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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

FACULDADE DE EDUCAÇÃO
Programa de Pós-Graduação em Educação

Anderson C.F. Brettas


Orientador: Prof.º Dr.º José Carlos Souza Araújo

EURÍPEDES BARSANULPHO E O COLLÉGIO ALLAN KARDEC


Capítulos de História da Educação e a Gênese do Espiritismo nas Terras
do Alto Paranaíba e Triângulo Mineiro (1907/1918)

Uberlândia, MG, 2006


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Anderson C.F. Brettas

EURÍPEDES BARSANULPHO E O COLLÉGIO ALLAN KARDEC


Capítulos de História da Educação e a Gênese do Espiritismo nas Terras
do Alto Paranaíba e Triângulo Mineiro (1907/1918)

Dissertação apresentada como requisito


parcial para a obtenção do título de mestre
junto ao Programa de Pós-Graduação em
Educação, sob a orientação do prof.º Dr.
José Carlos Souza Araújo.

Universidade Federal de Uberlândia


Faculdade de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação

Uberlândia, MG
2006
4

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

B845e Brettas, Anderson C. F., 1971-


Eurípedes Barsanulpho e o Collégio Allan Kardec : capítulos de Histó-
ria da Educação e a gênese do espiritismo nas terras do Paranaíba e Triân-
gulo Mineiro (1907-1918) / Anderson C. F. Brettas. - 2006.
244 f. : il.

Orientador: José Carlos Souza Araújo.


Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Uberlândia, Progra-
ma de Pós-Graduação em Educação.
Inclui bibliografia.

1. Educação - História - Teses. I. Araújo, José Carlos Souza. II. Uni-


versidade Federal de Uberlândia. Programa de Pós-Graduação em Educa-
ção. III. Título.

CDU: 37 (091)
Elaborado pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de Catalogação e Classificação
5

Anderson C.F. Brettas

EURÍPEDES BARSANULPHO E O COLLÉGIO ALLAN KARDEC


Capítulos de História da Educação e a Gênese do Espiritismo nas
Terras do Alto Paranaíba e Triângulo Mineiro (1907/1918)

Dissertação submetida à Banca


Examinadora designada pelo Colegiado
do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de
Uberlândia como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em
Educação. Aprovada em 20 / 06 / 2006.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. José Carlos Souza Araújo / UFU (Orientador)

Prof. Dra. Rosa Fátima de Souza / UNESP

Prof. Dr.Geraldo Inácio Filho / UFU


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Ao Paschoal Ferreira Brettas (in memorian),


primeiro mestre no incentivo da arte
da curiosidade do saber.

Ao Cristóvão Alexandre e Dayse Alcântara,


das trincheiras d’O Semeador na luta incessante
pelas causas sociais; e à ´tia´ Heigorina,
em Sacramento, militante histórica das lides
espirituais. Em afinidade, os três têm em
Eurípedes Barsanulfo a fonte segura de
inspiração por um mundo melhor.

À Patrícia Kelly,
diante de todas as razões.
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AGRADECIMENTOS

Durante as aulas do curso de Metodologia, ainda no primeiro semestre do mestrado, o

professor Geraldo Inácio – que além de mestre, revelou-se um atento companheiro - sempre

repetia um mantra: “...a ciência é um produto do trabalho coletivo... nunca se faz

individualmente”. Ainda que numa época qualquer não concordasse ou não entendesse essa

máxima (diga-se, não é o caso), a força das circunstâncias de uma pós-graduação conduzir-me-

ia a essa convicção. E, olhando a jornada pregressa dos últimos dois anos, tenho a certeza de

que nada foi ao acaso e gostaria de registrar à posteridade alguns daqueles que, mais do que

contribuir, asseguraram a efetivação desta dissertação ora encaminhada à banca examinadora.

Seguramente, nada é aleatório. Em julho de 2002, lecionava no saudoso Objetivo de

Uberlândia, véspera de vestibular, quando uma aluna, aflita com o possível choque entre sua

crença religiosa e o curso que escolhera, procurou-me com uma revista que trazia em sua capa

a chamada para a reportagem “Freud Além da Vida”. À noite, quando abro ao acaso a

publicação, deparo-me com a entrevista de uma jornalista paulista, que defendera uma tese de

doutorado na USP acerca da “Pedagogia Espírita”, e citava a existência, no passado longínquo,

de um tal de “Collégio Allan Kardec”. A curiosidade foi instantânea e daí a decisão da

pesquisa e o levantamento do potencial das fontes ocorreram a passos largos.

A ex-aluna em questão hoje é estudante de Psicologia, Mariana Paes, e a estudiosa de

São Paulo, Dora Incontri –, pessoas a quem ora apresento o justo reconhecimento.

A academia, muitas vezes, é permeada por um ambiente sisudo e competitivo.

Felizmente, esse não é o caso desta Faculdade de Educação, espaço onde fui acolhido de forma

ímpar, contando sempre com o auxílio despretensioso e inteligente de mestres como, apenas

citando alguns nomes, o Humberto Guido, uma fonte de inspiração para muitos, o já citado

Geraldo, com uma visão perspicaz da universidade; a Sônia dos Santos, a Vera Abrão, o

Wenceslau Gonçalves; o Décio Gatti e a Silvana Malusá, que propiciaram reflexões salutares
10

sobre os processos educacionais; o Carlos Henrique, exemplo de vida e dedicação, ministrou

uma matéria que, certamente, nos encorajou a prosseguir nesta jornada com segurança. Na

mesma sintonia desse clima leve e estimulante, é essencial mencionar os técnicos-

administrativos James Mendonça e Gianny Barbosa, uma dupla que pela solicitude e

disposição, aparece nos agradecimentos de dez em cada dez dissertações em Educação na

UFU. E os amigos do programa, André Cruz, Geraldo Gonçalves, Cristiane Martins e Fernanda

Barros, entre outros, muito contribuíram para esse encorajamento necessário. O professor do

departamento de Ciências Sociais, vale também registrar, Antônio Micheloto, com indicações

precisas de autores do campo das ciências da religião, foi relevante no início da jornada.

E, nem poderia ser diferente, o José Carlos Araújo, professor, orientador e amigo com

uma empatia instantânea, ofereceu, com muita propriedade e rigor, os direcionamentos

necessários. Além da colaboração solícita, teve a compreensão importante dos momentos de

instabilidade (aliás, dois anos de mestrado com um ativismo nessa educação brasileira, numa

rede particular de ensino, que articula a inarticulável equação lucro x educação, diria que essa

foi uma jornada titânica...).

Um tema de estudo, cujo foco é uma cidade como Sacramento, é uma dádiva do

destino que aplaca qualquer adversidade. Terra admirável com ares de mineiridade, uma gente

hospitaleira e franca. Mais do que entrevistados ou fontes de pesquisa, pude agregar ali amigos

no melhor sentido da palavra. Os cultos estudiosos Amir Salomão Jacób e Carlos Alberto

Cerchi, conhecedores da história da região, sempre abertos ao bom debate e ao fornecimento

de informações preciosas. Foram essenciais. No Arquivo Público, a Virgínia Dolabela e a

Adriana Gobbo, com uma atenção dispensada, apoio e incentivos notáveis. E, ainda na fase de

construção do projeto, nos idos de 2003, o Sr. José Rosa Camilo em muito contribuiu no

mapeamento das fontes de pesquisa. Na Fazenda Santa Maria, berço do espiritismo no

Triângulo Mineiro, a hospitalidade e a atenção do Sr. Adolfo Ramos e de seu filho, Neio Luiz,

também foram fundamentais.


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No movimento espírita, a Alzira Bessa Amuí, dirigente do Centro Esperança e

Caridade, entidade que mantém o atual Educandário Eurípedes Barsanulfo, apesar de um

ciúme compreensível do acervo do célebre professor, disponibilizou importantes documentos

do passado, permitiu as fotografias devidas e abriu antigas salas do prédio para as análises

pertinentes.

Das labutas cotidianas e persistentes, fundamentais nessa longa seara, muitos são os

companheiros de fato. Destaco, cometendo algumas injustiças por eventuais ausências, os

professores Gentil Jorge de Lima e Marival Santana, amigos da capital, companheiros da saga

de Uberlândia; a Dona Ione, amiga atenciosa, com suas leituras criteriosas e revisão paciente; o

Túlio Carísio, lutador incansável pela educação,; os professores Vicente e Carlão, camaradas

de ideais vários; e os professores Arlindo, Simão Pedro e Marcelo Bedaque, em Patrocínio,

com os diálogos sempre edificantes. Em todos, contei com os essenciais incentivos e a

confiança.

Finalmente, a base de tudo está no meio familiar. A Patrícia Kelly, no apoio nas horas

difíceis, oferecendo sempre a tranqüilidade necessária, bem como a Suely Ferreira, no apoio

constante. Foram primordiais.

Como todas as esferas da vida, a caminhada intelectual é mesmo uma construção

(bem) coletiva.
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“Sou um homem de causas. Vivi sempre pregando e


lutando, como um cruzado, pelas causas que me
comovem. Elas são muitas, demais: a salvação dos
índios, a escolarização das crianças, a reforma
agrária, o socialismo em liberdade, a universidade
necessária. Na verdade, somei mais fracassos que
vitórias em minhas lutas, mas isto não importa.
Horrível seria ter ficado ao lado dos que nos
venceram nessas batalhas”.
Darcy Ribeiro,
um pajé da brasilidade, em
“Fala aos Moços”, seu canto do cisne.
Faria a ‘longa viagem’ dias depois.

“O respeito por meio das virtudes se consegue e nelas


se sustenta. Nunca nasce do susto e do temor, que aos
povos metem injúrias, calúnias e carrancas.”
Tomás Antônio Gonzaga
em Cartas Chilenas
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RESUMO
No início do Século XX, surgiu na cidade do Sacramento, pequena cidade do Alto
Paranaíba mineiro, uma escola singular e pioneira, embasada nos princípios do espiritismo
francês, o Collégio Allan Kardec, fundado e dirigido por um professor que se tornou um ícone
dessa doutrina filosófica e religiosa bem disseminada na cultura e na identidade brasileira,
Eurípedes Barsanulfo. Esta dissertação tem como objetivo central o resgate da memória desse
educandário no tempo vivido por Barsanulfo, da criação, em 1907, até a sua morte, em 1918,
analisando em que medida as representações coletivas e o imaginário da doutrina professada e
estampada na nomenclatura da instituição eram efetivamente implantadas e vivenciadas em seu
cotidiano. Nosso eixo teórico é o referencial contido na linha de pesquisa história das
instituições escolares, originada metodologicamente na importante ruptura realizada nas
reflexões historiográficas pelos estudiosos franceses da escola dos annales com as formas
tradicionais de abordagem dessa ciência, ampliando notadamente seus objetos e fontes de
investigação. A história não é fragmentária, mas totalizante, englobando a sociedade, a
economia, a cultura, a política, a educação, enfim, todas as esferas da existência humana inter-
relacionadas. Nessa perspectiva, permeamos, neste trabalho, a busca das origens históricas,
filosóficas e conceituais da doutrina espírita, bem como a trajetória de Allan Kardec,
pseudônimo adotado à época da conversão à doutrina do estudo do mundo dos mortos por
Hippolyte Léon-Denizard Rivail, eminente pedagogo com um currículo de serviços engajados
na melhoria do ensino e da educação de seu país. Este o foco do primeiro capítulo que pontua,
ainda, os alicerces contidos nos mestres antecessores de Kardec na pedagogia espírita ,
Comenius, Rousseau e Pestalozzi. No segundo capítulo, mapeamos, numa perspectiva histórica
e sociológica a chegada do espiritismo ao Brasil e sua notável disseminação que mesclou-se
mesmo à identidade nacional e às representações populares. No terceiro capítulo, tratamos da
história da educação do país enfatizando as transformações econômicas e sociais brasileiras na
passagem do Império para a República, momento em que ocorreu uma gradativa transição de
uma sociedade agrária e exportadora para urbana e industrial, fenômeno traduzido num
entusiasmo pela expansão do ensino e da educação, tendência verificada pelo discurso e pela
ação de diversos atores sociais, como os intelectuais engajados na formação de um certo
pensamento nacional. Finalmente, no quarto e no quinto capítulo, enveredamos pela busca de
relevantes aspectos da história regional e da história da educação no Triângulo Mineiro,
abordando as raízes de Sacramento e da região do Brasil Central, seu desenvolvimento social e
econômico; as várias faces de atuação do cidadão e ativista religioso Eurípedes Barsanulfo; as
etapas do processo de escolarização da cidade; e a constituição, desenvolvimento, cotidiano
escolar e práticas pedagógicas do Collégio Allan Kardec, precursor da chamada pedagogia
espírita no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Espiritismo, Eurípedes Barsanulfo, Colégio Allan Kardec, Alto


Paranaíba, Triângulo Mineiro, Sacramento – MG, Instituições Escolares.
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ABSTRACT
In the beginning of the XX century it emerged in the city of Sacramento, a little city of
Alto Paranaíba mineiro a singular and pioneer school, baseded int the French spiritualism
principles, Collégio Allan Kardec, which was founded and directed by a teacher that became a
symbol of this philosophical and religious doctrine very disseminated in the Brazilian culture
and identity, Eurípedes Barsanulfo. This dissertation has as principle objective the ransom of
the memory of this school during the period thas was lived by Barsanulfo, since the creation in
1.907 until Barsanulfo`s death, in 1.918, analysing in what dimension the imaginary and the
collective representations of the doctrine that was professed and written in the institution`s
nomenclature were effectivetly implanted and lived in its quotidian. Our theoritical base is the
reference in the line of search history of the scholastic institutions, wich methodology was
originated in the important rupture which was realizeted in the theoretical`s reflections by
studious French of New History with the traditional manner of aproach of this sciense, this
studious amplified the notability of their objects and sources of investigation. History isn`t
broken, but it is integral; it unites the society, the economy, the culture, the policy, the
education, at last, all the sphires of the human existence correlated. In this perspective, we
investigate in this research the inquiry of the historical, philosophical and conceptual origens of
the spiritualistic doctrine, as well as the trajectory of Allan Kardec, which is a pseudonym that
was adopted at the period of the conversion to the doctrine of the study of the dead`s world by
Hippolyte Léon-Denizard Rivail, who was as important educator with a curriculum of services
engaged in the improvement of the teaching and of education of his country. This is the first
chapter that focuses on pointing the base found of the masters that preced Kardec in the
spiritualistic pedagogy, Comenius, Rousseau and Pestalozzi. In the second chapter, we
delineate in a historical and sociological perspective arrival of the spiritist in Brazil and its
notable dissemination that itself united to national identity and a popular representations. In the
third chapter, we will stdy the history of the country`s education and focalize on the
economical and social transformations in Brazil during the transition of the Monarchy to the
Republic, wich was amoment in which occured a gradual change from as agrarian and
exporting society to an urban and industrial one. This was a phenomenon that was represented
by na enthusiasm for the expansion of the instruction and the education, which was a tendency
by the discourse and action of the various social actors, as the intellectual involved in the
formatiton of a determined national spirit. Finally, in the fourth and fifth chapters we walk for
the investigation of important aspects of the regional history and education`s history in
Triângulo Mineiro, boarding the origens of Sacramento and central region of Brazil, its social
and economical developments, the carious faces of the actuation of the citizen and religious
militant Eurípedes Barsanulfo; the stages of the implantation of schools at the city; and the
construction, development, schoolar quotidian and pedagogical practices of Collégio Allan
Kardec, thas was the pioneer of the denominated spiritualistic pedagogy.

KEY WORDS: Spiritualism, Eurípedes Barsanulfo, Colégio Allan Kardec, Alto Paranaíba,
Triângulo Mineiro, Sacramento – MG, Instituições Escolares.
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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 23

A – À guisa de prefácio........................................................................................................ 23
B - Reflexões teóricas e metodológicas – História e
historiografia das instituições escolares............................................................................... 31
B.1 – Refletindo acerca da nova história e suas abordagens................................................ 31
B.2 – Refletindo sobre a historiografia das instituições escolares....................................... 37
B.3 – Definindo a tipologia das fontes................................................................................ 40

CAPÍTULO I – GÊNESE DO ESPIRITISMO E ALLAN KARDEC.......................... 45

1 - Definições, filosofia e história do espiritismo................................................................ 45


1.1 - Era de transformações......................................................................................... 45
1.2 - As mesas girantes em Paris................................................................................. 49
1.3 - O druida celta...................................................................................................... 51
1.4 - Fundamentos da filosofia espírita....................................................................... 53
2 - De Denizard Rivail a Allan Kardec – uma análise biográfica........................................ 58
2.1 - O discípulo de Pestalozzi – Hippolyte-Léon Denizard Rivail............................ 58
2.2 - O codificador da doutrina dos espíritos – Allan Kardec..................................... 62
3 - Filosofia da pedagogia espírita – os precursores............................................................ 67
3.1 - Johann Amos Comenius..................................................................................... 69
3.2 - Jean-Jacques Rousseau....................................................................................... 74
3.3 - Johann Heinrich Pestalozzi................................................................................. 78

CAPÍTULO II – APROPRIAÇÃO E DISSEMINAÇÃO DO


ESPIRITISMO NO BRASIL............................................................................................ 85

1 - Trajetória histórica do espiritismo no Brasil.................................................................. 88


2 - Brasil, terra do sincretismo religioso – uma leitura sociológica..................................... 101

CAPÍTULO III – A EDUCAÇÃO BRASILEIRA ENTRE O IMPÉRIO


E A PRIMEIRA REPÚBLICA.......................................................................................................... 115

1 - Liberalismo e educação no Brasil – do Império ao advento republicano...................... 116


1.1 - A modernidade ocidental burguesa............................................................................. 118
2 - Pedagogia e educação nos quadros da República dos coronéis..................................... 122
2.1 - Você sabe com quem está falando?................................................................... 122
2.2 - Brasil, a modernidade tardia.............................................................................. 126
2.3 - “O otimismo pedagógico e o entusiasmo pela educação”................................. 128
3 - “Essa não é a República de nossos sonhos” - o Brasil à época de Barsanulfo.............. 134
20

CAPÍTULO IV – SACRAMENTO, CIDADE ERGUIDA SOB A ÉGIDE


DA RELIGIOSIDADE...................................................................................................... 143

1 – As muitas histórias das terras de Maria 143


ausente.............................................................
1.1 - As raízes .......................................................................................................... 146
1.2 - As terras de Maria ausente.................................................................................. 150
1.3 - O cônego e o legado: notas sobre o fundador de Sacramento............................ 154
1.4 - Os trilhos da Mogiana e os bondes caipiras de Sacramento............................... 156

CAPÍTULO V – EURÍPEDES BARSANULPHO E O


COLLÉGIO ALLAN KARDEC....................................................................................... 167

1 - Eurípedes Barsanulfo: a saga do missionário................................................................. 167


1.1 - A mocidade......................................................................................................... 167
1.2 - O ativista Político............................................................................................... 170
1.3 - O médium - ou, nos passos de “tio Sinhô” Mariano........................................... 175
2 - O Collégio Allan Kardec (1907/1918)........................................................................... 189
2.1 - História da educação na Sacramento
do limiar do século XX...................................................................................... 189
2.2 - Do Lyceu ao educandário espírita, a ruptura...................................................... 196
2.3 - Uma instituição pestalozziana no interior das Gerais......................................... 202
2.3.1 - A estrutura curricular.............................................................................. 202
2.3.2 - O estudo dos astros................................................................................. 204
2.3.3 - O cotidiano escolar................................................................................. 208
2.3.4 - Em conexão com o espiritismo............................................................... 212
2.3.5 - A educação do físico e da arte................................................................ 213
2.3.6 - O mestre na visão dos alunos.................................................................. 214
2.3.7 - Os exames finais..................................................................................... 217
2.4 - Decifrando códigos do passado: as vozes da arquitetura.................................... 218
2.4.1 - As linhas e o tempo................................................................................. 223

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O legado do educador espírita.............................................................................................. 229

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................. 235


21

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Vapore Alacrita, navio que trazia imigrantes italianos 141


Figura 2: Pioneiro bonde rural, com Eurípedes Barsanulfo no vagão 141
Figura 3: Meninos da banda do maestro Simplício, início do século XX 141
Figura 4: Igreja de N. Sra. do Desterro em Desemboque 149
Figura 5: Barão de Rifaina, político do Império 149
Figura 6: Caixeiros viajantes preparando-se para uma viagem 149
Figura 7: Coronel José Affonso, destacado chefe político sacramentano 149
Figura 8: Ponte sobre o rio Grande, divisa entre São Paulo e Minas 153
Figura 9: Carros de boi uma rua de Sacramento dos tempos de Eurípedes 153
Figura 10: Balsa no antigo Porto de Desemboque, no rio Grande 153
Figura 11: Casa Mogico, loja do Sr. Hermógenes, pai de Eurípedes 153
Figura 12: Usina Cajuru, prédio edificado por pedreiros portugueses 165
Figura 13: Turbina alemã da Usina Cajuru 165
Figura 14: Estação da Jaguara, primeira da Mogiana em Minas 165
Figura 15: Propaganda da Müller & C., empresa de peças ferroviárias 165
Figura 16: Estação inicial da linha de bondes, em Sacramento 165
Figura 17: Escola feminina do início do século XX 195
Figura 18: Laurindo Vieira (?/1873), primeiro professor de Sacramento 195
Figura 19: Banca de uma escola rural com os irmãos de Barsanulfo 195
Figura 20: Professor João Derwil Miranda com a neta 195
Figura 21: Prédio onde funcionou o Colégio Miranda 201
Figura 22: Grupo de alunos da banda do Colégio Miranda 201
Figura 23: Prédio onde funcionou o Lyceu Sacramentano 201
Figura 24: Grupo de professores do Lyceu Sacramentano 201
Figura 25: Escola rural mista da estação da Jaguara 201
Figura 26: Professores e alunos do Collégio Allan Kardec em 1913 211
Figura 27: Professora Corina Novelino 211
Figura 28: Alunos do Collégio Allan Kardec em aula de Educação Física 211
Figura 29: Escritora Carolina Maria de Jesus, aluna do Allan Kardec 211
Figura 30: Carteira do Collégio Allan Kardec 221
Figura 31: Vista atual do salão superior do Collégio Allan Kardec 221
Figura 32: Pátio do Collégio Allan Kardec 221
Figura 33: Cômodo construído com materiais do quarto de Barsanulfo 221
Figura 34: Eurípedes em dois momentos – foto montagem 221
Figura 35: Primeiro centro espírita do Triângulo Mineiro, o Fé e Amor 222
Figura 36: Herma em homenagem a Eurípedes Barsanulfo 222
Figura 37: Túmulo de Eurípedes Barsanulfo 222
Figura 38: Atual Escola Eurípedes Barsanulfo 222
Figura 39: Casa Assistencial Bezerra de Menezes, em Santa Maria 222
Figuras 40 e 41: Fachada do Collégio Allan Kardec em dois tempos históricos 223
Figura 42: Planta do Collégio Allan Kardec 225
Figura 43: Planta da cidade de Sacramento do fim dos anos 1910. 226
Figuras 44 a 46: Detalhes da fachada do Collégio Allan Karcec em três ângulos 227
Figuras 47 a 51: Prédio do Collégio Allan Kardec, com detalhes externos e internos 227
Figuras 52 a 54: Detalhes da fachada do Collégio Allan Kardec 228
22
23

INTRODUÇÃO

A – À Guisa de Prefácio

No dia em que a seleção brasileira erguia o título do pentacampeonato do grande

esporte nacional, falecia em Uberaba o maior ícone do espiritismo do país, o médium Chico

Xavier, homem simples sem formação acadêmica, funcionário público aposentado que

escrevera mais de 400 livros, algo em torno de 5 milhões de exemplares; só a obra “Nosso

Lar”, atribuída ao espírito de André Luís, atingira mais de 50 edições.

Indubitavelmente, a figura irretocável do espírita da pacata Pedro Leopoldo, radicado

nas terras do Triângulo Mineiro, contribuiu de forma decisiva e contundente para a difusão da

doutrina inaugurada no século XIX pelo francês Allan Kardec, transformando o Brasil na

nação com o maior número de adeptos dessa corrente religiosa do mundo.

Se a figura de Chico é inconteste, todavia outras faces do kardecismo não são notórias,

merecendo referências e aprofundamentos oportunos.

Antes de consubstanciar os métodos e os postulados de sua ciência, Allan Kardec,

pseudônimo de Hippolyte-Léon Denizard Rivail, fora um destacado pedagogo discípulo de

Pestallozi, autor de diversos livros didáticos e diretor de instituições de ensino. No conjunto

das obras ditas kardecistas, obtidas por intermédio da psicografia de entidades diversas, como
24

Emmanuel, Bezerra de Menezes, o já citado André Luís, entre outros, estão contidas teorias

pedagógicas em estreita conexão com pensadores como Platão, Comenius, Rousseau e

Pestalozzi, citando apenas alguns exemplos.1

Também na região do Alto Paranaíba e Triângulo, antes de Xavier, o espiritismo surgira

no início do século XX, tendo na figura emblemática de Eurípedes Barsanulfo um de seus mais

célebres fundadores e, seguramente, um pilar para a disseminação da doutrina no interior do

Brasil Central.

Finalmente, destacando o foco de nossa de pesquisa e dissertação efetivada junto ao

Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia, Barsanulfo

construíra em sua cidade natal, Sacramento, a primeira escola de orientação espírita do Brasil –

e talvez do mundo - o Collégio Allan Kardec, fundado em 1907 e por ele dirigido até sua morte

em 1918.

Objetivando contribuir com o mapeamento da história da educação na região, ao

mesmo tempo em que debruçamos sobre um tema que se inscreve mesmo nos quadros da

própria multiplicidade da cultura e da identidade nacional - o espiritismo -, o presente trabalho

objetivou o levantamento, o resgate da memória e a análise da trajetória desse educandário

paradigmático e pioneiro, delimitando-o, temporalmente, à época de Barsanulfo – nos tempos

da chamada Primeira República.

Em que medida os princípios educacionais do pedagogo francês e de seu mestre suíço,

Johann Heinrich Pestalozzi, foram implementados em Sacramento? E, afinal, quais são os

pressupostos da chamada pedagogia espírita? É pertinente classificarmos como espírita o

educandário conduzido por Barsanulfo? Numa época notadamente balizada pela moral

católica, ocorreu aceitação, houve inserção social?

1
INCONTRI, Dora. Pedagogia Espírita – um projeto brasileiro e suas raízes. Bragança Paulista: Editora
Comenius, 2004; INCONTRI, Dora. A Educação Segundo o Espiritismo. Bragança Paulista: Editora Comenius,
2003; PIRES, Herculano. Pedagogia Espírita.10.ed. São Paulo: Editora Paidéia, 2004. LOBO, Ney. Escola que
educa. Brasília: Editora Auta de Souza, 2003; COLOMBO, Cleusa Beraldi. Idéias Sociais Espíritas. Bragança
Paulista: Editora Comenius; Salvador: IDEBA, 1998
25

São esses os pontos essenciais que nortearam esta dissertação e que serão respondidos

no decorrer do trabalho em que pontuamos, também, a estrutura pedagógica do colégio, seu

cotidiano escolar e o perfil do professor Eurípedes Barsanulfo, um homem de múltiplas

vocações e atribuições.

Comparando o Collégio Allan Kardec com os limitados padrões pedagógicos do

período – a rigor, o caráter das escolas do país era basicamente propedêutico, focalizando, na

maioria das vezes, o acesso ao curso superior com o valorizado diploma –, sustentamos que

havia na escola espírita de Sacramento uma preocupação efetivamente humanista e

educacional.

Respondendo a esse conjunto de indagações ao mesmo tempo em que ampliamos o

leque de estudos em temáticas afins e correlatas, nosso trabalho é estruturado em cinco

capítulos, além das pertinentes reflexões teóricas e metodológicas contidas na segunda parte

desta introdução.

Conceitualmente, os métodos balizaram-se pelas discussões oferecidas pela linha de

pesquisa história e historiografia das instituições escolares, cujo crescimento nos estudos

acadêmicos vem na esteira das formulações da história nova francesa – tendência acadêmica

que ampliou sobremaneira as visões, os enfoques e as abordagens dos historiadores a partir dos

anos 1930, significando um notável salto qualitativo em relação à história factual difundida

pelo positivismo do século retrasado.

No primeiro capítulo, “Gênese do Espiritismo e Allan Kardec”, são apresentados

assuntos que perpassam os pilares do espiritismo francês surgido no século XIX, cujo ponto de

partida foi a tentativa de explicação empírica e científica do fenômeno das populares “mesas

girantes” e a extensão do estudo racional ao entendimento do mundo dos mortos.

Nessa parte, pontuamos as (1) definições, filosofia e história do espiritismo, doutrina

constituída num período de secularização da sociedade e a consolidação da ordem burguesa

capitalista; e tanto o evolucionismo de Spencer, fundamentado no desenvolvimento das


26

“Luzes” do século XVIII, quanto o positivismo de Comte, com os referenciais de “progresso” e

“cientificismo”, constituem as categorias essenciais para o entendimento daquele agitado e, ao

mesmo tempo, profícuo período histórico.

Nessa época, o homem (2) Hippolyte-Léon Denizard Rivail, cujo percurso biográfico

apresentamos, educador que fez de sua trajetória um emblema para o movimento espírita.

Arrematando, traçamos as (3) raízes da denominada educação espírita, cujos princípios e

baluartes são estruturados em (3.1) Jan Comenius, pastor protestante boêmio, um dos

fundadores da educação moderna; (3.2) o incansável e contestador Jean-Jacques Rousseau,

chamado de “galileu” da pedagogia; (3.3) Johann Pestallozi, mestre do jovem Rivail.

Vale assinalar que, atualmente, a doutrina espírita é mais conhecida, estudada e

difundida em terras brasileiras do que na própria França de Kardec, ganhando mesmo ares de

religiosidade no Brasil. Como ocorreu seu percurso histórico? Quais as categorias sociológicas

do pensamento social brasileiro que explicam essa disseminação?

No segundo capítulo, respondendo a essas interrogações, versamos sobre a

“Apropriação e Disseminação do Espiritismo no Brasil”, pautando discussões sobre (1) a

trajetória histórica dessa doutrina no país e a (2) religiosidade do brasileiro à luz dos autores

clássicos do pensamento nacional, estudiosos como Roger Bastide e suas teorias sobre o

sincretismo religioso e as influências africanas; o célebre e controverso Gilberto Freyre, com as

interações e intimidades entre a casa grande e a senzala no amalgamento cultural do brasileiro;

Sérgio Buarque de Holanda e a formação do espírito cordial da brasilidade; e, finalmente,

Darcy Ribeiro, ressaltando o indigenismo na formação do país.

No terceiro capítulo, na contextualização da época vivida por Eurípedes Barsanulfo e

nas diversas visões acerca do processo educacional, “A Educação Brasileira entre o Império e a

Primeira República”, efetuamos algumas notas da história educacional no Brasil, discutindo o

(1) liberalismo e a educação no Brasil, no período histórico assinalado, sustentando a idéia de

que o polêmico pensamento liberal foi fundamental para a difusão tanto do ideal de educação
27

popular na Europa; na articulação teórica entre indivíduo x sociedade e educação para a

cidadania; quanto na formulação de importantes pensadores sociais brasileiros, como Carneiro

Leão e José Veríssimo. Essas elaborações decorreram concomitantemente às próprias reflexões

sobre a brasilidade e a construção de nossa identidade nacional.

São destacadas, também, a (2) pedagogia e a educação nos quadros da República dos

coronéis, época tumultuada, em que sobressaíram, por um lado, a força das oligarquias do café

e, por outro, a transição de uma sociedade agrário-exportadora para uma urbano-industrial; e na

esteira de uma certa modernidade tardia, havia movimentos imbuídos por objetivos variados e

díspares pela “desanalfabetização” do povo brasileiro, bem definidos pelas categorias

expressas pelo historiador Jorge Nagle, “o otimismo pedagógico” e o “entusiasmo pela

educação”.

A configuração da denominada República Velha e as frustrações suscitadas diante de

suas promessas não cumpridas são alinhadas no item (3) “Essa não é a República de nossos

sonhos” – O Brasil à época de Barsanulfo. Com base nas concepções apresentadas pelos

estudiosos dos “Annalles” franceses e a história total, abarcamos aspectos referentes à política,

a economia, a sociedade, a cultura, visando compreender faces relevantes do país no limiar do

século XX.

No quarto capítulo, “Sacramento, cidade erguida sob a égide da religiosidade”,

resgatamos várias nuanças da história sacramentana, uma pequena, mas emergente cidade

embalada pelas exportações do café, que experimentou a chegada da modernidade à época

enfocada neste trabalho. O município natal de Eurípedes Barasnulfo, originalmente, uma vila

de Desemboque – primeiro núcleo de ocupação do Brasil Central – se ergueu em torno de um

oratório construído às margens do ribeirão Borá. Todavia, com uma influência consistente de

políticos locais, a histórica estrada de ferro da Mogiana teve seu traçado em direção a Minas

Gerais incluído em Sacramento - que chegou a contar com quatro estações em seu território -,

impulsionando um desenvolvimento notável, com a instalação de luz elétrica e usina geradora


28

de energia, linhas de telefone e a singular linha de bondes rurais, ligando o centro da cidade à

linha da Mogiana. E Barsanulfo, como vereador por dois mandatos, um importante

protagonista dessas transformações.

Respondendo às principais interrogações propostas para a execução desta dissertação,

sobre as correlações entre espiritismo e o empreendimento do Collégio Allan Kardec,

destacamos (1) a saga de Eurípedes Barsanulfo, numa abordagem biográfica, que resgata sua

(1.1) mocidade; a inserção na vida sacramentana como (1.2) um ativista político e (1.3) a

conversão ao espiritismo e as atividades, que o projetaram como um conhecido médium da

doutrina.

Finalmente, (2) as abordagens correspondentes à memória do Collégio Allan Kardec, na

fase do educandário dirigida por Barsanulfo, entre 1907 a 1918, desde as primeiras

configurações da (2.1) educação e as escolas de Sacramento do período; a (2.2) ruptura e as

cisões do Lyceu Sacramentano por conta da adesão do destacado professor ao espiritismo;

(2.3) as múltiplas dimensões do educandário em foco, assentado em bases espíritas e

pestalozzianas; e (2.4) a interpretação de determinados aspectos culturais e o clareamento de

certas dúvidas referentes ao tempo da construção do colégio pela análise de suas características

arquitetônicas.

Como fontes que sustentaram a concretização desta pesquisa - cuja discussão teórica e

detalhamento são efetuados no próximo item -, recorremos a um variado acervo bibliográfico

sobre os temas pertinentes e o resgate de fontes primárias, como documentos diversos da

Câmara Municipal, jornais de época, cartas; depoimentos com diferentes personagens sociais

vinculados à história de Sacramento e do colégio espírita; leitura da arquitetura da escola e os

exames de documentos escolares como diários, boletins, cadernos, atas, entre outros.
29

Eurípedes Barsanulfo, um homem de seu tempo

Clareando a temática desta dissertação, destacamos, preliminarmente, certos aspectos

da vida de Eurípedes Barsanulfo e a formação do singular Collégio Allan Kardec.

Nascido em 1880, na então denominada “Cidade do Sacramento”, no Alto do

Paranaíba, numa família humilde de tradição católica, que prosperou pelo comércio,2 realizou

seus estudos secundários no pioneiro Colégio Miranda, fundado e dirigido - a convite de um

chefe político local - por João Derwil, professor natural de Mariana, MG, que tivera sua

formação numa das mais destacadas escolas mineiras de todos os tempos, o “Caraça”. Foi sob

a orientação do professor Derwil no Miranda que o jovem Barsanulfo obteve a preciosa

formação, permanecendo ali dos 9 aos 21 anos.

Em fins de 1901, quando Derwil se transferiria para Uberaba, convocou o pai de

Eurípedes, o Sr. Hermógenes Ernesto – conhecido como “Seu Mogico” -, destacando-lhe as

qualidades do jovem e orientando-o a buscar outras metas. No ano seguinte, seguindo as

indicações do velho professor, já no Rio de Janeiro, obtivera o ingresso no preparatório para o

curso de medicina da Marinha. De volta a Sacramento, visando à preparação da mudança

definitiva para a capital da República, um fato inusitado mudaria seu destino: sua mãe,

sensibilizada pela partida do filho, tivera uma crise de saúde. Quando ela recobrou a lucidez, o

rapaz desfizera as malas, desistindo do curso – mas exerceria, posteriormente, as atividades de

cura, fato que lhe renderia um processo judicial.

Em 1902, no entanto, Eurípedes Barsanulfo abraçaria outra vocação, marca principal de

sua vida: a educação. Participou da fundação do Lyceu Sacramentano, onde ministrava aulas

de Língua Portuguesa e difundia valores morais e intelectuais; criou, por exemplo, com seus

alunos, a “Sociedade dos Amiguinhos dos Pobres”, destinada a promover leilões semanais com

prendas doadas, cuja renda era destinada à filantropia.

2
Sobre a vida e a obra de Barsanulfo, duas obras merecem destaque: NOVELINO, Corina. Eurípedes – o
Homem e a Missão. 16.ed. Araras: IDE, 2004; CUNHA, Langerton Neves & COSTA, Suely Braz, Eurípedes
Barsanulfo, o Educador. Uberaba: Editora Vitória, 1996.
30

Porém o católico devoto Eurípedes Barsanulfo, então presidente as Sociedade São

Vicente de Paulo, descobriu os fenômenos mediúnicos por intermédio de um tio, o “Sinhô”

Mariano, num centro da Fazenda Santa Maria, pequeno vilarejo rural, hoje, na divisa entre os

municípios de Sacramento e Conquista. Primeiro, a leitura de um livro de León Denis, “Depois

da Morte”; depois, em reunião espírita, recebeu mensagens atribuídas a Bezerra de Menezes e

São Vicente de Paulo; episódios que abalaram as convicções de Barsanulfo, então, com 22

anos, e valeram sua conversão ao espiritismo.

Naturalmente, levando em conta os rígidos moldes religiosos e culturais da época, tal

mudança provocou impactos nos meios sociais de Sacramento, incompreensões, o afastamento

dos colegas nas atividades do Liceu Sacramentano e o cancelamento de matrículas da escola.

Entretanto, determinado e convicto na nova seara, foi a 31 de janeiro de 1907, com 27

anos de idade, que Eurípedes Barsanulfo inaugurou o pioneiro Collégio Allan Kardec,

instituição que cresceria notadamente, marcando época, movido, certamente, por sua estatura

moral e intelectual, tornando-se referência por toda a região e atraindo estudantes de diferentes

cidades – dos interiores de Minas Gerais, São Paulo, Goiás e Mato Grosso. Além das

disciplinas tradicionais, eram ministradas ali as matérias de Astronomia com a utilização de

uma telescópio importado da França; aulas práticas de Botânica, Zoologia e, ainda, os estudos

do “Evangelho Segundo o Espiritismo”.

Além de educador, o personagem em tela teve destaque como colaborador de jornais da

cidade, promotor de peças teatrais, proprietário de farmácia, vereador, ocupando o cargo de

Secretário da Câmara, e médico prático. Faleceu, em 1918, vítima da gripe espanhola, com 38

anos e em plena atividade.


31

B – Reflexões Teóricas e Metodológicas – História e Historiografia das Instituições


Escolares
B.1 - Refletindo acerca da nova historiografia e seus métodos

Sacramento é um município situado no sudeste de Minas Gerais, numa região outrora

batizada pelos pioneiros bandeirantes paulistas que adentraram as Gerais como Sertão da

Farinha Podre – o atual Triângulo Mineiro. À época de Eurípedes Barsanulfo (limiar do século

XX), não contava com mais do que dez mil almas. Um arraial dentre milhares espalhados neste

grande Brasil, cuja população era, predominantemente, rural, reflexo de um país então com

uma economia agroexportadora situado na periferia do capitalismo mundial.

Qual é a validade de se desenvolver num programa de mestrado, numa universidade

mantida com recursos públicos, estudos e análises de um assunto aparentemente tão distante no

espaço e no tempo? E, ainda mais, em se tratando do estudo da corrente professada por

Barsanulfo, um tanto quanto irregular e difusa, o espiritismo, que rompe com as estruturas

religiosas tradicionais caras às ciências da modernidade? Quais são as ferramentas teóricas

mais pertinentes, não só para o estudo em questão, mas, sobretudo, com o intento de contribuir

para o mapeamento das idéias e debates em torno de questões afins e similares? Refletindo e

respondendo a essas perguntas, que nortearam metodologicamente o desenvolvimento desta

dissertação, apresentamos essas discussões teóricas.

A historiografia tradicional esteve imbricada sobremaneira com o positivismo de

Augusto Comte e de Spencer do século XIX em todas as suas dimensões e postulados

conceituais. Seduzido pelos avanços da física newtoniana e do evolucionismo darwinista, os

positivistas buscaram estender às ciências da sociedade o rigor analítico daquilo que eles

consideravam como conhecimento válido, o empirismo. Dotados de uma visão eurocêntrica,

priorizavam, na produção científica, o estabelecimento de leis gerais que pudessem explicar

tanto a organização social quanto o desenvolvimento histórico humano. Em seus estudos do

campo da historiografia, os enfoques se situavam na estrutura política, fatos, datas e os


32

grandes protagonistas eram ressaltados; e as fontes por excelência válidas e enfatizadas seriam

os documentos escritos.

Nos dizeres do célebre historiador francês do século XIX, Michelet, um dos pioneiros

na crítica desse modo de abordagem e na proposição de um estudo plural, “A história (...)

parecia-me ainda fraca em seus dois métodos: muito pouco material (...) falando de leis, de atos

políticos, não de idéias e costumes (...)”.3

Sem dúvidas, essa historiografia tradicional com propósitos totalizantes sacrificou a

história como ciência, sufocou a criatividade e a imaginação, tornando esse campo do saber um

tanto quanto árido.

A rigor, duas grandes rupturas com o tradicionalismo processaram-se ao longo do

século XX: na França do entreguerras, surgiu a denominada nova história, a partir da edição da

revista dos Annalles; e, na Inglaterra, com o rompimento do “marxismo vulgar”, em que

célebres historiadores, como Perry Anderson e Eric Hobsbawn, entre outros, se afastaram do

Partido Comunista em meados dos anos 1950.4

Nossos marcos teóricos referenciais são justamente a abordagem e as reflexões

desencadeadas pela historiografia francesa, teorias e métodos que vêm influenciando pesquisas

em diversos centros acadêmicos do mundo, oferecendo um novo vigor aos estudos históricos,

seja na política, na economia, ou no próprio marxismo; na antropologia histórica, arqueologia,

religiões, mentalidades, imaginário; literatura, arte, cinema;5 enfim, como diria Janine Ribeiro,6

“.... saber nos vários sentidos da palavra, de conhecimento e tempero, da ciência e cheiro....

[refazendo] a história enquanto sabor – que se comunica aos cinco ou mais sentidos”.

3
LE GOFF & NORA, Pierre. História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1976.
4
GATTI JÚNIOR, Décio. A história das instituições educacionais, inovações paradigmáticas e temáticas. In:
ARAÚJO, José Carlos & GATTI JÚNIOR, Décio (Orgs). Novos temas em história da educação brasileira.
Campinas: editores associados, Uberlândia: EDUFU, 2002, PP.3-24.
5
LE GOFF, Jacques & NORA, Pierre. História: novas abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora,
1976.
6
GINZBURG, Carlos. O queijo e os vermes. 3.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. [ Apresentação da
edição brasileira]
33

Pautada na interdisciplinaridade, bem traduzida nos vários compostos - história

sociológica, demografia histórica, antropologia histórica, entre outras - a história nova surge na

França impulsionada pela renovação da geografia em sua vertente “humana” 7 e sua influência

nos mestres da historiografia, como Lucien Febvre, Marc Bloch e Fernand Braudel, fundadores

da revista “Annalles d’histoire économique et sociale”, lançada em Estrasburgo em 1929.

Não foi casual esse nascimento num ano de profunda crise do capitalismo mundial

decorrente da quebra da bolsa. A primeira luta travada foi contra a história política, tradição

oriunda do século XIX, embasada numa história-narrativa factual, num teatro de aparências

que mascarava os verdadeiros propósitos dos atores em conflito. Em 1969, Fernand Braudel e

Georges Friedann confiam os Annalles a uma nova equipe, com Marc ferro, Jacques Le Goff,

Emmanuel Le Roy Ladurie, entre outros expoentes da nova geração de talentosos historiadores

franceses.

Sucesso de público com 130.000 exemplares vendidos entre novembro de 1975 a abril

de 1978, um dos pioneiros na elaboração de uma história regional e de uma micro-história foi

Emmanuel Le Roy Ladurie, historiador dessa tradição, com o seu Montaillou, povoado

occitânico, 1294-1324,8 obra-prima da antropologia histórica, em que analisa uma minúscula e,

aparentemente, insignificante aldeia medieval do século XIV, varrida pela Inquisição. Suas

análises, construídas por meio de uma narrativa instigante, atravessa por largos aspectos do

cotidiano e da vida privada da comunidade, desde a libido do padre Clergue e os vários jogos

de sedução das mulheres, até as concepções de vida e morte daqueles simples camponeses.

Longe de ser uma simples descrição de aspectos pouco relevantes ou comportamentos

corriqueiros, Le Roy apresenta um rico acervo acerca da vida social cotidiana num momento

de crise aguda da Igreja Católica (por sessenta e nove anos, entre 1309 e 1378, o papado

instalara-se em Avignon, na França, com Clemente V), da própria desagregação do modo de

7
LE GOFF, Jacques. História Nova. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pp. 26-42.
8
LADURIE, Emmanuel de Roy. Montaillou, povoado occitânico – 1294-1324. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
34

produção feudal e da emergência da modernidade ocidental. Dentre as diversas faces e

reflexões que a narrativa oferece, numa perspectiva cara ao nosso tema, a descrição do

imaginário francês medieval acerca do além-túmulo e da vida n’outro mundo – em visões mais

próximas a Kardec do século XIX e seus pressupostos de mediunidade e contato com os

mortos, do que o pensamento católico então hegemônico.

Nessa perspectiva historiográfica pela qual enveredamos, vale a menção, ainda, do

alemão Norbert Elias e do italiano Carlo Ginzburg.

Elias foi um intelectual múltiplo, cujas obras transitam com riqueza metodológica e

rigor analítico pela sociologia, antropologia, história, literatura e psicanálise. Seus livros, como

o Processo Civilizador, entre outros, exerceram notável influência e sedução sobre os

historiadores franceses, dada a amplitude dos temas, referenciais e análises interdisciplinares.

Na Itália, um grupo de historiadores, cujo maior expoente fora Ginzburg, lançou a

concepção de “história com lupas”, próxima da antropologia, como a nova história, e que

privilegiou mais particularmente os temas da vida privada, do pessoal e do vivido. O

equivalente italiano da revista dos Annalles seria o Quaderni Storici.9

Quando focamos nossos esforços acadêmicos numa instituição escolar de Minas do

início do século passado, não pretendemos fragmentar a história (como diria George Friedman,

articular uma “história em migalhas”). Não é o micro desarticulado do todo, num espaço vazio

e desordenado, muito pelo contrário, o que desejamos é justamente compreender com mais

clareza o macro (comparando com a biologia, numa intrincada e complexa formação genética

humana, a constituição do indivíduo, o todo, está inscrito em cada DNA).

Temos uma escola na antiga “Vila de Nossa Senhora do Patrocínio do Santíssimo

Sacramento”, inserida num período conturbado e difuso da história brasileira, a “República

Velha”, com os esforços de escolarização e desanalfabetização levados a cabo na maioria das

vezes pela sociedade civil – processos os quais o professor Jorge Nagle trata em seu ótimo

9
Id. Ibdem., p.24.
35

“Educação e Sociedade na Primeira República”,10 construindo uma categoria chave

fundamental, o entusiasmo pela educação, termo analítico que expressa o engajamento de

variados atores sociais no incentivo à expansão educacional.

Homem de seu tempo, um intelectual local engajado nas lides filantrópicas e

assistenciais, Eurípedes Barsanulfo, buscou disseminar nas terras do Paranaíba e do Triângulo

os ideais filosóficos e religiosos em voga na França, de um certo pedagogo discípulo de

Pestalozzi, Hippolyte-Léon Rivail Denizard, mais conhecido aqui pelo seu pseudônimo de

origem celta, Allan Kardec.

Corroborando a idéia da relevância das microesferas que compõem a esteira da história,

numa razão dialética, a escola em questão inaugurou uma linha pedagógica que se disseminaria

pelo país, a chamada pedagogia espírita. Estamos nos deparando com um importante elo na

compreensão de um sistema religioso que se consolidou e se expandiu no Brasil e, mais do que

as estatísticas – segundo dados do Censo Demográfico de 2000, existem cerca de 2,8 milhões

declaradamente espíritas -, faz parte mesmo da cultura e da identidade nacional.

Todas as vertentes que se configuram, com a história nova, são tentativas de uma

história total11. Na verdade, não existe uma história da pedagogia, ou uma história diplomática,

ou ainda, econômica. Por suposto, há a história em sua unidade, toda ela social por definição.

Assim, entendemos a história social como uma perspectiva globalizante, capaz de analisar as

inter-relações entre fatores educacionais, políticos, econômicos, sociais, ideológicos, religiosos

e culturais, que permitem delinear o real conteúdo das propostas pedagógicas inseridas no

pensamento e na ação dos atores envolvidos com a conjuntura histórica - o panorama do Brasil

da Primeira República e das categorias contidas na filosofia espiritualista francesa.

Finalizando o presente item, embora o foco essencial de nossa dissertação não seja a

análise do fenômeno da difusão das doutrinas espiritualistas em si, valem alguns destaques
10
NAGLE, Jorge. Educação e Sociedade na Primeira República. 2.ed. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2001,
passim.
11
PATLAGEAN, Evelyne. A História do Imaginário. In: LE GOFF, Jacques. A História Nova. Op.cit., pp.292-
312.
36

teóricos acerca da validade e da pertinência de tais estudos na Academia. Quais as categorias

de análise disponíveis na moderna historiografia mais adequados para essas abordagens?

Um dos recursos analíticos para a leitura do tema em questão – ou ainda do amplo

leque dos novos fenômenos espiritualistas presentes na pós-modernidade – é o enfoque contido

na linha historiográfica denominada “imaginário social”.

O polonês Bronislaw Backzo diria que o princípio que leva o homem a agir é o coração,

são as suas paixões e seus desejos. “A imaginação é a faculdade específica em cujo lume as

paixões se ascendem, sendo a ela, precisamente, que se dirige a linguagem ‘enérgica’ dos

símbolos e dos emblemas”.12 Sua interpretação vai ao encontro do estudo de Evelyne

Patlagean, em a História do imaginário, e, a partir delas, compreendemos o imaginário como a

codificação das paixões e dos desejos de um indivíduo ou grupo de indivíduos. Um conjunto

de signos, dos quais esses sujeitos se utilizam para agir - ou não - no mundo.

Para essa estudiosa dos Annales, o domínio do imaginário é constituído pelo conjunto

das representações que extrapolam os limites colocados pela experiência e pelos

encadeamentos dedutivos que elas permitem. De acordo com Patlagean, a cristianização da

cultura européia inaugurou uma nova época na história das representações que incluíram um

domínio do imaginário sobre o mundo dos mortos, as relações divinas e do homem com seu

corpo. A cultura cristã apresentou um riquíssimo domínio do imaginário, com farta massa

documental durante séculos.13 Podemos analiticamente situar o pensamento de Allan Kardec

nessa perspectiva cultural e histórica.

12
BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. In: Enciclopédia Einaudi, vol.5, Anthropos - Homem. Lisboa:
Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1985, pp. 296-332.
13
PATLAGEAN, Evelyne. Op.cit., pp.300-6.
37

B.2 - Refletindo sobre a historiografia das Instituições Escolares

Tendência recente da historiografia, a história das instituições escolares vem se

consolidando nos últimos anos, fato comprovado pelo crescimento significativo tanto

quantitativo quanto qualitativo de publicações. Com o exame cuidadoso de uma instituição

desse gênero, ainda com um enfoque preliminar no singular e no estudo de caso, são extraídas

valiosas fontes que permitem testar a dinâmica das próprias políticas públicas ou ainda da

história da educação mesma do país. Décio Gatti Júnior, professor e pesquisador da

Universidade Federal de Uberlândia, argumenta que, 14

De modo geral, pode-se afirmar que as escolas e o sistema


educacional, por mais heterogêneas que sejam, aparecem como
localidades que não podem ser negligenciadas como amostra
significativa do que realmente acontece em termos educacionais em
qualquer país e, especialmente, no Brasil, onde as análises
governamentais têm a tendência de obscurecer a problemática real de
seu sistema escolar.

Ao estudarmos uma instituição desse gênero, não estamos enfocando uma unidade

autônoma, e nem tampouco a análise é limitada aos aspectos da escola. Mais do que um mero

reducionismo, é da maior relevância estabelecer suas conexões com outros sistemas sociais e

variáveis analíticas.

A rigor, em termos históricos, o processo de educação inserido, efetivamente, numa

instituição escolar, assim como a gênese da pedagogia, é um produto da modernidade. Ainda

na Itália renascentista, Vittorino da Feltre (1373?-1446), um mestre de concepções humanistas,

convidado para ser o preceptor dos filhos de um marquês, fundou uma das escolas pioneiras, a

“Casa Giocosa”, em Mântua. Numa placa na entrada da escola, lia-se: “vinde, meninos, aqui

se ensina, não se atormenta”.15

No terreno das reflexões filosóficas da educação, um dos grandes baluartes da moderna

pedagogia, sobretudo essa educação percebida numa perspectiva popular e pluralista, o boêmio

14
GATTI JÚNIOR, Décio. Op.cit., p.4.
15
CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: Editora UNESP, 1999, pp.237-9.
38

João Amos Comenius (1592-1670) já enfatizava a relevância do tema. Para ele, a formação

deve começar na mais tenra idade e deve ocorrer na instituição escolar. Na afirmação

comeniana da necessidade da escola, deve-se um argumento caro à nascente civilização

capitalista, o da especialização:

O homem, quando precisa de farinha, vai ao moleiro; de carne, ao


açougueiro; de bebida, ao taberneiro; de roupas, ao alfaiate; de
sapatos, ao sapateiro; quando precisa de uma construção ou de um
arado, ou de um prego, vai ao pedreiro, ao carpinteiro, ao serralheiro,
e assim por diante (...) Por que então não devem existir escolas para a
juventude? É claro que há muito menos dispêndio de energia, quando
alguém faz uma coisa só e não é distraído por outras: desse modo um
só pode servir utilmente a muitos e não a um só.16

A escola, como instância central dos modernos e contemporâneos sistemas educativos,

seja estatal ou não, assumiu funções de produção e reprodução sócio-cultural, funções de

controle e conformação vinculados aos comportamentos, ideologias e representações.17

Na moderna historiografia, essa renovação do enfoque nas instituições educativas

corresponde a um esforço interdisciplinar, lançado pela sociologia, pela análise organizacional,

entre outras ciências da educação, assim como a contribuição dos Annales pela nova história

francesa, buscando a construção dos sujeitos e o sentido de suas ações.18

Essa nova abordagem das Ciências da Educação, centrada na sala de aula e

correlacionada às perspectivas sócio-institucionais com foco no sistema educativo, busca

escapar do vaivém tradicional entre percepções micro e um olhar macro, ressaltando um plano

meso de compreensão. As escolas têm sua dimensão própria, como espaço organizacional em

que também se tomam importantes decisões ou inovações educativas, curriculares e

pedagógicas.19

16
COMENIUS, J. Didática Magna. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002., p.85
17
MAGALHÃES, Justino. Um apontamento metodológico sobre a história das instituições educativas. In:
SOUSA, Cynthia Pereira de & CATANI, Denice Bárbara (orgs.). Práticas educativas, culturas escolares,
profissão docente. São Paulo: Escrituras, 1998, pp.51-69.
18
Id. Ibdem., p.60.
19
NÓVOA, Antônio. Para uma análise das instituições escolares. In: NÓVOA, Antônio (coord.) As organizações
escolares em análise. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992.
39

Seguindo a linha de raciocínio delineada no item anterior- aspectos que tangem à

relevância do estudo do particular e do micro –, analisar a trajetória de uma escola não se

resume a uma simples abordagem descritiva, mas é um esforço teórico, empírico e

metodológico de contextualização a um quadro de evolução mais amplo, que se inscreve numa

dimensão regional e conjuntural, com suas multidimensões e um sentido histórico e

sociológico.

Tais enfoques devem, necessariamente, ser estruturados em torno das complexas

matrizes relacionais dessas instituições – inerentemente estruturas abertas ao exterior,

organismos e locus humanos. É implicada, portanto, uma visão de conjunto.20

Outro ponto que vale ressaltar, assim como a instituição educacional reproduz e

transmite uma cultura, não deixa, por outro lado, de produzir culturas.21 Essa inserção e

convergência da escola numa política pública pedagógica e estruturas correlatas ocorrem de

forma crítica e capacidade adaptativa. Licínio Lima utiliza o termo “infidelidades normativas”,

ao demonstrar que a fidelidade dos atores aos seus objetivos e às estratégias contrapõe-se ao

“normativismo burocrático” vigente.22

Finalizando, seguindo o percurso teórico do historiador português Justino Pereira de

Magalhães, professor da Universidade de Lisboa,

(...) a construção da história de uma instituição educativa visa, por


fim, conferir uma identidade cultural e educacional. Uma
interpretação do itinerário histórico, à luz do seu próprio modelo
educacional. A história de uma instituição educativa constrói-se a
partir de uma investigação coerente e sob um grau de
complexificação crescente, pelo que, à triangulação entre os
historiais anteriores, à memória e ao arquivo, se haverá de contrapor
uma representação sintética, orgânica e funcional da instituição – o
seu modelo pedagógico.23

20
MAGALHÃES, Justino. Contributo para história das instituições educativas – entre a memória e o
arquivo. Lisboa: Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, s.d.
21
Id. Ibdem., p.9.
22
Id. Ibdem., pp. 9-10.
23
MAGALHÃES, Justino. Breve apontamento para a história das instituições educativas. MAGALHÃES,
Justino. Breve apontamento para a história das instituições educativas. In: SANFELICE, José; SAVIANI,
Demerval & LOMBARDI, José Claudinei (orgs.). História da educação: perspectivas para um intercâmbio
internacional. Campinas: Autores Associados, 1999, pp. 67-72.
40

É um esforço de pesquisa e análise que contribuiu sobremaneira para a construção e

compreensão para a própria história da Pedagogia.

