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Preparações e Tarefas.

Letícia Parente
curadoria e organização:
André Parente
Preparações e Tarefas.
Letícia Parente
curadoria e organização:
André Parente

Textos de:
André Parente, Cláudio da Costa, Cristiana Tejo,
Daniela Castro, Fernando Cocchiaralle,
Katia Maciel e Marisa Florido Cesar

São Paulo, 2007


Copyright 2007

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

Preparações e Tarefas.Letícia Parente/ textos de André Parente, Cláudio da


Costa, Cristiana Tejo, Daniela Castro, Fernando Cocchiaralle, Kátia Maciel e
Marisa Florido; organização André Parente. - São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado: Paço das Artes, 2007.
Outros autores: Daniela Bousso, Letícia Parente.

ISBN
ISBN

Índice para catálogo sistemático:


1. Arte contemporânea
2. Exposições

Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional


(Lei nº 1.825, de 20/12/1907)

Paço das Artes


Av. da Universidade, 1 - Cidade Universitária
05508 040 - São Paulo-SP
t/f (55 11) 3814 4832

http://www.pacodasartes.org.br
pacodasartes@pacodasartes.org.br
Preparações e Tarefas.
Letícia Parente
curadoria e organização:
André Parente

esposição realizada entre 12 de março e 20 de maio de 2007.


Paço das Artes

É com grande satisfação que o Paço das Artes apresenta esta exposição de Letícia Parente, artista que atuou na década de
1970, período rico na cena política e cultural brasileira, quando ao mesmo tempo em que se vivia sob um clima de falta de
liberdade e contestação à ditadura militar surgiam novas experimentações no campo da arte.

Letícia fez parte de uma geração que realizou os primeiros experimentos da videoarte no Rio de Janeiro a partir de 1974.
Ao fazer uso do suporte do vídeo para a arte propôs um deslocamento do foco do objeto para o corpo e a subjetividade.

Hoje, a utilização de novas mídias já está totalmente incorporada à produção das atuais gerações de artistas brasileiros. No
entanto, o trabalho de Letícia Parente foi um marco importante nos primórdios deste processo.

O Paço das Artes considera não somente oportuno mas de extrema importância resgatar e difundir amplamente a obra
desta artista que marcou presença na recente história da arte brasileira.

Esta mostra vem reafirmar a missão do Paço das Artes de exibição, difusão e reflexão da arte contemporânea.

Acreditamos que com esta mostra e este livro oferecemos ao nosso público mais um excelente acesso ao conhecimento do
que há de melhor na produção da arte contemporânea brasileira.
ALÔ,
1
É A LETÍCIA ?
André Parente
A obra de Letícia Parente é pouco conhecida, seja
da crítica, seja do grande público. Isso se deve,
em grande parte, ao fato de que a arte mídia só
veio ganhar espaço no circuito de arte no Brasil
muito recentemente. Mesmo se restringirmos a arte
Para Ana Vitória, mídia a um dos seus principais meios de expressão,
Anna Bella, Essila, Fernando, a videoarte, nenhum dos grandes artistas do
Ivens, Miriam, Paulo e Sonia. mainstream é videoartista. Nenhum dos críticos do
mainstream tampouco tem sequer um texto relevante
sobre videoarte no Brasil.

Por outro lado, muito do que foi produzido em


termos de arte e mídia no Brasil, nos anos de 1970,
Escrever sobre a Letícia me coloca muitas dificuldades. foi perdido. Grande parte dos trabalhos de xerox
Não sou apenas filho dela, sou também filho de seu e arte postal, bem como de vídeo e videotexto
trabalho. De fato, muito do que eu faço, seja no plano da foi perdida, seja porque tratavam-se de materiais
criação artística, seja no plano intelectual, me remete de frágeis, seja por causa da obsolescência dos
alguma forma ao seu trabalho. Por outro lado, eu fui não equipamentos, seja pelo despreparo da instituição
apenas uma testemunha atenta de sua obra mas também da arte do Brasil (que inclui os museus, os
um colaborador em níveis muito diversos, sempre presente colecionadores e os artistas) no que diz respeito
e interessado: fui modelo, fui câmera, fui fotógrafo, fui ao arquivo. Mais de um terço dos vídeos de
produtor e fui mesmo co-autor. De forma que escrever Letícia foram perdidos porque ela enviava para
sobre ela me dava a estranha impressão de estar, em muitos as exposições seus próprios “masters”, uma vez
momentos, escrevendo sobre mim também., que não tinha, à época, como fazer cópias de seus
trabalhos2.

Em geral, a obra de Letícia é conhecida por meio


1
Trata-se de uma frase dita em um vídeo de Letícia Parente intitulado A Chamada de seus vídeos. Entretanto, o vídeo não foi sequer o
(1978), material considerado perdido. Na própria descrição da artista: “A artista seu principal meio de expressão. Ela foi iniciada em
entra num apartamento, chega à sala onde numa mesa está um gravador de som
e um telefone. Grava numa fita a pergunta: ‘ALÔ, É A LETÍCIA?’. Repete a arte tardiamente, com 40 anos (1971), nas oficinas
pergunta muitas vezes. Pára a gravação. Volta a fita. Aciona de novo o gravador de Ilo Krugli e Pedro Dominguez, no Rio de Janeiro.
e deixa a pergunta ecoando. Liga o telefone para o seu próprio apartamento e
deixa o fone perto do gravador. Sai do apartamento, desce as escadas, chega à Já de volta a Fortaleza, depois de participar de
rua, desce a ladeira, entra no seu próprio prédio, sobe as escadas, chega à porta de várias exposições coletivas e receber um prêmio de
seu apartamento, abre a porta com a chave, escuta o telefone tocando, retira-o do
gancho, ouve sua voz gravada perguntando: ‘ALÔ, É A LETÍCIA?’. Responde: ‘É aquisição do Salão de Abril, realiza, em 1973, sua
A LETÍCIA...’ primeira exposição individual (Museu de Arte da
Universidade do Ceará – MAUC) com um conjunto
de 29 gravuras.

Em 1974 se muda para o Rio de Janeiro, para fazer o


doutorado, e continua a freqüentar oficinas de arte. Entre
todos os seus professores, o único que deixou marcas
em sua obra foi Anna Bella Geiger, de quem ela herdou
um certo tipo de poética conceitual (ver mais adiante
o texto de Fernando Cocchiarale, A Terceira Via) na
qual se dissolve a separação entre os aspectos visuais
e conceituais da obra, entre arte e vida, arte e política.
Ainda no final de 1974, alguns colegas e ex-alunos de
Anna Bella constituem um grupo de arte decisivo para
seu trabalho futuro.

Entre 1974 e 1982, esse grupo, que passou a ser


conhecido como o pioneiro da videoarte no Brasil,
formado por Anna Bella Geiger, Fernando Cocchiarale,
Sônia Andrade, Ivens Machado, Paulo Herkenhoff,
Letícia Parente, Miriam Danowski e Ana Vitória Mussi,
produziu uma série de vídeos que circularam em grande
parte dos eventos de videoarte no país e no exterior. Na
verdade, o vídeo era apenas um dos meios empregados
entre muitos outros, como a fotografia, o audiovisual (a
projeção de slides com som), o cinema, a arte postal, o
xerox e a instalação.

A produção desse grupo de artistas, entre eles Letícia,


foi fundamental para a história da arte e mídia no
Brasil. Não apenas eles estão entre os pioneiros no uso

que se fez desses meios como sua produção teve um tremendo impacto entre seus pares. É
evidente que o grupo desempenhou um papel primordial.

Roberto Pontual costuma situá-los como parte do que ele veio a chamar de Geração 70
(entre os quais estão, além do grupo citado, Antônio Manuel, Maria Maiolino, Cildo
Meireles, Artur Barrio, João Alphonsus, Waltercio Caldas, Iole de Freitas, Tunga, entre
outros), composta por artistas de tendência experimental e/ou conceitual que surgiram
concomitantemente ao aprofundamento da crise do repertório modernista e formalista,
à emergência, no Brasil, dos novos suportes e meios de produção imagética (fotografia,
cinema, audiovisual, artes gráficas, arte postal, xerox) e dos novos espaços, entre eles, a
área experimental do MAM do Rio de Janeiro e o MAC de São Paulo.
O audiovisual

O audiovisual desempenhou um papel interessante e jamais


devidamente analisado na produção de alguns artistas nos
anos 70. Muito se falou sobre os Quasi-Cinema, de Hélio
Oiticica e Neville dʼAlmeida, por se tratar não apenas
de um audiovisual, mas de uma instalação audiovisual;
porém muito pouco sobre as experiências dos outros
artistas. Segundo Frederico Moraes, ele também autor de
algumas experiências de audiovisual, tratava-se de um
veículo propício à documentação das obsessões dos artistas
e dos problemas brasileiros, a exemplo do documentário
cinematográfico.

Letícia realizou uma meia dúzia de audiovisuais. Em seu


Eu Armário de Mim (ver imagem na pág. XX), ela nos
mostra uma série de imagens de um mesmo guarda-roupa
onde desfilam os objetos (roupas brancas, roupas pretas,
temperos, papéis amassados, condimentos, cadeiras, objetos
de culto) e as pessoas (em um deles, todos os cinco filhos
são colocados dentro do armário) da casa, compondo
ao mesmo tempo uma estranha taxionomia e um retrato
miniaturizado do lar e da artista. Ao mesmo tempo em que
vemos as imagens dos objetos que compõem essa estranha
taxionomia, escutamos a artista falar, sob a forma de reza,
cujo refrão é “Eu, armário de mim”. Como em outros
trabalhos dela (a série de arte xerox Casa, o vídeo In), as
imagens, objetos e gestos do cotidiano nos revelam uma
“arqueologia do tempo presente” (Letícia).
A arte postal

Letícia era profundamente construtivista, ou seja,


acreditava ser a realidade o ponto de chegada, e não
de partida. Não se tratava, portanto, para ela, de
representar uma realidade preexistente, mas de usar
as imagens para produzir um efeito de realidade.
Em seus trabalhos de xerox, temos distintas séries,
cujas mais conhecidas são Casa e Mulheres. Nelas,
a artista pretende utilizar códigos gráficos à sua
disposição para falar da condição da mulher em
nossa sociedade. A casa é mais do que apenas um
território ou um espaço neutro, mas a confluência de
signos e redes que nos compõem, nos produzem.

Em uma das imagens da série Casa, a artista propõe


um mapa de uma cidade composto por duas cidades
(ver imagem na pág. XX): a Cidade da Bahia
(como se chamava Salvador antigamente) e o Rio
de Janeiro. Essa é a cidade imaginária de Letícia
e antevê, de alguma forma, a cidade relacional, a
cidade-rede, cidade topológica, concebida no projeto
de Nelson Brissac, Brasmitte, projeto que une a
cidade de São Paulo à cidade de Berlim por meio
dos bairros Brás e Mitte. Letícia era uma artista
do pensamento topológico, heterotópico: sua casa
é feita de signos e códigos diversos, de redes e de
relações.
Xerox

A questão do corpo na arte vem sendo discutida de forma exaustiva nestes últimos anos. No Brasil, desde o “quase
corpo” da obra neoconcreta, que via na obra de arte um “prolongamento da corporalidade”, aos happenings e
performances dos anos 60, em que o corpo do artista se tornou um dos principais personagens por meio do qual as
obras vieram a se revelar como um processo de produção de subjetividade. Trata-se, antes de mais nada, de mostrar
que o corpo é por natureza algo que escapa aos modelos de racionalidade e disciplinaridade cartesianos, iluministas,
fordistas, tayloristas. O corpo é fundamentalmente da ordem da produção, do desejo, do inconsciente, algo que está
sempre escapando ao processo de reificação do corpo como dado, como ordem, como modelo. E mais, o corpo não é
espaço, visto que é processual, não apenas porque se inventa e se reinventa sem cessar, mas porque vai até onde vão os
nossos hábitos e desejos.

Muito do trabalho de Letícia bebeu desta fonte, de uma espécie de neo-kantismo, seja ele estruturalista ou
bachelardiano, em que a estrutura é uma categoria topológica e virtual, pura condição de possibilidade do que vemos,
sentimos e fazemos. Seguindo essa linha de pensamento Letícia sempre parte do corpo ou da casa como os lugares
privilegiados para exprimir ao mesmo tempo o muro que separa o que liberta do que aprisiona. É nesse sentido que
a nosso ver ganha importância a imagem do xerox do alfinete (ver imagem na pág. XX), ao lado do qual se escreve
“liberta, aprisiona”.

Em outro de seus xerox (ver imagem na pág. XX), vemos uma série de imagens dos quadros de Brueghel, nos quais os
personagens são como que aprisionados, sujeitados, amordaçados por meio de cestas e gaiolas. Trata-se, aqui, de uma
imagem recorrente na obra da artista, para quem se a arte tem um papel, é porque ela nos leva a repensar os processos
de subjetivação.
Fotografias

Uma das séries mais conhecidas do trabalho fotográfico de


Letícia é a Série 158, em que ela se apropria de imagens de
rostos de modelos em revistas femininas. Ela submete as
imagens dos rostos a deformações de forma a tornar um rosto
mais longilíneo ou o contrário (ver imagem na pág. XX). Essa
ação visa a deflagrar uma problematização das taxionomias
caracterológicas, que tendem a interpretar o determinismo
de certos aspectos físicos sobre os aspectos psicológicos.
Curiosamente, esse trabalho nos chama a atenção para os artistas
do digital, que vieram a produzir deformações dos rostos por
meio do uso do Photoshop (é o caso, por exemplo, do trabalho
de Helga Stein). Na verdade, quando se vê, hoje, o trabalho de
Letícia, percebe-se que a deformação do rosto não tinha nenhum
sentido puramente imagético, visava-se desencadear uma
problematização dos modelos sociais de apreensão do rosto.

Em uma outra série fotográfica sem título (ver imagem na


pág. XX) – fotografias que eu fiz do corpo da própria artista
a seu pedido e em função de suas idéias – , Letícia submete
seu corpo a uma série de torções e tensões. Aqui, vemos
claramente que o corpo não é mais tomado em uma imagem
apaziguadora, cartesiana, do corpo. Portanto, o corpo não é
mais o que separa o sujeito do objeto, ou melhor, o pensamento
de si mesmo, mas é como algo no qual se deve “mergulhar” (o
mergulho no corpo era como que a fórmula produzida por Hélio
Oiticica para exorcizar o platonismo, o purismo, o formalismo
modernista) para ligar o pensamento ao que está fora dele, como
o impensável.

O que é o impensável? É, em primeiro lugar, o intolerável


que leva ao grito silencioso de um corpo torturado
involuntariamente, silenciosamente; é o desespero que leva a
artista a contorcer seu corpo até se deformar em gestos inúteis,
vazios, inqualificáveis; é a cerimônia estranha, que consiste 2
Isso foi, aliás, o que a motivou a realizar duas cópias do seu vídeo
em forçar o corpo a se libertar por meio de atitudes fora de Marca Registrada, um preto-e-branco (1975) e outro colorido
(1980). Na verdade, o master da primeira versão foi dado como
convenções; é, sobretudo, submeter o corpo a uma cerimônia, perdido, em uma mostra na Argentina, no CAIC, tendo retornado
teatralização ou violência, como no caso em que o corpo tenta se anos depois.
mostrar em uma postura impossível.
O vídeo

Nos vídeos dos pioneiros, em geral realizados em um único plano-seqüência, gestos cotidianos repetidos de forma ritualística
– subir e descer escadas, assinar o nome, maquiar-se, enfeitar-se, comer, brincar de telefone-sem-fio – são encenados de modo a
produzir uma imagem do corpo. Nos vídeos do grupo, a imagem é uma inflexão, uma dobra, mas a dobra passa pelas atitudes do
corpo, pelo “mergulho no corpo” – termo de Oiticica que retomamos como expressão da reversão estética, a cura da obsessão
formal modernista.

A questão do corpo retorna aqui como um conceito ou atitude crítica, que visa a nos forçar a pensar o intolerável da sociedade
em que vivemos. Em Passagens (1974), Anna Bella Geiger sobe e desce lentamente escadas em um ritmo constante, como
em um rito de passagem; em Dissolução (1974), Ivens Machado assina o seu nome uma centena de vezes até ele se dissolver;
Sônia, em Sem Título (1975), entra em transe como forma de reagir contra o intolerável da televisão que atrapalha a sua
refeição; em A Procura do Recorte (1975), Miriam Danowski recorta bonequinhos em folhas de jornal como forma de
transmutar os pequenos gestos em rituais transgressivos; em Estômago Embrulhado, Paulo Herkenhoff transforma o ato visceral
de comer jornal em uma irônica pedagogia de como “digerir a informação”; em um vídeo coletivo, Telefone sem Fio (1976), o
grupo de artistas dispostos em círculo brinca de telefone-sem-fio enquanto a câmara roda em torno deles e o espectador assiste
ao processo de transformação da informação em ruído, revelando, por meio de uma brincadeira popular, uma das principais
questões teóricas da comunicação (o ruído é parte do processo de comunicação e não apenas interferência).

A obra de Letícia Parente é marcada pela idéia de extrair do corpo uma imagem que nos
dê razão para acreditar no mundo em que vivemos. Os vídeos (ver imagem na pág. XX)
dessa artista são, cada um deles, preparações e tarefas por meio dos quais o corpo revela
os modelos de subjetividade que o aprisionam. Em Marca Registrada (1975), Letícia,
seguindo uma brincadeira nordestina, costura, com agulha e linha, na planta do pé, as
palavras Made in Brasil, ao mesmo tempo em que revela o processo de coisificação do
indivíduo, presente em vários de seus vídeos; no vídeo In (1975), vemos a artista entrar
em um armário, como se tivesse virado roupa; em Tarefa I (1982), a artista se deita em
uma tábua de passar e uma preta passa a sua roupa a ferro (o contraste entre as mãos da
negra que passa a ferro, mas cujo rosto está fora de quadro, e a mulher branca deitada na
tábua de passar faz deste vídeo uma versão tropicalista do quadro de Manet); no vídeo
Preparação I, a artista se prepara para sair, mas ao se maquiar ela cola esparadrapo
em seus olhos e em sua boca, como para revelar que
seus olhos e sua boca são pura máscara, ditada pelas
convenções; em Preparação II, a artista se aplica
uma série de vacinas contra preconceitos (racismo,
colonialismo cultural, mistificação da arte, etc.).

Esses vídeos guardam muitas características comuns:


são todos eles realizados no espaço doméstico; a artista
é quem realiza as ações que remetem (quase todas)
às ocupações femininas (guardar roupa, passar roupa,
costurar, se maquiar, etc.); nenhum deles contém falas;

todos são realizados em plano-seqüência. Isso me fez pensar na possibilidade de fazer uma instalação, onde eles fossem
projetados lado a lado, em uma grande parede de 20 metros, de forma que os aspectos comuns – a coisificação da
pessoa, a condição feminina, a opressão das tarefas e preparações cotidianas – fossem potencializados.

Para alguns críticos, os trabalhos de Letícia e do seu grupo são como que registros de performances. Isso porque os
aspectos técnicos da filmagem e da montagem são relegados a um segundo plano. Em todo caso, o que importa é que
nos vídeos dos pioneiros a câmera e a filmagem agem sobre os corpos e personagens como um catalisador. Entretanto,
hoje fica cada vez mais claro que os trabalhos de videoarte diferem dos outros em parte por uma espécie de secura,
de quase ausência de decupagem e de montagem. Na verdade, há um desconhecimento da própria história do cinema
de artista aliado a uma certa postura de colonizado. Não creio que se dissesse isso sobre filmes de Andy Warhol e
Michael Snow. Os corpos monogestuais de Warhol (alguém dorme (Sleep), alguém come (Eat), alguém “experimenta”
um boquete (Blow Job), alguém se beija (Kiss) e os planos-seqüência vazios de Snow (os 45 minutos de zoom de
Wavelength, as três horas de movimentos panorâmicos de La Région Central) são uma das principais tendências do
cinema experimental, em um processo de radicalização dos tempos mortos do cinema do pós-guerra (Neo-Realismo,
Nouvelle Vague, Cinema Novo mundial).
As instalações

Dentre todos os seus trabalhos, o mais expressivo


e atual a nosso ver é a instalação Medidas (ver
imagem na pág. XX). Em primeiro lugar, Medidas
reúne os principais conceitos e elementos do
trabalho de Letícia: o corpo, o rosto, a transformação
da ação física, da presença em ação cognitiva,
e sobretudo a problematização dos modelos de
produção de subjetividade. Em segundo lugar,
Medidas utiliza os principais suportes e meios
de expressão utilizados por Letícia ao longo de
sua carreira, a fotografia, o audiovisual, o xerox,
a instalação, entre outros. Evidentemente, os
novos meios de produção de imagem não são, no
caso de Letícia, determinantes – neles, o meio
não é a mensagem, como diria McLuhan –, mas
são sem dúvida condicionantes, isto é, são a
condição. Medidas é, a nosso ver, a primeira grande
manifestação de arte e ciência no Brasil.

O texto de Roberto Pontual, que escolhemos


publicar neste catálogo, nos apresenta uma descrição
bastante correta da exposição Medidas. Entretanto,
há uma série de questões a ser aprofundadas. Uma
delas diz respeito à forma como Letícia se aproxima
da estratégia estruturalista, em particular Michel
Foucault, de desnaturalizar o corpo, de pensar o
corpo como algo que é produzido pelas forças
bio-políticas. O que é interessante no pensamento
estruturalista, que é um pensamento do dispositivo
por excelência, é que ele procura pensar os campos
de força e relações que constituem os sujeitos e
signos dos sistemas culturais para além de suas
particularidades psicológicas (pessoalidade)
e metafísicas (significação). O pensamento
estruturalista é relacional, embora tenha guardado
um resquício de idealismo, seja porque acredita
em estruturas essenciais e formas a priori (por
exemplo, o incesto e castração para a psicanálise
e para a antropologia), seja porque acredita na
homogeneidade dos elementos que formam a
estrutura (são da mesma natureza).

Segundo Foucault, um dispositivo possui três


níveis de agenciamentos: 1) conjunto heterogêneo
de discursos, formas arquitetônicas, proposições
e estratégias de saber e de poder, disposições
subjetivas e inclinações culturais, etc.; 2) a natureza
da conexão entre esses elementos heterogêneos;
3) a “episteme”ou formação discursiva no sentido
amplo, resultante das conexões entre os elementos.
Na verdade, a visada sistemática da concepção

foucaultiana está plenamente contemplada na etimologia da palavra “dispositivo”.

Há dispositivo desde que a relação entre elementos heterogêneos (enunciativos, arquitetônicos, tecnológicos,
institucionais, etc.) concorra para produzir no corpo social um certo efeito de subjetivação, seja ele de normalidade e de
desvio (Foucault), seja de territorialização ou desterritorialização (Deleuze), seja de apaziguamento ou de intensidade
(Lyotard). No caso de Letícia, as medidas são produzidas no sentido de produzir no corpo dos visitantes um efeito de
desocultamento dos dispositivos sociais.

Nesse sentido, o que ela faz é criar uma situação, um dispositivo (na verdade, um conjunto de dispositivos) interativo
de medição do corpo. Não se trata de forma alguma de medir para fazer o visitante (aqui, o espectador já não tem mais
nada de espectador, ele é “interator” no sentido mais forte desta palavra) conhecer o seu corpo. A estratégia é muito

mais desvelar o trabalho, ocultado pelo sistema produtivo,


por meio do qual produzimos nosso corpo ao tentarmos
nos adequar aos modelos que o sistema secreta, em função
de suas estratégias de saber, de poder e de produção de
subjetividade (os três eixos principais do sistema de
pensamento foucaultiano).

Na verdade, a exposição de Letícia joga com duas


estratégias básicas: um dispositivo de mobilização do
espectador (que age no nível sensório-motor, ou seja, das
ações perceptivas, físicas, afetivas), no sentido de operar
as medições solicitadas, por outro lado, um processo de desocultamento, no sentido de
levar pouco a pouco a perceber que as ações que fazemos no nível sensório-motor têm
como conseqüência a crença de que nosso corpo é natural, quando na verdade ele é fruto
de uma negociação permanente entre os modelos do sistema (as normas, as prescrições, a
disciplina, o conceito de saúde, do que é ou não melhor para o corpo, enfim, os modelos de
racionalidade e de funcionalidade do corpo) e os nossos próprios desejos.

Trata-se fundamentalmente de uma exposição de arte e ciência na medida em que


ela desencadeia no visitante um confronto entre seus corpos e desejos singulares e os
modelos científicos (ou pseudocientíficos) que ditam as normas e as prescrições, que
pretendem calibrar a relação entre risco e prazer sobre os nossos corpos. Ao contrário das
manifestações de arte e ciência em geral, aqui a ciência é desnudada no sentido de que
não é neutra; ela é o campo por excelência de produção de subjetividade. Portanto, ao
contrário da maior parte dos artistas que usam a ciência para produzir arte (mas na maior
parte dos trabalhos de arte e ciência a ciência é o personagem principal da obra, de forma
completamente anódina), Letícia produz arte como uma forma de nos libertar de uma certa
visão da ciência.

Para terminar este texto, gostaria de agradecer a Daniela Bousso pelo convite que me foi
feito para realizar esta exposição no Paço das Artes. Gostaria de agradecer à equipe e aos
amigos do Paço das Artes, em particular a Angela Santos e Marcelo Amorim, bem como
aos colegas Fernando Cocchiarale, Marisa Flórido, Cristiana Tejo, Daniela Castro, Cláudio
da Costa e Katia Maciel por terem aceito o convite para escrever sobre o trabalho de Letícia
Parente.
Letícia Parente: a
videoarte como prática da
divergência
Luiz Cláudio da Costa
O vídeo chegou relativamente cedo ao Brasil e seria rapidamente absorvido pelos artistas plásticos interessados em
novas experimentações e meios não tradicionais. Uma primeira geração de artistas de vídeo surge em 1974 no Rio
de Janeiro, por ocasião de uma mostra de videoarte – realizada na cidade da Filadélfia, nos Estados Unidos – para a
qual alguns cariocas foram convidados. O Rio se tornaria, então, pioneiro na videoarte no país, pela intermediação
de Jom Tob Azulay, que trouxera um equipamento portapack dos Estados Unidos. Foi com esse aparelho que
os artistas cariocas puderam iniciar seus trabalhos de expansão das artes plásticas. São Paulo só começaria a
produzir vídeos a partir de 1976, quando o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo adquiriu
o equipamento e o disponibilizou para os artistas da cidade. A primeira geração de videoarte no Brasil incluía
Sônia Andrade, Fernando Cocchiarale, Anna Bella Geiger e Ivens Machado. No ano seguinte, três outros artistas se
juntariam àqueles: Paulo Herkenhoff, Letícia Parente e Míriam Danowski (MACHADO, 2003).

Letícia formou-se e doutorou-se em química, e a relação com a ciência e o pensamento científico aparece em
seus trabalhos artísticos, seja para problematizar todo pensamento sistematizante e unificante, seja para encontrar
no método científico uma possibilidade de pensamento sensível. Sua primeira exposição individual, Medida1
ocorreu no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1976. Nessa exposição, Letícia induz os participantes a
executar ações físicas, cognitivas, emocionais e reflexivas sobre si mesmos e a registrar os dados de mensuração
e classificação (formas, proporções, capacidades físicas, tipo sanguíneo, etc) em fichas individuais. Letícia
pretende dos participantes “os conhecimentos de parâmetros pessoais”, a “busca de identificação com modelos

estáticos preestabelecidos”, “uma tipologia e


caracterologia (pseudocientíficas e obsoletas)”, a
“constatação por analogia do clima competitivo do
mundo contemporâneo, sob formas disfarçadas de
informação” (Projeto da exposição Medidas). Nessa
exposição, Letícia mostra um pensamento crítico
em relação ao método científico, ao mesmo tempo o
interesse na construção de tipologias e classificações
que servem ao pensamento problemático e
autônomas. Parece antes desejar colocar esses círculos
da prática e do saber – seus dispositivos, instituições
e discursos – em contato para atrito e divergência,
desfazendo a lógica de oposição entre verdadeiro e falso.
Letícia conjuga arte, ciência e vida, no sentido de fazer
surgir um conhecimento do corpo cotidiano por meio de
formalidades e cerimônias que problematizam as ações
programadas e as classificações sistematizadoras da
ciência.

dá a Letícia grande liberdade para transitar por


Nos trabalhos em vídeo de Letícia Parente, câmera e
campos distintos e mexer com meios artísticos e
corpo agem sem que um ou outro esteja vinculado à
não artísticos. A artista trabalhou com gravura,
representação de uma ação dramática. Sem que algo seja
fotografia, xerox, fichas de documentação,
propriamente representado no sentido dramático, o corpo
audiovisual com slides, jornais. Esse lugar
da artista executa uma ação única solitária (Preparação I,
limítrofe em que se encontra como profissional
Marca Registrada, In, Nordeste) ou com a participação
da química e artista plástica, fronteira a partir da
de uma outra pessoa apenas (Quem piscou primeiro?,
qual parece desejar fundar seu trabalho artístico,
Especular, Tarefa I, Carimbo). Em todos esses vídeos,
mostra, sobretudo, a necessidade de questionar
percebemos a importância do comportamento do corpo
esses mesmos campos e seus dispositivos, assim
cotidiano disfarçado por teatralizações ironizantes, de
como os discursos proporcionados. Mas questioná-
modo a problematizar a subjetividade sistematizada e
los não pressupõe que a artista perceba nesses
internalizada nesse corpo dominado por poderes, saberes
meios uma especificidade ou unidade que deva
e discursos não visíveis no âmbito de sua fisicalidade.
ser encontrada por seu olhar, seus procedimentos
A cerimônia falsificante que impõe ao corpo posturas
artísticos ou reflexão. Ao contrário, parece mesmo
excêntricas – pendurar-se como roupa num cabide e
buscar o pensamento heterogêneo por meio
trancar-se no armário como em In, ou deitar-se sobre a
dos dispositivos que questiona e problematiza.
tábua de passar e ser literalmente passada a ferro por uma
Nesse sentido não interessa à artista a relação
mulher negra como em Tarefa I – visa atingir potências
de reflexividade sobre um gênero ou uma esfera
desconhecidas com o riso, a astúcia e a alegria.
do conhecimento como se essas regiões fossem
A artista proponente e o participante convidado executam a
ação única extravagante. Os gestos e as atitudes dos corpos
correspondem a gestos e a atitudes da câmera que se percebe.
A câmera fixa ou móvel, consciente de si, enquadra o objeto
visado, mas como num filme caseiro e despretensioso. Não
é aqui o enquadramento o que importa, mas aquele registro,
aquela imagem com todas as imperfeições, a ausência de
foco, a imprecisão. A postura falsificante do corpo precisa ser
registrada como um corpo no cotidiano da vida familiar. É a
sede do registro o que importa: a exigência de apropriar-se do
presente, sobretudo no engano da teatralização, para em seguida
fazê-lo variar, constituindo um pensamento impróprio, mas
imanente àquele corpo submetido àquela situação excêntrica.
É essa necessidade que afeta a câmera nos trabalhos de Letícia
e desfaz o propósito de representar aquilo que ela visa, assim
como o de refletir sobre o dispositivo. O interesse da câmera é
antes o de constituir uma imagem do pensamento como traço da
situação, como cicatriz e não como significação. O objetivo não
é nem narrar nem propor um discurso sobre o corpo ou sobre
a obra num retorno auto-reflexivo. Ainda que haja esse retorno
sobre o corpo, sobre o dispositivo de registro e sobre o trabalho
sendo executado, o que importa é colocar o dispositivo e o
corpo em contato com o que lhe é divergente: a artisticidade,
a encenação. Importa colocar a arte em contato com a vida,
ambos num processo de contrafação mútua, fazendo assim
brotar um pensamento no corpo. A intenção não é auto-
reflexiva. Não há uma ação desdramatizada que se desenvolve
na frente do espectador que necessita tornar-se consciente da
câmera e dos seus processos de produção. Esse procedimento
de conscientização dos dispositivos foi proposto pelo cinema e
pela arte modernos. Já temos essa consciência proporcionada
pela cultura recente. Falta-nos o efeito sobre nossos corpos e
nossas vidas, mais que sobre nossas mentes e nossas obras. Por
isso Letícia se propõe a ações físicas insignificantes no interior
de um cotidiano diminuto e sem importância exibidas diante de
uma câmera que as registra sem desprezo nem admiração. Os
primeiros espectadores serão a pessoa com a câmera e o artista
em performance. Essa repetição da imagem e a variação do
atual e familiar é tudo o que importa.

