de uma teorização geral sobre a unidade psíquica humana e focou-se nos pormenores da
5
L. Obadia, Antropologia das religiões, p. 30.
6
E. Evans-Pritchard, A religião e os antropólogos.
7
Cf. A.R. Radcliffe-Brown, Estrutura e função na sociedade primitiva.
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1ed.São Paulo: Paulinas; Paulus, 2013, v. 1, p. 243-256
8
E. Durkheim, As formas elementares da vida religiosa, p. 32.
9
Cf. C. Lévi-Strauss, O pensamento selvagem.
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Pelo que foi tratado até este momento, a maneira pela qual a antropologia retratou a
religião trouxe implicações para a própria concepção sobre o outro, aquele que é diferente,
mas ao mesmo tempo semelhante por ser também um ser humano. Ampliou a noção de
humanidade e do reconhecimento de que as diferenças religiosas, tão caras uma vez em que
podem separar povos e provocar conflitos bélicos, são frutos das vivências sociais e de
como os diferentes povos constituíram, ao longo da história, suas trajetórias e visões de
mundo. A constatação antropológica da não existência de povos ou culturas que prescindam
da religião teve várias consequências. Essa universalidade da religião, que para um crente
religioso pode ser atribuída à comprovação da existência do sagrado, para a antropologia
trouxe mais indagações que certezas. Trata-se de uma natureza religiosa humana ou de uma
origem religiosa da cultura e das sociedades humanas? Émile Durkheim, em sua famosa
obra As formas elementares da vida religiosa 10, afirma que a natureza religiosa do ser
humano é um aspecto essencial e permanente da humanidade. Entretanto, Durkheim diz ser
a religião um constructo das sociedades, numa evidente redução do religioso a um fato
social. Mas mesmo em suas épocas iniciais nunca houve um consenso sobre a definição de
religião e sobre os métodos de análise que poderiam ser empregados em seus estudos.
Portanto, há aqui uma questão conceitual. Longe de demonstrar fraqueza teórica, essa
diversidade evidencia uma riqueza e um eterno questionamento que fez com que essa
ciência avançasse e renovasse a si mesma na busca de uma melhor compreensão da religião
e do ser humano em geral.
A definição de religião
10
E. Durkheim, As formas elementares da vida religiosa.
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povos, levou alguns a uma rejeição pura e simples do conceito, embora isso não resolvesse
a questão. Portanto, longe de rejeitar o conceito, ou negar sua existência, deve-se
reconhecer que é preciso sempre levar em consideração o que se entende por religião.
Afastando-se de uma perspectiva funcional, seja ela das funções sociais ou das
psicológicas, o norte americano Clifford Geertz abre uma nova via para compreensão
antropológica da religião. Em seu estudo ainda dos anos 1960 estabelece uma definição de
religião tida como clássica nos dias atuais. Religião para ele é um sistema de símbolos e a
possibilidade de estudo se dá por uma via hermenêutica e semiótica. Procura focar no que a
religião representa para seus atores e como ela estabelece a nossa própria noção de
realidade. Para este autor, religião é
Essa noção parece bastante útil. Não fala de sobrenaturalidade ou divindade, muito
menos em sagrado, podendo ser, dependendo do que se busca compreender, bastante
11
L. Obadia, Antropologia das religiões, p. 31.
12
C. Geertz, Religião como sistema cultural, pp. 104-105.
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conveniente. Pode-se perceber que ela serve tanto para religião como para as
espiritualidades difusas. Geertz atribui o poder da religião ao fato desse sistema simbólico
realizar a junção entre o ethos, a maneira de ser e de sentir de um determinado grupo, com a
visão de mundo, a formulação da ordem geral das coisas elaborada por esse mesmo grupo.
A junção dessas duas dimensões tem o poder de formular uma imagem geral da estrutura
do mundo e um programa de conduta humana em que um e outro se reforçam mutuamente.
Essa formulação responde, segundo o autor, pela noção de religião em geral, mas
ela deve ser desdobrada para podermos enxergar as formas que efetivamente se manifestam
socialmente. Para tanto, ele se utiliza de duas subcategorias: a de religiões (no plural) e a de
espiritualidades. A diferença entre essas subcategorias da classe geral e mais ampla de
religião está no fato de que nas religiões o sistema simbólico é representado por alguma
instituição social. Assim, religião necessita inevitavelmente de um grupo articulado em
torno de um conjunto de mitos, com hierarquia e papéis definidos, e de uma doutrina que
manifeste ou demonstre um conhecimento sistematizado. Ao mesmo tempo, essa definição
permite englobar sistemas de crença que não tratam explicitamente de aspectos
sobrenaturais, de seres espirituais ou de distinção entre sagrado e profano. Essa ampliação
conceitual é que permite compreender uma série de novas manifestações espiritualizadas da
nossa sociedade, como a Nova Era, e que não são englobadas pelos conceitos mais
tradicionais de religião.
Tal discussão remete à questão do que é ou não é religioso. Uma vez que a
antropologia não parte de um pressuposto da existência de uma manifestação de um
sagrado, que responderia pela substância religiosa de um objeto, de um ato ou de uma ideia,
é preciso procurar esses fundamentos em outros terrenos. A definição de Hanegraaff tem
esse atributo.