B.3 - Definindo a tipologia das fontes

Outra originalidade francesa, na história nova, foi a ampliação significativa do campo

do documento considerado histórico. Dos textos escritos da história positivista, um leque de

novas possibilidades foi aberto:24 registros de todos os tipos, produtos de escavações,

documentos orais; fotografias, filmes, iconografias, produções artísticas, enfim, elementos

variados em que podem ser apreendidas lições ou indícios do remontar do tempo.

Do mesmo modo paradigmático, Ginzburg muito contribuiu com a historiografia

européia e mundial com o método indiciário.25 Inspirado em Conan Doyle e seu personagem

clássico, o detetive Sherlock Holmes, o estudioso italiano buscou nos detalhes, muitas vezes,

aparentemente insignificantes, a chave de suas descobertas intelectuais; seja na conexão entre

influências nazistas e os estudos do lingüista George Dumézil sobre mitos indo-europeus; ou

seja na leitura pioneira de um caso de feitiçaria ilustrando suas conexões com a religiosidade

popular. Das explicações científicas de Ginzburg, vale a citação de Aby Warburg contida na

epígrafe do ensaio: “Deus está no particular”.

Tanto na perspectiva da nova história quanto na história em lupas de Ginzburg, ou

ainda nas pesquisas do intelectual alemão Norbert Elias, o termo interdisciplinaridade não é

mera figura de retórica acadêmica, mas um importante referencial no desenvolvimento

analítico das ciências sociais. Assim, interfaces com a literatura, a semiótica, a psicanálise em

suas várias linhas, constituem importante campo de diálogo e aprofundamento dos objetos e

problemas abordados.

24
LE GOFF, Jacques. Op.cit., p.28.
25
GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
41

Um espectro consistente de perspectivas de leitura do real se configura com a

possibilidade de efetivação de uma historiografia das instituições escolares:26 documentos da

escola, fotos de época, jornais, entrevistas, literatura pertinente; elementos arquitetônicos do

prédio, localização, acabamento, entre inúmeras outras opções em que a disponibilidade, o

acesso e a leitura garantem o desenvolvimento das pesquisas.

Objetivando fundamentar, conceitualmente, a compreensão das várias matizes do

problema, levantamos uma ampla bibliografia acerca da temática e os assuntos afins, obras de

escopos distintos, sobre a doutrina espírita e a biografia de Allan Kardec, tanto em sua

trajetória como pedagogo quanto na fase da sistematização do espiritismo; livros de autores

clássicos do pensamento social brasileiro e da história do espiritismo no Brasil; pesquisas de

história da educação e propriamente a história do país; estudos da história regional e história

sacramentana; abordagens biográficas espíritas sobre Eurípedes Barsanulfo; além das

fundamentais teorias historiográficas e história das instituições escolares.

A figura do médium e professor de Sacramento transformou-se em símbolo para o

espiritismo brasileiro, e o Collégio Allan Kardec em tela é o pioneiro nesse segmento religioso.

Todavia, em que pesem a abrangência e a pluralidade da ação do homem Eurípedes

Barsanulfo, foi a sua face religiosa e, diríamos, até mítica que prevaleceu. Nessa linha, foi

fundamental e essencial para a viabilização deste trabalho, o resgate de diferentes fontes

primárias.

A trajetória do homem público e a análise de seu pensamento são características pouco

discutidas, mas nem por isso com menos importância. No Arquivo Público Municipal de

Sacramento, acessamos a dois volumes completos com as atas entre 29/3/1900 a 13/1/1904 e

entre 24/12/1904 a 1/1/1908. Barsanulfo foi vereador em duas legislaturas, nos triênios 1904 a

26
GATTI JÚNIOR, Décio. A história das Instituições Educacionais – inovações paradigmáticas e temáticas. In:
ARAÚJO, José Carlos & GATTI JÚNIOR, Décio (Orgs). Novos temas em história da educação brasileira:
Instituições Escolares e Educação na Imprensa. Campinas: Autores Associados; Uberlândia: EDUFU, 2002, pp.3-
24.
42

1907, e reeleito até 1911. No segundo livro, várias das atas foram lavradas por ele, na condição

de secretário da Câmara.

O terceiro volume original, referente ao período entre 1908 a 1912, foi extraviado

recentemente da coleção municipal, mas algumas atas avulsas xerocopiadas foram levantadas.

É, sem dúvida, um manancial rico em discussões e pensamentos ideológicos, o cotidiano do

interior mineiro, aspectos que se inscrevem mesmo nos quadros dos primeiros anos da

República brasileira.

Um importante suporte para os pesquisadores em História da Educação que permite

uma visão mais abrangente do processo político, social e educacional,27 consiste na leitura,

catalogação e análise de documentos oficiais. E essas fontes foram também muito preciosas

para o nosso trabalho. Recorremos a coleção de leis, aos livros de balancetes da Câmara

Municipal, ao livro contábil de impostos municipais de indústrias e profissões – materiais que

exigem uma leitura paciente e meticulosa mas que revelam preciosas radiografias do passado.

No Centro Espírita “Fé e Caridade”, instituição fundada por Eurípedes Barsanulfo e

que, desde então, funciona nas mesmas instalações do Collégio Allan Kardec, está instalada a

“Sala de Eurípedes”, um rico memorial das atividades do médium e professor. Existem quase

1500 fontes documentais catalogadas, parte considerável em processo de restauro. Todavia, a

maioria é referente aos receituários, atividades assistenciais e espíritas de Barsanulfo – a

valorização do mito que prevaleceria nas décadas seguintes, e poucos são aqueles

rigorosamente da esfera pedagógica da escola.

Dos documentos educacionais dessa instituição que foram relevantes nesta pesquisa,

constam diários dos anos 1930 da professora Corina Novelino, boletim de aluno, notas de

27
Interessante análise acerca da documentação oficial é encontrada em GONÇALVES NETO, Wenceslau. A
documentação oficial de Uberabinha e a compreensão da História da Educação em Minas Gerais e na região do
Triângulo Mineiro. Cadernos de História da Educação / Universidade Federal de Uberlândia. V.1, n.º 1,
Jan./Dez. 2002. Uberlândia: EDUFU, 2002.
43

caderno, apostila; termo de visita do inspetor regional de ensino, panfleto distribuído por

Eurípedes por ocasião de uma polêmica com o clero católico, notas de compras e alguns

depoimentos de ex-alunos.

Livros que pertenceram a Eurípedes Barsanulfo ou ao tio, “Sinhô” Mariano;

documentos primários do movimento espírita da região; fotos diversas, certidões e cartas com

fins diversos, procedentes de valiosas coleções particulares, foram coletados e analisados.

Na coletânea organizada pelos professores da UFU, “Novos Temas em História da

Educação: Instituições Escolares e Educação na Imprensa”, são tecidas reflexões sobre a

importância dos veículos impressos de comunicação como recurso que propicia uma

abordagem mais ampla da vida social e cultural. Tanto aqui, quanto em outros lugares do

mundo, a imprensa foi vista como uma importante estratégia de construção de consensos, de

propaganda política e religiosa, de produção de novas sensibilidades, maneiras e costumes. E

os jornais foram considerados relevantes mecanismos educativos.28

São referenciais e fontes, portanto, extremamente ricos, que ensejam diversos ângulos

de abordagem e “um conjunto de representações de épocas importantes de nossa história, que

permitem demonstrar o grau de imbricação entre as elites central e periféricas, bem como a

capacidade de circulação da ideologia dominante, na busca de legitimação por parte do grupo

que empalma o poder e se esforça para manter a dominação”. 29

Notoriamente, por outro lado, o Brasil é um país que carece da consciência da

preservação da memória. Em Sacramento, não existe um arquivo com os jornais

sistematizados, e o que restou da ação do tempo são exemplares esparsos em coleções

particulares. Mas dada a relevância do referencial - como abordado nessas discussões teóricas -

foram importantes para este resgate histórico.

28
FARIA FILHO, Luciano Mendes de. O jornal e outras fontes para a história da educação mineira do século XIX
– uma introdução. In: ARAÚJO, José Carlos & GATTI JÚNIOR, Décio (Orgs). Op.cit., pp.133-151.
29
GONÇALVES NETO, Wenceslau. Imprensa, civilização e educação – Uberabinha (MG) no início do século
XX. In: ARAÚJO, José Carlos & GATTI JÚNIOR, Décio (Orgs). Op.cit., pp.197-225.
44

Sobre as singularidades locais e as repercussões das intervenções de Eurípedes naquela

sociedade, acessamos alguns preciosos jornais de época: a “Cidade do Sacramento”; “O Borá”,

“A Bonança”, “O Patriota”. Na década de 1920, os irmãos de Eurípedes, Homilton Wilson e

Waltercides Wilon fundaram o jornal “A Semana” que circulou entre 1925 a 1927. Deste

órgão, conseguimos analisar a coleção completa de seu primeiro ano, cinqüenta e três edições

entre agosto de 1925 a agosto de 1926. Na região, a imprensa também registrava as ações de

Barsanulfo e alguns fatos do colégio. A “Tribuna de Conquista”, no antigo distrito e

emancipada cidade vizinha; “O Pharol”, na paulista Pedregulho; a “Tribuna de Franca” e o

“Lavoura e Comércio”, de Uberaba.

Recorrendo aos depoimentos e ao potencial da história oral, entrevistamos estudiosos

da cidade e personagens ligados ao movimento educacional e espírita da região; e buscamos,

ainda, relatos dados por antigos alunos e discípulos de Eurípedes Barsanulfo a outros autores,

estratégia que clareou importantes nuanças do passado estudado.

São essas as perspectivas teóricas e os referenciais documentais primários e secundários

que fundamentaram nossa pesquisa e a presente dissertação, esforços que objetivam o

clareamento de uma importante face da história da escolarização em Minas e no Brasil.


45

CAPÍTULO I
GÊNESE DO ESPIRITISMO E ALLAN KARDEC

1 – Definições, Filosofia e História do Espiritismo

1.1 – Era de Transformações

1848. Na França, a Monarquia de Luís Filipe, o “rei burguês”, em meio a uma séria

crise do capitalismo, descontentamentos diversos e ainda envolto em corrupção e

conservadorismo, seria derrubada por uma ruidosa e ampla oposição – que mesclava

republicanos, liberais, socialistas, legitimistas, bonapartistas – num episódio conhecido como

Revolução de Fevereiro. Em junho, após o fracasso dos socialistas em alçarem ao poder

liderados por Louis Blanc, venceria as eleições presidenciais Luís Napoleão, sobrinho de

Napoleão Bonaparte.

Numa onda revolucionária implacável, as bandeiras do liberalismo e do nacionalismo

varreriam o obsoleto absolutismo monárquico; na Itália, verificaram-se movimentos em todos

os estados em prol da unificação; o mesmo ocorreu na Alemanha (então, Confederação

Germânica); e na Áustria, onde as nacionalidades reprimidas rebelaram-se, sendo contidas

energicamente pelo Habsburgo Francisco José.30 E até no Brasil do estável Pedro II, o Partido

30
HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. 19.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
46

Liberal pernambucano, a “turma da praia”, levantou-se contra os Cavalcantis e em defesa da

ampliação das liberdades civis.31

O ciclo iniciado com os revolucionários de 1789 na célebre França de Robespierre,

Danton e Desmoulins, atingira seu ápice - num período ao qual o célebre historiador inglês

Eric Hobsbawm chamaria de a “Era das Revoluções”.32 A burguesia se fazia poder, o

capitalismo ocidental se tornava pleno e, efetivamente, o mundo atingia outro patamar.

Ainda em 1848, Karl Marx e o inseparável Friederich Engels lançaram, em Bruxelas,

a primeira edição do “Manifesto Comunista”, um documento de apenas 40 páginas, que se

tornaria um dos maiores bestsellers mundiais da história da imprensa. Em setembro, o

pensador socialista, envolvido na intrincada política prussiana, seria preso e, mesmo absolvido

após brava defesa, seguiria para o exílio em Londres.

31 de março de 1848. Bem longe do epicentro que mudaria a face política e

econômica da história, especificamente numa aldeia de Hydesville, condado de Wayne, no

Estado de Nova Iorque, Estados Unidos. Numa pequena casa, cujos moradores anteriores já

ouviam ruídos estranhos, foi travado um diálogo um tanto quanto insólito: por meio de sons de

pancadas e arranhões na parede, duas irmãs da família Fox, Kate e Margaret, meninas de 11 e

14 anos respectivamente, entram em contato com um suposto espírito de um humilde mascate

assassinado na mesma aldeia, cinco anos antes.33

31
FAUSTO, Bóris. História do Brasil. 6.ed. São Paulo: EDUSP / Fundação de Desenvolvimento da Educação,
1998, pp.176-9.
32
HOBSBAWM, Eric. Op.cit., passim.
33
WANTUIL, Zêus, As Mesas Girantes e o Espiritismo. 3.ed. Rio de Janeiro: FEB, 1994; RIZZINI, JORGE.
Kardec, Irmãs Fox e outros. 2.ed. São Paulo: Editora Eldorado Espírita de São Paulo, 1995; DOYLE, Arthur
Conan, História do Espiritismo. São Paulo: Editora Pensamento / Cultrix, 1996. Assim Doyle, o mestre da
literatura inglesa convertido à doutrina de Kardec, autor das sagas de Sherlock Holmes, descreveu o episódio a
partir de notas tomadas com a matriarca dos Fox: “...Minha filha menor, Kate, disse, batendo palmas: ‘Sr. Pé
Rachado, faça o que eu faço’. Imediatamente seguiu o som, com o mesmo número de palmadas. (...) Então pensei
em fazer um teste de que ninguém seria capaz de responder. Pedi que fossem indicadas as idades de meus filhos,
sucessivamente. Instantaneamente foi dada a exata idade de cada um, fazendo uma pausa de um para o outro, a
fim de os separar até o sétimo, depois do que se fez uma pausa maior e três batidas mais fortes foram dadas,
correspondendo à idade do menor, que havia morrido”, (Idem, p.78).
47

O episódio em questão é paradigmático na história do movimento espírita

internacional; em que pesem a simplicidade dos personagens e o ambiente rústico, o caso

ganharia projeção.

A rigor, tanto o fenômeno da denominada mediunidade quanto os pensamentos acerca

da imortalidade da alma têm seus registros longínquos no tempo. Apenas com o intuito de citar

alguns exemplos sobre a noção de reencarnação, sem a pretensão de mapear ou esgotar tal

assunto, vale frisar quatro casos.

O maior paradigma no tema é, notoriamente, o filósofo grego Platão34, que supunha

a existência de dois mundos; o primeiro constituído por idéias eternas e invisíveis, dotadas de

existência diferente das coisas concretas; e o segundo composto por cópias das idéias

(chamadas de coisas sensíveis). Os sentidos nos enganam permanentemente, e a verdadeira

realidade, intuída pela razão, está no mundo das idéias. Pela teoria da metempsicose, supõe-se

que a alma, que passara por sucessivas reencarnações, iria recordar o que outrora contemplou

no mundo das idéias - o fundamento da reminiscência.

No Renascimento científico e cultural dos anos 1300 aos 1500, cujo melhor vértice

foi, indubitavelmente, a Itália de Miquelângelo e Da Vinci, o padre dominicano Giordano

Bruno seria a derradeira vítima do movimento das fogueiras da Santa Inquisição. Duvidando

dos dogmas católicos, da virgindade de Maria e da transubstanciação do pão na ceia

eucarística, o napolitano Bruno abandonou a Igreja, exilou-se na Suíça e depois na França.

Suas crenças acerca da infinitude do universo com a existência de outros sóis e mundos

(“Sobre o Infinito, o Universo e os Mundos”);35 e da imortalidade da alma (“De immortalitate

animae”), renderam-lhe a condenação pela Inquisição, que, mediante procedimentos escusos,

conseguiu capturá-lo em Veneza e tê-lo em Roma.

34
PLATÃO. Fédon. São Paulo: Abril Cultural, 2004, pp.117-190. (Os Pensadores, v..2)
35
BRUNO, Giordano. Sobre o Infinito, o Universo e os Mundos. São Paulo, Abril Cultural, 1973. (Coleção os
Pensadores, v.12).
48

Todavia, o espiritualismo, gestado no século XIX, tem suas matrizes intelectuais e o

imaginário, segundo os historiadores da temática, esboçados no século XVIII, tendo, na figura

dos místicos Emmanuel Swedenborg e Kaspar Lavater, seus antecessores.36

Sueco nascido em Estocolmo em 1688,37 Swendenborg era filho de um pastor luterano

e capelão real, que foi mais tarde Bispo de Sakara. Matemático e engenheiro, tinha importante

destaque social e trânsito nas esferas políticas. Foi assessor Real para assuntos de mineração e,

após a morte do pai, como filho mais velho, passou a ter assento no parlamento.

Em 1745, aos 56 anos, sua vida sofreu uma reviravolta. Numa das inúmeras viagens

que fazia, Swedenborg encontrava-se sozinho e, à noite, jantando numa hospedaria, quando,

saído das sombras, um tipo espectral apareceu e anunciou-lhe que era chegado o “momento da

revelação”: ele seria o porta-voz do sentido interno ou espiritual da Bíblia, até então oculto.

Dali em diante, faria experiências de viagens às dimensões espirituais, aos diversos mundos do

além e contatos com o mundo dos mortos. Para Emmanuel Swedenborg, “o mundo espiritual é

formado por esferas diferentes, para onde os espíritos vão de acordo com a luminosidade e a

espiritualidade da sua condição no momento da morte. O resultado da sua condição após a

morte é uma decorrência da totalidade dos atos de sua vida, da globalidade da vida humana,

não adiantando o arrependimento de último momento”.38

Os escritos do místico sueco influenciaram personalidades diversas, como Baudelaire,

Balzac, Helen Keller, Jorge Luís Borges, entre outros.

36
SILVA, Eliane Moura. Reflexões teóricas e históricas sobre o Espiritualismo – 1850-1930. 1997. Disponível
em <http://unicamp.br/~elmoura/0%20Espiritualismo%20nos% 20S% E9c. %20XIX%20 e%20XX.doc.> Acesso
em: 10 set. 2004. Professora da Unicamp, vinculada ao departamento de História, Moura tem diversos trabalhos
sobre o assunto e faz, nesse texto, um interessante mapeamento e discussões metodológicas das várias vertentes
espiritualistas contemporâneas.
37
Dados bibliográficos deste enigmático sueco podem ser encontrados num site brasileira de uma fundação que
leva seu nome: <www.swedenborg.com.br/ > Acesso: 07 out. 2005.
38
SILVA, Eliane. Op.cit., pp.5-7.
49

O músico, pastor protestante e teólogo suíço Johann Kasper Lavater (1741/1801)

ganhou notoriedade com suas teorias fisiognomonistas – suposto que vem desde Aristóteles -,39

sobre a possibilidade de julgamento do caráter de acordo com a configuração e a expressão do

rosto, a fisionomia. Embora sejam rechaçadas pela moderna psicologia, essas teorias foram

aceitas e difundidas por séculos.

Esse calvinista suíço acreditava na imortalidade da alma, na existência de diferentes

planos de existência, assim como na possibilidade objetiva de comunicação entre os planos

material e espiritual, mundo dos vivos e mundo dos mortos. No imaginário contido em várias

referências da doutrina espírita, Lavater teria sido Eurípedes Barsanulfo em outra

reencarnação.40

1.2 – As Mesas Girantes em Paris

O caso das irmãs Fox, paradigma do moderno espiritismo, ganhou repercussão e logo

extrapolaria as fronteiras estadunidenses. A família ficou abalada com o fenômeno, efeito

atribuído às irmãs; afastadas de casa, morando com o irmão David Fox, os mesmos ruídos

eram ouvidos. Embora fossem feitos esforços para que o público ignorasse essas

manifestações, elas tornaram-se conhecidas. E quando as meninas viajavam, o fenômeno as

acompanhava nas casas em que se hospedavam. Com o tempo, foi estabelecido um sistema de

códigos para compreender cada letra de acordo com o número de batidas.

O pesquisador do espiritismo e o principal biógrafo brasileiro de Allan Kardec, Zeus

Wantuil assim descreve o encontro das irmãs com intelectuais e religiosos: 41

39
GOMES, Mário Enrique de Jesus. O Estudo Científico das diferenças interindividuais.<http://www.educare
pt/ BibliotecaDigitalPE/Relatorio>, acesso: 12 jul. 2005. Em seu tratado De Anima (século IV a.C.), assim
escreveu o filósofo grego: “Provavelmente, todas as afeições da alma – angústia, benignidade, medo, piedade,
valor, alegria, amor e ódio – estão associadas com o corpo, pois quando aparecem, o corpo também é afectado”.
Idem, p.3.
40
Entre outros, BACCELLI, Carlos A. [psicografia de FERREIRA, Inácio]. Do Outro Lado do Espelho. 5.ed.
Votuporanga: Casa Espírita “Pierre-Paul Didier”, 2003.
41
WANTUIL, Zêus. Op. Cit., p.8-9.
50

[...] Numa Sessão realizada em Nova Iorque, em 1850, sentados ao


redor de uma mesa, vemos o Ver. Griswold, o novelista Fenimore
Cooper, o historiador J. Bancroft, o Dr. Hawks, os doutores J.W.
Francis e Marcy, o poeta quaker Willis, o popeta Bryant, o general
Lyman e o periodista Bigelow, do Evening Post. Todos eles se
manifestaram satisfeitos com a sessão, e declararam: ‘ As maneiras e
a conduta das jovens (isto é, das irmãs Fox) são tais que tudo se
inclina a favor delas.

O movimento espiritualista nos Estados Unidos avançou rapidamente, numa interação

com o protestantismo de diferentes grupos e seitas por intermédio de enfoques educacionais,

tendo diversas publicações e grupos de estudo.42 A primeira organização espírita regular foi

constituída em Nova Iorque, em 10 de junho de 1854, sendo denominada “Sociedade para a

difusão do Conhecimento Espírita”, entre cujos membros, contava com um Juiz, Edmonds, e o

governador de Wisconsin, Tallmadge.43

Poucos anos após os acontecimentos de Hydesville, as mesas girantes se tornaram um

modismo na Europa, sensação nas reuniões dos círculos abastados da sociedade, sobretudo, em

Paris e Lyon. Os jornais anunciavam esses fenômenos estranhos sem, contudo, indagar suas

causas.

A “mesa girante” consistia num móvel redondo com três pés, à qual os participantes

invocavam a manifestação de forças sobrenaturais. Com a suposta presença, a mesa dava saltos

e girava, indicando as letras do alfabeto de acordo com os códigos estabelecidos.

O pensamento positivista estava em voga na Europa do século XIX e poucos

atribuíam tais efeitos à manifestação demoníaca, ainda que o Santo Ofício condenasse as mesas

em 1856, alegando que havia interferências do hipnotismo ou do magnetismo.

De fato, os magnetistas acreditavam que os fenômenos das mesas girantes poderiam

ser causados por fluidos elétricos ou magnéticos, ou ainda, por algum outro tipo de

manifestação desconhecida, porém similar. O fundador dessa filosofia – o magnetismo animal,

42
SILVA, Eliane Moura. Op. Cit., p.8.
43
DOYLE, Arthur Conan. Op. Cit., p.129.
51

também chamado de mesmerismo – foi o médico e filósofo austríaco Franz Anton Mesmer.44

Para esse estudioso, que freqüentava círculos ocultistas e alquímicos em seu país, seguindo a

linha do famoso místico Paracelsus, haveria correspondência entre o mundo exterior – o

macrocosmo – e as diferentes partes do organismo – o microcosmo.

A tese de formatura de Mesmer em Medicina descrevia a influência planetária por

intermédio de um fluído magnético universal com poderes sobre a matéria viva. Haveria ainda,

o magnetismo animal que existiria em duas formas antagônicas, emanando nos lados direito e

esquerdo do corpo humano. A cura das enfermidades ocorreria pela restauração do equilíbrio

entre os fluidos. Baseado nessas premissas, elaborou uma terapia que consistia na fixação dos

olhos e na aplicação de passes magnéticos com o uso das mãos.

O pedagogo Hippolyte-Léon Denizard Rivail, adepto de Mesmer, fazia parte da

Sociedade de Magnetismo de Paris. E, a propósito, compartilhava da mesma opinião do Santo

Ofício na condenação das mesas girantes.

1.3 – O druida Celta

O século XIX foi, por excelência, marcado pela evolução científica em todas as áreas,

embalado pela esteira do desenvolvimento do capitalismo europeu, fruto das revoluções

burguesas e, principalmente, da Revolução Industrial, que exigia o avanço do saber. Naquele

contexto, a Biologia, a Física, a Química, e mesmo as chamadas ciências humanas tiveram um

impulso notável.45

Evidentemente, nenhum pensamento é descolado de seu contexto histórico e o

cientificismo, propalado por autores díspares, como, entre outros, Augusto Comte, e a filosofia

positivista ou o evolucionismo proposto por pensadores de diferentes matizes, como Spencer

44
DARNTON, Robert. O Lado Oculto da Revolução: Mesmer e o final do Iluminismo na França. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988.
45
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios: 1875-1914. 8.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
52

ou Charles Darwin, era a tônica do século da Segunda Revolução Industrial e tinha suas

digitais no ideário e na metodologia de Kardec.

Nascido em Lyon, no ano em que Napoleão convocara plebiscito para ser alçado à

condição de Imperador, consolidando, assim, a Revolução Francesa, em 1804, Hippolyte

Rivail era filho de um juiz, Jean-Baptiste Antoine Rivail e de Jeanne Louise Duhamel, uma

comum família de orientação católica.46

No item 2 deste capítulo (“De Denizard Rivail a Allan Kardec – uma análise

biográfica”), trazemos uma exposição da trajetória intelectual desse célebre pensador francês;

por ora, seguindo essa linha de discussão acerca das origens do espiritismo, relatamos o

contato de Kardec com as mesas girantes.

Supõe-se que o pedagogo militante das atividades educacionais tenha entrado em

contato com o magnetismo animal em 1823.47 Nos anos seguintes, observaria e estudaria

alguns fenômenos, entre os quais, o sonambulismo.

Foi uma sonâmbula (estudiosos do magnetismo acreditavam que os sonâmbulos eram

capazes de prever a evolução de doenças e prescrever o tratamento adequado), por volta de

1853, que o curou de um processo de perda de visão em 3 meses – após um médico amigo ter-

lhe diagnosticado a irreversibilidade da degeneração.48

Um velho amigo de Rivail, um certo Fortier, lhe falara acerca das “mesas falantes” no

final de 1854, fenômeno difundido, mas não explicado. Segundo o relato, os artefatos eram

capazes de emitir respostas coerentes a seus interlocutores por meio de códigos. O experiente

pedagogo, estudioso de várias ciências, permanecia incrédulo quanto a essas possibilidades.

Entretanto, outros relatos deixaram-no intrigado, como no início de 1855, quando outro amigo

de muitos anos, o Sr. Carlotti, fez outros comentários similares das tais mesas e sessões.

46
INCONTRI, Dora. Para entender Allan Kardec. Bragança Paulista: Lachâtre, 2004.
47
WANTUIL, Zêus e THIESEN, Francisco. Allan Kardec. 5.ed., vol.1, Rio de Janeiro: Federação Espírita
Brasileira, 1999, pp.78-83.
48
Id.Ib., pp.82-3.
53

Em maio de 1855, finalmente, Rivail acompanhou o amigo Fortier a uma reunião – na

residência da senhora Plainemaison. Seu ceticismo foi abalado quando viu mesas saltarem,

baterem contra o chão, respondendo a perguntas de modo lógico e racional. No ano seguinte,

passou a freqüentar assiduamente as reuniões na casa dos Baudin, em sessões seletas, mas

numerosas.

A adoção do pseudônimo, pelo qual ficaria conhecido na posteridade, é um notório

indicativo da nova fase do velho pedagogo e ocorreu depois que, numa das sessões espíritas,

um médium lhe contou que, em vidas passadas, ele teria sido um druida – denominação dos

sacerdotes celtas – de nome Allan Kardec.49

Na obra “O que é o espiritismo”, Kardec elucida o que o levou a estudar

cientificamente esses novos fenômenos: 50

Tendo adquirido, no estudo das ciências exatas, o hábito das coisas


positivas, sondei, perscrutei esta nova ciência nos seus mais íntimos
refolhos; busquei explicar-me tudo, porque não costumo aceitar idéia
alguma, sem lhe conhecer o como e o porquê.

1.4 – Fundamentos da Filosofia Espírita


Embasado pela observação, comparação e verificação dos fatos, Denizard Rivail

concluíra que ali estavam mesmo espíritos dos desencarnados. Um curioso paradoxo num

século caracterizado pelo materialismo alemão, pelo positivismo francês, e pelo ceticismo; um

dedicado discípulo do notável Pestallozi aplicava os métodos científicos empíricos no

desvendamento e análise do mundo dos mortos.

A chamada doutrina espírita, sistematizada pelo pedagogo, já sob o pseudônimo de

Allan Kardec, tem seu alicerce nos cinco livros publicados por ele que, reunidos, formam o

pentatêuco kardequiano. Por intermédio dos médiuns, conduzia perguntas aos espíritos, que

eram analisadas, comparadas e sistematizadas. O resultado dessa pesquisa foi “O Livro dos

49
DENIS, Léon. O Gênio Céltico e o Mundo Invisível. 2.ed., Rio de Janeiro: Edições CELD, 2001, pp.17-9.
50
KARDEC, Allan. O que é o espiritismo. 53.ed. Araras: Instituto de Difusão Espírita, 2003, p.47.
54

Espíritos”, publicado, pela primeira vez, em 1857, contendo 1018 perguntas e respostas sobre

temas e questões que tangenciam a doutrina espírita. Posteriormente, outras obras seriam

editadas: “O Livro dos Médiuns” (1861); “O Evangelho Segundo o Espiritismo” (1864); “O

Céu e o Inferno” (1865); e “A Gênese” (1868). Em 1864, seria lançado um resumo da doutrina

em “O que é o Espiritismo”, e, após sua morte, foi compilada “Obras Póstumas” (1890).

Kardec lançou e dirigiu, ainda, a “Revue Spirite”, difundida sob sua responsabilidade por 11

anos, e fundou a “Société Parisienne d’Étude Spirites”, fatos que redundaram na forte expansão

do movimento espírita francês, que logo atingiria nosso país (abordado no 2º Capítulo da

presente, “Apropriação e disseminação do espiritismo no Brasil”).

Essa ampla expansão não pode ser descolada do turbilhão de crenças e filosofias que

conviviam com o cientificismo europeu pelo viés do neocolonialismo. Noções como carma,

corpo astral, reencarnação e outras similares vinham das colônias orientais da Inglaterra e da

França. Mesmo na antigüidade, o conceito metempsicose – crença de que uma mesma alma

pode animar sucessivamente corpos diversos, de homens, animais ou vegetais –, agregado por

filósofos como Pitágoras ou Platão, estava presente nos textos Upanishadas, da milenar

Índia.51 Todavia Kardec refutava a idéia de transmigração da alma de homens para animais;

com uma perspectiva evolucionista, entendia que o espírito poderia estacionar, nunca

retroceder ou degenerar.

O espiritismo, delimitado e designado no Brasil como kardecismo, pode ser

compreendido como sistema complexo de pensamento, abarcando princípios filosóficos,

científicos e religiosos. Seu eixo central é a idéia milenar baseada na doutrina hinduísta da

reencarnação – com a diferença já assinalada – e a possibilidade concreta de comunicação

entre os mortos – classificados, genericamente, como “espíritos desencarnados”– realizada por

intermédio de pessoas dotadas de capacidade para o transe psiquíco, os médiuns, durante a

51
Revista das Religiões – o mundo da fé. N.º 15, São Paulo: Editora Abril, nov. 2004, pp.16-23.
55

sessão espírita (chamada de “mesa branca”, num contraponto às crenças afro-brasileiras,

discriminadas como “baixo espiritismo”). 52

Num processo de sincretismo doutrinário, é acrescentado à lógica estrutural oriental da

reencarnação o elemento essencial do cristianismo contido nos Evangelhos: a ética da caridade.

Jesus Cristo é considerado a maior entidade já encarnada e governador espiritual do planeta, e

Kardec entendeu que o maior mandamento é o amor ao próximo, considerado a virtude

suprema.53

Sucintamente, apresentamos um esboço do pensamento de Kardec exposto pelo autor

ao longo de suas obras – o pentatêuco, além do “O que é o Espiritismo” e “As Obras

Póstumas”. O espiritismo é uma ciência, compreendendo duas partes: uma experimental, sobre

as manifestações em geral, e outra filosófica, sobre as manifestações inteligentes. A verdadeira

doutrina espírita está no ensinamento dado pelos espíritos, e a aprendizagem ocorre por um

estudo sério e continuado, feito no silêncio e recolhimento.54

A rigor, os espíritos não são nem bons nem maus por natureza; são eles próprios que se

melhoram, transitando de uma ordem inferior para uma superior. Assim, o aperfeiçoamento do

espírito é o fruto de seu próprio trabalho e processo contínuo de educação, não podendo, numa

única existência corpórea, adquirir todas as qualidades morais e intelectuais necessárias à

condução do objetivo – a purificação, alcançada por uma sucessão de vidas, em cada uma

adquirindo elementos no caminho do progresso55

“A encarnação não é imposta ao espírito, no princípio, como punição; ela é necessária

ao cumprimento das ordens de Deus (...)”, enfatiza Kardec. “Os espíritos encarnados

constituem a humanidade, que não é circunscrita à Terra, mas que povoa todos os mundos

52
HELLERN, Victor, et.al. O Livro das Religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp.289-91.
53
Máxima kardequiana: “Fora da caridade não há salvação”. Só no Evangelho Segundo o Espiritismo (Op.cit.);
são 28 citações e referências sobre essa ética.
54
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 130.ed. Araras: Instituto de Difusão Espírita, 2000, p.40.
55
KARDEC Allan. Id.ib., passim.; KARDEC, Allan. O que é Espiritismo. Op.cit., passim.
56

disseminados no espaço(...)”. A vida espiritual é a vida normal; a vida corpórea é transitória e

passageira.56

O esquecimento de existências anteriores é uma dádiva divina, sendo os homens

poupados de lembranças, na maioria das vezes, dolorosas e penosas; por outro lado, a

diversidade das aptidões inatas é a prova de que a alma já vivera.57 “Nenhum espírito está nas

condições de não se melhorar nunca; de outro modo, estaria fatalmente destinado a uma eterna

inferioridade, e escaparia da lei do progresso que rege, providencialmente, todas as criaturas”58

Outra categoria essencial à compreensão do pensamento kardequiano é a noção do livre

arbítrio, preconizado nos primórdios do cristianismo por Santo Agostinho (354/430 d.C.): 59

Deus, sendo soberanamente justo, deve considerar igualmente todos


os seus filhos; é por isso que dá a todos o mesmo ponto de partida, a
mesma aptidão, as mesmas obrigações a cumprir e a mesma
liberdade de agir [grifo do autor]; todo privilégio seria uma
preferência, e toda preferência, uma injustiça. Mas a encarnação não
é, para todos os Espíritos senão um estado transitório; é uma tarefa
que Deus lhes impõem, na sua entrada na vida, como primeira prova
que farão do seu livre arbítrio. 60

Na condição de movimento religioso, Kardec frisava que o espiritismo, longe de negar

o Cristianismo e o Evangelho, os esclarecia e difundia à luz das novas revelações acerca do

que o Cristo fez e disse.

[o espiritismo] traz a luz sobre os pontos obscuros de seus


ensinamentos, de tal sorte que aqueles para quem certas partes do
Evangelho eram ininteligíveis, ou pareciam inadmissíveis, as
compreendem, sem esforço, com a ajuda do Espiritismo, e as
admitem; vêem melhor a sua importância , e podem separar a
realidade da alegoria; o Cristo lhes parece maior: não é mais
simplesmente um filósofo, é um Messias divino [grifo do autor].61

Uma plêiade de intelectuais diversos aderiram, em algum momento, às idéias

apresentadas por Kardec, numa lista extensa, que inclui, entre outros, figuras como o

56
KARDEC, Allan. Id.Ib., passim.
57
KARDEC, Allan. Id. Ib, pp.166-7.
58
KARDEC, Allan. Céu e Inferno. 26.ed. Araras: Instituto de Difusão Espírita, 2001, p.83.
59
AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Abril Cultural, 2004. (Os Pensadores, v.4).
60
KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. 271.ed. Araras: Instituto de Difusão Espírita, 2001,
p.68.
61
KARDEC, Allan. A Gênese. 27.ed. Araras: Instituto de Difusão Espírita, 2001, p.31.
57

astrônomo Camille Flammarion, o escritor Léon Denis, o antropólogo italiano Ernesto

Bozzano, o escritor inglês Arthur Conan Doyle, imortalizado pelo clássico detetive Sherlock

Holmes; Alexandre Dumas, outra celebridade da literatura universal; o médico italiano César

Lombroso, psiquiatra forense, que se notabilizou pelos estudos no campo das relações físicas e

mentais, que, mais tarde seriam, conhecidos como antropologia criminal.62

Evidentemente, o espiritismo não ficaria imune a contestações e repressões. Apenas

para ilustrar, dois episódios são notórios nesse meio. Em 1862, o padre Lepeyre, da Companhia

de Jesus, chegou a afirmar que era mesmo possível o contato com os mortos, mas que os bons

espíritos só se manifestavam dentro das igrejas e que, ademais, fora daquele ambiente só

almas demoníacas surgiriam. Outro fato foi o denominado “auto-de-fé de Barcelona”, quando

um livreiro francês, radicado na Espanha, Maurice Lachâtre, encomendou a Kardec seus livros

para divulgá-los. Entretanto, não contava com a intolerância do bispo da cidade, que ordenou a

apreensão e a incineração dos livros numa grande fogueira. Decerto, o gesto do clérigo, o

último ato da inquisição espanhola, teve enorme eco na imprensa local e internacional,

servindo para atiçar as curiosidades e divulgar o termo espiritismo.63 Mesmo no Brasil, certo

padre, Oscar Quevedo, vem ganhando notoriedade, há décadas, no esforço de desmistificar os

fenômenos espíritas pela vertente da parapsicologia.

62
MALGRAS, J. Pioneiros do Espiritismo. São Paulo: DPL, 2002; BOZZANO, Ernesto, Povos Primitivos e
Manifestações Supranormais. São Paulo: Editora Jornalística FE, 1997; FLAMMARION, Camille. Urânia.
8.ed. Rio de Janeiro: FEB, 1998. DOYLE, Arhur C. Op.cit.; entre outras referências.
63
NUNES, Beatriz Helena P. Costa, et.al. Em torno de Rivail. Bragança Paulista: Lâchatre, 2004.
58

2 – De Denizard Rivail a Allan Kardec – uma análise biográfica

2.1 – O discípulo de Pestalozzi – Hippolyte-Léon Denizard Rivail

Como exposto no item 1.4 - O Druida Celta -, Rivail viera ao mundo num berço

confortável, filho de Jean-Baptiste Antonine Rivail, um respeitado juiz, descendente de família

de longa tradição da magistratura de Lyon.

Com a idade de 10 anos, seria mandado para o Instituto Yverdon, na cidade suíça do

cantão de Vaud, fundada e dirigida por Henrique Pestalozzi – mestre que contribuiria

sobremaneira na formação moral e intelectual do jovem Rivail e cuja visão e abrangência

pedagógica já se revelaram em Neuhof, Stans e Berthoud.

Yverdon era o que existia de mais avançado em ensino na Europa. Funcionando num

castelo, construído em 1135 pelo duque de Zähringen, Pestalozzi pôde ali aplicar toda a sua

metodologia e sistemática de trabalho com os professores – os quais se reunia duas vezes por

semana para a discussão e avaliação do trabalho.64 “Corpo são e mente sã” era o lema de

Yverdon, que aliava o trabalho aos exercícios físicos. A escola se tornou célebre, recebendo

alunos como o alemão Froebel - que se tornaria um dos grandes nomes do pensamento

pedagógico moderno – e sendo respeitada e destacada por personalidades como o rei Carlos

IV, da Espanha, o czar Alexandre, da Rússia, o rei Frederico Guilherme III, da Prússia; ou

ainda dos escritores Goethe e Madame de Stäel.65

Em 1815, pouco após a derrota de Napoleão em Waterloo, o menino Denizard Rivail

chegou ao instituto suíço. Foi um momento difícil na vida de Pestalozzi; pois nesse mesmo

ano, o mestre perdeu sua companheira, Anna Schulthess, e ainda enfrentou problemas de

disputa pelo poder em sua escola.

Contudo os anos de convivência com o mestre deixariam marcas indeléveis no jovem

francês; ilustrando essa afirmação, quando, mais tarde, Rivail, como diretor de escola da

64
ARCE, Alessandra. A Pedagogia na “Era das Revoluções” – uma análise do pensamento de Pestalozzi e
Froebel. Campinas: Autores Associados, 2000.
65
WANTUIL, Zeus e THIESEN, Francisco. Op.cit., pp.32-36.
59

Academia de Paris, publicou um “Plano proposto para a melhoria da Educação Pública”, em

cuja capa, lia-se: “... por H.-L.-D. RIVAIL / Discípulo de Pestalozzi...”.66

Certo aluno de Yverdon, Roger Guimps registrou algumas passagens que assinalam o

ambiente saudável vivido no Instituto: 67

Os alunos gozavam de grande liberdade; as portas do castelo


permaneciam abertas o dia todo, e sem porteiros. Podia-se sair e
entrar a qualquer hora, como em toda casa de uma família simples, e
as crianças quase não se prevaleciam disso. Eles tinham, em geral,
dez horas de aula por dia, das seis da manhã às oito da noite, mas
cada lição só durava uma hora e era seguida de pequeno intervalo,
durante o qual ordinariamente se trocava de sala. Por outro lado,
algumas dessas lições consistiam em ginástica ou em trabalhos
manuais, como cartonagem e jardinagem [...].

Nos tempos do menino Rivail, estudavam ali 150 crianças de etnias, línguas e culturas

diferentes. A maioria dos estudantes era composta por internos, com a estadia paga pelos pais

abastados, o que gerava recursos para o instituto. Uma pequena parte era de estudantes suíços

pobres, que estudavam gratuitamente.

Inicialmente, Yverdon tinha principalmente alunos alemães. Após a queda de Napoleão

I, muitos franceses passaram a freqüentá-lo, o que levou Pestalozzi a contratar professores

franceses, como Alexandre-Antoine Boniface, especialista em gramática e literatura francesas,

que, admitido pelo próprio Hippolyte-Léon, foi um de seus primeiros mestres.

Problemas pessoais envolvendo os professores e a diretoria da instituição culminaram

com a saída de diversos mestres da instituição, por volta de 1817. Pestalozzi combinou seu

método com o ensino mútuo, técnica onde os alunos mais adiantados ou capazes, atuariam

como monitores dos demais. Foi nesse contexto que o jovem Rivail teve sua primeira

experiência efetiva na pedagogia.

Esses desentendimentos diversos, muitas vezes, não passavam despercebidos pelos

alunos e afetavam a vida escolar. O número de internos, isto é, aqueles que pagavam pensão e

sustentavam as finanças da escola, diminuiu bastante. Previsivelmente, o Instituto entrava em

66
RIVAIL, H.L.D. Textos Pedagógicos. 2.ed. Bragança Paulista: Editora Comenius, 1999.
67
WANTUIL, Zeus e THIESEN, Francisco. Op.cit., p.37.
60

decadência. Em 1825, Pestalozzi anunciou sua decisão de deixar Yverdon, partindo para

Neuhof, onde viveria seus últimos dias, vindo a falecer dois anos depois.

Não se sabe ao certo quantos anos Rivail permaneceu na Suíça. Provavelmente, por

volta de 1822, retornou a Lyon, de onde não demorou a partir para Paris (ou talvez tivesse ido

direto à capital francesa).68

Com amplo domínio do inglês, do alemão, do espanhol, do italiano e conhecendo

razoavelmente o holandês, Hippolyte-Léon começou sua carreira trabalhando como professor,

na rue de la Harpe, onde funcionava o Liceu Saint-Louis, e tradutor nas horas vagas.69 Em

fevereiro de 1823, foi publicado na “Bibliografhie de la France” – espécie de revista literária –

um prospecto sobre o seu livro, “Cours pratique et théorique D’ARITHMÉTIQUE, d’aprés les

principes de Petalozzi, avec des modifications”, resumindo o que seria a obra que, ainda em

dezembro daquele ano, chegaria às lojas. Com apenas 18 anos, já publicara uma manual

assentado em bases pestalozzianas para professores e mães que quisessem iniciar os filhos pelo

caminho da aritmética.

Dispensado pelo exército em 1825, aos 20 anos, por sua atividade como professor,

tornou-se, em meados daquele ano, diretor de sua própria instituição de ensino, a “Escola de

Primeiro Grau”, em Paris. É desconhecido o tempo exato em que o colégio funcionou. Foi

nesse período que ele entrou em contato com o já citado magnetismo animal, ou o

mesmerismo. À época, ainda que tais assuntos lhe suscitassem curiosidades, seu principal foco

era a pedagogia.

No ano seguinte, fundou a Instituição Rivail, educandário simples, que funcionava de

acordo com os princípios de Pestalozzi, voltado para os pobres, onde ele exercia uma

influência paternal sobre os alunos. Em 1828, na vigência do governo Carlos X, lançou ainda

um “Plano proposto para a melhoria da Educação Pública”, em cujo subtítulo afirmava: “Os

68
WANTUIL, Zêus; THIESEN, Francisco. Op.cit. p.78.
69
Grandes Líderes da História [Edição sobre Allan Kardec]. Ano I, n.6., São Paulo: Arte Antiga Editora, p.8.
61

meios próprios para se educar a juventude são uma ciência bem distinta que se deveria estudar

para ser educador, como se estuda a medicina para ser médico”.

Em 1832, casou-se com a professora de letras e belas artes Amélie-Gabrielle Boudet;

coincidência dupla, pois, assim como a senhora Pestalozzi, era mais velha que o marido e o

auxiliou em suas tarefas educacionais. E desafios, decerto, não faltariam.

Fora um tio de Kardec que investiu o capital na organização da Instituição Rivail. Mas,

viciado em jogos e envolvido em apostas em casas de Spa e Aix-la-Chapelle, Bélgica e

Alemanha, respectivamente, perdeu alto volume de dinheiro e se arruinou, comprometendo

também o sócio. A escola foi fechada em 1824, a sociedade foi desfeita e sobraram, para cada

um, 45 mil francos. A um amigo da família de sua esposa, Rivail confiou os recursos para

serem aplicados em algum negócio lucrativo; mas o negociante faliu, arrastando Rivail e

Amélie.

Os infaustos acontecimentos que resultaram na bancarrota do casal não redundaram no

desânimo, e com muito trabalho reergueram-se diante do insucesso. Rivail empregou-se como

contabilista de três casas comerciais, o que, de acordo com um biógrafo clássico, Henri Sausse,

lhe rendia cerca de 7.000 francos por ano.70

À noite, elaborava livros didáticos, traduzia obras inglesas e alemãs e preparava os

cursos que ele juntamente com o Prof.º Lévi-Alvarès davam a alunos de ambos os sexos no

Faubourg de Saint-Germain. Pessoalmente, Rivail lutara contra a segregação das meninas nas

instituições de ensino na França.

Assim como Pestalozzi em Yverdon, organizou e ministrou, em sua própria casa,

cursos gratuitos de Química, Física, Astronomia, Fisiologia, Anatomia comparada entre outras

ciências. Como o mestre, Rivail acreditava na educação como superação das misérias do

mundo.

70
WANTUIL, Zêus; THIESEN, Francisco. Op.cit., p.136.
62

Em Obras Póstumas, 71 já com a assinatura Allan Kardec, enfatizara:

A Questão social não tem, pois, por ponto de partida a forma de tal
ou qual instituição; ela está toda no melhoramento moral dos
indivíduos e das massas. Aí é que se acha o princípio, a verdadeira
chave da felicidade do gênero humano. (....) O princípio do
melhoramento está na natureza das crenças, porque estas constituem
o móvel das ações e modificam os sentimentos. Também está nas
idéias inculcadas desde a infância e que se identificam com o
espírito; está ainda nas idéias que o desenvolvimento ulterior da
inteligência e da razão pode fortalecer, nunca destruir. É pela
educação, mais do que pela instrução, que se transformará a
humanidade. [grifo nosso]

Ao longo da carreira, antes de adotar o nome Allan Kardec, Hippolyte-Léon publicou

mais de 20 livros didáticos em diversas áreas: Gramática, Aritmética e, sobretudo, Pedagogia.

Por muitos anos, lutara ao lado dos padres contra o monopólio da educação pelas

universidades. Após a Revolução de 1848, o partido clerical vitorioso, no entanto, transferia

para si o monopólio, e a partir da Lei Falloux, de 1850, as congregações passaram a ter o poder

de ensinar. Nesse mesmo ano, por insatisfações com o modelo educacional da França,

decepcionado e contando com uma tranqüilidade financeira, afastou-se do magistério e se

dedicaria aos estudos do magnetismo e, posteriormente, às mesas girantes. O homem Allan

Kardec logo surgiria.

2.2 – O codificador da Doutrina dos Espíritos – Allan Kardec

Como foi abordado, após os fenômenos de Hydesville, as mesas girantes tornaram-se

uma febre na Europa, embalando as divertidas reuniões da sociedade parisiense; os fenômenos

eram badalados em jornais, sem, no entanto, ocorrer questionamentos sobre seus porquês.

Instigado por amigos, o experiente e cético pedagogo se impressionou com o que viu diante de

si, nos idos de 1855, na residência da senhora Plainemaison. A vida de Rivail, que há anos já se

interessara pelo magnetismo animal lançado pelo austríaco Mesmer, em seus 50 anos, tomaria

71
KARDEC, Alan. Obras Póstumas. 5.ed. Araras: Instituto de Difusão Espírita, 2000.
63

outro rumo. E o nome Allan Kardec, alusão a uma suposta vida como sacerdote celta,72 foi o

símbolo dessa guinada.

Foi na Rua Lamartine, em reuniões seletas na casa dos Baudin, já no ano seguinte à

revelação, que os contatos entre Kardec e o mundo dos mortos ficariam mais sistemáticos. Foi

ali que começou a nascer o “Livro dos Espíritos” - que teve sua primeira edição em 1857 -;

nas formulações de perguntas aos desencarnados sobre uma série de problemas. A

comunicação já não ocorria por pancadas, através de alguns médiuns – espécie de ‘ponte’ entre

o mundo invisível e o material - eram utilizados outros mecanismos para a obtenção das

respostas, como a psicografia por meio de uma “cesta-de-bico”.73

No ideário espírita, foi a 30 de abril de 1856 que Kardec recebia a missão de codificar

as bases da Doutrina. Na casa do Sr. Roustan, uma jovem médium recebeu a comunicação do

“Espírito da Verdade”, que incumbira o velho professor de trazer a “terceira revelação” (as

anteriores teriam sido de Moisés e de Jesus Cristo, respectivamente).74 Rivail aceitara a missão

e, à medida que se aprofundava no trabalho, percebia que aqueles ditos espíritos não eram nada

comuns, e a grandeza das idéias e palavras não decorria simplesmente por suas condições de

desencarnados, mas pelo grau de adiantamento – numa perspectiva evolucionista –, categoria

fundamental em sua Doutrina, assim como no pensamento social daquele século.75

O escopo essencial do pensamento kardequiano foi apresentado n’ “O Livro dos

Espíritos”, tendo Deus como a causa primeira e permanente e a preponderância da existência

72
Em que pese o racionalismo da época, a terra natal de Kardec, Lyon, era permeada por uma aura mística.
Fundada em 43 a.C, Lugdunum, foi colônia romana e capital gaulesa, região ocupada pelos celtas. O imperador
romano Júlio César teria dito: “Em toda a Gália, são tidos em conta e estima os cavaleiros e os druidas. Estes
entendem de coisas sagradas, cuidam dos sacrifícios públicos e particulares; explicam as doutrinas e os
cerimoniais da religião. Acreditam que as almas não perecem e passam, depois da morte, de uns para outros
corpos, e com isso julgam incitar-se principalmente ao valor, desprezando o medo da morte”. (In: Revista das
Religiões – o mundo da fé., op.cit. p.19).
73
N’ O Livro dos Médiuns (Op.cit., pp.164-6) explica Kardec: “...consiste em adaptar na cesta uma haste de
madeira, inclinada, fazendo sair de dez a quinze centímetros de um lado, na posição do mastro da proa de um
navio. Por um buraco feito na extremidade dessa haste ou bico, se faz passar um lápis bastante longo para que a
ponta repouse sobre o papel. O médium, tendo os dedos sobre as bordas da cesta, todo o aparelho se agita e o
lápis escreve...”
74
Grandes Líderes da História – Allan Kardec. Op.cit. , pp.4-5.
75
O conceito aparece em obras de autores díspares entre si, como Spencer; o filósofo do positivismo Augusto
Comte; o pedagogo e fundador da sociologia Emile Durkeim; o naturalista inglês Charles Darwin; entre outros.
64

espiritual.76 Na primeira edição, contava com 176 páginas e continha 501 perguntas dirigidas

aos espíritos com as respectivas respostas. A Segunda edição, que superaria todas as

expectativas, veio em 1860. Reformulada e ampliada, contava com 1018 indagações, sendo

dividida em quatro partes: “As causas Primeiras”, com 75 perguntas versando sobre Deus, o

universo, a criação e o espírito vital; o “Mundo Espírita ou dos Espíritos”, em que se analisam

a existência dos espíritos, a encarnação e a pluralidade das existências, assim como a

intervenção dos espíritos no mundo corporal; as “Leis Morais”, discutindo, entre outros,

noções como as leis do trabalho, da reprodução, da sociedade, do progresso e da liberdade; e,

por último, “Esperanças e Consolações”, pontuando as penas e gozos terrestres e as penas e

gozos futuros.77

Em quatro meses, essa nova tiragem já estava esgotada, sendo conhecida em toda a

Europa e também nos Estados Unidos.

Kardec e sua esposa, Amélie Gabrielle, nunca tiveram filhos. Juntos, fundaram, em

abril de 1858, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e as primeiras reuniões eram

realizadas na residência do casal, na rue des Martyrs. Contudo, com o número crescente de

freqüentadores, foi necessário alugar um local mais amplo. O codificador dava palestras pela

França e ainda se correspondia com pessoas de todo o mundo, além de dirigir a já mencionada

“Revue Spirite”, em que foi acrescido o subtítulo “Journal d’Études Psychologiques” – uma

defesa do caráter científico do espiritismo, como um estudo da alma humana e suas

perspectivas variadas.

A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (posteriormente, chamada “Sociedade

Espírita de Paris” ou simplesmente “Sociedade de Paris”) era um grupo restrito, e a

admissão de membros não era facilitada – havia uma preocupação em afastar eventuais

curiosos. Contava com um presidente, um vice, secretário geral, secretários adjuntos e

76
SILVA, Eliane Moura. Op.cit. p.10.
77
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Op.cit., passim.
65

tesoureiro. Cabia aos sócios titulares e livres pagarem uma cota anual para as despesas.

Haviam, ainda, dois tipos de reunião, uma administrativa e outra com a presença de assistentes

convidados ou ouvintes previamente instruídos e disciplinados.

Em vários momentos, Allan Kardec quis renunciar ao cargo de presidente para dedicar-

se a outros projetos, mas era sempre reeleito por unanimidade. Segundo as crenças do

movimento espírita, teria, além dele, um “presidente espiritual” da casa, São Luís, a quem

Kardec pedia freqüentemente conselhos e auxílio.

No início da década de 1860, o “Espírito da Verdade” já teria comunicado a Kardec que

ele não teria muito tempo mais de vida, mas o suficiente para terminar a obra. Seu “canto do

cisne” ocorreu em 1869. Quando se preparava para uma mudança da livraria onde morava para

uma residência à Avenue et Villa Ségur 39, adquirida anos antes, sofreu um aneurisma

enquanto encaixotava os livros e recebia a visita de um caixeiro da loja. Enterrado numa

cerimônia simples num cortejo de mais de mil pessoas, foi erguido, em sua memória e

homenagem à vida passada e ao nome que o tornaria imortalizado, um sepulcro celta nos

moldes daqueles dos druidas que habitaram a Bretanha e a França milenar.

Como desenvolvido nos itens anteriores, Allan Kardec construiu um legado no terreno

da educação na França, ainda que essa seja sua face menos conhecida no Brasil, militando em

prol de uma educação ampla e popular, uma aspecto tangente no século XIX. E o conjunto de

sua obra no campo filosófico na constituição da doutrina espírita é permeado de elementos

educacionais e estruturado de forma pedagógica.

Por fim, arrematando a unidade, vale registrar, também, uma contradição dos

pesquisadores de Rivail. Para muitos biógrafos, ele teria se formado em direito, seguindo a

tradição familiar da magistratura. Não existe nenhum documento ou declaração do próprio

Kardec sobre tal caminho – e o manancial de escritos seus é imenso. Outros estudiosos supõem

que ele teria sido médico, dados os conhecimentos de anatomia. Segundo Zêus Wantuil, ex-

presidente da Federação Espírita Brasileira e o mais importante biógrafo de Allan Kardec no


66

país – publicou uma obra em três volumes bem documentados sobre a vida do codificador à

qual nos reportamos sobre o assunto –, não apareceu ainda documento que ao menos indique

que Rivail freqüentara como ouvinte algum curso de medicina, também não existe referência

sua sobre o assunto, e em nenhum momento assinara livro ou artigo antecedido de ‘doutor’. 78

É como se a condição de homem das leis ou médico doutor agregasse maior valor à sua

intelectualidade ou legitimasse as suas proposições doutrinárias, numa diminuição, por certo,

das investiduras pedagógicas. Entretanto Hippolyte-Léon Denizard Rivail, ou Allan Kardec,

foi, por excelência, educador, Disciple de Pestalozzi.

78
WANTUIL, Zêus, THIESEN, Francisco, Op.cit., pp.157-160.
67

3 – Filosofia da pedagogia espírita – os precursores

Em linhas gerais, a modernidade é um produto do ocidente-cristão nascido com a

própria afirmação do capitalismo mercantil, no século XV, que superou o chamado feudalismo,

alicerçado em bases teocêntricas – em desintegração desde o século XIII.

No percurso moderno, enriquecido com contribuições de pensadores ímpares como –

apenas citando alguns - Galileu Galilei (1564/1642) e a teoria heliocêntrica; Francis Bacon

(1561/1626) e o método experimental; René Descartes (1596/1650) e o racionalismo,

fundamento do novo saber científico; Immanuel Kant (1724/1804), pai do criticismo;

Montesquieu (1689/1755) teórico da divisão dos poderes, e Rousseau (1712/1778) com a

noção de governo da maioria, iluministas franceses cujas reflexões constituem as bases da

política e do direito contemporâneo.