As artes plásticas no Brasil nos anos 70, fortemente vinculadas


à cena internacional, viviam um momento muito rico, com os
desdobramentos de problemas que passavam das condições
espaciais da percepção às suas bases corpóreas. O espaço
bidimensional da tela já havia sido problematizado pelo
Neoconcretismo e esses artistas propuseram não-objetos no
espaço da galeria que exigiam a participação do corpo do
espectador, ora manipulando objetos, ora adentrando espaços
envolventes. Hélio Oiticica e Lygia Clark radicalizaram
essa transformação ao promover o corpo como lugar, meio e
suporte de suas expressões artísticas em trabalhos sensoriais.
A experiência de novos suportes levara Hélio Oiticica a
invenção dos Quase-cinema, série de trabalhos audiovisuais
que utilizava projeção de slides, realizada em Nova York no
início dos anos 70. Esses trabalhos, entretanto, não foram
expostos publicamente na época. Outros artistas também
experimentavam a expansão dos meios com filme de 16 mm
ou super-8: Antônio Dias, Barrio, Iole de Freitas, Lygia Pape,
Rubens Gerchman, Agrippino de Paula, Arthur Omar, Antônio
Manuel e o próprio Oiticica (CANONGIA, 1981).
Freqüentemente, para esses artistas, o interesse na
imagem técnica vinha da possibilidade de se registrar
novas experiências corporais. Iole de Freitas, na série
Glass pieces/life slices (1974), apresentava múltiplas
faces de seu corpo, fragmentado por espelhos. Lygia
Pape, depois de participar lateralmente em cinema
como programadora visual para Nelson Pereira dos
Santos, Joaquim Pedro de Andrade e Glauber Rocha,
decide experimentar o super-8 na direção oposta àquela
conflitos e contrapontos (EISENSTEIN, 1990). Lygia Pape
que considerava de “resultado amorfo, bem comportado
reinventa esse procedimento simples do cinema tradicional
e cinemanovista” (CANONGIA, 1981: 43). Com Eat
e cria um problema para a medida metricamente calculada
me (1976), Lygia constrói uma montagem métrica, não
colocando-a em contato com a forte conotação erótica de seu
dependente de ação dramática, a partir de dois planos-
tema: o erotismo desmontando a racionalidade matemática.
base de uma boca masculina que engole e expulsa uma
O problema da montagem no cinema mundial e também no
pedra sobre a língua (CANONGIA, 1981).
Brasil era retomado em grande parte por influência dos filmes
e reflexões de Jean-Luc Godard desde os tempos de crítico,
Em todos esses casos em que há um forte investimento
no final dos anos 50 e início dos anos 60, nos Cahiers de
do corpo e da subjetividade, ainda que diferentemente
Cinema, revista francesa de cinema que ajudou a impulsionar
em outros filmes de artista da época, a montagem
a conhecida Politique des auteurs e a Nouvelle Vague. O
aparece como procedimento que interessa ao artista.
pensamento plástico-cinematográfico de Godard, fundado
Assunto de debate, no sentido de uma recuperação
na montagem que utilizava cenas, sons e escritos gráficos
dos escritos de Eisenstein e Vertov pela crítica
na imagem em disjunção, colocava pensamentos, tempos e
cinematográfica daqueles anos, a montagem torna-
gêneros artísticos, literários e cinematográficos em relação de
se procedimento integrante na produção dos filmes
exterioridade paradoxal, avultando o sentido e lhe devolvendo
de alguns artistas plásticos envolvidos com cinema.
as múltiplas direções.
A montagem métrica - que segundo a reflexão de
Eisenstein, soma-se à rítmica, à tonal, à atonal e à
Nos anos 70, os artistas plásticos vinham de um contexto que
intelectual - utilizada por Lygia Pape é, dentre outros,
colocava em dúvida a legitimidade dos suportes tradicionais.
um dos processos mais elementares na construção de
composição formal. O outro texto publicado na Revista
Malasartes, do crítico Ronaldo Brito, esclarecia essa
função do objeto artístico como fetiche para o mercado
e para a legitimação de uma classe social (BRITO,
1975).

Era um momento de questionar a experiência


estética fundada nas formas sensíveis do objeto e
no sentimento de gosto da recepção contemplativa,
marcando a passagem do objeto ao evento que artistas
provenientes do Neoconcretismo já vinham efetuando.
Afloravam também os questionamentos sobre a função da A problematização do objeto estético enquanto produto
arte, o circuito e o mercado em que a obra se insere. Como final levaria os artistas a valorizarem mais os processos
fetiche de consumo e signo de status social, a obra de arte é de investigação, as mudanças e transformações
entendida antes como parte de uma engrenagem do que objeto intermináveis de um evento sempre por vir. A crítica
cultural significante. A Revista Malasartes do fim do ano de de arte, por sua vez, não podia mais analisar somente
1975 publicaria dois textos importantes relativos às questões os elementos formais da composição de uma obra que
que o meio artístico estava interessado no momento. O célebre discursa sobre seu próprio meio. A crítica haveria de
artigo de Joseph Kosuth, de 1969, traduzido para a Malasartes, incluir a recepção e o espaço no qual o trabalho se
foi fundamental para os desdobramentos das artes plásticas de insere, as relações que a obra constitui com o contexto
modo geral e, especificamente, para a arte conceitual. Kosuth da arte. A obra tendia a desaparecer enquanto objeto
levantava os problemas da separação entre a arte e a estética de contemplação e tornava-se, primeiramente, objeto
e perguntava-se sobre a função da arte. Tratava do estatuto de manipulação e, posteriormente, espaço para a
do objeto artístico e da relevância, para o pensamento e para participação e a mobilização corporal, assim como
a produção de arte, do contexto institucional em que esta se para a ocorrência de um evento por vir. A arte tornava-
encontra: o museu, a galeria, o curador, o crítico, o historiador, se antes o lugar para o investimento e a produção
etc - “a existência dos objetos, ou seu funcionamento dentro de de subjetividades, um pretexto para agenciamentos
um contexto de arte, é irrelevante para o julgamento estético” estéticos, mas também filosóficos, sociais,
(KOSUTH, 1975). O meio artístico tornava-se consciente de antropológicos, políticos.
que o objeto de arte participa da constituição de um sistema
de circulação e que seu valor não provém apenas de sua Com essa estética da desaparição em que a obra
para contemplação se vê desmaterializada, ao processo da obra a seus lugares tradicionais. O cinema
problematizada e desdobrada em eventos, tinha seu espaço próprio para acontecer, a sala escura. Era
reflexões, depoimentos, notas, escritos. E desse preciso possibilitar a participação corporal na produção do
processo fazem parte o envolvimento físico- sentido de outros atores envolvidos no processo fílmico - os
corporal e mental-conceitual tanto do artista como espectadores. Coisas inesperadas estavam por vir.
do espectador. Com isso surge, no rastro dessa
errância de obra, a prática da performance como A nova tecnologia de captação de imagem em movimento
indispensável, uma vez que o produto, obra ou que chegava ao Brasil com o portapack permitiria fazer
objeto final tornavam-se desobrigados. A tendência o que o cinema não era capaz: ver o registro da imagem
à dissolução do objeto levava muitos artistas a se no mesmo instante de sua produção, além de possibilitar
interessarem por esse novo campo de expressão, a participação de outros atores no processo. No que
o vídeo. A imagem-movimento era atraente para diz respeito às performances, o vídeo permitiria tornar,
o artista interessado nas dobras da obra sempre imediatamente, um trabalho de corpo em acontecimento
ausente, porém estendida em registros fotográficos, de imagem, o que daria complexidade temporal ao
fílmicos, literários, etc. O cinema, porém, tal evento presencial por sua imediata virtualização. Na
como havia se estabelecido, colocava o artista- imagem do vídeo, a presença tornava-se problemática,
autor e o espectador em lugares distintos e a obra desmaterializada, reflexiva e agenciadora de duas formas de
cinematográfica, ainda que questionando os sentidos presença, a física-referencial e a virtual-indicial Essa mídia
e as identidades fixas, devolvia os atores vinculados viria somar às novas idéias vigentes da obra ausente, que
exigia tanto do artista como do espectador desdobramentos
fantasmas, elaborações conceituais, movimentos corporais e O conhecimento do trajeto de Letícia é ainda
processamentos temporais. Em resumo, o vídeo exigia uma precário, apesar do esforço de alguns poucos
assimilação do sentido como marca e cicatriz da experiência interessados que vem organizando o acervo da
física. artista. Os primeiros trabalhos de Letícia datam
de 1975, sendo Marca Registrada o vídeo mais
É nesse contexto que os trabalhos de Letícia Parente conhecido e perturbador para a época. Nesse
surgem, tornando ainda mais complexa a relação com o trabalho, a artista borda com uma agulha na sola do
espectador. Suas performances não existiriam para uma próprio pé a frase “Made in Brasil”. É interessante
platéia, mas tão somente para a câmera que a registrava. notar a ausência de composição, o desprezo pela
Um trabalho de videoarte não seria apresentado em salas estruturação, a improvisação tanto da câmera que
escuras com espectadores sentados, mas em qualquer lugar observa quanto da performer que necessita refazer
onde houvesse um equipamento de exibição e uma TV. Por seus gestos quando um ponto de seu bordado se
falta de recursos técnicos acessíveis aos artistas naquele desfaz. Não há uma composição e nem mesmo
momento, os vídeos produzidos pela primeira geração não construção de obra. Apenas o registro de uma ação
seriam editados. Manteriam, ao contrário, apenas o registro familiar e sem grandes pretensões, ainda que a
do gesto performático do artista, o confronto da câmera com frase que Letícia borda em seu pé tenha sentidos
seu corpo - procedimento mais elementar dessa nova arte simbólicos precisos vinculados ao contexto cultural
que surgia. e político da época. Mas o que impropriamente nos
perturba é o efeito, a variação do atual visado que
indiferença, a falta de sentido, a tristeza, a esperança, etc.

Marca Registrada ironiza várias noções, conceitos e valores


dos anos 70, criando estranhos paradoxos. Se a frase é
uma referência à artista, tudo está fora de lugar, porque é
redundante e óbvio. A ironia é manifesta. Se a referência
é o discurso vigente da identidade cultural unificada
não podemos fixar. na comunidade imaginada da nação, o desprezo parece
evidente uma vez que a inscrição é bordada na parte mais
Havia um discurso cultural no momento que baixa de seu corpo. O fato de ser brasileira ou de participar
privilegiava a noção “nacional-popular”. Havia, dessa comunidade imaginada é o que menos importa. E se a
por outro lado, os artistas da geração 70 que referência da inscrição é a obra que produz, sua indiferença
problematizavam toda idéia de comunidade também é total, uma vez que é coisa a ser pisada. É
nacional, afirmando a diferença, a subjetividade e negada a noção de obra. O que faz a obra é a experiência
o corpo. Havia um governo repressor de um lado do descentramento que ela é capaz de produzir, por isso
e a esperança de abertura política de outro. Havia a execução de ações excêntricas. O ato de bordar, na
a tristeza das mortes promovidas pela ditadura cultura patriarcal brasileira, é função da mulher. Bordando
e a esperança de um Brasil desenvolvido e de sobre a sola do pé, Letícia afirma e rejeita a experiência
livre mercado. Havia as experimentações dos da identidade feminina vigente em nossa cultura. Letícia
artistas conceituais e a crença num mercado para produz todos esses movimentos, fazendo justamente o que é
a arte internacional produzida no Brasil. Todas as dela esperado. Vai ao encontro do esperado com a imagem
contradições parecem se multiplicar nesse vídeo do inesperado.
feito sem pretensão, sem estrutura, sem composição.
Registrando em seu próprio corpo as múltiplas Para além dos sentidos simbólicos, há ainda outros
contradições do momento, Letícia afirma e rejeita indizíveis. Fazendo penetrar a fina agulha nas camadas
os vários discursos vigentes na cena artística dos superficiais de sua pele, invadindo a superfície de seu
anos 70: a noção de obra de arte como objeto para corpo com aquele instrumento pungente, Letícia desarticula
um mercado de elite, a idéia de identidade nacional, silenciosamente uma cadeia de experiências, valores,
a mulher de classe média, o cinema, a política, a conceitos e idéias enraizadas na cultura artística e na
ditadura, a diferença, o sentimento de desprezo, a cena política do momento. Mais do que minar valores
a afirmação de uma necessidade, um desejo: falsear
o corpo é inventar um sujeito, é potencializar outros
modos de ver e sentir. Outros comportamentos
implicam em novas subjetividades. Essa é a política
do corpo praticada por Letícia Parente em seus
vídeos, o que mostra que o campo da estética não
diz respeito somente ao gosto e às formas, mas
também a uma esfera prática. A arte se expande
ao cotidiano e ao espaço da existência para retirar-
lhe a vida escondida nos escombros do corpo
disciplinado.
arcaicos substituindo-os com outros mais novos, Letícia dá
mobilidade aos sentidos. Parece antes colocá-los a mover-se Compartilhar a existência com o outro, descobrir-se
do que trocá-los por outros quaisquer que pudessem valer como um outro fez parte das pretensões artísticas
mais. Não há o novo a ser substituído pelo antigo, mas há de Letícia Parente. Dois vídeos de 1978, Quem
movimento crítico, questionamento. São justamente os Piscou Primeiro? e Especular reproduzem a relação
valores, sejam eles da arte, da cultura ou da política que entre duas pessoas, o primeiro na forma de um jogo
estão em questão. Afinal, um trabalho artístico exposto e o segundo, na forma de uma conversa absurda
sobre a sola do pé que tocará a terra, o chão, não é aceitável entre os participantes através de uma espécie de
para os valores de uma cultura que acredita que a arte eleva estetoscópio duplo. Não há dúvida nesses dois
o espírito. trabalhos, o diálogo que Letícia mantém com os
objetos relacionais de Lygia Clark, como Óculos,
O comportamento disciplinado de um corpo dócil que
de 1968. Nesse trabalho Lygia Clark adaptou óculos
age cegamente comandado por ordens que ele mesmo
de mergulho para a utilização de dois participantes
desconhece parece mesmo interessar a artista. Em
que captam imagens de si mesmos e do ambiente
Preparação (1974), Letícia se prepara para sair. Desviando
circundante por meio de espelhos que podem ser
dessa ação cotidiana simples e familiar por meio da
rodados conforme a participação. O objeto torna-se
teatralização, Letícia se coloca diante do espelho e cobre
lugar para estabelecimento de um diálogo entre os
os olhos e a boca com esparadrapos. Sobre eles, desenha
participantes. Os dois vídeos de Letícia Parente,
outros olhos e outra boca. O que se revela nesse trabalho é
produzidos dez anos mais tarde, mantém a mesma
ordem do jogo para potencializar o diálogo e a
relação entre os participantes. O objeto produzido,
o estetoscópio duplo, só faz sentido se utilizado
como processo de relacionamento intersubjetivo, de
são por isso antes mobilizadores de variações de identidades
aproximação com o outro, de contato, enfim, com
individuais e culturais fixas, apresentando a subjetividade
o estranho. No caso específico do vídeo Especular,
como extratos fluidos de interioridade e exterioridade, discurso
o objeto utilizado cria um estranho paradoxo que
e invenção, poder e construção, marca e ramificação.
mostra que a aproximação com o universo de Lígia
Clark não era superficial. O estetoscópio é um A arte nos trabalhos de Letícia Parente torna-se campo
instrumento de ausculta de sons internos do corpo de experiência, prática do estranhamento do hábito, do
(coração, pulmão, estômago, etc) ao passo que no comportamento e do mundo da cultura e das instituições. Em
jogo proposto por Letícia, o aparelho colocado no Nordeste (1981), vemos uma mala de couro rústico sendo
ouvido dos dois participantes não permite a ausculta aberta e em seu interior duas cobras vivas sobre um lençol
do espaço interior do outro. Mas interioridade e
exterioridade criam conexões e atravessamentos,
contato e disjunção. A frase que os participantes
repetem com variações múltiplas – “Eu quero ouvir
o que você está ouvindo de mim dentro de você”,
“Eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim do
que eu estou ouvindo de você dentro de mim”, etc
– indica o contato entre interioridade e exterioridade
que está se produzindo mútua e indistintamente,
num processo de repetição e variação, de estranho
acordo trabalhado na dissensão. Esses vídeos
branco. A pessoa, que jamais é identificada por seu rosto,
não são produzidos para a contemplação. Não são
manipula o lençol e modifica a posição das cobras. Nada
propriamente nem belos nem sublimes, ainda que o
sobre o nordeste brasileiro temos acesso nesse vídeo,
sejam impropriamente. Não são tampouco discursos
nada sobre o sertão tão presente nas telas de nosso cinema
estéticos auto-reflexivos, denunciadores do aparato
desde os anos 60, nenhuma representação do outro. A
artístico ou mecânico. O que não implica que não
identificação e representação não são mais possíveis, mas
haja aspectos contemplativos e auto-reflexivos
ainda assim é preciso inscrever sensações. A música dos
nesses vídeos. Apenas pretendemos enfatizar que
Novos Baianos insere às experiências de Letícia Parente
a pretensão é a de praticar um pensamento e uma
naquele momento pós-tropicalista em que a arte faz sentido
política de produção de subjetividade. Esses vídeos
enquanto experiência de expansão dos sentidos, das sensações e dos valores. Ao nomear Nordeste esse trabalho, Letícia
não propõe uma imagem da cultura nordestina, mas antes mobiliza a experiência singular dessa região de nosso corpo
cultural ao qual se dá o nome de “Nordeste”.

O vídeo tem algo da estranheza de Marca Registrada. Aqui, a agulha é substituída pela cobra. Surgem outra vez: a
presença do corpo sem identificação de um rosto, o vínculo forte com o presente da cultura. Mas outros elementos
renovam os problemas: a região do país em questão (o nordeste), uma canção urbana, o contato com o animal repulsivo.
Novos componentes se espacializam e se temporalizam numa mesma prática da disjunção, uma vez que não podem
ser sintetizados numa representação de nação ou de sujeito artista. O vídeo, registrando a ação despretensiosa daquele
que vemos na imagem, agencia forças. Mobilizando um corpo, arregimenta subjetividades. Agregando as sensações
perfurantes da agulha em Marca Registrada ou os sentidos de má índole da cobra, o que se percebe é uma fragilização
tanto da obra como do autor, ainda que a pessoalidade de Letícia, sua proveniência de classe média educada, afinada
com a cultura popular-urbana, suas referências de profissional da química, interessada em dispositivos como agulhas e
cobras, estejam presentes.

No pouco tempo de sua produção artística, entre 1971-1986, Letícia mostrou-se interessada pela prática da contestação
pontual, mas irônica e teatral: a contrariedade enganosa força a vida para fora do instituído. Sua trajetória artística não
foi muito longa, mas apontou para uma intensidade alegre, ainda que grave em certos momentos. O jogo e a brincadeira
sempre fizeram par com a prática questionadora. Feito em co-autoria com Ana Vitória Mussi, Anna Bella Geiger,
Fernando Cocchiarale, Ivens Machado, Miriam Danowski,
Paulo Herkenhoff, Sônia Andrade, o vídeo Telefone sem fio
não é o único trabalho coletivo. Já havia feito outros trabalhos
em parceria com André Parente (O homem do braço e o braço
do homem e Onde, vídeo desaparecido). Telefone sem fio,
entretanto, mostra a importância do jogo, da cena e do engano na
prática contestatória de Letícia Parente sobre as instituições do
sujeito, da autoria, da obra, da verdade científica, do pensamento
lógico que aliena a contradição e o dissenso ou os disfarça
na unidade. Letícia parecia querer forçar o contato das forças
internas do corpo com seu espaço de exterioridade, exigindo-
o passar pelo mundo externo do instituído. Forçar o corpo a
participar de uma cerimônia encenada de contestação artificiosa
em que o mundo da ordem sistematizadora, da burocracia e
do poder implicados no corpo se expanda para fora e permita
a produção de novos sujeitos, sempre esteve presente nos
trabalhos de Letícia.

No currículo da artista consta da participação na XVI Bienal


Internacional de São Paulo, em 1981, no interior do Projeto
Arte Postal. Para essa exposição Letícia produziu o vídeo
Carimbo. Vemos o rosto da artista sobre o qual está sendo
escrito o endereço da XVI Biena1. A instituição endereçada e
para a qual pretende enviar o trabalho é inscrita na superfície
de seu próprio corpo/rosto. As inscrições visíveis provocam o
discurso da artista que narra sua dificuldade com a Empresa
Brasileira de Correios e Telégrafos, cuja burocracia não permitiu
que ela gravasse sua proposta original de trabalho. No vídeo
não gravado, Letícia teria sua testa carimbada nos espaços
da instituição de postagem. Em Carimbo, vemos, porém,
outra situação. Além da inscrição de endereçamento feita no
rosto da artista, vemos ainda um grande papel que, segundo
consta nas descrições do vídeo, é uma foto do rosto da artista
pela Bienal. No fim, a mesma pessoa que colocou o vídeo
no aparelho, retira-o. Letícia alcança questionar duas
instituições num mesmo trabalho. A Bienal não é objeto
de polêmica, mas os Correios. A arte postal em vídeo
– processo precário e ainda não institucionalizado pelo
sistema das artes – parece estranha para o espaço que a
receberá, ainda que tenha a instituição proposto o Projeto
de Arte Postal. Mesmo que trate diretamente da instituição
que lhe causou problemas – os Correios – por ordem de
uma burocracia amedrontada e cega, Carimbo, de maneira
irônica e sob o signo do engano e da ambigüidade, submete
a Bienal e seus dispositivos burocráticos também à mesma
crítica.

Parece que seus trabalhos frágeis, porém intensos, vídeos


que são meros registros de ações não dramáticas, ainda que
teatrais e falsificantes, forçam uma compreensão da arte:
o lugar da prática da impropriedade. Agenciar-se com o
exterior de um contexto discursivo, institucional, subjetivo
ou político, sempre mobilizando seu próprio corpo e/ou
outros participantes, é impor o engano, o erro, o desacordo.
Em Preparação II (1975), Letícia registra a situação do
processo de sua saída do país. Entendemos o contexto pelas
fichas do Ministério da Saúde que a artista preenche após
sendo novamente endereçado à Biena1. A gravação do
cada uma das vacinas que aplica em seu próprio braço.
vídeo Carimbo é precária, mal escutamos o que narra a
Como em seus outros vídeos, a única tomada registrada
artista. Mas percebe-se um trabalho feito em estrutura de
pelo aparelho não mostra o rosto da artista, sempre fora
parênteses. Vemos no início, alguém colocando uma fita
do campo de visão da imagem. Nesse trabalho de 1975,
de vídeo no aparelho para exibição na TV. A imagem da
a artista demonstra claramente seu interesse por agenciar
inscrição de endereçamento sobre o rosto da artista é vista
questões éticas e políticas além das artísticas, por meio da
nessa TV. Na parede ao fundo, vemos um cartaz da Bienal.
mobilização de seu próprio corpo. Aplica-se cada uma das
A gravação de Carimbo parece ser feita em um escritório
vacinas contra o “racismo”, o “colonialismo cultural”, a
e então deduzimos que o vídeo é o registro da recepção
“mistificação política” e a “mistificação da arte”. Fica claro
que o contexto político coercitivo do governo militar está artísticos auto-reflexivos. Não se pode dizer que os vídeos
em pauta e figurado na instituição do Ministério da Saúde. de Letícia sejam propriamente auto-reflexivos porque
Mas o contexto artístico que problematizava a propriedade faltam-lhes a nitidez ilusionista do cinema ou porque
da Arte está acentuado pela ironia do trabalho. Aplica- os drop-outs comentam o meio enquanto dispositivo
se vacinas contra vários valores instituídos, do racismo eletrônico. Ainda que haja essa dimensão de exposição
à mistificação artística. Aqui o movimento é contrário à dos dispositivos técnico e artístico, seus trabalhos são
fetichização do objeto de arte que o mercado necessita, mobilizadores de um pensamento que é puro traço. A
colocando em questão o que é próprio à arte. figura da auto-reflexividade está inscrita como cicatriz
que não permite que o trabalho volte-se somente para
Se por um lado não se fetichiza o trabalho artístico si mesmo, autonomizando esse processo de outras
operando uma forte ausência de interesse estético pela operações e esferas. A heteronomia marca os trabalhos
pouca nitidez da imagem (e de som, quando existente), de Letícia: eles existem em relação com o mundo das
os vídeos de Letícia impõe um pensamento que é simples instituições, dos poderes e dos discursos. O pensamento
relação de contato, operação de proximidade física. Tal é antes o agenciamento produzido entre forças, campos,
como Lygia Clark que havia descoberto um pensamento e esferas contrárias e sempre exteriores. Seus vídeos
disjuntivo a partir da “linha orgânica”, Letícia descobriu são, nesse sentido, marcas dos eventos e das ações
a disjunção pelo contato entre a arte e a ciência, o corpo que se propõe atuar, índice de um contexto histórico e
cotidiano e o cerimonioso, a instituição e a contrafação, cultural que se impõe à imagem. Mas enquanto índice
o valor e a fraude, o acontecido e o encenado. Lygia é também erro e armadilha, ironia e encenação, tudo
colocou em contato superfícies (planos, coisas, objetos, conduzindo às ramificações e aos desvios seja dos gêneros
corpos) e pela disjunção “escapou do objeto em favor do artísticos, dos valores instituídos, dos comportamentos
evento” (BASBAUM, 2006). Letícia encontrou a imagem sistematizados, das instituições e burocracias, dos saberes
da disjunção em seu próprio corpo e subjetividade, ambos e poderes. Letícia Parente praticou a arte do vídeo como
marcados pelo pensamento lógico científico das medidas potencializadora de um pensamento da divergência, esse
e dos métodos. Colocando a presença de seu corpo físico que permite a ramificação dos sentidos e o desdobramento
em contato com sua presença virtual, Letícia descobriu a dos eventos.
simulação, a encenação e o engano como ordens do corpo,
do pensamento e da arte em sua impropriedade própria.
1
Nota do curador: “O nome da exposição é “Medidas”, ocorre que no folder do MAM o nome
é “Medida” no singular. Este erro induziu os comentadores a utilizá-lo no singular. Entretanto,
Um presente desdobrado em imagem, um corpo que se tanto no projeto, como em textos posteriores, a autora se refere a exposição sempre no plural”.
faz ausente na variação, uma ação que não faz obra são
agenciamentos que mobilizam o pensamento, mas não
chegam a se transformar em reflexão analítica ou trabalhos
BASBAUM, Ricardo. “Within the organic line and after”. In: Alberro, Alexander. Buchmann,
Sabeth. (Ed.). Art after Conceptual Art.. Cambridge: MIT Press, Generali Foundation, 2006

BRITO, Ronaldo. “Análise do circuito”. In: Malasartes, Nº 1, set./out./nov., 1975.

CANONGIA, Ligia. Quase Cinema: cinema de artista no Brasil, 1970/80. Rio de Janeiro:
FUNARTE, 1981.

EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme.Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

KOSUTH, Joseph. “Arte depois da fiolosofia”. In: Malasartes, Nº 1, set./out./nov., 1975.

MACHADO, Arlindo. Made in Brasil: três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural,
2003.
PROPOSTA DE ARTE EXPERIMENTAL
Letícia T. S. Parente

1. Fundamentação teórica:

A arte é um instrumento de descoberta e conhecimento do mundo, remetendo àquele que


se contacta com ela, não ao seu conteúdo mais direto, propriamente dito, “mas ao modo
pelo qual ele é transmitido” (processo).

Trata-se de uma tentativa de denunciar, sob a forma de mensurações competitivas


criadas num espaço e todos os gestos dela decorrentes, a atmosfera de concorrência e
tensão sob a qual vivemos no tempo histórico, em que os sistemas procuram enquadrar
as pessoas para classificá-las quantitativamente ou distingui-las segundo categorias
fixas de comportamento.

O importante e desejável, mais do que as atividades que as pessoas desempenham durante


a presença e participação no âmbito da mostra, é a verificação e a vivência de respostas
ao nível de um público bastante variado em nível cultural e de faixa etária.

2. Proposta

O que se pretende é a criação de um ambiente onde as pessoas sejam convidadas ou


induzidas a:

a) Ações físicas – Execução de medidas (sobre si próprias) em torno de capacidades


e atributos físicos, recursos e habilidades individuais, etc.;
b) Ações cognitivas – Conhecimento de parâmetros pessoais (importantes ou não);
registro de dados observados em fichas individuais e coletivas permitindo a
comparação dos mesmos;
c) Atitudes emocionais – Envolvimento com clima competitivo (ou resistência,
ou indiferença) em relação a si mesmas e aos outros; busca de identificação
com modelos estáticos preestabelecidos por uma tipologia e caracterologia
(pseudocientíficas e obsoletas) ainda vigentes em certos níveis de informação
da mass media;
d) Ação reflexiva – Constatação por analogia do clima competitivo do mundo
contemporâneo, sob formas disfarçadas de informação, e a denúncia das mesmas
como dado referencial crítico.
3. Formalização da proposta

a) Montagem de dispositivos semi-empíricos (criados pela proponente) de


mensuração de dados pessoais:
Por exemplo:
1. Dados biométricos
1.1. Para classificação tipológica:
Forma do rosto;
Proporções do corpo, etc.
1.2. Para avaliação de capacidades físicas
Força manual;
Resistência ao frio e ao calor;
Capacidade respiratória;
Reação à luz;
Tipo sanguíneo;
Tipo de pele e cabelo, etc.

b) Audiovisual – O Livro dos Recordes;


c) Livretos e álbuns xerografados ou de fotografias:
- Classificação de figuras humanas de telas célebres;
- Propostas de medições “para fazer em casa”;
- Coletânea de material de livros científicos antigos e revistas
e jornais atuais sobre testes, classificações, tipologia,
caracteres diferenciais, valorativos, etc.
4. Disposição no espaço
Vide layout anexo.
5. Época preferida
Abril ou maio de 1976.
6. Previsão de gastos

Cr$

material para construir os dispositivos de medidas 1.000,00


audiovisual 1.000,00
fotos, xerox e álbuns 800,00
fichas individuais e coletivas 800,00
catálogos (1.000 exemplares) 2.000,00

5.600,00
JORNAL DO BRASlL

Rio de Janeiro, quinta-feira, 24 de junho de 1976

Artes Plásticas

MEDIDAS, POR FORA


E POR DENTRO
Roberto Pontual
Dá ao mesmo tempo alívio e esperança uma exposição como a de Letícia Parente, aberta
desde o dia 10 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Alívio porque, no meio
de uma temporada sem maior garra e interesse como a atual, ela reafirma a vitalidade
do trabalho no âmbito da proposição experimental, exatamente um dos aspectos que
melhor havia definido o comportamento das artes visuais no Rio em 1975 e que se estava
demonstrando em recesso nos últimos seis meses. Esperança por vir talvez indicar a
retomada mais compacta da atividade nesse setor no próximo segundo semestre. Por
coincidência, Letícia expõe na sala ao lado da individual do jovem paulista Wilson Alves,
o premiado da Arte Agora I. A mostra dele, no momento se encerrando, constituiu outro
dos raros pontos instigantes no comodismo da temporada e redobrou sua importância
por comprovar a vitalidade de que também se nutre a nossa recente escultura e/ou objeto
– com um modo específico de indagação, mais do que visual, mágica e lúdica.

0 texto de hoje, no entanto, é sobre Letícia Parente. Nascida em Salvador (1930), até
pouco tempo atrás ela residiu em Fortaleza, onde expôs pela primeira vez em 1973. Dois
anos antes, estivera no Rio, estudando e participando de seminários com Anna Bella
Geiger. E foi no Rio que se fixou de 1974 para cá. Pode-se dizer que os três anos de sua
atividade têm sido marcados por uma opção de linguagem cujos contornos se definem
desde cedo. O cerco da figura e do ser humano a partir dos mais diferentes pontos e
ângulos de abordagem, utilizando particularmente a fotografia e o audiovisual. Há algo
de fenomenológico, creio que em nível consciente, no seu método de tratar as evidências
deste dado do real, que é o homem. Já era assim nos primeiros trabalhos que conheci
de Letícia, em 1975 – por exemplo, no audiovisual em que apenas números de vários
algarismos apareciam inscritos em cada novo diapositivo, correspondentes a nomes de
pessoas sucedendo-se em ordem alfabética na fita gravada. Quaisquer pessoas, números
e nomes apanhados nas fichas de algum setor da burocracia, malha que processa o
indivíduo como multidão, quer defini-lo e apreendê-lo mas só consegue dessangrá-lo e
diluí-lo.

Nessa visão crítica do envolvimento burocrático, Letícia Parente se irmanava a Margareth


Maciel, jovem carioca, também conhecida do público a partir de 1975, com trabalhos
em torno do passaporte, da certidão de nascimento e da carteira de identidade – alguns
entre tantos outros dos nossos documentos, seguranças numéricas e tipológicas no
sistema, ainda que nos reduzam de formas vivas, na verdade imensuráveis, a formas
arquivadas, papel-poeira de repartição. Mas a mostra atual de Letícia mantém elos muito
mais diretos com a exposição que Emil Forman realizou igualmente no MAM, em agosto
do ano passado, reunindo em painéis cerca de 2,5 mil fotos emolduradas, além de filmes
exibidos no mesmo recinto, tudo concentrado numa única figura: a de sua própria mãe.
Se Emil individualizava a esse ponto o objeto de abordagem – dando ao ambiente uma
atmosfera final de santuário, morbidez de dados mortos que se acumulavam para modelar
um ser ainda vivo –, Letícia procura o pólo oposto. Faz de cada visitante o centro, foco a
ser medido por todo tipo de variável capaz de caracterizá-lo como forma física e processo
mental, corpo e alma, indivíduo. Ambos, Emil e Letícia, medem obsessivamente o ser
humano, o mais próximo ou o mais distante, o conhecido ou o anônimo. Mas o mede,
como também Margareth, antiburocraticamente, para torná-lo consciente de sua vida
individualizada.

Por isso, ela deu à exposição o título Medida – um método e uma ironia. Dividiu-a
em dois setores complementares, um servindo à coleta de dados e outro à visão de
dados já previamente registrados. Daí cabe dupla tarefa: a de ver e a de agir. Esses
compartimentos de mensurações constituem, como os chama Letícia, estações, e se
destinam a nos colocar em contato com dados em torno do tipo físico, da respiração, da
resistência, do sangue, da acuidade visual, da atenção e das “medidas secretas” – estas,
ao contrário das anteriores, voltadas para a liberação da subjetividade contra a rigidez
nas medidas que podem ou devem ser exatas e objetivas. Diria que as primeiras estações
referem-se ao corpo, às formas visíveis e a última, à alma, as formas impalpáveis do
pensamento, da imaginação e da memória se desdobrando. Há uma estação extra, a do
gosto, e um audiovisual, Os Recordes, completando a mostra de Letícia.

Ali o visitante se comporta primeiro como quem vê e compulsa dados a ele oferecidos,
inclusive os deixados por visitantes que o antecederam. Mas é logo solicitado a também
produzir dados, por meio de testes que o levam, de estação a estação, a medir a si
próprio e a registrar as medidas. “Quero deflagrar ações até que elas se incorporem
e criem a forma das marcas do homem em sua presente busca: um fio entre os
imensuráveis de sua trama. Desejo capturar vestígios atuais através de quantidades,
medidas que possam se fazer transcender, a fim de que o imponderável invada e faça
nexo ou interrogação.” Dispondo de dados concretos, precisamente mensuráveis, mas
podendo submetê-los à ação aberta que é sua própria existência, o visitante tem como
romper o “espaço imposto das gaiolas”, os números que o indicam em série, porém não o
confirmam como ser único entre outros seres únicos, seus companheiros de humanidade.

