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SATURNINO DE BRITO
Edição 72 - Junho/1997
Com Brito, a concepção da cidade como organismo, cujo crescimento deveria ser planejado e
jamais deixado ao acaso, foi fator decisivo para a instauração da prática do planejamento
urbanístico no Brasil. Embora nunca tenha dado aulas, foi reconhecidamente o grande mestre
de uma escola de engenheiros cujas obras marcam até hoje muitas das nossas cidades, além
de efetivamente terem melhorado suas condições de salubridade, controlando - ao menos
temporariamente - as epidemias que as assolavam.
No último quartel do século XIX as principais cidades brasileiras, quase todas litorâneas, foram
atingidas por epidemias. Desde meados daquele século, em periódicos surtos que irrompiam
inesperadamente, a febre amarela, a varíola, a cólera, a malária, a bexiga ou a peste bubônica
flagelavam grande número de pessoas. Assim, comprometiam o funcionamento da economia,
criando uma tensa situação de instabilidade social diante do grande número de vítimas que
provocavam.
Situando a origem das epidemias que grassavam periodicamente em nossas cidades nas
condições do meio, os engenheiros apontavam como causa principal um problema hidráulico -
a estagnação das águas. Para impedir a ocorrência de novos surtos deveria se sanear o meio,
promovendo acima de tudo a circulação das águas. Desse modo, fazer as águas fluírem será o
principal objetivo de grande parte das obras de saneamento realizadas por Brito e outros
engenheiros sanitaristas ao longo da Primeira República.
O início: ferrovias
Seu primeiro trabalho como engenheiro sanitarista foi como chefe da seção de abastecimento
d'água na comissão construtora de Belo Horizonte, de setembro de 1894 a maio do ano
seguinte. Discordâncias com o eng. Cesar de Campos, com quem já havia se desentendido
quando trabalharam juntos no Ceará, fizeram com que Brito deixasse seu cargo em BH. Por
não ter recebido seu apoio, Brito também rompe relações com Aarão Reis, então responsável
pela direção dos trabalhos da nova capital de Minas. Em suas avaliações do plano para BH,
embora sempre o respeitando de um ponto de vista geral, faz críticas à sua regularidade
excessiva. Chega mesmo a propor uma solução alternativa para os esgotos pluviais,
recomendando o aproveitamento dos fundos de vales para a abertura de avenidas.
Mas é para o Estado do Espírito Santo, como engenheiro-chefe da comissão de
melhoramentos da Capital, entre abril de 1895 e maio de 1896, que Brito desenvolve seu
primeiro plano urbanístico. Trata-se do projeto de arruamento, saneamento e melhoramentos
de "Novo Arrabalde", uma expansão da Cidade de Vitória, então com problemas de salubridade
e sem áreas próximas para crescer. Embora as obras tivessem sido suspensas ainda no início,
o plano de Brito não será abandonado. Trinta anos depois, superadas as limitações
econômicas, o projeto de Brito foi retomado, tendo sido implantado em quase sua totalidade,
com poucas modificações.
Sobre a planície artificial, construída para a expansão da cidade à custa da drenagem e aterro
de baixadas inundáveis e manguezais, e aproveitando também alguns terrenos secos, Brito
proporá um novo tipo de espaço residencial para as cidades brasileiras que buscavam
modernizar-se - o subúrbio-jardim.
Com duas malhas em xadrez cortadas por duas diagonais, seu traçado inscreve-se no relevo
local, acentuando a contraposição entre a cidade plana e a natureza acidentada. Domesticando
terrenos vasosos e controlando os fluxos hídricos da cidade, Brito criará ruas e avenidas com
larguras generosas mas não excessivas (21 e 28 m), que ora enquadram enormes
afloramentos graníticos, ora enfocam uma paisagem marinha.
"Novo Arrabalde" foi planejado para ser predominantemente residencial, não tendo sido
previsto um centro cívico ou mesmo áreas para edifícios públicos. Em seu projeto são alocados
apenas um hospital e as três usinas de drenagem das águas pluviais. A Capela da Penha já
existia e para ela é orientada a avenida de mesmo nome. Hoje, estabelecimentos de comércio
e serviços, além de edifícios religiosos, esparramam-se pelo conjunto do assentamento,
adensando-se próximo às avenidas. Entretanto, na paisagem urbana percebemos uma
dimensão simbólica que não se inscreve em monumentos, mas na forma da cidade.
A morfologia pretendia abrigar um modo de vida diferente do tradicional de Vitória. Mas a
distância que separava a capital, com sua feição colonial, insalubre e caótica - ao menos aos
olhos do sanitarista - do subúrbio planejado, era de natureza social e cultural. Com o projeto de
Brito para "Novo Arrabalde" inaugurava-se em nossas cidades uma nova forma de
assentamento residencial, o subúrbio-jardim tropical, com farta vegetação e espaços públicos
modernos, que na capital capixaba seria o novo hábitat de uma burguesia que almejava
prosperar com o comércio de Vitória e seu porto. Para garantir a separação entre classes, o
bairro da elite já era projetado incluindo dois outros núcleos de apoio: "Villa Monjardim", um
bairro operário com 117 lotes para as famílias dos empregados domésticos, e "Villa Hortícola",
36 chácaras para a produção hortifrutigranjeira.