Pensar a educação enquanto um projeto político-social amplo, secularizado, articulado

em torno da escola e organizado pelo Estado, constitui alguns dos pressupostos mais relevantes

da modernidade e mesmo da evolução do capitalismo.

Sintetizando os pilares que assentam as sociedades modernas e suas principais

características, a razão adquire uma confiança ilimitada, o homem se torna capaz de estender

seu domínio à natureza em proveito da evolução da sociedade. A lógica de utilização do

racionalismo garantiria um futuro mais próspero, assentado no progresso da humanidade.

Difundido pelo positivismo do século XIX, esse conceito e alicerce caro, o progresso –

estampado, inclusive, na bandeira do Brasil por influência direta daquela escola francesa -, tem

suas origens no Iluminismo do século anterior; autores como Kant, Turgot e Condorcet,

secularizam e materializaram uma crença inscrita mesmo no cristianismo e suas promessas de

um mundo melhor do além eterno.

Em suma, modernidade significa uma implacável ruptura com todas e quaisquer

condições históricas precedentes, caracterizada por um interminável processo de rupturas e


68

fragmentações internas inerentes e baseada no novo.79 A salvação humana não viria por uma

graça divina, mas pela própria capacidade racional do homem em superar suas barreiras sociais

– a união entre razão e liberdade.

Nesse percurso da construção da cultura ocidental e nas elaborações de um projeto de

educação, Comenius, Rousseau e Pestalozzi, os focos de nossa análise, são emblemáticos na

efetivação de um pensamento pedagógico moderno.

Em tese de doutoramento em filosofia da educação junto à USP, Dora Incontri

demonstrou os nexos que perpassam esses autores, em linhas de teoria e ação: o Cristianismo e

a visão otimista do ser humano; liberdade, alusão à dispensa de estruturas rígidas de poder; e a

esperança e construção de um mundo melhor. Vinculados como “sub-produtos” desses grandes

princípios, surgem outras como a crítica ou limitação da propriedade; a não-violência

como negação de todo poder coercitivo exercido sobre outro ser humano; e, finalmente, a

educação como instrumento amoroso para o despertar das potencialidade da alma.80

Incontri enfatiza que...

Essa argumentação vem a propósito para introduzir os três


pedagogos cristãos... Comenius, Rousseau e Pestalozzi. Os três só
podem ser compreendidos numa linha de Cristianismo não-ortodoxo.
Mas suas idéias filosóficas e pedagógicas se sustentam firmemente
81
em valores e conceitos cristãos.

Nos próximos tópicos, abordamos em linhas gerais os delineamentos históricos e

filosóficos desses célebres intelectuais que embasam a organização contemporânea da

educação e contribuíram, sobremaneira, tanto para a formação intelectual de Allan Kardec,

quanto para a sistematização de uma abordagem pedagógica espírita.

79
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2003.
80
INCONTRI, Dora. A Pedagogia Espírita – um projeto brasileiro e suas raízes. Bragança Paulista: Comenius,
2004, p.123.
81
Id.Ibdem., p.123.
69

3.1 – Johann Amos Comenius

Nascido no seio de uma família protestante seguidora da “União dos Irmãos Morávios”,

comunidade inspirada em John Huss (1369-1415), antigo reitor da célebre Universidade de

Praga e precursor da reforma, queimado pela fogueira mediante a acusação de heresia, Johann

Amos comenius (1592-1670) tem seu nome inscrito com raro destaque, tanto na história da

pedagogia, quanto na história das idéias sociais, sobretudo, no que tange à aproximação e a

afinidade com as causas populares.

Das cinzas da Inquisição medieval ao despertar da modernidade ocidental, de Jan Huss

a Comenius, dois baluartes da consciência nacional checa, a velha Europa, berço do

capitalismo, experimentava profundas mudanças estruturais naqueles séculos XV ao XVII. Da

negação do teocentrismo e dos Valores da Idade Média à afirmação das mentalidades

burguesas acentuadas pelo Renascimento e pelo Humanismo; do poder quase ilimitado do

papado à Reforma protestante desencadeada por Martinho Lutero que provocaria a quebra do

monopólio da fé cristã conduzida pelo catolicismo; a chamada modernidade ocidental fincou

seus alicerces através de transformações econômicas, políticas, sociais, culturais e

tecnológicas.

Concomitante a esse desenvolvimento, a educação, tema caro ao projeto modernista,

apresentava novas configurações com a necessidade de formação do filho do burguês,

destinado ao comércio continental e ultramarítimo; do ensino baseado nos valores eclesiásticos

do período anterior, os projetos e as experiências educacionais tendiam para a laicização e a

secularização do saber. Todavia, tais propósitos eram excludentes, à medida que ignoravam a

formação das massas populares e focalizavam o homem do mundo dos negócios mercantis.

Uma das exceções naquele panorama, foi a Reforma, cujos pilares fundamentais são

justamente o contato divino direto pelo fiel e a livre interpretação da Bíblia. Lutero (1463-

1546), que em certa ocasião dissera “... somos todos hussitas”, em alusão ao mártir checo, e

Melanchthon (1497-1560), militaram na Alemanha em defesa da expansão do ensino primário,


70

cabendo inclusive ao Estado a implementação dessa tarefa.82 Na empreitada luterana havia,

inegavelmente, interesses de expansão e consolidação de valores religiosos.

Por outro lado, numa época de configuração dos valores burgueses e comerciais, foi

Comenius, por excelência, o precursor de um projeto de escola realmente popular,

democrático, laico e, sem redundância, para todos de fato: 83

... devem ser confiados à escola não só os filhos dos ricos ou das
pessoas mais importantes, mas todos em igualdade, de estirpe nobre
ou comum, ricos e pobres, meninos e meninas, em todas as cidades,
aldeias, povoados, vilarejos.

Refletindo sobre possíveis críticas ou questionamentos quanto às conseqüências da

expansão da oferta do ensino a operários, camponeses e jovens mulheres, o pensador

argumentou: 84

Acontecerá que, instruída com meios apropriados essa educação


universal da juventude, a ninguém faltará matéria para refletir, para
propor-se a perseguir fins, e para agir. Cada um saberá para onde
dirigir todas as ações e os desejos da vida, que caminhos trilhar e
como conservar o seu próprio lugar.

A espinha dorsal da articulação da pedagogia comeniana é o ideal da transformação

social pela educação, propondo ensinar tudo a todos. Ele classificou sua doutrina como

pansofia, ou, saber universal. Acreditando na essência humana, originalmente boa, e em seu

resgate, elevando o mundo à condição de paraíso.

A alma para ele seria composta por três faculdades – correspondentes à Trindade

incriada: intelecto, vontade e memória. O intelecto aplica-se à observação da diversidade dos

objetos, até as pequenas minúcias; a vontade associa-se à opção, às escolhas das coisas

salutares e à repulsa às nocivas; e, finalmente, a memória retém para o uso futuro as questões

antes ocupadas pelo intelecto e a vontade, recordando à alma a sua dependência de Deus e suas

82
CAMBI, Franco. História da Pedagogia. . São Paulo, Editora UNESP, 1999, pp.246-9.
83
COMENIUS. Didática magna. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.89.
84
Id.Ib., pp.92-3.
71

missões – aspecto esse também chamado de consciência. A fim de que essas faculdades

possam cumprir bem a sua tarefa, Comenius sustentou que é necessário...85

(...) instruí-las nas coisas que iluminam o intelecto, dirigem a


vontade, estimulam a consciência: para que o intelecto conheça com
agudeza, a vontade escolha sem erros e a consciência anseie por
consagrar tudo a Deus. Portanto, assim como essas faculdades
(intelecto, vontade, consciência), por constituírem uma só alma, não
podem ser separadas, também os três ornamentos da alma (instrução,
virtude e piedade) não devem ser separados.

Em Pampaedia 86, Johann Comenius compara os vícios do homem à doenças da alma,

esta dirigida pela razão. Portanto, a superação dos vícios é gerada pela alma, e que somente da

Virtude emana o verdadeiro bem:

O plantio da Virtude se dá: 1. pelo esclarecimento da inteligência,


para que aprenda a diferenciar as coisas e saiba o que é verdadeiro e
o que não é, o que é honesto, útil de agradável. Isso se faz pelo
ensino. 2. Pelo desejo dos jovens, que deve ser inclinado para o
melhor, encontrando gosto em tudo o que traz alegria e não
amargura. (....) 3. Pelo exercício da própria virtude. O homem pode
ser facilmente formado para a Virtude, se sua vontade for atraída pela
natureza do Bem.

A pedagogia comeniana efetivou a divisão da escola em quatro etapas, segundo a idade

e o aproveitamento, abarcando a vida do jovem da infância à virilidade, do nascimento aos

vinte e quatro anos. Cada período dura seis anos e tem sua escola específica, onde o educando

recebe o ensino que tem condição de aprender. As quatro scholae são:

1) para a infância, a escola maternal (schola materna), a mais importante, a que prepara

o terreno da inteligência – “Os ramos principais de uma árvore, por mais numerosos que sejam,

despontam do tronco logo nos primeiros anos; depois disso apenas crescem. Do mesmo modo,

tudo aquilo em que o homem deve ser instruído, e que lhe será útil durante toda a vida, deverá
87
ser plantado e semeado durante a idade materna...”;

85
Id.ib., p.96.
86
COMENIUS. Pampaedia [trechos traduzidos do latim e do alemão]. In: COVELLO, Sérgio Carlos. Comenius –
A construção da pedagogia. 3.ed. Bragança Paulista: Editora Comenius, 1999, pp.137-144.
87
COMENIUS. Didática Magna. Op.cit., p.325.
72

2) para a meninice, dos seis aos doze anos, a escola nacional ou vernácula (schola

vernacula). Organizada em seis classes é, além de pública e voltada para os jovens de ambos

os sexos, essa escola objetiva o aprendizado que terá utilidade para toda a vida. Além da leitura

e da escrita, os jovens devem aprender a Matemática de uso cotidiano, o Canto, o Catecismo,

as regras de doutrina moral, noções de economia familiar e de política, bases gerais de História

e Cosmografia e artes mecânicas; 88

3) a escola latina (schola latina) ou ginásio para a adolescência, com o currículo

dividido em seis classes, cuja missão é de “... esgotar toda a enciclopédia das artes, com o

conhecimento de quatro línguas”89 - que seriam o vernácula, o latim, o grego e o hebraico.

Com boa instrução e orientação, os jovens estariam aptos a se tornarem, de acordo com

Comenius, Gramáticos, Dialéticos, Retóricos ou Oradores, Aritméticos, Músicos ou

Astrônomos – as chamadas como sete artes liberais, cujo ensino seria exigido do professor de

Filosofia; e também os alunos podem tornar-se Físicos, Geógrafos, Cronologistas – alusão ao

conhecimento dos períodos da terra -, Historiadores, Éticos ou Teólogos;

4) e a academia (academia et peregrinationes) para a juventude, o coroamento da


90
educação, “... o arremate de todas as ciências e de todas as faculdades superiores” . Essa

escola universitária, voltada para os alunos mais capazes, visa a sólida erudição, a efetivação

de estudos universais, congregando sapiência, virtude e fé. Comenius recomendou, ainda,

viagens e excursões às quais o estudante entraria em contato com pessoas e instituições de

vários recantos.

Um de seus desejos expressos é que o acesso aos cargos públicos fosse reservado

apenas aos que tivessem atingido a essa meta estabelecida, com dignidade e capacidade de ter

nas mãos o governo das coisas humanas.

88
Id.Ibdem., pp.333-337.
89
Id.Ibdem., p.343.
90
Id.Ibdem., p.353.
73

Diversos elementos do cotidiano educacional contemporâneo têm suas raízes nas

proposições do pensador checo. Numa época em que o ensino ocorria individualmente,

Comenius propunha a instrução simultânea, com um professor ensinando a vários alunos,

numa analogia com o sol que não ilumina um objeto isolado, mas toda a terra. Em relação aos

livros, recomendava um só livro de ensino de cada matéria, com linguagem simples e de fácil

consulta. Para o ensino das ciências, defendia o contato direto do aluno com o objeto da

pesquisa, permitindo a percepção de suas especificidades. Somente na impossibilidade disso é

que o professor deve recorrer a modelos artificiais, como desenhos ou mapas.91

De acordo com Comenius, ensinar significa ir do simples para o complexo, do simples

para o desconhecido, do próximo para o remoto, do concreto para o abstrato. E tudo o que é

ensinado ao aluno deve ser justificado com argumentos.

Compayre classificou Comenius como “o Bacon da pedagogia”, e Michelet lhe chamou

de “o Galileu da educação”.92 Em sua Didática Magna, o protestante Jan Comenius

consubstanciou os alicerces da sistematização da moderna pedagogia: a instituição da escola

maternal, a organização de uma escola elementar pública e obrigatória, a organização dos

livros escolares especializados e ilustrados, a formação moral da juventude, o método concreto

das lições das coisas, a educação física e a aplicação das regras de higiene, a educação dos

deficientes, a decoração das escolas.93

Seu ideal professado de entendimento entre os povos e a educação ampla para todos,

passados três séculos, continuam vivas e atuais. Comenius faleceu aos 78 anos, em 15 de

novembro de 1670. Com um legado difundido e reconhecido, a UNESCO estabeleceu o ano de

1992, quarto centenário de seu nascimento, o Ano de Comenius.

91
COVELLO, Sérgio. Comenius – A construção da pedagogia. 3.ed. Bragança Paulista: Editora Comenius, 1999,
pp.59-60.
92
CHÂTEAU, Jean. Os Grandes Pedagogistas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p.131.
93
Id.Ibdem., p.131; COMENIUS. Op.cit., passim.
74

3.2 – Jean-Jacques Rousseau

Muitas vezes, equivocadamente, as proposições de Allan Kardec são vinculadas ao

positivismo, alusão ao caráter racional impresso pelo pedagogo aposentado ao estudo da

religião, comparativo pretenso ao cientificismo esboçado pela linha de pensamento do também

francês Augusto Comte.

Todavia, assim como a já discutida noção de progresso, a preponderância da razão tem

suas raízes vinculadas aos mil e setencentos. Numa obra clássica da literatura espírita, “A

Caminho da Luz”, 94 o espírito de Emmanuel através da psicografia de Chico Xavier ressalta a

especialidade do Século das Luzes para o desenvolvimento da ciência:

O século XVIII iniciou-se entre lutas igualmente renovadoras, mas


elevados Espíritos da Filosofia e da Ciência, reencarnados
particularmente na França, iam combater os erros da sociedade e da
política, fazendo soçobrar os princípios do direito divino, em nome
do qual se cometiam todas as barbaridades. Vamos encontrar nessa
plêiade de reformadores os vultos veneráveis de Voltaire,
Montesquieu, Rousseau, D`Alembert, Diderot, Quesnay. Suas lições
generosas repercutem na América do Norte, como em todo o mundo.
Entre cintilações do sentimento e do gênio, foram eles os
instrumentos ativos do mundo espiritual, para regeneração das
coletividades terrestres.

No campo da Educação, o século XVIII, a rigor, completou o processo de laicização

que foi emblemático do mundo moderno, a emancipação de uma concepção de mundo

dominado pelo modelo religioso – a Igreja –, e a independência cada vez mais explícita dos

poderes supranacionais por parte de povos e Estados. Como efeito desses processos, e com a

ampla difusão dos livros, ocorreu a expansão da alfabetização e o amadurecimento de um novo

tipo de intelectual, desvinculado do poder religioso e político, caracterizado por mais

autonomia e um papel social mais incisivo e libertário.95

Nas formulações teóricas dos filósofos Iluministas, a educação surgiu como um

importante elemento de reflexão, ao mesmo tempo em que era propagada como bandeira pelo

94
XAVIER, Francisco Cândido [psicografia de EMMANUEL]. A Caminho da Luz. 32.ed. Rio de Janeiro: FEB,
2005.
95
CAMBI, Franco. Op.cit., pp.323-4.
75

projeto político burguês. Citando um exemplo clássico, o inglês John Locke, precursor do

Iluminismo e do liberalismo, teve também destaque e contribuição no campo da moderna

pedagogia.

Preceptor do filho do Lord Ashley – conde de Shaftesbury – Locke elaborou uma teoria

pedagógica que pode ser entendida como a proposta burguesa de educação. Suas concepções

acerca da mente infantil foram pioneiras e, para ele, é fundamental o papel que o mestre exerce

no sentido de propiciar o uso correto da razão. Suas principais contribuições para o pensamento

educacional é que o entendimento fica na base de tudo; pensar e entender bem são o essencial;

a formação educacional conduz ao bem refletir, ao bom raciocínio. Ler não é acatar todas as

verdades, e estudar não quer dizer mera retenção de memória ou um amontoado enciclopédico.

No que tange à educação popular, sustentava a criação das escolas voltadas para o

trabalho e defendia o oferecimento de uma educação às classes dominantes superior e

diferenciada àquela dada ao povo em geral. Ao mesmo tempo em que condenava os castigos

corporais, defendia que as crianças se submetam à vontade do adulto e se tornem dóceis e

obedientes.

A linha de pensamento do inglês John locke e do genebrino radicado na França, Jean-

Jacques Rousseau, tem suas similaridades. Entre outros aspectos, ambos se inscrevem na

crítica ao Antigo Regime no bojo das grandes transformações que abalam a Europa entre os

séculos XVII e XVIII; e o método de análise é o contratualismo, tendência dos filósofos que

afirmaram que a origem da sociedade e do Estado está na efetivação de um contrato que

estabeleceria as normas de um convívio social e subordinação política.96

Porém, as proximidades mais relevantes ficam circunstanciadas nesses pontos.

Efetivamente, Rousseau foi um dos pensadores mais originais e singulares daqueles anos mil e

setecentos. O único pensador da Ilustração que não focalizou a propriedade privada como

96
WEFFORT, Francisco C (Org.). Os Clássicos da política. V.1. 3.ed. São Paulo: Ática, 2003.
76

direito inalienável, voltou-se contra as injustiças sociais da época e fundamentou a categoria da

vontade geral, cerne da definição do corpo civil e da constituição da moderna democracia.97


98
Por excelência, seu livro “Emílio, ou, da Educação” (1762), é um clássico da

literatura pedagógica, fundindo sua obra com a “Nova Heloísa” (1761) – texto que teorizava
99
uma reforma da família a partir da ênfase no amor e na virtude -, e o “Contrato Social”

(também de 1762), trabalhos produzidos num espaço de quinze meses. A Política e a

Pedagogia estão em conexão estreita no pensamento rousseauniano, uma é o pressuposto e o

complemento da outra.

O aspecto central de “Emílio” é o romanceamento do crescimento de um jovem onde

Rousseau constrói a aplicação de uma educação considerada ideal do homem natural – e não o

homem cidadão corrompido pela sociedade. Afastado do convívio coletivo e acompanhado de

um preceptor ideal, a educação deve ocorrer de modo “natural”, possibilitando um retorno às

faculdades originais, afastado da escravidão, livre das convenções sociais e hábitos exteriores.

Trata-se, dessa forma, na valorização das necessidades espontâneas da criança e do processo

livre de crescimento.

O espírito dessas regras está em conceder às crianças mais liberdade


verdadeira e menos voluntariedade, em deixá-las com que façam
mais por si mesmas e exijam menos dos outros. Assim,
acostumando-se desde cedo a subordinar seus desejos as suas forças,
elas sentirão pouco a privação do que não estiver em seu poder. 100

Em que pese um aparente distanciamento, a complementaridade entre esse trabalho e o

“Contrato Social” é a intervenção alternativa para a reforma ética e política da sociedade.

“Saindo de minhas mãos, ele não será, concordo, nem magistrado, nem soldado, nem padre;

será primeiramente um homem”.101

97
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2003.
98
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou, Da educação. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
99
ROUSSEAU, Jean-Jacques. A Nova Heloísa. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaios Pedagógicos. Trad.
Priscila Grigoletto Nacarato. Bragança Paulista: Comenius, 2004.
100
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou, Da educação Op.cit., p.47.
101
Id.Ibdem., p.15.
77

No princípio de “Emílio”, Rousseau já focaliza sua preocupação intelectual: “... Nosso

verdadeiro estudo é o da condição humana”. Sua pedagogia remete à integração do homem à

sociedade moral e os objetivos propostos da educação são inseparáveis da filosofia, da política

e da religião.

Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos desprovidos de


tudo, temos necessidade de assistência; nascemos estúpidos,
precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer, e de que
precisamos adultos, é nos dado pela educação.102

O filósofo genebrino operou uma chamada “revolução copernicana” na pedagogia –

analogia com o estudioso polonês Nicolau Copérnico que inverteu o centro de nosso sistema

astronômico - ao ressaltar a criança como centro de sua teorização, com suas especificidades

essenciais.

(...) a educação começa com a vida, ao nascer, a criança já é


discípulo, não do governante e sim da natureza... Nascemos capazes
de aprender, mas não sabendo nada, não conhecendo nada. A alma,
acorrentada a seus órgãos imperfeitos e semiformados, não tem
sequer o sentimento da própria existência..103

O historiador da educação Franco Cambi, destacou as três contribuições mais decisivas

de Rousseau à pedagogia:104 1. a descoberta da infância como idade autônoma dotada de

características específicas; 2. o elo entre motivação e aprendizado colocado no centro da

formação intelectual do Emílio e que exige a premissa de que no ensino de qualquer noção é

necessário a referência precisa à sua experiência concreta; e 3. a atenção do educador quanto o

equilíbrio entre liberdade e autoridade, no cuidado para que a aprendizagem “natural” não

signifique mero espontaneísmo da criança.

Esse suíço de origem humilde, nascido em 1712, um dos quinze filhos de um relojoeiro,

Rousseau enfrentou um caminho tortuoso, ingressando no mundo das letras dominado, em sua

102
Id.Ibdem., p.9.
103
Id.Ibdem., p.44.
104
CAMBI, Franco. Op.cit., p.346-7.
78

maioria, por intelectuais como Voltaire, oriundo de abastada família burguesa. Entretanto,

mesmo com condição social inferior e avesso às cortes, marcou seu tempo,

Concebo na espécie humana duas formas de desigualdade: uma a que


chamarei natural ou física, por que é estabelecida pela natureza e que
consiste na diferença de idade, de saúde, de força corporal e de
qualidades do espírito ou da alma, outra que se pode chamar
desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de
convenção e porque é estabelecida, ou pelo menos autorizada, pelo
consentimento dos homens. Esta consiste nos privilégios de que
gozam alguns em prejuízo dos outros, como o ser-se mais rico, mais
honrado, mais poderoso que os outros, ou mesmo o fazer-se obedecer
por eles. 105

O alcance de “Emílio”, embasado na proposta do modelo da educação libertária e

natural, remete para a constituição do cidadão, homem ativo e soberano capaz de almejar a

liberdade. Por outro lado, é também súdito, na medida em que se submete às leis que ele

mesmo contribuiu para a constituição.

3.3 – Johann Heinrich Pestalozzi

26 de Agosto de 1792. Exatamente três anos depois da promulgação pela Assembléia

Constituinte da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, redigida a partir de

premissas Iluministas em sua face mais popular e abrangente – as convicções de Jean-Jacques

Rousseau, o suíço Johann Heinrich Peslalozzi (1746-1827) recebia, numa Paris repleta de

estampas da nova bandeira tricolor, síntese simbólica dos ideais revolucionários de ‘liberdade,

igualdade e fraternidade’, o título de cidadão francês.

No mesmo ano, era redigido pelo deputado Condorcet, um “Plano de Instrução

Pública”, que buscava estender a todos os cidadãos o ensino público e gratuito, assim como um

saber técnico necessário à profissionalização. O projeto não foi aprovado. No ano seguinte,

num governo mais engajado como os setores populares, Lepelletier elaborou um “Plano

105
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens.
Lisboa: Publicações Europa-América, 1976, p.15.
79

Nacional de Educação”, encomendado por Robespierre, afinado com o caráter social que a

Revolução se propunha com os jacobinos.

Eram tempos de ebulição, e se na época de Comenius e da expansão ultramarítima a

modernidade fincava seus alicerces, o mundo de Pestalozzi assistia à consolidação plena desse

projeto.

Esse espírito da “revolução cultural” entoado pelas vozes mais contestadoras do

Iluminismo, como Rousseau ou Kant, assim como o ímpeto revolucionário da Revolução

Francesa, articulada à noção de liberdade, consubstanciou uma tendência contra a razão

setecentista e sua centralização ao indivíduo. Esse novo contexto cultural, que abarcava

terrenos distintos, como a literatura, a filosofia, a arte, a historiografia, a música, entre outros

campos, foi qualificada como “romântica”.106 No bojo desse sentimentalismo que remetia suas

raízes à Europa medieval cristã, eram entoadas críticas aos aspectos periféricos da

modernização (como o tecnicismo, a massificação e a exclusão).

Na esfera pedagógica, Johann Heinrich Pestalozzi foi o grande mestre da pedagogia

romântica, revivendo as lutas travadas pelo ensino – os sonhos, os projetos, a militância – e

reativando uma noção espiritual da educação, animada pelo amor.

Ainda que pouco estudado e difundido no Brasil, Pestalozzi é o educador e filósofo da

educação mais discutido no mundo. Quando da ocasião do primeiro centenário da morte desse

gênio suíço, Édouard Claparède contou pacientemente o número de linhas e páginas dedicadas

a catorze pedagogistas modernos, em três enciclopédias pedagógicas (Buisson, Rein e Monroe)

e de quatro histórias gerais da pedagogia, editadas entre 1910 e 1920. Nesse estudo de

Claparèd, o nome de Pestalozzi era, de longe, o primeiro em citação, o dobro de Rousseau que

o seguia posteriormente.107

106
CAMBI, Franco. História da Pedagogia. Op.cit., p.416.
107
CHÂTEAU, Jean. Os Grandes Pedagogistas. Op.cit., pp.209-10.
80

Suíço-alemão nascido em Zürich, Pestalozzi ficou notabilizado pela sua atuação como

educador, diretor e fundador de escolas, principalmente para crianças pobres. Estudioso de

Rousseau e Basedow, fundou, em 1774, em Neuhof, um educandário onde acolheu órfãos,

mendigos e pequenos ladrões, tentando recuperá-los, numa avançada concepção que aliava a

formação geral e profissional, recorrendo a trabalhos de fiação e tecelagem.108 Por dificuldades

financeiras, a empreitada não durou mais que cinco anos.

Entre 1780, o fim da experiência de Neuhof, até 1798, quando eclodiu a Revolução

Suíça e tornou-se redator do jornal “Folha popular helvética”, Pestalozzi escreveu e publicou

importantes obras literárias e pedagógicas, como “Crepúsculo de um eremita”, “Leonardo e

Gertrudes” e “Minhas indagações sobre a marcha da natureza no desenvolvimento da espécie

humana”.

Em 1798, dirigiu também um instituto para órfãos em Stans, articulado como uma

família e destinado a educar intelectual e moralmente os rapazes afiliados. Aqui, Pestalozzi

desenvolve os princípios fundamentais de seu ensino, o método intuitivo e o ensino mútuo.109

A experiência de Stans foi interrompida, assim como a escola e seminário de

professores, aberto em 1799, no castelo de Burgdorf, foi fechado em 1804. Entretanto, foi em

Yverdon, no cantão de Vaud, que Pestalozzi organizou seu método educativo na forma mais

completa, com o instituto internacionalizando-se, aglutinando visitantes expressivos, como

Fröebel, Madame de Stäel e Hipollyte-Léon Denizard Rivail.

A premissa fundamental de seu pensamento é a existência de uma natureza, uma

essência humana, independente da categoria social ou de circunstâncias externas.110 Na trilha

do contratualismo de Rousseau, a idéia de uma essência humana que almeja a realização da

felicidade possível, permeada pela paz interior que todos anseiam.

108
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da educação. São Paulo: Moderna, 1989, p.184.
109
CAMBI, Franco. Op.cit., p.417.
110
INCONTRI, Dora. Pestalozzi: educação e ética. São Paulo: Scipioni, 1997, pp.33-4.
81

Sistematizando o pensamento pedagógico de Pestalozzi, o historiador Franco Cambi

aponta três teorias: 1. a idéia da educação como processo que deve seguir a natureza; sendo a

bondade inerente, o homem deve ser acompanhado em seu desenvolvimento de modo a liberar

suas faculdades morais e intelectuais; 2. a da formação espiritual do homem como unidade de

“coração”, “mente” e “mão” (ou “arte”), que deve ser desenvolvido por meio da educação

moral, intelectual e profissional, estreitamente ligadas entre si; e 3. a da instrução, segundo a

qual, no ensino, é necessário sempre partir da intuição, do contato direto com as diversas

experiências que cada aluno deve concretamente efetivar em seu próprio meio.

Em “Carta sobre educação infantil”, Pestalozzi ressalta sua crença no ser humano e a

pureza contida nas crianças: 111

Em minha última carta expus minha sincera convicção de que na


criança se dá uma disposição que, com a ajuda divina, pode capacitá-
la a cumprir - e não com o objetivo de distinguir-se com isso entre as
demais pessoas - o máximo mandamento de seu Criador, isto é:
caminhar sob a luz da fé, com o coração pleno daquela caridade
sobre a qual está escrito que ‘tudo tolera, tudo crê, tudo espera, tudo
suporta. A caridade jamais acabará’ (I Coríntios, 13,7-8). A esta
disposição, tal como se manifesta no primeiro estádio da vida
humana, eu a tenho chamado de capacidade de amor e de fé.

A educação verdadeira, para o educador suíço-alemão, é a educação segundo a

natureza, que conduz por sua essência a aspiração à perfeição, à realização das faculdades

humanas.

Ainda nessa obra dedicada à educação infantil, Pestalozzi ressalta sua crença no papel

da educação para a busca da felicidade: 112

Se passamos a considerar o homem como ser individual, há que se


afirmar que a educação deveria fazê-lo feliz. O sentimento de
felicidade não nasce de circunstâncias externas; é um estado de alma
caracterizado pela consciência de harmonia entre o mundo interior e
o exterior. Impõe aos desejos os limites que lhes correspondem e
assinala às faculdades do homem os objetivos mais elevados. Pois
feliz o é aquele que é capaz de acomodar suas necessidades aos
meios de que dispõe e de renunciar aos desejos pessoais e egoístas
sem perder por isso sua alegria e sua paz (...).

111
PESTALOZZI, Johann Heinrich. Carta sobre educación infantil. Madri: Editorial Tecnos, 1988, p.26.
112
PESTALOZZI, Johann Heinrich. Id.Ibdem., pp.131-2.
82

Escritor com vasta produção filosófica e literária, publicou, em 1801, “Como Gertrudes

ensina a seus filhos”, uma de suas principais obras pedagógicas, organizada em forma de

cartas. Nesses escritos, Pestalozzi focaliza o papel da mãe na vida da criança, enfatizando que

o amor à humanidade é aprendido com o aconchego materno, que deposita em seu coração os

germens do amor por todo o ser humano.113

No “Canto do cisne”, último desabafo do militante incansável pela educação popular,

Pestalozzi.114

Meu caráter juvenil era, como já disse, sentimental, poderosamente


afetado pela impressão dos acontecimentos de cada instante; e isto
me levava a trabalhar com precipitação e irreflexão. Eu vim ao
mundo unicamente desde as limitações do lugar de minha mãe e as
limitações não menores da vida em minha escola; a vida real das
pessoas eram, para mim, quase tão estranhas como se eu não vivesse
no mundo em que vivia. Acreditava que todas as pessoas eram tão
bondosas e confiáveis ao menos como eu mesmo; como o qual,
naturalmente, desde meus ternos anos fui a vítima de todos aqueles
que quiseram me fazer objeto de suas artimanhas.

Em 1651, o príncipe Georges Rakoczy, da Transilvânia, desejando reformar as escolas

da Hungria, encomendou a Comenius um plano para aplicá-lo na escola de Patak, da qual lhe

confiou a direção. Mas Jan Comenius esbarraria na resistência e no conservadorismo social. A

rigor, depois dele, Basedow, Froebel, Pestalozzi, Hypollite-Léon, promotores de reformas

pedagógicas seriam obstaculizados, colecionariam mais fracassos do que vitórias. Comenius

atribuiu as barreiras para que alcançasse os êxitos, sobretudo, dos professores, que não “(...)

tinham nem vontade bastante de aplicar os métodos novos, nem autoridade bastante para lutar

contra a preguiça e indisciplina dos alunos”.115

Até em nossos dias, mesmo no Brasil, pensadores e ativistas como Eurípedes

Barsanulfo ou Anália Franco, no território do espiritismo; Paulo Freire, Anísio Teixeira ou

Darcy Ribeiro, na teorização e articulação de políticas educacionais de qualidade direcionadas

113
ARCE, Alessandra. A Pedagogia na “Era das Revoluções”: uma análise do pensamento de Pestalozzi e
Froebel. Campinas: Editora Autores Associados, 2002.
114
PESTALOZZI. El canto del cisne. Barcelona: Laertes, S.A. de Ediciones, 2003, p.229.
115
CHÂTEAU, Jean. Os Grandes Pedagogistas. Op.cit., p.123.
83

aos pobres, entre muitos outros, esbarram quase sempre na incompreensão e no preconceito

generalizado.

Como observou Comenius em Patak, as melhores reformas estarão fadadas ao fracasso

se os professores não estiverem aptos e decididos a implementá-las.


84
85

CAPÍTULO II
APROPRIAÇÃO E DISSEMINAÇÃO DO
ESPIRITISMO NO BRASIL

Na quinta-feira que precede o fim de um novenário que se encerra no segundo

domingo após o Dia de Reis, dezenas de baianas, vestidas com o figurino típico das

celebrações africanas do Candomblé, executam a lavagem com água de cheiro do adro da

Igreja do Bonfim, no alto da Colina Sagrada. No dia seguinte, padres mais flexíveis costumam

visitar os terreiros e tomar o descarrego, numa demonstração clara do respeito pela diversidade.

Na Bahia de todos os santos e deuses, meio que síntese do Brasil e da brasilidade,

terra onde o etnólogo e fotógrafo francês Pierre Verger encantou-se com o sincretismo e a

pluralidade, adotando o país como pátria, Iansã virou Santa Bárbara, Iemanjá converteu-se em

Nossa Senhora e Xangô transformou-se em São Jerônimo e São Pedro.116

A festa do Bonfim é um dos inúmeros encontros da cultura popular brasileira que

arrebata multidões, numa combinação entre o sagrado e o profano, elementos do catolicismo

com as crenças africanas. O Senhor do Bonfim é sincretizado com Oxalá e, como Verger

116
CASCUDO, Luís da. Dicionário do folclore brasileiro. [Verbete: Bonfim]. 10.ed. São Paulo: Global, 2001,
pp.75-6.
86

pontuou, goza de um enorme prestígio e inspira fervorosa devoção entre os habitantes de todas

as categorias sociais.117

A matriz africana da composição da brasilidade é, continuamente, vivificada no país.

Na lenda dos Orixás, Omolu é filho de Nanã (a mais velha deusa das águas) e Oxalá (pai de

todos os deuses); responsável por todas as doenças e possuindo o poder de curar ou fazer

adoecer qualquer pessoa, é um dos orixás mais temidos pelos seguidores do Candomblé. No

catolicismo, São Lázaro é um dos santos de maior devoção, sobretudo, entre os pobres,

personificando todos os excluídos. Sua história é relatada numa parábola do Evangelho de São

Lucas, pela qual pobre e doente, caído à porta de um rico insensível ao seu drama, viveu na

solidão e no abandono. Após a morte, as posições se inverteram, e Lázaro entrou no reino dos

céus.

Também na capital baiana, São Lázaro e Omolu são mesclados e reverenciados por

possuírem o dom da cura e, no último domingo de janeiro, milhares de seguidores do

Candomblé e do catolicismo saem em procissão homenageando o santo / orixá. Enquanto os

fiéis lotam a igreja, seja à espera de cura para alguma doença, ou, simplesmente, aguardando a

hora de agradecimento de uma graça alcançada, outros, do lado de fora, banham-se com pipoca

num ritual de purificação do corpo.

Num mundo marcado por conflitos interétnicos e intolerância das mais diversas, o

Brasil é um país ímpar, plural, com variadas faces e nuanças, e o brasileiro, com uma grande

diversidade étnica e cultural, incorpora e absorve elementos de suas diferentes raízes, bem
118
traduzido simbolicamente nas páginas de “Macunaíma” e do manifesto antropofágico dos

modernistas de 1922.
119
Contava Darcy Ribeiro, um “pajé da brasilidade” , com seu entusiasmo peculiar,

que, em dada ocasião, um padre jesuíta catequizou e converteu os indígenas de uma tribo,
117
VERGER, Pierre. Orixás, Deuses, Iorubás na África e no Novo Mundo. Salvador: Corrupio, 1997, p.259.
118
ANDRADE, Mário. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: LTC, 1978.
119
Tomamos aqui emprestado o título de uma entrevista de Darcy a um jornal: GONÇALVES, Marcos Antônio.
O Pajé da brasilidade. Folha de São Paulo. São Paulo, 5/2/1995. Revista da Folha.
87

obtendo a promessa de que os rituais pagãos seriam abandonados. Tempos depois, o clérigo da

Companhia de Jesus ali retornou e observou com frustração que os índios insistiam em suas

crenças primitivas. - “Calma, seu padre, vamos explicar”, redargüiu o líder: “O Deus do senhor

é forte. Os nossos também. Pense com a gente, juntando a força do seu Deus, com os que nos

protegem, que são fortes, vamos ficar mais fortes ainda e mais protegidos!”.120

Decerto, esse caso é um indicativo seguro da resistência cultural do nativo; e as matas

do Brasil, ao longo do percurso histórico, encerram milhares de casos, sendo poucos os

conhecidos, a maioria encobertos pelo véu do tempo, assim como as muitas histórias das

fazendas canavieiras e as senzalas das épocas áureas do açúcar, com os milhões de africanos

aqui desembarcados, forjando a alma do brasileiro e a permanência das raízes.

O espiritismo de Allan Kardec é constituído por um sistema complexo de pensamento

que funde filosofia, ciência e religião. É indubitável, também, que, no Brasil, diferentemente da

França, seu berço, o espiritismo enfatizasse mais sua face religiosa de moralização da

conduta121 - e esses antecedentes históricos e culturais da formação do brasileiro contribuíssem

sobremaneira para esse fenômeno singular. Nos próximos itens, abarcando discussões da

multiplicidade cultural nacional, delineamos a trajetória histórica do kardecismo no Brasil e

alguns traços da religiosidade do brasileiro à luz do pensamento social brasileiro.

1 – Trajetória histórica do Espiritismo no Brasil

No campo do espiritualismo popular, ao largo do século XIX, manifestações supra-

normais já compunham o imaginário religioso do brasileiro. Antes mesmo do caso das irmãs

120
Nos idos de 1989, na campanha presidencial de Leonel Brizola, Darcy Ribeiro, que no início do governo
Newton Cardoso (1987/1990) havia sido secretário extraordinário para a construção dos CIEP’s em Minas, a
famosa escola de tempo integral, projeto que não deslanchou, percorreu o Estado divulgando seu romance
“Maíra”, então relacionado para o vestibular da UFMG, e os planos de Brizola para a educação. Na ocasião, como
ativista do velho PDT, tive a oportunidade ímpar de acompanhá-lo em algumas palestras e presenciava o
entusiasmo do antropólogo e educador desta e muitas histórias da brasilidade. Do velho pajé e do brizolismo,
registro aqui em tempo, absorvi a crença na educação como o verdadeiro instrumento de afirmação do ser humano
e do povo brasileiro [nota do autor].
121
HELLERN, Victor, NOTAKER, Henry & GAARDER, Jostein. O Livro das Religiões. São Paulo: Companhia
das Letras, 2002, pp.290-1.
88

Fox nos Estados Unidos, já havia registros de reuniões espíritas no Brasil. Em 1967, o Anuário

Espírita publicava um fac-símile de um documento procedente da Bahia, onde um juiz do

Império, nos idos de 1845, relatava as providências tomadas ao ser informado que, num certo

distrito, Mata de São João, eram rotineiras as “...reuniões noturnas em casa certa a pretexto de

se ouvirem revelações das almas dos mortos que se fingem aparecer com número crescido de

concorrentes...”.

Em tese de doutoramento na Unicamp sobre os espetáculos de circo e teatro em Minas

Gerais oitocentista, a professora Regina Horta descreve magias, apresentações de “espiritismo

moderno”, manifestações mediúnicas imbricadas à cultura popular.122 Num evento registrado

por um periódico de Ouro Preto em 1891, o “Jornal de Minas”, o artista anunciava que o

espetáculo e a demonstração do sobrenatural interessaria “...aos homens de ciência e ao clero,

pelas questões de física e psicologia”.123

Nesse grande laboratório de mestiçagem biológica e cultural que amalgamou, no

terreno religioso, o chamado sincretismo, o Brasil possuía mesmo como uma predisposição

cultural a aceitação do espiritismo, enraizada em suas matrizes indígenas e africanas.

No campo do pensamento acerca da imortalidade da alma, destaca-se, também, o

eminente político do Império, Marquês de Maricá, cujas reflexões e reuniões filosóficas

valeram-lhe diversas prisões ainda no final do século XVIII. Numa de suas indagações,

questionava “... De que nos serviria a outra vida se o nosso espírito não conservasse o cabedal

de idéias e conhecimentos que adquiriu na primeira, se perdesse a memória da sua identidade

individual e intelectual”,124 numa clara alusão à reencarnação, postulação essa anterior a

Kardec.

122
DUARTE, Regina Horta. Noites Circenses – Espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais do Século XIX.
Campinas: Editora da Unicamp, 1995, p.174.
123
THEATRO. Jornal de Minas. Ano XIV, n.32. Ouro Preto: 14/02/1891, p.3. apud DUARTE, Regina Horta.
Ibdem., pp.174-5.
124
MARICÁ, Marquês de. Máximas, Pensamentos e Reflexões. Rio de Janeiro: Tecnoprint Gráfica, 1967.
89

O fenômeno europeu e estadunidense das mesas girantes chegou ao Brasil em meados

de 1853, empolgando salões quase que simultaneamente na Corte do Rio de Janeiro, no Ceará,

em Pernambuco e na Bahia.

Foi na capital Imperial que, em 1860, um francês ilustrado, o professor Casimir

Lieutaud, diretor-fundador de um colégio onde ensinava a língua francesa e autor de uma

gramática com 25 edições até 1957, “Tratado Completo da Conjugação dos Verbos Franceses,

Regulares e Irregulares”, publicou a primeira obra de caráter espírita do Brasil, “Les temp sont

arrivés” – literalmente, “os tempos chegaram”.125 Posteriormente, em português, era publicada

uma brochura de Kardec intitulada “O Espiritismo na sua mais simples expressão”, em 1862,

com três edições sucessivas impressas em Paris no mesmo ano de lançamento da 1ª edição

francesa, fato que chamou a atenção do teórico da doutrina.126

E na Bahia, um filho de oficial do exército, Luís Olímpio Teles de Menezes, professor

de instrução primária e de latim e também autor de teoria lingüistica, a “Ortoépia da Língua

Portuguesa”, fundou um grupo familiar de espiritismo, a primeira associação espírita do país,

em 1865 e, no ano seguinte, traduziu e publicou em Salvador parte da obra de Allan Kardec,

“O Livro dos Espíritos”.

Em julho de 1869, foi lançado, ainda por Teles de Menezes, o primeiro periódico

espírita brasileiro, o “Eco d’Além Túmulo”, que trazia, em seu subtítulo, “Monitor do

Espiritismo no Brasil”. No informativo, editado em pouco mais de um ano, eram divulgadas

matérias locais e reproduzidas páginas e questões publicadas na Revue Spirite (Revista

Espírita) – órgão francês de Allan Kardec – e em “O Livro dos Espíritos”.127

No entanto, a trajetória do espiritismo no país é permeada por querelas com o clero

católico. O arcebispo da Bahia e primaz do Brasil, e também presidente do Instituto Histórico

125
WANTUIL, Zêus (Org.). Grandes Espíritas do Brasil. 4.ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira,
2002, p.564.
126
Id.Ibdem., p.564.
127
LACERDA FILHO, Licurgo S. de. A mediunidade na história humana: Os primeiros anos do espiritismo e a
mediunidade no Brasil. [volume 5]. Araguari: Minas Editora, 2005, pp.35-6.
90

da Bahia, D. Manoel Joaquim da Silveira, em 1867, circulou uma pastoral denunciando os

“erros perniciosos do espiritismo”, visto como “essencialmente religioso, ou antes, (...) um

atentado contra a religião católica”.128 Teles de Menezes, membro do mesmo instituto,

respondeu com uma carta aberta sustentado a “preexistência, reencarnação e manifestação dos

espíritos”.129

Quando os integrantes do grupo de Teles de Menezes intentaram a criação de uma

“Sociedade Espírita Brasileira”, não obtiveram sucesso justamente pela influência do clero

católico. Dois anos depois, em 1873, eles conseguiram fundar uma entidade representativa, a

“Associação Espirítica [sic] Brasileira”, enquadrada como organização com finalidade

científica, para romper a resistência católica.130

A segunda associação do espiritismo surgiu no Rio de Janeiro, o “Grupo Espírita

Confúcio”, formado por três expoentes do movimento republicano, Francisco Leite de

Bittencourt Sampaio – político, jornalista e alto funcionário público -; Antônio da Silva Neto,

engenheiro baiano -; e Joaquim Carlos Travassos – médico e industrial carioca.131

A sociedade, fundada em 1873, contava com normas de funcionamento e estatuto

jurídico, aspecto pioneiro no país, e lançou uma tendência que se tornou tônica no movimento

espírita – a assistência médica com tratamentos homeopáticos gratuitos, receitas atribuídas a

influências mediúnicas e recebidas por Bittencourt Sampaio.

Assim, o espiritismo disseminava-se pelo Brasil, com a participação expressiva da

classe média e camadas dominantes, e vários grupos sucederam-se, fosse pelo aumento dos

adeptos ou disputas pelo controle interno. Chocavam-se os que pretendiam imprimir uma

conotação científica aos estudos, com experimentos das manifestações controladas, com

128
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo, uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997, p.13.
129
Id.Ibdem, p.13
130
LACERDA FILHO, Licurgo S. de Op.cit., p.36.
131
WANTUIL, Zêus (Org.). Op.cit., passim.
91

aqueles que valorizavam sua dimensão religiosa, preocupando-se com orientações espirituais

ligadas ao crescimento moral.132

Foi a ênfase no aspecto religioso da obra de Kardec, de acordo com o prof.º. Cândido

Procópio Ferreira de Camargo, autor da obra clássica da sociologia nacional “Kardecismo e

Umbanda”, que constituiu o traço distintivo do espiritismo brasileiro, “... e, talvez, a causa de

seu sucesso entre nós”.133

Nessa perspectiva, outras entidades iam surgindo. Uma importante dissidência do

grupo Confúcio foi a “Sociedade de Estudos Espíritas Deus, Cristo e Caridade”, liderada por

Bittencourt Sampaio. Outras cisões ocorrem; em 1877, foi constituída a “Congregação Espírita

Anjo Ismael” e, em 1878, o “Grupo Espírita Caridade” – ambos orientados pelo

assistencialismo e pela a prática da caridade, numa discordância às discussões científicas. A

“Sociedade de Estudos Espíritas Deus, Cristo e Caridade” prosseguiu suas atividades, apesar

das dissensões, mas, em 1880, um grupo capitaneado pelo professor Afonso Torterole

conseguiu mudar a denominação da instituição para “Sociedade Acadêmica Deus, Cristo e

Caridade”. Esta decisão provocou a terceira e última cisão, gerando a formação do “Grupo

Espírita Fraternidade”, com Bittencourt Sampaio e dois novos participantes, que tiveram

importância no movimento espírita brasileiro, Antônio Luis Sayão e Frederico Pereira da Silva

Júnior.134

As dissensões internas enfraqueciam o movimento e imprimiam um caráter efêmero

aos grupos constituídos. Entre as várias vertentes espiritualistas presentes no país, uma bem

articulada foi composta pelos adeptos das idéias de Jean Baptiste Roustaing, cuja obra,

publicada em 1866, “Os quatro evangelhos”, suscitou oposição rigorosa dos kardecistas

brasileiros. Para as duas correntes, Jesus Cristo não é Deus e seria um espírito altamente

132
SANTOS, José Luiz, Op.cit., p.17.
133
CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de. Kardecismo e Umbanda – Uma interpretação sociológica. São
Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1961, p.4.
134
LACERDA FILHO, Licurgo S. de Op.cit., p.48.
92

evoluído com uma missão especial entre os homens. Mas, enquanto os seguidores de Kardec

acreditam que Cristo viveu como homem na Terra, Roustaing sustentou que não faria sentido

um ser perfeito encarnar-se como os homens, sendo que seu corpo seria constituído de fluídos

– elemento, segundo os espíritas, intermediário entre a matéria e o espírito. Para os kardecistas,

essa concepção do corpo de Cristo imprimia um caráter místico e sobrenatural ao espiritismo.

Bittencourt Sampaio era um dos expoentes da vertente de Roustaing. 135

Em 28 de agosto de 1881, a revista “O Cruzeiro” e o “Jornal do Comércio”

informavam, em reportagem sobre uma ordem policial proibindo o funcionamento da

“Sociedade Acadêmica Deus, Cristo e Caridade”, e mencionavam as sanções penais àqueles

que desobedecessem à determinação. No mesmo dia, representantes da “Sociedade”

procuraram o Ministro da Justiça que, por sua vez, afirmou que não haveria perseguições

religiosas. Todavia, no dia 30 do mesmo mês, um oficial de justiça apresentou-se com uma

intimação, vedando as reuniões daquele grupo espírita.136

Uma comissão foi montada para verificar a origem do mandato. Um dos membros era

o médico e político mato-grossense, Antônio Pinheiro Guedes que, com outras figuras de certo

relevo social, procurou o Segundo Delegado de Polícia da Corte, que tinha assinado o mandato.

Constatando que a determinação viera de escalões superiores, recorreram ao próprio imperador

D. Pedro II, em setembro de 1881, durante a realização do Primeiro Congresso Espírita

Brasileiro, e obtiveram a promessa – que fora cumprida – de que não haveria perseguição.137

Esses eventos são relevantes para a compreensão da disseminação do espiritismo.

Além de um ambiente cultural propício, como exposto, pelas peculiaridades da formação

brasileira, engajaram em suas fileiras importantes elementos de classe média e alta. A rigor,

numa análise mais abrangente do movimento espiritualista, há uma distinção entre o alto

135
SANTOS, José Luiz dos. Op.cit., pp.17-8
136
Id.Ibdem. P.50.
137
Id.Ibdem., p.51.
93

espiritismo – também conhecido como “mesa Branca”, em que o kardecismo inscreve-se – e o

baixo – com os adeptos da Umbanda e do Candomblé, mais notadamente popular.138

As atividades assistenciais de Eurípedes Barsanulfo em Sacramento, objeto desta

dissertação, também suscitaram reações, que culminaram na abertura de um inquérito policial e

jurídico a partir de Uberaba, por conta de seu suposto exercício ilegal da medicina – ponto que

abordaremos no capítulo V - item 1.3 desta dissertação (“O Médium - ou, nos passos de ‘tio

Sinhô’ Mariano”). Tal como os precursores do movimento espírita, Eurípedes contaria com a

omissão e a ajuda velada de membros do judiciário e da política sacramentana.

O ambiente para os adeptos do espiritismo era hostil, numa época em que o

catolicismo predominava. A admissão dessa fragilidade levou os espíritas a articularem a

fundação, em 1884, da “Federação Espírita Brasileira (FEB)”, com a expectativa de agregar

todos os grupos espíritas, independente de suas divergências.139 Sintonizados com um ideal

republicano, essencialmente descentralizado, os elementos que constituíram a FEB optaram

para uma organização do espiritismo brasileiro numa base federativa, como o próprio nome da

entidade sugeria. Definido um congresso realizado no Rio de Janeiro em 1889, o modelo que

contemplava o caráter autônomo dos centros espíritas e da idéia de organização nas províncias

que se opunham à centralização da monarquia.140

Um dos nomes de relevo convertido ao espiritismo e que teve um papel agregador no

emergente movimento espírita, foi o médico e político cearense Adolfo Bezerra de Menezes

Cavalcante (1831-1900). Quando se desligou em definitivo da política, em 1886, passou a

dedicar-se integralmente ao espiritismo, escrevendo com o pseudônimo de Max no célebre “O

Paiz”, dirigido por Quintino Bocaiúva.141 Presidiu a FEB em dois momentos: o primeiro, em

1889, marcou a decisão do princípio federativo da entidade. Sem preocupar-se com o lado

138
HELLERN, Victor et.al. Op.cit., pp. 289-91; CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de. Op.cit., passim.;
RIBEIRO, Larissa Brito. O Habitus religioso espírita: uma interpretação sociológica. Revista de Ciências
Humanas. Vol.3, n.1, Viçosa: Universidade Federal de Viçosa, jul. 2003, pp.35-42.
139
SANTOS, José Luiz dos. Op.cit., p.19.
140
Id.Ibdem., p.20.
141
KLEIN FILHO, Luciano. Bezerra de Menezes: Fatos e documentos. 2.ed. Niterói: Lachâtre, 2001, pp. 143-57.
94

científico do movimento, vinculava-se às tendências mais religiosas do espiritismo, se

aproximando do pensamento de Roustaing. Em decorrência do acirramento das disputas, não

completou um ano à frente da FEB, afastando-se da direção do movimento. Entretanto voltou a

presidir a entidade entre 1895 e 1900, período em que as características atuais do espiritismo

foram consolidadas, assinalando a supremacia do grupo religioso.142

O processo de cura e difusão de receitas médicas gratuitas popularizaram o

espiritismo e contribuíram com a sua disseminação. Analisando as transformações advindas

com a proclamação da República e a desintegração de uma sociedade patriarcal e semi-

patriarcal sob o regime do trabalho livre, Gilberto Freyre, em “Ordem e Progresso”, analisou a

expansão do movimento espírita à luz dessas mudanças. O sociólogo destacou o caráter

beneficente das associações e algumas semelhanças em suas atividades com as confrarias

católicas; a fundação da FEB, tendo como um de seus mentores um general de exército, depois

marechal Francisco Ewerton Quadros, que fez parte de uma Assistência aos Necessitados ao

lado de uma Escola de Médiuns; e, em 1912, fundou-se também no Rio de Janeiro, um hospital

espírita para “... pessoas atacadas de alienação mental que quisessem submeter-se ao

tratamento pelas correntes fluídicas organizadas pelo astral superior”.143

O sentido religioso do espiritismo predominou em superação às tendências científicas,

e a FEB marcou uma nova etapa do movimento no Brasil, proporcionando uma maior

coerência e homogeneidade na difusão da doutrina. Nas primeiras décadas do século XX, seu

crescimento foi notável, extrapolando os limites de Salvador e do Rio de Janeiro, seus pólos

originais.

Um elemento também muito importante para a expansão do kardecismo pelo Brasil

foi a utilização maciça dos órgãos de imprensa, que atingia os segmentos letrados da população

– sua principal faixa social. Após a publicação de “O Eco D’Além Túmulo”, do pioneiro Teles

142
SANTOS, José Luiz dos. Op. cit., p.27.
143
FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. 6.ed. São Paulo: Global Editora, 2004, p.790.
95

de Menezes em Salvador, foi lançado, em 1883, no Rio de Janeiro, o “Reformador”,

denominado “mensário religioso do Espiritismo cristão”. Com a fundação da Federação

Espírita Brasileira no ano seguinte, esse jornal tornou-se órgão oficial da nova instituição que

agregava vários grupos.144

Passo também importante para a divulgação do espiritismo com ênfase na leitura e no

estudo, ainda foi a instalação, em 1897, de uma editora especializada pela FEB, que vem

funcionando até hoje, com a publicação de obras de autores brasileiros e estrangeiros.

A República, por outro lado, endurecera a posição contra as atividades espíritas, numa

tentativa, talvez, de apaziguar as relações com a Igreja, estremecidas com o desatrelamento

com o Estado. O Código Penal de 1890 era enfático: “É crime praticar o Espiritismo, a magia e

seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancia (...), inculcar curas de moléstia (...) e subjugar a

credulidade pública. Pena: prisão celular de 1 a 6 meses e multa de 100 a 500$”.145 O

“Reformador” denunciava em suas páginas a repressão policial contra o movimento, que

chegava ao cúmulo de espancamento físico e apedrejamento aos recintos singelos pelo país

afora.146

Porém surgiam inúmeros expoentes da doutrina e grupos espíritas que irradiavam a

religião em todas as regiões do Brasil.

Em São Paulo, o líder pioneiro foi um português nascido no interior lusitano, Antônio

Gonçalves da Silva Batuíra (1839-1909). Filho de humildes camponeses, tendo completado

apenas a educação primária, veio com cerca de 11 anos para o Brasil, aportando, inicialmente,

no Rio de Janeiro, mudando para Campinas e depois São Paulo. Como entregador de jornais,

aprendeu a arte tipográfica e, com as economias reunidas, montou um pequeno teatro, que

144
COLOMBO, Cleuza Beraldi. Op.cit., pp.56-7.
145
LACERDA FILHO, Licurgo S. Op.cit., p.63.
146
COLOMBO, Cleuza Beraldi. Op.cit., p.59.
96

funcionou entre 1860 e 1870, no qual encenava diversas peças, muitas vezes, com a lotação

máxima de duzentas pessoas.147

O pobre português prosperou na vida, comprando terrenos numa região desabitada, o

Lavapés, que logo, diante do avanço da cidade, se valorizaria. Consta que inúmeras vezes

acolheu escravos fugidos, e que, quando descobertos, envidava todos os esforços para comprar-

lhes a liberdade.148 A descoberta do espiritismo ocorreu quando uma tragédia repentina o

desestabilizou, o falecimento do filho único de sua segunda esposa, D. Maria das Dores

Coutinho, um menino de apenas doze anos. A dor seria logo reconfortada pelo contato com a

doutrina espírita da qual Batuíra tornou-se um entusiasmado divulgador.

Foi com a sua dedicação que surgiu em São Paulo um importante núcleo espírita, o

primeiro com sede própria na América do Sul, construída na rua Lavapés, n.º 4, contando com

a divulgação pela “Revista Verdade e Luz”, cujo primeiro número foi lançado em 20 de maio

de 1890. Batuíra praticava a homeopatia e era considerado médium curador.

Numa sintonia com a trajetória e as postulações de Allan Kardec, o terreno da

educação também foi profícuo para o desenvolvimento da doutrina e a fundamentação de uma

denominada pedagogia espírita. Nomes como Anália Franco, Eurípedes Barsanulfo e

Herculano Pires foram essenciais a essa gestação.