Letícia Parente mede, portanto, tudo – o tempo também. Durante a nossa permanência
na sala de exposição estaremos sendo obrigados a ouvir de um alto-falante a voz
monocórdia repetindo, em ciclos incessantes: “Cinco segundos, 10 segundos, 15
segundos, 20 segundos, 25 segundos, 30 segundos, 35 segundos, 40 segundos, 45
segundos, 50 segundos, 55 segundos, 60 segundos. Cinco segundos, 10 segundos”,
etc. O tempo bate como um coração naquele espaço. E é medida que nos penetra e nos
regula, igualmente imposta enquanto número. No audiovisual Os Recordes, a prevalência
da medida chega, enfim, ao ponto de mostrar que o ato de medir se tornou compulsivo
num mundo em que cada um tem de ser o maior para ser o melhor: são registros
sucessivos de recordes que um dos dispositivos nos apresentam, dos mais corriqueiros
aos mais estranhos, ao som de palmas padronizadas, como as que ouvimos vindos de
falsos auditórios de TV – as quantidades fora de série, a elefantíase da concorrência, a
desumanizante obsessão humana pela medida. O paraíso seria nada medir.
A CASA
Katia Maciel
Letícia Parente, artista e química, foi casada 20
anos, teve 5 filhos, 14 irmãos e muitos amigos. Além
de conhecer as ditas tarefas do lar, como cozinhar,
costurar e cuidar dos filhos e marido, a moça
baiana ainda dirigia, fez parte da juventude católica
e trabalhava fora como professora de química
na Universidade Federal do Ceará, e depois na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E
tudo isso no Brasil da década de 1960.

Os vídeos que a artista produziu entre 1975-


82 mostram imagens que não saem de casa.
Letícia Parente tece um fio sutil entre a casa e um
pensamento sensível da arte. Com agulha e linha ela
costura o Brasil na sola do pé, com o ferro de passar
ela refaz as posições entre patroa e empregada e
entre roupa e corpo, com o cabide se guarda no
armário e com a maquiagem inventa uma máscara
que cega. Cada trabalho realizado acrescenta ao
vivido e com ele se confunde. A casa é então a
família, a religião, o país, a casa é tudo e todos ao
mesmo tempo, que, convidados a permanecer diante
da câmera, não disfarçam suas imagens. O que
vemos é cru, sem retoques, sem segundas intenções.

Letícia não enfeita os momentos do cotidiano que


escolhe. Ela faz passar os dias que passam por ela
de uma outra maneira. Eu sou uma coisa no meio
das coisas e desejo agir como elas, ficar dentro do
armário, me estender sobre a tábua de passar. Ao
mesmo tempo eu subverto. A empregada passa
a patroa e meu pé é a minha terra. Nesse duplo
movimento reside a tensão que caracteriza a obra de
arte, um olho que assiste ao que é enquanto o outro
insiste no que não é.
Preparação

Diante do espelho a artista inverte a própria imagem,


mas não se trata da visão de cima para baixo,
trata-se da cegueira no lugar da visão. Letícia
cuidadosamente, como uma mulher que prepara a
maquiagem antes de sair de casa, cuida de cada
parte do rosto. Cola primeiro um esparadrapo na
boca e contorna os lábios por cima. Depois, também
por cima de cada olho, repete a mesma operação.
O desenho no esparadrapo refaz o que esconde.
Sem fala e sem visão, a mulher continua armando o
cabelo e fixa no espelho seu olho construído e bem
aberto e depois deixa o espelho e o banheiro e a
casa.

In

Quantas vezes já penduramos roupas no armário?


E quantas vezes já desejamos nos trancar em
casa ou fechar a porta do quarto? O isolamento
e o fechamento nos remetem às sensações de
angústia, mas também à tranqüilidade e à paz. A
artista desloca operações e objetos. Por que não
nos pendurarmos juntos com a roupa? Por que não
nos sentirmos como a roupa? Por que não deixar
de sentir? Por que não guardar o que sentimos? Ela
parece não pensar, ela está apenas fazendo mais
uma tarefa do dia, não há tempo para pensar no
cotidiano, é uma coisa atrás da outra. Mas, quando
se fecha no armário, o tempo se guarda junto com a
artista.
Tarefa 1

Letícia deita sobre a tábua de passar diante da sua


empregada, que tranqüilamente passa a ferro a patroa
vestida ,com a mesma atenção nos detalhes de quem
passa uma roupa estendida e plana. A artista tem a
calma de uma roupa vazia, não se move, não reclama,
permanece. Ela é uma roupa qualquer, num dia qualquer.
Não há indiferença, é apenas mais uma tarefa cumprida.
Na relação entre a patroa e a empregada não há tensão,
apenas uma cumplicidade muda.

Marca registrada

Os pés caminham, e depois as pernas que se cruzam


mostram para a câmera parada a sola de um dos
pés. A mão surge com a linha e a agulha que costura
as palavras Made in Brasil. Brasil com “s”diante da
presença americana que se desenha nos pés sobre os
quais pisamos. Os pontos são firmes como se fosse em
um tecido estendido. Sem qualquer hesitação, Letícia
tece na própria pele o estado do Brasil, um país feito
fora daqui, propriedade estrangeira, o Brasil de 1974,
estranho a nós mesmos. A pele cede à pressão da
agulha que não pára. No gesto não há violência, mas
coragem. Brasil é uma casa estranha, nós e outros ao
mesmo tempo.

Ora pro nobis

A voz repete a oração. Ora pro nobis, ora pro nobis,


ora pro nobis. A cada repetição a fotografia em preto-
e-branco das mãos entrelaçadas na reza é trocada por
outra que também reza. A voz da artista é rouca e pede
ora pro nobis. Nesta prece a luz surge e desaparece. Na
reza não se reza, não há pedidos ou agradecimentos,
apenas a ladainha que sussurra, que comove, que
aflige. Na repetição dos gestos e da reza há apenas o
sentimento da prece.

Do canto da casa Letícia Parente olhou e viu outras


casas. Do afastamento e da proximidade desse olhar
surgiram alguns dos primeiros vídeos da arte brasileira,
vídeos curtos, agudos, breves como relatos íntimos, mas
que vão além da cotidianidade e apontam para o que
está no avesso das nossas ações banais, o acolhimento
da poesia que se repete todo dia.
Letícia Parente por Letícia Parente

A característica principal do meu trabalho é não ter se fixado em nenhuma característica


preferencialmente. A sua dinâmica é mais ramificada do que linear. Deixo que ele persiga
um processo, o meu processo de descoberta e visão. Suas raízes de unidade evidentes
estão dentro de mim e resultam da interação da minha realidade com a realidade social e
histórica do meu tempo e do meu momento. É mais interrogativo que descritivo. Atendendo
a uma intencionalidade com o máximo de rigor que me é possível, a uma coerência de
leitura que possa conseguir, nem por isso escapa a um contorno maior, acrescido pela
interação da obra com aqueles que a fruem. A participação do público é um elemento
esperado e levado em conta.

De acordo com o projeto, ora faz ênfase maior sobre a arqueologia do tempo presente,
ora sobre uma linguagem denunciante e crítica.

Há variação de meios. Há seleção de meios. Há somatória e combinação de meios. De


preferência meios não convencionais. Crítica à maneira tradicional de arte, desde
que não se coloque como objeto de consumo, no sentido de não estar dirigido à
venda, embora isso possa ocorrer. Aberto a vários níveis de leitura e de público sem
preocupação seletiva ou de diluição, torna-se muitas vezes um fato escandalizante
dentro das “ortodoxias artistas”, uma vez que não exclui nem impõe nenhum tipo de
pessoa. Isso acrescenta então novo aspecto crítico com relação ao sistema de arte e a
desmistifica.

Em alguns projetos o método de abordagem da obra pode estar enriquecido com uma
perspectiva ou ótica utilizável em assuntos científicos. É a destruição de um outro
tabu. A racionalidade que exige, porém, não pretende colocar a lógica num pedestal,
mas também ela passa a ser objeto de crítica e denúncia.

A verificação do humano sem proselitismo ou dogmatização pode bem ser a preocupação


mais contínua e presente.

RELAÇÕES COM A INSTITUIÇÃO DA ARTE

Até certo tempo achei difícil comprar a “barra” de aparecer como cientista profissional
dentro de outra área profissional “oposta”. Tinha a impressão de que os profissionais
de arte não aceitavam essa condição. Aos poucos, perdi a impressão. O relacionamento
procedeu-se como em qualquer outro grupo, isto é, com dificuldades naturais inerentes
às pessoas, pressões externas do meio, etc.

Quanto aos críticos, sempre tive dificuldade de aproximação. Sempre me mantive à


distância e com horror a usar as oportunidades para “furar” os muros. Perdi o horror,
mas me mantive ainda distante. Acho a crítica necessária e creio que sempre existirá.
O desempenho profissional com que é feita é que distingue a necessária da desnecessária.
Não concordo com que esses profissionais tenham poder maior que lhes seja dado pelo
sistema quando utilizam instrumentos de opinião pública. Mas na realidade não há como
neutralizar os efeitos multiplicadores senão desmistificando a ação por um efeito de
conscientização maior do próprio trabalho e uma independentização do mercado como meio
de sobrevivência econômica.

O público me parece muito mais importante porque nele também está incluída a categoria
dos artistas. Não faço restrições ao público. Acho importante qualquer público. Creio
que cada um frui a seu modo. O grau de fruição é aberto. Se o nível da obra é esgotado
no gole de uma pessoa, azar da obra. Foi pouca para a sede e para o espaço.

EXPERIÊNCIA DO GRUPO

Foi das melhores experiências humanas e profissionais que eu já tive. Com todas as
crises de nascimento, crescimento, etc. Quando me afastei “geograficamente” do grupo,
considerei uma perda irreparável.

Indispensável para:
a) Lucidez;
b) Estímulo;
c) Sentido de realidade;
d) Informação;
e) Ação no meio em momentos de atuação política.

A existência de um grupo de arte é uma luta contínua contra um condicionamento do


artista individualista. As ações podem ser algumas vezes infantis ou superficiais. Mas
sem passar pela experiência muita coisa válida não será descoberta.

Do ponto de vista pessoal, a afeição e sentimentos negativos fazem parte da mistura.


Tudo muito importante. Ameaçam e cimentam. Fazem crescer ou fragmentam. Quanto à
perenidade, é difícil mantê-la. Os grupos também terão de se abrir, fechar, refazer,
ampliar, cessar, aparentemente morrer, nascer de novo e tal.

Transferi para cá a necessidade de vivenciar em grupo problemas da vida profissional


deste setor de atividade. Não creio que possa mais dispensá-lo.

PROPOSTA DE SERIAÇÃO DE TRABALHOS

A fim de conter momentos significativos de minha produção, bem como uma seleção que
possibilite abranger todas as mídias utilizadas, fiz a seguinte escolha que, abaixo
descrita, será acompanhada, no momento, de fotografias e, posteriormente, na ocasião
propícia, das próprias obras.
Trabalhos em audiovisual (Seqüência de slides com som).

Dimensões – Seria uma espécie de topologia de dimensão interna projetada no espaço,


no tempo e, sobretudo, também na velocidade que é fruto da relação dos dois outros
– “comunica-se nos outros apenas uma orientação para o segredo sem jamais poder dizer
objetivamente o segredo” (Bachelard) (Rio de Janeiro, 1975).

TRABALHOS EM FOTOGRAFIA

Projeto 158 – A interferência nas dimensões da face, alongando-a ou encurtando-a,


indica, por meio de uma ideologia aparentemente flagrada em caricatura, a relação de
dominação do exterior sobre a interioridade das pessoas (Rio de Janeiro,1976)

TRABALHOS EM VÍDEO

Marca Registrada – De forma cruenta e remanescente de antigo costume popular presente


em brincadeiras infantis, a autora costura no próprio pé, com linha preta, bordando as
palavras MADE IN BRASIL (preto-e-branco – 11 minutos).

Preparação I – Relação da pessoa da artista, através de seu corpo, com o contexto


político-social e suas conseqüências. Presente, sobretudo, a opressão e a censura à
lucidez e à fala.

Ambos os trabalhos são desenvolvidos na linha do testemunhal; ponto de encontro dos


caminhos por onde passa a arqueologia do tempo presente (Rio de Janeiro,1975).

TRABALHOS EM XEROX
Seqüência de trabalhos das séries Mulheres e Casa. A proposta está dentro do pensamento
anterior.
Documentação da mostra de arte experimental Medidas
A referida mostra aconteceu em 1976 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Utilizou-se de um conjunto de mídias: fotografia, xerox, audiovisual, jornal.
A proposta tinha como premissa um questionamento e uma resposta (testemunhal) que chegava
às raias da explicitação escrita em relatórios coletivos e individuais assinados.
A quantificação violentava e feria, porquanto se efetuava sobre sensações, percepções
e limites imponderáveis.
A manifestação externa tomada como assunto deflagrador do processo era a competição em
vários dos seus aspectos.
1
Nota do curador: “O depoimento de Fernando Cocchiarale foi dado a
André Parente”.

A Terceira Via.
Entrevista de
Fernando Cocchiarale
Eu acho que a videoarte é uma manifestação, uma expressão da crise do Modernismo.
A datação é relativa, os americanos tendem a incluir o Expressionismo Abstrato já
no mundo contemporâneo. Eu penso que o mundo contemporâneo e, portanto a arte
contemporânea, tem alguns determinantes muito evidentes, que têm a ver com o pós-
2a Guerra Mundial. O principal deles é a invenção do jovem ao longo da década de
1950. O jovem foi uma maneira de se diluir a oposição proletária ao mundo burguês e
criar, dentro do mundo burguês, diferenças na esfera do comportamento que pudessem
justificar a mudança na permanência.

Muita gente diz que a passagem do moderno para o contemporâneo não se deu
porque, afinal de contas, ainda estamos no capitalismo. Sem dúvida. Mas a invenção
do jovem introduziu uma dinâmica na transformação ética, estética e política, a partir de
uma série de sintomas e manifestações, que também apareceram no campo da arte.

Nesse último, podemos considerar o Abstracionismo, mesmo o expressivo, como o


Expressionismo Abstrato americano, como uma espécie de poética do sujeito. O sujeito
concretista é quase um sujeito cartesiano e um sujeito Pollock é quase a legitimação
da existência de um inconsciente, de um interior – não importa, são faces diferentes do
sujeito. Por isso mesmo, eles colocam a sua unidade, que vem lá de dentro, projetada,
na sua obra, que tem um estilo, e pode ser detectável e reconhecível formalmente.

Isso só pôde ser levado a cabo porque houve a disjunção entre arte e imagem durante
um período razoável – que foi o período das vanguardas históricas. Claro que sempre
houve um flerte com a fotografia, desde o estudo do nadar. Também com o cinema, a
gente sabe disso, mas, de qualquer forma, o mainstream da arte moderna ainda era
muito convencional. Você tinha a pintura, a escultura, o desenho. Esse desenho era
feito em um retângulo, horizontal ou vertical, assim como a pintura. Era uma espécie de fechamento da janela
renascentista.

No campo das artes, em relação às transformações do mundo contemporâneo, o pós-2a Guerra e a invenção do
jovem cuidaram de um certo desencanto quanto ao projeto Iluminista, de uma sociedade regulada pela razão e
pela ordem. Então você vê desde fenômenos como beatniks, Allen Ginsberg, isso ainda nos anos 50, ou mesmo
uma vulgata disso, um Rebelde sem Causa, um filme para milhões, Juventude Transviada. O jovem hoje em dia
é um problema porque ele tem de durar até o resto da vida. Depois que você fica jovem uma vez, você vai ficar
jovem até 75 anos. A invenção do jovem criou uma dilatação, uma coisa estranha na relação com o ethos, com
a estética, que justificam a passagem do moderno para o contemporâneo, apesar de você ainda estar em um
regime econômico dominantemente capitalista.

Mas eu acho que é possível a idéia de que você só mudaria radicalmente com a substituição de um modo
de produção dominante por outro, a idéia marxista. Se a gente puser em confronto o que foi empiricamente
conquistado pelos dois regimes, vamos ver que em um determinado momento, o regime soviético primava por ter
uma música clássica, um balé clássico, tudo clássico, enquanto os Beatles viviam na Grã-Bretanha. Isso operou
possibilidades de fraturas ou de fragmentações.

Dentro disso, os meios convencionais da arte moderna se tornaram estranhos a novas alternativas de invenção.
Temos de observar que a transição para a arte contemporânea foi introduzida por artistas que começavam ali,
mas ela foi vivenciada no interior da transformação da obra de vários artistas. Hélio Oiticica fez isso, ele foi
moderno e se tornou contemporâneo. Lygia Clark, Lygia Pape, Anna Bella Geiger, Amélia Toledo. Então não é
uma coisa tão simplória, uma nova geração, é uma coisa mais complicada mesmo. Essa volta a um diferencial,
a reintrodução da narrativa, alguma coisa que conte algo mais que o que ali está, do ponto de vista espacial,
por uma linguagem de formas ordenadas ou desordenadas, algumas bem desdobradas e outras bem menos
complexas.
Mas há a introdução de um fator muito importante,
que eu acho que justifica o Super-8 e o vídeo, que é
a assimilação do tempo na vida social desde o mundo
que resulta do Iluminismo, no mundo moderno. A idéia
de progresso, de avanço da razão, justifica a noção
de obsolescência, que não existia. Eu duvido que na
Idade Média uns carros de boi, uma carroça ficassem
obsoletos em menos de 200 ou 300 anos. A idéia de
que uma coisa vai ser superada e vai ser substituída,
no campo da produção, do objeto, do produto, que hoje
em dia está absolutamente exacerbada, tem a ver com
a invenção desses novos tipos de tema, como a história,
no século 17. Quer dizer, agora você tem uma disciplina,
você tem métodos específicos, você tem a historiografia
para explicar por que as coisas mudam, por que elas se caracteriza por um único sujeito com estilo definido.
se transformam. A introdução do tempo e do movimento
Na época em que começamos a fazer videoarte,
certamente teria de empurrar a obra de arte que vem
nós tínhamos consciência dessas questões, mas
dessa tradição para registros não só técnicos, como a
não conhecíamos os textos da Lygia e do Hélio, não
fotografia, como também o cinema e o vídeo.
estudávamos isso. É importante dizer que o pessoal que
passou pela Anna Bella, aqui no Rio, de alguma maneira
foi formado por uma espécie de terceira via. A via da
Vídeo ou Performance? Anna Bella era mais diretamente internacionalista. Eu li o
Kosuth antes de saber o que era um parangolé.
Naquela época, as performances (que ninguém chamava
de performances, eram happenings ou intervenções) Das outras vias, uma delas era a que vinha de um
tinham por característica um certo desdobramento experimentalismo de origem neoconcreta e a outra
temporal, que precisava ser registrado, digamos, apenas era a que resistia a isso por várias razões, até por um
como memória, ou havia um fotógrafo que pegava a exacerbamento de uma posição formalista. Como a
seqüência, ou alguém com um Super-8, um 36mm, etc. Anna Bella nunca havia explicitado para si o que estava
Então, o vídeo é suscitado por uma demanda muito operando, ninguém pensou sobre o que seria aquilo. Mas
séria, que se dá no campo da experiência artística, se olharmos o grupo de pessoas que passou por ela,
que é pensar agora o tempo e o espaço como valores em graus variados é uma terceira via. Paulo Herkenhoff,
articulados. Não um espaço com um antes e um depois Letícia Parente, Sônia Andrade. E, naquele tempo,
como você pode sugerir no sorriso da Monalisa. Trata-se as duas outras vias não favoreciam isso, porque elas
de um antes e um depois que sustente uma narrativa de estavam ainda, digamos, voltadas para a observação da
qualquer tipo. grandiosidade das questões de que elas eram portadoras.

O vídeo, portanto, é um sintoma, uma resposta de um Muito poucos trabalhos dos pioneiros da videoarte eram
mundo contemporâneo que é fragmentário, e não mais performances. Por exemplo, Versus, do Ivens Machado,
em que ele e um ator negro ficam em ângulos nos quais a câmera vai fundir a imagem só com o movimento – isso é
uma performance, mas é uma performance da câmera. Se não houvesse a câmera, o vídeo, ele não poderia fazer.
Preparações, da Letícia, ou quando a Sônia joga o feijão na câmera podem ser considerados performances. Agora, o
sentido delas é serem vistas em vídeo. Há um equívoco nessa discussão de linguagem, até porque eu não acho nem
que hoje em dia se deva mais falar de linguagem. Nós voltamos para uma neopolitécnia que está no photoshop, que
está no sintetizador. Ficar falando de linguagem hoje em dia é bullshit, mas se as pessoas acham que a linguagem do
vídeo é filmar em close, editar, colocar efeitos, eu diria que é também uma possibilidade do vídeo registrar simplesmente
uma performance. Não poderia aparecer daquele jeito se fosse feita com Super-8, com fotografia ou se pusesse um
desenhista, um Debret para desenhar.

Então eu sou contra essa distinção quase aristocrática ou tecnocrática entre high e low tech. Acho isso absolutamente
ridículo. Muito mais importante é a situação poética. Lembro, por exemplo, do vídeo da Sônia – a performance da Sônia
– tacando o feijão, com uma televisão atrás de si em que, aleatoriamente –isso foi uma coincidência –, ela ligou no Jornal
da Globo. Aquilo quase é um comercial, a narrativa tem tudo a ver com o vídeo. Se entrou tecnologia, efeitos especiais ou
não é o que menos me interessa. Senão ninguém poderia cantar a capella. O velho Walter Benjamim já saca isso quando
ele fala do close. Como é que uma performance de Letícia Parente botando esparadrapos nos olhos e desenhando seus
olhos poderia ser vista tão em close, com tanta intimidade, se não fosse em vídeo? Como é que as pessoas veriam ao
vivo se estivessem a dez metros de distância? Iriam ver um olhinho bem pequeno ou nem veriam, porque o próprio corpo
de Letícia, provavelmente, seria um obstáculo. Então aquilo que eu vejo ali é vídeo.

A Contribuição dos Vídeos

A contribuição artística desses trabalhos é inegável e eu


poderia citar, de cara, a obra de Letícia Made in Brasil,
que se tornou emblema de uma mostra retrospectiva
de vídeos, diria eu, quase um emblema da videoarte trabalho de que a televisão era um meio de comunicação
brasileira. Então, se uma obra tem essa potência, eu absolutamente essencial para o Brasil, naquele momento
não preciso dizer nada. Outro exemplo é o sucesso de ditadura, e, por meio da intervenção direta do defeito,
recentíssimo dos trabalhos da Sônia Andrade – recente tomei como lema o check-out desse sistema. A idéia era
no sentido de reconhecimento –, que participou de introduzir nesse sistema eficiente algo que comunicasse
uma exposição no Louvre. O vídeo em que ela enrola pela falha, pelo defeito, pela falta. Eu também só poderia
um fio de náilon em torno do rosto foi associado fazer isso em vídeo. O próprio Herkenhoff, na série
pela curadora a Degas. Tratam-se de narrativas ou Estômago Embrulhado, quando ele filma uma notícia
neonarrativas feitas sobre temas e questões que hoje são de jornal, “Cruzeiro já circula livremente no Paraguai”,
candentes e reconhecidas em toda a produção artística lê a notícia, o público lê também, ele come e sai pela
contemporânea. A questão do corpo, por exemplo, que rua repetindo a notícia até a memória ficar diluída. Isso
está nos trabalhos de Letícia, de Sônia. Esta joga o feijão, é um Globo Repórter no meio da rua. É feito com quê?
enrosca o rosto. A Anna Bella sobe as escadas. Quer Carvão, pastel, crayon? Não, só podia ser feito em vídeo!
dizer, há uma performance, uma ação direta do artista. Não poderia ter sido visto de outra maneira se não fosse
visto do jeito que foi. E foi concebido para ser visto em
Agora, uma curiosidade: como é que a Anna Bella poderia
vídeo, então é videoarte, sim, e tem qualidades estéticas
subir e descer tantas escadas, externas e internas, se
inegáveis.
não fosse em um registro feito em vídeo? A linguagem
do vídeo é isso também. Eu tive consciência no meu
Exposição Medidas

Eu não considero Medidas uma exposição de arte-ciência. Não por ser retrógrado
ao que se chama arte-ciência, ao contrário, eu acho a arte-ciência retrógrada ao
que a Letícia estava mostrando ali. Porque o evidente na reificação desses aparatos
de mensuração é que ali eram confrontados normas e seus aparelhos de aferição,
supostamente regulados, não com o objetivo de glorificar esse sistema, mas ironizar e
até, em certos momentos, implodi-lo. Então quando se fala em arte-ciência hoje, muitas
vezes, o que há é uma espécie de rendição ao encantamento, o que é normal, pois as
possibilidades que a ciência oferece são maravilhosas.

Mas o que se chama de arte-ciência é quase fruto de uma sedução recíproca e no


trabalho de Letícia o que há é uma espécie de tensão explícita e intencional. Até
porque essa artista foi a pessoa que eu conheci que mais tinha as duas coisas, a
arte e a ciência. Ela era uma química impecável, chefe do Centro de Ciências do Rio
de Janeiro, mas sempre deixava claro que essa atividade como artista era o gancho
que ela possuía com um outro lado, poético, humano, imprevisível, um lado do risco,

da incerteza, do jogo, da aposta, com que normalmente um cientista evita conviver porque ele está muito bem
encastelado em todas as suas razões. Em geral, é meio incômodo, do ponto de vista existencial, a pessoa se
enclausurar, seja em uma espécie de moto-contínuo de “Eu sou amor da cabeça aos pés” ou, ao contrário, “Tudo
tem suas razões”. Ela passava de um estado para o outro muito naturalmente.

Nesse trabalho, ela coloca no campo da arte a tênue película entre essas duas partes da sua vida, o lado doutor,
o lado da cientista, e o lado eminentemente sensível. E eu tenho certeza de que se há alguma coisa que a guia e
que implode tudo isso é o lado sensível. Então não existe ainda uma rendição, uma ilustração, um encantamento.
É um trabalho, como você1 disse, foucaultiano, que submete os instrumentos de aferição da disciplina à implosão
pelo seu sentido poético. Porque todo mundo sabia ali que aquilo não tinha nenhum objetivo escrutinador,
esquadrinhador. Aquilo era uma coisa sensual, lúdica.

Esse trabalho me lembra a obra de Barrio quando ele fez os cadernos-livros e os livros-registros – que ele mesmo
diz que não são obras, que as obras são o que acontece ali. Essas experiências são registradas ali com uma
seriedade quase de um viajante Darwin do século 19. Só que o Darwin tinha o telos, que era o amor à verdade,
aquilo tinha um sentido. Quando Barrio faz aquilo é para registrar o quê? Coisas que normalmente não têm
sentido porque nós não emprestamos sentido sensível àquilo. Então ele reifica aquelas experiências do cotidiano
agindo sobre elas como se fosse um cientista.

Eu fico pensando que todos esses trabalhos estão criando um novo sujeito, não mais filosófico e epistemológico,
mas artístico. Então é como se Barrio, ao anotar feito um cientista como um português imprime um peixe em
um papel lá em Lisboa, estivesse sendo como Letícia, trazendo esses instrumentos, essa película, cajuína em
Teresina, fininha, entre arte e ciência. Mas não no sentido de rendição, no sentido de libertação.
Persistência da
consciência: marcas
da identidade
Cristiana Tejo
Sabe-se que é penoso, senão impossível, fugir de nosso tempo. Apesar da subjetividade nortear nossa experiência no mundo, a
conjuntura nutre o olhar e desenvolve o saber que gera o trabalho. Portanto, não seria despropositado ou mesmo leviano afirmar
que todos os autores e artistas são frutos de suas épocas, mesmo que suas obras extravasem o entendimento e a pertinência para
outros contextos e gerações. Dessa forma, poderíamos dizer que Letícia Parente se localiza nesta linhagem: sua obra manifesta
seu tempo. Seus vídeos tangenciam o redimensionamento das identidades, a relocação de papéis sociais, a utilização do corpo
como suporte discursivo, a escalada do consumismo exacerbado e o chamamento para a exploração de novas mídias, aspectos
que caracterizam a arte da segunda metade do século 20. Esses elementos, entretanto, se combinam de maneira muito peculiar
na trajetória desta artista paradigmática da arte conceitual brasileira e fundamentam historicamente parte da produção atual que
lida com essas questões.

Sobressai-se a compreensão apurada de Letícia do corpo feminino como alvo de reificação num período de extremo
questionamento da posição da mulher na sociedade, uma corroboração das colocações de Simone de Beauvoir de que não se
nasce mulher, torna-se. O aprisionamento dos procedimentos de construção visual e identitária femininas é representado a partir
de subversões e paródias de situações cotidianas em ambientes
domésticos, concomitantemente simples e de alta potência
imagética. Em Preparação I, o ato banal de se embelezar para
sair transforma-se no vestir de uma máscara. O deslizar do
batom não evidencia os traços labiais da artista, mas por ser
aplicado sobre um esparadrapo vira um desenho dos lábios,
uma representação por cima da parte verdadeira. O delineador
desenha olhos nos esparadrapos. A maquiagem assume um
caráter de mascaramento. O que supostamente seria feito para
ressaltar a beleza feminina apresenta-se como falseamento,
enganação.

Em outra performance sem audiência, a artista abre um


armário e pendura-se num cabide através de sua própria
roupa. Neste outro comentário sobre os adereços que podem
garantir a feminilidade, fica mais evidente a crítica ao processo
de coisificação do humano, já identificado como Homo
consumericus1. Roupa e mulher confundem-se de tal forma que
não se apartam. A vestimenta que ganha crescentemente o poder
de definição de identidade e status cola-se no indivíduo, que
parece não mais significar nada sem seu símbolo de colocação e
expressão. Ainda sob a abordagem da aderência e contaminação
da identidade pelas vestes e consumo, Letícia Parente deita-
se numa tábua de passar roupa. Seu traje-pele é passado a
ferro. Não há truques. A crueza do ato é uma das maneiras de
amplificar a urgência de seu discurso crítico, assim como se
fazia nos anos 70, a exemplo das performances desafiadoras e
arriscadas de Marina Abramovic e Chris Burden, entre outros.

A contundência da imagem (que é diretamente ligada à


verdade, à realidade) é um recurso usado amplamente pelos
artistas a partir da segunda metade do século 20. Ver é crer, e
técnica tradicional de sua região natal ressaltam outra
no caso de Letícia, assim como no de muitos outros artistas,
questão identitária, a cultural. Uma constante nos debates
a ação vista é a ação praticada. Marca Registrada, trabalho
intelectuais brasileiros desde a independência do Brasil,
exponencial da artista baiana, apropria-se novamente da pele.
os questionamentos sobre a influência estrangeira e o
Não mais como indistinção entre indivíduo e consumo, mas
colonialismo cultural ressoam fortemente não apenas
como superfície escrevente. A artista borda os dizeres Made
no país, mas internacionalmente, graças ao processo de
in Brasil na sola de seu pé num grande close da câmera.
independência política e econômica que diversas sociedades
Mesmo sabendo que essa brincadeira recorrente no sertão
atravessam a partir dos anos 60, além do aumento do fluxo
nordestino não fere a epiderme e é reversível, o ato suscita
de imigração mundial. Esses tópicos servem ainda de pano
apreensão e desconforto. Fica patente o intuito e a carga
de fundo para Preparação II. Uma pessoa aplica em si
simbólica de sua performance: o pertencimento marcado
mesma vacinas contra o colonialismo cultural, o racismo,
com severidade e agressividade, que é eternizado em nosso
as mistificações política e da arte. A ação é seguida do
imaginário. A preferência pela língua inglesa e o uso de uma
preenchimento de um cartão convencional de vacinação.

O Homem do Braço e o Braço do Homem assinala uma fase


posterior das investigações de Letícia Parente. Seu foco
migra para uma discussão mais abrangente do corpo e inclui a
afetividade e comunicação como catalisadores de seus trabalhos.
O tom assumido nessas obras do final dos anos 70 pende para o
lúdico, assimilando o outro (a artista deixa de ser a protagonista
das ações e passa a orquestrar os trabalhos). Nesse vídeo,
Letícia versa sobre a mitificação da virilidade e da resistência
esperadas do corpo masculino. Um anúncio luminoso de uma
academia de ginástica mostra o movimento incansável de um
halterofilista contraindo seu bíceps, numa clara demonstração de
força. Após um período longo de exposição à seqüência repetida
do néon, uma imagem de um rapaz de carne e osso copiando
o movimento braçal é sobreposta. Assistimos à sua tentativa
de manter o ritmo da máquina e sua gradual falha. Seria uma
antecipação da discussão sobre gênero que atualizou apenas
recentemente os argumentos feministas?

Especular e Quem Piscou Primeiro? partem do espelhamento e


da complementação como argumento. No primeiro, observamos
um processo de diálogo e reciprocidade. Um casal busca
clarificar seu processo de escuta. A cada fala a conversa vai
se tornando mais complexa, sem que a dupla escorregue no
entendimento mútuo de suas ações. O segundo vídeo coloca
um casal de frente para uma TV. Vemos apenas seus reflexos no
aparelho de televisão e devemos prestar atenção no causador do
fim da brincadeira. Assim que um dos dois pisca o olho, o vídeo
escurece e a gincana acaba. Potencialmente um trabalho de
percepção, Quem Piscou Primeiro? ativa também a capacidade
de olhar para o outro, de se deter no rosto de alguém, mesmo
1
Colocação de Gilles Lipovetsky em Tempos este encontro sendo mediado pelo vídeo. Tal aspecto afetivo
Hipermodernos, pp 122. é arrematado por De Aflictibus, uma seqüência de slides de
entrelaçamentos corporais de todos os tipos. Experimentação
plástica que se tornou freqüente nos últimos anos, Letícia
Parente ritma imagens de fusões corporais com uma frase
que mais parece mantra entoado gravemente. A produção
contemporânea brasileira atual deve muito à investigação
desta artista e de sua geração. A amnésia reinante obstaculiza o
surgimento de um experimentalismo pungente e não ingênuo.