Sem dúvida influenciaram na escolha do local os interesses da Cia. Construtora Torrens, que
além de obter concessão sobre os terrenos estaduais - aí incluindo os de "Novo Arrabalde" -
promoveria os serviços de saneamento e adquiriria uma porcentagem sobre a venda dos lotes.
Também o governador capixaba Muniz Freire apostava na promoção de um novo bairro que
tinha uma área seis vezes maior que a da capital.
No projeto de "Novo Arrabalde", Brito busca a conciliação entre um traçado racional e uma
implantação pinturesca, reiterando as avenidas em diagonal cruzando a trama em xadrez,
como no plano de BH, mas enfatizando a atenção com a topografia do sítio e dando às vias
principais direções e dimensões que atendem tanto às exigências sanitaristas quanto às
simbólicas. Talvez seja possível lermos este seu projeto como uma crítica, ainda algo velada,
ao plano de Aarão Reis para BH, já que neste os aspectos sanitaristas foram preteridos em
favor do caráter representativo do traçado; a crítica explícita ao plano de Reis aparecerá nos
artigos polêmicos sobre a planta de Santos, publicados em 1915, embora lá, apesar de sugerir
modificações no traçado de BH, visando dar "à cidade novos encantos e (facilitar) a solução de
seus problemas sanitários", considera que Reis "adaptou inteligentemente um traçado
geométrico à topografia".
No que foi também seu primeiro projeto de esgotos, Brito faz uso do sistema "tout-à-l'égout", no
qual as águas de esgoto e pluviais correm por uma mesma tubulação, não projetando canais
de drenagem pluvial a céu aberto. Quando passou a empregar o sistema separativo, ou
Waring, Brito então revisará o projeto para "Novo Arrabalde". No entanto já propusera, mas não
foram construídos, canais de contorno dos morros, para coletarem e afastarem as águas de
suas encostas. Se implantados ainda hoje, sem dúvida auxiliariam na atual precária drenagem
pluvial de "Novo Arrabalde".
Também o cais de contorno à beira-mar, com seu passeio hoje já inexistente após a criação de
um aterro que afasta o mar do transeunte, bem como o grande número de áreas verdes,
conferem ao bairro, ao mesmo tempo que uma qualidade ambiental e paisagística excepcional,
uma modernidade marcada pelos locais de passeio e contemplação, como "alamedas
transitáveis por carruagens", jardins, bosques de eucaliptos e belvederes.
A implantação do cemitério no centro do núcleo residencial não se deu apenas pela
disponibilidade de área e condições geológicas do terreno favoráveis a uso tão específico.
Embora o "Barro Vermelho" satisfizesse tais exigências, Brito afirmava que a escolha daquele
local "proporciona facilidade material para desenvolver o culto dos mortos". Criticando os que
preconizavam o afastamento dos campos-santos das áreas urbanas, Brito reafirmava aqui
elementos do ideário positivista.
Além do subúrbio, Brito, do mesmo modo que Olmsted para "Riverside" em Chicago, traçará
uma rodovia ligando "Novo Arrabalde" a Vitória. Atento à questão da vegetação nas cidades,
ao mesmo tempo que ele mantém as matas dos morros e sacrifica uma grande área de
manguezal, em uma ambígua visão conservacionista, preconiza o plantio de eucaliptos, tendo
em vista seus benefícios econômicos e higiênicos, "contra o ar empestado dos climas
quentes".
Na República nascente, Santos adquiriu uma posição estratégica do ponto de vista econômico,
mas também social e político. Principal porto exportador da produção agrícola do período, a
cidade também era a porta de entrada dos imigrantes que vinham se incorporar à mão-de-obra
nacional. Ex-centro abolicionista de importância, a cidade de Santos do início deste século
vivenciou as primeiras grandes manifestações populares e greves operárias da República
Velha, sobretudo dos trabalhadores do porto e da construção civil. Ao mesmo tempo, ainda na
virada do século, a ocorrência freqüente de epidemias comprometia o funcionamento de seu
porto e desestabilizava a ordem estabelecida.
Visando dar conta de tais empecilhos, o governo de São Paulo contrata em 1892 o escritório
do eng. Fuertes, de Nova York, para a elaboração de um projeto de saneamento do porto e da
cidade, o qual não foi implantado. Mas o levantamento realizado por Fuertes serviu de base
para as propostas posteriores. Uma concessão municipal, entre 1889 e 1892, iniciara a
construção de uma rede de esgotos segundo o sistema separador parcial, ou "inglês", processo
também proposto por Fuertes, ambos com tubulações subterrâneas.