Figura proeminente na história paulistana do início do século XX, Anália Franco

(1856-1919) foi uma mulher além de seu tempo – professora, teatróloga e jornalista, tendo

também ideais feministas, republicanos e abolicionistas. Nascida em Resende, no interior

fluminense, trabalhou como assistente de sua mãe, educadora primária. Em São Paulo,

formou-se como normalista, em 1876, e teve uma atuação ímpar no campo educacional.149

À ocasião da promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871, várias crianças negras

filhas de escravas eram expulsas da fazenda e o destino, na maioria das vezes, era a roda da
147
WANTUIL, Zêus. Op.cit., pp.208-24.
148
Id. Ibdem., pp.214-5.
149
MONTEIRO, Eduardo Carvalho. Anália Franco – A grande dama da educação brasileira. São Paulo: Maldras,
2004.
97

Santa Casa de Misericórdia – dispositivo discreto, que permitia o depósito anônimo de bebês

rejeitados pelo muro da instituição. Quando tomou conhecimento da situação, Anália Franco

fez um apelo às fazendeiras e pretendeu transferi-las de São Paulo para o interior.

Uma proprietária rural cedeu-lhe uma casa para a instalação de uma escola primária,

sob a condição de não misturar crianças brancas e negras. Diante da imposição e do impasse,

Anália fez questão de pagar o aluguel, o que comprometia a metade dos seus ganhos. Mas, nos

dizeres da fazendeira, a escola tornou-se um “albergue de negrinhos”, removendo logo a

professora de sua propriedade.150

Por volta de 1887, em Taubaté - SP, ela fundou o primeiro abrigo de órfãos e crianças

abandonadas, criando a primeira Casa Maternal. Repudiada por escravocratas e oligarcas

locais, contou, no entanto, com o precioso auxílio de abolicionistas, disseminando escolas

maternais pelo interior paulista. Na capital, fundou uma revista denominada “Álbum de

Meninas”, cujo subtítulo frisava: “Revista Literária e educativa dedicada às jovens brasileiras”,

em 1898151, e, com um grupo de senhoras de todos os níveis sociais, lançou a Associação

Feminina Beneficente e Instrutiva de São Paulo, em 1901, cuja lista de associados logo

chegaria a 2000 signatários. O objetivo da entidade era oferecer a instrução e o amparo a

crianças pobres e mães desamparadas.152

Seis anos após a fundação, a associação mantinha e orientava, só na capital, 22 escolas

maternais e duas noturnas, enquanto no interior funcionavam cinco escolas maternais. Ao todo,

cerca de duas mil crianças pobres recebiam a educação. Havia ainda um “Liceu Feminino

Noturno”, em São Paulo, com mais de cem alunas, e outro, em Santos.153

Nos idos de 1910, a dona Anália Franco, por ocasião da visita de um músico e militar,

organizou uma atividade inédita, a primeira banda de música feminina do país, denominada

Regente Feijó, formada por suas alunas, e articulou também a formação de um Grupo
150
COLOMBO, Cleuza Beraldi. Op.cit., pp.66-7.
151
Id.Ibdem., p.66.
152
MONTEIRO, Eduardo Carvalho. Op.cit., pp.73-5.
153
WANTUIL, Zêus. Op.cit., p.78.
98

Dramático musical. Em decorrência da eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914/1918) e o

corte de ajudas voluntárias, a associação atravessou por dificuldades, e a solução encontrada

pela dona Anália Franco, para contornar as dificuldades, foi promover excursões da Banda

Musical e do Grupo Dramático pelo interior paulista para angariar os recursos necessários.154

Quanto à conversão de Anália Franco ao espiritismo, não existe, segundo seus

pesquisadores, uma indicação precisa sobre essa circunstância. Até 1901, pouco se sabe acerca

dessa militante da educação feminina no Brasil. Católica moderada, é provável que, durante

uma crise de cegueira momentânea em que estivera recolhida e distante das atividades sociais

por volta de 1899, ela teria se aproximado da doutrina espírita.155 Existem documentos de 1903

demonstrando sua vinculação ao Centro Espírita de São Paulo, no largo do Arouche, onde

instalou, de acordo com as atas da entidade, uma escola maternal pela manhã.156

Eurípedes Barsanulfo foi o grande nome do espiritismo na primeira metade do século

XX e sua trajetória a partir de Sacramento, contribuiu decisivamente para a ampliação da

doutrina kardecista pelo Triângulo Mineiro e pelos interiores de São Paulo e Goiás. Apenas em

linhas gerais – o tema é aprofundado no capítulo V deste trabalho – vale adiantar as

circunstâncias de seu engajamento. Um advogado e coronel de Uberaba promovia sessões

espíritas domiciliares, e, participando num desses eventos, o empresário espanhol Fernando


157
Peiró converteu-se à doutrina. Seu contador na firma de cal era Mariano da Silva, o

“Sinhô”, tio de Barsanulfo. Assustado com os acontecimentos sobrenaturais na Fazenda Santa

Maria – pancadas na parede, sons de pedra no telhado, sumiço de objetos –, convidou o

espanhol a fim de analisar o fenômeno, e Peiró entendeu que seriam manifestações mediúnicas.

154
Id. Ibdem., pp.149-50.
155
MONTEIRO, Eduardo Carvalho. Op.cit., pp-199-200.
156
Id.Ibdem. p.200
157
Peiró nasceu em Linares, na Espanha. Jovem ainda, emigrou para a Argentina e viveu dois anos em Buenos
Aires. Em 1892, mudou-se para Uberaba e nunca sairia do Brasil, vindo a falecer em 1914. Converteu-se ao
espiritismo ao presenciar sessões na casa de um advogado, o Cel. Antônio Cesário da Silva, em Uberaba. Sua
esposa, a sacramentana Maria Mendonça Resende com quem casou-se em 1902, também era espírita. RIZZINI,
Jorge. Eurípedes Barsanulfo, o apóstolo da caridade. 9.ed. São Bernardo do Campo: Correio Fraterno do ABC,
2004.
99

Mariano abraçou o movimento e dessa adesão surgiu, em 1900, o primeiro centro espírita do

interior mineiro, o “Fé e Amor”, na pequena localidade rural de Santa Maria.

Filho de uma humilde, mas emergente família, que prosperava pelo comércio,

Eurípedes Barsanulfo era um jovem com muitas atividades, contador da empresa do pai, a

“Casa Mogico”, vereador e ainda que autodidata, professor do Lyceu Sacramentano. Era

católico fervoroso, mas foi por intermédio do tio que descobrira o espiritismo numa sessão em

Santa Maria em que o Bezerra de Menezes e São Vicente de Paulo teriam se manifestado,

orientando-o sobre os seus compromissos espirituais.

Seu engajamento ao espiritismo, o ativismo contínuo e perseverante e a fama

arrebatada pelas curas e manifestações mediúnicas, bem como as atividades no Collégio Allan

Kardec e na farmácia gratuita contribuíram decisivamente para a irradiação do espiritismo e

fizeram de Eurípedes um dos ícones da doutrina de Kardec no Brasil.

O legado de Anália Franco e Eurípedes Barsanulfo no campo educacional teria sua

sistematização numa linha de reflexão denominada pedagogia espírita, surgida no final dos

anos 1940, a partir da articulação e coordenação do intelectual José Herculano Pires

(1914/1979). Paulista nascido em Avaré, graduou-se em filosofia pela USP e, numa extensa

produção, que inclui poesia, ficção, filosofia, espiritismo e parapsicologia, deixou mais de 80

obras.158

Em 1948, com a participação de jornalistas e militantes da imprensa paulista, sob a

presidência de Herculano Pires, foi fundado o Clube de Jornalistas Espíritas de São Paulo, com

estudo sistemático do Livro dos Espíritos. No ano seguinte, o grupo realizou, também em São

Paulo, o “Primeiro Congresso Educacional Espírita Paulista”, convocado pela “USE – União

das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo”, fundada em 1947. Dos debates e teses

apresentadas para a fixação das bases da Educação espírita, foi concretizada a criação do

Instituto Espírita de Educação em São Paulo contando com sede própria. Em 1951, no

158
COLOMBO, Cleuza Beraldi. Op.cit., p.73.
100

“Segundo Congresso”, foi determinada a instalação do “Instituto Educacional Espírita

Metropolitano”, dedicado aos estudos e pesquisas pedagógicas.

Na história do espiritismo no Brasil, a religião de Kardec enfrentou a oposição ruidosa

do clero católico, rusgas com o sistema repressivo e com o judiciário. Certo livro de Xavier

Oliveira, em 1931, “Espiritismo e Loucura”, atacou a doutrina, comparando “O Livro dos

Médiuns” com a cocaína. Com a efetivação do Estado Novo, a repressão ao movimento foi

intensificada. No final dos anos 1930 era a vez dos protestantes distribuírem panfletos no Rio

de Janeiro contra o espiritismo.159

O movimento prosseguiu a jornada, angariando adesões, expandindo os centros e as

atividades de cura ganhavam respeito. Em 1939, realizava-se o “Primeiro Congresso Brasileiro

de Jornalistas e Escritores Espíritas”, no Rio de Janeiro e, em 1944, surgia a “Cruzada dos

Militares Espíritas”. Foi em 1946, no governo de Gaspar Dutra, que a nova Constituição do

país assegurava e garantia, finalmente, a ampla liberdade religiosa no país.

2 – Brasil, terra do sincretismo religioso – uma leitura sociológica

A ênfase do espiritismo francês na existência dos espíritos e o acesso ao mundo dos

mortos pelos seus adeptos nas sessões, bem como a popularização da idéia de mediunidade

asseguraram sua difusão em terras brasileiras. Essas noções têm mesmo seus correlatos na

formação cultural da brasilidade em suas matrizes africanas e indígenas.

Eurípedes Barsanulfo era um católico devoto, presidente da irmandade São Vicente de

Paulo, e tinha consigo um exemplar da bíblia sagrada emprestada pelo padre, algo raro para os

leigos. Quando se converteu à doutrina de Kardec provocou naturalmente muitas estranhezas e

reações. O colégio em que lecionava, Lyceu Sacramentano, entrou em crise com o afastamento

de professores e o cancelamento de matrículas. Posteriormente, nos anos seguintes, com a

159
SANTOS, José Luiz dos. Op.cit., p.86.
101

abertura do Collégio Allan Kardec, a prática do assistencialismo e da cura, tudo leva a crer que

a situação acomodou-se e tendeu para a ‘normalidade’.

A Igreja Católica, decerto, mantinha - e mantém – sua hegemonia. Mas é um fato

social interessante e um objeto de reflexão e relevo sociológico a coexistência entre o

catolicismo e o espiritismo, e, não é raro, seja em Sacramento, no Triângulo Mineiro ou no

Brasil, a pessoa freqüentar os rituais católicos e, eventualmente, tomar passes num centro

espírita ou recorrer a benzedeiras ou pais-de-santo. Se o espiritismo não superou o catolicismo

em Sacramento com a trajetória de Barsanulfo, sua inserção na vida política e social

permaneceu inabalada.

Além do kardecismo, no território do espiritualismo, destacam-se também a Umbanda

e o Candomblé em suas múltiplas variações – quimbanda, macumba, aruanda, entre outras –,

religiões, que, apesar dos rigores da escravidão e da vigilância da Igreja , foram conservadas no

Brasil.

E a capacidade do amalgamento religioso desses segmentos foi notável. A expressão

sincretismo é comumente utilizada para designar o hibridismo religioso, quando ocorre a

mescla de duas ou mais crenças religiosas.

A rigor, o kardecismo francês também é doutrinariamente uma religião sincrética,

incorporando elementos hinduístas com a ética da caridade cristã.160 A própria visão da ordem

cósmica e a idéia de evolução, com relevante papel na doutrina espírita, bem como a noção do

karma, assemelham o espiritismo kardecista às religiões da Índia.161

A umbanda é uma religião de difícil caracterização. Além de não contar com uma

congregação institucional, não possui um corpo doutrinário coerente, ocorrendo uma ampla

variação de região para região e mesmo de terreiro para terreiro. Do ponto de vista histórico, os

elementos que compõem o sincretismo umbandista são as religiões de origem africana, dos

160
HELLERN, Victor, et.al. Op.cit., p. 291
161
CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de. Op.cit., pp.24-7.
102

povos sudanes e banto, que vieram ao Brasil como escravos, com deuses e elementos islâmicos

já absorvidos na África; as imagens da idolatria cristã; o espiritismo kardecista; e as religiões

indígenas.162

Erroneamente confundida com o Candomblé de origem africana, seguramente, a

Umbanda é uma religião distinta e peculiar. Surgida no Rio de Janeiro, no início do século XX,

a cosmologia umbandista é composta por espíritos desencarnados, que se agrupam em falanges

de acordo com sua origem terrena e evolução. Caboclos, pretos-velhos, exús e erês –

respectivamente, índios brasileiros, escravos africanos deportados para o Brasil, brancos e

crianças – dão o tom das sessões, incorporando nos médiuns e oferecendo conselhos de

diversas ordens ao público assistente.

Cada falange é composta por linhas de espíritos com personalidades e atribuições

afins – apenas exemplificando, os caboclos como o “cobra coral”, o “abre mato”; os pretos-

velhos “vovô de Aruanda” e a “vovó de Angola”; os exús “Maria Padilha”, o “tranca-rua”, o

“Zé Pernambuco”. Negros escravizados humildes, índios com a identidade sobrevivente diante

da dilaceração do processo de ocupação do país, prostitutas, coveiros, marinheiros,

desempregados, em suma, personagens saídos da cultura popular, que, se buscarmos uma

categoria que perpasse por todos, seguramente, apontamos: é a sociedade dos marginalizados,

os excluídos de todas ordens.163

No rol das chamadas religiões afro-brasileiras, um dos cultos mais difundidos no

Brasil é o Candomblé. Também conhecido como xangô, em Pernambuco e Alagoas, e tambor

de Mina, no Maranhão e no Pará, o Candomblé não é uma religião ética, como o cristianismo.

É uma religião mágica e ritual e, nessas crenças, não há a idéia de salvação ou corrupção pelo

pecado. O que se busca é a intervenção do sobrenatural neste mundo, diante da interferência

162
Id.Ibdem., p.8.
163
Notas de pesquisa de campo que realizei em 1994 na cadeira Antropologia III, no curso de Ciências Sociais da
UFMG, em Belo Horizonte, utilizando o método da observação participante na Tenda Umbandista Oriental. A
disciplina foi ministrada pelo professor Pierre Sanchi – um francês como Bastide e Verger, que, do mesmo modo
que os patrícios, decidiu radicar-se no Brasil após o contato com a cultura baiana e a riqueza do sincretismo
religioso do país.
103

das forças sagradas e divindades, chamadas de orixás.164 De acordo com o Candomblé e outras

religiões africanas, cada pessoa tem o seu orixá, um deus determinado de cuja personalidade

herda características, que possui qualidades e defeitos. Por meio do jogo de búzios, conduzido

por um babalorixá (pai-de-santo), a pessoa descobre qual o seu orixá.

A mitologia africana foi repensada, muitas vezes, em termos cristãos no novo meio

brasileiro. Xangô-Dadá, por exemplo, não baixa no terreiro porque está ligado ao fogo que, se

voltasse à terra, esta se incendiaria e seria destruída pelas chamas; e essa crença é

correspondente à lenda de São João Batista, que adormece em 24 de julho e não acorda senão

depois do fim de sua festa, ato do saber divino, porque, se não dormisse, a terra seria destruída

por um enorme fogo.165

Depois de ter sofrido pelo mundo, Omolu volta para casa com o corpo infestado de

chagas e cicatrizes, repetindo para os africanos da Bahia a parábola do filho pródigo.166

Um dos intelectuais mais respeitados no estudo da inserção do negro na sociedade

brasileira e na extensão das fronteiras da pesquisa para as Américas negras e para a África, o

francês Roger Bastide experimentou, certamente, o encanto com a pluralidade cultural do país,

similar ao outro cientista social da França, Pierre Verger, que registrou, em suas lentes

fotográficas e na etnologia, as riquezas e a diversidade cultural do Brasil.

Bastide focaliza a herança negra na flexibilização e na “afetividade” do catolicismo

arraigado dos povos latinos, tornando o cristianismo mais sentimental ou irracional e menos

dogmático nas terras do novo mundo: “...Foram, se não o único fator, pelo menos um dos

fatores mais importantes, capazes de contaminá-los com crenças supersticiosas ou mágicas; até

as moças de alta sociedade que freqüentavam colégios de freiras francesas não temiam recorrer

às mandingas, assim como os políticos à feitiçaria; de modo mais geral, os negros trouxeram

164
HELLERN, Victor., et.al. Op. cit., pp.293-95.
165
BASTIDE, Roger. O Candomblé na Bahia.São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.245.
166
Id.Ibdem, p-245; CASCUDO, Câmara. Op.cit. [Verbete Omolu], pp.441-2.
104

um conjunto de ritos, conjurações, práticas mágicas para o catolicismo de folk e para a

terapêutica popular”.167

O encontro de Roger Bastide com a África em território brasileiro ocorrera com a sua

primeira viagem ao Nordeste, em 1944, e a descoberta de um “Brasil místico onde sopra o

espírito”. Em Recife e em Salvador, cidades que expõem ao viajante as civilizações que ali se

encontraram, as igrejas barrocas e as marcas portuguesas, que convivem com o tantã dos

negros e o mundo do candomblé.168 Diante da dualidade do misticismo brasileiro despojado, o

estudioso francês dirigiu seu olhar para a matriz africana: diferente do barroco monástico

mexicano ou do viés trágico do misticismo espanhol, o caráter do Brasil “...foi adoçado pelo

contato com as mucamas, amas-de-leite, as negras e a sensualidade das mulatas”.169

O contato estreito entre o colonizador lusitano e o dominado, em terras do Brasil,

produziu um modelo de colonização singular, sem paralelos mesmo no Império português na

África ou na Ásia.

Na formulação de um corpo teórico acerca da idéia de identidade nacional, o

pernambucano Gilberto Freyre articulou uma interpretação de Brasil sedimentada no

intercâmbio étnico e cultural desencadeado pela diversidade racial da população brasileira, por

um lado, e por processos que levaram, não à formação de guetos, mas a um amálgama, numa

política de assimilação, por outro lado.170 Suas análises, constituídas a partir dos anos 1930,

significaram uma superação aos constructos biologizantes em voga no século XIX.

Em “Casa Grande & Senzala”,171 clássico da literatura nacional, e em “Interpretação

do Brasil”,172 Freyre focaliza numa tendência similar aos modernistas de 1922 com a idéia da

167
BASTIDE, Roger. As contribuições culturais dos africanos na América Latina: tentativa de síntese. QUEIROZ,
Maria Isaura Pereira de. São Paulo (Org.). Roger Bastide: sociologia (Grandes Cientistas sociais, n.37). São
Paulo: Ática, 1983, pp.156-175.
168
PEIXOTO, Fernanda Árias. A utopia africana de Roger Bastide. In: BASTIDE, Roger. O Candomblé na
Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp.7-13.
169
Id.Ibdem., p.10.
170
FREYRE, Gilberto. Interpretação do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp.18-9.
171
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. 50.ed. São Paulo: Global, 2005, passim.
172
FREYRE, Gilberto, Op.cit., passim.
105

antropofagia, a centralidade na vida sexual para a interpretação da formação nacional: a atração

do homem português pela mulher morena, pela negra, pela índia e pela mulata. Reportando às

raízes desse desejo singular, é na história de Portugal que se descortina esse homem livre, só e

aventureiro, que encontrou na índia e, depois, na negra o ideal de beleza muito presente na

cultura lusitana, a moura encantada.

O mulato e o mestiço nascidos dessa aproximação íntima afetiva, forma simbólica

expressada pela antropofagia, teriam um outro lugar na Casa Grande e na sociedade brasileira,

sendo, muitas vezes, reconhecidos como filhos do senhor – aspecto, aliás, que norteou as

reflexões críticas a Freyre. Darcy Ribeiro, por exemplo, destacava que a obra do sociólogo

pernambucano tem muito de casa grande e pouco de senzala, ignorando as lutas de resistência

e bravura do povo africano.173

Nas teorias de Gilberto Freyre sobre os antecedentes da formação do Brasil, já havia,

na Península Ibérica, Portugal e Espanha, um relativo equilíbrio de elementos antagônicos, em

que o mouro (753/1492) conviveu com o cristão, que conviveu com o judeu. Se existiram

períodos de intolerância, também houve os de compreensão e cooperação, constituindo-se

nesses períodos de tolerância, um novo tipo histórico, que estabeleceria um padrão de

comportamento no Brasil, uma nova raça histórica adaptada ao meio, fruto do encontro das

etnias (portugueses, cristãos novos, bantos, tupis, etc.), em determinados momentos violentos,

outros momentos cooperativos – eis a grande herança ibérica.174

Esse passado étnico e cultural do português, um povo indefinido entre a Europa e a

África, lembrava Freyre, constantemente, foi o elemento que o predispôs nessa singular

colonização híbrida dos trópicos:

A influência africana fervendo sob a européia e dando um acre


requeime à vida sexual, à alimentação, à religião; o sangue mouro ou
negro correndo por uma grande população brancarana quando não

173
GONÇALVES, Marcos Antônio. O Pajé da brasilidade. Folha de São Paulo. São Paulo, 5/2/1995. Revista da
Folha. Entrevista com o antropólogo e senador Darcy Ribeiro, p.3.
174
Id.Ibdem., pp.24, 57-103.
106

predominando em região de gente escura; o ar da África, um ar


quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura
as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da
Igreja Medieval; tirando os ossos do cristianismo, ao feudalismo, à
arquitetura gótica; à disciplina canônica, ao direito visigótico, ao
latim, ao próprio caráter do povo. 175

Lendas e costumes medievais lusitanos eram trazidos e mesclados no convívio estreito

entre a Casa Grande e a Senzala. Boa parte da bruxaria portuguesa girava em torno do amor.

No Brasil, a feitiçaria, dominada pelo negro, era outro elemento que aproximava senhores e

escravos, e continuou a girar em motivos amorosos, do interesse na geração e na fecundidade,

na proteção à mulher grávida, na criança ameaçada por tantos males.

Das magias e mandingas africanas, nenhuma foi tão popular e difundida quanto o

sapo, no apressar da realização de um casamento, no preparo de feitiços sexuais afro-

brasileiros, na proteção da mulher infiel, que, para enganar o marido, bastava tomar uma

agulha enfiada em retrós verde fazendo o nome da cruz no rosto do indivíduo adormecido e

coser, depois, os olhos de um sapo. Para manter o amante, a mulher precisa de viver com um

sapo debaixo da cama dentro de uma panela. Essa perícia no preparo de magias sexuais e

afrodisíacas dava prestígio a escravos macumbeiros junto a seus senhores, muitas vezes, já

velhos e fracos.176

As correntes místicas portuguesa e africana não se fundiram no Brasil somente para

fins amorosos. Também são populares as figuras da mãe-preta, da ama-de-leite, da mãe de

criação, da escrava africana. Além da proteção corporal e higiênica, também cabiam à mãe

africana os cuidados espirituais contra os quebrantos e o mau-olhado. Os colonos portugueses

já traziam tradições, como exemplo, a do cordão umbilical ser atirado ao fogo ou ao rio, sob

pena de o comerem os ratos, dando a criança para ladra; a de não se apagar a luz enquanto o

175
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Op.cit., p.66.
176
Id.Ibdem., pp.406-10.
107

menino não fosse batizado para não vir a feiticeira, a bruxa ou o lobisomem chuparem-lhe o

sangue no escuro; foram todas aqui modificadas ou enriquecidas pela ama africana.177

Tanto em Gilberto Freyre quanto em Roger Bastide, por motivos distintos, o elemento

indígena, na formação brasileira, não fora devidamente aprofundado e analisado. Darcy

Ribeiro, em suas várias obras, ressaltava, insistentemente, o Tupinambá como matriz cultural

do povo brasileiro, amalgamado e desaparecido nas sedimentações da cultura nacional, mas até

hoje nela presente.178

Numa passagem célebre dos primeiros contatos entre os europeus e os aborígenes do

Brasil, certo viajante alemão, Hans Staden, foi levado três vezes a cerimônias de antropofagia e

três vezes os índios se recusaram a comê-lo, porque chorava e se sujava, pedindo clemência –

não se comia um covarde.179

Em seu livro “Viagens e Aventuras no Brasil”, Staden frisou que os Tupinambás

acreditavam na imortalidade da alma, em perseguições durante toda a vida por um espírito

maligno denominado “Kaagere” e na realização de contatos com o mundo dos espíritos – hoje,

denominados pelo espiritismo kardecista como mediúnicos.

Numa dessas situações, a mulher do velho índio a quem o alemão havia sido entregue

para matá-lo, vaticinava em transe quando disse ao marido que um espírito de terra estranha

perguntara-lhe quando o prisioneiro seria morto. Preocupado, Staden indagou à mulher porque

desejava sua morte, visto que não era inimigo: “... [ela respondeu] que eu não devia preocupar-

me com isso, pois eram os espíritos estranhos que queriam estar ao par dos fatos que diziam

respeito”.180

177
Id.Ibdem. pp. 406-10.
178
SANCHI, Pierre. A Religião dos brasileiros. Teoria & Sociedade (Revista dos Departamentos de Ciência
Política e de Sociologia e Antropologia – UFMG). n.4, Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, pp.213-245.;
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
179
RIBEIRO, Darcy. Id.Ibdem., p.34.
180
STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. São Paulo: EDUSP; Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, pp.173-5.
108

O contato das missões jesuíticas com os indígenas trouxe também certas

pecularidades, e esse encontro foi certamente um dos elementos de nossa formação nacional.

Os primeiros padres da Companhia de Jesus desembarcaram no Brasil em 29 de março de

1549, chefiados por Manoel da Nóbrega e, antes de meio século dessa chegada, todo o litoral

desde Pernambuco até São Vicente (atual São Paulo) estava povoado por índios convertidos ao

cristianismo.181

Registros dos primeiros viajantes apontam para um personagem misterioso, as lendas

dos indígenas sobre um certo “pai Sumé”, homem branco, de barba e cabelos longos, que,

antes do descobrimento, teria aparecido entre os indígenas, ensinando-lhes o cultivo da terra e

as regras morais. Com seu auxílio, os indígenas plantaram sementes variadas e viram nascer a

mandioca, o milho e o feijão. No entanto pai Sumé foi repelido pelos pajés invejosos de seus

poderes e, escapando das flechadas, caminhou sobre as águas do mar.182

Esse caso, certamente, não era uma novidade para os jesuítas quinhentistas, que já

conheciam o caso da pregação de São Tomé Apóstolo na Índia, já divulgado e canonizado,

relacionado em numerosas relações medievais com o Oriente, entre as quais, as viagens de

Marco Polo. O que pode ter surpreendido foi a extensão do culto, atravessando o oceano, e,

logo, associaram o mito ameríndio ao apóstolo de Cristo. Os jesuítas ainda difundiram o mito

pelo continente, chegando ao Paraguai - “Pay Tomé” – e, ao Peru, ganhando novos

elementos.183

De acordo com Sérgio Buarque de Holanda, em “Visão do Paraíso”, esse mito luso-

brasileiro significou uma ampla revisão das antigas posições da Igreja, que buscava a

181
MARIA, Júlio, pseud. de Júlio César de Moraes Carneiro, padre. A Igreja e a República. Brasília, Editora
Universidade de Brasília, 1981.
182
CASCUDO, Câmara. Op.cit. [Verbete: Sumé], pp.647-8.
183
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000, pp.133-160.
(Grandes nomes do pensamento brasileiro).
109

renovação de suas estruturas ideológicas com uma nova imagem de mundo, descortinada na

tentativa de identificação de um herói mítico ancestral dos índios do Brasil.184

Nas épocas primórdias da colonização, não faltaram argumentos arianos fundados na

teoria da supremacia para justificar a relação de dominação e coerção. Manuel Guedes Aranha,

Procurador do Estado do Maranhão, dizia em 1654: “... nós [brancos] somos próprios para

diferentes coisas; nós [brancos] somos próprios para introduzir a religião entre elles [índios e

negros]; e elles adequados para nos servir, caçar para nós, pescar para nós, trabalhar para

nós”.185

Mas, em princípios do XVII, já despontavam pensadores e reflexões sobre a

acomodação entre as raças, e o mais célebre foi o Padre Antônio Vieira, jesuíta neto de uma

negra. Diante da invasão da colônia por um povo mais branco que o português – os holandeses

(1630/1654) -, questionou o grande cronista se “...não éramos tão pretos em respeito delles

como os índios em respeito a nós?”. E, relativizando as posições, filosofava: “... [se podia]

haver maior inconsideração do entendimento nem maior erro de juízo entre homens, que cuidar

eu que hei de ser vosso senhor porque nasci mais longe do sol, e que vós haveis de ser meu

escravo, porque nascestes perto?” 186

Outra característica do nosso catolicismo, cujas origens remontam à Península Ibérica,

é uma certa aversão do brasileiro pelo ritualismo formal, que permite tratar os santos com uma

intimidade, como ocorre com o Menino Jesus, companheiro de brinquedo das crianças. Nas

festas do Senhor Bom Jesus de Pirapora, em São Paulo, Cristo desce do altar para sambar com

o povo.187 Essa forma de culto tem seus antecedentes em Portugal e também aparece na Europa

medieval justamente com a decadência da religião palaciana, superindividual, em que a

184
Id.Ibdem., p.156.
185
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: Decadência do patronato rural e desenvolvimento do urbano.
4.ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1968, pp.XVIII-XIX.
186
Id.Ibdem., pp. XVIII-XIX.
187
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp.148-50.
110

vontade comum se manifestava na edificação dos grandiosos monumentos góticos. Transposto

esse período, aflorou um sentimento religioso mais humano e singelo.

A partir dessas linhas analíticas apresentadas, sustentamos que o kardecismo se fez

religião no Brasil e se disseminou pelo país em sintonia com uma tendência cultural permeada

pelo sincretismo religioso, característico da formação nacional e seus viéses múltiplos

amalgamados – a lusitanidade, as várias nações indígenas e africanas. Por outro lado, ainda,

apontamos, mesmo não sendo o foco de nossa análise, em que medida, além de uma

predisposição cultural do colonizador português, teria ocorrido esse sincretismo e quais suas

nuanças e implicações.

Analisando a complexidade do sincretismo religioso e mapeando suas tendências de


188
interpretação, o pesquisador maranhense Sérgio Ferreti destacou cinco fases ou vertentes

nesse debate. A primeira linha, a do médico baiano Raymundo Nina Rodrigues, no século XIX,

que foi o precursor na abordagem das influências dos cultos afro-brasileiros, numa tendência

evolucionista próxima do positivismo europeu e de Spencer. Numa perspectiva evolucionista,

denominou o processo como a “ilusão da catequese”. A segunda, com autores como Arthur

Ramos e Herskovitz, pode ser definida como culturalista, abordando o sincretismo como

aculturação, englobando conflitos, acomodação e assimilação.

Roger Bastide e seus seguidores, por sua vez, na terceira tendência, entendem o

sincretismo como uma capacidade do negro de absorver e digerir variados elementos ou

africanizar as contribuições sem embranquecer.

Uma quarta, surgida nos anos 1970, e que ainda persiste, tendo o estudioso Peter Fry

como um de seus gestores, enfoca a “nagocracia” – predomínio do modelo nagô-ketu – entre

os terreiros, sendo o sincretismo uma construção nascida da disputa de poder e prestígio. E a

quinta linha, também atual, não aceita o sincretismo como “máscara colonial para escapar à

dominação ou estratégia de resistência”, nem, tampouco, a idéia de mera “colcha de retalhos”;

188
FERRETI, Sérgio F. Repensando o sincretismo. São Paulo: EDUSP; São Luís: FAPEMA, 1995.
111

e Sérgio Ferreti aponta a complexidade do termo sincretismo, seus múltiplos sentidos, que se

aplicam às religiões afro-brasileiras e às variadas combinações de significados que pode

apresentar-se conforme o contexto estudado.

Num terreno diferente das discussões da academia, o campo da arte, é indubitável a

mistura de sons e ritmos nas inspirações da produção musical brasileira. Os músicos e

compositores do Brasil são perspicazes na captação das múltiplas faces da formação nacional.

O mineiro de Ponte Nova João Bosco é um artista que, como poucos, resgata as influências

árabes, lusitanas, africanas, indígenas em suas composições e sonoridade. E também como

poucos, entende e expressa o sincretismo religioso imbricado na cultura popular, como nesse

monólogo inicial da canção “O Ronco da Cuíca”: 189

Quando ele nasceu foi no sufoco gente / Tinha uma vaca, um


burro e um louco que recebeu o seu sete / Quando ele nasceu foi
de teimoso / Com a manha e a baba do tinhoso / Chovia canivete
/ Quando ele nasceu, nasceu de birra / Barro ao invés de incenso
e mirra / Cordão cortado com gilete, gilete, gilete / Quando ele
nasceu sacaram o berro / Venderam faca e ergueram o ferro / E
aí exu falou: ninguém se mete, ninguém se mete / Quando ele
nasceu tomaram cana / Um partilheiro puxou o samba / Aí exu
falou, esse aí promete, promete oxum, exu falou, esse aí
promete...190

A utopia brasileira de Gilberto Freyre, levantada em 1933, a partir da publicação da

primeira edição de Casa Grande & Senzala,191 ainda suscita fortes reações na academia diante

de uma atribuída suavização dos efeitos da escravidão. Apesar das polêmicas, a geração pós

modernismo, que contava também, entre outros, com Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado

Júnior, Freyre foi inovador em suas proposições centradas no intercâmbio étnico e cultural na

formação do Brasil.

O aplaudido compositor Chico Buarque de Holanda, decerto, entendeu a mensagem

freyreana. O Fado não é um produto genuinamente português. Sua origem esteve marcada pelo
189
BOSCO, João. O Ronco da cuíca. In: João Bosco ao Vivo. Rio de Janeiro: BMG Music, 2000. 1 disco
compacto (48:52): digital, estéreo. 70711513.
190
Êxu: “É o representante das potências contrárias ao homem. Os afro-baianos assimilam-no ao demônio dos
católicos; mas, o que é interessante, temem-no, respeitam-no (ambivalência) fazendo dele objeto de culto...”.
CASCUDO, Câmara. Op.cit. [Verbete Exu], p.220.
191
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Maia & Schmidt Ltda, 1933. 2 vols.
112

lundu afro-americano do Brasil colonial e teria aportado em Lisboa quando a corte de Dom

João VI retornou a terras lusitanas, mesclando o batuque do ludu com o lirismo das modinhas

portuguesas. Em “Fado tropical”,192 Chico transita nos dois lados do Atlântico, num amálgama

cultural luso-tropical, cerne da teoria de Gilberto Freyre: 193

Oh, musa do meu fado / Oh, minha mãe gentil / Te deixo


consternado / No primeiro abril / Mas não sê tão ingrata / Não
esquece quem te amou / E em tua densa mata / Se perdeu e se
encontrou / Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal / Ainda vai
tornar-se um imenso Portugal.

A marca do sensualismo que permeou a interação entre o dominador e as camadas do

dominado, ressaltada por Freyre, é destacada:

Com avencas na caatinga / Alecrins no canavial / Licores na


moringa / Um vinho tropical / E a linda mulata / Com rendas do
Alentejo / Arrebato um beijo / Ai, esta terra ainda vai cumprir
seu ideal / Ainda vai tornar-se um imenso Portugal.

Os árabes deixaram marcas indeléveis na alma portuguesa, como bem detectaram

Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro, e o último reduto mouro na Península Ibérica foi a região de

Nova Granada, retomada pelos espanhóis no último capítulo das guerras da Reconquista.

Numa canção ímpar, “Corsário”,194 João Bosco também compreendeu a via de mão dupla do

intercâmbio cultural entre os elementos dominadores e dominados, e registra essa mescla e

fusão de valores culturais pela perspectiva do árabe saudoso e nostálgico – e aliás, a propósito,

o artista da zona da mata mineira tem essa ascendência:

Meu coração tropical / Está coberto de neve, mas, ferve em seu


cofre gelado / E a voz vibra e a mão escreve: mar. / (....)
Roseirais! Nova Granada de Espanha! / Por vocês, eu, teu
corsário preso / Vou partir a geleira azul da solidão e buscar a
mão do mar. Me arrastar até o mar, procurar o mar. / (...) Mesmo
que eu mande em garrafas mensagens por todo o mar, / Meu
coração tropical partirá esse gelo e irá com as garrafas de

192
BUARQUE, Chico. Fado Tropical. In: Chico Canta, Rio de Janeiro: Polygram, 1973. 1 disco compacto
(31:12): digital, estéreo. 61471070.
193
MARRAS, Stélio. O fado tropical de Gilberto Freyre. In: Cult – Revista Brasileira de Literatura. São Paulo:
Lemos Editorial, n.32, mar.2000. PP.38-49.
194
BOSCO, João. Corsário. In: João Bosco ao Vivo. Rio de Janeiro: BMG Music, 2000. 1 disco compacto
(48:52): digital, estéreo. 707711622.
113

Náufrago... / E as rosas partindo o ar! / Nova Granada de


Espanha / E as rosas partindo o ar.

Nessa simbiose de povos e culturas, árabes, judeus e libaneses e descendentes

coexistem no mesmo espaço, católicos e protestantes freqüentam as mesmas escolas, rituais

afro-brasileiros estão mais intactos deste lado do Atlântico do que na África dilacerada pelas

disputas políticas e econômicas, a mitologia indígena persiste fundida na cultura brasileira e o

espiritismo kardecista tem muito mais abrangência do que na França de Allan Kardec.
114
115

CAPÍTULO III

A EDUCAÇÃO BRASILEIRA ENTRE O IMPÉRIO E A

PRIMEIRA REPÚBLICA

Indubitavelmente, o processo histórico é plural e amplo, e as ações dos atores sociais

estão inseridas num contexto objetivo, permeado por fatores políticos, ideológicos, culturais e

econômicos. Nosso foco específico, a viabilização de um projeto de organizar e construir uma

escola, o Collégio Allan Kardec em questão, ainda que inspirado numa relativamente distante

doutrina espiritualista francesa, é balizada por elementos diversos.

Lembrando os historiadores franceses, a propósito sobre a escolha do título dos

“Annales d’histoire économique et sociale” (Anais de história econômica e social), Lucien

Febvre lembrou que os dois epítetos escolhidos por ele e por Marc Bloch decorreu de seu

caráter vago e genérico, que englobava toda a história: “... Não há história econômica e social.

Há a história pura e simples em sua unidade. A história que é toda social, por definição”.195

A partir dessas premissas, no presente capítulo, buscamos abordar as várias faces

pelas quais perpassavam o Brasil à época do professor Eurípedes Barsanulfo na emergente

Sacramento no Paranaíba Mineiro, cuja escola esteve sob sua direção entre 1907 a 1918. Será

pontuado, nos próximos itens o (1) mapeamento dos debates sobre as várias faces das esferas

educacionais e da própria discussão que havia da identidade nacional nos quadros do fim do

Império e limiar da República brasileira, época de fervilhantes construções teóricas

impulsionadas pelo despertar de uma certa modernidade tardia.

195
LE GOFF. A História Nova. In: LE GOFF, Jacques et.al. A História Nova. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes,
1988, pp. 29-37.
116

E, o liberalismo, formulação fundamental do Iluminismo francês cuja acepção tendeu

mais para o debate ideológico numa vinculação à burguesia, é uma noção essencial para a

discussão e o desenvolvimento da educação brasileira.

Em seguida, apresentamos (2) apontamentos diversos sobre a história da educação no

período e, arrematando a unidade, discussões (3) acerca da organização da Primeira República,

cujo desenrolar frustaria as expectativas de seus ativistas mais comprometidos com as

transformações sociais, tendo em vista o encastelamento dos cafeicultores nas esferas de poder

estaduais e federal.

1 – Liberalismo e Educação no Brasil: do Império ao advento Republicano

Quando o tema é liberalismo ou pensamento liberal, as confusões semânticas

que permeiam o assunto no Brasil são notórias, bem como outros conceitos que tangenciam o

debate político nacional. Apenas para exemplificar, a própria identidade dos partidos políticos

ou, ainda, as noções nascidas da Assembléia Constituinte da Revolução Francesa de esquerda e

direita são fluidas e incertas. E as raízes históricas dessa falta de nitidez conceitual são

profundas em nossa formação nacional.

No desenrolar do Segundo Reinado, perguntado, certa vez, sobre as diferenças entre os

Partidos Liberal e Conservador - as primeiras agremiações organizadas no país -, o deputado

Marquês de Paraná saiu-se com uma tirada que ficaria notabilizada: “...ninguém é mais liberal

do que um conservador na oposição; e ninguém é mais conservador do que um liberal no

poder.” 196

Noutra passagem, ainda mais distante no tempo - nos conturbados anos do Período

Regencial (1831/1840) -, Bernardo Pereira de Vasconcelos, importante quadro do grupo

“Regressista”, facção dos Liberais Moderados, justificava suas posições: “Fui liberal. Então a

196
In: ALENCAR, Chico et.al. História da Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996,
p.163.
117

liberdade era nova para o país, estava nas aspirações de todos, mas não nas leis, não nas idéias

práticas; o poder era tudo: fui liberal. Hoje, porém, é diverso o aspecto da sociedade: os

princípios democráticos tudo ganharam e muito comprometeram; a sociedade, que até então

corria risco pelo poder, corre agora risco pela desorganização e pela anarquia. Como então

quis, quero servi-la, quero salvá-la, e por isso sou regressista”. 197

Na fala desse eminente deputado, são denotadas, além da justificativa pela mudança de

posicionamento partidário-ideológica, a preocupação com a ordem social – era um momento

histórico tenso com o país sacudido por quatro grandes rebeliões e agitações populares, do Rio

Grande do Sul ao Pará – com o liberalismo restringido às lutas pela independência, a

democracia e os princípios civis associadas à anarquia e o conservadorismo como antídoto aos

males que ameaçavam a nação.

Os termos liberal e liberalismo têm sido erroneamente interpretados ao longo da

trajetória brasileira, tanto no passado imperial, com a consolidação do Estado brasileiro, quanto

nas discussões atuais e a articulação do conceito à idéia de neoliberalismo ou mesmo sua

restrição à dicotomia direita x esquerda, associando-o ao direitismo e à defesa do grande

capital.

Afinal, o que vem a ser liberalismo? Poderíamos argumentar que o pensamento

liberal, em seu sentido estrito, não tenha sido efetivamente implementado na política e na

sociedade brasileira?

Foi no bojo da perspectiva liberal que os debates em torno de um projeto nacional de educação

mais se manifestaram. No próximo tópico, discutimos a construção, os fundamentos e as

perspetivas desse pensamento, constituído a partir do desenvolvimento histórico do ocidente e

da consolidação da burguesia como classe hegemônica.

7.1 – A Modernidade Ocidental Burguesa

197
Id. Ibdem., p.149.
118

Em que pesem críticas e questionamentos ao ocidentalismo, como, por exemplo, nos

recentes e crescentes acirramentos na geopolítica do Oriente Médio, ou ainda em categorias

acadêmicas como o relativismo cultural, esforço metodológico e empírico para a compreensão

da multiplicidade de culturas e olhares humanos, não podemos de modo algum refutar as

contribuições do processo histórico do capitalismo e da consolidação burguesa no ocidente

cristão.

Noções basilares da contemporaneidade como o Estado de direito, cidadania, educação

universal, direitos humanos e democracia, difundidas pelo mundo e que configuram a

denominada modernidade, têm sua gestação, desenvolvimento e consolidação com a própria

trajetória histórica do capitalismo e da classe burguesa na superação do antigo regime. O

liberalismo, entendido como o conjunto de liberdades do indivíduo, foi o substrato ideológico

das transformações de estruturas políticas e sociais tradicionais para a plenificação do modo de

produção capitalista. As raízes do liberalismo encontram-se, certamente, na experiência

histórica da modernidade.198

No âmbito político, o pensamento liberal poder ser entendido pelas idéias do sufrágio,

da representatividade e da separação dos poderes e, como movimento econômico, pelo não

intervencionismo do Estado na economia e a noção do livre mercado. Fosse em seu sentido

político ou econômico, procurou proteger o indivíduo que, dentro de seu marco social,

afigurava-se pela cobiça em adquirir sua liberdade.

José Guilherme Merquior, um dos principais teóricos brasileiros dessa linha de

raciocínio, sustenta que a doutrina liberal clássica consiste em três elementos:199 a teoria dos

direitos humanos; o constitucionalismo; e a economia clássica, ramo inaugurado por Adam

Smith e sistematizado por Stuart Mill.

198
MERQUIOR, José Guilherme. MERQUIOR, José Guilherme. O Argumento Liberal. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1983.
199
Idem., pp.10-16.
119

Numa acepção temporal, Norberto Bobbio descreve a transformação da própria

concepção de homem, cujo espírito foi se afirmando na Europa em ruptura com a Idade Média,

tendo como suas etapas essenciais a Renascença e sua concepção antropocêntrica; a Reforma

Protestante, sobretudo com Calvino, que trouxe a doutrina do livre exame e derrubou o

princípio da necessidade de uma hierarquia eclesiástica como órgão de mediação entre o

homem e Deus; e o Racionalismo, de Descartes ao Iluminismo, cujo ponto de partida fora a

defesa da razão em contraposição às tiranias da fé, da Igreja e do Estado.

(...) As origens do Liberalismo coincidem, assim, com a própria


formação da `civilização moderna´ (européia), que se constitui na
vitória do imanentismo sobre o transcendentalismo, a liberdade sobre
a revelação, da razão sobre a autoridade, da ciência sobre o mito.200

Esse longo processo de tempo, que corresponde à denominada Idade Moderna,

corroborou, juridicamente, o paradigma do Estado de Direito, denominação dada pelas

constituições democrático-liberais ao tipo de organização política que elas configuram, ao

preconizar os homens como livres, iguais e proprietários. Nessa larga trajetória pela história, o

Liberalismo animou “... o constitucionalismo europeu e norte-americano. Foi a ideologia que

atrelou o jusnaturalismo revolucionário dos séculos XVII e XVIII, justificando a Glorious

Revolution, o puritanismo da Revolução Inglesa, em que triunfou o parlamento, a

Independência Americana e a Revolução Francesa”.201

Rompendo com a tradição absolutista, a imagem de sociedade implícita nesse

paradigma surgiu efetivando uma cisão, caracterizada pelo dualismo entre a sociedade civil,

representada pela esfera privada e a sociedade política, representada pela esfera pública,

competindo ao Estado assegurar certeza nas relações sociais, compatibilizando os interesses

privados de cada um com os interesses de todos os membros da comunidade.

200
BOBBIO, Norberto, et.all. Dicionário de Política [Verbete: Liberalismo]. 2.ed., vol. 2. Brasília: Editora UnB,
1992, pp-686-704.
201
SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. 2.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, pp. 81-91.
120

Todavia, vale frisar, mais do que um conceito jurídico, o Estado de direito, construído

pelo liberalismo, é um conceito político, que consistiu em instrumento de luta da burguesia

contra o Estado absolutista e seus resquícios feudais e estamentais.

No campo educacional, os postulados liberais e iluministas contribuíram sobremaneira

para o processo de laicização do ensino, que foi típico do mundo moderno.

O século XVIII foi profícuo em produções filosóficas, políticas e literárias. Dotado de

pensamento emblemático, Rousseau elaborou novas perspectivas que norteariam as reflexões

pedagógicas posteriores. Opondo-se ao ideal aristocrático do cortesão ou do gentil-homem,

propôs o desenvolvimento livre e espontâneo a partir da existência concreta da criança,

gestando um princípio de educação fundamentado na cidadania e na liberdade do indivíduo.

Numa linha similar, Kant sustenta a valorização do sujeito como ser autônomo e livre, em que

tanto o conhecimento como a conduta, consistem a sua obra.


202
Para Franco Cambi , o século das Luzes significou a “...emancipação das condições

de vida e de produção de âmbito local...; emancipação de uma concepção do mundo dominado

pelo modelo religioso (e pela igreja) e de uma explicação mágica dos eventos...”. Essa

tendência individualista, típica do liberalismo, persistiu no século XIX.

No que tange às discussões pedagógicas no Brasil, decerto o conceito ora analisado

também suscita interpretações errôneas e distorcidas. Antônio Paim, em sua obra intitulada “O
203
Liberalismo Contemporâneo”, destaca a relevância da educação liberal, constituída na

modernidade e no sistema de ensino criado pelas igrejas protestantes. Denominada no século

retrasado como “educação popular”, a transição das escolas confessionais para o sistema

público ocorrera mediante embates tanto teóricos quanto de lutas políticas, conduzindo a

constituição de legislação, que fixou o caráter do ensino oficial sem interferência na liberdade

202
CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: UNESP, 1999, p.323.
203
PAIM, Antônio. O Liberalismo Contemporâneo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995, pp.113-5.
121

religiosa. Paim sustenta que “... Somente em nosso século [XX] este sistema de ensino foi

batizado de forma adequada. Chamou-se de educação para a cidadania” [grifo do autor].204

Apresentados esses enfoques conceituais, essenciais para a compreensão da articulação

entre indivíduo e sociedade, elemento caro ao desenvolvimento da educação, passamos a

analisar, no tópico seguinte, a pedagogia e as discussões educacionais nos tempos da transição

do Império para a República, quando preceito liberal foi essencial tanto para o pensamento do

Brasil, como nação em formação, quanto para o despertar dessa consciência nacional em

gestação. Os projetos e perspectivas de ampliação do sistema educativo permeavam esse

debate.

2 – Pedagogia e Educação nos quadros da República dos Coronéis

2.1 – você sabe com quem está falando?

A rigor, a história nova francesa, como discutido na introdução deste trabalho, arejou

e ampliou as noções e disponibilidades de fontes documentais para o estudo histórico. No

terreno da história das instituições escolares, apenas destacando alguns itens acessíveis ao

historiador, são importantes fontes os jornais de época, fotografias, diários de classe,

interpretação de estilo arquitetônico, atas diversas – oficiais ou institucionais.

204
Id. Ibdem., p.113.
122

É sabido e notório – e que insiste em persistir na contemporaneidade - o caráter

elitizado do ensino e a verticalização da sociedade brasileira. Ainda mais do que hoje, nos

tempos do Império e da Primeira República, tempos de escassa mobilidade social e sem

critérios de meritocracia para o ingresso no serviço público, o diploma superior, o status e o

nascimento eram fundamentais para a inserção política e social.

Recorrendo à literatura como recurso de análise histórica, buscamos algumas

passagens de autores clássicos que realçam esse enfoque.

Machado de Assis, fino intérprete das relações sociais de seu tempo e hábil no

desvendar das máscaras sociais, em “Teoria do Medalhão”, dispara:

Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no


parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria,
no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de
ti. Vinte e um anos, meu rapaz, formam a primeira sílaba do nosso
destino. 205 [grifo nosso]

No conto em questão - tecido em diálogo em que o pai, num tom irônico, ensina ao

filho as estratégias para o reconhecimento social, que implicam a aderência ao senso comum e

à opinião da maioria -, Machado denunciava a sociedade burguesa medíocre e arrogante, que

pregava o sucesso a qualquer preço.

Nessa linha de crítica ao utilitarismo da educação e a preponderância do título numa

sociedade excludente, o escritor fluminense destaca, em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”:

Um grande futuro! (...) Talvez naturalista, literato, arquiteto,


arqueólogo, banqueiro, político ou até bispo, - bispo que fosse, - uma
vez que fosse um cargo, uma preeminência, uma grande reputação,
uma posição superior. (...) No dia em que a Universidade me atestou,
em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada
no cérebro, confesso que achei de algum modo logrado, ainda que
206
orgulhoso.

Machado tece as visões e críticas sociais de sua época por intermédio de um defunto,

Brás Cubas (“Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem

205
ASSIS, Machado de. Teoria do Medalhão. In: Contos Escolhidos. Rio de Janeiro: Klick Editora, 1998, pp.30-
8. O conto foi publicado originalmente em “Papéis Avulsos”, coletânea de contos editada em 1882.
206
ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Klick Editora, 1998, pp. 61-2
123

conhecidos, nem estranhos; não há platéia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial,

perde a virtude, logo que pisamos o território da morte...”) que rememora sua trajetória. Na

passagem assinalada, o personagem, mandado para Coimbra a fim de concluir seus estudos

superiores (e como castigo por um amor marginal), exaltava muito mais as possibilidades de

aventuras na capital da antiga metrópole, do que a formação intelectual em si.

Outro mestre das letras da transição dos séculos XIX para o XX, Lima Barreto, assim

como Machado também afrodescendente, denuncia através de seu alterego, o pobre


207
protagonista Isaías Caminha, em Memórias do Escrivão Caminha , suas próprias

melancolias e dificuldades diante das barreiras sociais, assim como a importância do título de

“doutor” para a busca de espaço naqueles tempos:

Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento


humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e omnímodo de
minha cor... Nas dobras do pergaminho da carta, traria presa a
consideração de toda a gente. Seguro do respeito à minha majestade
de homem, andaria com ela mais firme pela vida em fora...[grifo
nosso].

A literatura é rica e pródiga em nos oferecer retratos de épocas; e, sobretudo, por meio

de penas ímpares como as de Machado ou Barreto, podemos vasculhar as intrincadas cadeias


208
da sociedade e valores diversos –, inclusive temáticas do terreno da Educação -, tornando

um recurso precioso e relevante, sobretudo em períodos de escasso acervo documental.

A rigor, a educação brasileira, nas primeiras três décadas da República, trazia a herança

Imperial ao mesmo tempo em que traduzia as estruturas políticas e econômicas vigentes onde a

oligarquia cafeeira recusava as renovações no âmbito cultural: caracterizada pelo viés elitista, a

educação elementar da época recebia reduzida atenção e a secundária permanecia meramente

207
BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Caminha. São Paulo: Ática, 1984, pp.5-12.
208
O professor da UFMG, Luciano Mendes de Faria Filho, analisa no artigo “O jornal e outras fontes para a
história da educação mineira do século XIX – uma introdução” o leque de fontes acessíveis e pertinentes ao
estudo da História da Educação, como a literatura, nosso foco ora em tela, em que destaca as críticas severas de
Bernardo Guimarães às instituições da família e da igreja nos romances O Seminarista e O Garimpeiro; as
autobiografias e os diários – ricas fontes inexploradas; e relatórios que tratam da instrução primária. ARAÚJO,
José Carlos e GATTI JR. Décio. Novos Temas em História da Educação: Instituições Escolares e Educação
na Imprensa. Uberlândia: UDUFU, 2002, pp.133-50.
124

propedêutica, caracterizada como preparatório ao curso superior, restrita aos estratos

privilegiados da sociedade.

Em conferência de 1907, Olavo Bilac, autor do livro pioneiro da literatura paradidática

no Brasil, que seria publicado em 1910, mencionava alguns dados do panorama educacional

brasileiro:209 havia 638.378 alunos matriculados no ensino fundamental, para uma população

de 20.215.000 almas, como se dizia. Pelo menos 67% dos brasileiros viviam na zona rural,

cujo acesso a escola e livros era muito precário.

Na construção da escolarização do Brasil, o ensino privado desempenhou o papel de

implantação de instituições de ensino. Coerente com a lógica liberal do laissez-faire, laissez-

passer, a iniciativa particular esteve totalmente desembaraçada, inclusive, de qualquer

interferência governamental.210 Em 1823, certa lei declarava em vigor, entre outros atos das

Côrtes Portuguêsas [sic], o decreto de 21 de junho de 1821, que permitia “a qualquer o ter

Escola aberta de primeiras letras sem dependência de exame ou de qualquer licença”. A

primeira Constituição do país independente, outorgada por Pedro I em 1824, restringia tal

liberdade, embora sem posterior efetivação, vedando as instituições que se opusessem “....aos

costumes públicos, à segurança e saúde dos cidadãos”. 211

À época, a qualidade do ensino ministrada era demasiadamente baixa e questionável,

com professores improvisados e com baixos salários, o que os conduzia à dedicação de outras

atividades simultâneas.

Em 1837, com o Brasil governado pela Regência, em decorrência da minoridade do

herdeiro do trono, fora fundado o Colégio D. Pedro II, na Côrte, cujo propósito, mais tarde, foi

o estabelecimento de um padrão de ensino que, embora fosse da alçada das províncias, esse

colégio ficaria sob a jurisdição da coroa, sendo o único autorizado a realizar exames

parcelados para conferir grau de bacharel, indispensável para o acesso aos cursos superiores.
209
BILAC, Olavo e BOMFIM, Manoel. Através do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp.11-32.
210
HAIDAR, Maria de Lourdes M. O Ensino Secundário no Império Brasileiro. São Paulo: EDUSP, 1972,
p.199.
211
Id. Ibdem, p.163.
125

Tal disposição significou um complicador do quadro educacional do país, fazendo com que o

ensino secundário torna-se propedêutico. 212

Apenas em 1854, com a reforma Couto Ferraz, foram impostas normas ao exercício de

ensinar na capital imperial, ficando o governo autorizado a reformar o ensino primário e

secundário no país, criando um organismo técnico-administrativo visando à fiscalização das

escolas e estabelecimentos públicos e privados do país.

Contudo, como observa a professora Maria de Lourdes Haidar, 213

O maior obstáculo à melhoria do ensino nos estabelecimentos


particulares era (...) o desejo geral de percorrer o mais rapidamente
possível as disciplinas preparatórias a fim de apressar o ingresso nos
cursos superiores (...). A procura de estudos rápidos incentivada pela
facilidade de preparatórios gerava, portanto, um sistema de
concorrência que desfavorecia os melhores estabelecimentos e
premiava a charlatanice.

Obrigados a habilitar-se perante a Inspetoria Geral da Instrução Pública, criada pela

reforma, mediante a apresentação de provas de capacidade profissional e de moralidade,

“...alguns estabelecimentos se fecharam e alguns professôres deixaram de lecionar, cônscios de

que não poderiam satisfazer as mais equitativas exigências da lei”, relatou o então Inspetor

Geral Eusébio de Queirós, político conservador e magistrado, que seria imortalizado pela lei

que proibiu o tráfico de escravos no Brasil.

Todavia, embora em menor número, também havia estabelecimentos particulares

reconhecidos pela qualidade, como o célebre Caraça - fundado por padres lazaristas

portugueses em 1820 e dirigido, após 1850, pelos lazaristas franceses - reconhecido pela

disciplina rígida e severa, com o estudo de humanidades realizado em sete anos; ou, ainda, o

Ginásio Baiano, fundado em 1858 pelo futuro Barão de Macahubas, colégio onde Castro Alves

e Rui Barbosa realizaram seus estudos preparatórios.