13
W. Hanegraaff, The pragmatics of defining religion, p. 371.
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É nessa direção que vem uma das críticas mais contundentes da definição de
religião nos dias atuais. Talal Asad afirma que não é possível separar os símbolos religiosos
daqueles que não são.14 É preciso, no entender desse antropólogo, ir a fundo ao contexto
histórico em que se constituíram e se autorizaram esses símbolos religiosos. Asad parte de
uma perspectiva que vem ganhando notoriedade nos estudos antropológicos, a de uma
antropologia pós-colonialista. Essa disciplina deixa de ser uma construção de um olhar do
ocidental sobre os demais povos, mesmo que relativizada e antietnocêntrica. Quem fala,
agora, são os próprios “nativos”, como é o caso do próprio Talal Asad, saudita de
nascimento e criado no Paquistão, filho de pai judeu convertido ao islamismo. A questão
básica gira em torno da impossibilidade de uma tradução. Qualquer costume ou ideia fora
de contexto, traduzido, perde em poder explicativo e corre o risco de ser utilizado como
forma de dominação por quem o traduz. Esse é o caso da noção de religião. Fiona Bowie
acrescenta que é preciso sempre ter em mente que a construção da categoria “religião” se
baseou em línguas e costumes europeus. 15 Em grande parte das línguas nativas não há
palavras para definir o que os ocidentais entendem, ou pensam entender, por religião. O
enquadramento a um significado preestabelecido é imediato. A perspectiva de quem
escreve a história é fundamental nesse aspecto. Por que aqueles que não eram ocidentais
foram obrigados a ler a história ocidental e o contrário não aconteceu? Para Asad, o fato
está em que os nativos são vistos como “locais” enquanto que os cristãos são “universais”.
Essa concepção de universalidade acaba, mesmo inconscientemente, justificando a
sobreposição do mundo e dos valores ocidentais por sobre os demais povos. 16
Asad procura examinar os caminhos pelos quais a busca teórica por uma essência da
religião, trans-histórica, convidou a separar a religião da política. Faz isso por meio de uma
análise da definição de Geertz. Seu argumento é que não pode haver uma definição
universal de religião, não apenas porque seus elementos constitutivos e suas relações são
historicamente específicos, mas porque essa definição é ela mesma um produto histórico do
processo discursivo 17.
Para outros críticos, por se tratar de um conceito ocidental que guarda origem na
expansão da sociedade ocidental capitalista, servindo muitas vezes como forma de
dominação, o termo deveria ser simplesmente abandonado. 18 Não poderia ser uma categoria
14
Cf. T. Asad, Genealogies of religion.
15
F. Bowie, The anthropology of religion, p. 19.
16
T. Asad, Genealogies of religion, p. 8.
17
Ibidem, p. 29.
18
T. Fitzgerald, The Ideology of Religious Studies.
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1ed.São Paulo: Paulinas; Paulus, 2013, v. 1, p. 243-256
O estudo antropológico das religiões não se limitou à busca de uma definição mais
precisa do conceito religioso. Muitas propriedades das religiões particulares que foram
sendo estudadas ganharam um estatuto de objeto de estudo particular e constituíram
campos autônomos de análises. Dentre esses podemos destacar as crenças, os rituais, os
mitos e os símbolos.
amplo que vai além daquilo que poderíamos chamar de crenças religiosas, ou crenças
sagradas. No entanto, em que pesem as críticas feitas à noção de crença, semelhantes às
empreendidas ao conceito de religião, as crenças religiosas compõem um dos objetos
verificáveis da antropologia da religião. Como um fenômeno mental, a crença foi
considerada um objeto próprio da psicologia, mas se pensado em termos de sua
materialidade, na encarnação em objetos específicos, as crenças ganham contornos
específicos e são tratados de maneira especial pela antropologia. Nesse aspecto, não há
necessário vínculo com a categoria “fé”, essa sim de cunho religioso. As crenças, para a
antropologia, ganharam destaque na medida em que foram sendo estudadas em suas
especificidades. Cada cultura possui, assim, um conjunto de elementos em que seus
integrantes creem fazer parte do mundo e que termina por moldar os contornos da realidade
mais ampla. No estudo clássico sobre a magia do feiticeiro, Lévi-Strauss afirma que o
aprendiz de feiticeiro que ambicionava desmascarar os truques realizados pelos xamãs
tornou-se ele próprio um grande xamã não pela sua convicção particular, mas pela crença
coletiva e confiança depositada pelo grupo.19 Da mesma forma, no estudo sobre os Azande,
Evans-Pritchard percebe que os nativos têm plena consciência de que as doenças podem ser
tratadas com remédios, visto que têm um vasto conhecimento sobre ervas e plantas
medicinais, mas é inconcebível não reconhecer que há obra de bruxaria ou feitiçaria em
todos os casos em que alguém fica acamado.20 Essas crenças compõem a materialidade do
mundo dos Azande.