Cristiana Tejo é diretora do Museu de Arte Moderna Aloísio


Magalhães.
Letícia Parente. Livro: Arte e Novos Meios (FAAP)

“Em termos de trabalho eu cheguei a articular A Proposta da Casa (série de xerox), cujo
assunto é a casa, em Fortaleza e no MAC-USP, mas dependia do trânsito dentro do espaço.

Comecei o trabalho em xerox em 74, e esporadicamente ainda faço, mas não é o cerne da
questão. É uma casa com cortes, na sua planta baixa, que tem três situações geográficas,
três estados: Bahia, Ceará e Rio, as minhas residências.

Outra coisa importante deste trabalho é que sempre há um elemento de tecnologia do nosso
tempo, que acrescento e procuro contrastar com a linguagem mais poética: então, essa planta
baixa, que é de uma casa típica de BNH, com os sinais de letraset, por exemplo, é seta num
lugar-comum de indicação. Fui colocando idas e vindas, voltas e revoltas na entrada, e no
lugar da conversa tem essas mãos todas aqui (em letraset), diálogos desejados e coisas
assim. No quarto há sete camas em letraset, sete alternativas. Numa mistura de senso,
inocência e sinais estereotipados – aqui rituais de codificação.

Em Mulheres eu já estava numa linha de testemunho um pouco diferente, que era um trabalho
em cima da mulher. O corpo da mulher todo escrito com as suas fissuras, o olhar, os braços.
Todo o corpo em cima de um quadrante terrestre posicionando, e o contorno do corpo todo
feito da própria função do corpo – não no sentido só da função física, mas de uma função
social-humana.

0 outro era uma seqüência de perucas, de fisionomias de mulheres. A contradição, as perucas,


as mulheres carregando perucas, os manequins carregando as perucas e as mulheres imitando
as fisionomias dos manequins – aquele efeito estilizado do manequim. Havia uma seqüência
de óculos: uns que davam felicidade, outros que estavam ainda com olhos e narizes, boca
sentimental, todo aquele jargão do consumo querendo decifrar o psiquismo feminino, usando
ao mesmo tempo e veiculando a propaganda.

A fase do corpo que testemunha situações culturais, políticas e sociais culminou em um


trabalho de vídeo que de todos foi o que conseguiu a sigla mais forte – chama-se Marca
Registrada. Nesse trabalho eu costuro na sola do pé com uma agulha e uma linha preta as
palavras Made in Brasil na pele. É uma agonia! Dá muita aflição, porque a agulha entra, fe-
re o meu pé – só podia ser o meu próprio. Há um costume popular na Bahia em que se borda
muito com uma linha na palma da mão e na sola do pé. Esse é o trabalho de vídeo de 75, que
sintetiza essa fase toda.

Em geral, a gente tem de ter essa caminhada, um processo de gestação de certo modo, eu não
sei dizer o que é – se é emocional, se é intuitivo –, e depois tem a parte de reflexão.
Realmente o pensamento faz a consistência, elabora as amarras das coisas. E a vida é
momento, é paixão, é emoção, é tudo misturado. O pensamento está ali fecundando essas coisas
todas e estruturando, porque às vezes me parece que é assim. Estava preocupada com que as
coisas tivessem vários questionamentos, porque estava interessada nas respostas.”
A CARNE DA
IMAGEM

Marisa Flórido Cesar


Se a imagem no espelho se assemelha a nós o suficiente
para ter direito a um nome, o nosso, esse nome só faz sentido para o
ouvido e a voz de um outro. O espelho não tem ouvidos e a imagem
só adquire sentido na triangulação em que a voz pede ao olhar para
não se tomar por aquilo que ele vê, senão será tomado por aquilo que
ele não vê. Onde estão as vozes que constroem nosso olhar para lhe
dar visibilidade?

Marie-José Mondzain
Le Commerce des Regards

A mulher diante do espelho. Nada mais corriqueiro do que vê-la maquiar-se defronte à
superfície do cristal. Salvo que, naquele lavabo, inicia-se um cerimonial que nos sugere
uma estranha violência, uma automutilação simbólica: a boca é silenciada com um pequeno
esparadrapo sobre o qual a mulher delineia seus lábios. Os olhos são então vendados: um
após o outro, e sobre o tecido branco, são desenhados os olhos subtraídos. Tateando à
procura da porta, a mulher enfim retira-se. O que se oculta atrás do mutismo e da cegueira
das imagens?

O vídeo chama-se Tarefa I (1975) e, como em outros vídeos de Letícia Parente, é a artista
que protagoniza a performance no espaço privado de sua casa. São rituais do cotidiano,
pequenos afazeres domésticos e banais desprovidos de narrativa dramática, como passar ou
pendurar a roupa no armário. Mas eis que a roupa ainda veste a artista, aquela que realiza a
ação confunde-se com aquela que sofre a ação: a artista é suspensa pela roupa no armário.
Corpo, carne e o véu que os cobre tornam-se indiscerníveis. O olhar e a voz convocados
no endereçamento são apanhados na armadilha: a imagem é o lugar de uma indecisão, ou,
como diz Marie-José Mondzain, “de uma crise”.
No final dos anos 50 e nos 60, os happenings e as performances já haviam introduzido a
execução de tarefas cotidianas como as Task Performances, de Robert Morris, coreografias
realizadas com Simone Forte e outros dançarinos. O esvaziamento do gesto expressivo do
artista, a incorporação das ações rotineiras e desglamorizadas, com seu tempo operacional,
repetitivo e autômato, a exigência da co-presença do espectador para a completude da obra
vinham opor-se às concepções formalistas da arte. Mas, tal como Bruce Nauman, que na série
Studio Films executaria uma sucessão de atividades em seu ateliê, muitas vezes conduzindo
o corpo à sua quase exaustão, as performances e tarefas de Letícia Parente não se realizam
diante de uma audiência, mas têm a câmera, seu olho maquinal, como testemunha.

Tarefa I parece remeter ao gênero do retrato na arte, expondo-o em toda a sua ambivalência:
de um lado, está a clausura de um si mesmo, figura cega e muda, colocada frente à face e à
visão de um espelho impossível e sob a vigilância de um olho mecânico. De outro, um fora de
si, figura extraviada que se ganha e se perde na própria captura. A imagem solicita a palavra,
o sopro de um sentido partilhado, mas não se deixa capturar ou reduzir-se por ela. Como
devolver àquela figura a voz, se nenhum nome parece adequar-se? O que se mostra ali como
uma fratura íntima é o véu obscurecido de um encontro, de um espaçamento. “Arte”: o nome
instável desse encontro.

“Entretanto, ʻeuʼ não me encontro, nem me reconheço no outro, existo com ele: eu experimento a alteridade e a
alteração que em mim mesmo coloca, fora de mim, nessa exposição, a singularidade de qualquer existência tecendo-
se em tramas e ecos infinitos” — eis a resposta subentendida em outro vídeo, Especular (1978). Nele, o espelho foi
removido. Permanece, pelo nome que o intitula, apenas o adjetivo que designa sua propriedade reflexiva. Em seu
lugar, um jovem casal se olha e se escuta por estetoscópios. Ela diz: “Eu quero ouvir o que em mim você está ouvindo
dentro de você”. Ele responde: “Eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim, o que eu estou ouvindo de você,
dentro de mim”. Ela outra vez: “Eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim, o que eu estou ouvindo de você, o
que você está ouvindo de mim, dentro de você”. E assim, sucessivamente, nos rebatimentos da palavra, Narciso oferece
a hospitalidade a Eco. O que faz a arte senão solicitar o pensamento e a sensibilidade diante do visível e explicitar
seu desamparo diante da face impossível? O
que faz a arte senão expor esse vazio, essa
intermitência, esse espaçamento eclipsado, que
todavia abre o lugar a um terceiro. O lugar de
onde se aguardaria uma resposta, a recompensa
desse dom. Qual é o lugar que ele ocupa nesses
rebatimentos amorosos e fugidios?

Letícia Parente é uma das primeiras a trabalhar


com videoarte no país. E, de certo modo, seus
vídeos estão em diálogo com as questões
da história da arte e de suas imagens, mas
confrontam-se, também, tanto com a invasão
das visibilidades da televisão e da propaganda,
quanto com o roubo das imagens de uma
sociedade de controle, que então se anunciava.
A onividência divina dando vez ao olho das
câmeras de vigilância. Seus vídeos interrogam
as tiranias que exercitam e extraem o poder da

imagem, esvaziando-a em submissões crédulas. As tiranias que promovem estratégias de cegueira e de emudecimento:
manipulam o desejo de ver, violentam nossa capacidade de julgar, subtraem-nos a palavra. Encarceram visão e voz na
servidão dos consensos econômicos, políticos, religiosos, fusionais, identitários, quais sejam. Mas ela o faz, acredito,
indagando os fundamentos de nossa relação com a imagem.

Nos vídeos de Letícia Parente, corpo, casa, figura, as tarefas cotidianas ganham contornos singulares, solicitam outras
aproximações. Os rituais domésticos assemelham-se à paixão da carne e da imagem, interrogam a capacidade de
sentir, de afetar e de ser afetado. São as pequenas paixões do cotidiano, suas passagens, os modos de aparição de um
provável homem dotado de palavra e de visão. O que está em questão ali é a natureza da imagem que se ergue e se
imagem que existe por nós e faz um mundo advir
por ela, no jogo das aparições e desaparições
recíprocas entre homem e mundo. O que está
em questão ali, penso, é a possibilidade de um
homem, de uma humanidade sempre por vir.
Figura paradoxal que se debate entre seu excesso,
sua infigurabilidade, e o desejo e desenho de sua
imagem. Entre o véu que cobre a face inominável
e o véu como plano de inscrição de um nome
encarnado. Afinal, aquilo que um dia chamamos
homem nasce da palavra encarnada na imagem.

Na instalação Medidas (1976), realizada no Museu


de Arte Moderna do Rio de Janeiro, as pessoas
eram convidadas a passar por uma série de testes e
escolhas tipológicas para montar seu perfil ou sua
face. Eram formas de mensuração, classificação e
catalogação as mais diversas: definições dos tipos
físicos (altura, peso, forma do rosto e proporções da
face); comparação e escolha de uma das imagens
da história da arte (como Virgens e Vênus) ou de
tipologias supostamente científicas; um audiovisual
com slides, extraídos do livro Guiness do ano,
que exibiam o que escapava dos padrões e das
medidas habituais (como a mulher mais gorda ou
as unhas mais compridas); um ambiente em que
se guardavam as medidas secretas. Dispostos em
seqüência linear, cada um passava por essa espécie
de “estações de sua paixão pessoal” munido de uma
ficha em que preenchia seus dados particulares.

“A medida é a conveniência [convenience] de um


ser a um outro ou a si mesmo”, disse Jean-Luc
Nancy. Se a Antigüidade era o mundo da “medida, do horizonte, do phronésis, da mésotès e do metron – em que a
hybris era por excelência a desmedida mensurável – essa medida era a conveniência de ser si mesmo, o modo e não
sua dimensão.”1 A medida do mundo moderno e ocidental foi, por sua vez, o modo desmedido do infinito. Um modo
infinito de ser cujo fundo é cristão. Pois ainda que a criatura conservasse uma medida pelo reflexo de Deus, guardaria
também o vestígio de seu criador: o homem, medida de todas as coisas, esse filho do humanismo grego e cristão,
possuiria por conveniência Sua imensidão, Sua não-medida.

Mas o que seria hoje, a medida ou a desmedida da existência sem Deus e sem eu, senão o sem-medida enquanto tal, que
conduz o próprio homem a uma outra imensidão? Não mais como substância, não mais como o infinito de Deus, mas a
imensidão da “responsabilidade”2. A imensidão de um cuidado.

Ora, nossa relação com a imagem está indiscutivelmente vinculada ao pensamento cristão. “A imagem fez uma entrada
real em nossa cultura em que a encarnação cristã deu à transcendência invisível e atemporal sua dimensão temporal
e visível, a transcendência que negocia com o acontecimento (...). Deus entra na história pelo nascimento de sua
imagem filial. Doravante, no Ocidente, a manifestação do visível se descreve em termos de nascimento, de morte e de
ressurreição, ela se endereça aos corpos vivos dotados de palavra e julgamento.”3

Nas reflexões de Marie-José Mondzain, o imaginário contemporâneo tem suas fontes na crise do iconoclasmo em
Bizâncio4. Em sua dupla natureza, Verbo e Carne, Cristo é o ícone que serve de modelo, imagem natural de uma
invisibilidade. Foi a partir dessa imagem que o homem pôde produzir imagens artificiais. Por isso o véu do interdito
bíblico, que cobre a imagem de Deus hebreu, pôde se tornar um plano de inscrição da face do homem cristão. A Paixão
de Cristo é oferecida então em espetáculo aos olhos dos homens como uma redenção a imitar. O destino icônico da
paixão ativa de Cristo transforma-se na “paixão da Imagem”, diz a autora, que reúne em si todos os destinos e paixões
em uma única fábula em que fiéis são atores e espectadores. A redenção da própria Humanidade.

Mas se o pensamento cristão instaurou um laço solidário e fundamental entre a palavra invisível transfigurada em
imagem à nossa realidade viva e corpórea, ele o fez preservando seu enigma, seu espelho velado. Enigma da carne
habitada pela Voz invisível que enuncia Sua manifestação, mas que mantém nos filhos o desejo insaciável de ver Sua
face, pois a imagem é sempre estranha àquilo a que ela serve de imagem. Como esse Deus estrangeiro que habitou entre
nós. É em torno dessa invisibilidade estrangeira se institui o que Mondzain denomina o “comércio dos olhares”.

A imagem é o “lugar de crise”, diz. Não é uma experiência mística, mas uma negociação entre o visível e o invisível,
entre a distância e a proximidade. A liberdade face às imagens necessita de um olhar crítico que os coloque em relação.
Crise, do verbo grego krinô: discernir, distinguir,
escolher, julgar. “Ver é julgar.” “Dar à imagem um
estatuto crítico era uma promessa de liberdade.” É a
partir do lugar assinalado para o espectador, que exige
uma distância por onde ele se movimente, que se pode
julgar. “Não se partilha o visível sem construir o lugar
invisível da própria partilha.”5 Ela demanda a palavra,
o apelo e o envio dos olhares, que se encontram pelas
imagens. A economia do visível é uma escolha política,
aquela da partilha do amor e dos ódios, a partilha de um
mundo comum.

O comércio dos olhares, a economia própria à

imagem, nada se relaciona com o mercado das visibilidades, diz Mondzain. Não é a proliferação das imagens, pelas
técnicas modernas de produção e difusão de imagens, que constitui uma situação nova. “A presença da imagem e
o reconhecimento de seus poderes remonta há milênios.” Não estamos sob a inflação das imagens em um mundo
submerso de coisas a ver, “jamais a imagem esteve tão ameaçada e arrisca-se a desaparecer sob o império das
visibilidades. Há cada vez menos imagens”6.

Quando o comércio dos olhares se transforma na gestão comercial do visível, o mercado dos espetáculos constrói
“o império das barbáries”. A extenuação da imagem condena o olhar e sua liberdade à servidão de “iconocracias”.
Programar o consumo unívoco e o consenso de um sentido é destruir a imagem e produzir a idolatria por um poder

econômico totalizante. Extravia-se o lugar do


espectador: não há palavra, escolha, ou um juízo sobre
nossos gostos e afetos. Não há a partilha de uma vida
em comum.

Assim o plano de inscrição se transforma no registro


da mercadoria. E o fora do lugar, o exterior que se
abriria à cidade humana se converte na inscrição de
um poder entre fronteiras dos territórios econômicos,
no solo indiferenciado das identificações e incorporações do mercado. No vídeo mais
conhecido de Letícia Parente, Marca Registrada (1975), a artista costura, na pele da sola do
pé, a expressão Made in Brasil. Não a imagem da palavra inscrita na carne, mas a marca
exaurida.

Seria necessário, então, devolver a condição de estrangeiro em sua própria pele, ou antes,
incorporar seu próprio impróprio, encarná-lo: o corpo sem próprio se entrega à errância, que
abre incondicionalmente as fronteiras à alteridade qualquer. Em Preparação II (1976), a
artista se aplica vacinas contra todas as formas de poder e preconceito, contra o pensamento
absoluto que reduz o outro ao espelho dialético do mesmo: anti-racismo, anticolonialismo
cultural, antimistificação política, antimistificação da arte.

E talvez o lugar do espectador da arte deva ser apenas esse


sem-lugar como abertura infinita. As imagens da arte são
essa oferta ao olhar de qualquer um como pura despesa,
como a prodigalidade de um excesso que não se deixa
figurar. Para nomear a carne do mundo e partilhá-la com
outros é necessário um dom que não tem certeza de sua
recompensa: a recompensa da acolhida de um olhar, o sopro
e a inscrição de uma palavra estrangeira. E, ainda que o olho
e a voz não vierem recolher essa graça, não há como evitar o
chamado.
1
NANCY, Jean-Luc. Démesure Humaine. In: Être Singulier Pluriel. Paris: Éditions
Galilée, 1996. p.205 A imagem se fez carne. Desde então, o que será a carne de
2
Idem ibidem.
3
MONDZAIN, Marie-José. Le Commerce des Regards. Paris: Éditions du Seuil, nossas imagens?
2003. p.18.
4
MONDZAIN, Marie-José Image, Icône, Économie: Les Sources Byzantines de
l’Imaginaire Contemporain. Paris: Éditions du Seuil, 1996.
5
MONDZAIN, Marie-José. Le Commerce des Regards. op.cit p.146. Entretanto,
não deixando à liberdade de cada um compor sua troca com a divindade, a Igreja Marie-José Mondzain
construiria pelos séculos os dispositivos coletivos, as regras da partilha, a política
e a doutrina das visibilidades programáticas comunicando uma única mensagem. Image, Icône, Économie
Desde então a carne ressuscitada e o corpo eucarístico é o corpo institucional
da Igreja.
6
MONDZAIN, Marie-José. Le Commerce des Regards. op.cit p.17.

abril de 2007
PROPOSTA
GERAL DA
OBRA EM
VÍDEO
Letícia Parente
A artista pretende estabelecer as coordenadas de cada situação
arqueológica, sobretudo com relação ao tempo e ao espaço.

O ponto referencial do espaço, na maioria das vezes, é a própria


autora como elemento ora passivo, ora ativo da ação.

A tecnologia, representada pelo recurso sempre presente, é, na


maioria das vezes, um personagem visível ou invisível. Pode ser
obstáculo nos cortes, ponte de união entre o perto e o longe e
denotador das distâncias, para vencê-las ou ampliá-las, entre
os diversos níveis de consciência interna do personagem. O que
se quer, em suma, do vídeo, é a possibilidade de confrontar a
vivência ao nível mais profundo, do plano do visceral ao plano
do corpóreo tátil com aquelas regiões circundantes do exterior
imediato.

O tempo resta agora “ampliado” pelo poder da máquina, como o


aumento fotográfico de um detalhe. A tecnologia potencializa ao
máximo, por todas as vias de acesso e por todas as vozes que
acrescentam a capacidade de penetrar na ocorrência.

Um dos aspectos mais importantes é que as contradições


permanecem não resolvidas, mas, antes mesmo realçadas de uma
forma ora sutil, ora repetitiva, constante ou fugaz.
PREPARAÇÃO I
MARCA REGISTRADA
A artista chega ao espelho do
banheiro e vai se preparar para sair. A autora costura a sola do pé com uma
Cola um esparadrapo sobre um dos agulha com linha preta. Borda a inscrição
olhos e desenha sobre o esparadrapo “MADE IN BRASIL”.
com lápis de sobrancelha um olho
aberto. Faz o mesmo com o outro O trabalho pretende a materialização
olho. Em seguida, cobre a boca com da idéia de reificação da pessoa, fato
esparadrapo também, e desenha uma característico da sociedade no momento
boca sobre ele com um batom. Ajeita o histórico presente. A coisificação implica
cabelo. Pega a bolsa e sai. em pertencer. O pertencer, porém,
transcende também à coisificação por força
Ano: 1975 da ligação profunda e indevassável com a
Duração: 6 minutos terra pátria. A marca registrada pode se
Formato: porta-pack ½ polegada assemelhar ao “ferro” de posse do animal
Câmera: Jom Tob Azulay mas também é a base da estrutura acima da
qual a pessoa sempre estará constituída em
sua historicidade: quando de pé sobre as
plantas dos pés.

Ano: 1975
Duração: 9 minutos
Formato: porta-pack ½ polegada
Câmera: Jom Tob Azulay
PONTOS (desaparecido)

Uma mão desenha uma caneta com pena sobre


uma cartolina. Depois de desenhada, a caneta
é recortada e costurada com agulha e linha
preta sobre o dedo indicador da mão esquerda.
Em seguida a pena é imersa num tinteiro e
com ela marca-se um ponto sobre uma folha de
papel.

Ano: 1975
Duração: 6 minutos
Formato: porta-pack ½ polegada
IN Câmera: André Parente

A artista entra no seu próprio armário


vazio e se pendura através de sua roupa,
pelos ombros, num cabide. Fecha-se a porta
do armário, encerrando-a.

Ano: 1975
Duração: 3 minutos
Formato: porta-pack ½ polegada
Câmera: Jom Tob Azulay
PREPARAÇÃO II

São aplicadas pela própria pessoa em si


mesma quatro injeções. Após cada aplicação
são escritos dizeres numa ficha de controle
sanitário internacional para a saída do
país. Os registros são feitos na coluna
sob o título VACINAS:

- Anticoloniaismo cultural;
- Anti-racismo;
- Antimistificação política;
- Antimistificação da arte.

Ano: 1976
Duração: 7 minutos
Formato: porta-pack ½ polegada
Câmera: Ana Vitória Mussi

CHAMADA (desaparecido)

A artista entra num apartamento, chega à sala


onde numa mesa está um gravador de som e um
telefone. Grava numa fita a pergunta: “ALÔ, É
A LETÍCIA?”. Repete a pergunta muitas vezes.
Pára a gravação. Volta a fita. Aciona de
novo o gravador e deixa a pergunta ecoando.
Pega o telefone, liga para o seu próprio
apartamento e deixa o fone perto do gravador.
Sai do apartamento, desce as escadas, chega
à rua, desce a ladeira, entra no seu próprio
prédio, sobe as escadas, chega à porta de seu
apartamento, abre a porta com a chave, escuta
o telefone tocando, retira-o do gancho,
ouve sua voz gravada perguntando, “ALÔ, É A
LETÍCIA?”. Responde: “É A LETÍCIA”.

A artista se chama e se identifica por três


vias de acesso. Uma interior imediata, muda,
silenciosa de si para si mesma. Invisível.
Outra através de seu corpo chamando a si e
sendo conduzida pelo corpo, pelas pernas
atravessando o espaço físico até sua casa e
respondendo: “ALÔ, SOU EU MESMA”.

A terceira via localiza-se dentro do meio


tecnológico que grava a sua voz, transmite-a
pelo telefone até a sua casa, fá-la esperar
até sua chegada e chama-a. A esta ela própria
responde: “É A LETÍCIA”.

Ano: 1978
Duração: 10 minutos
Formato: porta-pack ½ polegada
Câmera: André Parente

QUEM PISCOU PRIMEIRO

Duas pessoas (André e Angela Parente)


sentadas diante de um espelho olhando uma
para a outra através do mesmo. Por trás de
ambas um painel e nesse painel um orifício
por onde sai a objetiva de uma câmera de
vídeo (o terceiro olho) na direção do
espelho. As pessoas se observam para ver
quem pisca primeiro. Num determinado momento
dão o jogo por encerrado. Mas quem piscou
primeiro?

Ano: 1978
Duração: 4 minutos
Formato: porta-pack ½ polegada
Câmera: Letícia Parente
ESPECULAR

Duas pessoas, sentadas no chão, uma de


frente para a outra, estão ligadas por uma
espécie de estetoscópio duplo, de modo que
os tubos que saem dos ouvidos de cada uma
se ligam no meio, através de um tubo comum.

A primeira afirma:

“Eu estou pensando que você está escutando


o que eu estou falando.”

A segunda responde:

“Eu estou pensando que você está escutando


o que eu estou falando do que você pensava
que eu estava escutando do que você
falava.”

A primeira prossegue:

“Eu estou pensando que você está escutando


o que eu estou falando do que você está
pensando que eu estava escutando do que
você falava do que eu estava pensando que
você escutava do que eu falava.”

E continua assim até o quinto termo.

Ano: 1978
Duração: 4 minutos
Formato: porta-pack ½ polegada
Câmera: Letícia Parente
O HOMEM DO BRAÇO E O BRAÇO DO HOMEM
(em co-autoria com André Parente)

Vê-se a imagem de um anúncio em néon de


um corpo de homem da cintura para cima,
distendendo e contraindo um dos braços,
num gesto simbólico de exibição de força.
(Trata-se do anúncio de uma academia de
ginástica).

Após alguns minutos dessa cena, aparece


um homem de torso nu, da cintura para
cima, movimentando o braço da mesma forma.
À medida que o gesto se repete, o homem
demonstra fadiga e não sustenta o ritmo
alentando o movimento.

Ano: 1978
Duração: 6 minutos DE AFLICTI (ORA PRO NOBIS)
Formato: porta-pack ½ polegada
Câmera: André Parente e Letícia Parente Aparecem sucessivamente em imagens fixas
Modelo/ator: André Parente gestos de mãos e pés entrelaçados,
contraídos e contorcidos. Cada imagem surge
ONDE (em co-autoria com André Parente, do escuro e depois se dissolve no escuro.
vídeo desaparecido) Uma voz reza uma litania: ORA PRO NOBIS. O
ritmo é como o fechar e abrir de um olho (o
Letícia não deixou nada escrito sobre o olho da câmera), convocado pela invocação.
video ONDE. Trata-se de um jogo de imagens
ao infinito ocasionado pela gravação da Ano: 1979
gravação da imagem de um aparelho de TV Duração: 10 minutos
que transmite a própria imagem do que está Formato: porta-pack ½ polegada
sendo gravado. Constitui-se, portanto, um Fotografias: André Parente
curto-circuito da imagem (da imagem (da Câmera: André Parente
imagem (da imagem))) ao infinito.

Ano: 1978 NORDESTE


Duração: 4 minutos
Formato: porta-pack ½ polegada Uma mala de couro rústica é arrastada pela
Câmera: André Parente autora até o centro do campo visual. A mala
é aberta e vê-se dentro dela duas cobras
vivas sobre um lençol branco. A artista
procura retirar o lençol sem ser atingida
pelas cobras. Ao retirá-lo fecha a mala e
abraça-se ao mesmo. Música de fundo: canção
de Caetano Veloso (“No dia que eu vim
embora...”) terminando no verso “e a mala
cheirava mal...”

Ano: 1981
Duração: 3 minutos
Formato: Betamax, colorido
Câmera: Cacilda Teixeira da Costa

TAREFA I

Letícia não deixou nenhuma anotação sobre


este vídeo. A artista deita-se dobre a
tábua de passar e alguém passa a sua roupa
a ferro (ela estando dentro da mesma).

Ano: 1982
Duração: 3 minutos
Formato: Betamax, colorido
Câmera: desconhecido

VOLTA AO REDOR DO GLOBO (desaparecido)

Dentro de um carro chegando num cruzamento


encontra-se um jornalista com o jornal
O Globo fazendo gestos espontâneos
(quase ritualísticos, de apresentação de
“mercadoria”). Toma-se o jornal, mostra-
se o título e faz-se um círculo demarcado
pelo asfalto em torno de O Globo.

Ano: 1981
Duração: 8 minutos
Formato: Betamax, colorido
Câmera: Cacilda Teixeira da Costa
CARIMBO

A artista é marcada no rosto com o endereço da Bienal. Uma foto


de sua face envelopa o vídeo gravado com o endereçamento e de
novo é endereçado à Bienal. Na Bienal abre-se o pacote e aparece
a fisionomia da atriz remetente como destinatário, na tela de
outro vídeo, no escritório de recepção da Bienal.

Ano: 1981
Duração: 10 minutos
Formato: VHS, colorido
Câmera: Roberto Sandoval

VERDE DESEJO / FOME DA CIDADE (desaparecido)

Um garoto vê um homem comendo um coco em um restaurante de praia.


Deseja o coco. Sobe num coqueiro e tira-o. Abre-o com as mãos. O
coco está vazio. Decepção do garoto e a fome da cidade.

Ano: 1983
Duração: 3 minutos
Formato: VHS
Câmera: desconhecido

TELEFONE SEM FIO (em co-autoria com Ana Vitória Mussi, Anna Bella
Geiger, Fernando Cocchiarale, Ivens Machado, Miriam Danowski,
Paulo Herkenhoff, Sônia Andrade)

O grupo de artistas (autores do vídeo) brinca de telefone sem


fio, fazendo a mensagem passar de ouvido a ouvido e observando a
deformação que ela sofre.

Ano: 1976
Duração: 13 minutos
Formato: porta-pack ½ reel
Câmera: David Geiger
Vias distorcidas:
costuras, ressignificações
e a sensibilidade que se
renova com o tempo
Daniela Castro
A imagem, disse Godard, é apenas o complemento da idéia que a motiva. Desconstruindo Letícia Parente, de Luiz
Duva, resulta então em imagens-complemento da idéia que o motivou a manipular ao vivo a imagem-complemento da
idéia de Letícia Parente em Marca Registrada, de 1975. Letícia já havia afirmado que sua prática artística era enfatizar
a arqueologia do tempo presente. A estrutura em camadas descrita acima estabelece as coordenadas de uma situação
arqueológica espaço-temporal digna de ser observada em seu caráter experimental, técnico e semântico. Da linearidade
tensa do vídeo de Letícia à sua desconstrução no processo de inacabamento da performance em tempo real de Duva, o que
ainda permanece é a potência inventiva de projetar e experimentar.

* * *

A experimentação com novos meios tecnológicos marcou a produção dos pioneiros do vídeo no Brasil nos idos de 1970.
Longos planos-seqüência como registro de performances, intervenções no monitor de TV, a intercalação de técnicas
(“pintar” com a câmera), a inscrição do absurdo como método de narrar a análise de vivências contrapunham-se à
produção televisiva da época, ordenada e dependente da comunicação informacional (censurada). O processo de transmitir
o conteúdo artístico sobrescreveu-se sobre seu próprio conteúdo1. Sendo o processo o aspecto vital da obra, abre-se a
possibilidade de inserção da interlocução do público na construção de seu conteúdo.

Em tempos anteriores aos dos pioneiros do vídeo, mas não menos conflituosos, Walter Benjamin decretava as vias de
extinção da arte de narrar2. Para o autor, o narrador não está presente entre nós em sua atualidade viva; seu interlocutor
vive a exigência de ocupar uma localização numa distância acomodada, num ângulo favorável, devido à privação de uma
faculdade que parecia ser segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. Isso porque, na modernidade,
o “informar” ocupou a atividade de “narrar”. A informação só se valida no novo, ela só vive nesse momento e tem de se
explicar nele. Os fatos chegam acompanhados de explicações, ou seja, quase nada está a serviço da narrativa, e quase tudo
está a serviço da informação: para Benjamin, metade da arte narrativa está em evitar explicações.

A novidade da experimentação artística com a tecnologia vigente na segunda metade do século 20 se encerrava na própria
técnica. Os vídeos pioneiros não explicavam nada, não informavam. Seja por meio do rigor conceitual ou da linguagem do
absurdo, eles narravam as condições opressivas da vivência diária.

Marca Registrada pretendeu, nas palavras de Letícia, “a materialização da idéia de reificação da pessoa, fato característico
da sociedade no momento histórico presente. A coisificação implica em pertencer. O pertencer, porém, transcende também
à coisificação por força da ligação profunda e indevassável com a terra pátria. A marca registrada pode se assemelhar ao
“ferro” de posse do animal mas também é a base da estrutura acima da qual a pessoa sempre estará constituída em sua
historicidade: quando de pé sobre as plantas dos pés”3. A marca registrada é também o blindspot, o ponto cego da herança
violenta da colonização, patriarcalismo e ditadura que constituem essa historicidade; pois, quando de pé sobre as plantas
dos pés, não se enxerga a marca. Quando de pé, parada ou em movimento, internaliza-se a reificação da pessoa como
produto dessa herança, desde a sua base corpórea até sua estrutura identitária. A linearidade tensa do vídeo é revelada na
agonia da lentidão com que a artista costura na pele o conhecimento da coisificação do sujeito (Made in Brazil), que, sem
se revelar nas imagens do vídeo, só lhe resta levantar e esconder para que se possa continuar o exercício da vida. É como
se a violência constituinte desse conhecimento fosse muito dolorosa para ser contemplada em sua eterna costura. “Dá
muita aflição, porque a agulha entra, fere meu pé – só podia ser meu próprio corpo”4; e só podia ser essa parte do corpo.
Não se rendendo à parálise física da revelação do saber – sentada, imóvel – , há de se levantar e caminhar com ele, mesmo
sem enxergá-lo, mesmo que se escolha temporariamente não sabê-lo – pois ele fere. E deixa marca.

A tensão dessa narrativa se revela na estrutura rigorosa da ação do sujeito consciente em registrar a marca desse
conhecimento e de posteriormente suspendê-lo, como se suspensa fosse, também, a esperança de obter agenciamento sobre
ele. Aqui, antes de ser uma novidade técnica, a tecnologia é o modo pelo qual esse conhecimento é transmitido e dividido
entre Letícia e seu interlocutor; ela é personagem visível e invisível na obra. Para a artista, a tecnologia potencializa ao
máximo todas as vias de acesso e todas as vozes que acrescentam a capacidade de penetrar na ocorrência da narrativa.
Em suma, “o que se quer do vídeo é a possibilidade de confrontar a vivência no nível mais profundo, no plano do
visceral, passando ao do corpóreo tátil com aquelas nas regiões circundantes do externo imediato”5. Diferente do novo da
informação, a narrativa não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver6.