212
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da Educação. São Paulo: Moderna, 1989, pp.189-194.
213
HAIDAR, Maria de Lourdes M. Op.cit., pp. 169-170.
126

Entre 1860 a 1890, foram fundados importantes colégios, organizados pela iniciativa

particular, alguns protestantes, mas, sobretudo, católicos – entre os quais, os Jesuítas, que

retornaram ao Brasil oitenta anos após a expulsão pelo ministro todo-poderoso da corte de D.

José, o Marquês de Pombal. Essa tendência de escolarização era oposta à mundial, que

trilhava o rumo da laicização; ao contrário, aqui predominava o ensino confessional católico.

O último quarto do século XIX foi marcado por importantes transformações – que

desaguariam na própria proclamação da República – verificadas por certo surto industrial e o

conseqüente fortalecimento da burguesia urbana, pela intensificação da política imigratória e a

abolição da escravatura, ocorrida após intensa campanha capitaneada por diferentes segmentos

sociais.

2.2 - Brasil, a modernidade tardia

Viradas de século sempre são emblemáticas. E o século XX trazia para o Brasil, em seu

bojo, aspirações de modernidade e redescoberta. A República superava suas desavenças e a

Fase da Espada, alusão aos governos militares de Deodoro e Floriano (1889/1894), era

superada numa relativa normalidade institucional – em que pesasse a mancomunação entre as

elites cafeeiras de São Paulo e Minas, patenteada nos políticos do café-com-leite e na política

dos governadores, esta última inaugurada por Campos Salles (1898/1902).

Em 1901, Affonso Celso lançava uma obra que se transformaria em best-seller, “Por

que me ufano de meu país”, escopo ideológico para as mudanças, busca de uma construção de

identidade nacional ou mesmo celebrações de afirmação da nacionalidade – quatrocentos anos

de descoberta (1900), centenário da abertura dos portos (1908).

Ainda nesse contexto, mais precisamente em 1910, Olavo Billac e


Manoel Bonfim escreveram e publicaram o pioneiro da literatura
paradidática no país, “Através do Brasil”, um libelo pela elevação da
consciência e da busca da identidade nacional.
127

Ex-escravos, tropeiros, comerciantes, caixeiros viajantes, que compunham os painéis

dos tipos da brasilidade, oferecem aos dois protagonistas, os irmãos Carlos e Alfredo, a

redescoberta do país mediante o descortinar dos inúmeros cenários geográficos e sociais. Ao

percorrerem o Brasil de norte a sul, em busca do pai doente e, posteriormente, dos familiares

remanescentes, os irmãos vislumbram uma situação que correspondia, em grande medida, à

expectativa de diversos setores que enfocavam, no cerne do debate nacional, a importância da

educação e da desanalfabetização como passaporte à cidadania e à modernidade.

É nessa conjuntura efervescente e de ímpetos de modernidade via educação que se

inscreve o foco de nossa dissertação de mestrado, a escola de Eurípedes Barsanulfo em

Sacramento – de 1907 a 1918.

No entanto, é adequado também clarear certos pontos: quais idéias acerca da identidade

nacional, dos marcos pedagógicos, permeavam o debate intelectual? Qual era a legislação

pertinente? Sobre tais indagações, discutiremos no próximo item.

2.3 – “O otimismo pedagógico e o entusiasmo pela educação”

Desde fins do Império, positivistas como Benjamin Constant, Miguel Lemos e Luís

Pereira Barreto intensificaram, no campo educacional, a luta pela escola pública, leiga e

gratuita. Corroborando com as premissas da escola filosófica de Augusto Comte - que tanto

influenciaram a construção da República - a Reforma Leôncio de Carvalho, em 1879,

sustentava a liberdade de ensino, freqüência e de credo religioso.

O positivismo, assim como seu parente próximo o evolucionismo, ofereciam os

substratos teóricos e ideológicos que permeavam tanto as discussões educacionais como os

debates acerca da busca pela identidade nacional. O paraense José Veríssimo – jornalista,
128

escritor, educador, político nacionalista, republicano histórico – publicaria no Pará, em 1890,

primeiro ano de funcionamento da República, “A Educação Nacional”, escrito sob o impacto

da transformação. Sobre a importância do processo educacional na construção da nação,

esclarecia suas convicções: 214

(...) É, pois, a nós mesmos, é ao povo, é à nação que cumpre corregir


[sic] e reformar se quisermos realize a República as bem fundadas e
auspiciosas esperanças que alvoreceu nos corações brasileiros. Para
reformar e restaurar um povo um só meio se conhece, quando não
infalível, certo e seguro: é a educação, no mais largo sentido, na
mais alevantada acepção desta palavra. Nenhum mais propício que
este para tentar esse meio, que não querem adiado os interesses da
pátria. [Grifo nosso]

Veríssimo inscreve-se numa geração cujo grande paradigma fora Silvio Romero, crítico

literário, que contribuiu notadamente para a constituição de reflexões sobre o país e da

emergente nação. Romero, ao lado de Euclides da Cunha e do médico baiano Raymundo Nina

Rodrigues, considerados os precursores das Ciências Sociais do Brasil e também chamados de

“racistas históricos”, interpretaram a realidade do Brasil a partir das categorias de meio e raça,

chegando a combinar aos efeitos da mestiçagem a indolência e a ignorância do povo215.

Essa visão determinista, em voga no final do século retrasado, engendrou aquilo que o

antropólogo Roberto da Matta chamaria de “fábula das três raças”,216 que se fundiram nos

“laboratórios das selvas tropicais”, inserindo o negro na problemática nacional.

O evolucionismo expresso, sobretudo, por Spencer – que oferece o arcabouço teórico

para tal linha de pensamento – apresenta o suposto de que as diferentes sociedades humanas,

ao longo da história, evoluem naturalmente de estágios “simples” (povos primitivos) para os

mais “complexos” (sociedades ocidentais). Politicamente, possibilitava à elite européia a

tomada de consciência de seu poderio consolidado com a expansão do capitalismo mundial.

É nítida a percepção de José Veríssimo, corroborando os citados autores de sua geração,

da importância dos fatores étnicos e geográficos na explicação de nosso atraso. Para ele, os
214
VERÍSSIMO, José. A Educação Nacional. 3. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1995, p.9.
215
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira & Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense, 2003, pp.13-27.
216
DA MATTA, Roberto. Relativizando, uma introdução à antropologia social. Petrópolis: Vozes, 1981, p.58.
129

princípios de disciplina e o hábito do trabalho programado e sistemático – “contra o qual

teriam atuado tanto a nossa formação mestiça quanto a herança portuguesa do trato fácil com

a terra que tudo oferecia” [grifo nosso] – são, por isso, a base da “Educação Nacional”.

Em conferência proferida na Escola normal de São Paulo em agosto de 1916, o


217
pernambucano Carneiro Leão , outro expoente do pensamento educacional brasileiro,

analisou o papel da educação numa perspectiva nacionalista, mais sintonizado com o

modernismo da década de 1920 ou o pensamento social de Freyre e Caio Prado Jr., que viriam

nos anos 1930.

A idéia de progresso é latente na retórica de Leão. Sobre a importância de São Paulo –

desde o fim da monarquia o estado, política e economicamente, mais pujante do país,

enfatizava:

Falar em São Paulo, que tem sido o mentor alviçareiro da nossa


civilização e desta Escola, de onde há de vir o espírito revigorado da
nossa nacionalidade – porque é della que sahirão os mestres
modernos, os professores cultos, os bellos espíritos que vão
emprehender um Brazil forte, um Brazil grandioso, pela obra
prodigiosa da educação. [grifo nosso]218.

Leão criticava a educação literária e humanista (“...[que] só nos habilita para as

carreiras públicas, só nos cria o gosto e o interesse pelas funções burocráticas!”) e destacava a

necessidade de uma educação prática voltada para o sentido do trabalho.

Correlacionando o desenvolvimento capitalista econômico e industrial ao processo

educacional, sustentava comparativamente:

Não há grande povo sem um processo sério de educação. ... Quaes os


povos mais victoriosos e mais felizes? – Aquelles que têm uma
educação mais generalizada e perfeita. ... Veja a Inglaterra, os

217
CARNEIRO LEÃO, A. O Brasil e a educação popular. Rio de Janeiro: Typ. Jornal do Commércio, 1917,
p.14.
218
Id. Ibdem., pp.16-7.
130

Estados Unidos, a Allemanha, a Suissa, a Scandinavia, o Japão... foi


a educação que os fez grandes. (...) Se a educação é o
desenvolvimento, o aperfeiçoamento das aptidões physicas,
intellectuaes e moraes do indivíduo, claro que está que mais educado
será aquelle, que melhor desenvolver essas aptidões e a maior nação
a que tiver maior numero de cidadãos assim feitos.219

As mudanças nas primeiras décadas do século eram latentes. Urbanização,

industrialização, florescimento de uma classe média e desenvolvimento de um proletariado

urbano. Nesse quadro, as teorias racistas foram se tornando obsoletas e, talvez, a melhor

síntese dessa nova tendência viria mais tarde, nos anos 1930 e na Era Vargas, com a publicação
220
de Casa Grande & Senzala , de Gilberto Freyre, inaugurando uma linha de reflexão, que a

citação de Florestan Fernandes bem a sintetizaria: “...o brasileiro tem preconceito de não ter

preconceito”221. Era o mito da democracia racial.

Os anos 1910 foram muito profícuos no desenvolvimento de doutrinas nacionalistas, e,

sobretudo, a Primeira Grande Guerra (1914/1918) forneceria os componentes para o

estabelecimento do nacionalismo como corpo de idéias e primeiras estratégias de ação. As


222
campanhas de Olavo Bilac desencadearam a formação da Liga de Defesa Nacional

(7/9/1916), cujas teses, apresentadas em conferência aos alunos da Faculdade de Direito de São

Paulo, transitavam pela crítica ao sistema eleitoral vigente, a condição de ignorância das

massas populares até a influência da cultura européia, que ameaçava a língua e os costumes

nacionais. No campo da educação escolar, tais manifestações buscavam efetivar uma ampla

difusão de livros didáticos de conteúdo moral e cívico e nítido enfoque patriótico.

Além do perigo externo – ameaça da integridade territorial pelo avançar da grande

guerra, efetivada em certa medida pela cobiça expansionista das potências do velho mundo –,

os nacionalistas denunciavam o perigo interno advindo pela falta de instrução e, fazendo frente

a essas ameaças, suas pregações enfocavam a formação da consciência nacional, com teses,

219
Id. Ibdem., p.17.
220
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. 50.ed. São Paulo: Global, 2005.
221
FERNANDES, Florestan. O Negro no mundo dos brancos. São Paulo: Difel, 1972.
222
NAGLE, Jorge. Educação e Sociedade na Primeira República. 2.ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2001, p.65.
131

pensamentos e princípios que sustentavam a “inexistência de povos irremediavelmente fracos´

e demonstrar a falsidade de determinadas afirmações pseudo-científicas, segundo as quais a

mestiçagem torna as raças incapazes”, como afirmava Bilac em 1917.223

Ainda que gradativamente, ocorria a transição de uma sociedade agrário-exportadora

para uma urbano-industrial, as estruturas políticas e econômicas do país ainda eram, porém,

arcaicas e contraditórias. A República, definitivamente, não cumpria os propósitos de seus

elementos mais ideológicos do processo de ruptura com o Império.

As políticas que visavam à modernização do sistema educacional, discurso presente à

época da Proclamação, refletem o grau de instabilidade do próprio regime. Entre 1889 e 1920,

quatro reformas224, de Benjamim a Maximiliano, se sucederam, alternando a dicotomia

centralização x descentralização típicas da ordem política instalada.

A primeira delas, a mais ampla, que, no entanto, não chegou a efetivar-se

integralmente, ocorrera pouco antes da promulgação da nova Constituição - em 1890 -, a de

Benjamin Constant, republicano histórico e ministro da “Instrução Pública, Correios e

Telégrafos”. Tentou aperfeiçoar o currículo, com a introdução de disciplinas científicas,

consagrou o ensino seriado, aboliu os exames parcelados dos preparatórios e introduziu o

exames de madureza para a verificação da cultura intelectual dos alunos e seu ingresso nos

cursos superiores. Essa reforma careceu, decerto, de infra-estrutura adequada no país para a sua

implementação.

Em 1901, o governo do presidente Campos Salles (1898/1902), promulgava o Decreto

3.890 (1º de janeiro), a chamada Reforma Epitácio Pessoa, e complementaria esse código o

Regulamento do Ginásio Nacional (Decreto 3.914, de 26 de janeiro de 1901). O regime de

equiparação - sujeito à fiscalização ampla - foi consolidado e aplicado genericamente aos

estabelecimentos estaduais, municipais e particulares e se constituiu como importante

223
Id. Ibdem, p.67.
224
ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil (1930/1973). 28.ed. Petrópolis: Vozes,
2003; NAGLE, Jorge. Op.cit., passim.
132

mecanismo de ação do governo central. Nessa reforma, também, os exames de madureza foram

mantidos e programada a implantação de estudos seriados a partir do curso ginasial –

substituindo os exames parcelados de preparatórios. Sem acarretar nenhuma mudança

substancial ao sistema, outras reformas se sucediam...

Portanto, vale focalizar, o Collégio Allan Kardec foi fundado em 1907 – no bojo da

Reforma Epitácio Pessoa. Nossa abordagem acompanha sua trajetória com Barsanulfo à frente

do educandário, até seu falecimento, em 1918, atravessando ainda outras duas reformas,

descritas a seguir.

Em 1911, no governo do marechal Hermes da Fonseca, foi aprovada a Lei Orgânica do

Ensino Superior e Fundamental, proposta encaminhada pelo ministro Rivadávia Correa, a

terceira do período republicano.

Retrocedendo na evolução do sistema, concedeu ampla liberdade e autonomia aos

educandários, quase suprimindo seu caráter oficial. Eliminando as prerrogativas das escolas

secundárias, como a emissão das cartas de bacharel e pelos certificados de exames ginasiais ou

de preparatórios conferidos pelo Ginásio Nacional ou estabelecimentos equiparados para que

os estudantes ingressassem legalmente no ensino superior. Conseqüentemente, instituiu o

vestibular – ou “exame de entrada” - para a admissão em escolas superiores, sem a necessidade

de apresentação de qualquer atestado de estudos secundários. Seus impactos, decerto, foram

desastrosos, e nova reforma fez-se necessária.

Na presidência do mineiro Venceslau Brás, ocorreu a quarta reforma republicana, por

meio de decreto de 18 de março de 1915, que ficaria conhecida como Lei Carlos Maximiliano

(1915/1925).

Acerca da ingerência do Estado em assuntos de instrução, essa reforma significou um

meio-termo entre as anteriores. Reoficializou o ensino, cabendo ao governo federal a tarefa de

disciplinar a instrução secundária, e o Colégio D.Pedro II foi reformado, voltando à função de

estabelecimento-modelo. No entanto, restaurou a tradição imperial dos exames preparatórios e


133

da Lei Rivadávia manteve o exame de ingresso no curso superior, que eliminava os privilégios

escolares.

Apesar das desorganizações nítidas na República Oligárquica, as transformações na

infra-estrutura econômica – industrialização, urbanização, substituição de importações -

começariam a produzir um conjunto de mudanças sociais e políticas na história brasileira dos

anos 1920 – “Semana de Arte Moderna”, “Tenentismo”, emergência de setores sociais urbanos

-, que terminaram por desaguar na “Revolução de 1930”, movimento de caráter burguês,

caracterizado, em boa parte da historiografia brasileira, como “modernização conservadora”.

Jorge Nagle, em seu reconhecido “Educação e Sociedade na Primeira República”225,

demonstra a evolução do ensino no país nos quadros daquele regime, focalizando a ruptura do

modelo agrário-exportador e a emergência e consolidação do padrão urbano-industrial,

transição tangenciada por uma tomada de consciência de significativos setores da sociedade

acerca da relevância histórica da educação e da necessidade da “desanalfabetização” da

população brasileira. Interpretando esse período de nossa história, o professor Nagle articulou

duas categorias analíticas, o otimismo pedagógico e o entusiasmo pela educação, que,

conjugadas, permitem clarear o entendimento acerca da notável expansão do ensino, almejada

e incentivada pela movimentação da sociedade civil e verificada mais nitidamente nos anos

1920.

Com efeito, na Reforma Rocha Vaz, em 1925, sob o governo do também mineiro

Arthur Bernardes, possibilitava, pela primeira vez, o acordo entre União e Estados visando ao

incremento da educação primária, a eliminação dos exames preparatórios e parcelados,

herdados do Império, e finalmente, a seriação do curso secundário.

3 – “Essa não é a República de nossos sonhos” – o Brasil à época de Barsanulfo

225
NAGLE, Jorge. Op. cit., Passim.
134

Quando o antigo professor do Liceu Sacramentano e médico prático Eurípedes

Barsanulpho inaugurava o primeiro educandário do mundo fundamentado nos pressupostos do

codificador da doutrina espírita, Allan Kardec, em 1907, na pequenina e jovem “Cidade do

Sacramento” – município do Alto do Paranaíba mineiro, que, à época, não contava com mais

de dez mil almas –, vivia o Brasil tempos de acomodação dos entreveros e rusgas que a

República experimentara nos primeiros anos, e, ainda, diante das expectativas de

modernização - plataforma e retórica arejadas pelos mesmos ventos e promessas que

catapultaram o regime republicano ao cenário político da história do país.

Efetivava-se, naquela época, o governo de Afonso Pena, eleito e empossado no ano

anterior (1906/1909), presidente que inaugurava o ciclo de Minas no jogo do café-com-leite,

pérfida aliança das oligarquias paulista e mineira para o controle da política nacional. Nessas

elites, a força dos cafeicultores, embalados pela preponderância do ‘ouro negro’ na pauta de

exportações do país. A República cristalizava sua face mais reacionária, traindo as convicções

de seus ativistas mais articulados, como Aristides Lobo ou Silva Jardim.

Em que pesasse a popularidade e a notória probidade de D. Pedro II, a monarquia

agonizou em suas últimas duas décadas. Subtraída do poder numa aliança que agregava setores

descontentes com os rumos do trono – militares, fazendeiros do café historicamente do oeste

paulista, e com a abolição da escravatura, sentença de morte do Império, os cafeicultores do

Vale do Paraíba, e a intelectualidade urbana –, a monarquia morreu quietamente, deixando o

Brasil como se não tivesse existido. Na madrugada de 17 de novembro de 1889, menos de 48

horas do ocaso do velho regime, o bom imperador, acompanhado de familiares e de amigos

como André Rebouças, partia para o exílio na Europa.226

O Governo Provisório, alçado ao poder num golpe militar, recebia enxurrada de

telegramas de monarquistas notórios que juravam ser intimamente republicanos. E a imprensa

226
AGUIAR, Luiz Antônio. Antônio da Silva Jardim – O herói da proclamação da República. Rio de Janeiro:
Ao Livro Técnico, 1997, p.101.
135

– obviamente vinculada ao novo regime – noticiava o êxtase popular diante das mudanças: o

órgão “A Província de São Paulo” (o atual Estadão) realçava o júbilo das ruas e que “nunca

uma república foi proclamada com tanto brilhantismo e em tanta paz”.227

Porém o insuspeito Aristides Lobo, em carta ao “Diário Popular” de São Paulo,

denunciava o golpe em frase que se tornaria clássica: “... o povo assistia a tudo bestializado”,228

julgando que o movimento de Deodoro fosse uma parada militar. Como diria Lima Barreto,

“o Brasil não tem povo, tem público”, e, numa análise daqueles acontecimentos, o professor e
229
historiador José Murilo de Carvalho observou que a massa popular estava sendo admitida

numa história em que não entrou e uma identidade que do mesmo modo não era sua.

Os primeiros anos republicanos foram pontilhados por crises, e o período de 1889 até

1894 – governos de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto – seria caracterizado pela

historiografia como a “Fase da Espada”, alusão às suas patentes de marechal.

Após a promulgação da primeira constituição (1891) – que, entre outras medidas,

promoveu a separação entre a Igreja e o Estado, pondo fim ao “Padroado” –, o Congresso

elegeria indiretamente em sessão tensa e agitada, Deodoro e Floriano, presidente e vice

respectivamente. Não sendo ligado às oligarquias mais poderosas, o presidente ainda tentaria

um golpe que, falho, levou à sua renúncia. Floriano Peixoto, que viria a ser apelidado de “o

marechal de ferro”, assumiu e ainda enfrentaria uma guerra civil nos pampas gaúchos – a

“Revolução Federalista”, liderada pelo caudilho positivista Júlio de Castilho, que apoiara o

golpe de Deodoro -, e a “Revolta da Armada” em que a Marinha enfrentou Floriano a partir da

Baía da Guanabara e ameaçou bombardear a cidade do Rio com 15 navios. Num rompante

patético, o presidente chegou a alardear que receberia ingleses e franceses “a bala”, caso

tentassem algum desembarque para a proteção de seus súditos.

227
ALENCAR, Chico et.all. Op.cit., p.231.
228
CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987, pp.9-10.
229
Id. Ibdem., pp.140-2.
136

Com as primeiras eleições presidenciais diretas – que, no entanto, de acordo com os

dispositivos constitucionais impedia o direito do voto aos analfabetos, às mulheres, dos

membros de ordens religiosas e dos soldados –, venceu o representante do Partido Republicano

paulista, o cafeicultor Prudente de Moraes. Era a escalada da burguesia do café e a

consolidação da face oligárquica da república, arranjo que duraria até 1930, com a chegada de

Vargas ao poder pela via revolucionária.

O sistema eleitoral que vigorava facultava o engendramento entre as elites regionais,

garantindo as vitórias da aristocracia. O voto era aberto e declarado e, decerto, havia um forte

constrangimento se o eleitor não votasse nos candidatos dos coronéis – fazendeiros locais. O

sufrágio sob pressão, controlado pelos jagunços, ficou notabilizado como “voto de cabresto”.

Pessoas que já haviam falecido eram inscritas como eleitores, documentos eram

falsificados para que analfabetos ou menores votassem ou mesmo candidatassem, e a apuração,

do mesmo modo era tendenciosa, ocorrendo mesmo rasuras grosseiras nos mapas de votação –

“a eleição a bico-de-pena”. Conseqüentemente, os mesmos grupos ou alianças permaneciam ou

se alternavam no poder regional e nacional.230

Dos onze presidentes da República Velha, quatro eram paulistas e três mineiros; e todos

os mandatários eram vinculados ao café – produtores ou apoiados pelos cafeicultores.

Líder das exportações do país desde o Segundo Reinado, a cafeicultura respondia por

mais de 50% das exportações, e o Brasil chegou a abastecer dois terços do mercado mundial do

produto.

Demonstrando a força da categoria, os cafeicultores firmaram, em 1906, o célebre

“Convênio de Taubaté” em que os governos estaduais comprariam o excedente da produção a

fim de manter um equilíbrio entre a oferta e a demanda. Como o governo não dispunha de

230
FAUSTO, Boris. Op.cit., pp.263-5.
137

capital suficiente para a compra de todo o estoque, o financiamento era possibilitado com os

empréstimos externos, desse modo, a cotação do café foi estabilizada artificialmente.231

Por outro lado, foi pelo capital acumulado com o café que a ala progressista do setor

agrário investiu na produção industrial no país. Com as dificuldades de importação geradas

pela Primeira Guerra e a depreciação da moeda brasileira, ocorreu gradativamente uma

substituição das importações e São Paulo – onde moravam os principais produtores de café – se

tornaria o principal centro da industrialização do país.

E a indústria foi o propulsor das importantes mudanças do perfil sócio-econômico da

população, ocorrendo uma concentração urbana no país. Entre 1890 e 1920, as cidades

saltaram de 1.200.000 habitantes (de um total de 14.300.000) para mais de 3.000.000 (em

30.600.000), aumentando duas vezes e meia. Ainda que a proporção não tenha sido alterada, o

aspecto relevante é o incremento da população urbana. 232

Essas mudanças alterariam as relações e perspectivas sociais do Brasil, como salienta

Jorge Nagle: 233

O urbanismo e suas concomitantes mudanças socioculturais vão


fornecer novas perspectivas para pensar o “novo” Brasil, desligado
dos componentes do mito fisiocrata. O deslumbramento com os
novos engenhos humanos produzidos pela ciência e pela tecnologia,
que constituem os novos valores introduzidos pelo ambiente citadino,
dá origem, tanto ao otimismo com que se antecipa a futura
civilização brasileira, como vai apurar os quadros do pensamento
social.

Progresso, Civilização, velocidade eram lemas que figuravam o período, marcado pela

euforia e pelo otimismo. Nesse processo de efervescência social e cultural, uma novidade

embalava as fantasias da elite brasileira, o automóvel. Havia 83 carros em São Paulo, em 1904.

A 9 de outubro de 1868, era inaugurado, no Rio de Janeiro, o pioneiro serviço de

bondes, operado pela Cia. de Ferro Carril do Jardim Botânico, ligando o largo do Machado à

231
PRADO JÚNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. 26.ed. São Paulo: Brasiliense, 1976, pp.230-5.
232
NAGLE, Jorge. Op.cit. pp.38-9.
233
Id.Ibdem., p.39.
138

rua Gonçalves Dias, sendo cortado e seguido por outras linhas, redefinindo o espaço da

sociabilidade da velha capital.234

Na pacata Sacramento, quatro décadas depois, Eurípedes Barsanulfo integrou uma

comissão de cidadãos para efetivar a construção do primeiro bonde rural da América do Sul,

em 1913, movido à eletricidade gerada pela usina Cajuru, em que tanto o maquinário quanto as
235
linhas arquitetônicas da estação inicial eram alemães (tema que abordaremos no capítulo

sobre a história local, Capítulo IV, item 1.4, “Os Trilhos da Mogiana e os bondes caipiras de

Sacramento”).

Em 1897, no Rio de Janeiro, foi instalado o primeiro cinema do Brasil, e os gramofones

reproduziam as primeiras músicas gravadas, o que ocorreu no país em 1902. Em 1906, foi um

brasileiro, Alberto Santos Dumont, que fez voar um aparelho mais pesado que o ar, “o 14 Bis”

em Paris, que, mais tarde, especificamente na Primeira Grande Guerra (1914/1918) se

converteria em mortífera arma de guerra.

No modismo, o francesismo predominava tanto nos tempos do Império quanto na fase

inicial da República, assim como a art noveau ditava a arquitetura, e qualquer estudante de

ginásio compreendia o idioma francês.

Data de 1907 a publicação do clássico “Capítulos de história colonial”, de Capistrano

de Abreu e o jornal “O Estado de São Paulo” noticiava: “O cinematógrafo é um aparelho que

reproduz num alvo cenas variadas dando-lhes realce e cunho de vida, o que valeu a este

processo de fotografia o nome de fotografia animada”236. Em setembro era inaugurado,

também na capital federal, o cinematógrafo Pathé. São Paulo, na rua São João, abria sua

primeira casa de exibição, o Bijou Salão, depois, viriam o Mignon, o Paris, o Palace.

234
COSTA, Angela Marques e SCHWARCZ, Lilia Moritz. 1890-1914 – No tempo das certezas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, pp.55-61.
235
CERCHI, Carlos Alberto. Os Bondes de Sacramento – História dos Meios de Transporte no Triângulo
Mineiro e a História de Sacramento. Uberaba: Pinti Editora, 1991.
236
COSTA, Angela Marques e SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op.cit., p.81.
139

Num país rural, a modernidade apresentava seus mais claros sinais nos grandes centros.

A elite paulistana, apenas para ilustrar, apreciava o teatro lírico, e as pessoas com alto poder

aquisitivo iam assistir às encenações usando um bonde exclusivo, forrado com cetim branco.

Por outro lado, no campo e na cidade, fervilhavam agitações populares contrárias à

exclusão e à opressão. Nas cidades, a modernidade tão propalada pelos positivistas, decerto,

não atingia as periferias. A engenharia e a medicina tratavam a administração pública como

problema higienista, concepções de limpeza e higiene, partindo da premissa de um suposto

atraso popular.

Em 1904, eclodiu a “Revolta da Vacina”, movimento eminentemente popular que

representou o descontentamento das camadas populares contra a insensibilidade governamental

no trato das relações civis. Com a capital federal infestada por doenças como a febre amarela, a

varíola e a malária, o médico sanitarista Oswaldo Cruz, nos tempos do governo Rodrigues

Alves, impôs o extermínio de mosquitos e ratos da cidade, assim como a vacinação obrigatória,

sem uma prévia campanha educativa acerca de seus objetivos. A revolta popular explodiu.

Trilhos de bondes arrancados e, nas ruas do Rio de Janeiro, foram erguidas verdadeiras

barricadas. A repressão agiu com rigor, e a revolução, apoiada por militares florianistas

oportunistas, foi contida.

No nordeste, bandos denominados de “cangaceiros” –, que constituíam aquilo que Eric

Hobsbawn chamaria de banditismo social – espalhava o terror em ataques e assaltos a

fazendeiros. Em 1912, na região conhecida como Contestado, entre Santa Catarina e Paraná,

pequenos agricultores expulsos de suas terras e desempregados de uma empresa

estadunidense, que construiu uma estrada de ferro ligando São Paulo ao Rio Grande do Sul,

uniram-se em torno de um certo monge José Maria num movimento envolto numa aura

messiânica – mescla de proposições políticas e visões religiosas - em prol da igualdade social,

denominado de “Revolta do Contestado”.


140

O tão propalado progresso decididamente não chegara na marinha. Apesar da aquisição

de modernos navios e cruzadores ingleses, as relações com a marujada – em sua maioria,

negros - eram demasiadamente arcaicas, prevalecendo até mesmo chicotadas para punir os

ditos descuidos. Os marinheiros, por sua vez, liderados por um certo João Cândido, rebelaram-

se, tomaram os navios, ameaçaram bombardear os bairros nobres do Rio, e o governo recuou,

atenuando as degradadas condições de trabalho. Todavia, após o retorno da normalidade,

centenas de marinheiros foram punidos, presos ou expulsos. Pelo menos, a chibata se

encerrava.

Vale destacar, também, que, no período em questão, fervilhavam as levas de imigrantes

que tentavam a sorte no Brasil. Num contexto internacional pesado e incerto, agravado

principalmente em decorrência da Primeira Grande Guerra (1914/1918), mas que já

apresentava sinais evidentes de instabilidade desde 1875, vieram os italianos, que, além dos

cafezais, rumavam para as indústrias emergentes; os portugueses, que se aventuravam em

pequenos negócios comerciais; os espanhóis, que rumaram para o interior paulista; os

japoneses, do Pará, no cultivo da castanha, ou São Paulo, na cultura dos cafezais; e até os

judeus vindos da Europa central e oriental. Decerto, em que pesem os trabalhos braçais

enfrentados, os imigrantes eram pessoas instruídas, contribuindo sobremaneira para a

construção da cultura brasileira.

Em 1917, embalados justamente pelos agitadores anarquistas italianos, ocorreu a

primeira greve geral do país, em que dezenas de milhares de trabalhadores das fábricas, dos

transportes e do comércio paralisaram o país em suas principais cidades. Isso numa época que

ficaria bem patenteada, posteriormente, pelo último presidente da República Velha,

Washington Luís (1926/1930), que teria dito: “... a questão social é caso de polícia”.
141

FIGURA 1 – Cartão postal de 1923 do Vapore


Alacrita, navio da "Navegazione Italo
Brasiliniana", que trazia imigrantes para o
Brasil, partindo de Gênova com destino ao Rio
de Janeiro, onde levas de trabalhadores
seguiriam para Sacramento, Minas Gerais.
Tradicionais famílias do Triângulo Mineiro,
hoje, efetuaram essa jornada – como os
Manzan, Guardieiro, Cherulli, Constantin,
entre outros. Fonte: Acervo de Maria Helena
Manzan.

FIGURA 2: Pioneiro bonde rural


que ligava a sede de Sacramento à
estação da Mogiana. Dentro do
bonde, da direita para esquerda,
Eurípedes Barsanulfo, um dos
protagonistas do empreendimento.
Fonte: Memorial Eurípedes
Barsanulfo, Centro Espírita
Esperança e Caridade.

FIGURA 3 – A educação e a
cultura ganhavam relevo no
Brasil no limiar da República.
A foto principal, do início do
século XX, é dos meninos que
compunham a banda do
maestro Simplício, em
Sacramento. No detalhe,
constrastando com a fardinha
que procurava denotar certa
imponência, algumas crianças
com os pés descalços... retratos
de um país ainda rural e
arcaico. Fonte: coleção de
Virgínia Dolabela.
142
143

CAPÍTULO IV

SACRAMENTO, CIDADE ERGUIDA SOB

A ÉGIDE DA RELIGIOSIDADE

1 – As muitas histórias das terras de Maria Ausente

Distante 180 km de Uberlândia e 453 km da capital mineira, Sacramento é uma

aprazível cidade da microrregião do Planalto de Araxá, fronteira com o Estado de São Paulo,

com os chapadões do Bugre e da Zagaia fazendo caprichosamente a separação dos importantes

rios Grande e Paranaíba237. Suas terras de campo e cerrado – com 2.972 quilômetros de área

são consideradas de grande porte – engloba uma parte do Parque Nacional da Serra da

Canastra.

Percorrendo a região, em 1819, em direção à nascente do São Francisco, Auguste de

Saint-Hilaire, botânico francês e viajante a serviço da corte de D.João VI, do alto da Canastra,
238
descrevia enfaticamente : “Em toda a extensão do seu cume, a serra apresenta um vasto

planalto irregular que os habitantes da região chamam de chapadão... Dali pude descortinar a

237
Municípios Mineiros. Sacramento. Belo Horizonte: Assembléia Legislativa de Minas Gerais, Instituto
Integrado de Desenvolvimento de Minas Gerais, 2005. Disponível em: <www.almg.gov.br/index.asp?grupo=
estado& diretorio=munmg&arquivo=municipios> Acesso: 16.jan.2006.
238
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às Nascentes do Rio São Francisco. São Paulo: EDUSP; Belo
Horizonte: Itatiaia, 197, pp.107-8.
144

mais vasta extensão de terras que os meus olhos já viram desde que nasci. Num lado, a serra de

Pium-i limitava o horizonte, mas em todo o resto unicamente a fraqueza dos meus olhos

restringia o meu campo de visão...”.

Das vastas regiões inexploradas avistadas por Auguste de Saint-


Hilaire, as alterações mais intensas ocorrem na atualidade, com o
agronegócio embalando a economia local, com destaque para a
produção de cereais como o milho, a soja e o arroz, e a
população do município vem crescendo gradativamente, com
quase 22.000 habitantes em 2005.239

Apesar da aparência interiorana e o suave relevo com campos verdejantes que

circundam o núcleo da sede urbana, o município de Sacramento é um dos mais antigos de

Minas Gerais e, seguramente, tem muitas histórias a revelar, memórias que surpreenderiam um

recente viajante desavisado, ricos enredos que substanciariam diferentes trabalhos acadêmicos.

Eurípedes Barsanulfo foi um baluarte na disseminação do espiritismo nas terras do

Triângulo, e o singular Collégio Allan Kardec talvez seja o primeiro educandário do mundo

fundamentado no espiritismo francês. Foi na fazenda de Santa Maria, hoje distrito que divide

Sacramento da cidade de Conquista pelo ribeirão Lajeado, que o “Sinhô” Mariano, tio de

Eurípedes, fundou, em 1900 o primeiro centro espírita do interior mineiro, o “Fé e Amor”,

atraindo, por muitos anos, numerosa e diversificada audiência ávida pelas manifestações

públicas do sobrenatural e da mediunidade.

Em 1743, os bandeirantes paulistas fundaram à margem do Rio das Velhas uma capela,

a Nossa Senhora do Desterro, que se transformaria no Julgado do Desemboque, o primeiro

núcleo populacional do Brasil Central. A primeira estação da célebre linha férrea da

Companhia Mogiana construída em Minas Gerais foi a Jaguara, em 1888, e a ponte metálica

sobre o Rio Grande, divisa de São Paulo, foi, por muitos anos, considerada o maior viaduto em

extensão do Brasil. Ligando a estação do Cipó à cidade, outro pioneirismo – como citado

239
Município Mineiros. Sacramento. Op.cit.
145

anteriormente - um bonde rural movido à eletricidade gerada pela Usina Cajuru foi construído

com tecnologia alemã em 1913 e, provavelmente, foi o único do gênero no Brasil.

Nascida em Sacramento em 1914, a escritora Carolina Maria de Jesus – que, inclusive,

fora aluna do Colégio Allan Kardec em meados dos anos 20 – autora de “Quarto de Despejo”

e “Casa de Alvenaria”, entre outros - vem ganhando destaque na esteira do reconhecimento da

cultura popular e afro-brasileira em círculos acadêmicos no Brasil e no exterior, tendo livros

publicados em treze idiomas.240

Sacramentano ilustre e contemporâneo de Barsanulfo, o padre redentorista Vítor

Coelho (1899/1987) ganhou notoriedade e foi o grande divulgador do culto à Nossa Senhora

Aparecida. Fundou a Rádio Aparecida, em cujas ondas divulgou por décadas a evangelização

católico-cristã. Na cidade da padroeira nacional, na Basílica Velha, foi instalado um memorial

em sua homenagem, e a Congregação a que era vinculado abriu um processo de canonização

no Brasil desse padre, e os papéis já estão sendo analisados em Roma.

O atual nome da região, outrora conhecida como “Sertão da Farinha Podre”, teria sido

difundido a partir da toponímia de um jornal de Sacramento, “O Triângulo Mineiro”, fundado

em 1887, que teve uma duração efêmera e circulou até 1889.

As duas principais cidades da região, situação que invariavelmente nutre rivalidades,


241
eram Uberaba e Sacramento. O importante historiador uberabense Borges Sampaio ,
242
referência ao lado de Hildebrando Pontes sobre a formação histórica do Brasil Central,

sustentou que outro órgão de imprensa sacramentano, “O Jaguara”, fundado em 1884, não

tardou a acirrar polêmica com os jornais da cidade vizinha sobre a diretriz da Estrada de Ferro

Mogiana, aparecendo eventualmente a expressão “triângulo” mineiro, alusão à bifurcação dos

240
CAMARGO, Oswaldo de. A Glória de Carolina Maria de Jesus. Destaque – Revista Cultural de Sacramento e
Região. Ano 11, n.63. Sacramento: maio/junho de 2005, pp.16-21.
241
SAMPAIO, Antônio Borges. Uberaba: História, Fatos e Homens. Uberaba: Arquivo Público de Uberaba,
2001. pp.130-3.
242
PONTES, Hildebrando. História de Uberaba e a Civilização do Brasil Central. Uberaba: Academia de
Letras do Triângulo Mineiro, 1978.
146

ramais da linha férrea vinda de São Paulo à Minas. Com a fundação do referido jornal, “O

Triângulo Mineiro”, essa denominação se estenderia a toda a região compreendida entre os rios

Grande e Paranaíba.

1.1 – As raízes

A rigor, a ocupação da região central do Brasil vinculou-se à expansão da atividade

mineradora, tendo o bandeirismo paulista sua força propulsora, tanto o predador de índios ou o

prospector de metais e pedras preciosas, que abriu caminhos, explorou a terra, repeliu as

vanguardas da colonização espanhola concorrente. A partir dos últimos anos do século XVII,

com a descoberta de ouro, os bandeirantes fixaram núcleos estáveis no coração do continente –

Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso.243

Formado em torno da região das lavras, desenvolvimento característico das povoações

de Minas, o Arraial do Desemboque tem sua origem em meados do século XVIII, cujo ano

preciso é ainda controverso e certamente pela relevância merece estudos oportunos e

aprofundados.244 Estudo da fundação Cultural de Uberaba, coordenado por Jorge Alberto

Nabut, sustenta que, por volta, de 1737 era fundada na vertente leste da Serra da Canastra, à

margem esquerda do rio das Abelhas, um arraial mineiro, o “Descoberto do Rio das Abelhas”,

cujo povoamento efetivo, no entanto, não fora tarefa simples, dada a presença de quilombos e

índios Caiapó e araxá, que obstaculizavam a jornada dos exploradores.245

243
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. São Paulo: Brasiliense / Publifolha,
2000 (Grandes nomes do pensamento brasileiro), p.49.
244
Esse tema é decerto controverso e muito da documentação pertinente ou foi perdida, ou está encoberta pelo
tempo. Distante de ser o foco desta dissertação, podemos sustentar, procurando contribuir com o debate, que
existem bons indícios que sugerem o pioneirismo deste hoje minúsculo povoado sufocado pelo crescimento de
outras cidades da região. Em Desemboque, existem referências de que o início da construção de sua Matriz foi em
1743 e num mapa histórico de 1780 da coleção do Itamaraty no Rio de Janeiro, e o Arquivo Público de
Sacramento conta com uma reprodução, consta apenas aquele núcleo em toda a região (ROCHA, Jozé Joaquim.
Mostrace neste mapa o Julgado das Cabeceiras do Rio das Velhas e parte da Capitania de Minas Geraes
com a deviza de ambas as capitanias. 1780”), apenas citando as fontes primárias.
245
NABUT, Jorge Alberto (Coord.). Desemboque – Documentário Histórico e Cultural. Uberaba: Fundação
Cultural de Uberaba, Arquivo Público de Uberaba, 1986, pp.19-22.
147

Teria sido com a expedição do Guarda-Mor Feliciano Cardoso de Camargo que

partindo do arraial do Tamanduá – atual Itapecerica –, em 1736, em companhia de alguns

sertanistas em direção aos cantões da Serra da Canastra, onde começam os chapadões, que

descobriram ouro em abundância e assentou os primeiros alicerces da povoação a que

denominou de Tabuleiro.246

Pouco depois, no entanto, o local foi destruído pelos índios Caiapó. Escapando, o

Guarda-Mor ainda voltaria à região, fundando uma nova povoação, denominada Nossa

Senhora do Desterro das Cabeceiras do Rio das Abelhas que convergindo os caminhos de Ouro

Preto e São Paulo próximo ao rio, conhecido em outras épocas por Alto Paranaíba, veio a

chamar-se Desemboque do Rio Grande ou, simplesmente, Desemboque.

O Arraial prosperou - até 1781, oficialmente, foram extraídas dali mais de cem arrobas

do precioso metal - de lá partiram diversas expedições rumo à nova região descoberta, o Sertão

da Farinha Podre ou, atual Triângulo Mineiro; e chegou a ser Cabeça de Comarca, espécie de

capital dos vastos sertões. Mas, em fins do século XVIII, as minas foram se esgotando

rapidamente, e Desemboque foi perdendo a importância, sendo substituída pelas mais estáveis

atividades rurais. 247

Distante dos grandes centros mineradores, onde era exercido um rígido controle sobre

a extração aurífera, o arraial passou a abrigar aventureiros, que usavam a povoação como

entroncamento nas rotas de contrabando e comércio para São Paulo, Goiás e até mesmo para as

colônias espanholas. Em 1789, uma ordem do governador de São Paulo, José de Lorena,

proibia a utilização da “Picada do Desemboque”, antes utilizada apenas para o carregamento de

246
CERCHI, Carlos Alberto. Os Bondes de Sacramento – História dos Meios de Transportes no Triângulo
Mineiro e a História de Sacramento. Uberaba: Pinti Editora, 1991, p.19.
247
Id.Ibdem., pp.20-1.
148

gêneros pelos viajantes, que, desviando-se do registro do Rio das Velhas, iam ao Desemboque

e ali forjavam guias falsas e seguiam para Goiás.248

Embora hoje reduzida a distrito de Sacramento, o percurso original ocorreu no sentido

oposto: foi em uma bandeira exploratória ao Sertão da Farinha Podre, que partiu, em 1808, o

vigário do Desemboque, o Padre Hermógenes Casimiro de Araújo Brunswick, que ao atingir as

margens do ribeirão Borá, a expedição encontrou um número razoável de garimpeiros e

mineradores, estabelecendo o primeiro núcleo de sua atual sede.

248
BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico-Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte:
Imprensa Oficial, 1995, pp.160-1.
149

FIGURA 4 - Igreja de N. Srª. do Desterro, em Desemboque, construída a FIGURA 5 - Barão de Rifaina,


partir de 1743. Foto aproximadamente de 1918. Fonte: coleção do professor célebre político do Império, em
Carlos Alberto Cerchi. desenho à lápis por volta de 1890.
Fonte: acervo do Museu Corália
Venites Maluf

FIGURA 7 – Coronel José Affonso


FIGURA 6 - Importante para a ocupação do Triângulo Mineiro, foi a de Almeida (1863/1941),
utilização das tropas de animais como meio de transporte. Na foto são destacado vereador e Agente
retratados caixeiros-viajantes preparando-se para uma viagem, tendo o Sr. Municipal, entre 1905 a 1921.
Franklin Vieira à frente com uma caderneta. Foto do início do século XX. Fonte: CERCHI, Carlos Alberto.
Fonte: coleção de Virgínia Dolabela. Memória Fotográfica de
Sacramento. Op.cit., p.49.
150

1.2 – As terras de Maria Ausente

Indubitavelmente, a história de Sacramento está imbricada, desde as origens, à

atmosfera religiosa. O cônego desbravador reuniu os sertanejos que tentavam a sorte na

mineração do Borá, levantou um cruzeiro onde celebrou uma missa, e, no retorno da

exploração da região, construiu no mesmo lugar um pequeno oratório dedicado ao Santíssimo

Sacramento sob o Patrocínio de Virgem Maria. As terras seriam adquiridas pelo seu pai em

leilão, o influente capitão Manuel Ferreira de Araújo, e ficavam no ponto divisor de distância

entre a Matriz de Nossa Senhora do Desterro do Desemboque e a Capela de Santo Antônio e

São Sebastião de Uberaba, onde Brunswick e seus auxiliares ministravam os sacramentos.249

Ainda hoje, pelas novas estradas, a distância de Sacramento ao Desemboque é de 70 Km, e

para Uberaba é de 76 Km.

Entre Desemboque e Uberaba, surgiam fazendas e propriedades de portes diversos,

habitadas por pessoas que, esgotado o garimpo, buscavam novos meios de vida, sobretudo na

atividade rural, e a vivência religiosa ia ficando distante.

Além de padre, Hermógenes Brunswick era um homem culto, jurisconsulto, profundo

conhecedor das leis – ao longo da vida adquirira muitos pontos de garimpo e terras devolutas.

A enorme gleba em questão às margens do Borá pertencia a uma órfã desaparecida chamada

Maria, cuja história ele conhecia, bem como o interesse dos parentes dela em obter o

patrimônio ou o seu valor.250

Retornando ao Desemboque, o cônego requereu a D. João VI a permissão para erguer

naquele ponto uma capela, e a provisão régia de 17 de dezembro de 1819 concedeu a licença

para que a erguesse “...com o orago do Santíssimo Sacramento, apresentado pelo patrocínio de

249
JACÓB, Amir Salomão. A Matriz da Vila. Uberaba: Rios Editora e Gráfica, 1998, pp.11-4.
250
JACÓB, Amir Salomão. As Terras de Maria Ausente – Fundação da Cidade de Sacramento. Uberaba: Rios
Editora e Gráfica, 2003, pp.41-4.
151

Maria, à margem esquerda do Borá” e o Bispo de Goiaz, D. Francisco Pereira de Azevedo,

autorizou o padre Hermógenes a levantar e benzer a pedra fundamental do edifício católico.251

Com a permissão do prelado, o cônego Brunswick necessitou ainda mais de regularizar

as terras da ausente e, como representante do Juízo Eclesiástico, forçou o Provedor das

Fazendas dos Defuntos e Ausentes a apressar a venda das terras que foram levadas à praça,

nequele ano de 1819, e arrematadas por seu velho pai, o Capitão Ferreira.

“Aos vinte e quatro dias de agosto do dito anno n’este lugar de terras duadas pelo

Capitão Manuel Ferreira de Araújo e Souza sua mulher D. Joaquina Rosa Sant’anna, à margem

do ribeirão Borá e dentro d’este Oratório...” – registrava a ata de fundação (ou “Auto de

assignação do Lugar”) em 24 de agosto de 1820 na instalação de Oratório, que se transformaria

em capela curada. A área cedida pelo Capitão Ferreira foi de 214 alqueires de campo e cultura,

adquiridos por 115.000$145 (cento e quinze contos de réis, cento e quarenta e cinco réis).252

Foi em torno do Oratório, que virou Capela, que casas e casebres iam sendo

construídos, quase todos pertencentes àqueles que tinham esperança em garimpos do Borá, e,

posteriormente, habitadas por pessoas dedicadas à agricultura e à pecuária. À medida que o

Desemboque declinava, famílias tradicionais como os Goulart, os Franças, os Araújos

transferiam-se para o lugar que prosperava. 253

Em 13 de setembro de 1870, a Lei Provincial nº. 1870 criava a Vila do Santíssimo

Sacramento, desmembrada do município de Araxá e com a mesma denominação foi elevada à

categoria de cidade pela Lei 2.216 e 3 de junho de 1876.254

251
JACÓB, Amir Salomão. A Matriz da Vila. Op.cit., pp. 11-4.
252
JACÓB, Amir Salomão. As terras de Maria Ausente. Op.cit., pp.41-4.
253
Id. Ibdem., p.44.
254
CERCHI, Carlos Alberto. Op.cit. , p.20.
152
153

FIGURA 9 – Os Carros de bois constituíam um dos


principais meios de transporte de carga no país. Foto
FIGURA 8 - Ponte da Cia. Mogiana de Estrada de da antiga rua 6 de Novembro, atual Clemente de
Ferro, inaugurada em 1888. Fotografia tirada do Araújo, em Sacramento no tempo de Eurípedes. Fonte:
Estado de São Paulo na década de 1940. Fonte: coleção do professor Carlos Alberto Cerchi.
CERCHI, Carlos Alberto. Memória Fotográfica de
Sacramento. Op. cit., p.88.

FIGURA 11 - A Casa Mogico, comércio de utilidades


FIGURA 10 - Balsa no antigo porto do Desemboque,
gerais do pai de Barsanulfo, o sr. Hermógenes Ernesto,
depois porto da Rifaina, desativada em 1956. Fonte:
nos anos 40. Fonte: coleção do professor Carlos Alberto
CERCHI, Carlos Alberto. Memória Fotográfica de
Cerchi.
Sacramento. Op.cit., p.80.
154

1.3 – O Cônego e o legado: notas acerca do fundador de Sacramento

A saga do Padre Hermógenes Cassimiro de Araújo Brunswick continuaria vinculada

ao desenvolvimento da região. Entre 1847 a 1860, o cônego, insistentemente, intercedeu para a

construção da primeira ponte sobre o Jaguara, ligada à “Estrada do Goyazes”, devendo “...esta

ser o complemento da estrada que de Santos por São Paulo dirige às referidas províncias”.

Em carta ao Conselheiro do Império João de Almeida Pereira Filho, datada de 20 de

fevereiro de 1860,255 na ocasião do retorno de uma viagem com D. Pedro II ao norte do país, o

cônego cobrava a promessa feita a ele da efetivação da obra:

(...) Quando tive a honra de me despedir de V.Excia. no dia 11


de septembro do anno passado, ai pedi a graça de tomar em sua
alta consideração a construção da Ponte em o Rio Grande na
caxoeira do Jauguara entre esse município e o da Franca do
Imperador e V.Excia. assegurando-me que prestaria sua atenção
ponderou-me que estando próximo a partir para o Norte não
seria possível antes examinar todos os papéis relativos a essa
obra...

Arrogando sua proximidade com o conselheiro, Hermógenes arrematava enfaticamente:

(...) A vista pois de tudo exposto fica evidente que a construção


da Ponte só depende da vontade de V.Excia. e eu espero que v.
excia só não há de esquecer da promessa que me fez em minha
despedida e terá V.Excia. a gloria e eternizar o seu nome bem
fazejo construir uma obra tão interessante como necessária. (...)
Desemboque 20 de Fevereiro de 1860 – D.V. Excia. Amigo
muito Af. Estdo. Hermógenes Casimiro de Araújo Bruonswick.

A passagem de Franca (SP) para Minas Gerais seria estabelecida pela construção da

ponte de madeira em 1861, consolidando o caminho dos pioneiros – a estrada que, de Santos a

São Paulo, em direção ao interior, atravessando o Rio Grande e Paranaíba rumo a Goiás na

direção leste-oeste, foi aberta pelo célebre bandeirante Anhanguera, denominando-a Estrada

dos Goyases. Em março de 1888, inaugurava-se uma ponte metálica, a Jaguara, sobre o Rio

255
Acervo do professor Carlos Alberto Cerchi.
155

Grande, o maior viaduto do Brasil da época, e o ramal ferroviário da Companhia Mogiana de

Estradas de Ferro, estrada que ligava São Paulo ao Brasil Central.256

Brunswick era, sem dúvida, um homem influente, erudito. Um aspecto pitoresco de

sua vida é que o padre tivera nove filhos com três mulheres diferentes e reconhecera a todos.257

O pai de Eurípedes Barsanulfo, o Sr. Hermógenes Ernesto era sobrinho-neto do cônego,

portanto o professor espírita tinha descendência dos fundadores de Sacramento.

Nascido na histórica Freguesia de N. Sra. da Conceição do Mato Dentro do Sêrro do

Frio, hoje, cidade do Serro, era Tenente Coronel da Guarda Nacional e Comandante do

Batalhão do Desemboque, exercendo os cargos de Vereador, curador geral de órfãos e

advogado provisionado. Foi eleito, em diversas legislaturas, Deputado à Assembléia Geral e às

cortes de Lisboa, mas não chegou a tomar posse devido à proclamação da Independência do

Brasil.258

Vinculada à educação, foi diretor de instrução Pública do círculo literário e professor

gratuito de Latim, Teologia e Moral. Foi a partir de uma bandeira organizada pelo Major

Eustáquio, que saindo do Desemboque e embrenhando pelo Sertão da Farinha Podre, da qual

participou efetivamente, que se formou o núcleo de povoação do Córrego do Lageado – hoje, a

destacada cidade de Uberaba.259

Aos 76 anos – a 26 de setembro de 1861 – veio a falecer, em sua fazenda Nova

Suécia, próxima ao Desemboque, e o seu legado, certamente, tem relevo na história do

Triângulo Mineiro.

256
CERCHI, Carlos Alberto. Op.cit., pp.32-3.
257
MELLO, Ármilon Ribeiro. Relato da História de Santa Maria prestado ao Instituto Cultural Leopoldina
Geovana de Araújo. Sacramento: Julho/2004.
258
NABUT, Jorge Alberto (coord.). Op.cit., p.171.
259
Id.Ibdem., pp.171-2.
156

1.4 – Os trilhos da Mogiana e os Bondes Caipiras de Sacramento

Foi sob o reinado de Pedro II, permeado pela égide do progresso brasileiro, que a

locomotiva deu novo rumo cultural ao espectro do desenvolvimento. A navegação regular do

alto Amazonas por barcos a vapor, a iluminação a gás na corte e nas principais cidades do

Império; a comunicação do Brasil com a Europa pelo cabo submarino, a construção de estradas

de ferro que cortavam a paisagem brasileira; a modernização do transporte urbano com a

introdução do “tram-car”, chamado entre nós por bonde, entre outros, concorreram para a

democratização da vida nacional.260

Na segunda metade do século XIX, na esteira do desenvolvimento mundial,

impulsionado pela Revolução Industrial em sua fase do aço e da eletricidade, o Brasil

experimentou importantes avanços, e, seguramente, a melhor síntese dessa prosperidade foi o

conjunto de ações do empresário empreendedor Irineu Evangelista de Souza (1813/1889) – que

adquiriu o título de Barão de Mauá. De caixeiro num armarinho no ano em que o país

proclamava a Independência – 1822 – a banqueiro e armador de navios em Niterói (RJ), o

gaúcho de origem pobre criou a nossa primeira ferrovia – entre Petrópolis e o Rio de Janeiro -,

montou uma companhia de gás para a iluminação da capital, participou da instalação dos

primeiros cabos telegráficos submarinos entre o Brasil e a Europa, entre outros notáveis

feitos.261

Sacramento também experimentou uma espécie de “Era Mauá” no despontar do XX, o

papel do “barão” coube ao seu Agente Municipal, o coronel José Affonso de Almeida,262 e
263
Eurípedes Barsanulfo, então como jovem vereador , foi um destacado personagem daquela

260
FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. 6.ed. São Paulo: Global, 2004, p.361.
261
CALDEIRA, Jorge. Mauá – O Empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, passim.
262
Nascido em Araxá na Fazenda Perdizes, em 1863, de origem humilde, não freqüentou escolas mas foi
alfabetizado pela própria mãe. Chegou a Sacramento em 1891 e, em 1896, foi eleito vereador. Político do Partido
Republicano Mineiro, entre 1905 até 1921 – cinco legislaturas – sendo o Agente Municipal. Em 1915, foi eleito,
ainda, deputado no Congresso Mineiro. Faleceu em 1941, conseqüência de uma queda que sofreu num Hotel da
Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro. CREMA, Linda de Melo. O Coronel José Affonso. In: Destaque – Revista
Cultural de Sacramento e Região. Sacramento, ano 11, n.65, Setembro/Outubro de 2005, pp..23-4.
263
Barsanulfo foi vereador por duas legislaturas, o triênio entre 1905 e 1908 e uma reeleição até 1911. Acerca de
sua atuação como parlamentar, discutiremos alguns aspectos no capítulo V, item 1.2 - “O Ativista Político”.
157

saga do sertão. A cidade capitalizava os dividendos da expansão da economia cafeeira e, nos

sucessivos governos do chefe político local, conhecido como Zeca Affonso - homem viajado e

freqüentador constante de São Paulo e do Rio de Janeiro264 -, a modernidade trazia novos ares,

com a eletrificação do município garantida pela implantação da Usina Cajuru e pela criação da

Empresa Elétrica de Força e Luz; a execução do saneamento básico; a implantação do telefone

em todo o município e na ligação entre os distritos; a construção, em 1921, do Grupo Escolar

Afonso Pena Júnior; ligação de ônibus entre Sacramento a Araxá – numa menção a algumas

das principais realizações.

Estratégico componente que traria o progresso não somente a Sacramento, mas,

sobretudo, para o desenvolvimento do Brasil Central, foi a extensão da histórica Estrada de

Ferro da Companhia Mogiana, garantindo a ligação da região com a próspera São Paulo.

Fundada no início da década de 1870, a empresa obteve a concessão para construir o trecho

Campinas-Mogi-Mirim com ramal para Amparo, tendo bitola de um metro, com

prolongamento até as margens do Rio Grande.265

Em fins do século XIX, quando estava sendo decidida a construção do ramal Catalão

(GO), ficou definido que a primeira parada em Minas seria Uberaba; entretanto, por meio da

intercessão de diversos políticos e pela decisão do Barão de Camargos, no governo do Estado

de Minas, em não aprovar o projeto se não houvesse uma estação em Sacramento, 266 a cidade

recebeu a importante ligação férrea atravessando o Rio Grande sobre um majestoso viaduto de

ferro – numa reformulação feita pela empresa sobre a ponte efetivada anteriormente a pedido

do cônego Brunswick. A Mogiana ainda construiria quatro estações no território do município

– Ponte do Jaguara – a pioneira, inaugurada em 1888 - Cipó, Conquista e Engenheiro Lisboa,

implantadas em 1889.