Redefinindo o conjunto da estrutura urbana, estendendo-a pela planície litorânea até as praias,
cuja ocupação ainda era rarefeita, apesar de já haver uma linha de bondes com tração animal
ligando a ponta da praia com o centro da cidade, o plano de Brito cria uma nova paisagem,
promovendo novas formas de sociabilidade que buscavam dar um caráter "civilizado" à vida do
antigo porto colonial. Canais de drenagem das águas pluviais a céu aberto, com suas avenidas
e calçadas laterais, árvores e tabuleiros gramados, cruzados por dezenas de pontaletes ou
pontes, cada qual com um desenho peculiar, configuravam a principal invenção urbanística de
Brito - o bulevar sanitarista.
Tendo como um dos objetivos principais de saneamento impedir a estagnação das águas,
canais de drenagem a céu aberto, ligados de mar a mar, eles serão associados a outros meios
de circulação, de pedestres, veículos e olhares. Com eles, Brito incorpora às nossas cidades
um elemento tradicional de inúmeras cidades européias. Mas também concebe a viela
sanitária, incorporando-a à proposta de ocupação do miolo dos quarteirões com pequenas
áreas públicas.
Nas soluções adotadas por Brito em projetos de esgotos, aqui se incluindo os pluviais e
sanitários, os princípios da racionalidade técnica determinavam as características estéticas. A
regularidade ou não do traçado viário era definida em função das exigências de escoamento
das águas, vale dizer, conforme a topografia do terreno. Tal critério coincidia, ao menos em
parte, com o da tradição dos traçados pinturescos, como aqueles preconizados por Camillo
Sitte, em A Construção das Cidades Segundo seus Princípios Artísticos, que Brito lê em 1905.
Assim, para terrenos planos - como as baixadas litorâneas em "Novo Arrabalde" e Santos, que
Brito drena conquistando áreas para expansão da cidade - ele propunha um traçado regular,
sem, no entanto, os exageros da régua e do esquadro. Nesses casos, recomendava o
emprego do tabuleiro de xadrez, quase sempre atravessado por avenidas diagonais, buscando
uma certa adequação aos acidentes orográficos. As diagonais são justificadas por exigências
de circulação ou porque a elas se acrescenta um caráter simbólico. Em certos casos, para não
redefinir o desenho de uma via já existente, procurando evitar o transtorno das demolições. Já
para uma topografia acidentada, Brito proporá um traçado irregular, com ruas que se
acomodam às curvas de nível do terreno, como em seus projetos para cidades gaúchas,
realizados na década de 1920.
Atento às questões estéticas e paisagísticas, Brito fará uso da arborização ao longo das
avenidas para quebrar com uma excessiva linearidade visual. Do mesmo modo, quando a
topografia permite, introduz uma curva suave no desenho de um canal. De Santos, para onde
havia se estabelecido com a família logo no início das obras, ali construindo uma bela
residência na praia, projetada por seu amigo Victor Dubugras, Brito, em 1910 - ainda
inacabados os trabalhos - transfere-se para Recife, a pedido do governo pernambucano.
Dos inúmeros projetos de saneamento e extensão que Saturnino de Brito realiza ao longo dos
anos 20, destaca-se seu projeto de melhoramentos para o rio Tietê. Compreendendo a defesa
contra as inundações da várzea e a fim de aproveitá-la para a ocupação urbana, bem como
visando tornar o rio navegável no trecho em que atravessa a cidade, Brito propõe de modo
inovador um amplo parque que preserva a várzea como reservatório natural de regularização
do rio, sem encamisá-lo com avenidas laterais como acabou se construindo. Criando dois lagos
e duas ilhas na altura da Ponte Grande, local de partida das monções e porta de entrada da
capital paulista, Brito dá um tratamento urbanístico que parece remeter à "Île de la Cité" do rio
Sena, em Paris.
Ainda que pretendendo estabelecer uma conciliação entre aspectos técnicos e estéticos, há
nas formulações e propostas de Brito, claramente, uma subordinação da estética. O
fundamental para o engenheiro sanitarista era dar conta dos problemas de saneamento, o que
significava promover a circulação das águas. Atender tal exigência era, portanto, prioritário, daí
advindo a estrutura viária do terreno a ser urbanizado. Os "valores artísticos", como dizia,
poderiam vir a posteriori, procurando atenuar alguma possível rigidez do traçado sanitário.
O urbanismo sanitarista do eng. Saturnino de Brito insere-se no conjunto de operações em
grande escala que redefiniram a paisagem urbana de diversas cidades brasileiras no primeiro
quartel do século XX. Tais intervenções, nos quadros de institucionalização de um novo Estado
centralizador, revelam o fim da concepção centrípeta da cidade antiga e promovem com seus
planos de expansão, uma visão centrífuga do tecido urbano. Organismo em crescimento, a
metáfora da cidade como um corpo - que se pretende são e belo - realiza, no plano das idéias,
a naturalização do que é radicalmente artificial. Operação inversa da que se dá com as obras
de saneamento: artificialização do que é natural, como o canal no lugar do rio, ou o lote
urbanizado onde era mangue.
Carlos Roberto Monteiro de Andrade é arquiteto e bacharel em ciências sociais pela USP,
mestre e doutorando pela FAU-USP, docente e pesquisador do Departamento de Arquitetura e
Urbanismo da EESC-USP.
http://www.au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/72/um-projetista-de-cidades-24030-1.aspx