* * *

Tampouco foi a intenção de Duva meramente re-enformar (de re-formar e re-informar) a obra de Letícia do ponto de
vista da novidade técnica. O artista assegura-se da faculdade de intercambiar experiências, re-enunciando a potência
inventiva de Marca Registrada. De imediato, um primeiro acesso à performance de Duva pode ser entendido como uma
atualização das possibilidades de experimentação com dispositivos tecnológicos atuais. E de fato o é. Mas há também
a intenção em Desconstruindo Letícia Parente de revelar uma atualização na sensibilidade que se renova com o tempo:
do analógico linear às variações algorítmicas com suas regras arbitrárias determinadas pela combinação de um simples
binário, que organizam nosso cotidiano, determinam nosso comportamento, sempre com a ligeira sensação de que o real
está constantemente nos escapando, escorrendo pelos dedos das mãos.

O plano visceral que se espera do vídeo se mantém. Já o plano do corpóreo tátil transborda nas regiões circundantes do
externo imediato, pois a performance ocorre em três telas de 200 x 300 cm cada, delineando uma gramática espacial
propiciada pela sua arquitetura imersiva e pelo descompasso da desconstrução das imagens do vídeo em tempo real. O
espectador costura seu próprio percurso dentro da performance de Duva, escolhendo as vias de ressignificação da narrativa
sugerida pelo artista.

Os primeiros dez minutos da apresentação mostram Marca Registrada na íntegra. A partir daí, Duva manipula as imagens
se valendo de “marcas” que ele inseriu no vídeo, desconstruindo-o, cortando-o, distorcendo-o. A fita VHS do vídeo
de Letícia entregue ao artista continha fortes drop-outs, pequenas falhas resultantes do desprendimento das partículas
magnéticas devido ao defeito da fita ou ao seu envelhecimento. Como efeito visual, durante a reprodução, aparecem linhas
horizontais brancas na imagem. Duva isolou e transformou esse efeito em um frame de vídeo, distribuindo-o (sampleando)
aleatoriamente pelo vídeo inteiro. Esses riscos, além do efeito sonoro gerido da própria imagem, funcionam como marcas
de manipulação durante a performance. O resultado é uma não-linearidade tensa e cortante. “Quem hoje consegue registrar
os vários níveis de emoção de uma coisa sem danificar profundamente a imagem?”7

Essa questão, colocada em 1984 por Francis Bacon – fonte infindável de inspiração para Duva na criação de inúmeros
de seus trabalhos –, foi em resposta à pergunta sobre o porquê das distorções em suas pinturas. Para Bacon, a técnica ou
o meio de reprodução (medium) de uma idéia é tão artificial, que para resgatá-la da artificialidade e remetê-la de novo ao
real, só a partir da violência da distorção, ou da desconstrução de sua forma verdadeira. A técnica só importa enquanto
remete a algo que a ultrapassa, sem o que não se justifica8.

A releitura sobre a obra de Letícia Parente proposta por Duva não se valida somente na novidade do uso diversificado
com novos meios tecnológicos. Aqui, a tecnologia é também personagem visível e invisível. É sobretudo a espacialização
da narrativa, ao invés de sua temporalização, e a capacidade de inscrever a experiência do interlocutor dentro dela que
recupera com força para o real a idéia já distorcida que a artista traçou há 32 anos. O processo de transmissão do conceito
da obra inclui o aleatório, o inacabado, o recombinado, o repetido, o interrompido. Ao participador é dada a oportunidade
de alinhavar os recortes e escolher suas próprias vias de acesso à narrativa; ou seja, lhe é dado o agenciamento sobre ela.

* * *

A distorção maior e mais sensível em Desconstruindo Letícia Parente é a inauguração do agenciamento sobre o
conhecimento doloroso da coisificação do sujeito. As imagens manipuladas em tempo real não têm começo nem fim;
sua escrita é arbitrária e nada impede que se leia seu conceito a partir da descostura da marca que registra a constituição
do sujeito sobre o signo da historicidade colonialista e patriarcal. No processo de distorcer sua condição coisificada e
assegurando sua condição como sujeito da ação de descostura, Letícia desenraiza-se. E se levanta apenas com uma leve
cicatriz.

1
“A arte é um instrumento de descoberta e conhecimento do mundo, remetendo àquele que se conecta com ela; não ao seu conteúdo mais direto, propriamente dito, ʻmas ao modo pelo qual ele é
transmitidoʼ (processo).” Trecho do texto “Projeto de Arte Experimental”, escrito por Letícia Parente em 1976; cedido pelo curador dessa mostra e filho da artista, André Parente.
2
Walter Benjamin. “O Narrador: Considerações sobre a Obra de Nikolai Leskov”, in Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. São Paulo: Brasiliense,
1994, pp. 197-221 (publicado em 1936 sob o título “Der Erzähler: Betrachtungen zum Werk Nikolai Lesskows”)
3
Letícia Parente, “Proposta Geral da Obra em Vídeo”. Texto não publicado. Cedido gentilmente por André Parente.
4
Ibid.
5
Ibid.
6
Benjamin, p. 204.
7
David Sylvester, Entrevistas com Francis Bacon: A Brutalidade dos Fatos. Trad. Maria Teresa Resende Costa. São Paulo: Cosac Naify, 1995, p. 148.
8
Jean-Claude Bernardet, O Autor no Cinema. São Paulo: ed. Brasiliense/Edusp, 1994, p. 56.
ALÔ, É A LETÍCIA ?1 que surgiram concomitantemente ao aprofundamento da crise do
repertório modernista e formalista, à emergência, no Brasil, dos
Para Ana Vitória, novos suportes e meios de produção imagética (fotografia, cinema,
Anna Bella, Essila, Fernando, Ivens, audiovisual, artes gráficas, arte postal, xerox) e dos novos
Miriam, Paulo e Sonia. espaços, entre eles, a área experimental do MAM do Rio de Janeiro
e o MAC de São Paulo.

Escrever sobre a Letícia me coloca muitas dificuldades. Não sou O audiovisual


apenas filho dela, sou também filho de seu trabalho. De fato, muito
do que eu faço, seja no plano da criação artística, seja no plano O audiovisual desempenhou um papel interessante e jamais
intelectual, me remete de alguma forma ao seu trabalho. Por outro devidamente analisado na produção de alguns artistas nos anos 70.
lado, eu fui não apenas uma testemunha atenta de sua obra mas Muito se falou sobre os Quasi-Cinema, de Hélio Oiticica e Neville
também um colaborador em níveis muito diversos, sempre presente e d’Almeida, por se tratar não apenas de um audiovisual, mas de uma
interessado: fui modelo, fui câmera, fui fotógrafo, fui produtor instalação audiovisual; porém muito pouco sobre as experiências
e fui mesmo co-autor. De forma que escrever sobre ela me dava a dos outros artistas. Segundo Frederico Moraes, ele também autor
estranha impressão de estar, em muitos momentos, escrevendo sobre de algumas experiências de audiovisual, tratava-se de um veículo
mim também., propício à documentação das obsessões dos artistas e dos problemas
A obra de Letícia Parente é pouco conhecida, seja da crítica, brasileiros, a exemplo do documentário cinematográfico.
seja do grande público. Isso se deve, em grande parte, ao fato Letícia realizou uma meia dúzia de audiovisuais. Em seu Eu Armário
de que a arte mídia só veio ganhar espaço no circuito de arte no de Mim (ver imagem na pág. XX), ela nos mostra uma série de
Brasil muito recentemente. Mesmo se restringirmos a arte mídia a imagens de um mesmo guarda-roupa onde desfilam os objetos (roupas
um dos seus principais meios de expressão, a videoarte, nenhum brancas, roupas pretas, temperos, papéis amassados, condimentos,
dos grandes artistas do mainstream é videoartista. Nenhum dos cadeiras, objetos de culto) e as pessoas (em um deles, todos os
críticos do mainstream tampouco tem sequer um texto relevante cinco filhos são colocados dentro do armário) da casa, compondo ao
sobre videoarte no Brasil. mesmo tempo uma estranha taxionomia e um retrato miniaturizado
Por outro lado, muito do que foi produzido em termos de arte e do lar e da artista. Ao mesmo tempo em que vemos as imagens dos
mídia no Brasil, nos anos de 1970, foi perdido. Grande parte dos objetos que compõem essa estranha taxionomia, escutamos a artista
trabalhos de xerox e arte postal, bem como de vídeo e videotexto falar, sob a forma de reza, cujo refrão é “Eu, armário de mim”.
foi perdida, seja porque tratavam-se de materiais frágeis, seja Como em outros trabalhos dela (a série de arte xerox Casa, o vídeo
por causa da obsolescência dos equipamentos, seja pelo despreparo In), as imagens, objetos e gestos do cotidiano nos revelam uma
da instituição da arte do Brasil (que inclui os museus, os “arqueologia do tempo presente” (Letícia).
colecionadores e os artistas) no que diz respeito ao arquivo.
Mais de um terço dos vídeos de Letícia foram perdidos porque ela A arte postal
enviava para as exposições seus próprios “masters”, uma vez que
não tinha, à época, como fazer cópias de seus trabalhos2. Letícia era profundamente construtivista, ou seja, acreditava ser
Em geral, a obra de Letícia é conhecida por meio de seus vídeos. a realidade o ponto de chegada, e não de partida. Não se tratava,
Entretanto, o vídeo não foi sequer o seu principal meio de portanto, para ela, de representar uma realidade preexistente,
expressão. Ela foi iniciada em arte tardiamente, com 40 anos mas de usar as imagens para produzir um efeito de realidade.
(1971), nas oficinas de Ilo Krugli e Pedro Dominguez, no Rio de Em seus trabalhos de xerox, temos distintas séries, cujas mais
Janeiro. Já de volta a Fortaleza, depois de participar de várias conhecidas são Casa e Mulheres. Nelas, a artista pretende utilizar
exposições coletivas e receber um prêmio de aquisição do Salão de códigos gráficos à sua disposição para falar da condição da mulher
Abril, realiza, em 1973, sua primeira exposição individual (Museu em nossa sociedade. A casa é mais do que apenas um território
de Arte da Universidade do Ceará – MAUC) com um conjunto de 29 ou um espaço neutro, mas a confluência de signos e redes que nos
gravuras. compõem, nos produzem.
Em 1974 se muda para o Rio de Janeiro, para fazer o doutorado, Em uma das imagens da série Casa, a artista propõe um mapa de
e continua a freqüentar oficinas de arte. Entre todos os seus uma cidade composto por duas cidades (ver imagem na pág. XX):
professores, o único que deixou marcas em sua obra foi Anna Bella a Cidade da Bahia (como se chamava Salvador antigamente) e o
Geiger, de quem ela herdou um certo tipo de poética conceitual Rio de Janeiro. Essa é a cidade imaginária de Letícia e antevê,
(ver mais adiante o texto de Fernando Cocchiarale, A Terceira de alguma forma, a cidade relacional, a cidade-rede, cidade
Via) na qual se dissolve a separação entre os aspectos visuais e topológica, concebida no projeto de Nelson Brissac, Brasmitte,
conceituais da obra, entre arte e vida, arte e política. Ainda no projeto que une a cidade de São Paulo à cidade de Berlim por meio
final de 1974, alguns colegas e ex-alunos de Anna Bella constituem dos bairros Brás e Mitte. Letícia era uma artista do pensamento
um grupo de arte decisivo para seu trabalho futuro. topológico, heterotópico: sua casa é feita de signos e códigos
Entre 1974 e 1982, esse grupo, que passou a ser conhecido como diversos, de redes e de relações.
o pioneiro da videoarte no Brasil, formado por Anna Bella
Geiger, Fernando Cocchiarale, Sônia Andrade, Ivens Machado,
Paulo Herkenhoff, Letícia Parente, Miriam Danowski e Ana Xerox
Vitória Mussi, produziu uma série de vídeos que circularam em
grande parte dos eventos de videoarte no país e no exterior. Na A questão do corpo na arte vem sendo discutida de forma exaustiva
verdade, o vídeo era apenas um dos meios empregados entre muitos nestes últimos anos. No Brasil, desde o “quase corpo” da obra
outros, como a fotografia, o audiovisual (a projeção de slides neoconcreta, que via na obra de arte um “prolongamento da
com som), o cinema, a arte postal, o xerox e a instalação. corporalidade”, aos happenings e performances dos anos 60, em
A produção desse grupo de artistas, entre eles Letícia, foi que o corpo do artista se tornou um dos principais personagens
fundamental para a história da arte e mídia no Brasil. Não apenas por meio do qual as obras vieram a se revelar como um processo
eles estão entre os pioneiros no uso que se fez desses meios como de produção de subjetividade. Trata-se, antes de mais nada, de
sua produção teve um tremendo impacto entre seus pares. É evidente mostrar que o corpo é por natureza algo que escapa aos modelos
que o grupo desempenhou um papel primordial. de racionalidade e disciplinaridade cartesianos, iluministas,
Roberto Pontual costuma situá-los como parte do que ele veio a fordistas, tayloristas. O corpo é fundamentalmente da ordem
chamar de Geração 70 (entre os quais estão, além do grupo citado, da produção, do desejo, do inconsciente, algo que está sempre
Antônio Manuel, Maria Maiolino, Cildo Meireles, Artur Barrio, João escapando ao processo de reificação do corpo como dado, como ordem,
Alphonsus, Waltercio Caldas, Iole de Freitas, Tunga, entre outros), como modelo. E mais, o corpo não é espaço, visto que é processual,
composta por artistas de tendência experimental e/ou conceitual não apenas porque se inventa e se reinventa sem cessar, mas
porque vai até onde vão os nossos hábitos e desejos. Sem Título (1975), entra em transe como forma de reagir contra
Muito do trabalho de Letícia bebeu desta fonte, de uma espécie de o intolerável da televisão que atrapalha a sua refeição; em A
neo-kantismo, seja ele estruturalista ou bachelardiano, em que Procura do Recorte (1975), Miriam Danowski recorta bonequinhos em
a estrutura é uma categoria topológica e virtual, pura condição folhas de jornal como forma de transmutar os pequenos gestos em
de possibilidade do que vemos, sentimos e fazemos. Seguindo essa rituais transgressivos; em Estômago Embrulhado, Paulo Herkenhoff
linha de pensamento Letícia sempre parte do corpo ou da casa como transforma o ato visceral de comer jornal em uma irônica pedagogia
os lugares privilegiados para exprimir ao mesmo tempo o muro que de como “digerir a informação”; em um vídeo coletivo, Telefone
separa o que liberta do que aprisiona. É nesse sentido que a nosso sem Fio (1976), o grupo de artistas dispostos em círculo brinca
ver ganha importância a imagem do xerox do alfinete (ver imagem na de telefone-sem-fio enquanto a câmara roda em torno deles e o
pág. XX), ao lado do qual se escreve “liberta, aprisiona”. espectador assiste ao processo de transformação da informação em
Em outro de seus xerox (ver imagem na pág. XX), vemos uma série ruído, revelando, por meio de uma brincadeira popular, uma das
de imagens dos quadros de Brueghel, nos quais os personagens principais questões teóricas da comunicação (o ruído é parte do
são como que aprisionados, sujeitados, amordaçados por meio de processo de comunicação e não apenas interferência).
cestas e gaiolas. Trata-se, aqui, de uma imagem recorrente na A obra de Letícia Parente é marcada pela idéia de extrair do
obra da artista, para quem se a arte tem um papel, é porque ela corpo uma imagem que nos dê razão para acreditar no mundo em que
nos leva a repensar os processos de subjetivação. vivemos. Os vídeos (ver imagem na pág. XX) dessa artista são, cada
um deles, preparações e tarefas por meio dos quais o corpo revela
Fotografias os modelos de subjetividade que o aprisionam. Em Marca Registrada
(1975), Letícia, seguindo uma brincadeira nordestina, costura, com
Uma das séries mais conhecidas do trabalho fotográfico de Letícia agulha e linha, na planta do pé, as palavras Made in Brasil, ao
é a Série 158, em que ela se apropria de imagens de rostos de mesmo tempo em que revela o processo de coisificação do indivíduo,
modelos em revistas femininas. Ela submete as imagens dos rostos presente em vários de seus vídeos; no vídeo In (1975), vemos a
a deformações de forma a tornar um rosto mais longilíneo ou o artista entrar em um armário, como se tivesse virado roupa; em
contrário (ver imagem na pág. XX). Essa ação visa a deflagrar Tarefa I (1982), a artista se deita em uma tábua de passar e uma
uma problematização das taxionomias caracterológicas, que tendem preta passa a sua roupa a ferro (o contraste entre as mãos da negra
a interpretar o determinismo de certos aspectos físicos sobre que passa a ferro, mas cujo rosto está fora de quadro, e a mulher
os aspectos psicológicos. Curiosamente, esse trabalho nos chama branca deitada na tábua de passar faz deste vídeo uma versão
a atenção para os artistas do digital, que vieram a produzir tropicalista do quadro de Manet); no vídeo Preparação I, a artista
deformações dos rostos por meio do uso do Photoshop (é o caso, se prepara para sair, mas ao se maquiar ela cola esparadrapo em
por exemplo, do trabalho de Helga Stein). Na verdade, quando se seus olhos e em sua boca, como para revelar que seus olhos e sua
vê, hoje, o trabalho de Letícia, percebe-se que a deformação do boca são pura máscara, ditada pelas convenções; em Preparação
rosto não tinha nenhum sentido puramente imagético, visava-se II, a artista se aplica uma série de vacinas contra preconceitos
desencadear uma problematização dos modelos sociais de apreensão (racismo, colonialismo cultural, mistificação da arte, etc.).
do rosto. Esses vídeos guardam muitas características comuns: são todos
Em uma outra série fotográfica sem título (ver imagem na pág. XX) eles realizados no espaço doméstico; a artista é quem realiza as
– fotografias que eu fiz do corpo da própria artista a seu pedido e ações que remetem (quase todas) às ocupações femininas (guardar
em função de suas idéias – , Letícia submete seu corpo a uma série roupa, passar roupa, costurar, se maquiar, etc.); nenhum deles
de torções e tensões. Aqui, vemos claramente que o corpo não é contém falas; todos são realizados em plano-seqüência. Isso me fez
mais tomado em uma imagem apaziguadora, cartesiana, do corpo. pensar na possibilidade de fazer uma instalação, onde eles fossem
Portanto, o corpo não é mais o que separa o sujeito do objeto, ou projetados lado a lado, em uma grande parede de 20 metros, de
melhor, o pensamento de si mesmo, mas é como algo no qual se deve forma que os aspectos comuns – a coisificação da pessoa, a condição
“mergulhar” (o mergulho no corpo era como que a fórmula produzida feminina, a opressão das tarefas e preparações cotidianas – fossem
por Hélio Oiticica para exorcizar o platonismo, o purismo, o potencializados.
formalismo modernista) para ligar o pensamento ao que está fora Para alguns críticos, os trabalhos de Letícia e do seu grupo
dele, como o impensável. são como que registros de performances. Isso porque os aspectos
O que é o impensável? É, em primeiro lugar, o intolerável que técnicos da filmagem e da montagem são relegados a um segundo
leva ao grito silencioso de um corpo torturado involuntariamente, plano. Em todo caso, o que importa é que nos vídeos dos pioneiros
silenciosamente; é o desespero que leva a artista a contorcer seu a câmera e a filmagem agem sobre os corpos e personagens como
corpo até se deformar em gestos inúteis, vazios, inqualificáveis; um catalisador. Entretanto, hoje fica cada vez mais claro que
é a cerimônia estranha, que consiste em forçar o corpo a se os trabalhos de videoarte diferem dos outros em parte por uma
libertar por meio de atitudes fora de convenções; é, sobretudo, espécie de secura, de quase ausência de decupagem e de montagem.
submeter o corpo a uma cerimônia, teatralização ou violência, Na verdade, há um desconhecimento da própria história do cinema de
como no caso em que o corpo tenta se mostrar em uma postura artista aliado a uma certa postura de colonizado. Não creio que se
impossível. dissesse isso sobre filmes de Andy Warhol e Michael Snow. Os corpos
monogestuais de Warhol (alguém dorme (Sleep), alguém come (Eat),
alguém “experimenta” um boquete (Blow Job), alguém se beija (Kiss)
O vídeo e os planos-seqüência vazios de Snow (os 45 minutos de zoom de
Wavelength, as três horas de movimentos panorâmicos de La Région
Nos vídeos dos pioneiros, em geral realizados em um único plano- Central) são uma das principais tendências do cinema experimental,
seqüência, gestos cotidianos repetidos de forma ritualística em um processo de radicalização dos tempos mortos do cinema do
– subir e descer escadas, assinar o nome, maquiar-se, enfeitar- pós-guerra (Neo-Realismo, Nouvelle Vague, Cinema Novo mundial).
se, comer, brincar de telefone-sem-fio – são encenados de modo
a produzir uma imagem do corpo. Nos vídeos do grupo, a imagem As instalações
é uma inflexão, uma dobra, mas a dobra passa pelas atitudes do
corpo, pelo “mergulho no corpo” – termo de Oiticica que retomamos Dentre todos os seus trabalhos, o mais expressivo e atual a nosso
como expressão da reversão estética, a cura da obsessão formal ver é a instalação Medidas (ver imagem na pág. XX). Em primeiro
modernista. lugar, Medidas reúne os principais conceitos e elementos do trabalho
A questão do corpo retorna aqui como um conceito ou atitude de Letícia: o corpo, o rosto, a transformação da ação física, da
crítica, que visa a nos forçar a pensar o intolerável da sociedade presença em ação cognitiva, e sobretudo a problematização dos
em que vivemos. Em Passagens (1974), Anna Bella Geiger sobe modelos de produção de subjetividade. Em segundo lugar, Medidas
e desce lentamente escadas em um ritmo constante, como em um utiliza os principais suportes e meios de expressão utilizados por
rito de passagem; em Dissolução (1974), Ivens Machado assina o Letícia ao longo de sua carreira, a fotografia, o audiovisual, o
seu nome uma centena de vezes até ele se dissolver; Sônia, em
xerox, a instalação, entre outros. Evidentemente, os novos meios anódina), Letícia produz arte como uma forma de nos libertar de
de produção de imagem não são, no caso de Letícia, determinantes uma certa visão da ciência.
– neles, o meio não é a mensagem, como diria McLuhan –, mas são sem Para terminar este texto, gostaria de agradecer a Daniela Bousso
dúvida condicionantes, isto é, são a condição. Medidas é, a nosso pelo convite que me foi feito para realizar esta exposição no Paço
ver, a primeira grande manifestação de arte e ciência no Brasil. das Artes. Gostaria de agradecer à equipe e aos amigos do Paço das
O texto de Roberto Pontual, que escolhemos publicar neste catálogo, Artes, em particular a Angela Santos e Marcelo Amorim, bem como
nos apresenta uma descrição bastante correta da exposição Medidas. aos colegas Fernando Cocchiarale, Marisa Flórido, Cristiana Tejo,
Entretanto, há uma série de questões a ser aprofundadas. Uma Daniela Castro, Cláudio da Costa e Katia Maciel por terem aceito
delas diz respeito à forma como Letícia se aproxima da estratégia o convite para escrever sobre o trabalho de Letícia Parente.
estruturalista, em particular Michel Foucault, de desnaturalizar
o corpo, de pensar o corpo como algo que é produzido pelas forças
bio-políticas. O que é interessante no pensamento estruturalista, Paço das Artes
que é um pensamento do dispositivo por excelência, é que ele
procura pensar os campos de força e relações que constituem É com grande satisfação que o Paço das Artes apresenta esta
os sujeitos e signos dos sistemas culturais para além de suas exposição de Letícia Parente, artista que atuou na década de
particularidades psicológicas (pessoalidade) e metafísicas 1970, período rico na cena política e cultural brasileira, quando
(significação). O pensamento estruturalista é relacional, embora ao mesmo tempo em que se vivia sob um clima de falta de liberdade
tenha guardado um resquício de idealismo, seja porque acredita em e contestação à ditadura militar surgiam novas experimentações
estruturas essenciais e formas a priori (por exemplo, o incesto e no campo da arte.
castração para a psicanálise e para a antropologia), seja porque Letícia fez parte de uma geração que realizou os primeiros
acredita na homogeneidade dos elementos que formam a estrutura experimentos da videoarte no Rio de Janeiro a partir de 1974. Ao
(são da mesma natureza). fazer uso do suporte do vídeo para a arte propôs um deslocamento
Segundo Foucault, um dispositivo possui três níveis de do foco do objeto para o corpo e a subjetividade.
agenciamentos: 1) conjunto heterogêneo de discursos, formas Hoje, a utilização de novas mídias já está totalmente incorporada
arquitetônicas, proposições e estratégias de saber e de poder, à produção das atuais gerações de artistas brasileiros. No
disposições subjetivas e inclinações culturais, etc.; 2) a entanto, o trabalho de Letícia Parente foi um marco importante
natureza da conexão entre esses elementos heterogêneos; 3) a nos primórdios deste processo.
“episteme”ou formação discursiva no sentido amplo, resultante das O Paço das Artes considera não somente oportuno mas de extrema
conexões entre os elementos. Na verdade, a visada sistemática da importância resgatar e difundir amplamente a obra desta artista
concepção foucaultiana está plenamente contemplada na etimologia que marcou presença na recente história da arte brasileira.
da palavra “dispositivo”. Esta mostra vem reafirmar a missão do Paço das Artes de exibição,
Há dispositivo desde que a relação entre elementos heterogêneos difusão e reflexão da arte contemporânea.
(enunciativos, arquitetônicos, tecnológicos, institucionais, Acreditamos que com esta mostra e este livro oferecemos ao nosso
etc.) concorra para produzir no corpo social um certo efeito de público mais um excelente acesso ao conhecimento do que há de
subjetivação, seja ele de normalidade e de desvio (Foucault), seja melhor na produção da arte contemporânea brasileira.
de territorialização ou desterritorialização (Deleuze), seja de
apaziguamento ou de intensidade (Lyotard). No caso de Letícia, Vias distorcidas:
as medidas são produzidas no sentido de produzir no corpo dos costuras, ressignificações e a sensibilidade que se renova com
visitantes um efeito de desocultamento dos dispositivos sociais. o tempo
Nesse sentido, o que ela faz é criar uma situação, um dispositivo
(na verdade, um conjunto de dispositivos) interativo de medição
do corpo. Não se trata de forma alguma de medir para fazer o A imagem, disse Godard, é apenas o complemento da idéia que a
visitante (aqui, o espectador já não tem mais nada de espectador, motiva. Desconstruindo Letícia Parente, de Luiz Duva, resulta
ele é “interator” no sentido mais forte desta palavra) conhecer o então em imagens-complemento da idéia que o motivou a manipular
seu corpo. A estratégia é muito mais desvelar o trabalho, ocultado ao vivo a imagem-complemento da idéia de Letícia Parente em Marca
pelo sistema produtivo, por meio do qual produzimos nosso corpo Registrada, de 1975. Letícia já havia afirmado que sua prática
ao tentarmos nos adequar aos modelos que o sistema secreta, em artística era enfatizar a arqueologia do tempo presente. A
função de suas estratégias de saber, de poder e de produção de estrutura em camadas descrita acima estabelece as coordenadas de
subjetividade (os três eixos principais do sistema de pensamento uma situação arqueológica espaço-temporal digna de ser observada
foucaultiano). em seu caráter experimental, técnico e semântico. Da linearidade
Na verdade, a exposição de Letícia joga com duas estratégias tensa do vídeo de Letícia à sua desconstrução no processo de
básicas: um dispositivo de mobilização do espectador (que age no inacabamento da performance em tempo real de Duva, o que ainda
nível sensório-motor, ou seja, das ações perceptivas, físicas, permanece é a potência inventiva de projetar e experimentar.
afetivas), no sentido de operar as medições solicitadas, por outro
lado, um processo de desocultamento, no sentido de levar pouco * * *
a pouco a perceber que as ações que fazemos no nível sensório-
motor têm como conseqüência a crença de que nosso corpo é natural, A experimentação com novos meios tecnológicos marcou a produção
quando na verdade ele é fruto de uma negociação permanente entre dos pioneiros do vídeo no Brasil nos idos de 1970. Longos planos-
os modelos do sistema (as normas, as prescrições, a disciplina, o seqüência como registro de performances, intervenções no monitor
conceito de saúde, do que é ou não melhor para o corpo, enfim, os de TV, a intercalação de técnicas (“pintar” com a câmera), a
modelos de racionalidade e de funcionalidade do corpo) e os nossos inscrição do absurdo como método de narrar a análise de vivências
próprios desejos. contrapunham-se à produção televisiva da época, ordenada e
Trata-se fundamentalmente de uma exposição de arte e ciência na dependente da comunicação informacional (censurada). O processo
medida em que ela desencadeia no visitante um confronto entre de transmitir o conteúdo artístico sobrescreveu-se sobre seu
seus corpos e desejos singulares e os modelos científicos (ou próprio conteúdo . Sendo o processo o aspecto vital da obra,
pseudocientíficos) que ditam as normas e as prescrições, que abre-se a possibilidade de inserção da interlocução do público na
pretendem calibrar a relação entre risco e prazer sobre os nossos construção de seu conteúdo.
corpos. Ao contrário das manifestações de arte e ciência em geral,
aqui a ciência é desnudada no sentido de que não é neutra; ela Em tempos anteriores aos dos pioneiros do vídeo, mas não menos
é o campo por excelência de produção de subjetividade. Portanto, conflituosos, Walter Benjamin decretava as vias de extinção da
ao contrário da maior parte dos artistas que usam a ciência para arte de narrar . Para o autor, o narrador não está presente entre
produzir arte (mas na maior parte dos trabalhos de arte e ciência nós em sua atualidade viva; seu interlocutor vive a exigência
a ciência é o personagem principal da obra, de forma completamente
de ocupar uma localização numa distância acomodada, num ângulo com suas regras arbitrárias determinadas pela combinação de um
favorável, devido à privação de uma faculdade que parecia ser simples binário, que organizam nosso cotidiano, determinam nosso
segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. comportamento, sempre com a ligeira sensação de que o real está
Isso porque, na modernidade, o “informar” ocupou a atividade de constantemente nos escapando, escorrendo pelos dedos das mãos.
“narrar”. A informação só se valida no novo, ela só vive nesse
momento e tem de se explicar nele. Os fatos chegam acompanhados O plano visceral que se espera do vídeo se mantém. Já o plano
de explicações, ou seja, quase nada está a serviço da narrativa, do corpóreo tátil transborda nas regiões circundantes do externo
e quase tudo está a serviço da informação: para Benjamin, metade imediato, pois a performance ocorre em três telas de 200 x 300
da arte narrativa está em evitar explicações. cm cada, delineando uma gramática espacial propiciada pela sua
arquitetura imersiva e pelo descompasso da desconstrução das
A novidade da experimentação artística com a tecnologia vigente imagens do vídeo em tempo real. O espectador costura seu próprio
na segunda metade do século 20 se encerrava na própria técnica. percurso dentro da performance de Duva, escolhendo as vias de
Os vídeos pioneiros não explicavam nada, não informavam. Seja ressignificação da narrativa sugerida pelo artista.
por meio do rigor conceitual ou da linguagem do absurdo, eles
narravam as condições opressivas da vivência diária. Os primeiros dez minutos da apresentação mostram Marca Registrada
na íntegra. A partir daí, Duva manipula as imagens se valendo de
Marca Registrada pretendeu, nas palavras de Letícia, “a “marcas” que ele inseriu no vídeo, desconstruindo-o, cortando-
materialização da idéia de reificação da pessoa, fato característico o, distorcendo-o. A fita VHS do vídeo de Letícia entregue ao
da sociedade no momento histórico presente. A coisificação implica artista continha fortes drop-outs, pequenas falhas resultantes
em pertencer. O pertencer, porém, transcende também à coisificação do desprendimento das partículas magnéticas devido ao defeito
por força da ligação profunda e indevassável com a terra pátria. A da fita ou ao seu envelhecimento. Como efeito visual, durante
marca registrada pode se assemelhar ao “ferro” de posse do animal a reprodução, aparecem linhas horizontais brancas na imagem.
mas também é a base da estrutura acima da qual a pessoa sempre Duva isolou e transformou esse efeito em um frame de vídeo,
estará constituída em sua historicidade: quando de pé sobre as distribuindo-o (sampleando) aleatoriamente pelo vídeo inteiro.
plantas dos pés” . A marca registrada é também o blindspot, o Esses riscos, além do efeito sonoro gerido da própria imagem,
ponto cego da herança violenta da colonização, patriarcalismo e funcionam como marcas de manipulação durante a performance. O
ditadura que constituem essa historicidade; pois, quando de pé resultado é uma não-linearidade tensa e cortante. “Quem hoje
sobre as plantas dos pés, não se enxerga a marca. Quando de pé, consegue registrar os vários níveis de emoção de uma coisa sem
parada ou em movimento, internaliza-se a reificação da pessoa como danificar profundamente a imagem?”
produto dessa herança, desde a sua base corpórea até sua estrutura
identitária. A linearidade tensa do vídeo é revelada na agonia Essa questão, colocada em 1984 por Francis Bacon – fonte infindável
da lentidão com que a artista costura na pele o conhecimento da de inspiração para Duva na criação de inúmeros de seus trabalhos
coisificação do sujeito (Made in Brazil), que, sem se revelar –, foi em resposta à pergunta sobre o porquê das distorções em suas
nas imagens do vídeo, só lhe resta levantar e esconder para que pinturas. Para Bacon, a técnica ou o meio de reprodução (medium) de
se possa continuar o exercício da vida. É como se a violência uma idéia é tão artificial, que para resgatá-la da artificialidade e
constituinte desse conhecimento fosse muito dolorosa para ser remetê-la de novo ao real, só a partir da violência da distorção,
contemplada em sua eterna costura. “Dá muita aflição, porque a ou da desconstrução de sua forma verdadeira. A técnica só importa
agulha entra, fere meu pé – só podia ser meu próprio corpo” ; e só enquanto remete a algo que a ultrapassa, sem o que não se justifica
podia ser essa parte do corpo. Não se rendendo à parálise física .
da revelação do saber – sentada, imóvel – , há de se levantar
e caminhar com ele, mesmo sem enxergá-lo, mesmo que se escolha A releitura sobre a obra de Letícia Parente proposta por Duva não
temporariamente não sabê-lo – pois ele fere. E deixa marca. se valida somente na novidade do uso diversificado com novos meios
tecnológicos. Aqui, a tecnologia é também personagem visível e
A tensão dessa narrativa se revela na estrutura rigorosa da ação invisível. É sobretudo a espacialização da narrativa, ao invés
do sujeito consciente em registrar a marca desse conhecimento e de sua temporalização, e a capacidade de inscrever a experiência
de posteriormente suspendê-lo, como se suspensa fosse, também, do interlocutor dentro dela que recupera com força para o real a
a esperança de obter agenciamento sobre ele. Aqui, antes de idéia já distorcida que a artista traçou há 32 anos. O processo de
ser uma novidade técnica, a tecnologia é o modo pelo qual esse transmissão do conceito da obra inclui o aleatório, o inacabado,
conhecimento é transmitido e dividido entre Letícia e seu o recombinado, o repetido, o interrompido. Ao participador é dada
interlocutor; ela é personagem visível e invisível na obra. Para a oportunidade de alinhavar os recortes e escolher suas próprias
a artista, a tecnologia potencializa ao máximo todas as vias de vias de acesso à narrativa; ou seja, lhe é dado o agenciamento
acesso e todas as vozes que acrescentam a capacidade de penetrar sobre ela.
na ocorrência da narrativa. Em suma, “o que se quer do vídeo é a
possibilidade de confrontar a vivência no nível mais profundo, no * * *
plano do visceral, passando ao do corpóreo tátil com aquelas nas
regiões circundantes do externo imediato” . Diferente do novo da A distorção maior e mais sensível em Desconstruindo Letícia
informação, a narrativa não se entrega. Ela conserva suas forças Parente é a inauguração do agenciamento sobre o conhecimento
e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver . doloroso da coisificação do sujeito. As imagens manipuladas em
tempo real não têm começo nem fim; sua escrita é arbitrária e nada
* * * impede que se leia seu conceito a partir da descostura da marca que
registra a constituição do sujeito sobre o signo da historicidade
colonialista e patriarcal. No processo de distorcer sua condição
Tampouco foi a intenção de Duva meramente re-enformar (de coisificada e assegurando sua condição como sujeito da ação de
re-formar e re-informar) a obra de Letícia do ponto de vista descostura, Letícia desenraiza-se. E se levanta apenas com uma
da novidade técnica. O artista assegura-se da faculdade de leve cicatriz.
intercambiar experiências, re-enunciando a potência inventiva de
Marca Registrada. De imediato, um primeiro acesso à performance
de Duva pode ser entendido como uma atualização das possibilidades Daniela Castro
de experimentação com dispositivos tecnológicos atuais. E de
fato o é. Mas há também a intenção em Desconstruindo Letícia
Parente de revelar uma atualização na sensibilidade que se renova
com o tempo: do analógico linear às variações algorítmicas Letícia Parente: a videoarte como prática da divergência
Luiz Cláudio da Costa - UERJ a importância do comportamento do corpo cotidiano disfarçado
por teatralizações ironizantes, de modo a problematizar a
subjetividade sistematizada e internalizada nesse corpo dominado
por poderes, saberes e discursos não visíveis no âmbito de sua
O vídeo chegou relativamente cedo ao Brasil e seria rapidamente fisicalidade. A cerimônia falsificante que impõe ao corpo posturas
absorvido pelos artistas plásticos interessados em novas excêntricas – pendurar-se como roupa num cabide e trancar-se no
experimentações e meios não tradicionais. Uma primeira geração de armário como em In, ou deitar-se sobre a tábua de passar e ser
artistas de vídeo surge em 1974 no Rio de Janeiro, por ocasião de literalmente passada a ferro por uma mulher negra como em Tarefa
uma mostra de videoarte – realizada na cidade da Filadélfia, nos I – visa atingir potências desconhecidas com o riso, a astúcia
Estados Unidos – para a qual alguns cariocas foram convidados. e a alegria.
O Rio se tornaria, então, pioneiro na videoarte no país, pela
intermediação de Jom Tob Azulay, que trouxera um equipamento A artista proponente e o participante convidado executam a
portapack dos Estados Unidos. Foi com esse aparelho que os artistas ação única extravagante. Os gestos e as atitudes dos corpos
cariocas puderam iniciar seus trabalhos de expansão das artes correspondem a gestos e a atitudes da câmera que se percebe.
plásticas. São Paulo só começaria a produzir vídeos a partir de A câmera fixa ou móvel, consciente de si, enquadra o objeto
1976, quando o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São visado, mas como num filme caseiro e despretensioso. Não é aqui o
Paulo adquiriu o equipamento e o disponibilizou para os artistas enquadramento o que importa, mas aquele registro, aquela imagem
da cidade. A primeira geração de videoarte no Brasil incluía Sônia com todas as imperfeições, a ausência de foco, a imprecisão. A
Andrade, Fernando Cocchiarale, Anna Bella Geiger e Ivens Machado. postura falsificante do corpo precisa ser registrada como um corpo
No ano seguinte, três outros artistas se juntariam àqueles: Paulo no cotidiano da vida familiar. É a sede do registro o que importa:
Herkenhoff, Letícia Parente e Míriam Danowski (MACHADO, 2003). a exigência de apropriar-se do presente, sobretudo no engano da
Letícia formou-se e doutorou-se em química, e a relação com a ciência teatralização, para em seguida fazê-lo variar, constituindo um
e o pensamento científico aparece em seus trabalhos artísticos, seja pensamento impróprio, mas imanente àquele corpo submetido àquela
para problematizar todo pensamento sistematizante e unificante, situação excêntrica. É essa necessidade que afeta a câmera nos
seja para encontrar no método científico uma possibilidade de trabalhos de Letícia e desfaz o propósito de representar aquilo
pensamento sensível. Sua primeira exposição individual, Medida3 que ela visa, assim como o de refletir sobre o dispositivo.
ocorreu no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1976. O interesse da câmera é antes o de constituir uma imagem do
Nessa exposição, Letícia induz os participantes a executar ações pensamento como traço da situação, como cicatriz e não como
físicas, cognitivas, emocionais e reflexivas sobre si mesmos significação. O objetivo não é nem narrar nem propor um discurso
e a registrar os dados de mensuração e classificação (formas, sobre o corpo ou sobre a obra num retorno auto-reflexivo. Ainda que
proporções, capacidades físicas, tipo sanguíneo, etc) em fichas haja esse retorno sobre o corpo, sobre o dispositivo de registro
individuais. Letícia pretende dos participantes “os conhecimentos e sobre o trabalho sendo executado, o que importa é colocar o
de parâmetros pessoais”, a “busca de identificação com modelos dispositivo e o corpo em contato com o que lhe é divergente: a
estáticos preestabelecidos”, “uma tipologia e caracterologia artisticidade, a encenação. Importa colocar a arte em contato com
(pseudocientíficas e obsoletas)”, a “constatação por analogia do a vida, ambos num processo de contrafação mútua, fazendo assim
clima competitivo do mundo contemporâneo, sob formas disfarçadas brotar um pensamento no corpo. A intenção não é auto-reflexiva.
de informação” (Projeto da exposição Medidas). Nessa exposição, Não há uma ação desdramatizada que se desenvolve na frente do
Letícia mostra um pensamento crítico em relação ao método espectador que necessita tornar-se consciente da câmera e dos
científico, ao mesmo tempo o interesse na construção de tipologias seus processos de produção. Esse procedimento de conscientização
e classificações que servem ao pensamento problemático e ramificado dos dispositivos foi proposto pelo cinema e pela arte modernos.
que deseja produzir por meio de seus trabalhos plásticos. Já temos essa consciência proporcionada pela cultura recente.
O interesse nos dispositivos científicos (fichas, seringas, Falta-nos o efeito sobre nossos corpos e nossas vidas, mais que
aparelhos de medição, metodologia) dá a Letícia grande liberdade sobre nossas mentes e nossas obras. Por isso Letícia se propõe a
para transitar por campos distintos e mexer com meios artísticos e ações físicas insignificantes no interior de um cotidiano diminuto
não artísticos. A artista trabalhou com gravura, fotografia, xerox, e sem importância exibidas diante de uma câmera que as registra
fichas de documentação, audiovisual com slides, jornais. Esse sem desprezo nem admiração. Os primeiros espectadores serão a
lugar limítrofe em que se encontra como profissional da química pessoa com a câmera e o artista em performance. Essa repetição da
e artista plástica, fronteira a partir da qual parece desejar imagem e a variação do atual e familiar é tudo o que importa.
fundar seu trabalho artístico, mostra, sobretudo, a necessidade
As artes plásticas no Brasil nos anos 70, fortemente vinculadas
de questionar esses mesmos campos e seus dispositivos, assim como
à cena internacional, viviam um momento muito rico, com os
os discursos proporcionados. Mas questioná-los não pressupõe que a
desdobramentos de problemas que passavam das condições espaciais
artista perceba nesses meios uma especificidade ou unidade que deva
da percepção às suas bases corpóreas. O espaço bidimensional da
ser encontrada por seu olhar, seus procedimentos artísticos ou
reflexão. Ao contrário, parece mesmo buscar o pensamento heterogêneo tela já havia sido problematizado pelo Neoconcretismo e esses
artistas propuseram não-objetos no espaço da galeria que exigiam
por meio dos dispositivos que questiona e problematiza. Nesse
a participação do corpo do espectador, ora manipulando objetos,
sentido não interessa à artista a relação de reflexividade sobre um
ora adentrando espaços envolventes. Hélio Oiticica e Lygia
gênero ou uma esfera do conhecimento como se essas regiões fossem
Clark radicalizaram essa transformação ao promover o corpo como
autônomas. Parece antes desejar colocar esses círculos da prática
lugar, meio e suporte de suas expressões artísticas em trabalhos
e do saber – seus dispositivos, instituições e discursos – em
sensoriais. A experiência de novos suportes levara Hélio Oiticica
contato para atrito e divergência, desfazendo a lógica de oposição
a invenção dos Quase-cinema, série de trabalhos audiovisuais que
entre verdadeiro e falso. Letícia conjuga arte, ciência e vida,
utilizava projeção de slides, realizada em Nova York no início
no sentido de fazer surgir um conhecimento do corpo cotidiano
dos anos 70. Esses trabalhos, entretanto, não foram expostos
por meio de formalidades e cerimônias que problematizam as ações
publicamente na época. Outros artistas também experimentavam a
programadas e as classificações sistematizadoras da ciência.
expansão dos meios com filme de 16 mm ou super-8: Antônio Dias,
Nos trabalhos em vídeo de Letícia Parente, câmera e corpo agem Barrio, Iole de Freitas, Lygia Pape, Rubens Gerchman, Agrippino de
sem que um ou outro esteja vinculado à representação de uma Paula, Arthur Omar, Antônio Manuel e o próprio Oiticica (CANONGIA,
ação dramática. Sem que algo seja propriamente representado no 1981). Freqüentemente, para esses artistas, o interesse na imagem
sentido dramático, o corpo da artista executa uma ação única técnica vinha da possibilidade de se registrar novas experiências
solitária (Preparação I, Marca Registrada, In, Nordeste) ou com a corporais. Iole de Freitas, na série Glass pieces/life slices
participação de uma outra pessoa apenas (Quem piscou primeiro?, (1974), apresentava múltiplas faces de seu corpo, fragmentado
Especular, Tarefa I, Carimbo). Em todos esses vídeos, percebemos por espelhos. Lygia Pape, depois de participar lateralmente em
cinema como programadora visual para Nelson Pereira dos Santos, relações que a obra constitui com o contexto da arte. A obra
Joaquim Pedro de Andrade e Glauber Rocha, decide experimentar o tendia a desaparecer enquanto objeto de contemplação e tornava-
super-8 na direção oposta àquela que considerava de “resultado se, primeiramente, objeto de manipulação e, posteriormente, espaço
amorfo, bem comportado e cinemanovista” (CANONGIA, 1981: 43). para a participação e a mobilização corporal, assim como para a
Com Eat me (1976), Lygia constrói uma montagem métrica, não ocorrência de um evento por vir. A arte tornava-se antes o lugar
dependente de ação dramática, a partir de dois planos-base de para o investimento e a produção de subjetividades, um pretexto
uma boca masculina que engole e expulsa uma pedra sobre a língua para agenciamentos estéticos, mas também filosóficos, sociais,
(CANONGIA, 1981). antropológicos, políticos.