264
CREMA, Linda de Melo. Op.cit., p.23.
265
RODRIGUES, Maura Afonso. Fagulhas de História do Triângulo Mineiro. Uberlândia: ABC-SABE, 1998,
pp.19-21.
266
SILVA, Antônio Pereira da. Os bondes caipiras de Sacramento. Leitura [Publicação Cultural da Imprensa
Oficial do Estado S.A. – IMESP]. São Paulo: 12/01/1994, p.2
158

Nos anos seguintes, a marcha sobre o oeste prosseguiria, e, em 21 de dezembro de

1895, os trilhos chegaram à atual cidade de Uberlândia, e no ano seguinte – a 15 de novembro

de 1896 –, foi construída a estação de Araguari.267

Em Sacramento, todavia, pela diferença de altitude entre a sede e a Serra do Cipó –

passagem do leito da ferrovia -, era inviável, pelos altos custos, a instalação de uma estação em

seu núcleo urbano. Vencendo a distância de 14 Km e com o nítido propósito de não perder os

benefícios da estrada – sobretudo o escoamento do café -, a municipalidade construiu em 1894

uma estrada de rodagem utilizada por carros de bois. Interessante salientar que, a mesma Lei

n.14 também autorizava o executivo a receber 300 imigrantes italianos numa situação

semelhante à paulista, em que os estrangeiros teriam uma “hospedaria” onde ficariam até o

encontro do emprego – caso singular do Triângulo e Alto Paranaíba. Importantes famílias da

região, hoje - inclusive de Uberlândia - vieram nessa jornada de riscos e trabalho árduo –

como, apenas para ilustrar, os Crosara, Manzan, Zago, Constantin, Guardiero, Cherulli, entre

outros, 268 que, certamente, trouxeram novas técnicas e mentalidades do velho mundo...

Em 1907, a Comissão de Finanças e Redação da Câmara Municipal de Sacramento

apresentava o projeto de iluminação pública para a cidade – e o vereador Eurípedes Barsanulfo

era um dos três membros desse importante grupo. Em ata – redigida por ele -, era registrado na

ordem do dia o parecer oficial favorável: “... A commissão entende que deve ser elle

convertido em lei com as emmendas que offerece. Ao artigo 1.º - A electricidade que se

necessita para a instalação da luz deve ser constituída de modo a verificar não só esta

instalação, como também para motores de vários mechanismos que por ventura se quizer

estabelecer...”. 269

O projeto foi aprovado por unanimidade, estendendo a eletrificação até o emergente

distrito de Conquista, a um custo de 120 contos de réis, pagos em 10 anos com a edilidade

267
CERCHI, Carlos Alberto. Op.cit., pp.28-30.
268
RODRIGUES, Maura Afonso. Op.cit., p.28.
269
Atas da Câmara Municipal. Volume com as atas de 29/03/1900 a 13/01/1904.
159

garantindo juros de oito por cento ao ano.270 No mesmo ano de 1907, emenda do vereador

Orígenes Tormim elevou a quantia em até trezentos e oitenta e cinco contos de réis, sendo

“...preferível em primeiro lugar uma linha de bondes” da cidade até o ponto mais conveniente.

Em 1908, tomava posse a nova Câmara, sendo praticamente reeleitos todos os

vereadores, inclusive Eurípedes Barsanulfo, e, em abril, era apresentado também por Orígenes

Tormim um projeto de bondes com mais clareza – ligando o município ao “...ponto mais

conveniente da estrada de ferro Mogiana”271. Em 1909, um certo engenheiro, Joaquim Carrão,

começou os estudos para a viabilidade da via de carris elétricos 272, o projeto convertido em lei

foi aprovado em 1910 - contando com o apoio do governo do Estado -, e o local estabelecido

foi a Estação do Cipó, 14 Km, até então vencidos em três dias por carros de boi, enquanto que

de trem para São Paulo era gasto apenas um dia, e para Uberaba, três horas.273

No plano internacional, os tempos eram de tensão, e um grande conflito era cada vez

mais inevitável, conseqüência das disputas imperiais e econômicas do século anterior274.

Numa mesma página de jornal de época especializado em assuntos ferroviários, o

“Brasil Ferro-Carril”, em 19 de janeiro de 1901, vinham estampadas as propagandas de

empresas das potências em disputa econômica: “Bromberg & C. Rio de Janeiro – Casa Matriz:

Hamburgo – Filiaes nas cidades mais importantes do Brazil...”; “Decauville – societé Nouvelle

des Etablissements – Paris – Grande stock: Trilhos, Desvios, Wagonetes...”; ou, “Müller & C.

– Importadores e Representantes de afamadas fabricas Suissas e Allemãs – Locomotiva

fornecida para a Estrada de Ferro Federal Suissa – Locomotivas a vapor e electricas”. 275

270
Em 1901 a renda do município era de 35:000$000 (trinta e cinco contos de réis); em 1910 atingia a 75:415$000
e em 1911 a quantia seria quadruplicada – 280:615$000. In: Coleção de Leis Municipais – ”Pai Adão”. Museu
Municipal Corália Vênites Maluf.
271
Atas da Câmara Municipal. Volume com as atas de 29/03/1900 a 13/01/1904.
272
STIEL, Waldemar Corrêa. História do Transporte Urbano no Brasil. São Paulo: Ed. Convênio EBTU/PINI,
1984, p.374.
273
SILVA, Antônio Pereira da. Os bondes caipiras de Sacramento. Leitura. Op.cit., p.2
274
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios. 8.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
275
Brasil Ferro-Carril. Rio de Janeiro: 19/10/1901, p.4.
160

Época de progresso, sem dúvidas. Período de acirramento de concorrência industrial.

E a pequena Sacramento, por uma circunstância singular da história, experimentou uma saga

que reproduziria, certamente sem a consciência das tramas, um pouco das disputas geopolíticas

do velho continente. Por sugestão de Eurípedes Barsanulfo, foi efetuada uma concorrência

internacional em que, pela capacidade técnica, a empresa alemã com filial no Rio de Janeiro, a

Bromberg & Cia., executaria a construção da estrada e a iluminação pública da cidade. O

“Annuário de Minas Geraes”, publicado em Belo Horizonte,276 registrava o acontecimento:

Em 12 de maio de 1910 foi lavrado o contracto com a casa Bromberg


& Comp., do Rio, para a construcção de uma estrada de ferro electra,
de um metro de bitola... bem como a illuminação electra da referida
cidade e povoação de Conquista. (... ) Para isso aquella casa se
utilizará de uma das cachoeiras do Rio Borá, a dous kilometros de
distancia, compromettendo-se a dar uma installação completa para
600 cavallos de força.

O empreendimento foi orçado em 590:000$000 (quinhentos e noventa contos de réis),

com cinco pagamentos semestrais e diante da falta de uma agência bancária financiadora na

cidade, a Câmara por intermédio de uma comissão eleita para elaborar a lei sobre os

empréstimos e a garantia de juros – e Barsanulfo também era integrante – estabeleceu um

sistema de apólices nominais de cem mil réis o par, com ganho de 10% ao ano. As ações da

municipalidade foram compradas por dois fazendeiros abastados, entre eles o Cel. José

Affonso. 277

A assinatura do contrato e a notícia do progresso causaram, naturalmente, otimismo.

Carlos Bertolucci, em depoimento em 1991, 278 descreveu o clima da cidade:

276
Annuário de Minas Geraes. Belo Horizonte: Ano IV, 1911.; Tribuna de Franca. n.934. Franca: 04/12/1910.
277
Atas da Câmara Municipal de Sacramento. Cópias de atas avulsas entre 1908 a 1914; CERCHI, Carlos
Alberto. O bonde elétrico de Sacramento. In: Cosmovisão – Revista do Instituto de Cultura Brasil Centro Oeste.
Uberaba: ano VI, n.6, 1984, pp.37-45.
278
BERTOLUCCI, Carlos. Depoimento prestado ao professor Carlos Alberto Cerchi. Uberaba: 23 de janeiro de
1991.
161

Naquele dia a cidade se exultaria com uma grande notícia... Depois


de alguns dias na capital paulista, com o objetivo de contratar uma
empresa eletricista, apeava do trem na estação de Conquista o
Coronel Zeca Afonso... O seu retorno era sinal positivo da sua
missão, na execução do projeto da implantação de luz e bondes
elétricos... Republicanos esperavam-no a cavalo na entrada da
cidade, e uma banda de música já se posicionava no começo da rua
principal....

Enquanto senhoras de chapéu e sombrinha nas mãos seguiam seus cavalheiros, o povo

exclamava: “... Sacramento vai ter luz! Sacramento vai ter bondes!”

O lançamento da pedra fundamental da construção da estação dos bondes na cidade

também foi repleto de festividades, e, no local, fora enterrado um caixote com moedas, papéis

e uma edição do Jornal Bonanza, editado na cidade no início do século. Em suas memórias,

José Rezende da Cunha 279 assim descreveu o acontecimento – que coincidiu com o dia de seu

casamento com a senhora Edalides Millan de Rezende, irmã de Eurípedes:

Chegou o 1º de maio de 1911, o dia mais alegre de minha vida até


hoje. Pela madrugada uma grande manifestação: música, foguetes e
discursos do professor Eurípedes Barsanulfo que completava o 31º
aniversário. Às 9 horas uma multidão para localizar a estação dos
bondes, o Seu Mogico foi quem fincou a primeira estaca...

O símbolo da cidade de Sacramento, o ribeirão Borá, forneceu a força hidráulica para

a movimentação dos dínamos da Bergman e as turbinas e reguladores de água da Voith, todos

de fabricação germânica. A construção da usina e da linha férrea foi simultânea, e todo o

material importado chegou a Sacramento, via Mogiana, vindo do Rio de Janeiro pela estação

do Cipó. Até as margens do Borá, o transporte era em carros de boi.280

Em 15 de novembro de 1913, aniversário da República, era inaugurada a estrada,

transportando pessoas e cargas. O engenheiro alemão da Bromberg, Frits Mauff, conduziu uma

máquina com dois carros reboques a partir de Sacramento; no Cipó, com banda de música,

populares e correligionários esperaram o Coronel José Affonso, que vinha de Uberaba pela

279
CUNHA, José Rezende da. Memórias inéditas [datilografadas]. Acervo do professor Carlos Alberto Cerchi.
280
Tribuna de Franca. N.1079. Franca: 16/05/1912; CERCHI, Carlos Alberto. O bonde elétrico de Sacramento.
Op.Cit., p.41.
162

Mogiana. No retorno à Sacramento, mais festas, discursos e foguetes, com a estação ornada de

flores, arcos de folhas de palmeiras e bandeirinhas entrelaçadas do Brasil e da Alemanha.281

Essa estação central, um bonito prédio, que obedeceu às linhas arquitetônicas também

germânicas, foi erguido por empreiteiros portugueses, ocorrendo um fato pitoresco. Na entrega

das obras, os trabalhadores pediram aos Agentes Executivos de Sacramento e Conquista que a

testassem, batendo nas paredes com marretas. Diante da recusa, os próprios construtores

efetuaram a prova de resistência.282

Da cidade, saíam para São Paulo café, arroz, milho, feijão, milho, queijo, toucinho,

aguardente e borracha de mangabeira. Vinham produtos manufaturados como ferragens,

louças, tecidos, sal e artigos finos e industriais.283 E, certamente, idéias.

O jornal “Tribuna de Conquista” – o pioneiro da região na impressão gráfica em

maquinário próprio – destacava em manchete a 25 de maio de 1913, ainda na fase da

construção da linha: “Greve em Sacramento – Operários que se revoltam. Falta de garantias

saída precipitada dos engenheiros. Excusa de informações a nossa reportagem”. No corpo da

reportagem, descrevia: “Anteontem em Sacramento por ocasião do pagamento aos

trabalhadores da linha de bondes em construção naquela cidade, uma das turmas se declarou

em greve, allegando não ser justo o desconto de 300 réis que fazia em seus salários quantia esta

destinada a médico e remédio...”

A história dos bondes rurais de Sacramento é singular, característica de uma época de

otimismo pelo progresso, aspecto que, notoriamente, influenciou a educação e levou à

expansão do ensino no país. Em 1989, foi publicado, nos Estados Unidos, o trabalho de um

especialista que percorreu o Brasil catalogando as linhas férreas de bonde do país.284 A ousadia

dos sacramentanos do início do século mereceu destaque: “..Sacramento in one of the remotest

281
SILVA, Antônio Pereira da. Os bondes caipiras de Sacramento. Op.cit., p.2
282
CERCHI, Carlos Alberto. Os Bondes de Sacramento. Op.cit., pp..52-3.
283
SILVA, Antônio Pereira da. Os bondes caipiras de Sacramento. Op.cit., p.2.
284
MORRISON, Allen. The Tramways of Brazil – A 130 Year Survey. New York: Bonde Press, 1989, p.87.
163

tramway cities in Brazil: in a far western corner of Minas Gerais, 500 Km from Belo

Horizonte, about halfway between São Paulo and the new federal capital of Brasilia...”.285

Enfatizando o empreendedorismo no âmbito regional, Allen Morrison destacou:

“Much larger towns in the area – Uberaba, Uberlândia, Ribeirão Preto – planned tramway

systems but did not succeed in building even a mulecar line. Sacramento had an electric

tramway constructed by German engineers...”.286

Em 1929, a quebra da Bolsa de Nova Iorque traria efeitos nefastos à frágil economia

do país e a até então promissora Sacramento ficaria abalada e comprometida pelo declínio das

exportações do café. A cidade estagnou e perdeu o relevo no âmbito regional.

Na Revolução de 1930, que alçou Vargas ao poder, e na reação paulista de 1932 com

a Revolução denominada Constitucionalista, os bondes ainda tiveram importância, na

condução de soldados mineiros até as margens do Rio Grande. Mas a retraída do café, a

implantação das jardineiras, o consumo de energia elétrica e a necessidade de constantes

reparos no maquinário levaram à desativação da linha.

Num país com preservação da memória precária, os bondes foram paralisados na

administração de José Ribeiro de Oliveira, o Dr. Juca, amigo pessoal de Vargas e, elevado ao

poder pelo interventor no Estado, Benedito Valadares. As atividades do sistema foram

encerradas em 1938 e o então prefeito obteve do governador a autorização para a venda dos

materiais remanescentes.287 Em 20 de fevereiro de 1939, em São Paulo, um certo Luiz Rangel

arrematou em leilão todo o material relativo à linha, inclusive as composições, por 240 contos

de réis, e o paradeiro das máquinas é desconhecido.

285
“Sacramento é uma das cidades com linha de bondes mais remotas do Brasil, no extremo oeste de Minas
Gerais, 500 Km. de Belo Horizonte, aproximadamente a meio caminho entre São Paulo e a nova capital federal,
Brasília...” [tradução nossa].
286
“Cidades muito maiores na área – Uberaba, Uberlândia, Ribeirão Preto – planejaram sistemas de linhas de
bonde mas que não resultaram sequer numa construção de bondes puxados a mulas. Sacramento teve uma linha de
bondes elétricos construídos por engenheiros alemães...” [tradução nossa].
287
CERCHI, Carlos Alberto. Os Bondes de Sacramento. Op.cit., pp.128-9.
164

Nesse mesmo país com planejamento estratégico precário – ou muitas vezes

inexistente – a antiga Mogiana, já denominada Fepasa, foi desativada. Em 15 de fevereiro de

1977, sem nenhuma solenidade, partia de Franca o seu último trem de passageiros.288

288
SANTOS, Wanderley dos. A Mogiana. Comércio de Franca. Franca: 27/2/1994.
165

FIGURA 14: Estação da Jaguara, a pioneira da Estrada de Ferro


da Mogiana em Minas Gerais, inaugurada em março de 1888.
Fonte: Acervo da FEPASA in: CERCHI, Carlos Alberto. Memória
Fotográfica de Sacramento. Op.cit., p.86.
FIGURAS 12 e 13: Usina Cajuru, no
momento da construção, em 1912
(coleção do professor Carlos Alberto
Cerchi) e foto atual das turbinas alemãs
(coleção do professor Amir Salomão
Jacob)

FIGURA 15: Propaganda de uma FIGURA 16: Estação central da linha de bondes, em Sacramento.
empresa fornecedora de peças Prédio construído por pedreiros portugueses e, tal qual a tecnologia
ferroviárias. Fonte: Brasil Ferro- do maquinário, as linhas arquitetônicas eram alemãs. Fonte:
Carril. Rio de Janeiro: 19/10/1901. fotografia do acervo do autor.
166
167

CAPÍTULO V
EURÍPEDES BARSANULPHO E O
COLLÉGIO ALLAN KARDEC

1 – Eurípedes Barsanulfo: a saga do missionário

1.1 – A mocidade

No primeiro de maio de 1880 vinha ao mundo o pequeno Eurípedes Barsanulfo,

terceiro filho de quinze de Hermógenes Ernesto de Araújo, o “Seu” Mogico (sobrinho-neto do

padre Brunswick Cassimiro de Araújo, fundador da cidade) e de Jerônima Pereira de

Almeida,289 a Dona Meca, uma família de tradição católica. A pequena Sacramento, cujo

centro distava catorze quilômetros da Estação Cipó da Estrada de Ferro da Mogiana, tinha suas

ruas ainda de terra e alguns lampiões de querosene em algumas esquinas atenuavam a

escuridão da noite, enquanto que as boas residências eram iluminadas por lampiões a carbureto

e nas casas simples eram usadas as lanternas de querosene, ou, simplesmente, velas.

289
Hermógenes Ernesto nasceu em Uberaba em 1856 e faleceu em 1924; e Jerônima Pereira nasceu em 1859 e
faleceu em 1952. GODOY, Lauret. Encontros Maravilhosos com Eurípedes Barsanulfo. São Paulo: edição da
autora, 2002, pp.42-3.
168

A cidade possuía um médico, uma farmácia, e duas parteiras serviam a comunidade, a

Isabel e a preta Ludovina. Da Estação Cipó à sede, as mercadorias eram transportadas em

carros puxados a boi e o longo e lento percurso custava dez réis por quilo de mercadoria290.

O “Seu” Mogico, decerto, foi um homem dedicado e trabalhador. De seus quinze

filhos, exceto o pequeno Heródoto que faleceu aos oito meses, todos chegaram à vida adulta e

a maioria freqüentou escola. A família vivia nas proximidades da Mogiana, onde na firma

“Borges, Lopes e Rezende” – estabelecimento de secos e molhados – Hermógenes conseguira

a função de gerente. Algumas fontes bibliográficas vinculadas à literatura espírita dão conta

que o menino Eurípedes por volta de seus cinco ou seis anos já ajudava o pai, tomando conta

de cavalos ou carregando mercadorias para os viajantes.291 Todavia, o “Seu” Mogico, pelas

evidências,292 prosperou e veio a adquirir no centro de Sacramento uma loja de fazendas e

miudezas que servia de residência para a família – a “Casa Mogico”.

Foi nessa circunstância de emergência econômica que Eurípedes Barsanulfo, com seis

anos de idade, aprenderia as primeiras letras na escola pública dirigida pelo maestro da banda

da cidade, o professor Joaquim de Mello Júnior, o “Seu” Tatinho, onde recebeu sua

alfabetização.293

No ano em que a República, imbuída de uma retórica positivista sedimentada nas

idéias de ordem e de progresso, era proclamada, em 1889, surgiu em Sacramento o Colégio

Miranda, fundado pelo professor e ex-aluno do Caraça de Mariana, João Derwil de Miranda,

convidado por um certo Coronel Manuel Cassiano de Oliveira França, chefe político local.

Com nove anos de idade, Eurípedes ingressou nessa instituição particular que agregou parcela

290
RIZZINI, Jorge. Eurípedes Barsanulfo, o apóstolo da caridade. 9.ed. São Bernardo do Campo: Correio
Fraterno do ABC, 2004, p.23-9.
291
NOVELINO, Corina. Eurípedes, o homem e a missão.16.ed. Araras: IDE, 2004; RIZZINI, Jorge. Op.cit.
292
Podemos inferir essa situação pelo imóvel próprio da “Casa Mogico”, uma filial do comércio no distrito de
Conquista, o fato dos filhos estudarem em escola particulare, os impostos do futuro Collégio Allan Kardec eram
pagos pelo Senhor Hermógenes, entre outros indícios.
293
CUNHA, Langerton Neves e COSTA, Suely Braz. Eurípedes Barsanulfo, o educador. Uberaba: Editora
Vitória, 1996, p.21.
169

considerável da elite sacramentana, tanto em seu quadro docente, quanto na origem do

alunado.294

Eurípedes teria entrado já na classe dos alunos adiantados, e como monitor ministrava

aulas de reforço em Língua Portuguesa, Francês e Matemática. Próximo dos mestres, os

professores o confiavam a bandeira nacional nas festas cívicas e nas solenidades era o orador

do educandário.295 Nessa escola particular inspirada no rígido católico Caraça, Eurípedes

permaneceu dos nove aos 21 anos, orientado pelo professor Miranda.

Nesse ínterim, afeito às artes, participava da banda de música da escola, e, ainda, por

volta de 12 ou 13 anos, foi um dos fundadores do Grêmio Dramático Sacramentano, grupo

teatral que organizou e encenou peças clássicas 296. Numa delas, “Jerusalém Libertada”, escrita

por Torquato Tasso, Eurípedes desempenhou o papel de um jovem cristão que converteu a bela

Armida, pagã árabe nos tempos das Cruzadas. 297

Em fins de 1901, no encerramento do ano letivo, o professor João Derwil de Miranda

teria aconselhado o pai de Eurípedes, certamente pelas potencialidades do rapaz, a buscar

novos rumos em estudos superiores.

Pai e filho seguiram o rumo da capital federal, influenciados pela orientação do mestre,

e conseguiram uma vaga no Curso Preparatório para a Escola de Medicina da Marinha.298 Pelas

fontes disponíveis, essa teria sido a única viagem longa de Barsanulfo.

A rigor, a saúde dos pais de Eurípedes era frágil. Dona Meca sofria de estranhos

desmaios súbitos, e o Mogico padecia do mal de beribéri. Em decorrência dessa situação

familiar, provavelmente, Eurípedes tivesse aspirado a carreira das ciências médicas. De volta a

Sacramento, providenciou a mudança definitiva para o Rio de Janeiro; mas, por conta da

294
FERREIRA, Odilon J. Eurípedes Barsanulpho, apóstolo do bem. [Folheto de “Distribuição gratuita do
Asylo ‘Bezerra de Menezes’ de Jardinópolis, Estado de São Paulo”], s/d., p.4.
295
CUNHA, Langerton Neves e COSTA, Suely Braz. Op.cit., pp.28-9.
296
INCONTRI, Dora. Pedagogia Espírita – um projeto brasileiro e suas raízes. Bragança Paulista: Editora
Comenius, 2004, p.174.
297
CUNHA, Langerton Neves e COSTA, Suely Braz. Op.cit., p.34.
298
INCONTRI, Dora. Op.cit., p.174.
170

circunstância e do natural envolvimento emocional, sua mãe desmaiara, o que fez Barsanulfo

desfazer as malas e desistir da viagem.299

Autodidata e próximo de figuras influentes da cidade, sua vida, no entanto, seria

atribulada com variadas atividades. Dedicou-se ao magistério no Lyceu Sacramentano;

organizou e colaborou na redação do jornal Gazeta de Sacramento; atuou como guarda-livros –

o equivalente ao atual contador – da “Casa Mogico”, onde tirava o sustento para as suas ações

assistenciais; tornou-se, também, vereador de Sacramento e proprietário de farmácia

filantrópica; além da fundação do singular colégio espírita – tópicos e reflexões contidas nos

próximos itens.

1.2 – O ativista político

A rigor, uma figura como Eurípedes Barsanulfo suscita interpretações múltiplas,

algumas tendendo para a mitificação ou mesmo à santificação. Em que pese as dificuldades

inerentes a um estudo histórico permeado pelas vias da religiosidade e da fé, constata-se em

leituras e análises de fontes primárias variadas que o célebre sacramentano foi acima de tudo

um homem de seu tempo, sintonizado com a idéia do progresso, imbuído dos ideais

republicanos, influenciado pelos ventos da modernidade que sopravam dos grandes centros

para Sacramento pelos trilhos da Mogiana e traziam em seu bojo as aspirações pela educação e

pela cultura.

Fascinado pelo desenvolvimentismo de então, participou, como vereador, de projetos

de relevo, como a implantação do bonde elétrico e a instalação da Usina Cajuru, catalizando

recursos da expansão do mercado e das lavouras cafeeiras para o incremento do emergente

município do Brasil Central.

299
GODOY, Lauret. Op.cit., p.48.
171

Em 1904, enquanto que na política nacional em outubro começavam a se definir a

disputa entre os nomes de Afonso Pena e Campos Salles à presidência da República – sendo a

candidatura de Salles articulada por Pinheiro Machado, político paulista, como reflexo das

rusgas entre as forças políticas de São Paulo e a tentativa de inviabilização do nome de

Bernardino de Campos ao posto do Palácio do Catete -; em novembro, no Rio de Janeiro, o

general Silvestre Travassos levantava a Escola Militar contra o governo de Rodrigues Alves;300

em Sacramento, o jornal “O Patriota” trazia, na edição de 2 de outubro, um incisivo apoio ao

governador mineiro Francisco Salles à presidência, ao mesmo tempo que atacava o postulante

paulista e aquela oligarquia estadual:

E tendo sido Campos Salles pela sua inépcia governamental a pedra


de toque de todos os escândalos republicanos, segue-se que, hoje em
dia nenhum puro ou mesmo um verdadeiro pai da Pátria, a não ser
um tresloucado, poderá endossar com a responsabilidade do próprio
nome candidatura tão inviável. (...) Si S.Paulo, na sua pretensão, no
seu orgulho de querer a todo transefornecer [sic] Presidentes á
República já exgottou a lista dos seus grandes homens, deixe agora
aos outros Estados a sua vez (...).301

Em que pesasse um cenário político nacional disputado e conturbado, havia em

Sacramento um clima de cordialidade entre os grupos políticos locais, sendo eleita ainda em

1904, a Câmara Municipal. Eurípedes Barsanulfo, com 24 anos, exerceria seu primeiro
302
mandato como “vereador especial do districto de Sacramento” pelo Partido Republicano

Mineiro.

Num período intenso de sua vida, dividindo a vereança com as atividades

educacionais do Lyceu Sacramentano e, posteriormente, com o Collégio Allan Kardec, a

atividade religiosa e a filantropia em sua farmácia fitoterápica, Barsanulfo exerceu as

atividades políticas com destaque considerável.

300
SILVA, Hélio e CARNEIRO, Maria Cecília Ribas. História da República Brasileira. O Poder Civil
(1895/1910). V.2. São Paulo: Editora Três, 1998, p.147.
301
O futuro presidente da República. O Patriota. Sacramento: 2/10/1904, p.1.
302
Num sistema semi distrital, haviam seis vereadores eleitos pelo município e um vereador escolhido dentro da
sede – onde Barsanulfo foi o mais votado.
172

Cabia à Câmara Municipal a administração da cidade e Eurípedes participou, num

equivalente ao atual secretário municipal, das comissões de “Finanças e Redacção” – órgão

responsável pelas dotações orçamentárias e redação das leis; “Saúde Pública, Estatística e

Polícia”, ambas no primeiro mandato; e “Obras Públicas” e “Instrucção Pública”, na segunda

legislatura. Nas sessões preliminares de fins de 1904, era escolhido como secretário

responsável pela redação das atas oficiais, pelo critério de “... ser o mais moço”. 303

Consultando as atas da Câmara, algumas delas lavradas de próprio punho por

Eurípedes, nota-se a ascendência intelectual do jovem professor; das poucas subscrições dos

discursos literais, a maioria eram suas falas transcritas. Na sessão inaugural, em 1/1/1905, foi

Eurípedes quem pronunciou o discurso de posse, com moção de apoio a Francisco Salles,

ressaltando os princípios republicanos e a democracia, posições aprovadas por unanimidade e o

secretário era aplaudido de pé:

Moção – É nos assáz grato hoje, que assumimos as rédeas do


governo deste Município do Sacramento, declarar como mineiros
sinceros que nos ufanamos de ser o que mui prezamos, estremecemos
ao altivo Estado de Minas onde tivemos a inapreciável ventura de
possuir o nosso berço – que somos reconhecidos ao emérito
Presidente deste Estado (...) o Sr. Dr. Francisco Antônio Salles, pelo
muito que há feito em prol do respeito à lei da veneração à justiça da
obediência aos direitos alheios, de amor à ordem, de devotamento à
liberdade (...).

Várias matérias eram apreciadas e os pareceres eram emitidos por Eurípedes, sobretudo

no tocante ao orçamento municipal. Quando surgiam comissões especiais, ele integrava a

maior parte: em 1/4/1905, era nomeado para um grupo diretor do concurso de habilitação de

professores municipais, e também para as comissões especiais da construção de uma cadeia

(9/12/1905), do cemitério municipal (12/03/1906), de concessão de linhas telefônicas

(6/5/1906) e de iluminação pública (12/7/1907). Como um vereador atual, propunha reformas

303
Atas da Câmara Municipal de Sacramento. Volume com as atas de 24/12/1904 a 1/1/1908. Havia uma
dúvida entre quem era o mais jovem, Eurípedes Barsanulfo ou o farmacêutico Orígenes Tormim; por meio do
voto, Barsanulfo foi o indicado.
173

de ruas, pontes e espaços públicos; e, nem tão comum hoje, formulava denúncias, como o

cercamento indevido de estradas ou terrenos sem a devida autorização pública (13/3/1905).

Na matéria educacional, propôs a criação de uma escola no então distrito de Conquista

(12/06/1907), e impôs como condição para a aprovação dos estatutos do Colégio Sagrado

Coração de Jesus a efetivação diária das lições de Português, Aritmética e Geografia e a não

obrigatoriedade do ensino religioso aos alunos subvencionados pela Câmara – com essa

emenda, a questão foi aprovada por unanimidade (23/7/1907). Entre abril a setembro de 1908

ocupou, ainda, a presidência interina da Casa diante do afastamento, por motivo de saúde, do

Cel. José Afonso – o Presidente da Câmara era também o “Agente Municipal”, equivalente ao

cargo de prefeito.

Assíduo, comparecia à maioria das reuniões – cuja parte considerável nem ocorria por

falta de quórum. Em certas pautas polêmicas aprovadas pela maioria, às vezes Eurípedes

apresentava posição contrária e singular e, ainda assim, fazia questão de registrar seus

posicionamentos. Certamente, a discussão mais polêmica - que pela extensão do discurso

transcrito, é uma interessante peça de análise histórica e política - ocorreu diante de sua

negativa à solicitação do engenheiro Francisco Palmério – pai do célebre escritor e embaixador

Mário Palmério – em fixar no recinto da Câmara uma imagem de Jesus Cristo.

Fundamentando seus posicionamentos, argumentou (6/5/1906): 304

(...) externarei a minha opinião relativa ao requerimento que faz o


senhor presidente a pedido para colocar a imagem do Crucificado no
recinto da primordial sala deste paço (...). O poder municipal, por
isso mesmo o é, guarda a avançada atalaia dos direitos de seus dignos
munícipes, devem respeitar e fazer respeitar... as instituições
nacionais, as leis brasileiras, o pacto fundamental de 24 de fevereiro
de 1891. (...) Ora é fora de dúvida, ressalta aos olhos de todos que a
assentimente [sic] à colocação do símbolo aludido em lugar público,
no seio do edifício Municipal, fere mortalmente o princípio de
liberdade espiritual, taí categórica formal e precisamente defendida,
assegurada, garantida pela Constituição Federal brasileira em seu art.
76, pois, tal solicitação seria um desrespeito, um ludibrio às leis da
República, um desprestigio inqualificável ao Estado, um
achincalhante indefinível a esta mesma República.

304
Atas da Câmara Municipal de Sacramento. Volume com as atas de 24/12/1904 a 1/1/1908.
174

Defendendo o Estado laico e professando sua convicção republicana, prossegue:

(...) amanhã a maçonaria [irá] requerer-nos a instalação do triângulo,


o adepto de Confússius [sic] da efígie deste, e o protestante
descontente de tudo isto, inimigo irreconciliável que é das imagens, a
expulsão de todas. (...) como representante do povo, como
republicano que sou, ferialmente [sic] como servo obediente, fiel e
observante dos ditamens de minha consciência, não posso, não devo
dar meu voto concedendo o assentimento postulado (...) Foi afronta à
Constituição por que a República não tem religião oficial, por que, na
República brasileira, queiram ou não queiram, o Estado é ateu.
Assim o fez a Constituição. Na sessão do júri, reunir-se católicos,
protestantes, ateístas, maometanos, judeus, fiéis, enfim, todas as
confissões religiosas do universo (...).

Em 1910, o Presidente de Minas Gerais, Júlio Bueno Brandão, prorrogou os mandatos

dos vereadores que se encerrariam naquele ano. Em 23 de setembro, surpreendentemente,

Barsanulfo considerou esse ato como ilegal, já que os edis foram eleitos para governar naquele

triênio, e pediu a renúncia de suas atividades parlamentares. Na ata, o secretário lavrou:

“...portanto encarecidamente pedia aos collegas desculpá-lo attendendo seus afazeres que não

são poucos tomando a deliberação de hora em diante recolher-se a seu tegurio onde ia tratar

de sua missão particular...”. No mesmo documento, o presidente da Casa registrava seu

lamento – “Pelo Senhor Presidente foi dito que por sua parte não deichava (sic) de externar o

pesar que lhe causou em ouvir as palavras do Vereador E. Barsanulpho manifestando sua

retirada desta Camara, o que posto a votos foi regeitada unanimemente.” Era o cidadão

abdicando do ativismo político e mergulhando em sua saga religiosa.


175

1.3 – O Médium - ou, nos passos de “tio Sinhô” Mariano

Nos idos de 1904 o jovem sacramentano tinha uma vida um tanto quanto atarefada,

com o tempo dividido entre o ensino no liceu e as atividades teatrais, a tarefa caritária na

Irmandade São Vicente de Paulo, a farmácia homeopática e as reuniões eventuais da Câmara

Municipal e a redação da Gazeta.

Barsanulfo era dedicado nas lides católicas. No ano anterior, o padre Antônio Teodoro

da Rocha Maia, conhecendo o talento intelectual e moral do rapaz, emprestou-lhe um exemplar

da Bíblia, pedindo-lhe segredo, afinal a igreja vedava a leitura das Escrituras Sagradas em

versões vernáculas para os leigos. De acordo com sua biógrafa, Corina Novelino, o “Sermão da

Montanha” teria o deixado reflexivo.305

O pai prosperava com o comércio, a Casa Mogico, em que Eurípedes era

orgulhosamente seu “guarda-livros”,306 e uma filial do comércio era aberta no distrito de

Conquista.307 A 18 quilômetros de Sacramento, pouco antes dessa localidade, a fazenda Santa

Maria - um pequeno povoado rural pertencente a um certo Capitão São Roque - era o ponto de

descanso e prosa do contador que cotidianamente percorria esse caminho a cavalo. Afeição

especial era nutrida pelo seu tio, Mariano Ferreira da Cunha, conhecido como “tio sinhô”, o já

citado precursor do espiritismo nas terras do Triângulo.308

Sinhô Mariano era um materialista convicto,309 homem autodidata com vasta leitura310

que tentara a sorte como comerciante e guarda-livros prático sem grandes êxitos profissionais.

Mudou para Santa Maria após casar-se com a neta do Capitão, dono das terras, a Sra. Djanira

305
NOVELINO, Corina. Op.cit., pp.71-2.
306
“Guarda-livros”, decerto, era uma função respeitosa. Num registro de casamento de José Martins Borges,
datado de ?/07/1902, Eurípedes assinou como testemunha e foi o único da lista que detalhou no documento sua
idade e ocupação: “...22 anos, guarda-livros da Casa Mogico”.
307
Hoje município. É emancipado desde 1911.
308
ALMEIDA, Adolfo Ramos. Depoimento prestado ao autor (gravado). Sacramento: 8/1/2006 ; MELLO,
Ármilon Ribeiro. Relato da História de Santa Maria, prestado ao Instituto Cultural Leopoldina Geovana de
Araújo. Op.cit.; ALMEIDA, Neio Luiz Ramos. Árvore Genealógica da família Cunha e Araújo. Sacramento,
Fazenda Santa Maria: 9/1/2002.
309
CUNHA, Iola Ramos da. Fé e Amor. Uberaba: Pinti Editora, s.d. A autora é atual presidente do Centro
Espírita Fé e Amor; casada com um neto de Mariano da Cunha, conviveu com o histórico espírita.
310
Ainda existe um vasto acervo com livros que pertenceram ao Sinhô Mariano, em Santa Maria.
176

da Cunha. Todavia, com a sua chegada ao povoado, tal como em Hydesville das irmãs Fox,

nos Estados Unidos, estranhos e insólitos fenômenos físicos passaram a ocorrer, como janelas

trancadas dos simples casebres das redondezas que se abriam à noite, ruídos de pedradas nos

telhados, entre outras inexplicáveis situações.311

Quando Mariano trabalhou como contador para o espanhol Francisco Peiró, em

Paineiras - hoje, Peirópolis, em sua homenagem, conhecido distrito de Uberaba pelas pesquisas

paleontológicas em resquícios fósseis de dinossauros – já havia presenciado a conversão do

comerciante para o espiritismo. Diante dos acontecimentos, procurou Peiró que se interessou

em acompanhá-lo para colher relatos dos camponeses do local. Foi a partir desses contatos que

a doutrina espírita entusiasmaria o “tio sinhô” que em 28 de agosto de 1900 veio a fundar o

primeiro centro espírita do Triângulo Mineiro, o “Fé e Amor”.312

A conversão provocou tensões familiares. Sob a ameaça de expulsão daquelas terras

pelo Capitão São Roque, Mariano deixou sua casa nos fundos da sede da fazenda e construiu

outro casebre, mais afastado, próximo ao córrego Ibituruna, no lado esquerdo da estrada de

Sacramento.313 A saída definitiva da fazenda não ocorreu devido a intervenção da mãe da

esposa de Mariano, a D. Ana Petrolina de Araújo, que ameaçou o marido a também sair com o

casal.

Paradoxalmente, a atual sede do Centro Espírita, construída aproximadamente em

1920, foi doada pelo Capitão, assim como a última morada de “sinhô” Mariano, mais próxima

à casa grande da fazenda. Com uma grave ferida na perna, sem recursos terapêuticos na região

311
ALMEIDA, Adolfo Ramos. Depoimento. Op.cit.; MELLO, Ármilon Ribeiro. Relato da História de Santa
Maria. Op.cit.
312
MELLO, Ármilon Ribeiro. Depoimento. Op.cit. A data da fundação da instituição é confirmada pelo seu
Registro em cartório, ainda intacto. Quanto às reuniões de Peiró, do Cel. Antônio Cesário, em Uberaba, e outras
incontáveis, eram sessões que ocorriam no âmbito privado ou residencial. Então, efetivamente, a instituição “Fé e
Amor”, é a primeira da região e, talvez, de Minas Gerais.
313
Idem.
177

e aconselhado a procurar auxílio em São Paulo ou no Rio de Janeiro, São Roque recorreu ao

auxílio de Mariano, obtendo a cura.314 As relações familiares mudaram consideravelmente.

Repousando em Santa Maria, numa estada das já citadas viagens periódicas a cavalo

de Sacramento à loja Mogico de Conquista para a devida escrituração contábil, o católico

Barsanulfo questionou o tio – até então, notoriamente materialista – sobre sua adesão à

estranha doutrina. Recebeu então de “sinhô” uma obra de Léon Denis, “Depois da Morte”, 315

que naquela mesma noite seria lida, iniciando o abalo de suas convicções católicas.

Tempos depois, numa ida a Sacramento, Mariano convidou Eurípedes a participar de

sessões ditas mediúnicas, em Santa Maria, e o jovem, imbuído de curiosidades, aceitou. É

difícil apontar o fator determinante daquela radical conversão, mas, decerto, Barsanulfo ficou

sobremaneira surpreso quando escutou um tio, o Sr. Delcides, analfabeto, versando sobre o

Sermão da Montanha e a grandeza de Jesus Cristo.316 Na mesma reunião, teria ocorrido uma

manifestação atribuída ao francês São Vicente de Paulo, conclamando-o à nova jornada.317

Quando Eurípedes retornou a Sacramento, foi à Igreja Matriz comunicar ao padre

Antônio Teodoro sua nova crença e pedir-lhe o desligamento das atividades da irmandade

caritária. Não demoraria, a notícia se disseminou e, seguramente, provocou abalos, como o

afastamento dos professores e colegas do “Lyceu Sacramentano” (abordado no próximo item).

Contudo, Barsanulfo seguiu convicto sua jornada. Como descrito no item anterior, em

1º de novembro de 1904 era eleito à Câmara, e na véspera do natal, 24/12, acontecia a

“verificação dos vereadores eleitos”, e, efetivamente, no primeiro dia do ano seguinte, os

parlamentares eram empossados, tendo Eurípedes como secretário.318 Em suma, a escolha

314
ALMEIDA, Adolfo Ramos. Depoimento. Op.cit.
315
Edição mais atualizada: DENIS, Léon. Depois da morte. 25.ed. Rio de Janeiro: FEB, 2005. Léon Denis
nasceu em Foug, distrito de Toul, na França em 1846 e morreu em Tours, em 1927. Orador e escritor, foi um dos
mais entusiasmados discípulos de Allan Kardec, tendo colaborado sistematicamente com a “Revue Spirite”,
revista fundada pelo codificador da doutrina - MALGRAS, J. Os Pioneiros do Espiritismo. São Paulo: DPL,
2002, pp.164-7; DENIS, Léon. O Gênio Céltico e o Mundo Invisível. 2.ed. Rio de Janeiro: Edições CELD, 2001.
316
CUNHA, Iola Ramos. Op.cit., p.34.
317
RIZZINI, Jorge. Op.cit., pp.43-4.
318
Atas da Câmara Municipal de Sacramento. Volume com as atas de 24/12/1904 a 1/1/1908.
178

religiosa, pelos indicativos, não comprometeu suas funções públicas. Analisando as Atas da

Câmara, não consta nenhuma alusão ao espiritismo, e a única discussão religiosa, a já apontada

colocação da cruz de Cristo no recinto das reuniões, foi muito mais de cunho ideológico do que

da moral cristã propriamente.

A dona Meca, mãe de Eurípedes foi a primeira pessoa de seu lar a converter-se ao

espiritismo; seu pai ainda resistiu à aceitação, mas acabou aderindo, assim como seus irmãos.

Ainda em 1904, foi instalado em sua própria casa o que denominou “Culto Cristão”, em que

todos os dias, às 9 horas,319 interrompia os afazeres e procedia a leitura do “Evangelho

Segundo o Espiritismo” e as orações cotidianas. Em janeiro de 1905, fundou em Sacramento o

“Grupo Espírita Esperança e Caridade”, cuja primeira sede era também em sua casa, e, mais

tarde, foi transferido para o mesmo prédio do Collégio Allan Kardec.320

Com o apoio do pai, a farmácia dos pobres, montada ao lado de seu quarto, no fundo

da residência, foi ampliada. Os sais fundamentais eram comprados da “Drogaria Brasil”, a

maior farmácia do estado de São Paulo, e as tinturas de raízes, cascas e folhas eram produzidas

no lar do espírita. Esse estabelecimento filantrópico era conhecido pelas pessoas mais humildes

como “farmácia de Seuripe” – alusão a “Seu” Eurípedes – mas, seu nome era “Farmácia

Espírita Esperança e Caridade”. As irmãs de Eurípedes, Edalides, Eurídece e Edirite

colaboravam nas lides cotidianas, preparando vidros, rótulos e manipulando as receitas e

Eurípedes preparava os remédios líquidos.321

Sempre solícito ao auxílio, Barsanulfo prescrevia as enfermidades e encaminhava as

recomendações religiosas. Numa carta datada de 14 de setembro de 1911, ao amigo e aluno

Odilon Ferreira, recomendava:

319
Ainda hoje, sua sobrinha, D. Heigorina Cunha, segue a tradição e mantém o culto diário no Centro que preside.
CUNHA, Heigorina. Depoimento prestado ao autor (não gravado). Sacramento: 9/1/2006.
320
GODOY, Lauret. Op.cit., p.61.
321
RIZZINI, Jorge. Op.cit., p.53.
179

Sor.Odilon. Querido amigo e discípulo. Amistosas saudações. Desejo


a sua saúde e a dos que lhe são caros, por cujas felicidades faço votos
ao altíssimo. No tocante á enfermidade do sor. seu filho, tenho a
dizer-lhe que se trata de um caso de intoxicação. Os remédios que se
lhe destinam, há muito que fizemos seguir. Queixa-se o bom amigo
que a sorte lhe tem sido adversa; e eu o convido, para seu consolo, a
ler e meditar maduramente o Cap. V do “Evangelho, segundo o
espiritismo”, pois ahi encontra o meu discípulo a explicação desse
fato. Não se desanime; tudo tem a sua razão de ser...

As marcas de Barsanulfo no meio familiar foram indeléveis. Seus irmãos, Waltercides

Wilson e Homilton Wilson vieram a ser professores e, posteriormente, diretores, em diferentes

épocas, do Collégio Allan Kardec e prosseguiram, ainda, na difusão do espiritismo. Em carta322

datada de 30/4/1956 - e terminada no dia 1º seguinte, aniversário do nascimento de Barsanulfo

- Homilton, então radicado no Rio de Janeiro em decorrência de suas obrigações profissionais,

atuava no IBGE, desabafava com o “compadre e cunhado amigo”, Pedro, na distante terra do

Borá:

(....) Manhã de 1º de maio. Pouca luz na Baía. Névoa sêca. O ruído


da cidade entra-me pelo apartamento (...) Tenho coração e alma
voltados para o passado longínquo, nesta hora em que desce do céu,
para as dores de minha lembrança viva, esta lembrança melhor de
tôda a minha vida: - Eurípedes... Meu irmão, meu mestre – mais do
que meu pai. Êste deu-me a vida. Aquêle arrancou-me das cavernas
tenebrosas do êrro, do crime. Abriu-me os olhos à luz da verdade.
Ensinou-me a viver preso à terra e ao céu. Enmanado das estrêlas,
ensinou-me a conversar com elas, apontando-me os caminhos retos
da casa do pai. [grafia original]

Noutro trecho, o irmão e discípulo de Barsanulfo, teceu conjecturas e divagações

sobre a singularidade dessa convivência:

Eurípedes... nunca mais, Pedro, nunca mais, encontrei nesta vida


Homem igual aquêle Homem. Às vezes, recordando fatos e cenas
que guardo na memória, referentes à vida de Eurípedes, às vezes me
pergunto, a mim mesmo: Dar-se-á o caso de poder eu comunicar,
transmitir a alguém, perceptivelmente, tudo quanto sei e sinto a êsse
respeito? (...) De outras vezes, também, me pergunto: Deu-se, por
ventura, comigo o fato de ter vivido com Eurípedes, sob o mesmo
teto? Bebemos do mesmo leite? Deitei-me em seu seio? (...).

322
Carta original. Acervo do professor Carlos Alberto Cerchi. Dados complementares, WILSON, Saulo.
Depoimento prestado ao autor (não gravado). Sacramento: 11/1/2006.
180

No trabalho de disseminação da fé espírita, Barsanulfo continuou mantendo relações

estreitas com a fazenda Santa Maria. No dia 10 de dezembro de 1905, o “Grupo Espírita Fé e

Amor” realizou sessão que elegeu uma nova diretoria da entidade, tendo Eurípedes como seu

“orador oficial”, o Sr. Delfim Pereira da Silva, presidente, o Mariano da Cunha, primeiro

secretário, entre outros.323 Na reunião, pelo descrito em sua ata original, o médium

sacramentano teria efetuado uma “alocução verbal” aos presentes - referência a manifestação

que, no imaginário espírita, é chamado de “psicofonia”, faculdade que Kardec classificou de

“mediunidade falante”:324

Os médiuns audientes, que apenas transmitem o que ouvem, não são,


propriamente falando, médiuns falantes; estes últimos, com muita
freqüência, não ouvem nada; neles o Espírito atua sobre a mão dos
médiuns escreventes. O Espírito, querendo se comunicar serve-se do
órgão no qual encontra mais flexibilidade no médium; de um
empresta a mão, de outro a palavra, de um terceiro o ouvido... [grifo
do original].

Em seguida, a “mesa telegráfica”,325 recebeu uma comunicação atribuída a Santo

Agostinho: “Neste momento em que acabastes de apreciar pela boca do jovem Eurípedes, a

mais bela apologia, bem encerrada na moral que dizem as sagradas escrituras das alturas

infinitas, desçam os orvalhos salutares sobre todos do presente auditório...”

O “Grupo Espírita Fé e Amor”, por muitas décadas, atrairia multidões para a pequena

Santa Maria, ávida pelas manifestações públicas do sobrenatural.326 Só nessa ata de 1905, cuja

parte significativa do original, escrita em caderno escolar, foi perdida com o tempo, constam

mais de 1500 assinaturas – tomadas em diferentes reuniões, sendo difícil presumir sua

abrangência de tempo.327 Milhares de pessoas vindas de diferentes regiões, peregrinavam até

323
Ata de Sessão dos trabalhos realizados no Grupo Fé e Amor de Santa Maria, município de Sacramento ao 10
dias do mês de dezembro de 1905.
324
KARDEC, Allan. O livro dos Médiuns. 57.ed. Araras: IDE, 2001, p.187.
325
Similar às chamadas mesas girantes dos primórdios do espiritismo. Cada série de batidas significava uma letra
e um secretário era incumbido de decifrar os códigos. CUNHA, Iola Ramos. Op.cit., p.18.
326
A rigor, os Centros Espíritas do país sob a orientação da Federação Espírita Brasileira abandonaram essas
exibições públicas. Em Santa Maria, ocorriam até os anos 50. ALMEIDA, Adolfo Ramos. Depoimento. Op.cit.
327
Lendo os nomes, encontramos (ALMEIDA, Adolfo Ramos, idem) a assinatura de Dona Iola Ramos da Cunha,
que chegou a Santa Maria com a família nos anos 30. Não existe referência no documento quanto aos critérios da
assinatura e a D. Iola não soube, em depoimento, especificar o contexto da subscrição.
181

aquele pequeno lugarejo em busca de cura para os males físicos ou psíquicos, ou mesmo para

saciar curiosidades sobre o mundo além túmulo. Da balsa sobre o Rio Grande, na divisa de

Conquista com o estado de São Paulo, peregrinos caminhavam mais de 20 quilômetros a pé em

busca de seus propósitos.328

Sobre as atividades espíritas e mediúnicas de Eurípedes Barsanulfo, os casos chegam

a centenas, seja através de trabalhos escritos, seja através da tradição oral. Não é o escopo do

presente trabalho inferir sobre as múltiplas representações coletivas acerca desse legado

religioso, mas o resgate de seu papel como professor e educador. Mas, por outro lado, como as

esferas se entrelaçam, e o cotidiano escolar era permeado por esses elementos – como

abordaremos nos itens a seguir, vale destacar alguns pontos acerca de seus dons de médium e

curandeiro.

O ex-aluno Thomaz Novelino, em depoimento a Lauret Godoy, descreveu uma

situação inusitada que testemunhou:

Na primeira Guerra Mundial, entre 1914 e 1918, os alemães estavam


invadindo a França. Naquele tempo, o método de ensino era : ‘Dá a
sua lição, menino’. Então a gente ia falando a lição de História do
Brasil, Geografia, Astronomia... Quando ele [Eurípedes] caía em
transe, começava a sacudir a cabeça e repousava. Eu me lembro
muito bem. Um dia um aluno estava dando uma lição e “seu”
Eurípedes entrou em transe. Como o menino já estava acostumado
com aquilo, ficou calado, esperando. Depois ele retornou, despertou
e falou: ‘- Que horror! Estive no Front da França e assisti a um
combate de baionetas.’ Ele contava que eram os guias espirituais que
o conduziam.

Numa situação similar, outro ex-aluno, Bráulio Alves de Oliveira, testemunhou e

relatou:

Certa vez estávamos quatro alunos no quadro negro. Eurípedes


permanecia do lado em pé. Isso acontecia diversas vezes. Ele ficava
quietinho e a sala percebia e comentava: ‘Seu Eurípedes já foi’,
fazendo referência ao seu desdobramento. A gente ficava em silêncio
esperando ele voltar e contar o que havia acontecido. Nesse dia ele
voltou e disse: ‘Acabo de assistir à assinatura do Tratado de
Versalhes, na Sala dos Espelhos, na França, onde estavam presentes
tais e tais políticos. Em breve o mundo estará em paz!’. Era o
prenúncio do fim da Primeira Guerra (...).

328
ALMEIDA, Adolfo Ramos de. Idem.
182

Num livro de 1962, o médico uberabense Inácio Ferreira descreveu um testemunho de

outro aluno, oferecendo outros detalhes, mas, em essência, sobre o mesmo episódio.329 Numa

época em que não existia rádio, as comunicações eram lentas. Dias depois, com a chegada dos

jornais com a notícia, grande espanto foi provocado pela confirmação dos fatos.

Essa suposta faculdade de Eurípedes é considerada pela doutrina espírita como

“bicorporeidade”, capacidade atribuída a alguns santos católicos, como Santo Alfonso de

Liguori e Santo Antônio de Pádua, em que o médium, no sono, experimentaria um

desdobramento espiritual, surgindo em outro lugar. Allan Kardec, n’ “O Livro dos Médiuns”,
330
detalha:

O Espírito de uma pessoa viva, isolado do corpo, pode aparecer


como o de uma pessoa morta, e ter todas as aparências da realidade; e
mais, pelas mesmas causas... pode adquirir uma tangibilidade
momentânea. Este fenômeno é designado sob o nome de
bicorporeidade, que deu lugar às histórias de homens duplos, quer
dizer, de indivíduos cuja presença simultânea foi constatada em dois
lugares diferentes. [grifo do original].

Outros casos que notabilizaram Eurípedes, foram os processos de cura. Apenas um

exemplo, para ilustrar, em princípios de 1918, um dos filhos de tenente Afonso Modesto,

residente em Uberaba, adoeceu e dois médicos atestaram um caso grave de pneumonia. Pela

manhã imediata, o pai aflito seguira a Sacramento à procura de recursos junto a Barsanulfo. À

noite, uma visita inesperada assustou um membro da família que velava pelo doente. A pessoa,

que conhecia o personagem, acalmou-se e seguiu as recomendações do amigo. No dia seguinte,

chegava tranqüilo de Sacramento o tenente Afonso trazendo consigo os medicamentos

manipulados por Eurípedes que lhe dissera que, à noite, já havia estado em sua casa. 331

Por outro lado, com tal abrangência de ações e notória popularidade, não tardariam

reações adversas.

329
FERREIRA, Inácio. Subsídios para a história de Eurípedes Barsanulfo. Uberaba: Edição do autor, 1962,
p.24. Apesar de citar vários nomes de pessoas presentes no episódio, como o Dr. Thomaz Novelino, Jerônimo
Cândido, Odilon Ferreira e Antenor Germano, infelizmente Inácio não mencionou o aluno que dera o testemunho.
330
KARDEC, Allan. Livro dos Médiuns. Op.cit., p.138.
331
FERREIRA, Inácio. Op.cit., p.24.
183

Suas afirmações no jornal espírita “Alavanca”,332 editado em Santa Maria, defendendo

a tese de que “Deus não é Jesus e Jesus não é Deus”,333 provocaram ruidosa reação do clero

católico. Os adversários de Eurípedes buscaram em Campinas, estado de São Paulo, um padre

famoso por suas pregações, o Rev. Feleciano Yague. Em praça pública, num coreto, discutiram

diante de centenas de pessoas, expondo os pontos de suas convicções. Os alunos do Collégio

Allan Kardec estavam presentes.334

Na mesma época, Barsanulfo distribuiu um panfleto intitulado “Accordo e synthese da

polemica religiosa catholico-espirita, havida em Sacramento, em 28 de Outubro de 1913, entre

PADRE FELICIANO IAGUE E EURIPEDES BARSANULPHO” [destaque do original]335, a

publicação de uma ata acerca de um debate ocorrido na casa do Cel. José Affonso – presidente

e agente executivo da Câmara Municipal.

Além dos dois contendores, estavam presentes o Padre Julião Nunes, o Cel. José

Affonso, o irmão de Eurípedes, Waltercides Wilson, e o vereador Orígenes Tormim. Foi

combinado que cada um falaria alternadamente por meia hora, no espaço de duas horas.

De acordo com o documento, o Padre Feleciano deveria provar que (a) O espiritismo é

o ateísmo; (b) Preternaturais do Espiritismo não se poderiam explicar sem a intervenção

diabólica; (c) O Espiritismo não é religião; (d) O Espiritismo não é ciência.

Após as explanações do reverendo sobre o referencial católico acerca de cada tópico,

Eurípedes rebateu:

[a] O Ateísmo nega Deus. O espiritismo o afirma. Logo, o


Espiritismo não é Ateísmo. O Espiritismo não contradiz o Cristo (...).
[b] Fenômenos preternaturais ou milagres, como entende a Igreja,
ignora-os o orador, porque sabe que todo fenômeno ocorrido no
universo se verifica em virtude das leis naturais e que toda lei natural
tem entre outros caracteres, os de: 1º - Ser eterna, 2º ser universal
(...). [c] Eurípedes disse ser o Espiritismo religião, filosofia, moral;

332
Infelizmente não existem exemplares nos arquivos da cidade nem tampouco nos acervos dos estudiosos da
região deste órgão pioneiro do Estado de Minas.
333
FERREIRA, Inácio. Op.cit., p.29.
334
NOVELINO, Corina. Op.cit., pp.174-9.
335
Parte do panfleto original faz parte do acervo do Memorial Eurípedes Barsanulfo. Inácio Ferreira, em sua obra
sobre Barsanulfo (Op.cit., pp.32-6), traz a transcrição completa. Não é possível afirmar se o debate ocorreu antes
ou depois do entrevero em praça pública.
184

define o dicionário Aulete: “RELIGIÃO, s.f. – faculdade ou


sentimento que nos leva a crer na existência de um ente supremo
como causa, fim ou lei universal” (...).

O Padre sustentou que o espiritismo não poderia ser ciência, porque em toda ciência

existem princípios com deduções lógicas e rigorosas. Por sua vez, Eurípedes sustentou...