Talvez uma das mais fortes contribuições da antropologia para o estudo da religião
se dê no fato dela ter dirigido especial atenção para a pesquisa de sistemas simbólicos. 21
Considerar a cultura humana como fruto da capacidade de simbolização é apenas ponto de
partida. A grande contribuição se dá porque compreende o universo simbólico como
elemento fundamental das comunicações e das trocas. Percebe-se então o papel
fundamental de Lévi-Strauss que não apenas delineou o funcionamento da magia através da
eficácia simbólica, como trouxe enormes contribuições no campo das trocas simbólicas.
Mary Douglas elaborou uma teoria sobre a naturalidade dos símbolos, ao menos como eles
passam a ser manifestações previsíveis. 22 Focada na dimensão do simbolismo da
experiência corporal, Douglas enfatizou o ritual como um sinônimo de símbolo. O efeito do
rito se liga à modificação da experiência. Experiências díspares ganham sentido quando
19
C. Lévi-Strauus, O feiticeiro e sua magia.
20
E. Evans-Pritchard, Bruxarias, oráculos e magia entre os Azande.
21
K. Hock, Introdução à ciência da religião, p. 157.
22
Cf. M. Douglas, Natural symbols.
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vivenciadas num quadro de estruturas simbólicas. Para ela, o ritual consiste essencialmente
em uma forma de comunicação. Clifford Geertz, como afirmado anteriormente, elegeu os
sistemas simbólicos de uma cultura como centro de suas análises, como o religioso, o
político, o científico e outros. A análise antropológica dos símbolos procura descobrir os
sistemas de significado subjacentes, num esforço interpretativo empreendido pelo
pesquisador.
Por fim, destacam-se ainda mito e ritual. Esses dois elementos da religião
constituíram campos de dimensões abissais nos estudos antropológicos. Muitas vezes vistos
como inseparáveis, pois um lida com o aspecto do imaginário e das mentalidades enquanto
o outro trata do universo das práticas, há quem veja uma supremacia do ritual sobre o mito,
como Jack Goody23 ou Victor Turner24. Outros, como Lévi-Strauss, se preocuparam com o
estudo do mito, deixando o ritual praticamente de lado.
23
J. Goody, O mito, o ritual e o oral.
24
V. Turner, O processo ritual.
25
C. Geertz, Uma descrição densa.
26
A. Van Gennep, Os ritos de passagem.
27
V. Turner, op. cit.
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outros rituais tornando o universo extremamente complexo. Turner, por sua vez,
aprofundou suas análises no estado intermediário desses rituais, o do momento da
transformação, denominado de fase limiar. Para esse autor, o ritual tem o poder de renovar
a sociedade já que provoca uma abolição, mesmo que temporária, da estrutura social
vigente e instaura uma antiestrutura em que as posições sociais são rompidas. Trata-se de
uma abolição das hierarquias, das autoridades e das ordens sociais, numa espécie particular
de comunidade, a communitas. Após a fase de liminaridade, há um retorno, quando a
antiestrutura se refaz numa nova estrutura. Embora os ritos de passagem não se restrinjam
ao universo religioso, é nele que são vistos em sua plenitude.
Vários outros tipos de rituais foram bastante estudados pela antropologia da religião,
como os rituais de sacrifício, as peregrinações e os cultos de um modo geral. Um ritual
pode ser entendido como uma chave heurística, através da qual se podem ser acessados
aspectos de uma sociedade que dificilmente se manifestam em falas ou discursos. Por meio
de rituais podem ser observados aspectos fundamentais de como uma sociedade vive, pensa
a si mesma e se transforma.
Os mitos estão entre os objetos mais apreciados pelos antropólogos, visto que
permitem, na visão de muitos deles, penetrar nos universos cosmológicos e nas visões de
mundo de povos muito diferentes. Dada a linguagem cifrada dos mitos, o seu estudo nunca
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foi tarefa das mais tranquilas. Muitos dos primeiros estudiosos de religião se utilizaram de
informações advindas dos levantamentos etnológicos para empreender esforços na tentativa
de construções de mitologias comparadas. Utilizados também por outras chaves de leitura,
como a psicanálise ou a filosofia, os estudos de mitos foram ganhando consistência teórica
no interior da antropologia. O mito passou a ser visto como um sistema de códigos culturais
da experiência ordinária dos povos tradicionais, indiferente às aparentes contradições
lógicas internas.
viagem são outras. As trocas e avanços se dão pelos diálogos com as ciências cognitivas, a
biologia, a psicologia evolutiva, a primatologia, a etologia e até, quem diria, a antropologia
biológica. A religião permanece construção eminentemente humana, mas agora observada
sob novos ângulos. O que há na formação da mente humana que permite essa simbolização
e construção de universos religiosos? Terá sido a religião um elemento adaptativo no
processo evolutivo humano ou será ela apenas um subproduto de outras faculdades da
mente humana? Já são vários os estudos que apontam para uma forte relação entre o fazer
religião e a evolução da mente humana. 28
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28
Cf. S. Minthen, A pré-história da mente.
GUERRIERO, S. . Antropologia da religião. In: PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank. (Org.). Compêndio de ciência da religião.
1ed.São Paulo: Paulinas; Paulus, 2013, v. 1, p. 243-256
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