Em todos esses casos em que há um forte investimento do corpo e da Com essa estética da desaparição em que a obra para contemplação
subjetividade, ainda que diferentemente em outros filmes de artista se vê desmaterializada, problematizada e desdobrada em eventos,
da época, a montagem aparece como procedimento que interessa reflexões, depoimentos, notas, escritos. E desse processo fazem
ao artista. Assunto de debate, no sentido de uma recuperação parte o envolvimento físico-corporal e mental-conceitual tanto
dos escritos de Eisenstein e Vertov pela crítica cinematográfica do artista como do espectador. Com isso surge, no rastro dessa
daqueles anos, a montagem torna-se procedimento integrante na errância de obra, a prática da performance como indispensável, uma
produção dos filmes de alguns artistas plásticos envolvidos com vez que o produto, obra ou objeto final tornavam-se desobrigados.
cinema. A montagem métrica - que segundo a reflexão de Eisenstein, A tendência à dissolução do objeto levava muitos artistas a se
soma-se à rítmica, à tonal, à atonal e à intelectual - utilizada interessarem por esse novo campo de expressão, o vídeo. A imagem-
por Lygia Pape é, dentre outros, um dos processos mais elementares movimento era atraente para o artista interessado nas dobras da
na construção de conflitos e contrapontos (EISENSTEIN, 1990). Lygia obra sempre ausente, porém estendida em registros fotográficos,
Pape reinventa esse procedimento simples do cinema tradicional e fílmicos, literários, etc. O cinema, porém, tal como havia se
cria um problema para a medida metricamente calculada colocando-a estabelecido, colocava o artista-autor e o espectador em lugares
em contato com a forte conotação erótica de seu tema: o erotismo distintos e a obra cinematográfica, ainda que questionando os
desmontando a racionalidade matemática. O problema da montagem no sentidos e as identidades fixas, devolvia os atores vinculados
cinema mundial e também no Brasil era retomado em grande parte por ao processo da obra a seus lugares tradicionais. O cinema tinha
influência dos filmes e reflexões de Jean-Luc Godard desde os tempos seu espaço próprio para acontecer, a sala escura. Era preciso
de crítico, no final dos anos 50 e início dos anos 60, nos Cahiers possibilitar a participação corporal na produção do sentido de
de Cinema, revista francesa de cinema que ajudou a impulsionar a outros atores envolvidos no processo fílmico - os espectadores.
conhecida Politique des auteurs e a Nouvelle Vague. O pensamento Coisas inesperadas estavam por vir.
plástico-cinematográfico de Godard, fundado na montagem que
utilizava cenas, sons e escritos gráficos na imagem em disjunção, A nova tecnologia de captação de imagem em movimento que chegava
colocava pensamentos, tempos e gêneros artísticos, literários e ao Brasil com o portapack permitiria fazer o que o cinema não era
cinematográficos em relação de exterioridade paradoxal, avultando capaz: ver o registro da imagem no mesmo instante de sua produção,
o sentido e lhe devolvendo as múltiplas direções. além de possibilitar a participação de outros atores no processo.
No que diz respeito às performances, o vídeo permitiria tornar,
Nos anos 70, os artistas plásticos vinham de um contexto que imediatamente, um trabalho de corpo em acontecimento de imagem,
colocava em dúvida a legitimidade dos suportes tradicionais. o que daria complexidade temporal ao evento presencial por sua
Afloravam também os questionamentos sobre a função da arte, o imediata virtualização. Na imagem do vídeo, a presença tornava-se
circuito e o mercado em que a obra se insere. Como fetiche de problemática, desmaterializada, reflexiva e agenciadora de duas
consumo e signo de status social, a obra de arte é entendida antes formas de presença, a física-referencial e a virtual-indicial Essa
como parte de uma engrenagem do que objeto cultural significante. mídia viria somar às novas idéias vigentes da obra ausente, que
A Revista Malasartes do fim do ano de 1975 publicaria dois exigia tanto do artista como do espectador desdobramentos fantasmas,
textos importantes relativos às questões que o meio artístico elaborações conceituais, movimentos corporais e processamentos
estava interessado no momento. O célebre artigo de Joseph temporais. Em resumo, o vídeo exigia uma assimilação do sentido
Kosuth, de 1969, traduzido para a Malasartes, foi fundamental como marca e cicatriz da experiência física.
para os desdobramentos das artes plásticas de modo geral e,
especificamente, para a arte conceitual. Kosuth levantava os É nesse contexto que os trabalhos de Letícia Parente surgem,
problemas da separação entre a arte e a estética e perguntava-se tornando ainda mais complexa a relação com o espectador. Suas
sobre a função da arte. Tratava do estatuto do objeto artístico performances não existiriam para uma platéia, mas tão somente
e da relevância, para o pensamento e para a produção de arte, para a câmera que a registrava. Um trabalho de videoarte não seria
do contexto institucional em que esta se encontra: o museu, a apresentado em salas escuras com espectadores sentados, mas em
galeria, o curador, o crítico, o historiador, etc - “a existência qualquer lugar onde houvesse um equipamento de exibição e uma TV.
dos objetos, ou seu funcionamento dentro de um contexto de arte, Por falta de recursos técnicos acessíveis aos artistas naquele
é irrelevante para o julgamento estético” (KOSUTH, 1975). O meio momento, os vídeos produzidos pela primeira geração não seriam
artístico tornava-se consciente de que o objeto de arte participa editados. Manteriam, ao contrário, apenas o registro do gesto
da constituição de um sistema de circulação e que seu valor não performático do artista, o confronto da câmera com seu corpo -
provém apenas de sua composição formal. O outro texto publicado procedimento mais elementar dessa nova arte que surgia.
na Revista Malasartes, do crítico Ronaldo Brito, esclarecia essa
função do objeto artístico como fetiche para o mercado e para a O conhecimento do trajeto de Letícia é ainda precário, apesar do
legitimação de uma classe social (BRITO, 1975). esforço de alguns poucos interessados que vem organizando o acervo
da artista. Os primeiros trabalhos de Letícia datam de 1975, sendo
Era um momento de questionar a experiência estética fundada Marca Registrada o vídeo mais conhecido e perturbador para a época.
nas formas sensíveis do objeto e no sentimento de gosto da Nesse trabalho, a artista borda com uma agulha na sola do próprio
recepção contemplativa, marcando a passagem do objeto ao pé a frase “Made in Brasil”. É interessante notar a ausência de
evento que artistas provenientes do Neoconcretismo já vinham composição, o desprezo pela estruturação, a improvisação tanto
efetuando. A problematização do objeto estético enquanto produto da câmera que observa quanto da performer que necessita refazer
final levaria os artistas a valorizarem mais os processos de seus gestos quando um ponto de seu bordado se desfaz. Não há uma
investigação, as mudanças e transformações intermináveis de um composição e nem mesmo construção de obra. Apenas o registro de
evento sempre por vir. A crítica de arte, por sua vez, não podia uma ação familiar e sem grandes pretensões, ainda que a frase
mais analisar somente os elementos formais da composição de uma que Letícia borda em seu pé tenha sentidos simbólicos precisos
obra que discursa sobre seu próprio meio. A crítica haveria de vinculados ao contexto cultural e político da época. Mas o que
incluir a recepção e o espaço no qual o trabalho se insere, as impropriamente nos perturba é o efeito, a variação do atual visado
que não podemos fixar. Dois vídeos de 1978, Quem Piscou Primeiro? e Especular
reproduzem a relação entre duas pessoas, o primeiro na forma
Havia um discurso cultural no momento que privilegiava a noção de um jogo e o segundo, na forma de uma conversa absurda entre
“nacional-popular”. Havia, por outro lado, os artistas da geração os participantes através de uma espécie de estetoscópio duplo.
70 que problematizavam toda idéia de comunidade nacional, afirmando Não há dúvida nesses dois trabalhos, o diálogo que Letícia
a diferença, a subjetividade e o corpo. Havia um governo repressor mantém com os objetos relacionais de Lygia Clark, como Óculos,
de um lado e a esperança de abertura política de outro. Havia a de 1968. Nesse trabalho Lygia Clark adaptou óculos de mergulho
tristeza das mortes promovidas pela ditadura e a esperança de um para a utilização de dois participantes que captam imagens de
Brasil desenvolvido e de livre mercado. Havia as experimentações si mesmos e do ambiente circundante por meio de espelhos que
dos artistas conceituais e a crença num mercado para a arte podem ser rodados conforme a participação. O objeto torna-se
internacional produzida no Brasil. Todas as contradições parecem lugar para estabelecimento de um diálogo entre os participantes.
se multiplicar nesse vídeo feito sem pretensão, sem estrutura, Os dois vídeos de Letícia Parente, produzidos dez anos mais
sem composição. Registrando em seu próprio corpo as múltiplas tarde, mantém a mesma ordem do jogo para potencializar o
contradições do momento, Letícia afirma e rejeita os vários diálogo e a relação entre os participantes. O objeto produzido,
discursos vigentes na cena artística dos anos 70: a noção de obra o estetoscópio duplo, só faz sentido se utilizado como processo
de arte como objeto para um mercado de elite, a idéia de identidade de relacionamento intersubjetivo, de aproximação com o outro,
nacional, a mulher de classe média, o cinema, a política, a de contato, enfim, com o estranho. No caso específico do vídeo
ditadura, a diferença, o sentimento de desprezo, a indiferença, a Especular, o objeto utilizado cria um estranho paradoxo que
falta de sentido, a tristeza, a esperança, etc. mostra que a aproximação com o universo de Lígia Clark não
era superficial. O estetoscópio é um instrumento de ausculta
Marca Registrada ironiza várias noções, conceitos e valores dos de sons internos do corpo (coração, pulmão, estômago, etc) ao
anos 70, criando estranhos paradoxos. Se a frase é uma referência passo que no jogo proposto por Letícia, o aparelho colocado
à artista, tudo está fora de lugar, porque é redundante e óbvio. no ouvido dos dois participantes não permite a ausculta do
A ironia é manifesta. Se a referência é o discurso vigente da espaço interior do outro. Mas interioridade e exterioridade
identidade cultural unificada na comunidade imaginada da nação, criam conexões e atravessamentos, contato e disjunção. A frase
o desprezo parece evidente uma vez que a inscrição é bordada na que os participantes repetem com variações múltiplas – “Eu
parte mais baixa de seu corpo. O fato de ser brasileira ou de quero ouvir o que você está ouvindo de mim dentro de você”,
participar dessa comunidade imaginada é o que menos importa. E se “Eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim do que eu estou
a referência da inscrição é a obra que produz, sua indiferença ouvindo de você dentro de mim”, etc – indica o contato entre
também é total, uma vez que é coisa a ser pisada. É negada a noção interioridade e exterioridade que está se produzindo mútua
de obra. O que faz a obra é a experiência do descentramento que e indistintamente, num processo de repetição e variação, de
ela é capaz de produzir, por isso a execução de ações excêntricas. estranho acordo trabalhado na dissensão. Esses vídeos não
O ato de bordar, na cultura patriarcal brasileira, é função da são produzidos para a contemplação. Não são propriamente nem
mulher. Bordando sobre a sola do pé, Letícia afirma e rejeita belos nem sublimes, ainda que o sejam impropriamente. Não são
a experiência da identidade feminina vigente em nossa cultura. tampouco discursos estéticos auto-reflexivos, denunciadores
Letícia produz todos esses movimentos, fazendo justamente o que do aparato artístico ou mecânico. O que não implica que não
é dela esperado. Vai ao encontro do esperado com a imagem do haja aspectos contemplativos e auto-reflexivos nesses vídeos.
inesperado. Apenas pretendemos enfatizar que a pretensão é a de praticar
um pensamento e uma política de produção de subjetividade.
Para além dos sentidos simbólicos, há ainda outros indizíveis. Esses vídeos são por isso antes mobilizadores de variações
Fazendo penetrar a fina agulha nas camadas superficiais de sua de identidades individuais e culturais fixas, apresentando
pele, invadindo a superfície de seu corpo com aquele instrumento a subjetividade como extratos fluidos de interioridade e
pungente, Letícia desarticula silenciosamente uma cadeia de exterioridade, discurso e invenção, poder e construção, marca e
experiências, valores, conceitos e idéias enraizadas na cultura ramificação.
artística e na cena política do momento. Mais do que minar A arte nos trabalhos de Letícia Parente torna-se campo
valores arcaicos substituindo-os com outros mais novos, Letícia de experiência, prática do estranhamento do hábito, do
dá mobilidade aos sentidos. Parece antes colocá-los a mover-se do comportamento e do mundo da cultura e das instituições. Em
que trocá-los por outros quaisquer que pudessem valer mais. Não há Nordeste (1981), vemos uma mala de couro rústico sendo aberta
o novo a ser substituído pelo antigo, mas há movimento crítico, e em seu interior duas cobras vivas sobre um lençol branco.
questionamento. São justamente os valores, sejam eles da arte, da A pessoa, que jamais é identificada por seu rosto, manipula o
cultura ou da política que estão em questão. Afinal, um trabalho lençol e modifica a posição das cobras. Nada sobre o nordeste
artístico exposto sobre a sola do pé que tocará a terra, o chão, brasileiro temos acesso nesse vídeo, nada sobre o sertão tão
não é aceitável para os valores de uma cultura que acredita que a presente nas telas de nosso cinema desde os anos 60, nenhuma
arte eleva o espírito. representação do outro. A identificação e representação não são
mais possíveis, mas ainda assim é preciso inscrever sensações.
O comportamento disciplinado de um corpo dócil que age cegamente A música dos Novos Baianos insere às experiências de Letícia
comandado por ordens que ele mesmo desconhece parece mesmo Parente naquele momento pós-tropicalista em que a arte faz
interessar a artista. Em Preparação (1974), Letícia se prepara sentido enquanto experiência de expansão dos sentidos, das
para sair. Desviando dessa ação cotidiana simples e familiar sensações e dos valores. Ao nomear Nordeste esse trabalho,
por meio da teatralização, Letícia se coloca diante do espelho Letícia não propõe uma imagem da cultura nordestina, mas antes
e cobre os olhos e a boca com esparadrapos. Sobre eles, desenha mobiliza a experiência singular dessa região de nosso corpo
outros olhos e outra boca. O que se revela nesse trabalho é a cultural ao qual se dá o nome de “Nordeste”.
afirmação de uma necessidade, um desejo: falsear o corpo é inventar
um sujeito, é potencializar outros modos de ver e sentir. Outros O vídeo tem algo da estranheza de Marca Registrada. Aqui, a agulha
comportamentos implicam em novas subjetividades. Essa é a política é substituída pela cobra. Surgem outra vez: a presença do corpo
do corpo praticada por Letícia Parente em seus vídeos, o que sem identificação de um rosto, o vínculo forte com o presente da
mostra que o campo da estética não diz respeito somente ao gosto cultura. Mas outros elementos renovam os problemas: a região
e às formas, mas também a uma esfera prática. A arte se expande do país em questão (o nordeste), uma canção urbana, o contato
ao cotidiano e ao espaço da existência para retirar-lhe a vida com o animal repulsivo. Novos componentes se espacializam e se
escondida nos escombros do corpo disciplinado. temporalizam numa mesma prática da disjunção, uma vez que não
podem ser sintetizados numa representação de nação ou de sujeito
Compartilhar a existência com o outro, descobrir-se como um artista. O vídeo, registrando a ação despretensiosa daquele que
outro fez parte das pretensões artísticas de Letícia Parente.
vemos na imagem, agencia forças. Mobilizando um corpo, arregimenta contexto discursivo, institucional, subjetivo ou político, sempre
subjetividades. Agregando as sensações perfurantes da agulha em mobilizando seu próprio corpo e/ou outros participantes, é impor
Marca Registrada ou os sentidos de má índole da cobra, o que se o engano, o erro, o desacordo. Em Preparação II (1975), Letícia
percebe é uma fragilização tanto da obra como do autor, ainda registra a situação do processo de sua saída do país. Entendemos
que a pessoalidade de Letícia, sua proveniência de classe média o contexto pelas fichas do Ministério da Saúde que a artista
educada, afinada com a cultura popular-urbana, suas referências de preenche após cada uma das vacinas que aplica em seu próprio
profissional da química, interessada em dispositivos como agulhas braço. Como em seus outros vídeos, a única tomada registrada
e cobras, estejam presentes. pelo aparelho não mostra o rosto da artista, sempre fora do campo
de visão da imagem. Nesse trabalho de 1975, a artista demonstra
No pouco tempo de sua produção artística, entre 1971-1986, Letícia claramente seu interesse por agenciar questões éticas e políticas
mostrou-se interessada pela prática da contestação pontual, mas além das artísticas, por meio da mobilização de seu próprio corpo.
irônica e teatral: a contrariedade enganosa força a vida para Aplica-se cada uma das vacinas contra o “racismo”, o “colonialismo
fora do instituído. Sua trajetória artística não foi muito longa, cultural”, a “mistificação política” e a “mistificação da arte”.
mas apontou para uma intensidade alegre, ainda que grave em Fica claro que o contexto político coercitivo do governo militar
certos momentos. O jogo e a brincadeira sempre fizeram par com a está em pauta e figurado na instituição do Ministério da Saúde.
prática questionadora. Feito em co-autoria com Ana Vitória Mussi, Mas o contexto artístico que problematizava a propriedade da Arte
Anna Bella Geiger, Fernando Cocchiarale, Ivens Machado, Miriam está acentuado pela ironia do trabalho. Aplica-se vacinas contra
Danowski, Paulo Herkenhoff, Sônia Andrade, o vídeo Telefone vários valores instituídos, do racismo à mistificação artística.
sem fio não é o único trabalho coletivo. Já havia feito outros Aqui o movimento é contrário à fetichização do objeto de arte que o
trabalhos em parceria com André Parente (O homem do braço e o mercado necessita, colocando em questão o que é próprio à arte.
braço do homem e Onde, vídeo desaparecido). Telefone sem fio,
entretanto, mostra a importância do jogo, da cena e do engano na Se por um lado não se fetichiza o trabalho artístico operando
prática contestatória de Letícia Parente sobre as instituições do uma forte ausência de interesse estético pela pouca nitidez da
sujeito, da autoria, da obra, da verdade científica, do pensamento imagem (e de som, quando existente), os vídeos de Letícia impõe
lógico que aliena a contradição e o dissenso ou os disfarça na um pensamento que é simples relação de contato, operação de
unidade. Letícia parecia querer forçar o contato das forças proximidade física. Tal como Lygia Clark que havia descoberto
internas do corpo com seu espaço de exterioridade, exigindo- um pensamento disjuntivo a partir da “linha orgânica”, Letícia
o passar pelo mundo externo do instituído. Forçar o corpo a descobriu a disjunção pelo contato entre a arte e a ciência, o
participar de uma cerimônia encenada de contestação artificiosa corpo cotidiano e o cerimonioso, a instituição e a contrafação,
em que o mundo da ordem sistematizadora, da burocracia e do o valor e a fraude, o acontecido e o encenado. Lygia colocou
poder implicados no corpo se expanda para fora e permita a em contato superfícies (planos, coisas, objetos, corpos) e pela
produção de novos sujeitos, sempre esteve presente nos trabalhos disjunção “escapou do objeto em favor do evento” (BASBAUM, 2006).
de Letícia. Letícia encontrou a imagem da disjunção em seu próprio corpo e
subjetividade, ambos marcados pelo pensamento lógico científico das
No currículo da artista consta da participação na XVI Bienal medidas e dos métodos. Colocando a presença de seu corpo físico em
Internacional de São Paulo, em 1981, no interior do Projeto Arte contato com sua presença virtual, Letícia descobriu a simulação,
Postal. Para essa exposição Letícia produziu o vídeo Carimbo. a encenação e o engano como ordens do corpo, do pensamento e da
Vemos o rosto da artista sobre o qual está sendo escrito o endereço arte em sua impropriedade própria.
da XVI Biena1. A instituição endereçada e para a qual pretende
enviar o trabalho é inscrita na superfície de seu próprio corpo/ Um presente desdobrado em imagem, um corpo que se faz ausente
rosto. As inscrições visíveis provocam o discurso da artista na variação, uma ação que não faz obra são agenciamentos que
que narra sua dificuldade com a Empresa Brasileira de Correios mobilizam o pensamento, mas não chegam a se transformar em reflexão
e Telégrafos, cuja burocracia não permitiu que ela gravasse sua analítica ou trabalhos artísticos auto-reflexivos. Não se pode
proposta original de trabalho. No vídeo não gravado, Letícia dizer que os vídeos de Letícia sejam propriamente auto-reflexivos
teria sua testa carimbada nos espaços da instituição de postagem. porque faltam-lhes a nitidez ilusionista do cinema ou porque os
Em Carimbo, vemos, porém, outra situação. Além da inscrição de drop-outs comentam o meio enquanto dispositivo eletrônico. Ainda
endereçamento feita no rosto da artista, vemos ainda um grande que haja essa dimensão de exposição dos dispositivos técnico
papel que, segundo consta nas descrições do vídeo, é uma foto do e artístico, seus trabalhos são mobilizadores de um pensamento
rosto da artista sendo novamente endereçado à Biena1. A gravação que é puro traço. A figura da auto-reflexividade está inscrita
do vídeo Carimbo é precária, mal escutamos o que narra a artista. como cicatriz que não permite que o trabalho volte-se somente
Mas percebe-se um trabalho feito em estrutura de parênteses. para si mesmo, autonomizando esse processo de outras operações
Vemos no início, alguém colocando uma fita de vídeo no aparelho e esferas. A heteronomia marca os trabalhos de Letícia: eles
para exibição na TV. A imagem da inscrição de endereçamento sobre existem em relação com o mundo das instituições, dos poderes e
o rosto da artista é vista nessa TV. Na parede ao fundo, vemos dos discursos. O pensamento é antes o agenciamento produzido entre
um cartaz da Bienal. A gravação de Carimbo parece ser feita em forças, campos, e esferas contrárias e sempre exteriores. Seus
um escritório e então deduzimos que o vídeo é o registro da vídeos são, nesse sentido, marcas dos eventos e das ações que se
recepção pela Bienal. No fim, a mesma pessoa que colocou o vídeo no propõe atuar, índice de um contexto histórico e cultural que se
aparelho, retira-o. Letícia alcança questionar duas instituições impõe à imagem. Mas enquanto índice é também erro e armadilha,
num mesmo trabalho. A Bienal não é objeto de polêmica, mas os ironia e encenação, tudo conduzindo às ramificações e aos desvios
Correios. A arte postal em vídeo – processo precário e ainda seja dos gêneros artísticos, dos valores instituídos, dos
não institucionalizado pelo sistema das artes – parece estranha comportamentos sistematizados, das instituições e burocracias,
para o espaço que a receberá, ainda que tenha a instituição dos saberes e poderes. Letícia Parente praticou a arte do vídeo
proposto o Projeto de Arte Postal. Mesmo que trate diretamente da como potencializadora de um pensamento da divergência, esse que
instituição que lhe causou problemas – os Correios – por ordem de permite a ramificação dos sentidos e o desdobramento dos eventos.
uma burocracia amedrontada e cega, Carimbo, de maneira irônica e
sob o signo do engano e da ambigüidade, submete a Bienal e seus Bibliografia
dispositivos burocráticos também à mesma crítica.
BASBAUM, Ricardo. “Within the organic line and after”. In: Alberro,
Parece que seus trabalhos frágeis, porém intensos, vídeos que
Alexander. Buchmann, Sabeth. (Ed.). Art after Conceptual Art..
são meros registros de ações não dramáticas, ainda que teatrais
Cambridge: MIT Press, Generali Foundation, 2006
e falsificantes, forçam uma compreensão da arte: o lugar da
BRITO, Ronaldo. “Análise do circuito”. In: Malasartes, Nº 1, set./
prática da impropriedade. Agenciar-se com o exterior de um
out./nov., 1975. Dentro disso, os meios convencionais da arte moderna
CANONGIA, Ligia. Quase Cinema: cinema de artista no Brasil, se tornaram estranhos a novas alternativas de invenção. Temos
1970/80. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981. de observar que a transição para a arte contemporânea foi
EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme.Rio de Janeiro: Zahar, 1990. introduzida por artistas que começavam ali, mas ela foi vivenciada
KOSUTH, Joseph. “Arte depois da fiolosofia”. In: Malasartes, Nº 1, no interior da transformação da obra de vários artistas. Hélio
set./out./nov., 1975. Oiticica fez isso, ele foi moderno e se tornou contemporâneo.
MACHADO, Arlindo. Made in Brasil: três décadas do vídeo brasileiro. Lygia Clark, Lygia Pape, Anna Bella Geiger, Amélia Toledo. Então
São Paulo: Itaú Cultural, 2003. não é uma coisa tão simplória, uma nova geração, é uma coisa mais
complicada mesmo. Essa volta a um diferencial, a reintrodução
da narrativa, alguma coisa que conte algo mais que o que ali
A Terceira Via. Entrevista de Fernando Cocchiarale está, do ponto de vista espacial, por uma linguagem de formas
ordenadas ou desordenadas, algumas bem desdobradas e outras bem
Eu acho que a videoarte é uma manifestação, uma expressão menos complexas.
da crise do Modernismo. A datação é relativa, os americanos tendem
a incluir o Expressionismo Abstrato já no mundo contemporâneo. Eu Mas há a introdução de um fator muito importante, que
penso que o mundo contemporâneo e, portanto a arte contemporânea, eu acho que justifica o Super-8 e o vídeo, que é a assimilação do
tem alguns determinantes muito evidentes, que têm a ver com o pós- tempo na vida social desde o mundo que resulta do Iluminismo, no
2a Guerra Mundial. O principal deles é a invenção do jovem ao longo mundo moderno. A idéia de progresso, de avanço da razão, justifica
da década de 1950. O jovem foi uma maneira de se diluir a oposição a noção de obsolescência, que não existia. Eu duvido que na Idade
proletária ao mundo burguês e criar, dentro do mundo burguês, Média uns carros de boi, uma carroça ficassem obsoletos em menos
diferenças na esfera do comportamento que pudessem justificar a de 200 ou 300 anos. A idéia de que uma coisa vai ser superada e
mudança na permanência. vai ser substituída, no campo da produção, do objeto, do produto,
que hoje em dia está absolutamente exacerbada, tem a ver com a
Muita gente diz que a passagem do moderno para o invenção desses novos tipos de tema, como a história, no século
contemporâneo não se deu porque, afinal de contas, ainda estamos no 17. Quer dizer, agora você tem uma disciplina, você tem métodos
capitalismo. Sem dúvida. Mas a invenção do jovem introduziu uma específicos, você tem a historiografia para explicar por que as
dinâmica na transformação ética, estética e política, a partir de coisas mudam, por que elas se transformam. A introdução do tempo
uma série de sintomas e manifestações, que também apareceram no e do movimento certamente teria de empurrar a obra de arte que vem
campo da arte. dessa tradição para registros não só técnicos, como a fotografia,
como também o cinema e o vídeo.
Nesse último, podemos considerar o Abstracionismo, mesmo
o expressivo, como o Expressionismo Abstrato americano, como uma Vídeo ou Performance?
espécie de poética do sujeito. O sujeito concretista é quase um
sujeito cartesiano e um sujeito Pollock é quase a legitimação da Naquela época, as performances (que ninguém chamava
existência de um inconsciente, de um interior – não importa, são de performances, eram happenings ou intervenções) tinham por
faces diferentes do sujeito. Por isso mesmo, eles colocam a sua característica um certo desdobramento temporal, que precisava ser
unidade, que vem lá de dentro, projetada, na sua obra, que tem um registrado, digamos, apenas como memória, ou havia um fotógrafo
estilo, e pode ser detectável e reconhecível formalmente. que pegava a seqüência, ou alguém com um Super-8, um 36mm, etc.
Então, o vídeo é suscitado por uma demanda muito séria, que se dá
Isso só pôde ser levado a cabo porque houve a disjunção no campo da experiência artística, que é pensar agora o tempo e
entre arte e imagem durante um período razoável – que foi o período o espaço como valores articulados. Não um espaço com um antes e
das vanguardas históricas. Claro que sempre houve um flerte com a um depois como você pode sugerir no sorriso da Monalisa. Trata-se
fotografia, desde o estudo do nadar. Também com o cinema, a gente de um antes e um depois que sustente uma narrativa de qualquer
sabe disso, mas, de qualquer forma, o mainstream da arte moderna tipo.
ainda era muito convencional. Você tinha a pintura, a escultura,
o desenho. Esse desenho era feito em um retângulo, horizontal ou O vídeo, portanto, é um sintoma, uma resposta de um
vertical, assim como a pintura. Era uma espécie de fechamento da mundo contemporâneo que é fragmentário, e não mais se caracteriza
janela renascentista. por um único sujeito com estilo definido.