[d] ...ser o Espiritismo ciência positiva, porque é ciência do espírito,


da natureza íntima do homem, dos seus destinos e fim. É positiva,
porque tem sua origem nos fatos; e como provas científicas – o
magnetismo, a hipnose, o sonambulismo, a radiatividade de todos os
corpos e de todos os seres, o êxtase, as visões e as aparições de
fantasmas dos vivos e mortos (...) observados por inúmeros sábios de
todos os tempos e lugares.

Arrematando o documento, distribuído pelas ruas de Sacramento, Barsanulfo

destacava: “Eis, em súmula, a essência do que ocorreu na polêmica religiosa entre mim e o

padre feliciano Iague, pregador de Campinas, e então em Sacramento.”336

Vale destacar dois elementos do episódio e da fala de Eurípedes. Indubitavelmente, o

Cel. José Affonso foi o grande nome da época da política local, como já exposto, e na sua

gestão como “Agente Executivo”, a cidade experimentou consideráveis modernizações.

Acrescendo esse fato às relações políticas da Câmara, que constam em suas atas diversas,

podemos inferir o tom cordial e respeitoso das relações sociais de Barsanulfo. E a reunião na

casa do chefe político foi uma distinção – que ainda contou com a presença do vereador da

situação, o farmacêutico Orígenes Tormim.

E o discurso de Barsanulfo é fiel às proposições de Kardec, ressaltando o caráter

racional e científico do Espiritismo, cujo pensamento tem suas sintonias com os movimentos

intelectuais do século XIX – como frisado no primeiro capítulo.

A rigor, durante quatro anos, da polêmica em 1913 até 1917, Eurípedes contou com

relativa tranqüilidade tanto nas atividades do colégio quanto nas searas da cura dos seus

enfermos e na propagação da doutrina de Kardec.

336
O panfleto é datado de 1/11/1913.
185

Mas entre 1917 a 1918, o apóstolo sacramentano enfrentou outro percalço, um

processo-crime diante do exercício ilegal da medicina. Em 15 de fevereiro de 1918, chegava ao

“Cartório do Crime”, em Uberaba, a denúncia oferecida pelo promotor público, Tancredo

Martins:337

Exmo.Sr.Juiz Municipal do Termo de Sacramento. O Promotor de


Justiça desta Comarca em cumprimento aos deveres de seu cargo
vem denunciar a V. Excia. o seguinte fato criminoso: o Sr. Professor
Eurípedes Barsanulfo (...) é sectário do espiritismo e o pratica,
francamente, ali. Esse fato, porém, não incidiria em nenhuma
disposição da lei proibitiva se o Sr. Barsanulfo não praticasse o
espiritismo exercendo como “médium” que diz ser e, por meio dessa
“mediunidade”, a medicina em quase todos os seus ramos (...) O Sr.
Barsanulfo faz intervenções cirúrgicas, ministra remédios internos e
externos e aplica “passes” inculcando a cura de moléstias curáveis e
incuráveis, a fim de fascinar e subjugar a credulidade pública (...) .

Os embates que culminaram com um inquérito e a abertura do processo foram

desencadeados pelos debates travados na imprensa de Uberaba pelo presidente do Circulo

Católico da cidade, o Dr. João Teixeira Alvares, responsável pelos boletins e noticiários no

“Lavoura e Comércio”. Num artigo publicado em 7 de outubro de 1917, intitulado “Seita

Maldita” 338, rogava que numa sessão do Supremo Tribunal Federal foi confirmada a sentença

de um juiz do Estado do Rio de Janeiro que negava habeas corpus a um militante do

espiritismo que buscava proteger-se contra a polícia em suas sessões religiosas. “... Por essa

acertada decisão, acaba a mais alta corporação judicial da República de desferir um golpe

mortal no Espiritismo e nos seus sectários e asseclas”, disparava o presidente do Círculo

Católico que indagava se “...as leis de Minas [seriam] diferentes das que regem as decisões do

supremo Tribunal?”.

À época de Eurípedes estava vigente o Código Civil de 1890, que em seu artigo 157

considerava crime “... praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e

337
NOBRE, Freitas. A perseguição policial contra Eurípedes Barsanulfo. São Paulo: EDICEL, 1987, pp.17-8.
338
Boletim do Círculo Católico de Uberaba. In: Lavoura e Comércio. Uberaba: 7/10/1917.
186

cartomancias, para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar curas de moléstias curáveis

ou incuráveis, enfim para fascinar e subjugar a credulidade pública”.339

Acirrando os debates, os seguidores do espírita de Sacramento articularam a

campanha de defesa por meio de outro órgão da imprensa uberabense, o “Jornal do Triângulo”,

orientada, entre outros, pelos jornalistas Alceu de Souza Novaes e Robespierre de Melo.340

A campanha durou meses, e pelas manifestações de apoio, Eurípedes e o colégio eram

conhecidos em âmbito regional. No livro “Subsídios para a história de Eurípedes Barsanulfo”,

o médico psiquiatra uberabense, Inácio Ferreira,341 sistematizou e publicou diversas cartas e

abaixo-assinados direcionados ao jornal vinculados ao apoio do médium. Um espírita que

assinou como Jeronymo Homide, “O Kardecista”, dizia: “... alerta ó colegas do Colégio Allan-

Kardec... os ‘fariseus modernos’ querem levar o nosso abnegado professor ao cárcere e

mostrar-lhe que os corações de ferro do tempo de Cristo, ainda se encontram na hodierna

sociedade...”.342

Da cidade de Frutal, Pontal do Triângulo, em 31 de outubro de 1917 foi enviado um

abaixo-assinado contendo noventa e cinco assinaturas em solidariedade a Eurípedes.343 Noutra

carta pública, de Barretos, interior paulista, subscrito por oitenta e duas pessoas e encabeçada

pelo Dr. Raymundo Mariano Dias, 1º Juiz de Paz em exercício e também médico, dizia:

“Exmo.Sr. Professor Eurípedes Barsanulfo. Nós abaixo assinados, amigos da verdade, sabendo

quanto de bondade vai no vosso coração de verdadeiro devotado ao sofrimento e às torturas da

humanidade e de quanto vos tendes esforçado para derramar também sobre elas as luzes do

vosso saber...”.344

De Ituitaba, também do Triângulo Mineiro, oitenta e duas pessoas assinaram um

protesto, e de Ouro Fino, uma carta sustentava que Eurípedes “... nunca pretendeu ser médico

339
NOBRE, Freitas. Op.cit., p.17.
340
FERREIRA, Inácio. Op.cit., p.43.
341
Id.Ibdem., pp.45-92.
342
Id.Ibdem., pp.45-6.
343
Id.Ibdem., pp.51-4.
344
Id.Ibdem., pp.54-7.
187

ou fazer uso dessa profissão e tanto isto é certo que ele nunca cobrou um real de quem quer que

seja pelos humanitários serviços prestados a aqueles que o procuram”. O documento,

reconhecido em cartório, contava com a assinatura de um cafeicultor, um diretor do Grupo

Escolar, dois professores públicos, um proprietário de hotel, um chefe da estação da Rede Sul

Mineira, além de outras pessoas que mencionavam a ocupação profissional.345

Alguns alunos do Collégio Allan Kardec também se manifestaram. De Monte Santo, a

aluna Mariana de Campos Libanio sustentava que “ (...) a perseguição injusta... não se pode

radicar do espírito público, senão como uma prova mais da intolerância impertinente de certos

credos e da inépcia absoluta de certos indivíduos, que teimam em elevar do nada a própria

individualidade e as próprias idéias, pelo processo fácil de caluniar e perseguir...”. Antônio

Pinto Callada, indagava: “A Igreja não tem condenado as grandes descobertas que tem havido

– em benefício dos povos - classificando-as como diabólicas, invenções do satan, etc, e hoje

não aceita-as?” . Por sua vez, W. Rodrigues Citan desafiava: “Se a pessoa a que venho

referindo [o uberabense João Teixeira] duvida da capacidade moral e intelectual dos meus

colegas [alunos do Collégio Allan Kardec], que se lhes dirija convidando-os para uma

discussão verbal no campo da matéria em questão, no que estou certo será atendida”.346

O processo passou por uma peregrinação entre vários magistrados: o distribuidor de

Sacramento encaminhou-o ao 1º Ofício; por sua vez, esse escrivão fez a preparação dos autos

para o 1º Juiz de Paz que alegou ser cunhado do escrivão, portanto impedido de julgá-lo... No

mesmo dia, o 2º Juiz de Paz declarou-se impedido por ser cunhado do indiciado, remetendo-o

ao 3º Juiz que encaminhou-o ao Promotor. O escrivão, vinculado à Promotoria, Itagyba José

Cordeiro, redigiu nos autos que não poderia analisá-lo, por que “... o moço envolvido neste

processo, além de ser meu amigo muito íntimo, foi meu colega e ultimamente meu professor, e,

por isso, dou-me por suspeito por ter interesse particular na causa...”.

345
Id.Ibdem., pp.57-60.
346
Id.Ibdem., pp.64-8.
188

O processo retornou a Uberaba, outros escrivãos recusaram-no. Então, voltou a

Sacramento e o Juiz Municipal, Dr. Júlio Brasílio de Vilhena, explicitou que jurava “...

suspeição por ter particular interesse na decisão deste processo”. Encaminhadas as diligências a

três suplentes de Juiz de Paz, todos negaram, declarando que não haviam tomado posse.347

Indubitavelmente, haja vista essas peripécias da peça, a figura de Eurípedes

Barsanulfo era respeitosa em Sacramento, contando com a conivência do Judiciário – cujos

membros compunham a classe média letrada, como em outras regiões do país, acessíveis à

doutrina de Kardec. O processo foi prescrito por falta de pronúncia, em 9 de maio de 1918,

pelo mesmo juiz da Comarca de Uberaba que havia iniciado a queixa, Fernando Mello Vianna:

“(...) estando decorrido o lapso de um ano a contar de abril de 1917, data do crime indicado

pelo Dr. Promotor, decreto a prescrição mandando que se arquive o processo, que ficará em

perpétuo silêncio...”.

Nesse período, a gripe espanhola que assolava o mundo ceifando vidas, chegava em

Sacramento, exigindo de Eurípedes ações redobradas diuturnamente, amparando e acolhendo

centenas de famílias pobres.

Esgotado pelo esforço, minadas suas resistências muito em reflexo de sua alimentação

frugal e dos trabalhos assistenciais contínuos, contraiu a moléstia, vindo a falecer a 1º de

novembro daquele ano.

347
Cópia do Processo jurídico, “requerido pelo próprio réu, movido contra Eurípedes Barsanulfo pelo exercício
ilegal da medicina”. Sacramento, 7/?/1917; NOBRE, Freitas. Op.cit., pp.76-81.
189

2 – O Collégio Allan Kardec (1907/1918)

2.1 História da educação na Sacramento do limiar do século XX

A ferrovia, indubitavelmente, leva em seus trilhos o progresso. No ano seguinte à

inauguração da primeira estação da Mogiana em Minas, a Jaguara, em 1889 era lançada a

estação do Cipó, conectando Sacramento a São Paulo e ao Rio de Janeiro, e chegava o primeiro

colégio oficializado da cidade, o já mencionado “Miranda”, fundado pelo professor João

Derwil de Miranda, natural da primeira capital mineira, Mariana. Pela instituição que

estudaram Eurípedes e seus irmãos, passaram alguns alunos filhos da elite local.

A fim de ilustrar a abrangência social do Colégio Miranda, vale destacar a

constituição de seu quadro de professores. Além de Derwil, estavam lecionando o Promotor de

Justiça da Comarca, João Gomes Vieira de Mello; o presidente da Câmara e “Agente

Executivo”, Onofre Muniz Ribeiro; o maestro da banda da cidade, Simplício; o vigário local,

Manoel Rodrigues Paixão; o engenheiro Francisco Palmério, entre outros348.

A escola funcionou até 1901, retomando as atividades entre 1903 a 1905, quando o

professor Miranda mudou-se para Uberaba fundando o Ateneu Miranda - e residiria,

posteriormente, ainda, em Ouro Preto e Oliveira (MG), lecionando Português, Francês e Latim,

retornando a Sacramento em 1922, onde veio a falecer em 1937. 349

O curso era estruturado em três módulos. Em anúncio no Jornal “Cidade do


350
Sacramento”, em fins de 1902, era descrito seu conteúdo: “CURSO PRIMARIO - Leitura-

escripta-calligraphia-noções de portuguez, historia, geographia, arithmetica e catechismo.

CURSO SECUNDARIO – Portuguez, francez, inglez, italiano, philosophia, arithmética,

geometria, algebra, trigonometria, geographia, cosmographia, historia patria e universal,

historia natural (botanica-zoologia-mineralogia) physica e chimica. CURSO FACULTATIVO

– escripturação mercantil, agricultura, mechanica e chimica agricola, dezenho e musica”.


348
Apontamentos diversos. MIRANDA, Maria Aparecida. Depoimento prestado ao autor. Sacramento:
10/01/2006.
349
MIRANDA, Maria Aparecida. Idem.; Folha de Sacramento. Sacramento: 15/08/1937, p.4.
350
Cidade do Sacramento. Sacramento: 15/11/1902, p.3.
190

Os cursos poderiam ser intensificados, de acordo com a capacidade e o esforço dos

alunos. O jovem Eurípedes entrara no Miranda logo na fundação, contando à época com 9

anos, já no curso Secundário. Suas primeiras letras haviam sido realizadas no curso da escola

primária do Sr.Joaquim Vaz de Melo Júnior. Atuando como monitor, ensinava aos colegas

lições de Língua Portuguesa, Francês e Matemática.

As aulas tinham duração de uma hora para cada disciplina e os exames eram anuais,

dirigidos por uma banca organizadora, que efetivava as provas orais e escritas.351 Havia,

também, uma banda organizada e dirigida pelo maestro Simplício, composta pelos próprios

discentes.

Numa publicidade de 1903, eram descritas as exigências do enxoval para os alunos

em regime de internato:

O Colégio exige apenas que os alunos tragam um terno preto para


passeios e solenidades e roupas brancas de uso de acordo com as
posses e a vontade dos pais dos aluno. Lavagem e engomação de
roupas, médico e botica, os livros e os utensílios serão pagos
separadamente pelos pais dos alunos.

Sobre o pagamento da trimestralidade de 90$000, (“pagos adeantadamente”)

enfatizava:

O colégio fornece marquesa e colchão para cada aluno. Todo aluno


deve ter um correspondente que faça com pontualidade os
pagamentos a essa cidade – Uberaba, São Paulo ou Rio de Janeiro.
No fim de cada trimestre receberão os pais um boletim com as
exatas informações sobre os filhos. Todo o correspondente deve ser
dirigido ao professor João Derwil de Miranda, Cidade do
Sacramento, Estrada de Ferro da Mogiana, Estado de Minas Gerais.
Ano Letivo: de 8 de janeiro a 8 de novembro de cada ano. 352

Em 1895, a Câmara Municipal de Sacramento, promulgava a 20 de setembro uma lei

(n.º 29) que incentivava a criação de um educandário, em regime de internato e externato, para

a difusão da instrução do sexo feminino. Em seu artigo 1º, anunciava a concessão de um

auxílio mensal de duzentos mil réis ou dois contos e quatrocentos mil réis anuais a uma
351
CERCHI, Carlos Alberto. Memória Fotográfica de Sacramento no Século 20. Uberlândia: Gráfica Brasil,
2005, pp..213-18.
352
Cidade de Sacramento. Sacramento: 28/02/1903.
191

senhora idônea que ministrasse, “...além do curso primário, Português, Francês, Geografia,

Aritmética, Canto, Música, Piano e Trabalhos Manuais, isto é, de agulha, de bastidor,

bordados, flores...”.353 A contrapartida seria o aceite gratuito de até quinze alunos externos

pobres encaminhados pelo Agente Executivo.

Após a publicação dos editais, em 29 de setembro era anunciada a subvenção ao

Colégio de Nossa Senhora do Patrocínio, dirigido pela professora Ana Borges que lecionou até

a sua prematura morte, em 14 de maio de 1905, contando então com 36 anos. Funcionou num

sobrado em frente ao Colégio Miranda, e teve vários professores auxiliares, como o próprio

João Derwil de Miranda e o vigário Manuel Rodrigues da Paixão – que lecionava catecismo.

‘Sinhana’ Borges, como era conhecida, entre suas aptidões, era pianista e programava

em seu colégio saraus literários e musicais, muito em voga naquele tempo.354

Eurípedes Barsanulfo, na condição de vereador, assim se exprimiu na sessão da

Câmara do dia 16 de janeiro de 1905, sobre a morte da distinta professora:

A sociedade sacramentana, como sabeis foi ontem dolorosamente


surpreendida com a triste nova do infausto passamento de um dos
seus caros e gentis membros da Exma. Sra. Da. Anna Borges e
carissima senhora – belhissimo florão, caro e precioso ornamento
dessa mesma sociedade - a boníssima donzela a quem todos queriam
pelas suas nobres qualidades de caráter e coração (...).

Sobre seu papel no magistério, acentuou:

(...) Amante dedicada do nosso desenvolvimento moral, vimo-la à


direção do ótimo colégio N.S. do Patrocínio, difundindo a educação
que nos ternos corações das nossas jovens conterrâneas gotejava
hinos de doçura, de bondade, transfundindo em seus cérebros infantis
a radiosa instrucção que, saindo as trevas caliginosas da ignorância
neles acendia o facho mitentissimo da moderna civilização”. 355

Na educação feminina, existiu, também, o Colégio N. Sra. do Santíssimo Sacramento,

mantido por freiras franciscanas no início do século XX. Funcionava no bairro Santo Antônio,

nos arredores da cidade e existem poucos registros de sua passagem. Um incêndio de causas
353
RODRIGUES, Maura Afonso. Fagulhas de História do Triângulo Mineiro. Uberlândia: ABC-SABE, 1988,
pp.68-9.
354
Id.Ibdem., p.69.
355
Atas da Câmara Municipal. Volume com as atas de 24/12/1904 a 1/1/1908.
192

desconhecidas destruiu o prédio, o que, provavelmente, contribuiu para o seu fechamento,

antes de 1910. 356

Certamente, muito da memória da história educacional de Sacramento, como do país

mesmo, foi encoberta pelo tempo, e muitas vezes recorremos aos indícios para recuperar o

passado.

Outra face relevante que é pouco enfocada nas pesquisas de história educacional do

Brasil, mas que, seguramente, constitui uma trilha consistente para a recuperação da memória

do processo de expansão do ensino no país, ao mesmo tempo que corrobora com a tese do

“entusiasmo pela educação” vivido nas primeiras décadas da República – discutido no capítulo

III - é a educação efetuada nas fazendas e nos distritos rurais. Comumente, fazendeiros

contratavam professores, até de distantes cidades, para morar na própria sede e ministrar o

ensino para os seus filhos e agregados.

Em muitas situações, o envolvimento entre alunos e professoras extrapolava o ensino

e ganhava outros contornos, lembrando as relações afetivas imbuídas de lusitanidade dos

tempos coloniais, no universo de Gilberto Freyre da “Casa Grande & Senzala”. Em

Sacramento, um respeitado plantador de Café nos idos dos anos 1940 trouxera uma professora

de Patos de Minas para o ensino dos filhos.

Com o passar do tempo, a normalista e o filho do fazendeiro cederam ao encanto

recíproco. Descobertos, o patriarca não hesitou em efetuar o casamento do filho – para aplacar

qualquer comentário maldoso na sociedade, ou pelo orgulho de uma nora professora, ou a

combinação das duas coisas. A união já completou cinco décadas e os personagens em questão

ainda residem em Sacramento e a filha do casal, a funcionária pública Marfisa Melo, ofereceu-

356
JACÓB, Amir Salomão. Depoimento prestado ao autor (não gravado). Sacramento: 5/1/2006; CERCHI, Carlos
Alberto. Memória fotográfica de Sacramento. Op.cit., p.219. Nesta obra do professor Cerchi, consta um dos
poucos registro dessa escola, foto produzida por um dos mais importantes fotógrafos da época, Edmundo
Ferreira, que inclusive participou da fundação do Collégio Allan Kardec.
193

nos esse relato. 357 São as muitas páginas da história da educação e da sociedade nesses vários

rincões e fazendas pelo Brasil.

Havia ainda circunstâncias pitorescas, com certo grau de improvisação, em que

professores ensinavam nas localidades distantes e, posteriormente, requeriam uma ajuda de

custeio, que poderiam ou não ser aprovadas pela Câmara Municipal.

Em 1905 foi aprovada por unanimidade em Sacramento uma gratificação de 200$000

para um professor de Conquista, cujo nome não foi citado358. À época, Barsanulfo era vereador

e membro da comissão de finanças. Em 23/1/1906 era concedido um ordenado de 60$000 a um

professor que ministrava uma “cadeira escolar masculina” no distrito de Divisa. Em 13/9/1906

um mestre de música da cidade também pedira uma subvenção que fora aprovada por todos os

parlamentares em 25/9/1906, no valor de 1:200$000 (um conto e duzentos mil réis). O

contraditório é que, nesse episódio, Barsanulfo proferiu um parecer contrário, ponderando que

“... a comissão deveria tomar mais em consideração questões de mais utilidade pública, como

água e esgoto”.

Em 31/12/1906 foi votado e aprovado a gratificação de 200$000 (“...pago com as

sobras da verba da Instrucção Pública”) pelo tempo lecionado aos professores Moyzés Antônio

Paym, de Divisa, e Ulysses Carolino, da Fazenda do Capão das Porcas.

Seguindo ainda os fragmentos e as pistas de documentos difusos, havia também um

colégio masculino na cidade,359 mantido pelo padre Augusto Maya. Em 13/03/1907, na ordem

do dia, a Câmara discutia o problema do pouco número de alunos gratuitos para a garantia da

subvenção pública:
357
MELO, Marfisa. Depoimento prestado ao autor (não gravado). Sacramento: 4/1/2006.
358
Dados quantitativos, valores, nomes e discussões neste tópico do trabalho estão contidas no volume das Atas
da Câmara Municipal. 24/12/1904 a 1/1/1908.
359
Sobre o educandário masculino, as fontes são ainda mais escassas. Para o professor e estudioso Amir Salomão
Jacób (depoimento, op.cit.) existiu no início do século o Colégio São Luís. Se a referência da Câmara em questão
for essa instituição presumida, a pesquisadora Maura Afonso Rodrigues, em seu livro Fagulhas de História,
Op.cit., p.70, menciona apenas que a escola funcionou até 1917, dirigida então pelo cônego Pedro Ludovico. A
controvérsia é que o viajante Roberto Capri que esteve em Sacramento provavelmente em 1915 dizia que “... Na
cidade funccionam duas escolas estadoaes e um Collegio” [o Allan Kardec] - CAPRI, Roberto. Uberaba, A
Princeza do Sertão. São Paulo: CAPRI, ANDRADE & CO Editores, 1916, p.103.
194

Ordem do dia. Tendo sido discutida a carta do diretor do collegio


Padre Augusto T.R.Maya dirigida ao fiscal geral da cidade
reclamando ou dando parte que só se achavam matriculados sete
alunos com guia da Câmara. Foi por esta deliberado que só se deverá
ser paga a subvenção do collegio de ensino secundario se haverem
matriculados no mínimo doze alunos com guia do Agente Executivo
(art.2º da lei nº80 de 24 de fevereiro de 1901), porém se não for
preenchido este número, só poderão ser feitos os pagamentos por
trimestre, de accordo com os estatutos do collegio de ensino
secundario aprovados pela camara municipal.

Na votação do orçamento de 1908, efetuado em 28/9/1907, de uma arrecadação

prevista de 73:575$000, eram destinadas as seguintes verbas para as matérias referentes a

educação e cultura:

Subvenção a um Collégio feminino 1:500$000


Escolas públicas Municipais 3:600$000
Collégio do sexo masculino 1:500$000
Mestre de música 1:200$000
Conferência São Vicente de Paulo 300$000

A planilha faz menção às escolas públicas municipais cujas trajetórias históricas são

escassas. Vale destacar, a captação de recursos era garantida, sobretudo, com os impostos sobre

o café, o arroz, produção de queijos e o imposto sobre indústrias e profissões. Da dotação total,

já mencionada de 73:575$000, 45:119$050 – ou seja, 60% - eram destinados a obras públicas.


360
No “Livro de Balancetes” da Câmara Municipal - exercício 1909/1910/1911 –

estão registradas referências de gastos mensais com a “Instrução Pública” – variação mensal

entre 60$000 e 120$000, alternadamente – e subvenções eventuais aos colégios masculino e

feminino, à banda de música e à Irmandade São Vicente de Paulo. Interessante constatar que o

Collégio Allan Kardec, que funcionava desde 1907, não contava com verbas públicas.

360
Livro de Balancetes da Câmara Municipal – exercício 1909/1910/1911, também do acervo do Arquivo
Público Municipal. A fim de destacar a importância da sede Sacramento, eis os números da arrecadação de janeiro
de 1909: Sacramento: 10:234$216; Conquista: 2:698$891; Ponte Nova: 284$705; Desemboque: 1:014$614; São
João Batista: 83$050.
195

FIGURA 17 – Escola feminina N. Sra. do Santíssimo Sacramento, mantida


por irmãs no início do século XX. Foto aproximadamente de 1905. Fonte:
CERCHI, Carlos Alberto. Memória Fotográfica de Sacramento. Op.cit.,
p.219. FIGURA 18 - Professor Laurindo
Vieira, falecido em 1873, primeiro
professor contratado de Sacramento.
Fonte: coleção de Virgínia Dolabela

FIGURA 20 – Professor João Derwil


Miranda, fundador do primeiro colégio
da cidade, com a neta. Fonte: coleção
de Maria Aparecida Miranda.
FIGURA 19 – Banca examinadora da escola da fazenda Bela Vista, em
Jaguará, localidade de Sacramento. Foto de 1919, tendo os irmãos de
Eurípedes Barsanulfo, Waltercides Willon e Homilton Wilson (esquerda
para a direita) e David Ewbank, como professores examinadores. Fonte:
CERCHI, Carlos Alberto. Memória Fotográfica de Sacramento. Op.cit.,
p.231.
196

2.2 – Do Lyceu ao educandário espírita, a ruptura

A jornada pelo magistério do professor Eurípedes Barsanulfo iniciara-se,

efetivamente, na constituição do “Lyceu Sacramentano” que funcionou entre 1902 a 1906.

Pelos relatos de Odilon Ferreira,361 aluno do Collégio Allan Kardec que se tornou um

importante militante da causa espírita no Triângulo Mineiro, foi após a visita de um certo dr.

Pedro Salazar, “um bondoso paraibano”, um grupo social amplo se articulou em torno da

fundação do liceu e do jornal “Gazeta de Sacramento”. Entre os quais, além de Barsanulfo,

que contava então com 22 anos, o promotor público Dr. João Gomes Vieira de Melo, um

sergipano radicado em Minas; o Professor Ignácio Martins de Mello; o Pe. Pedro Ludovico de

Santa Cruz; o Cel. José Pereira de Almeida; o José Martins Borges, filho de uma abastada

família de cafeicultores e amigo por toda a vida de Eurípedes; o José Monteiro da Silva Júnior,

“Seu” Monteiro, zelador da Igreja da Matriz e hábil guarda-livros oriundo de Areias, cidade

paulista, e o mais antigo espírita de Sacramento.

A primeira sede da escola funcionou improvisada no prédio do Cartório do 1º Ofício.

José Rezende da Cunha – aluno do Colégio Miranda e posteriormente do Lyceu – relatou que

foi o Sr. Monteiro que financiou os reparos no prédio mediante “...a condição de receber em

troca a instrução de cinco meninos até que se completasse a quantia despendida na reforma e

eu fui um dos contemplados”.362

Nessa instituição, de acordo com a descrição de Odylon Ferreira - que estudara um

ano e quatro meses gratuitamente no ensino secundário - “...Eurípedes foi o mestre amigo, o

amigo e pai de seus discípulos, o professor que todos amavam porque tinha esse dom sagrado

de guiar as inexpertas inteligências para a Luz sem causar-lhes esse temor tão comum na ação

dos professores de seu tempo”. 363

361
FERREIRA, Odilon J. Op.cit., p.10.
362
CUNHA, José Rezende da. Memórias inéditas [datilografadas]. Op.cit.
363
FERREIRA, Odilon J. Op.cit., pp.10-1.
197

As atividades do liceu iniciaram-se em 31 de janeiro de 1902 e Barsanulfo fez-se

professor de Francês e Geografia - e até os seus últimos dias em 1918 não abandonaria o

magistério. Além da função de jornalista, professor, guarda-livros do comércio de seu pai, à

época do liceu já manipulava e distribuía gratuitamente remédios homeopáticos e organizava

as atividades artísticas da escola, especificamente a execução de peças teatrais com os

alunos.364

Porém, a conversão de Eurípedes ao Espiritismo, em 1904, que mudaria radicalmente

os rumos de sua vida, provocou uma ruptura no expoente Lyceu Sacramentano. Os

companheiros de magistério abandonaram o educandário após a estranha adesão religiosa do

jovem professor. Muitos mais pais católicos cancelaram matrículas e retiraram seus filhos da

escola.

A fim de evitar o fechamento do liceu, sozinho e sem o apoio de nenhum dos

professores, transferiu a sede para o mesmo prédio da Escola Nossa Senhora do Patrocínio

onde alugara uma sala,365 e se desdobrava para ministrar todas as disciplinas programadas,

mesmo com mobiliário improvisado, e incluiu, ainda, o ensinamento da doutrina espírita.

Inconformados, outros pais, após ameaças e pedidos não atendidos por Eurípedes,

continuaram cancelando as matrículas, agravando a já precária situação financeira da escola.366

Desiludido e abandonado, Barsanulfo teria, segundo o imaginário contido em fontes

bibliográficas espíritas, recebido por “psicografia” em fins de 1906 uma mensagem atribuída a

Maria, mãe de Jesus: 367

Não feche as portas da escola. Apague a tabuleta e a denominação


Liceu Sacramentano, que é um resquício do orgulho humano. Em
substituição, coloque o nome: Collégio Allan Kardec. Ensine o
Evangelho do meu filho às quartas-feiras e institua um curso de
Astronomia. Acobertarei o Collégio Allan Kardec sob o manto do meu
amor. Maria, Serva do Senhor.

364
CUNHA, Langerton Neves e COSTA, Suely Braz. Op.cit., p.40.
365
CERCHI, Carlos Alberto. Memória Fotográfica de Sacramento. Op.cit., p. 220.
366
GODOY, Lauret. Op.cit., p.68.
367
NOVELINO, Corina. Op.cit. p.110.
198

Em 1º de abril de 1907, homenageando o codificador da doutrina espírita, era fundado

o “Collégio Allan Kardec”, cujo vasto terreno com uma casa, fora comprado pelo “Seu”

Mogico, pai de Eurípedes, junto ao promotor público João Gomes Vieira de Melo.

Diante da falta de elementos e fontes objetivas, é difícil mensurar o desenvolvimento

dos primeiros anos de funcionamento da nova escola espírita, afinal, a indisposição de

Barsanulfo com parte da sociedade sacramentana ocorrera justamente por sua adesão ao

espiritismo e não é verossímil supor que a corajosa mudança de nomenclatura tenha

contornado os problemas - numa época de inconteste influência católica.

O fato mensurável é que o educandário marcou um tempo - cujos dados e análises

apresentadas no próximo item o atestam – e chegou a agregar pelo menos duas centenas de

alunos matriculados anualmente, e que, provavelmente, tenha sido gradativa a recuperação da

credibilidade de seu diretor. Dedutivamente, acreditamos que a capacidade intelectual de

Eurípedes Barsanulfo; sua abnegação na assistência social seja na farmácia gratuita, ou nas

atividades de cura, assim como seu notório desprendimento aos bens materiais; a atuação como

vereador até 1911, ocupando relevantes comissões na Câmara e a aproximação com o grupo do

importante chefe político local, o Cel. José Affonso; explicam o êxito dessa singular

experiência didática e educacional.

O Collégio Allan Kardec funcionou ininterruptamente desde sua inauguração até 22

de outubro de 1918, época que a epidemia de “gripe espanhola” levou durante determinado

tempo o fechamento de todos os estabelecimentos de ensino do país. Nessa jornada, contou

com uma média de 100 a 200 alunos matriculados.368

Nos anos 1910, a educação passava por um processo de notável expansão no país, em

especial no Triângulo Mineiro. O jornalista e viajante Roberto Capri, autor da apontada revista

“Uberaba, a Princeza do Sertão”, 369 indicava a difusão da instrução pela região:

368
FERREIRA, Inácio. Op.cit., p.27.
369
Id.Ibdem., p.37.
199

Actualmente aqui funccionam oito Grupos Escolares, distribuidos


pelas cidades de: Uberaba, Uberabinha, Araguary, Prata, Fructal,
Araxá, Patrocinio e Villa Platina. Avultado é o número de Escolas
Singulares, mantidas pelo estado, pelas Camaras Municipaes e por
particulares. Só o municipio de Uberaba tem 40 escolas, das quaes
estão providas 27 (...) [grafia original].

Segundo o órgão, a taxa de analfabetismo no Triângulo seria de cerca de 78% da

população, e 40% das pessoas em idade escolar – crianças e jovens entre 7 a 14 anos de idade.

Em Uberaba, em 1908, a porcentagem do analfabetismo era de 67,38% para todo o município e

de 42,91% para a cidade, com uma freqüência escolar de 21% da população total.

Nos 14 municípios da região foram catalogados, pelo editor da revista, os seguintes

colégios:

(...) em Uberaba o Gymnasio Diocesano do Sagrado Coração de


Jesus, dirigido pelos Revmos. Irmãos Maristas, que expede diplomas
de bacharel em sciencias e letras; tem annexo um curso de
agrimensura. O Collegio de N.S. das Dores, para moças, equiparado
ás Escolas Normaes do Estado; o Collegio Bandeira e o Curso de
Humanidades. No Arraial de Bom Jardim (Prata), funcciona o
Collegio Santa Ernestina; em Sacramento, o Collegio Allan Kardec.
Em Uberabinha, um Gymnasio, e na ária rural – Fazenda do
Douradinho – o Internato “Sete de Setembro”; na cidade do Prata o
“Collegio Luzo-Brasileiro”. [Grifos e grafia do original]370 .

Capri informava, ainda, que na “Instrucção Publica”, funcionavam na cidade de

Sacramento “... duas escolas estadoaes e um Collegio”, e “(...) há escolas estadoaes e

particulares em todos os districtos”. 371

370
Id.Ibdem., p.37.
371
Id.Ibdem., p.103.
200
201

FIGURA 21 – Prédio onde funcionou o Colégio


Miranda. Fonte: CERCHI, Carlos Alberto. FIGURA 22 - Banda do maestro Simplício formada pelos
Memória Fotográfica de Sacramento. Op.cit., alunos do Colégio Miranda, entre os quais Eurípedes
p.215. Barsanulfo com quinze anos. Fotografia de Edmundo
Ferreira registrada em 1895. Fonte: coleção de Virgínia
Dolabela.

FIGURA 23 – Prédio onde funcionou o Lyceu


Sacramentano. Tela de autor desconhecido. Fonte:
Centro Espírita Esperança e Caridade.

FIGURA 24 - Professores do Lyceu Sacramentano - escola


esta do fim dos anos 20. Em seu quadro docente, haviam
destacadas personalidades de Sacramento, como um
vigário, um promotor, um médico, um dentista, um
contador, entre outros. Fonte: CERCHI, Carlos Alberto.
Memória Fotográfica de Sacramento. Op.cit., p.225.

FIGURA 25 – Escola rural mista regida pela


professora Olga de Carvalho, na Estação da
Jaguará, em 1928. Foto: acervo de Virgínia
Dolabela
202

2.3 – Uma instituição pestalozziana no interior das Gerais

Quando o velho e experiente pedagogo Hippolyte-Léon Denizard Rivail se aposentou

em 1850, descontente com os rumos da educação com a Revolução de 1848 - cuja Lei Falloux

privilegiara as congregações religiosas católicas – deixava um importante legado na carreira do

magistério, entre obras didáticas, planos educacionais e direção de escolas. Logo após o

encerramento da carreira como educador, o destino lhe apontaria novos e impensáveis rumos.

E a melhor síntese dessa nova jornada ocorreu com a adoção do pseudônimo de origem celta,

Allan Kardec.

Por conjunções múltiplas, foi nas terras do Brasil que a ciência do mundo dos mortos e

a filosofia espiritualista transformaram-se, efetivamente, em religião; e, parafraseando um

anúncio de jornal do professor Derwil de Miranda - na “Cidade do Sacramento, Estrada de

Ferro da Mogiana, Estado de Minas Gerais” -, a pedagogia de Hippolyte-Léon / Kardec seria

consubstanciada na realidade cotidiana de um município edificado em torno de uma capela que

virou matriz para abrigar a imagem de Nossa Senhora do Santíssimo Sacramento, fundada por

um importante cônego. São os imponderáveis da vida real...

2.3.1 – A estrutura curricular

A rigor, funcionavam três cursos no Collégio Allan Kardec: o elementar, médio e

superior. Os cursos elementar e médio eram ministrados pelos professores Waltercides Wilson,

Homilton Wilson – estes, irmãos de Barsanulfo – Wenceslau Rodrigues Cilau e Zenon Borges.

A professora Maria Gonçalves dos Santos era a responsável pelo primário e Ordalino de

Oliveira, o primário mais adiantado.372 Todos eram convertidos ao espiritismo.

A educadora Corina Novelino, aluna e discípula de Barsanulfo que dirigiu o

Educandário entre 1941 a 1964, em sua obra “Eurípedes, o homem e a missão”, 373 apresentou

372
RIZZINI, Jorge. Op.cit., p.59.
373
NOVELINO, Corina. Op.cit., p.128.
203

a estruturação do currículo do Colégio. O Curso Elementar era iniciado com a aprendizagem

da leitura e das quatro operações da Aritmética. Após essa assimilação – que podia ocorrer em

poucas semanas – o aluno passava ao estudo da Aritmética Prática e Teórica, da História do

Brasil, da Geografia do Brasil e da Morfologia da Língua Portuguesa.

Concluindo o conteúdo, em qualquer época do ano, o discente era alçado ao Ensino

Médio, tal como no sistema adotado pelo professor Miranda, onde cursava: Aritmética e

Geometria, História do Brasil e Universal, Geografia Geral, Noções de Vida Prática, Ciências

Naturais e Gramática Portuguesa (morfologia e sintaxe). O mesmo critério era aplicado no

acesso ao Curso Superior, com Eurípedes Barsanulfo atuando como professor – que lecionava,

ainda, para todo o educandário, Astronomia e Evangelização Espírita.

No programa do curso avançado, constava Português (Sintaxe e Literatura), Francês,

Geometria, Cosmografia e Química. Analisando comparativamente a estrutura curricular do

Collégio Allan Kardec com o Collégio Miranda, detectamos diferenças consideráveis que

reforçam a constituição de uma identidade cultural própria do educandário espírita. O ensino

básico era similar, mas é interessante notar o caráter da Aritmética “teórica e prática” no Allan

Kardec; enquanto que no Miranda eram quatro línguas estrangeiras no Médio, aqui foram

introduzidas as “Noções de Vida Prática”, e o Curso Superior também é uma singularidade –

no Miranda, no terceiro nível, constavam disciplinas facultativas.

Além da óbvia diferença entre a evangelização espírita e o catecismo na escola

enraizada no célebre Caraça, o ensino da Astronomia para todos os níveis foi uma novidade do

colégio. As apostilas eram organizadas e oferecidas pelo professor Eurípedes, como nas

matérias de Língua Portuguesa, Fundamentos da Doutrina Espírita e Astronomia.

A linha pedagógica adotada no Collégio Allan Kardec era inédita na cidade. Num

tempo caracterizado pelos rigores educacionais, não havia ali palmatória nem quaisquer

castigos físicos, comuns na época, e o sistema de classes era misto, não havendo distinção

entre os sexos.
204

Na “Sala de Euripedes” – memorial na sede do Grupo Espírita Esperança e Caridade,

situado no antigo prédio da escola – consta um exemplar de uma apostila de Língua

Portuguesa, utilizada por uma antiga aluna do educandário, a Sra. Hipótita Alves Neme:

Proposição imperativa é a que exerce as funções do imperativo, isto é


exorta, ordena, invoca, postula, convida.
Exortação é dar uma ordem, convencendo. Exemplo: dá-me um
pedaço de pão, porque estou com fome.
Ordenar é exprimir uma ordem. Exemplo: Oliviel, vá pegar a
patativa.
Invocar é chamar. Exemplo: Vem, criança, vem comigo (...)

2.3.2 – O Estudo dos astros e da botânica

O espiritismo compilado e disseminado por Allan Kardec contou com a adesão de

vários cientistas de diferentes áreas, ávidos, talvez, pela racionalização dos fenômenos do

sobrenatural, como os escritores Honoré de Balzac (1799-1850), Alexandre Dumas pai (1803-

1870), ou Victor Hugo (1802/1885); o médico homeopata Antoine Demeure (?-1865);374 o

antropólogo Ernesto Bozzano (1861/1943)375; e, entre outros, o astrônomo Camille

Flammarion, que tecemos comentários mais específicos.

Presidente da “Societé Astronomique de France” e diretor do Observatório de Juvisy,

Flammarion aderiu ao espiritismo e contribuiu sobremaneira para a popularização da doutrina.

A difusão desse pensamento ocorreu, inicialmente, por suas séries dos “Habitants de l´Autre

Monde”, lançadas em 1862 e 1863, e, posteriormente, pelo discurso pronunciado sobre o

túmulo de Kardec, em 1869.376 Em suas obras, ressaltava a existência do espírito, a

imortalidade da alma, a comunicação entre os planos e a efetividade da multiplicidade de vidas

em diferentes mundos e planetas.

Dos livros remanescentes pertencentes a Barsanulfo, a maioria versa sobre ciências

naturais. Uma volumosa obra editada em Lisboa é de autoria do astrônomo francês, “As Terras

374
Intelectuais citados por MALGRAS, J. Op.cit., passim.; NUNES, Beatriz Helena P. et.al. Em torno de Rivail
– O mundo que viveu Allan Kardec. Bragança Paulista: Lachâtre, 2004, passim.
375
BOZZANO, Ernesto. Povos Primitivos e Manifestações Supranormais. São Paulo: Editora Jornalística FE,
1997.
376
MALGRAS, J. Op.cit., p.149.
205

do Céo – viagens astronomicas aos outros mundos e descripção das condições actuais da vida

nos diversos planetas do systema solar”.377 Dentre outros compêndios, destacamos, dois
378
volumes de um “Formulário” de autoria de Chernoviz; “Prática Homeopática” ; e dois

volumes de dicionários de francês, datados de 1889;379 e um livro espírita, o “Céu e Inferno”,

de Allan Kardec.

Da coleção que pertenceu ao ‘Sinhô’ Mariano, tio que convertera Eurípedes à doutrina
380
francesa, a tendência é corroborada: “Compêndio de Chimica”, de LTroot ; “Os Astros –

Estudos da Creação”, de Ewerton Quadros;381 “O Protestantismo e o Espiritismo”, de

Benedicto Affonso de Fonseca, 382 entre dezenas de outros volumes similares.

Em 1911, a 1º de agosto, era adquirido junto a Casa Fretin em São Paulo (cujo

cabeçalho da nota fiscal anunciava a “importação directa – óptica, cirurgia, cutelaria,

orthopedia, etc – casas de compras em Paris e New York”) um “Binóculo Flammarion de

campo” por 55$000. Na mesma lista eram descritas as aquisições de “Bisturi recto e curvo”,

“Pinças Jean”, “Pinça dessecção” e “Pinça microscópica”, “Agulhas de sutura sortidas”, além

de outros materiais afins.383

O ex-aluno José Vieira, em depoimento ao jornalista Jorge Rizzini384, contou que

durante a aparição do cometa Halley de 1910, todas as noites, Barsanulfo ministrava aulas de

astronomia, rodeado pelos alunos dos cursos médio e superior.

377
FLAMMARION, Camillo. As Terras do Céo – viagens astronomicas aos outros mundos e descripção das
condições actuais da vida nos diversos planetas do systema solar. Lisboa: Companhia Nacional Editora, s.d.
Coleção do Sr. Saulo Wilson.
378
Esses três exemplares fazem parte do acervo do Memorial Eurípedes Barsanulfo, vinculado ao centro Espírita
Fé e Caridade.
379
Coleção do Museu municipal Corália Venites Maluf. No registro da instituição consta que foram doados pelo
Sr. Homilton Wilson, em 1953, ao ex-prefeito Dr. Clemente Vieira de Araújo.
380
Editado pela Garnier, Rio de Janeiro e impressão em Paris, s.d.
381
Editado pela Typ.Moreira Maximiano, no Rio de Janeiro em 1893.
382
Editado pela Monteiro Lobato & Co., em São Paulo, 1923.
383
Acervo do Memorial Eurípedes Barsanulfo, Grupo Espírita Esperança e Caridade.
384
In: RIZZINI, Jorge. Op.cit., pp.61-2.
206

Numa dessas situações, um grupo de pessoas aflitas passava, e uma mulher humilde

teria dito que o mundo iria acabar e que tudo aquilo era castigo de Deus. Saindo do controle do

mestre, os alunos entre risos e deboche, emitiram uma sonora vaia.385

As aulas de Astronomia do professor Barsanulfo deixaram marcas indeléveis. Uma

pequena amostra pode ser constatada ao analisar o diário de classe da professora Corina

Novelino,386 em março de 1937. Na lista de presença consta um aluno do 3º ano chamado

Camilo Flamarion, e uma aluna do 2º ano chamada Urânia Rios – certamente, uma alusão a um

livro de cunho espiritualista do astrônomo francês que sugeriu a realização de supostas viagens

interplanetárias e a exploração desse astro, Urânia, extra-sistema solar.387

Esses temas das ciências naturais e empíricas mereciam especial dedicação do mestre

autodidata. No caderno da aluna Efigênia Pinto Valada, 388 constam notas sobre essas aulas:

A luz – A irradiação dos corpos foi descoberta por Willian Crookes,


cientista inglês, que se notabilizou por suas pesquisas dos fenômenos
espíritas. Poucos assuntos há na ciência tão pouco conhecidos como
a luz: Qual é a sua natureza? Como os corpos luminosos se irradiam?
De que veículo se servem para chegar aos nossos olhos (...) Isaac
Newton admitiu que os objetos emitiam partículas luminosas que
transpunham os espaços para nos ferirem as retinas (...).

Noutro trecho, prosseguem as explicações do professor Barsanulfo com os devidos

detalhamentos:

Bólides – Bólide é um corpo luminoso que, atravessando


rapidamente o espaço e, tendo dimensões visíveis, possuiu a forma
de um globo ígneo. (...)Vários metais entram na composição dos
bólides, tais como: ferro, magnésio, silício, níquel, cobalto, potássio,
sódio, cálcio, fósforo, azoto, coloro, carbono bem como hidrogênio e
oxigênio (....). As leis de Kepler são três (...). O sol faz parte da
constelação de Pomba. Segundo o Senhor Camille Flammarion, o sol
tem o diâmetro 109 vezes maior que o da terra.

Recentemente, o “Centro Espírita Recinto da Prece”, dirigido pela Sra. Heigorina

Cunha, sobrinha de Barsanulfo, vem trabalhando conjuntamente com a Fundação Educandário

385
CUNHA, Langerton Neves e COSTA, Suely Braz. Op.cit., p.61.
386
Acervo do Grupo Espírita Esperança e Caridade.
387
FLAMMARION, Camille. Urânia. 8.ed. Rio de Janeiro: FEB, 1998.
388
Acervo do Grupo Espírita Esperança e Caridade; NOVELINA, Corina. Op.cit., pp.133-4; CUNHA, Langerton
Neves e COSTA, Suely Braz. Op.cit., pp.68-71.
207

de Franca para a implantação de uma faculdade de astronomia denominada “Camille

Flammarion”, na Fazenda Santa Maria, a instalação de um observatório batizado como

“Thomaz Novelino”.389

Outra estratégia didática do professor Barsanulfo consistia na execução de aulas

práticas, como a dissecação de animais, ou as lições de botânica realizadas no pomar da escola.

E, não raro, extraía lições morais de uma aula de ciências. Um de seus alunos relatou um

desses momentos: 390

Certa vez, o mestre Eurípedes, juntamente com os alunos, observava


bela rosa, durante uma aula, no jardim de sua casa. Admirando a flor
que se alteava no caule, assinalou-lhe o acetinado das pétalas, a
uniformidade perfeita das folhas e o perfume que dela se avolava. –
Vejam, assinala Eurípedes: a rosa é bela e aromática, todavia vive
entre espinhos. Do mesmo modo – concluiu e mestre em tom de
advertência: São algumas rosas humanas que se cobrem de cetins e
rendas e expandem graça e beleza, mas aí de quem colhê-las”! Sai
sempre ferido...

Em 18 de julho de 1911, Nilo Fortes, dirigente da Federação Espírita Brasileira, no

Rio de Janeiro, enviava uma carta resposta a Eurípedes sobre várias encomendas a ele

despachadas – remessa por um ano de vinte exemplares do jornal “Reformador’, caixa de


391
livros, não especificados, e um esqueleto feminino. Na carta, em tom de amizade, Fortes

explica a confusão na aquisição da ossada:

Prezado confrade (...) Quanto ao esqueleto penso ter havido um mal


entendido em tudo isso, pois o que meu amigo pediu foi – Um corpo
de mulher com o sistema nervoso e antério-venoso e as informações
do Sr. Fonseca foi sobre um esqueleto o que não é a mesma coisa. Na
casa do Sr. Malmo, vi o catálogo e verifiquei que o objeto pedido era
um corpo humano feito de massa e não um composto de ossos. Como
sabe, nada entendo do assunto, o que fiz foi transmitir as informações
que obtive da pessoa que julgo competente [grifos do original
sublinhado].

389
CUNHA, Heigorina. Depoimento prestado ao autor (não gravado). Op.cit. Atualmente, ocorrem aulas
experimentais de astronomia e a data da instalação não foi definida. A entidade parceira em questão – assim como
a nomenclatura do observatório – é inspirada no médico Dr. Thomaz Novelino falecido em 2000 e que foi
seguramente o discípulo mais fiel de Barsanulfo, dedicando sua vida à difusão da educação pestalozziana do
Brasil (no item 2.3.6, “O mestre na visão dos alunos”, teceremos mais comentários acerca deste ativista do
ensino). Quem foi Dr. Tomás Novelino. Estado do Triângulo. Sacramento: 12/11/2000; INCONTRI, Dora.
Op.cit., p.175-77.
390
CUNHA, Langerton Neves e COSTA, Suely Braz. Op.cit., p.59. Os autores não especificam o aluno em
questão que oferecera o depoimento.
391
Acervo do Grupo Espírita Esperança e Caridade.
208

2.3.3 – O Cotidiano escolar

Sobre a quantidade de alunos que efetivamente estudavam no Allan Kardec, as

referências bibliográficas existentes sobre o professor Barsanulfo citam, genericamente, mais

de 200 alunos. Nos acervos institucionais de Sacramento não existem listas de presença ou

diários da época. As fontes mais objetivas e circunstanciadas no tempo, indicam 113 alunos

matriculados em 1913 – no relatório do Inspetor Regional de Ensino, Ernesto de Mello

Brandão; o Jornal “O Borá” mencionou em 17/11/1918 que o educandário “... cuja matricula

elevava-se a 209 alumnos”; 392 e, em 1924, já sob a direção do professor Waltercides Wilson, a

Câmara Municipal registrava em ata, no dia 12 de março, que a escola possuía 163 alunos

matriculados.393

O relatório de inspeção educacional, em questão, registrava a presença dos alunos e

enaltecia o papel de Barsanulfo:

Visitei, hoje, o Collégio Allan Kardec, dirigido pelo competente e


dedicado professor, Eurípedes Barsanulfo, encontrando presentes às
lições do dia noventa e quatro (94) alunos dos cento e treze (113)
atualmente matriculados.

Sobre o cotidiano e a metodologia observada, prosseguiu o funcionário público:

Acompanhei os trabalhos escolares e pude verificar que o método de


ensino adotado é racional e que os alunos vão assimilando bem todas
as matérias lecionadas neste collégio que se impõe ao conceito desta
cidade, não só pela boa disciplina, mas também, pela dedicação
desinteressada do seu diretor e seus dignos auxiliares, aos quais
deixo consignados nestas linhas os meus aplausos pelos bons
resultados que vão colhendo, e meus agradecimentos pelo modo
gentil com que me receberam no seu estabelecimento de ensino.
Sacramento, 29 de abril de 1913.
O Inspetor Regional: Ernesto de Melo Brandão.394

392
Eurípedes Barsanulpho. O Borá. N.9. Sacramento: 17/11/1918.
393
Atas da Câmara Municipal. Originais avulsos entre 1920 e 1924. A menção em questão ocorrera pelo
pedido encaminhado à municipalidade para a isenção do imposto do esgoto, a restituição do imposto pago para a
compra de materiais e a isenção de qualquer imposto para a escola. No dia seguinte, em 13 de março, era lavrado
que “... foi atendido o requerimento e ainda foi pedido por Alcides Villela [vereador] para destinar uma verba a
instituir pelo grande benefício prestado à cidade”. Deduzimos que a diminuição do número de alunos nessa
mudança de fase do colégio pode ter ocorrido pela ausência de Barsanulfo ou pela criação do Grupo Escolar da
cidade, o “Dr. Afonso Pena Júnior”, inaugurado em 1921, com oito salas. Sobre essa instituição estadual,
RODRIGUES, Maura Afonso. Op.cit., p.71.
394
Original da coleção do Memorial Eurípedes Barsanulfo. Na impossibilidade de cópia ou registro fotográfico,
segue aqui uma transcrição com ortografia atualizada contida em FERREIRA, Inácio. Op.cit., p.29.
209

A escola era gratuita e os professores que ali trabalhavam eram voluntários. Não

existem documentos que demonstrem o orçamento da instituição, exceto listas de captação de

recursos para a ampliação do prédio.395 Decerto, sendo a farmácia também filantrópica,

podemos supor que os recursos poderiam ser originários de doações de amigos, do pai que

mantinha um próspero comércio e arcava com o imposto predial da escola, conforme livro da

Câmara Municipal396, e, ainda, da atividade de Guarda-Livros de Eurípedes na Casa Mogico.

Sobre o caráter filantrópico do Allan Kardec, o jornal de Pedregulho, em São Paulo,

“O Pharol”, ressaltava por ocasião da morte do professor, em 1918: “Eurípedes deixou em seu

Collégio... mais de 140 alumnos matriculados, aos quaes, com os seus bondosos amigos,

ministrava o pão espiritual gratuitamente”. 397

Um boletim espírita, que circulou em 1914, 398 contextualizava a inserção da escola:

E de tal maneira estimam o seu Colégio que um outro, mantido por


freiras da Ordem de São Francisco, foi obrigado a fechar por falta de
alunos e é de tal modo procurado, que a matrícula é aberta e
encerrada no mesmo dia, sem que em vez alguma deixasse de haver
o excesso de dezenas de alunos sobre o máximo pré-fixado pelos
espíritos guias. E êle não dá preferência aos filhos de
correligionários; os alunos são aceitos na ordem de chegada dos
pedidos, ficando quase sempre prejudicados os filhos dos amigos e
confrades (...).

A preocupação com o bem e a caridade – categorias essenciais da doutrina espírita –

era constante no processo educacional. Um exemplo notório foi a fundação por Barsanulfo da

“Associação dos Amiguinhos dos Pobres”, desde a época do Lyceu que, aos sábados, faziam

leilão do que haviam adquirido – como roupas, livros, alimentos e objetos diversos – e, com o

dinheiro arrecadado, compravam gêneros alimentícios que eram distribuídos às pessoas

necessitadas.399

395
Lista n.27 a cargo do Sr. Antônio Delação. Subscripção que fazem os amigos do “Collégio Allan Kardec” para
o augmento de seus salões e sede do grupo Espírita Esperança e Caridade de Sacramento.
396
Indústria e Profissões – Impostos Municipaes. Livro 20 e 21, 1917 e 1918, respectivamente. Acervo do
Arquivo Público Municipal.
397
Eurípedes Barsanulpho. O Pharol. Pedregulho, SP: 20/11/1918.
398
FERREIRA, Inácio. Op.cit., p.28. Infelizmente, o autor, médico e ativista espírita uberabense, não assinalou
maiores detalhes sobre a autoria do documento.
399
RIZZINI, Jorge. Op.cit., p.61.
210

Alguns alunos dos cursos médio e superior, em revezamento, eram incumbidos, ainda,

a acompanhar os enfermos mais pobres em suas choupanas, ministrar-lhes a aplicação dos

remédios nas horas recomendadas, entre outros procedimentos.400

Ocorria, em diversas ocasiões, a necessidade de socorro a alunos com ferimentos

ocorridos na escola. Certa vez, uma menino de 11 anos, Manoel Borges quebrara a perna. No

próprio recinto, Eurípedes cuidou do pequeno acidentado com talas improvisadas e ordenou

que dois alunos maiores o carregassem com os braços. Em seguida, pôs todo o colégio em

forma e o conduziram à sua residência.401 Quando convidado, comparecia em cerimônias

fúnebres, acompanhado por professores e seus alunos.

Os pacientes ditos “obsidiados” eram fechados na cozinha, improvisada como cela, e

cabia a um ou mais alunos, a vigília na porta. Havia enfermos que, após a melhora, conviviam

com os alunos no recreio, ou mesmo nos horários de aula na sala. 402

400
Id.Ibdem. pp.70-2.
401
NOVELINO, Corina. Op.cit., p.132.
402
CUNHA, Langerton Neves e COSTA, Suely Braz. Op.cit., p.49.
211

FIGURA 27 – Professora Corina


Novelino, discípula e biógrafa de
Eurípedes Barsanulfo. Fonte: acervo
do Centro Espírita Esperança e
Caridade.

FIGURA 26 – Grupo de alunos e professores do Collégio Allan Kardec,


em foto de 1913 de Edmundo Ferreira. Todas as imagens divulgadas pelo
movimento espírita são derivadas deste registro. Fonte: acervo do Centro
Espírita Esperança e Caridade.

FIGURA 29 – Escritora célebre de


Sacramento, Carolina Maria de
Jesus. Foi aluna do Collégio Allan
Kardec nos anos 20. Fonte:
reprodução da Bloch editores,
coleção do professor Carlos Alberto
Cerchi.
FIGURA 28 – Alunos em aula de Educação Física no pátio do Collégio
Allan Kardec, nos anos 30. Fonte: acervo do Centro Espírita Esperança e
Caridade.
212

2.3.4 – Em conexão com o espiritismo

As aulas de Evangelho, direcionadas ao estudo da doutrina espírita, ocorriam às

quartas-feiras, e eram orientadas para a leitura d´“O Evangelho Segundo o Espiritismo” e “O

Livro dos Espíritos”, obras de Allan Kardec. Com o início do primeiro turno, às 10 horas, os

encontros eram freqüentados pelos alunos – em caráter facultativo - e visitantes externos.