No campo das artes, em relação às transformações do Na época em que começamos a fazer videoarte, nós
mundo contemporâneo, o pós-2a Guerra e a invenção do jovem cuidaram tínhamos consciência dessas questões, mas não conhecíamos os
de um certo desencanto quanto ao projeto Iluminista, de uma textos da Lygia e do Hélio, não estudávamos isso. É importante
sociedade regulada pela razão e pela ordem. Então você vê desde dizer que o pessoal que passou pela Anna Bella, aqui no Rio, de
fenômenos como beatniks, Allen Ginsberg, isso ainda nos anos 50, alguma maneira foi formado por uma espécie de terceira via. A
ou mesmo uma vulgata disso, um Rebelde sem Causa, um filme para via da Anna Bella era mais diretamente internacionalista. Eu li
milhões, Juventude Transviada. O jovem hoje em dia é um problema o Kosuth antes de saber o que era um parangolé.
porque ele tem de durar até o resto da vida. Depois que você fica
jovem uma vez, você vai ficar jovem até 75 anos. A invenção do Das outras vias, uma delas era a que vinha de um
jovem criou uma dilatação, uma coisa estranha na relação com o experimentalismo de origem neoconcreta e a outra era a que
ethos, com a estética, que justificam a passagem do moderno para o resistia a isso por várias razões, até por um exacerbamento de
contemporâneo, apesar de você ainda estar em um regime econômico uma posição formalista. Como a Anna Bella nunca havia explicitado
dominantemente capitalista. para si o que estava operando, ninguém pensou sobre o que seria
aquilo. Mas se olharmos o grupo de pessoas que passou por ela,
Mas eu acho que é possível a idéia de que você só mudaria em graus variados é uma terceira via. Paulo Herkenhoff, Letícia
radicalmente com a substituição de um modo de produção dominante Parente, Sônia Andrade. E, naquele tempo, as duas outras vias não
por outro, a idéia marxista. Se a gente puser em confronto o que favoreciam isso, porque elas estavam ainda, digamos, voltadas
foi empiricamente conquistado pelos dois regimes, vamos ver que para a observação da grandiosidade das questões de que elas eram
em um determinado momento, o regime soviético primava por ter portadoras.
uma música clássica, um balé clássico, tudo clássico, enquanto
os Beatles viviam na Grã-Bretanha. Isso operou possibilidades de Muito poucos trabalhos dos pioneiros da videoarte eram
fraturas ou de fragmentações. performances. Por exemplo, Versus, do Ivens Machado, em que ele
e um ator negro ficam em ângulos nos quais a câmera vai fundir a
imagem só com o movimento – isso é uma performance, mas é uma Eu não considero Medidas uma exposição de arte-ciência.
performance da câmera. Se não houvesse a câmera, o vídeo, ele Não por ser retrógrado ao que se chama arte-ciência, ao contrário,
não poderia fazer. Preparações, da Letícia, ou quando a Sônia eu acho a arte-ciência retrógrada ao que a Letícia estava mostrando
joga o feijão na câmera podem ser considerados performances. ali. Porque o evidente na reificação desses aparatos de mensuração
Agora, o sentido delas é serem vistas em vídeo. Há um equívoco é que ali eram confrontados normas e seus aparelhos de aferição,
nessa discussão de linguagem, até porque eu não acho nem que hoje supostamente regulados, não com o objetivo de glorificar esse
em dia se deva mais falar de linguagem. Nós voltamos para uma sistema, mas ironizar e até, em certos momentos, implodi-lo. Então
neopolitécnia que está no photoshop, que está no sintetizador. quando se fala em arte-ciência hoje, muitas vezes, o que há é
Ficar falando de linguagem hoje em dia é bullshit, mas se as uma espécie de rendição ao encantamento, o que é normal, pois as
pessoas acham que a linguagem do vídeo é filmar em close, editar, possibilidades que a ciência oferece são maravilhosas.
colocar efeitos, eu diria que é também uma possibilidade do vídeo
registrar simplesmente uma performance. Não poderia aparecer Mas o que se chama de arte-ciência é quase fruto de uma
daquele jeito se fosse feita com Super-8, com fotografia ou se sedução recíproca e no trabalho de Letícia o que há é uma espécie
pusesse um desenhista, um Debret para desenhar. de tensão explícita e intencional. Até porque essa artista foi a
pessoa que eu conheci que mais tinha as duas coisas, a arte e a
Então eu sou contra essa distinção quase aristocrática ciência. Ela era uma química impecável, chefe do Centro de Ciências
ou tecnocrática entre high e low tech. Acho isso absolutamente do Rio de Janeiro, mas sempre deixava claro que essa atividade
ridículo. Muito mais importante é a situação poética. Lembro, por como artista era o gancho que ela possuía com um outro lado,
exemplo, do vídeo da Sônia – a performance da Sônia – tacando o poético, humano, imprevisível, um lado do risco, da incerteza, do
feijão, com uma televisão atrás de si em que, aleatoriamente – jogo, da aposta, com que normalmente um cientista evita conviver
isso foi uma coincidência –, ela ligou no Jornal da Globo. Aquilo porque ele está muito bem encastelado em todas as suas razões. Em
quase é um comercial, a narrativa tem tudo a ver com o vídeo. geral, é meio incômodo, do ponto de vista existencial, a pessoa se
Se entrou tecnologia, efeitos especiais ou não é o que menos me enclausurar, seja em uma espécie de moto-contínuo de “Eu sou amor
interessa. Senão ninguém poderia cantar a capella. O velho Walter da cabeça aos pés” ou, ao contrário, “Tudo tem suas razões”. Ela
Benjamim já saca isso quando ele fala do close. Como é que uma passava de um estado para o outro muito naturalmente.
performance de Letícia Parente botando esparadrapos nos olhos e
desenhando seus olhos poderia ser vista tão em close, com tanta Nesse trabalho, ela coloca no campo da arte a tênue
intimidade, se não fosse em vídeo? Como é que as pessoas veriam película entre essas duas partes da sua vida, o lado doutor, o lado
ao vivo se estivessem a dez metros de distância? Iriam ver um da cientista, e o lado eminentemente sensível. E eu tenho certeza
olhinho bem pequeno ou nem veriam, porque o próprio corpo de de que se há alguma coisa que a guia e que implode tudo isso é o
Letícia, provavelmente, seria um obstáculo. Então aquilo que eu lado sensível. Então não existe ainda uma rendição, uma ilustração,
vejo ali é vídeo. um encantamento. É um trabalho, como você4 disse, foucaultiano,
que submete os instrumentos de aferição da disciplina à implosão
A Contribuição dos Vídeos pelo seu sentido poético. Porque todo mundo sabia ali que aquilo
não tinha nenhum objetivo escrutinador, esquadrinhador. Aquilo era
A contribuição artística desses trabalhos é inegável uma coisa sensual, lúdica.
e eu poderia citar, de cara, a obra de Letícia Made in Brasil,
que se tornou emblema de uma mostra retrospectiva de vídeos, Esse trabalho me lembra a obra de Barrio quando ele
diria eu, quase um emblema da videoarte brasileira. Então, se fez os cadernos-livros e os livros-registros – que ele mesmo diz
uma obra tem essa potência, eu não preciso dizer nada. Outro que não são obras, que as obras são o que acontece ali. Essas
exemplo é o sucesso recentíssimo dos trabalhos da Sônia Andrade experiências são registradas ali com uma seriedade quase de um
– recente no sentido de reconhecimento –, que participou de viajante Darwin do século 19. Só que o Darwin tinha o telos, que
uma exposição no Louvre. O vídeo em que ela enrola um fio de era o amor à verdade, aquilo tinha um sentido. Quando Barrio faz
náilon em torno do rosto foi associado pela curadora a Degas. aquilo é para registrar o quê? Coisas que normalmente não têm
Tratam-se de narrativas ou neonarrativas feitas sobre temas e sentido porque nós não emprestamos sentido sensível àquilo. Então
questões que hoje são candentes e reconhecidas em toda a produção ele reifica aquelas experiências do cotidiano agindo sobre elas
artística contemporânea. A questão do corpo, por exemplo, que como se fosse um cientista.
está nos trabalhos de Letícia, de Sônia. Esta joga o feijão,
enrosca o rosto. A Anna Bella sobe as escadas. Quer dizer, há uma Eu fico pensando que todos esses trabalhos estão criando
performance, uma ação direta do artista. um novo sujeito, não mais filosófico e epistemológico, mas artístico.
Então é como se Barrio, ao anotar feito um cientista como um
Agora, uma curiosidade: como é que a Anna Bella poderia português imprime um peixe em um papel lá em Lisboa, estivesse
subir e descer tantas escadas, externas e internas, se não fosse sendo como Letícia, trazendo esses instrumentos, essa película,
em um registro feito em vídeo? A linguagem do vídeo é isso cajuína em Teresina, fininha, entre arte e ciência. Mas não no
também. Eu tive consciência no meu trabalho de que a televisão sentido de rendição, no sentido de libertação.
era um meio de comunicação absolutamente essencial para o Brasil,
naquele momento de ditadura, e, por meio da intervenção direta
do defeito, tomei como lema o check-out desse sistema. A idéia A CASA
era introduzir nesse sistema eficiente algo que comunicasse pela
falha, pelo defeito, pela falta. Eu também só poderia fazer isso Letícia Parente, artista e química, foi casada 20 anos, teve
em vídeo. O próprio Herkenhoff, na série Estômago Embrulhado, 5 filhos, 14 irmãos e muitos amigos. Além de conhecer as ditas
quando ele filma uma notícia de jornal, “Cruzeiro já circula tarefas do lar, como cozinhar, costurar e cuidar dos filhos e
livremente no Paraguai”, lê a notícia, o público lê também, marido, a moça baiana ainda dirigia, fez parte da juventude
ele come e sai pela rua repetindo a notícia até a memória ficar católica e trabalhava fora como professora de química
diluída. Isso é um Globo Repórter no meio da rua. É feito com na Universidade Federal do Ceará, e depois na Pontifícia
quê? Carvão, pastel, crayon? Não, só podia ser feito em vídeo! Universidade Católica do Rio de Janeiro. E tudo isso no Brasil
Não poderia ter sido visto de outra maneira se não fosse visto do da década de 1960.
jeito que foi. E foi concebido para ser visto em vídeo, então é
videoarte, sim, e tem qualidades estéticas inegáveis. Os vídeos que a artista produziu entre 1975-82 mostram imagens
que não saem de casa. Letícia Parente tece um fio sutil entre a
Exposição Medidas casa e um pensamento sensível da arte. Com agulha e linha ela
costura o Brasil na sola do pé, com o ferro de passar ela refaz
as posições entre patroa e empregada e entre roupa e corpo, com Ora pro nobis
o cabide se guarda no armário e com a maquiagem inventa uma
máscara que cega. Cada trabalho realizado acrescenta ao vivido A voz repete a oração. Ora pro nobis, ora pro nobis, ora pro
e com ele se confunde. A casa é então a família, a religião, o nobis. A cada repetição a fotografia em preto-e-branco das mãos
país, a casa é tudo e todos ao mesmo tempo, que, convidados a entrelaçadas na reza é trocada por outra que também reza. A
permanecer diante da câmera, não disfarçam suas imagens. O que voz da artista é rouca e pede ora pro nobis. Nesta prece a luz
vemos é cru, sem retoques, sem segundas intenções. surge e desaparece. Na reza não se reza, não há pedidos ou
agradecimentos, apenas a ladainha que sussurra, que comove, que
Letícia não enfeita os momentos do cotidiano que escolhe. Ela aflige. Na repetição dos gestos e da reza há apenas o sentimento
faz passar os dias que passam por ela de uma outra maneira. Eu da prece.
sou uma coisa no meio das coisas e desejo agir como elas, ficar
dentro do armário, me estender sobre a tábua de passar. Ao mesmo
tempo eu subverto. A empregada passa a patroa e meu pé é a minha Do canto da casa Letícia Parente olhou e viu outras casas. Do
terra. Nesse duplo movimento reside a tensão que caracteriza afastamento e da proximidade desse olhar surgiram alguns dos
a obra de arte, um olho que assiste ao que é enquanto o outro primeiros vídeos da arte brasileira, vídeos curtos, agudos,
insiste no que não é. breves como relatos íntimos, mas que vão além da cotidianidade
e apontam para o que está no avesso das nossas ações banais, o
acolhimento da poesia que se repete todo dia.
Preparação

Diante do espelho a artista inverte a própria imagem, mas não se Katia Maciel
trata da visão de cima para baixo, trata-se da cegueira no lugar
da visão. Letícia cuidadosamente, como uma mulher que prepara a A CARNE DA IMAGEM
maquiagem antes de sair de casa, cuida de cada parte do rosto.
Cola primeiro um esparadrapo na boca e contorna os lábios por
cima. Depois, também por cima de cada olho, repete a mesma
operação. O desenho no esparadrapo refaz o que esconde. Sem fala Se a imagem no espelho se assemelha a nós o suficiente
e sem visão, a mulher continua armando o cabelo e fixa no espelho para ter direito a um nome, o nosso, esse nome só faz sentido
seu olho construído e bem aberto e depois deixa o espelho e o para o ouvido e a voz de um outro. O espelho não tem ouvidos e a
banheiro e a casa. imagem só adquire sentido na triangulação em que a voz pede ao
olhar para não se tomar por aquilo que ele vê, senão será tomado
In por aquilo que ele não vê. Onde estão as vozes que constroem nosso
olhar para lhe dar visibilidade?
Quantas vezes já penduramos roupas no armário? E quantas vezes Marie-José Mondzain
já desejamos nos trancar em casa ou fechar a porta do quarto? O Le Commerce des Regards
isolamento e o fechamento nos remetem às sensações de angústia,
mas também à tranqüilidade e à paz. A artista desloca operações
e objetos. Por que não nos pendurarmos juntos com a roupa?
Por que não nos sentirmos como a roupa? Por que não deixar
de sentir? Por que não guardar o que sentimos? Ela parece não A mulher diante do espelho. Nada mais corriqueiro do que vê-la
pensar, ela está apenas fazendo mais uma tarefa do dia, não há maquiar-se defronte à superfície do cristal. Salvo que, naquele
tempo para pensar no cotidiano, é uma coisa atrás da outra. lavabo, inicia-se um cerimonial que nos sugere uma estranha
Mas, quando se fecha no armário, o tempo se guarda junto com a violência, uma automutilação simbólica: a boca é silenciada
artista. com um pequeno esparadrapo sobre o qual a mulher delineia seus
lábios. Os olhos são então vendados: um após o outro, e sobre
o tecido branco, são desenhados os olhos subtraídos. Tateando à
Tarefa 1 procura da porta, a mulher enfim retira-se. O que se oculta atrás
do mutismo e da cegueira das imagens?
Letícia deita sobre a tábua de passar diante da sua empregada,
que tranqüilamente passa a ferro a patroa vestida ,com a mesma O vídeo chama-se Tarefa I (1975) e, como em outros vídeos de
atenção nos detalhes de quem passa uma roupa estendida e plana. Letícia Parente, é a artista que protagoniza a performance no
A artista tem a calma de uma roupa vazia, não se move, não espaço privado de sua casa. São rituais do cotidiano, pequenos
reclama, permanece. Ela é uma roupa qualquer, num dia qualquer. afazeres domésticos e banais desprovidos de narrativa dramática,
Não há indiferença, é apenas mais uma tarefa cumprida. Na como passar ou pendurar a roupa no armário. Mas eis que a roupa
relação entre a patroa e a empregada não há tensão, apenas uma ainda veste a artista, aquela que realiza a ação confunde-
cumplicidade muda. se com aquela que sofre a ação: a artista é suspensa pela
roupa no armário. Corpo, carne e o véu que os cobre tornam-se
Marca registrada indiscerníveis. O olhar e a voz convocados no endereçamento são
apanhados na armadilha: a imagem é o lugar de uma indecisão, ou,
Os pés caminham, e depois as pernas que se cruzam mostram para como diz Marie-José Mondzain, “de uma crise”.
a câmera parada a sola de um dos pés. A mão surge com a linha
e a agulha que costura as palavras Made in Brasil. Brasil com No final dos anos 50 e nos 60, os happenings e as performances já
“s”diante da presença americana que se desenha nos pés sobre os haviam introduzido a execução de tarefas cotidianas como as Task
quais pisamos. Os pontos são firmes como se fosse em um tecido Performances, de Robert Morris, coreografias realizadas com Simone
estendido. Sem qualquer hesitação, Letícia tece na própria Forte e outros dançarinos. O esvaziamento do gesto expressivo do
pele o estado do Brasil, um país feito fora daqui, propriedade artista, a incorporação das ações rotineiras e desglamorizadas,
estrangeira, o Brasil de 1974, estranho a nós mesmos. A com seu tempo operacional, repetitivo e autômato, a exigência
pele cede à pressão da agulha que não pára. No gesto não há da co-presença do espectador para a completude da obra vinham
violência, mas coragem. Brasil é uma casa estranha, nós e outros opor-se às concepções formalistas da arte. Mas, tal como Bruce
ao mesmo tempo. Nauman, que na série Studio Films executaria uma sucessão de
atividades em seu ateliê, muitas vezes conduzindo o corpo à sua
quase exaustão, as performances e tarefas de Letícia Parente não
se realizam diante de uma audiência, mas têm a câmera, seu olho Na instalação Medidas (1976), realizada no Museu de Arte Moderna
maquinal, como testemunha. do Rio de Janeiro, as pessoas eram convidadas a passar por uma
série de testes e escolhas tipológicas para montar seu perfil ou
Tarefa I parece remeter ao gênero do retrato na arte, expondo-o sua face. Eram formas de mensuração, classificação e catalogação
em toda a sua ambivalência: de um lado, está a clausura de um si as mais diversas: definições dos tipos físicos (altura, peso,
mesmo, figura cega e muda, colocada frente à face e à visão de um forma do rosto e proporções da face); comparação e escolha de
espelho impossível e sob a vigilância de um olho mecânico. De uma das imagens da história da arte (como Virgens e Vênus) ou de
outro, um fora de si, figura extraviada que se ganha e se perde tipologias supostamente científicas; um audiovisual com slides,
na própria captura. A imagem solicita a palavra, o sopro de um extraídos do livro Guiness do ano, que exibiam o que escapava dos
sentido partilhado, mas não se deixa capturar ou reduzir-se por padrões e das medidas habituais (como a mulher mais gorda ou as
ela. Como devolver àquela figura a voz, se nenhum nome parece unhas mais compridas); um ambiente em que se guardavam as medidas
adequar-se? O que se mostra ali como uma fratura íntima é o véu secretas. Dispostos em seqüência linear, cada um passava por essa
obscurecido de um encontro, de um espaçamento. “Arte”: o nome espécie de “estações de sua paixão pessoal” munido de uma ficha em
instável desse encontro. que preenchia seus dados particulares.