Após a exposição, proferida por Barsanulfo, havia um recreio e, no retorno, um debate

chamado pelo professor como “combate”. Um rapaz e uma moça eram escolhidos para

discutirem o tema da aula e cada qual tinha cinco minutos para as explicações. Quando

voltavam para a carteira, procedia-se à leitura do Evangelho. Recordando sobre uma

intervenção de Euripedes, Thomaz Novelino ressaltou:403 “... lembro-me de ele ter feito bonitas

palestras sobre a Divindade de Jesus, o Pecado Original, a alma dos animais, mitologia...”.

O último aluno remanescente de Eurípedes, o Sr. Bráulio Alves de Oliveira, faleceu

em Uberlândia, em 2003, com 111 anos. Em entrevista concedida ao boletim do GEAE404

(segundo a autora, Izabel Vitusso, “... apesar da avançada idade, continuava narrando as

histórias centenárias... como poucos”), salientou que o mestre distinguia a religião do ensino:

“... No colégio ele era professor. Não misturava as coisas”.

No entanto, convertido ao espiritismo, o aluno que cursava o curso denominado

Superior entre 1910 a 1915, dormia, eventualmente, na escola em contato com pacientes cujos

distúrbios a doutrina kardecista atribui a influência dos espíritos desencarnados:

Eurípedes me colocava para trabalhar tomando conta dos obsidiados


que dormiam no colégio, que chegavam de todo lugar, para se tratar
com ele. Ficávamos nós quatro: eu, Francisco Magalhães, Jerônimo
Cândido Gomide e o irmão de Eurípedes, Homilton. Muitos
chegavam amarrados, em camisa-de-força. Às vezes, Eurípedes
chegava de manhã e falava: ‘essa noite eu vim até aqui (em espírito)
e vi um tanto de espírito brincando por cima de vocês, mas vocês
podem continuar sossegados’. Era uma garantia, não tínhamos medo
mesmo. Sempre havia de seis a oito que dormiam no Colégio.
Fizemos isso por uns três anos. 405

403
NOVELINO, Thomaz. Depoimento. In: GODOY, Lauret. Op.cit., p.99.
404
OLIVEIRA, Bráulio Alves. Depoimento. VITUSSO, Izabel. Entrevista com o último discípulo de Eurípedes
Barsanulfo. Boletim do GEAE. N.462, Uberlândia: 2/9/2003, p.4.
405
Id.Ibdem, p.4.
213

Obviamente, esses pretensos contatos com o além repercutiriam e provocariam

reações. Um boletim do “Círculo Católico de Uberaba” 406 indagava se as leis mineiras seriam

diferentes das federais – em alusão a uma determinação do Supremo Tribunal que condenou o

espiritismo como contrário às leis e a proibição dos cultos e celebrações – num questionamento

às atividades do educandário: “Como se compreende que o Governo do Estado, no mais

incrível dos descuidos, consinta que o Sr. Eurípedes Barsanulfo mantenha na vizinha cidade de

Sacramento uma clínica espírita e um colégio espírita – a famosa Escola Allan Kardec?”.

O órgão atribuía ao presidente do Estado a responsabilidade, “... perante Deus”, pela

situação daquele município “... onde um doido que já quis espancar o pai dirige uma clínica e

uma farmácia que não paga direito ao Estado e dirige um colégio, freqüentado por mais de 80

alunos de ambos os sexos!”.

2.3.5 – A educação do físico e da arte

As aulas de educação física mereciam a atenção do professor Euripedes. Em sua

estante, colecionava vários compêndios da matéria e os exercícios eram extraídos do autor de

sua preferência, Sahim Brahmm. As aulas eram diárias, ocorrendo antes do recreio, e tanto os

homens quanto as mulheres alinhavam-se em ordem crescente no pátio circundado por

frondosas árvores seguindo as orientações do mestre. A primeira série de exercícios começava

com atividades respiratórias, seguidas por atividades de flexibilidade dos membros e

movimento do tórax.407

Freqüentador assíduo das encenações teatrais e saraus da cidade desde os tempos de

“Sinhana” Borges, Eurípedes era notório apreciador das lides artísticas. No Collégio Allan

Kardec haviam promoções periódicas de festivais artísticos que certamente marcaram a cidade

406
Lavoura e Comércio. Uberaba: 7/10/1917, p.4.
407
CUNHA, Langerton Neves e COSTA, Sueli Braz. Op.cit., p.75.
214

e o imaginário local – por algum tempo, era comum a afirmação de pessoas que assistiram às

encenações de que “...teatro só no tempo de S’Eurípedes, no Collégio Allan Kardec”.408

2.3.6 – O mestre na visão dos alunos

A imagem e a influência do professor Eurípedes Barsanulfo suscitavam respeito,

encanto e até um certo devotamento, deixando marcas permanentes naqueles que tiveram sua

formação moral e intelectual com ele.

Das centenas de alunos que passaram pelo Collégio Allan Kardec, seguramente o

seguidor mais fiel foi o médico que se destacou em Franca, o Dr. Thomaz Novelino. De origem

humilde, nascido em 1901, num lugarejo à beira da Serra da Canastra, Espírito Santo da

Forquilha, hoje Delfinópolis, nem sequer conheceu o pai, e chegou em Sacramento com

catorze anos, em 1916.409 Conduzidos por uma irmã de quem eram hóspedes, ele e o irmão

foram apresentados a Eurípedes, cujo primeiro contato impressionou-o sobremaneira, por sua

vivacidade.

O professor colocou uma regra de três no quadro e perguntou-o o que era: “É uma

regra de três...”, respondeu, mas, no entanto, não conseguiu resolvê-la. Então, segundo o relato

de Thomaz, “... Ele disse que não tinha importância. O simples fato de ter identificado que era

uma regra de três, mostrava que eu sabia alguma coisa. Colocou-nos, então, a mim e meu

irmão Nestor no curso dele, que era o Superior”. 410

A influência de Barsanulfo foi nítida na trajetória do Dr. Novelino. Criou, mais tarde, a

“Fundação Educandário Pestalozzi”, em Franca, cidade do interior paulista, um complexo

educacional e assistencial. Em 1966, foi agraciado, na Suíça, com uma notável condecoração, o

408
NOVELINO, Corina. Op.cit., p.138.
409
O Estado do Triângulo. Sacramento: 12/11/2000, p.3.
410
NOVELINO, Thomaz. Depoimento. In: GODOY, Lauret. Op.cit., p.94.
215

411
Prêmio Pestalozzi, homenagem criada na celebração dos 250 anos de nascimento do

educador mestre de Allan Kardec.

Sobre uma possível influência do mestre suíço do educandário de Sacramento, nunca

escutou, de acordo com sua memória, qualquer menção nesse sentido: 412

Vivendo num meio acanhadíssimo... teve como professor primário o


Tadinho, que era de Conquista e como mestre-escola o senhor João
Derwil de Miranda e também o professor Inácio Gomes Melo. Tudo
o mais Eurípedes fez por conta própria. Realmente um autodidata,
um espírito inteligentíssimo. Mas naquele meio acanhado, talvez
nunca tivesse tido notícia dos métodos educacionais de Pestalozzi.

Thomaz Novelino estudou com Eurípedes no Collégio por três anos – 1916 a 1918 – e

saiu por ocasião da morte do professor. Buscando a continuidade dos estudos, mudou-se para

Muzambinho, a fim de freqüentar o “Atenas Mineiro”, equiparado às bancas do Pedro II, do

Rio de Janeiro, e onde, anualmente, iam professores da capital para testar os alunos.

Com a formação em Sacramento e Muzambinho, Novelino esteve apto a matricular-se

na “Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro”. Entretanto, a lembrança do professor e amigo,

permaneceria: “... Professor de Português como o seu Eurípedes, nunca vi igual em minha vida.

Regras de Português não existiam em parte alguma, mas ele nos ensinava e isso foi muito

importante em nossa formação”. E, comparando Barsanulfo com os mestres que tivera ao

longo da vida, não hesitava:

Tivemos três anos de Muzambinho e sete da Faculdade de Medicina


da Universidade do Rio de Janeiro, que era a que ditava as cartas... [e
lá] estavam os maiores sábios do país. Mas afirmo com toda a
segurança, toda a confiança e toda a fé, que três anos de
Muzambinho e sete no Rio de Janeiro não valeram os três de
Sacramento com Eurípedes Barsanulfo. Porque lá, além do ensino
precioso, ele era o verdadeiro professor, que estava sempre em
contato com os alunos. Era como uma criança no meio das crianças.
Dele recebemos tudo, principalmente palavras de vida eterna... Foi
Eurípedes que definiu a nossa vida.

411
O Estado do Triângulo. Op.cit., p. 3.
412
NOVELINO, Thomaz. Depoimento. In: GODOY, Lauret. Op. cit., pp. 94-5.
216

Novelino residiu em Franca por sessenta e seis anos e à frente de seu célebre

educandário pestalozziano repetia diariamente o ritual do velho mestre de Sacramento, ao

recepcionar e cumprimentar todos os alunos na entrada da manhã. 413

Ativista espírita da equipe de Chico Xavier, em Uberaba, a Sra. Elith convivera com

Eurípedes em sua adolescência, estudou no Collégio Allan Kardec e, mesmo admitindo ter sido

um tanto negligente nos estudos, ganhou a confiança de Eurípedes que lhe atribuiu as cadeiras

de Álgebra e História Natural para os alunos da primeira classe. Interrogada sobre os métodos

de ensino adotados no educandário, esclareceu: 414

Eurípedes sempre perseverante no trabalho, aplicava uma didática


intuitiva própria, até certo ponto, bastante moderna para a sua época.
Ele nunca usou o castigo como forma de repreensão, pois lhe bastava
o olhar para acomodar tudo. Jamais exigia de uma aluno aquilo que
este não conseguiria dar.

Nascido em 1892, em Sacramento, o Sr. Bráulio Alves de Oliveira destacou que

Euripedes impressionava os alunos até pelos hábitos, como a frugalidade de suas refeições:

“Ele tinha um hábito muito engraçado. Alimentava-se muito pouco. Ia para a escola cedo,

levava dois ovos que tomavam crus. Era a refeição”.415 Sobre a convivência com o mestre,

apesar da idade avançada em sua última entrevista, ainda trazia impressões vivas na mente:

Tenho muita coisa boa para lembrar. Fui seu aluno de 1910 a 1915.
Nesse período freqüentei o Colégio Allan Kardec no curso chamado
superior e dentre as aulas que Eurípedes dava estava Português,
Francês, Astronomia e Geometria. Todas elas eram boas, porque ele
não se ligava apenas no que estava no livro. Ampliava o
ensinamento, dava a lição e depois explicava o porquê das coisas.
Professor como ele é muito difícil de se ver.

Os exemplos e a dedicação às searas da caridade e do assistencialismo eram

marcantes. Em carta ao “Jornal do Triângulo”, na ocasião do processo movido contra


416
Eurípedes, a aluna residente em Monte Santo, Mariana de Campos Libanio, atestava:

413
MOGI, Gabriel. Depoimento prestado ao autor (não gravado). Uberlândia: 27/1/2006.
414
NOVELINO, Corina. Op. Cit., p.206.
415
OLIVEIRA, Bráulio Alves. Depoimento. VITUSSO, Izabel. Op.cit.,p.4.
416
FERREIRA, Inácio. Op.cit., p.80.
217

“... ele, que luta, diuturnamente, abrindo o cofre precioso do seu coração e da sua alma aos

desvalidos e aos sofredores, ensinando crianças, estendendo a mão caritativa aos necessitados;

ele, que se exaure constantemente, com a fortaleza de um herói no exercício dignificante da

virtude...”

2.3.7 – Os exames finais

Os exames finais do Colégio consistiam em provas orais cujas perguntas partiam da

banca examinadora e do próprio Barsanulfo. Thomaz Novelino atestou: “Dava Eurípedes um

grande valor aos exames finais do Colégio. O Colégio se engalanava, os alunos exibiam trajes

novos e os exames se faziam com assistência de pessoas do local e de fora, que afluíam de

muitas cidades vizinhas e outras”. 417

Vestido com sua sobre-casaca de gola de seda, camisa e punhos engomados e gravata

branca, a nota de Eurípedes era a que predominava. Nessas ocasiões, o colégio expedia

convites às autoridades locais, aos pais de alunos e até para os órgãos de Estado, como a

Secretaria de Educação. Eventualmente, surgia alguém na assistência para arguir ou questionar

os alunos. 418

Ainda de acordo com as informações do Dr. Thomaz, os exames iniciavam-se no

Curso Primário e abrangiam toda a matéria estudada no ano. Nos primeiros dias, os trabalhos

começavam às 10 horas, e prolongavam-se até às 16 horas, e, posteriormente, ampliavam-se,

gradativamente, até o avançar da noite. E as provas tinham a duração de um mês, sendo

iniciadas em novembro. As notas levavam em consideração além dos exames finais, o

desempenho do aluno durante o ano. 419

O sistema de avaliação do aproveitamento do aluno era por conceitos. Num boletim

mensal do aluno Manoel Borges, datado de 30 de abril de 1919, era registrada a disciplina

como “Bôa”, e o índice nas matérias “Geographia e Portug. - bom”; “História e Aritm. – bom”;

417
CUNHA, Langerton Neves. Op.cit., pp.84-5.
418
NOVELINO, Corina. Op.cit., pp.142-3.
419
CUNHA, Langerton Neves. Op.cit., pp.84-5.
218

“Noções de V. Pratica – Regular” e “Calligraphia – Regular”. O documento foi assinado pelo

então diretor da escola, W. Rodrigues Cilau.

2.4 – Decifrando códigos do passado: as vozes da arquitetura

O estudo da história da educação consiste na articulação de abordagens

multidisciplinares, levando em perspectiva o fato do objeto central, por excelência, a educação,

tem variadas interfaces no contexto social e no plano histórico. Entre as diversas fontes

disponíveis aos estudiosos dessa linha de investigação, a análise do espaço físico e as leituras

arquitetônicas, tendem a elucidar e revelar muito de memórias sepultadas.

Selecionando dois autores com o intento de demonstrar os potenciais desse referencial

teórico, citamos Ester Buffa, professora da Universidade de São Carlos, e o português Justino

Magalhães, professor da Universidade de Lisboa. De acordo com Buffa, a utilização do espaço

físico, a caracterização dos elementos da arquitetura, sua implantação no terreno, bem como o

acabamento, associados a outras categorias de análise, possibilitam o resgate do retrato da

escola com seus atores, sua cultura e o significado para sua sociedade. 420

Por sua vez, Magalhães, ressaltando os novos contributos interdisciplinares das

experiências de trabalhos de investigação em curso, chama a atenção para a leitura dos “...

Espaços, contextos e estrutura arquitectónica dos edifícios – muitas instituições educativas

foram instaladas em edifícios adaptados, outras construídas de raiz -, situação e

enquadramento, acessibilidade, adaptação, implantação, definição e ocupação, saturação dos

espaços”. 421

420
BUFFA, Ester. História e filosofia das instituições escolares. In: ARAÚJO, José Carlos & GATTI JÚNIOR,
Décio. Novos Temas em História da Educação Brasileira. Campinas: Autores Associados; Uberlândia:
EDUFU, 2002, pp-25-38.
421
MAGALHÃES, Justino. Breve apontamento para a história das instituições educativas. In: SANFELICE, José
Luís; SAVIANI, Demerval & LOMBARDI, José Claudinei (orgs.). História da Educação: perspectivas para
um intercâmbio internacional Campinas: Editores Associados, 1999, pp.70-1.
219

O estudo e a interpretação do Collégio Allan Kardec, conjugados a essas linhas

analíticas, permitem compreensões mais amplas de sua trajetória assim como o esclarecimento

de aspectos ainda imprecisos nos estudos sobre o legado educacional de Euripedes Barsanulfo.

Inicialmente, após o rompimento de Barsanulfo com o Lyceu Sacramentano e a

adoção do nome do codificador da doutrina espírita, o colégio funcionou em sua própria

residência, adaptada com derrubada de algumas paredes para a formação de um salão mais

amplo. Essa casa, a propósito, era utilizada, anteriormente, como sede do “Clube Culto ao

Progresso”, entidade com poucas referências, e fora cedida por seu pai, o “seu” Mogico.422

A construção, cujo espaço físico era presumivelmente pequeno, foi demolida nos anos

seguintes para a expansão da escola. O fato de o educandário ter adotado o sistema de classes

mistas, algo inédito na cidade, incomodava setores conservadores. Um dos pais, o Sr. Cosme

Martins de Oliveira, talvez intrigado pelos comentários que surgiam, decidiu que suas filhas

continuariam estudando ali, mas com salas mais amplas. Para tanto, ele mesmo providenciou a

demolição dos três cômodos restantes e ampliou o salão de aulas, inaugurado a 17 de agosto de

1910.423

O espírita espanhol Frederico Peiró, também contribuiu para esse empreendimento,

além de Angelino Pereira de Almeida.424 Na solenidade de abertura, Euripedes presenteou o Sr.

Cosme com um ramalhete de flores naturais que a família conservaria à posteridade; hoje,

emoldurado num quadro, a relíquia foi doada e encontra-se no acervo do Grupo Espírita

Esperança e Caridade.425

De acordo com um relato do Dr. Thomaz Novelino426 - cuja estada em Sacramento, já

citada, foi entre 1916 a 1918 – a parte física do colégio era precária: um salão, dividido em três

ambientes; de um lado a D. Negrinha (Maria Gonçalves) com as crianças menores no curso

422
NOVELINO, Corina. Op.cit., pp.111-20.
423
CUNHA, Langerton Neves e COSTA, Sueli Braz. Op.cit., pp.56-7.
424
Id.Ibdem., pp.56-7.
425
Acervo do Grupo Espírita Esperança e Caridade.
426
INCONTRI, Dora. Pedagogia Espírita – um projeto brasileiro e suas raízes. Op.cit., pp.176-7.
220

primário; do outro Waltercides Wilson (irmão de Eurípedes) com o curso médio; e, de outro, o

curso superior, com o próprio Eurípedes.

Pelos idos de 1917 o movimento em Sacramento, com pessoas provenientes de vários

pontos do país, em busca de tratamento com o médium espírita, era intenso, lotando os hotéis e

pensões. Segundo a biógrafa de Barsanulfo, Corina Novelino427, diante do volume de

matrículas, naquele mesmo ano os amigos de Eurípedes se reuniram – Manoel Corrêa, José

Pereira de Almeida, Lindolfo Fernandes, Angelino Pereira de Almeida – com o objetivo de

construir um prédio para o colégio e para o grupo espírita Esperança e Caridade e decidiram

pelo levantamento da “Casa de Euripedes”.

Num primeiro passo, encomendaram o projeto com um profissional especializado de

São Paulo e, em seguida, empreenderam campanha para a captação dos recursos financeiros

para a investida. As listas de doação foram disseminadas por várias casas espíritas da região e

do país.428 No mesmo ano, sem a interrupção das aulas, a demolição da antiga sede foi sendo

efetivada, na medida em que as edificações das novas paredes, e as pavimentações da nova

estrutura, iam se erguendo. Mas, entretanto, existem interrogações quanto a efetivação desse

novo e imponente, para os padrões da época, edifício.

Analiticamente, diante de lacunas e da pertinência da caracterização da relevância

daquela instituição em seu ambiente sócio-cultural, a leitura pelos indícios arquitetônicos,

seguindo as trilhas levantadas por Ester Buffa e Justino Magalhães, são pertinentes.

427
NOVELINO, Corina. Op.cit., pp.221-2
428
No acervo histórico do Grupo Espírita Esperança e Caridade encontram-se várias destes documentos. Numa
delas, está contido: “Lista n.27 a cargo do sr. Antônio Delação. Subscripção que fazem os amigos do ‘Collégio
Allan Kardec’ para o augmento de seus salões e sede do grupo Espírita Esperança e Caridade de Sacramento.”
Nessa fonte está registrada a coleta de 120:000 (centro e vinte mil réis).
221

FIGURA 30 – Carteira do Collégio Allan Kardec,


patrimônio do Centro Espírita Esperança e
Caridade. Fonte: fotografia do acervo do autor.

FIGURA 31 - Salão superior do Centro Espírita Esperança


e Caridade, antigas salas do Collégio Allan Kardec. Fonte:
fotografia do acervo do autor.

FIGURA 32 - Vista do pátio do Collégio Allan


Kardec. Fonte: fotografia do acervo do autor.

FIGURA 33 – Recinto do Centro Espírita Recanto da


Prece, em Sacramento, construído com materiais
remanescentes do quarto que pertenceu a Eurípedes
Barsanulfo. Fonte: fotografia do acervo do autor.
222

FIGURA 34 – Eurípedes em dois


momentos de vida. Fonte: foto
montagem de João Lester. FIGURA 35 – Sede do primeiro centro espírita da região e talvez do
interior mineiro, Fé e Amor, em Santa Maria. Fonte: fotografia do acervo
do autor.

FIGURA 38 – Vista frontal da Escola Eurípedes Barsanulfo, mantida


com recursos públicos e administrada pela Fundação Lar de Eurípedes,
vinculada ao Centro Espírita Esperança e Caridade. Fonte: fotografia do
acervo do autor.

FIGURAS 36 e 37 – Herma de
Eurípedes construída em 1929, na sede
do Collégio Allan KArdec, e seu
túmulo, uma cova rasa de acordo com FIGURA 39 – Casa Assistencial Bezerra de Menezes, em Santa Maria,
seu desejo. Mitificado, é ponto de hospital para crianças deficientes físicas de Sacramento e Conquista,
visitas e objetos de devoção são ali mantido pelo Centro Espírita Recanto da Prece. Fonte: fotografia do
depositados. Fonte: fotografias do acervo do autor.
acervo do autor.
223

2.4.1 – As linhas e o tempo 429

FIGURAS 40 e 41 – O prédio do Collegio Allan Kardec em dois tempos, meados dos anos 20 e a foto mais
recente. Acervo: Arquivo Público de Sacramento.

O prédio erguido na antiga Rua Principal – atual Visconde do Rio Branco – que hoje

funciona como sede do “Grupo Espírita Esperança e Caridade”, ainda impressiona, embora

com algumas modificações internas e externas, num centro de cidade com belas relíquias do

passado de pujança econômica. Analisando detidamente o edifício, articulando a leitura com

outras fontes primárias, surgem boas evidências na mesma medida que importantes

interrogações.

Euripedes Barsanulfo chegou a lecionar na sede da escola concluída? A construção

ocorreu sem interrupções, entre 1917 e 1918? Então, quando pode ter ocorrido sua

inauguração? Os atuais dirigentes da entidade espírita afirmam que a obra é inacabada, tendo

sido iniciada da direita à esquerda, subindo a Rua; são quatro janelas à direita, quatro ao centro

e uma próxima à varanda. Estimam que, originalmente, o projeto previa mais quatro janelas,

aproximando o colégio ao prédio vizinho, o histórico Hotel do Comércio. Com a observação e

o estudo de alguns detalhes e particularidades do antigo Collégio Allan Kardec, podemos

responder tais indagações.

429
Essencial nas discussões teóricas deste capítulo foram as contribuições de Virgínia Dolabela, chefe do
Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura e da Adriana Gobbo, historiadora do Arquivo Público.
Com muita meticulosidade e dedicação, dispensaram atenção por horas na elucidação dos enigmas do prédio e nos
diálogos sobre as interrogações do passado.
224

Seu estilo é eclético, numa predominância do neoclássico com elementos do art-

nouveau – o primeiro movimento orientado pelo design e caracterizados por linhas poéticas

que refletiam a elegância e a modernidade, típicos da classe média ascendente, e as fachadas

são ornadas com elementos da natureza, como folhagens, lírios aquáticos, feixes de trigo, entre

outros traços femininos. Surgido na Inglaterra por volta de 1870, perdurando até a década de

1920, chegou ao Brasil no início do século XX, e a célebre Confeitaria Colombo no Rio de

Janeiro adotara essa decoração em seu interior.430

Analisando a Escola Normal de São Carlos, cuja caracterização segue essas mesmas

tendências, desenhada por um arquiteto alemão, a professora Ester Buffa sustenta que o projeto

pedagógico daquela instituição é inscrito em seus caracteres arquitetônicos, refletindo

“sobriedade, credibilidade e conservadorismo do currículo calcado nos clássicos da literatura

greco-romana e francesa”.431 A escola, em questão, foi construída por fazendeiros para o

estudo de suas filhas.

Evidentemente, a clientela em Sacramento era mais diversificada, dado o caráter

filantrópico do educandário, e a escola foi construída às expensas de doações voluntárias.

Diríamos que, o Collégio Allan Kardec, foi erguido com um art-noveau mais popularizado - e

isso fica evidenciado no acabamento externo, com assimetrias e falhas, e na simplicidade da

decoração interna. No entanto, o modismo da época, a expansão econômica da cidade e da

região, a incorporação dessa tendência típica das sociedades urbano-industriais e a relevância

presumível da escola refletiram nessas escolhas. As janelas amplas denotavam, certamente, a

preponderância e a visibilidade do saber.

Infelizmente, a planta original, os dados do arquiteto ou da inauguração, bem como

sua época precisa, foram perdidos. Porém, seguindo certos indícios, podemos mapear essa

trajetória e dirimir certas dúvidas.

430
DUCHER, Robert. Características dos Estilos. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
431
BUFFA, Ester. Op.cit., pp.31-3.
225

No exercício fiscal de 1917, o Sr. Hermógenes Ernesto – “seu” Mogico, pai de

Euripedes e proprietário do terreno - pagava a quantia de 305:800 (trezentos e cinco mil e

oitocentos réis) de impostos municipais de “Industria e Profissão”. Dos vários itens tributados,

16:000 (dezesseis mil réis) eram referentes a “16 metros de muros na Rio Branco”, o

equivalente a imposto predial. Pela rua e pela metragem, corresponde à fachada frontal do

colégio, tendo como referencial o bloco central.

FIGURA 42 - Planta do Allan Kardec. O trecho grafado em amarelo, corresponde a 16 metros – justamente o
imposto sobre muros mencionado - pago pelo Sr.Hermógenes. Fonte: Arquivo Público Municipal.

Consultando a atual planta do prédio, cuja cópia está no acervo do patrimônio

histórico da Secretaria de Cultura de Sacramento, e o imposto pertinente pago pelo “seu”

Mogico, em 1917, confirmamos essa correspondência (Figura 42).

Também no acervo do Arquivo Público Municipal, está preservado um mapa que

pode ter sido desenhado pelo engenheiro Francisco Palmério. Embora sem data especificada,

por dedução é posterior a 1917 e anterior a 1920 – inferência realizada a partir dos prédios

desenhados, cujas datas são conhecidas.

FIGURA 43 – Trecho de um mapa, original, da cidade de Sacramento, entre 1917 e 1920, estimativamente. Em
destaque, à Rua Visconde do Rio Branco, o Collégio. Fonte: Arquivo Público Municipal.
226

A partir desses dados, podemos deduzir que a primeira parte da construção terminara

em 1917, momento em que, provavelmente, o destaque e a projeção de Barsanulfo e do colégio

eram mais notórios. Então, o prédio começou a ser erguido da esquerda para a direita – da

praça central da matriz para a periferia. A densidade das construções à esquerda do mapa

(Figura 42) é bem definida. Onde existe uma janela solitária, portanto, deveria ser uma varanda

mais ampla ou um jardim.

Para corroborar essa afirmação, podemos analisar, comparativamente, ainda, a

miscelânea dos estilos da fachada, divididas nas três partes citadas, observando que as linhas e

a continuidade não são consistentes (Figuras 44, 45 e 46):

FIGURA 44, 45 e 46 – A fachada do Collégio dos três blocos, sendo perceptível as incoerências nos traçados e
estilos. Fonte: fotografias do acervo do autor.

Seguramente, os adereços da fachada dos dois blocos das extremidades não

correspondem aos padrões e linhas do bloco central. Com traçados retos, a predominância dos

cheios sobre vazios, a valorização da esquina e a varanda semi-embutida na entrada, são

influências do art-decó, linguagem que teve projeção especialmente nas cidades

estadunidenses como Chicago, Miami e Nova Iorque, e foram inspiradas nas pirâmides dos

Maias da América Central ou dos egípcios antigos, e como movimento artístico e arquitetônico

é difundido a partir dos anos 1920.432

432
DOLABELA, Virgínia. Depoimento prestado ao autor (não gravado). Sacramento: 10/01/2006; DUCHER,
Robert. Op.cit., p.45.
227

Reforçando esse raciocínio, o nome do Grupo Espírita Esperança e Caridade, em alto

relevo, é alinhado também ao eixo central da construção (Figuras 47 e 52) e a platibanda

apresenta emendas, o que não é normal nessas construções e denota a continuidade posterior

das obras (Figura 48).

Internamente, o piso do bloco central é em cerâmica decorada (Figura 50) e o forro do

teto é em madeira (Figura 49). Nos blocos laterais – da direita e da esquerda, o piso é feito em

cimento tingido de vermelho e o teto já é em laje – perceptivelmente mais recentes.

FIGURAS 47, 48, 49, 50, 51


(sentido horário) – Detalhes da
platibanda, com emendas -;
forro do teto e o piso,
respectivamente, do vão
central, notadamente mais
antigos – fotos do acervo do
autor; e a fachada nos anos 20,
sem a placa no local destacado
– fonte: FERREIRA, Inácio.
Op.cit., p.29.

Entre os nomes em alto relevo “Allan” e “Kardec”, por sinal, alinhados ao bloco da

direita, tem, hoje, fixada uma placa comemorativa (Figura 54), ressaltando que “A Eurípedes

Barsanulfo dedicam seus amigos este templo de luz e instrucção – Sacramento 1º de novembro

de 1918”. Quando observamos a foto mais antiga do colégio (Figura 51), do final dos anos

1920, constatamos que ainda não havia ali essa indicação (no local assinalado em amarelo).

Possivelmente, sua colocação é posterior e, talvez, tivesse ocorrido em alguma comemoração

especial.

E a própria data – 1º de novembro – refere-se à morte de Euripedes. Impensável que o

prédio da escola tivesse sido inaugurado no dia de seu falecimento, ou mesmo, pouco depois.
228

Então, bem provável, a conclusão do prédio pode ter sido uma homenagem póstuma à memória

do ícone da educação e do espiritismo de Sacramento e da região. E, pelas pistas detectadas, no

final dos anos 1920.

Em 1º de maio de 1929, os amigos e ex-alunos de Eurípedes inauguravam uma herma

e um jardim em homenagem ao aniversário de seu nascimento. Thomaz Novelino, presente na

ocasião, foi convidado a se pronunciar, ao lado de Homilton Wilson e outros companheiros do

antigo professor. É bem plausível a possibilidade de que à ocasião tenha sido colocada a placa

em questão – e a finalização do prédio ter ocorrido em algum ano pouco anterior.

FIGURAS 52, 53, 54 (sentido horário) – Detalhes da fachada do edifício. O alto relevo do “Grupo Espírita
Esperança e Caridade é alinhado ao bloco central, ao passo que o “Collégio” e o nome “Allan Kardec” tem
referência diferente. Em destaque, , a placa referida. Fonte: fotos do acervo do autor.
229

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O legado do educador espírita

“... A febre abatia-o de momento a momento, mas milhares de receitas partiam da sua

abençoada boca e os medicamentos eram manipulados sob a sua carinhosa vigilância. Quadro

doloroso: milhares de medicamentos áquêle que se queimava numa fébre de 40 gráus! E eram

todos atendidos...”. 433

Essa descrição feita pelo discípulo e ex-aluno Odilon Ferreira, que acompanhou

Eurípedes em seus últimos momentos na farmácia, caracteriza bem o sentido da vida

missionária do professor sacramentano. Abatido pelo terrível vírus influenza, surto surgido nos

Estados Unidos, que ficou conhecido como “gripe espanhola”, e que ceifou mais de 20 milhões

de vidas após a Primeira Guerra Mundial, seguia implacavelmente a devoção à sua causa.

Mas a 1º de novembro de 1917, veio a falecer, assistido em seu leito por Dona Meca,

sua mãe. O corpo fora trasladado da casa de “seu” Mogico, ainda à tarde, sob uma persistente

chuva fina, e, conforme seu desejo, foi enterrado numa cova rasa.434

433
FERREIRA, Odilon. Op.cit., pp.12-3.
434
RIZZINI, Jorge. Op.cit., p.135.
230

A notícia do infausto espalhou-se. Dois dias depois, o “Lavoura e Comércio” de

Uberaba, o mesmo órgão que publicara as denúncias do médico João Teixeira Alvares contra

Eurípedes, divulgava a nota: “... Notícias de Sacramento dizem haver falecido ali, de gripe

espanhola, o Sr. Eurípedes Barsanulpho. O morto era um nome muito acatado nesta zona pelas

virtudes cristãs, e pela sólida moral que revestia o seu caráter”.435

Em Pedregulho, Estado de São Paulo, o jornal “O Pharol”, escrevia: “No dia 1 do

corrente alou ás regiões do além esta grande alma que na terra soube cumprir o seu dever,

consagrando-se ao nobre ministério dos espíritos cultos, diffundindo amor, instrucção e

caridade”.436 Numa outra cidade paulista, o “Tribuna de Igarapava”, destacava: “...Estrella de

primeira grandeza, cujo brilho, por certo, há de refulgir inapagável e profundo nos corações e

consciencias bem formados, como um pleito de reconhecimento a esse augusto bem-feitor,

agora recolhido ao aprisco do Omnipotente!”.437

O sacramentano “O Borá”, lembrava sua trajetória: “... Em 1907 fundou nesta cidade

o ‘Collégio Allan Kardec’, cuja matrícula elevava-se a 209 alumnos. Este importante

estabelecimento funccionou sob a sua competente direção durante 11 annos e 7 mezes

consecutivos desde 1º de abril de 1907 até 22 de outubro do corrente anno. E, uma fonte de luz

que tem diffundido a instrucção para milhares de moços de ambos os sexos”. 438

Do educandário espírita dos tempos de Eurípedes, saíram pessoas que destacaram-se

em várias áreas do saber. No jornalismo regional, César Castanheira, Ricardo Stocco,

Homilton Wilson, Waltercides Wilon, Zenon Borges, Odilon Ferreira. Na medicina e depois no

magistério, o Dr. Thomaz novelino. Nas lides da educação, Antenor Germano, e os pioneiros

do Espiritismo em Palmelo, Goiás, Jerônimo Gomide e sua esposa, Francisca Gomide, entre

outros.439

435
Id.Ibdem., p.136.
436
O Pharol. Pedregulho, SP: 20/11/1918, p.1.
437
Tribuna de Igarapava. Igarapava, SP: 06/11/1918, p.1.
438
Eurípedes Barsanulpho. O Borá. Sacramento: 17/11/1918, p.1.
439
NOVELINO, Corina. Op.cit., passim.
231

A direção do Collégio Allan Kardec ficou com o irmão de Eurípedes, o professor

Waltercides Willon, até 1926, quando, diante das dificuldades, sofreu o colapso de alguns

anos. Em 1935 assumiu a direção do educandário outro irmão, Homilton Wilson,

permanecendo até 1954. Em 1936, o educandário era registrado na “Secretaria de Educação e

Cultura de Minas Gerais” com a denominação de “Escola Allan Kardec”, sendo a entidade

espírita, “Esperança e Caridade”, seu órgão mantenedor. 440

Numa região pobre da cidade, muito freqüentada por Eurípedes à sua época nas

atividades assistenciais, onde hoje se encontra uma rua com seu nome, o Bairro do Azagaia, foi

fundado em 1926 uma certa “Escola Barsanulpho”, que além de cursos regulares oferecia curso

de datilografia, conforme anúncio no jornal “A Semana”.441 Pelos poucos vestígios,

possivelmente, a instituição teve uma existência efêmera. 442

Entre 1954 e 1964, a direção da escola esteve com a importante biógrafa de

Eurípedes, a professora Corina Novelino – prima do Dr. Thomaz Novelino. No ano do fatídico

golpe militar que derrubara o governo popular de João Goulart, em 1964, a escola passou para

o âmbito estadual, mudando sucessivamente de denominações – “Escolas Combinadas de

Sacramento”, “Escolas Reunidas de Sacramento” e, no terceiro ano de funcionamento, “Grupo

Escolar Sinhana Borges”, funcionando no pavimento térreo do antigo Allan Kardec. Nesse

ínterim, foi fundado o “Ginásio Allan Kardec”, em 1959, pelo movimento espírita, que prestou

serviços à comunidade até 1971 – como reforço escolar e alfabetização de adultos – fechando

por falta de recursos.443

Em 1973 o Dr. Thomaz, já radicado e bem sucedido em Franca, iniciou um

movimento que concretizou uma nova unidade escolar que, concluído em 1975, funciona até

440
WILSON, Saulo. Depoimento prestado ao autor (não gravado). Op.cit.; e AMUI, Alzira Bessa. Depoimento
prestado ao autor (gravado). Sacramento: 7/1/2006.
441
A Semana. Sacramento: 2/5/1926, p.2.
442
JACÓB, Amir Salomão. Depoimento prestado ao autor (não gravado). Op.cit.
443
NOVELINO, Corina. Op.cit., pp-240-4.
232

hoje, numa área popular de Sacramento, cedida pela municipalidade ao Lar de Eurípedes,

chamado de “Escola de Primeiro Grau Euripedes Barsanulfo”.444

Certamente, a vida e a obra desse singular professor deixou marcas profundas na

cultura de Sacramento e também no movimento espírita brasileiro - centenas de instituições

pelo país levam o seu nome.

No campo da pedagogia, nos anos 1960 e 1970 foram realizados congressos e

simpósios educacionais espíritas e a figura do paulista José Herculano Pires projetou-se como

um dos mais importantes teóricos dessa linha de pensamento445. Em recente tese de

doutoramento efetuado na USP, focalizando as raízes da chamada pedagogia espírita, a

jornalista Dora Incontri afirmou que a experiência de Barsanulfo nas terras de Sacramento

iniciou, efetivamente, essa corrente educacional no mundo.446

Em Sacramento, o espiritismo é bem difundido (como, aliás, em toda a região do

Triângulo Mineiro), contando com quatro casas da doutrina. Por outro lado, o catolicismo é

enraizado na cultura local e, a rigor, em que pese a envergadura moral de Euripedes,

demonstrada ao longo do último capítulo, não ocorreu, em sua época, a conversão à doutrina

de Kardec de nenhum expoente das famílias tradicionais e da elite econômica local. Em 1916,

a revista “Uberaba, Princeza do Sertão” divulgava que havia uma média anual de 200 batizados

e 50 casamentos nas três Igrejas locais447.

Até os anos de 1960, por recusa dos padres, nenhuma criança registrada pelo nome

“Euripedes Barsanulfo” era batizado na paróquia local, levando as famílias a buscarem o

sacramento católico nas vizinhas Conquista ou Uberaba.

Em 1979 tramitou na Câmara Municipal um projeto para a adoção do nome Eurípedes

Barsanulfo na avenida principal da cidade – denominada Benedito Valadares. A campanha dos

444
AMUI, Alzira Bessa. Depoimento prestado ao autor (gravado). Op.cit.
445
PIRES, J. Herculano. Pedagogia Espírita. 10.ed. São Paulo: Paidéia Editora, 2004.
446
INCONTRI, Dora. Pedagogia Espírita - um projeto brasileiro e suas raízes. Op.cit., p.174.
447
CAPRI, Roberto. Op.cit., p.107.
233

opositores à idéia foi ruidosa e o plano foi derrotado448. José Camilo Rosa, ex-presidente da

Casa e vereador por cinco mandatos, conseguira, posteriormente, com esforço, a adoção do

nome do espírita num bairro periférico de Sacramento. 449

O estudioso da história da cidade, escritor, professor e, também, ex-vereador, Amir

Salomão Jacób, concluiu recentemente um trabalho acerca de Barsanulfo. Certo dia, em fins de

2005, participava de uma procissão quando um amigo advogado chamou-lhe num canto da

praça:

“- Ontem estávamos numa festa e o assunto era você....”, disparou. “Como é que pode
450
um católico adepto de Nossa Senhora da Abadia escrever um estudo sobre um espírita...?”

Decerto, são traços característicos da brasilidade, o sincretismo religioso e o

imaginário popular flexível e tolerante. É muito usual, não somente em Sacramento, mas em

todo o país, a pessoa seguir a tradição católica e todos os seus rituais e, num momento qualquer

por necessidade ou devoção, buscar passes ou auxílio numa casa espírita.

Num de nossos depoimentos, com a professora Maria Aparecida Miranda451, colhemos

um episódio pitoresco que traduz bem o jeito de ser do brasileiro, como no caso citado por

Darcy Ribeiro e aqui apresentado (Capítulo II) do índio diante do jesuíta justificando a fusão

dos elementos nativos aos rituais cristãos: “(...) Meses atrás, uma senhora, velha amiga,

perguntava sobre o perigo de acontecer alguma tragédia na cidade”:

- “A comadre tem visto na televisão quanta coisa ruim tá acontecendo no mundo,

tempestade, terremoto. Isso não chega em Sacramento não é mesmo? Também, uma cidade

que é protegida por Eurípedes Barsanulfo e pelo Padre Vítor, nada de ruim pode acontecer!”

448
JACÓB, Amir Salomão. Depoimento prestado ao autor (não gravado). Op.cit.
449
ROSA, José Camilo. Depoimento prestado ao autor (não gravado). Sacramento: 26/7/2004.
450
JACÓB, Amir Salomão. Depoimento prestado ao autor (não gravado). Op.cit.
451
MIRANDA, Maria Aparecida. Depoimento prestado ao autor (gravado). Op.cit.
234
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66. GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
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68. HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2003
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70. HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios. 8.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
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75. INCONTRI, Dora. Pedagogia Espírita – um projeto brasileiro e suas raízes. Bragança Paulista:
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Espírita, 2001.
84. _____________. O Céu e o Inferno. 26.ed. Araras: Instituto de Difusão Espírita, 2001.
85. _____________. A Gênese. 27.ed. Araras: Instituto de Difusão Espírita, 2001.
86. _____________. O Que é Espiritismo. 53.ed. Araras: Instituto de Difusão Espírita, 2003.
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espiritismo e a mediunidade no Brasil. [volume 5]. Araguari: Minas Editora, 2005.
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Alves Editora, 1976.
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105. NABUT, Jorge Alberto (Coord.). Desemboque – Documentário Histórico e Cultural. Uberaba:
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109. NÓVOA, Antônio. Para uma análise das instituições escolares. In: Nóvoa, Antônio (coord.) As
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110. NUNES, Beatriz Helena P.Costa et al. Em torno de Rivail – O mundo em que viveu Allan
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Nova 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pp. 292-313.
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Candomblé na Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
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117. PIRES, Herculano. Pedagogia Espírita.10.ed. São Paulo: Editora Paidéia, 2004.
118. PLATÃO. Fédon São Paulo: Nova Cultural, 2004. (Os Pensadores, vol.2).
119. PONTES, Hildebrando. História de Uberaba e a Civilização do Brasil Central. Uberaba:
Academia de Letras do Triângulo Mineiro, 1978.
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122. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil. 2.ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
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Senador Darcy Ribeiro. Ano 3, n.12. Brasília: Gabinete do Senador Darcy Ribeiro, 1994.
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Ciências Humanas. Vol.3, n.1, Viçosa, MG: Universidade Federal de Viçosa, jul.2003, pp.35-42.
125. RIVAIL, Hippolyte-Léon Denizard. Textos Pedagógicos. 2.ed. Bragança Paulista: Editora
Comenius, 1999.
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126. RIZZINI, JORGE. Kardec, Irmãs Fox e outros. 2.ed. São Paulo: Editora Eldorado Espírita de
São Paulo, 1995.
127. _______________. Eurípedes Barsanulfo, o apóstolo da caridade.9.ed. São Bernardo do
Campo: Correio Fraterno do ABC, 2004.
128. RODRIGUES, Maura Afonso. Fagulhos de História do Triângulo Mineiro. Uberlândia: ABC-
SABE, 1988.
129. ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil (1930/1973). 28.ed.
Petrópolis: Vozes, 2003.
130. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2003.
131. ______________________. Emílio, ou, Da educação. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
132. ______________________. A Nova Heloísa. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaios
Pedagógicos. Trad. Priscila Grigoletto Nacarato. Bragança Paulista: Comenius, 2004.
133. ______________________. Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os
homens. Lisboa: Publicações Europa-América, 1976.
134. SANCHI, Pierre. A Religião dos brasileiros. Teoria & Sociedade (Revista dos Departamentos de
Ciência Política e de Sociologia e Antropologia – UFMG). n.4, Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999,
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135. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às Nascentes do Rio São Francisco. São Paulo: EDUSP;
Belo Horizonte: Itatiaia, 1979..
136. SAMPAIO, Antônio Borges. Uberaba: História, Fatos e Homens. Uberaba: Arquivo Público de
Uberaba, 2001.
137. SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo, uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997.
138. SILVA, Eliane M. Reflexões teóricas e históricas sobre o Espiritualismo entre 1850-1930.
1997. Disponível em <http://unicamp.br/~elmoura/0%20Espiritualismo%20nos% 20S% E9c.
%20XIX%20 e%20XX.doc.> Acesso em: 10 set. 2004.
139. SILVA, Hélio e CARNEIRO, Maria Cecília Ribas. História da República Brasileira. O Poder
Civil (1895/1910). V.2. São Paulo: Editora Três, 1998.
140. SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. 2.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
141. STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. São Paulo: EDUSP; Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.
142. STIEL, Waldemar Corrêa. História do Transporte Urbano no Brasil. São Paulo: Ed. Convênio
EBTU/PINI, 1984.
143. VERENA, A. História Oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil, 1989.
144. VERGER, Pierre. Orixás, Deuses, Iorubás na África e no Novo Mundo. Salvador: Corrupio,
1997.
145. VERÍSSIMO, José. A Educação Nacional. 3.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.
146. XAVIER, Francisco Cândido [psicografia de EMMANUEL]. A Caminho da Luz. 32.ed. Rio de
Janeiro: FEB, 2005.
147. WANTUIL, Zêus. As Mesas Girantes e o Espiritismo. 3.ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita
Brasileira, 1958.
148. _______________. Grandes Espíritas do Brasil. 4.ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita
Brasileira, 2002.
149. WANTUIL, Zêus e THIESEN, Francisco. Allan Kardec. 5.ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita
Brasileira, 1999. 3 Vols.
241

150. WEFFORT, Francisco C (Org.). Os Clássicos da política. V.1. 3.ed. São Paulo: Ática, 2003.

B – DOCUMENTOS OFICIAIS

1. Atas da Câmara Municipal de Sacramento. Volume com as atas de 29/03/1900 a 13/01/1904.


Acervo: Arquivo Público de Sacramento.
2. Atas da Câmara Municipal de Sacramento. Volume com as atas de 24/12/1904 a 1/1/1908.
Acervo: Arquivo Público de Sacramento.
3. Atas da Câmara Municipal de Sacramento. Cópias de atas avulsas entre 1908 a 1914 [o volume
original desapareceu da coleção do Arquivo Público municipal].
4. Atas da Câmara Municipal de Sacramento. Originais de cópias avulsas entre 1920 e 1924.
Acervo: Arquivo Público de Sacramento.
5. Coleção de Leis Municipais “Pai Adão”. Acervo: Museu Corália Vênites Maluf.
6. Indústria e Profissões – Impostos Municipaes. Livro 20 e 21, 1917 e 1918. Acervo: Arquivo
Público de Sacramento.
7. Lei n.161 de 19 de Janeiro de 1914 – que dispõe sobre a administração da Empresa Electra.
Câmara Municipal de Sacramento – Estado de Minas. Sacramento: Typographia de Obras
Edmundo.
8. Livro de Balancetes da Câmara Municipal – exercício 1909/1910/1911. Acervo: Arquivo
Público de Sacramento.
9. Municípios Mineiros. Belo Horizonte: Assembléia Legislativa de Minas Gerais, Instituto
Integrado de Desenvolvimento de Minas Gerais, 2005. Disponível em:
<www.almg.gov.br/index.asp?grupo=estado&diretorio=munmg&arquivo=municipios> Acesso
em: 16.jan.2006.

C – OUTROS DOCUMENTOS / CARTAS

1. Accordo e Synthese da polemica religiosa catholico-espirita, havida em Sacramento, em de


Outubro de 1913, entre PADRE FELICIANO IAGUE E EURIPEDES BARSANULPHO.
[Panfleto distribuído na cidade por Barsanulfo].
2. ALMEIDA, Neio Luiz Ramos. Árvore Genealógica da família Cunha e Araújo. Sacramento,
Fazenda Santa Maria: 9/1/2002.
3. Ata de Sessão dos trabalhos realizados no Grupo Fé e Amor de Santa Maria, município de
Sacramento ao 10 dias do mês de dezembro de 1905.
4. Boletim escolar do aluno Manoel Borges. 1919.
5. Carta. Eurípedes Barsanulfo a Odilon Ferreira. Sacramento: 14/09/1911.
6. Carta. Homilton Wilson ao cunhado Pedro. Rio de Janeiro: 30/4/1956.
7. Carta. Nilo Fortes a Eurípedes Barsanulfo (com o timbre da “Federação Espírita Brazileira”). Rio
de Janeiro: 18/7/1911.
8. Carta. Hermógenes Casimiro de Araújp Brunswick ao Conselheiro do Império João de Almeida
Pereira Filho. Desemboque: 20/2/1860. Acervo do Professor Carlos Alberto Cerchi.
9. Certidão de Casamento de José Martins Borges. Sacramento: ?/7/1902.
10. Diário de Classe da professora Corina Novelino, Collégio Allan Kardec. Sacramento: março/1937
242

11. FERREIRA, Odilon J. Eurípedes Barsanulpho, apóstolo do bem. Distribuição gratuita do Asylo
Bezerra de Menezes de Jardinópolis Estado de São Paulo. S/d. [Livreto]
12. Lista n.27 a cargo do Sr. Antônio Delação. Subscripção que fazem os amigos do “Collégio Allan
Kardec” para o augmento de seus salões e sede do grupo Espírita Esperança e Caridade de
Sacramento. 2/7/1912.
13. Notas do caderno da aluna Efigênia Pinto Valada.
14. Processo jurídico, requerido pelo próprio réu, movido contra Eurípedes Barsanulfo pelo exercício
ilegal da medicina. Sacramento, 7/?/1917.
15. Registro do Centro Espírita Fé e Amor. Sacramento: 28/8/1900.
16. Termo de Visita do Inspetor Regional de Ensino, Ernesto de Melo Brandão. Sacramento:
29/04/1913.

D – DEPOIMENTOS

D.1 – Tomados

1. ALMEIDA, Adolfo Ramos [professor, sobrinho-neto de ‘Sinhô’ Mariano e dirigente do Centro


Espírita Fé e Amor]. Depoimento gravado. Sacramento: 8/01/2006.
2. AMUI, Alzira Bessa França [atual presidente do Grupo Espírita Fé e Caridade e da Fundação Lar
de Eurípedes]. Depoimento gravado. Sacramento: 7/01/2006.
3. CUNHA, Heigorina [sobrinha de Eurípedes Barsanulfo]. Depoimento não gravado Sacramento:
9/1/2006.
4. DOLABELA, Virgínia [arquiteta, chefe do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de
Cultura de Sacramento]. Depoimento não gravado. Sacramento: 10/01/2006.
5. GOBBO, Adriana [historiadora do Arquivo Público Municipal]. Depoimento não gravado.
Sacramento: 4/1/2006.
6. JACÓB, Amir Salomão [advogado, professor e pesquisador da história sacramentana].
Depoimento não gravado. Sacramento: 5/1/2006.
7. MELO, Marfisa. Depoimento não gravado. Sacramento: 12/01/2006.
8. MIRANDA, Maria Aparecida [neta do professor João Derwil Miranda, ex-aluno do Caraça,
fundador do Collégio Miranda]. Depoimento gravado. Sacramento: 11/01/2006.
9. MOGI, Gabriel [atual professor de História, foi aluno da Fundação Educandário de Franca].
Depoimento não gravado. Uberlândia: 27/1/2006.
10. WILSON, Saulo [Sobrinho de Barsanulfo e filho de Homilton Wilson, diretor do Colégio Allan
Kardec entre 1934 a 1954]. Depoimento não gravado. Sacramento: 11/01/2006.

D.2 – Impressos, outros autores

1. BERTOLUCCI, Carlos Donizete [Acervo do professor Carlos Alberto Cerchi]. Uberaba:


23/1/1991.
2. CUNHA, José Rezende da [Memórias inéditas, acervo do professor Carlos Alberto Cerchi].
Sacramento: 1994.
3. MELLO, Ribeiro. [Relato da História de Santa Maria, escrito e assinado, prestado ao Instituto
Cultural Leopoldina Geovana de Araújo]. Sacramento: Julho / 2004.
243

4. NOVELINO, Thomaz [ex-aluno de Eurípedes Barsanulfo e fundador da Fundação Educandário


Pestalozzi, de Franca]. GODOY, Lauret. Encontros maravilhosos com Eurípedes Barsanulfo.
São Paulo: edição da autora, 2002.
5. OLIVEIRA, Bráulio Alves. VITUSSO, Izabel. Entrevista com o último discípulo de Eurípedes
Barsanulfo. Boletim GEAE, n.462, Uberlândia: 2/09/2003.

E – JORNAIS E REVISTAS

1. A Bonança. n.11, Sacramento: 7/12/1911.


2. A Semana. Sacramento: 9/8/1925 a 2/8/26. 53 edições, coleção completa do primeiro ano. (Órgão
fundado e dirigido por Homilton Wilson, irmão de Barsanulfo)
3. Boletim do Círculo Católico de Uberaba. Lavoura e Comércio. Uberaba: 7/10/1917.
4. Brasil Ferro-Carril. Rio de Janeiro: 19/10/1901.
5. BRITO, Cilene. Sincretismo e devoção marcam Festa de São Lázaro. Correio da Bahia.
Salvador: 29/01/2006. Disponível em <http://www.correiodabahia.com.br/2006/01/29/
noticia;asp?link=not000127250.xml> acesso em 10/02/2006.
6. CAMARGO, Oswaldo de. A Glória de Carolina Maria de Jesus. Destaque – Revista Cultural de
Sacramento e Região. ano 11, n.63, Sacramento: maio/junho de 2005.
7. CAPRI, Roberto. Uberaba, A Princesa do Sertão. São Paulo: Capri, Andrada e Co. Editores,
1916.
8. Cidade do Sacramento. Sacramento: 15/11/1902.
9. Cidade do Sacramento. Sacramento: 28/02/1903.
10. CREMA, Linda de Melo. O Coronel José Affonso. In: Destaque – Revista Cultural de Sacramento
e Região. ano 11, n.65, Sacramento: Setembro/Outubro de 2005.
11. Estado do Triângulo. Sacramento: 12/11/2000
12. Eurípedes Barsanulpho. O Borá. Sacramento: 17/11/1918.
13. Eurípedes Barsanulpho. O Pharol. Pedregulho, SP: 20/11/1918.
14. Folha de Sacramento. Sacramento: 15/08/1937.
15. Greve em Sacramento. Tribuna de Conquista. N.28, anno I, Conquista, MG: 25/05/1913.
16. Grandes Líderes da História. ano 1, n.6. São Paulo: Arte Antiga Editora. Edição sobre Allan
Kardec.
17. GONÇALVES, Marcos Antônio. O Pajé da brasilidade. Folha de São Paulo. São Paulo:
5/2/1995. Revista da Folha.
18. INCONTRI, Dora. A Pedagogia Espírita. Revista Cristã de Espiritismo. n.3. São Paulo: Editora
Escala, set./out.1999. Entrevista
19. MALUF, Corália Venites. Buscando origens... encontrando raízes. Jornal de Sacramento. n.1,
Sacramento: 9/6/1979 [laudas originais da autora].
20. MARRAS, Stélio. O fado tropical de Gilberto Freyre. In: Cult – Revista Brasileira de Literatura.
n.32. São Paulo: Lemos Editorial, mar.2000, pp.38-49.
21. SANTOS, Wanderley dos. A Mogiana. Comércio da Franca. Franca: 27/02/1994.
22. Patriota. n.10. Sacramento: 2/10/1904.
23. Pharol. Pedregulho, SP: 20/11/18.
244

24. Revolução de Allan Kardec, A. Revista das Religiões – o mundo da fé. n.15. São Paulo: Editora
Abril, nov.2004
25. SILVA, Antônio Pereira da. Os bondes caipiras de Sacramento. Leitura [Publicação Cultural da
Imprensa Oficial do Estado S.A. – IMESP]. São Paulo: 12/01/1994.
26. Tribuna de Franca. n.934. Franca: 04/12/1910.
27. Tribuna de Franca. n.1079. Franca: 16/05/1912.
28. Tribuna de Igarapava. n.400. Igarapava: 06/11/1918.

F - MÚSICAS

1. BOSCO, João. O Ronco da cuíca. In: João Bosco ao Vivo. Rio de Janeiro: BMG Music, 2000. 1
disco compacto (48:52): digital, estéreo. 70711513.
2. ____________. Corsário. In: João Bosco ao Vivo. Rio de Janeiro: BMG Music, 2000. 1 disco
compacto (48:52): digital, estéreo. 707711622.
3. BUARQUE, Chico. Fado Tropical. In: Chico Canta, Rio de Janeiro: Polygram, 1973. 1 disco
compacto (31:12): digital, estéreo. 61471070.

G – MUSEUS E ACERVOS CONSULTADOS

1. Arquivo Público Municipal de Sacramento.


2. Arquivo Público Municipal de Uberaba.
3. Carlos Alberto Cerchi.
4. Centro Espírita Fé e Amor.
5. Memorial Eurípedes Barsanulfo – Centro Espírita Fé e Caridade.
6. Museu Municipal Corália Maluf Venites.

H – MAPAS

1. Planta da Cidade de Sacramento. Escala 1:1000. Acervo: Arquivo Público Municipal


(estimativamente, entre 1917 a 1920).
2. Planta do prédio do Grupo Espírita Fé e Caridade (antiga sede do Collégio Allan Kardec).
Acervo: Arquivo Público Municipal
3. Rocha, Joze Joaquim. Mostrace neste mapa o Julgado das Cabeceiras do Rio das Velhas e
parte da Capitania de Minas Geraes con a deviza de ambas as capitanias. [Reprodução].
Acervo do Arquivo Público de Sacramento. 1780.
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