“Entretanto, ‘eu’ não me encontro, nem me reconheço no outro, “A medida é a conveniência [convenience] de um ser a um outro ou
existo com ele: eu experimento a alteridade e a alteração que em a si mesmo”, disse Jean-Luc Nancy. Se a Antigüidade era o mundo
mim mesmo coloca, fora de mim, nessa exposição, a singularidade de da “medida, do horizonte, do phronésis, da mésotès e do metron
qualquer existência tecendo-se em tramas e ecos infinitos” — eis a – em que a hybris era por excelência a desmedida mensurável
resposta subentendida em outro vídeo, Especular (1978). Nele, o – essa medida era a conveniência de ser si mesmo, o modo e não
espelho foi removido. Permanece, pelo nome que o intitula, apenas sua dimensão.”1 A medida do mundo moderno e ocidental foi, por
o adjetivo que designa sua propriedade reflexiva. Em seu lugar, sua vez, o modo desmedido do infinito. Um modo infinito de ser cujo
um jovem casal se olha e se escuta por estetoscópios. Ela diz: fundo é cristão. Pois ainda que a criatura conservasse uma medida
“Eu quero ouvir o que em mim você está ouvindo dentro de você”. pelo reflexo de Deus, guardaria também o vestígio de seu criador:
Ele responde: “Eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim, o homem, medida de todas as coisas, esse filho do humanismo grego
o que eu estou ouvindo de você, dentro de mim”. Ela outra vez: e cristão, possuiria por conveniência Sua imensidão, Sua não-
“Eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim, o que eu estou medida.
ouvindo de você, o que você está ouvindo de mim, dentro de você”.
E assim, sucessivamente, nos rebatimentos da palavra, Narciso Mas o que seria hoje, a medida ou a desmedida da existência sem Deus
oferece a hospitalidade a Eco. O que faz a arte senão solicitar o e sem eu, senão o sem-medida enquanto tal, que conduz o próprio
pensamento e a sensibilidade diante do visível e explicitar seu homem a uma outra imensidão? Não mais como substância, não mais
desamparo diante da face impossível? O que faz a arte senão expor como o infinito de Deus, mas a imensidão da “responsabilidade”2. A
esse vazio, essa intermitência, esse espaçamento eclipsado, que imensidão de um cuidado.
todavia abre o lugar a um terceiro. O lugar de onde se aguardaria
uma resposta, a recompensa desse dom. Qual é o lugar que ele Ora, nossa relação com a imagem está indiscutivelmente vinculada
ocupa nesses rebatimentos amorosos e fugidios? ao pensamento cristão. “A imagem fez uma entrada real em nossa
cultura em que a encarnação cristã deu à transcendência invisível
Letícia Parente é uma das primeiras a trabalhar com videoarte e atemporal sua dimensão temporal e visível, a transcendência
no país. E, de certo modo, seus vídeos estão em diálogo com as que negocia com o acontecimento (...). Deus entra na história
questões da história da arte e de suas imagens, mas confrontam- pelo nascimento de sua imagem filial. Doravante, no Ocidente, a
se, também, tanto com a invasão das visibilidades da televisão e manifestação do visível se descreve em termos de nascimento, de
da propaganda, quanto com o roubo das imagens de uma sociedade morte e de ressurreição, ela se endereça aos corpos vivos dotados
de controle, que então se anunciava. A onividência divina dando de palavra e julgamento.”3
vez ao olho das câmeras de vigilância. Seus vídeos interrogam as
tiranias que exercitam e extraem o poder da imagem, esvaziando-a Nas reflexões de Marie-José Mondzain, o imaginário contemporâneo
em submissões crédulas. As tiranias que promovem estratégias de tem suas fontes na crise do iconoclasmo em Bizâncio4. Em sua dupla
cegueira e de emudecimento: manipulam o desejo de ver, violentam natureza, Verbo e Carne, Cristo é o ícone que serve de modelo,
nossa capacidade de julgar, subtraem-nos a palavra. Encarceram imagem natural de uma invisibilidade. Foi a partir dessa imagem
visão e voz na servidão dos consensos econômicos, políticos, que o homem pôde produzir imagens artificiais. Por isso o véu do
religiosos, fusionais, identitários, quais sejam. Mas ela o interdito bíblico, que cobre a imagem de Deus hebreu, pôde se
faz, acredito, indagando os fundamentos de nossa relação com a tornar um plano de inscrição da face do homem cristão. A Paixão de
imagem. Cristo é oferecida então em espetáculo aos olhos dos homens como
uma redenção a imitar. O destino icônico da paixão ativa de Cristo
Nos vídeos de Letícia Parente, corpo, casa, figura, as tarefas transforma-se na “paixão da Imagem”, diz a autora, que reúne em si
cotidianas ganham contornos singulares, solicitam outras todos os destinos e paixões em uma única fábula em que fiéis são
aproximações. Os rituais domésticos assemelham-se à paixão da atores e espectadores. A redenção da própria Humanidade.
carne e da imagem, interrogam a capacidade de sentir, de afetar
e de ser afetado. São as pequenas paixões do cotidiano, suas Mas se o pensamento cristão instaurou um laço solidário e
passagens, os modos de aparição de um provável homem dotado de fundamental entre a palavra invisível transfigurada em imagem à
palavra e de visão. O que está em questão ali é a natureza da nossa realidade viva e corpórea, ele o fez preservando seu enigma,
imagem que se ergue e se desdobra para além da visibilidade, que seu espelho velado. Enigma da carne habitada pela Voz invisível
exige um vazio, uma invisibilidade no coração do visível. Que que enuncia Sua manifestação, mas que mantém nos filhos o desejo
demanda uma liberdade e uma resistência. O que está em questão é insaciável de ver Sua face, pois a imagem é sempre estranha àquilo
a potência da imagem que existe por nós e faz um mundo advir por a que ela serve de imagem. Como esse Deus estrangeiro que habitou
ela, no jogo das aparições e desaparições recíprocas entre homem entre nós. É em torno dessa invisibilidade estrangeira se institui
e mundo. O que está em questão ali, penso, é a possibilidade de o que Mondzain denomina o “comércio dos olhares”.
um homem, de uma humanidade sempre por vir. Figura paradoxal que
se debate entre seu excesso, sua infigurabilidade, e o desejo e A imagem é o “lugar de crise”, diz. Não é uma experiência mística,
desenho de sua imagem. Entre o véu que cobre a face inominável e mas uma negociação entre o visível e o invisível, entre a distância
o véu como plano de inscrição de um nome encarnado. Afinal, aquilo e a proximidade. A liberdade face às imagens necessita de um olhar
que um dia chamamos homem nasce da palavra encarnada na imagem. crítico que os coloque em relação. Crise, do verbo grego krinô:
discernir, distinguir, escolher, julgar. “Ver é julgar.” “Dar
à imagem um estatuto crítico era uma promessa de liberdade.” a conjuntura nutre o olhar e desenvolve o saber que gera o
É a partir do lugar assinalado para o espectador, que exige trabalho. Portanto, não seria despropositado ou mesmo leviano
uma distância por onde ele se movimente, que se pode julgar. afirmar que todos os autores e artistas são frutos de suas épocas,
“Não se partilha o visível sem construir o lugar invisível da mesmo que suas obras extravasem o entendimento e a pertinência
própria partilha.”5 Ela demanda a palavra, o apelo e o envio dos para outros contextos e gerações. Dessa forma, poderíamos
olhares, que se encontram pelas imagens. A economia do visível é dizer que Letícia Parente se localiza nesta linhagem: sua obra
uma escolha política, aquela da partilha do amor e dos ódios, a manifesta seu tempo. Seus vídeos tangenciam o redimensionamento
partilha de um mundo comum. das identidades, a relocação de papéis sociais, a utilização
do corpo como suporte discursivo, a escalada do consumismo
O comércio dos olhares, a economia própria à imagem, nada se exacerbado e o chamamento para a exploração de novas mídias,
relaciona com o mercado das visibilidades, diz Mondzain. Não é a aspectos que caracterizam a arte da segunda metade do século 20.
proliferação das imagens, pelas técnicas modernas de produção e Esses elementos, entretanto, se combinam de maneira muito peculiar
difusão de imagens, que constitui uma situação nova. “A presença na trajetória desta artista paradigmática da arte conceitual
da imagem e o reconhecimento de seus poderes remonta há milênios.” brasileira e fundamentam historicamente parte da produção atual
Não estamos sob a inflação das imagens em um mundo submerso de que lida com essas questões.
coisas a ver, “jamais a imagem esteve tão ameaçada e arrisca-se Sobressai-se a compreensão apurada de Letícia do corpo feminino
a desaparecer sob o império das visibilidades. Há cada vez menos como alvo de reificação num período de extremo questionamento da
imagens”6. posição da mulher na sociedade, uma corroboração das colocações
de Simone de Beauvoir de que não se nasce mulher, torna-se. O
Quando o comércio dos olhares se transforma na gestão comercial aprisionamento dos procedimentos de construção visual e identitária
do visível, o mercado dos espetáculos constrói “o império das femininas é representado a partir de subversões e paródias de
barbáries”. A extenuação da imagem condena o olhar e sua liberdade situações cotidianas em ambientes domésticos, concomitantemente
à servidão de “iconocracias”. Programar o consumo unívoco e o simples e de alta potência imagética. Em Preparação I, o ato banal
consenso de um sentido é destruir a imagem e produzir a idolatria de se embelezar para sair transforma-se no vestir de uma máscara. O
por um poder econômico totalizante. Extravia-se o lugar do deslizar do batom não evidencia os traços labiais da artista, mas
espectador: não há palavra, escolha, ou um juízo sobre nossos por ser aplicado sobre um esparadrapo vira um desenho dos lábios,
gostos e afetos. Não há a partilha de uma vida em comum. uma representação por cima da parte verdadeira. O delineador
desenha olhos nos esparadrapos. A maquiagem assume um caráter
Assim o plano de inscrição se transforma no registro da de mascaramento. O que supostamente seria feito para ressaltar a
mercadoria. E o fora do lugar, o exterior que se abriria à cidade beleza feminina apresenta-se como falseamento, enganação.
humana se converte na inscrição de um poder entre fronteiras dos Em outra performance sem audiência, a artista abre um armário e
territórios econômicos, no solo indiferenciado das identificações pendura-se num cabide através de sua própria roupa. Neste outro
e incorporações do mercado. No vídeo mais conhecido de Letícia comentário sobre os adereços que podem garantir a feminilidade,
Parente, Marca Registrada (1975), a artista costura, na pele da fica mais evidente a crítica ao processo de coisificação do humano,
sola do pé, a expressão Made in Brasil. Não a imagem da palavra já identificado como Homo consumericus5. Roupa e mulher confundem-
inscrita na carne, mas a marca exaurida. se de tal forma que não se apartam. A vestimenta que ganha
crescentemente o poder de definição de identidade e status cola-se
Seria necessário, então, devolver a condição de estrangeiro em no indivíduo, que parece não mais significar nada sem seu símbolo
sua própria pele, ou antes, incorporar seu próprio impróprio, de colocação e expressão. Ainda sob a abordagem da aderência
encarná-lo: o corpo sem próprio se entrega à errância, que e contaminação da identidade pelas vestes e consumo, Letícia
abre incondicionalmente as fronteiras à alteridade qualquer. Parente deita-se numa tábua de passar roupa. Seu traje-pele
Em Preparação II (1976), a artista se aplica vacinas contra é passado a ferro. Não há truques. A crueza do ato é uma das
todas as formas de poder e preconceito, contra o pensamento maneiras de amplificar a urgência de seu discurso crítico, assim
absoluto que reduz o outro ao espelho dialético do mesmo: anti- como se fazia nos anos 70, a exemplo das performances desafiadoras
racismo, anticolonialismo cultural, antimistificação política, e arriscadas de Marina Abramovic e Chris Burden, entre outros.
antimistificação da arte. A contundência da imagem (que é diretamente ligada à verdade,
à realidade) é um recurso usado amplamente pelos artistas a
E talvez o lugar do espectador da arte deva ser apenas esse sem- partir da segunda metade do século 20. Ver é crer, e no caso de
lugar como abertura infinita. As imagens da arte são essa oferta ao Letícia, assim como no de muitos outros artistas, a ação vista
olhar de qualquer um como pura despesa, como a prodigalidade de um é a ação praticada. Marca Registrada, trabalho exponencial da
excesso que não se deixa figurar. Para nomear a carne do mundo e artista baiana, apropria-se novamente da pele. Não mais como
partilhá-la com outros é necessário um dom que não tem certeza de indistinção entre indivíduo e consumo, mas como superfície
sua recompensa: a recompensa da acolhida de um olhar, o sopro e a escrevente. A artista borda os dizeres Made in Brasil na sola
inscrição de uma palavra estrangeira. E, ainda que o olho e a voz de seu pé num grande close da câmera. Mesmo sabendo que essa
não vierem recolher essa graça, não há como evitar o chamado. brincadeira recorrente no sertão nordestino não fere a epiderme e
é reversível, o ato suscita apreensão e desconforto. Fica patente
A imagem se fez carne. Desde então, o que será a carne de nossas o intuito e a carga simbólica de sua performance: o pertencimento
imagens? marcado com severidade e agressividade, que é eternizado em nosso
Marie-José Mondzain imaginário. A preferência pela língua inglesa e o uso de uma
Image, Icône, Économie técnica tradicional de sua região natal ressaltam outra questão
identitária, a cultural. Uma constante nos debates intelectuais
brasileiros desde a independência do Brasil, os questionamentos
Marisa Flórido Cesar sobre a influência estrangeira e o colonialismo cultural ressoam
abril de 2007 fortemente não apenas no país, mas internacionalmente, graças
ao processo de independência política e econômica que diversas
sociedades atravessam a partir dos anos 60, além do aumento do
fluxo de imigração mundial. Esses tópicos servem ainda de pano de
fundo para Preparação II. Uma pessoa aplica em si mesma vacinas
Persistência da consciência: marcas da identidade contra o colonialismo cultural, o racismo, as mistificações
política e da arte. A ação é seguida do preenchimento de um cartão
Sabe-se que é penoso, senão impossível, fugir de nosso convencional de vacinação.
tempo. Apesar da subjetividade nortear nossa experiência no mundo, O Homem do Braço e o Braço do Homem assinala uma fase posterior
das investigações de Letícia Parente. Seu foco migra para uma única mensagem. Desde então a carne ressuscitada e o corpo
discussão mais abrangente do corpo e inclui a afetividade e eucarístico é o corpo institucional da Igreja.
6
comunicação como catalisadores de seus trabalhos. O tom assumido MONDZAIN, Marie-José. Le Commerce des Regards. op.cit p.17.
nessas obras do final dos anos 70 pende para o lúdico, assimilando
o outro (a artista deixa de ser a protagonista das ações e passa JORNAL DO BRASlL
a orquestrar os trabalhos). Nesse vídeo, Letícia versa sobre a Rio de Janeiro, quinta-feira, 24 de junho de 1976
mitificação da virilidade e da resistência esperadas do corpo Artes Plásticas
masculino. Um anúncio luminoso de uma academia de ginástica MEDIDAS, POR FORA E POR DENTRO
mostra o movimento incansável de um halterofilista contraindo Roberto Pontual
seu bíceps, numa clara demonstração de força. Após um período Dá ao mesmo tempo alívio e esperança uma exposição como a de
longo de exposição à seqüência repetida do néon, uma imagem de um Letícia Parente, aberta desde o dia 10 no Museu de Arte Moderna
rapaz de carne e osso copiando o movimento braçal é sobreposta. do Rio de Janeiro. Alívio porque, no meio de uma temporada sem
Assistimos à sua tentativa de manter o ritmo da máquina e sua maior garra e interesse como a atual, ela reafirma a vitalidade
gradual falha. Seria uma antecipação da discussão sobre gênero do trabalho no âmbito da proposição experimental, exatamente um
que atualizou apenas recentemente os argumentos feministas? dos aspectos que melhor havia definido o comportamento das artes
Especular e Quem Piscou Primeiro? partem do espelhamento e da visuais no Rio em 1975 e que se estava demonstrando em recesso nos
complementação como argumento. No primeiro, observamos um processo últimos seis meses. Esperança por vir talvez indicar a retomada
de diálogo e reciprocidade. Um casal busca clarificar seu processo mais compacta da atividade nesse setor no próximo segundo semestre.
de escuta. A cada fala a conversa vai se tornando mais complexa, Por coincidência, Letícia expõe na sala ao lado da individual do
sem que a dupla escorregue no entendimento mútuo de suas ações. jovem paulista Wilson Alves, o premiado da Arte Agora I. A mostra
O segundo vídeo coloca um casal de frente para uma TV. Vemos dele, no momento se encerrando, constituiu outro dos raros pontos
apenas seus reflexos no aparelho de televisão e devemos prestar instigantes no comodismo da temporada e redobrou sua importância
atenção no causador do fim da brincadeira. Assim que um dos dois por comprovar a vitalidade de que também se nutre a nossa recente
pisca o olho, o vídeo escurece e a gincana acaba. Potencialmente escultura e/ou objeto – com um modo específico de indagação, mais
um trabalho de percepção, Quem Piscou Primeiro? ativa também do que visual, mágica e lúdica.
a capacidade de olhar para o outro, de se deter no rosto de 0 texto de hoje, no entanto, é sobre Letícia Parente. Nascida em
alguém, mesmo este encontro sendo mediado pelo vídeo. Tal aspecto Salvador (1930), até pouco tempo atrás ela residiu em Fortaleza,
afetivo é arrematado por De Aflictibus, uma seqüência de slides onde expôs pela primeira vez em 1973. Dois anos antes, estivera
de entrelaçamentos corporais de todos os tipos. Experimentação no Rio, estudando e participando de seminários com Anna Bella
plástica que se tornou freqüente nos últimos anos, Letícia Parente Geiger. E foi no Rio que se fixou de 1974 para cá. Pode-se dizer
ritma imagens de fusões corporais com uma frase que mais parece que os três anos de sua atividade têm sido marcados por uma
mantra entoado gravemente. A produção contemporânea brasileira opção de linguagem cujos contornos se definem desde cedo. O cerco
atual deve muito à investigação desta artista e de sua geração. A da figura e do ser humano a partir dos mais diferentes pontos e
amnésia reinante obstaculiza o surgimento de um experimentalismo ângulos de abordagem, utilizando particularmente a fotografia e
pungente e não ingênuo. o audiovisual. Há algo de fenomenológico, creio que em nível
consciente, no seu método de tratar as evidências deste dado do
Cristiana Tejo é diretora do Museu de Arte Moderna Aloísio real, que é o homem. Já era assim nos primeiros trabalhos que
Magalhães. conheci de Letícia, em 1975 – por exemplo, no audiovisual em que
apenas números de vários algarismos apareciam inscritos em cada
(Footnotes) novo diapositivo, correspondentes a nomes de pessoas sucedendo-se
1
Trata-se de uma frase dita em um vídeo de Letícia Parente intitulado A Chamada (1978), em ordem alfabética na fita gravada. Quaisquer pessoas, números e
material considerado perdido. Na própria descrição da artista: “A artista entra num apartamento, nomes apanhados nas fichas de algum setor da burocracia, malha que
chega à sala onde numa mesa está um gravador de som e um telefone. Grava numa fita a processa o indivíduo como multidão, quer defini-lo e apreendê-lo
pergunta: ‘ALÔ, É A LETÍCIA?’. Repete a pergunta muitas vezes. Pára a gravação. Volta a mas só consegue dessangrá-lo e diluí-lo.
fita. Aciona de novo o gravador e deixa a pergunta ecoando. Liga o telefone para o seu próprio Nessa visão crítica do envolvimento burocrático, Letícia Parente
apartamento e deixa o fone perto do gravador. Sai do apartamento, desce as escadas, chega à rua, se irmanava a Margareth Maciel, jovem carioca, também conhecida
desce a ladeira, entra no seu próprio prédio, sobe as escadas, chega à porta de seu apartamento, do público a partir de 1975, com trabalhos em torno do passaporte,
abre a porta com a chave, escuta o telefone tocando, retira-o do gancho, ouve sua voz gravada da certidão de nascimento e da carteira de identidade – alguns
perguntando: ‘ALÔ, É A LETÍCIA?’. Responde: ‘É A LETÍCIA...’” entre tantos outros dos nossos documentos, seguranças numéricas
e tipológicas no sistema, ainda que nos reduzam de formas vivas,
2
Isso foi, aliás, o que a motivou a realizar duas cópias do seu vídeo Marca Registrada, um na verdade imensuráveis, a formas arquivadas, papel-poeira de
preto-e-branco (1975) e outro colorido (1980). Na verdade, o master da primeira versão foi repartição. Mas a mostra atual de Letícia mantém elos muito mais
dado como perdido, em uma mostra na Argentina, no CAIC, tendo retornado anos depois. diretos com a exposição que Emil Forman realizou igualmente no
3
Nota do curador: “O nome da exposição é “Medidas”, ocorre que no folder do MAM o nome MAM, em agosto do ano passado, reunindo em painéis cerca de 2,5
é “Medida” no singular. Este erro induziu os comentadores a utilizá-lo no singular. Entretanto, mil fotos emolduradas, além de filmes exibidos no mesmo recinto,
tanto no projeto, como em textos posteriores, a autora se refere a exposição sempre no plural”, tudo concentrado numa única figura: a de sua própria mãe. Se
4
Nota do curador: “O depoimento de Fernando Cocchiarale foi dado a André Parente”. Emil individualizava a esse ponto o objeto de abordagem – dando
5
Colocação de Gilles Lipovetsky em Tempos Hipermodernos, pp 122. ao ambiente uma atmosfera final de santuário, morbidez de dados
mortos que se acumulavam para modelar um ser ainda vivo –, Letícia
(Endnotes) procura o pólo oposto. Faz de cada visitante o centro, foco a
1
NANCY, Jean-Luc. Démesure Humaine. In: Être Singulier Pluriel. ser medido por todo tipo de variável capaz de caracterizá-lo como
Paris: Éditions Galilée, 1996. p.205 forma física e processo mental, corpo e alma, indivíduo. Ambos,
2
Idem ibidem. Emil e Letícia, medem obsessivamente o ser humano, o mais próximo
3
MONDZAIN, Marie-José. Le Commerce des Regards. Paris: Éditions ou o mais distante, o conhecido ou o anônimo. Mas o mede, como
du Seuil, 2003. p.18. também Margareth, antiburocraticamente, para torná-lo consciente
4
MONDZAIN, Marie-José Image, Icône, Économie: Les Sources de sua vida individualizada.
Byzantines de l’Imaginaire Contemporain. Paris: Éditions du Por isso, ela deu à exposição o título Medida – um método e uma
Seuil, 1996. ironia. Dividiu-a em dois setores complementares, um servindo à
5
MONDZAIN, Marie-José. Le Commerce des Regards. op.cit p.146. coleta de dados e outro à visão de dados já previamente registrados.
Entretanto, não deixando à liberdade de cada um compor sua Daí cabe dupla tarefa: a de ver e a de agir. Esses compartimentos
troca com a divindade, a Igreja construiria pelos séculos os de mensurações constituem, como os chama Letícia, estações, e
dispositivos coletivos, as regras da partilha, a política e se destinam a nos colocar em contato com dados em torno do tipo
a doutrina das visibilidades programáticas comunicando uma
físico, da respiração, da resistência, do sangue, da acuidade
visual, da atenção e das “medidas secretas” – estas, ao contrário A artista chega ao espelho do banheiro e vai se preparar para
das anteriores, voltadas para a liberação da subjetividade contra sair. Cola um esparadrapo sobre um dos olhos e desenha sobre
a rigidez nas medidas que podem ou devem ser exatas e objetivas. o esparadrapo com lápis de sobrancelha um olho aberto. Faz o
Diria que as primeiras estações referem-se ao corpo, às formas mesmo com o outro olho. Em seguida, cobre a boca com esparadrapo
visíveis e a última, à alma, as formas impalpáveis do pensamento, também, e desenha uma boca sobre ele com um batom. Ajeita o
da imaginação e da memória se desdobrando. Há uma estação extra, cabelo. Pega a bolsa e sai.
a do gosto, e um audiovisual, Os Recordes, completando a mostra
de Letícia. Ano: 1975
Ali o visitante se comporta primeiro como quem vê e compulsa Duração: 6 minutos
dados a ele oferecidos, inclusive os deixados por visitantes que Formato: porta-pack ½ polegada
o antecederam. Mas é logo solicitado a também produzir dados, Câmera: Jom Tob Azulay
por meio de testes que o levam, de estação a estação, a medir a
si próprio e a registrar as medidas. “Quero deflagrar ações até
que elas se incorporem e criem a forma das marcas do homem em MARCA REGISTRADA
sua presente busca: um fio entre os imensuráveis de sua trama.
Desejo capturar vestígios atuais através de quantidades, medidas
que possam se fazer transcender, a fim de que o imponderável
invada e faça nexo ou interrogação.” Dispondo de dados concretos, A autora costura a sola do pé com uma agulha com linha preta.
precisamente mensuráveis, mas podendo submetê-los à ação aberta Borda a inscrição “MADE IN BRASIL”.
que é sua própria existência, o visitante tem como romper o
“espaço imposto das gaiolas”, os números que o indicam em série, O trabalho pretende a materialização da idéia de reificação da
porém não o confirmam como ser único entre outros seres únicos, pessoa, fato característico da sociedade no momento histórico
seus companheiros de humanidade. presente. A coisificação implica em pertencer. O pertencer, porém,
Letícia Parente mede, portanto, tudo – o tempo também. Durante a transcende também à coisificação por força da ligação profunda
nossa permanência na sala de exposição estaremos sendo obrigados e indevassável com a terra pátria. A marca registrada pode se
a ouvir de um alto-falante a voz monocórdia repetindo, em ciclos assemelhar ao “ferro” de posse do animal mas também é a base da
incessantes: “Cinco segundos, 10 segundos, 15 segundos, 20 estrutura acima da qual a pessoa sempre estará constituída em sua
segundos, 25 segundos, 30 segundos, 35 segundos, 40 segundos, 45 historicidade: quando de pé sobre as plantas dos pés.
segundos, 50 segundos, 55 segundos, 60 segundos. Cinco segundos,
10 segundos”, etc. O tempo bate como um coração naquele espaço. E Ano: 1975
é medida que nos penetra e nos regula, igualmente imposta enquanto Duração: 9 minutos
número. No audiovisual Os Recordes, a prevalência da medida chega, Formato: porta-pack ½ polegada
enfim, ao ponto de mostrar que o ato de medir se tornou compulsivo Câmera: Jom Tob Azulay
num mundo em que cada um tem de ser o maior para ser o melhor:
são registros sucessivos de recordes que um dos dispositivos nos IN
apresentam, dos mais corriqueiros aos mais estranhos, ao som
de palmas padronizadas, como as que ouvimos vindos de falsos A artista entra no seu próprio armário vazio e se pendura através
auditórios de TV – as quantidades fora de série, a elefantíase de sua roupa, pelos ombros, num cabide. Fecha-se a porta do
da concorrência, a desumanizante obsessão humana pela medida. O armário, encerrando-a.
paraíso seria nada medir.
Ano: 1975
Duração: 3 minutos
Formato: porta-pack ½ polegada
PROPOSTA GERAL DA OBRA EM VÍDEO Câmera: Jom Tob Azulay

A artista pretende estabelecer as coordenadas de cada situação


arqueológica, sobretudo com relação ao tempo e ao espaço. PONTOS (desaparecido)

O ponto referencial do espaço, na maioria das vezes, é a própria Uma mão desenha uma caneta com pena sobre uma cartolina. Depois
autora como elemento ora passivo, ora ativo da ação. de desenhada, a caneta é recortada e costurada com agulha e linha
preta sobre o dedo indicador da mão esquerda. Em seguida a pena é
A tecnologia, representada pelo recurso sempre presente, é, na imersa num tinteiro e com ela marca-se um ponto sobre uma folha
maioria das vezes, um personagem visível ou invisível. Pode ser de papel.
obstáculo nos cortes, ponte de união entre o perto e o longe e
denotador das distâncias, para vencê-las ou ampliá-las, entre os Ano: 1975
diversos níveis de consciência interna do personagem. O que se Duração: 6 minutos
quer, em suma, do vídeo, é a possibilidade de confrontar a vivência Formato: porta-pack ½ polegada
ao nível mais profundo, do plano do visceral ao plano do corpóreo Câmera: André Parente
tátil com aquelas regiões circundantes do exterior imediato.

O tempo resta agora “ampliado” pelo poder da máquina, como o PREPARAÇÃO II


aumento fotográfico de um detalhe. A tecnologia potencializa ao
máximo, por todas as vias de acesso e por todas as vozes que São aplicadas pela própria pessoa em si mesma quatro injeções.
acrescentam a capacidade de penetrar na ocorrência. Após cada aplicação são escritos dizeres numa ficha de controle
sanitário internacional para a saída do país. Os registros são
Um dos aspectos mais importantes é que as contradições permanecem feitos na coluna sob o título VACINAS:
não resolvidas, mas, antes mesmo realçadas de uma forma ora sutil,
ora repetitiva, constante ou fugaz. - Anticoloniaismo cultural;
- Anti-racismo;
- Antimistificação política;
PREPARAÇÃO I - Antimistificação da arte.
Ano: 1976 “Eu estou pensando que você está escutando o que eu estou falando
Duração: 7 minutos do que você está pensando que eu estava escutando do que você
Formato: porta-pack ½ polegada falava do que eu estava pensando que você escutava do que eu
Câmera: Ana Vitória Mussi falava.”

E continua assim até o quinto termo.


CHAMADA (desaparecido)
Ano: 1978
A artista entra num apartamento, chega à sala onde numa mesa está Duração: 4 minutos
um gravador de som e um telefone. Grava numa fita a pergunta: “ALÔ, Formato: porta-pack ½ polegada
É A LETÍCIA?”. Repete a pergunta muitas vezes. Pára a gravação. Câmera: Letícia Parente
Volta a fita. Aciona de novo o gravador e deixa a pergunta ecoando.
Pega o telefone, liga para o seu próprio apartamento e deixa o
fone perto do gravador. Sai do apartamento, desce as escadas, O HOMEM DO BRAÇO E O BRAÇO DO HOMEM (em co-autoria com André
chega à rua, desce a ladeira, entra no seu próprio prédio, sobe Parente)
as escadas, chega à porta de seu apartamento, abre a porta com
a chave, escuta o telefone tocando, retira-o do gancho, ouve Vê-se a imagem de um anúncio em néon de um corpo de homem da
sua voz gravada perguntando, “ALÔ, É A LETÍCIA?”. Responde: “É cintura para cima, distendendo e contraindo um dos braços, num
A LETÍCIA”. gesto simbólico de exibição de força. (Trata-se do anúncio de uma
academia de ginástica).
A artista se chama e se identifica por três vias de acesso.
Uma interior imediata, muda, silenciosa de si para si mesma. Após alguns minutos dessa cena, aparece um homem de torso nu, da
Invisível. Outra através de seu corpo chamando a si e sendo cintura para cima, movimentando o braço da mesma forma. À medida
conduzida pelo corpo, pelas pernas atravessando o espaço físico que o gesto se repete, o homem demonstra fadiga e não sustenta o
até sua casa e respondendo: “ALÔ, SOU EU MESMA”. ritmo alentando o movimento.

A terceira via localiza-se dentro do meio tecnológico que grava a Ano: 1978
sua voz, transmite-a pelo telefone até a sua casa, fá-la esperar Duração: 6 minutos
até sua chegada e chama-a. A esta ela própria responde: “É A Formato: porta-pack ½ polegada
LETÍCIA”. Câmera: André Parente e Letícia Parente
Modelo/ator: André Parente
Ano: 1978
Duração: 10 minutos ONDE (em co-autoria com André Parente, vídeo desaparecido)
Formato: porta-pack ½ polegada
Câmera: André Parente Letícia não deixou nada escrito sobre o video ONDE. Trata-se de um
jogo de imagens ao infinito ocasionado pela gravação da gravação da
QUEM PISCOU PRIMEIRO imagem de um aparelho de TV que transmite a própria imagem do que
está sendo gravado. Constitui-se, portanto, um curto-circuito da
Duas pessoas (André e Angela Parente) sentadas diante de um imagem (da imagem (da imagem (da imagem))) ao infinito.
espelho olhando uma para a outra através do mesmo. Por trás de
ambas um painel e nesse painel um orifício por onde sai a objetiva Ano: 1978
de uma câmera de vídeo (o terceiro olho) na direção do espelho. As Duração: 4 minutos
pessoas se observam para ver quem pisca primeiro. Num determinado Formato: porta-pack ½ polegada
momento dão o jogo por encerrado. Mas quem piscou primeiro? Câmera: André Parente

Ano: 1978 DE AFLICTI (ORA PRO NOBIS)


Duração: 4 minutos
Formato: porta-pack ½ polegada Aparecem sucessivamente em imagens fixas gestos de mãos e pés
Câmera: Letícia Parente entrelaçados, contraídos e contorcidos. Cada imagem surge do
escuro e depois se dissolve no escuro. Uma voz reza uma litania:
ORA PRO NOBIS. O ritmo é como o fechar e abrir de um olho (o olho
ESPECULAR da câmera), convocado pela invocação.

Ano: 1979
Duas pessoas, sentadas no chão, uma de frente para a outra, estão Duração: 10 minutos
ligadas por uma espécie de estetoscópio duplo, de modo que os Formato: porta-pack ½ polegada
tubos que saem dos ouvidos de cada uma se ligam no meio, através Fotografias: André Parente
de um tubo comum. Câmera: André Parente

A primeira afirma:
NORDESTE
“Eu estou pensando que você está escutando o que eu estou
falando.” Uma mala de couro rústica é arrastada pela autora até o centro do
campo visual. A mala é aberta e vê-se dentro dela duas cobras vivas
A segunda responde: sobre um lençol branco. A artista procura retirar o lençol sem ser
atingida pelas cobras. Ao retirá-lo fecha a mala e abraça-se ao
“Eu estou pensando que você está escutando o que eu estou mesmo. Música de fundo: canção de Caetano Veloso (“No dia que eu
falando do que você pensava que eu estava escutando do que você vim embora...”) terminando no verso “e a mala cheirava mal...”
falava.”
Ano: 1981
A primeira prossegue: Duração: 3 minutos
Formato: Betamax, colorido
Câmera: Cacilda Teixeira da Costa A característica principal do meu trabalho é não ter se fixado
em nenhuma característica preferencialmente. A sua dinâmica
é mais ramificada do que linear. Deixo que ele persiga um
TAREFA I processo, o meu processo de descoberta e visão. Suas raízes de
unidade evidentes estão dentro de mim e resultam da interação
Letícia não deixou nenhuma anotação sobre este vídeo. A artista da minha realidade com a realidade social e histórica do meu
deita-se dobre a tábua de passar e alguém passa a sua roupa a ferro tempo e do meu momento. É mais interrogativo que descritivo.
(ela estando dentro da mesma). Atendendo a uma intencionalidade com o máximo de rigor que me
é possível, a uma coerência de leitura que possa conseguir,
Ano: 1982 nem por isso escapa a um contorno maior, acrescido pela
Duração: 3 minutos interação da obra com aqueles que a fruem. A participação do
Formato: Betamax, colorido público é um elemento esperado e levado em conta.
Câmera: desconhecido
De acordo com o projeto, ora faz ênfase maior sobre a
arqueologia do tempo presente, ora sobre uma linguagem
VOLTA AO REDOR DO GLOBO (desaparecido) denunciante e crítica.

Dentro de um carro chegando num cruzamento encontra-se um Há variação de meios. Há seleção de meios. Há somatória e
jornalista com o jornal O Globo fazendo gestos espontâneos (quase combinação de meios. De preferência meios não convencionais.
ritualísticos, de apresentação de “mercadoria”). Toma-se o jornal, Crítica à maneira tradicional de arte, desde que não se
mostra-se o título e faz-se um círculo demarcado pelo asfalto em coloque como objeto de consumo, no sentido de não estar
torno de O Globo. dirigido à venda, embora isso possa ocorrer. Aberto a vários
níveis de leitura e de público sem preocupação seletiva ou de
Ano: 1981 diluição, torna-se muitas vezes um fato escandalizante dentro
Duração: 8 minutos das “ortodoxias artistas”, uma vez que não exclui nem impõe
Formato: Betamax, colorido nenhum tipo de pessoa. Isso acrescenta então novo aspecto
Câmera: Cacilda Teixeira da Costa crítico com relação ao sistema de arte e a desmistifica.

Em alguns projetos o método de abordagem da obra pode estar


CARIMBO enriquecido com uma perspectiva ou ótica utilizável em
assuntos científicos. É a destruição de um outro tabu. A
A artista é marcada no rosto com o endereço da Bienal. Uma foto de racionalidade que exige, porém, não pretende colocar a lógica
sua face envelopa o vídeo gravado com o endereçamento e de novo num pedestal, mas também ela passa a ser objeto de crítica e
é endereçado à Bienal. Na Bienal abre-se o pacote e aparece a denúncia.
fisionomia da atriz remetente como destinatário, na tela de outro
vídeo, no escritório de recepção da Bienal. A verificação do humano sem proselitismo ou dogmatização pode
bem ser a preocupação mais contínua e presente.
Ano: 1981
Duração: 10 minutos Relações com a instituição da arte
Formato: VHS, colorido
Câmera: Roberto Sandoval Até certo tempo achei difícil comprar a “barra” de aparecer
como cientista profissional dentro de outra área profissional
VERDE DESEJO / FOME DA CIDADE (desaparecido) “oposta”. Tinha a impressão de que os profissionais de arte
não aceitavam essa condição. Aos poucos, perdi a impressão. O
Um garoto vê um homem comendo um coco em um restaurante de praia. relacionamento procedeu-se como em qualquer outro grupo, isto
Deseja o coco. Sobe num coqueiro e tira-o. Abre-o com as mãos. O é, com dificuldades naturais inerentes às pessoas, pressões
coco está vazio. Decepção do garoto e a fome da cidade. externas do meio, etc.

Ano: 1983 Quanto aos críticos, sempre tive dificuldade de aproximação.


Duração: 3 minutos Sempre me mantive à distância e com horror a usar as
Formato: VHS oportunidades para “furar” os muros. Perdi o horror, mas me
Câmera: desconhecido mantive ainda distante. Acho a crítica necessária e creio
que sempre existirá. O desempenho profissional com que é
feita é que distingue a necessária da desnecessária. Não
TELEFONE SEM FIO (em co-autoria com Ana Vitória Mussi, Anna Bella concordo com que esses profissionais tenham poder maior que
Geiger, Fernando Cocchiarale, Ivens Machado, Miriam Danowski, lhes seja dado pelo sistema quando utilizam instrumentos de
Paulo Herkenhoff, Sônia Andrade) opinião pública. Mas na realidade não há como neutralizar
os efeitos multiplicadores senão desmistificando a ação por
O grupo de artistas (autores do vídeo) brinca de telefone sem um efeito de conscientização maior do próprio trabalho e
fio, fazendo a mensagem passar de ouvido a ouvido e observando a uma independentização do mercado como meio de sobrevivência
deformação que ela sofre. econômica.

Ano: 1976 O público me parece muito mais importante porque nele também
Duração: 13 minutos está incluída a categoria dos artistas. Não faço restrições
Formato: porta-pack ½ reel ao público. Acho importante qualquer público. Creio que cada
Câmera: David Geiger um frui a seu modo. O grau de fruição é aberto. Se o nível da
obra é esgotado no gole de uma pessoa, azar da obra. Foi pouca
para a sede e para o espaço.

Experiência do grupo
Letícia Parente por Letícia Parente
Foi das melhores experiências humanas e profissionais que eu já
tive. Com todas as crises de nascimento, crescimento, etc. Seqüência de trabalhos das séries Mulheres e Casa. A proposta
Quando me afastei “geograficamente” do grupo, considerei uma está dentro do pensamento anterior.
perda irreparável.
Documentação da mostra de arte experimental Medidas
Indispensável para:
A referida mostra aconteceu em 1976 no Museu de Arte Moderna do
a) Lucidez; Rio de Janeiro.
b) Estímulo; Utilizou-se de um conjunto de mídias: fotografia, xerox,
c) Sentido de realidade; audiovisual, jornal.
d) Informação;
e) Ação no meio em momentos de atuação política. A proposta tinha como premissa um questionamento e uma resposta
(testemunhal) que chegava às raias da explicitação escrita em
A existência de um grupo de arte é uma luta contínua contra um relatórios coletivos e individuais assinados.
condicionamento do artista individualista. As ações podem ser
algumas vezes infantis ou superficiais. Mas sem passar pela A quantificação violentava e feria, porquanto se efetuava sobre
experiência muita coisa válida não será descoberta. sensações, percepções e limites imponderáveis.

Do ponto de vista pessoal, a afeição e sentimentos negativos A manifestação externa tomada como assunto deflagrador do
fazem parte da mistura. Tudo muito importante. Ameaçam e processo era a competição em vários dos seus aspectos.
cimentam. Fazem crescer ou fragmentam. Quanto à perenidade, é
difícil mantê-la. Os grupos também terão de se abrir, fechar,
refazer, ampliar, cessar, aparentemente morrer, nascer de novo Letícia Parente
e tal. Livro: Arte e Novos Meios (FAAP)

Transferi para cá a necessidade de vivenciar em grupo problemas “Em termos de trabalho eu cheguei a articular A Proposta da Casa
da vida profissional deste setor de atividade. Não creio que (série de xerox), cujo assunto é a casa, em Fortaleza e no MAC-USP,
possa mais dispensá-lo. mas dependia do trânsito dentro do espaço.
Comecei o trabalho em xerox em 74, e esporadicamente ainda faço,
mas não é o cerne da questão. É uma casa com cortes, na sua
Proposta de seriação de trabalhos planta baixa, que tem três situações geográficas, três estados:
Bahia, Ceará e Rio, as minhas residências.
A fim de conter momentos significativos de minha produção, bem
como uma seleção que possibilite abranger todas as mídias Outra coisa importante deste trabalho é que sempre há um elemento
utilizadas, fiz a seguinte escolha que, abaixo descrita, será de tecnologia do nosso tempo, que acrescento e procuro contrastar
acompanhada, no momento, de fotografias e, posteriormente, na com a linguagem mais poética: então, essa planta baixa, que é de
ocasião propícia, das próprias obras. uma casa típica de BNH, com os sinais de letraset, por exemplo, é
seta num lugar-comum de indicação. Fui colocando idas e vindas,
Trabalhos em audiovisual (Seqüência de slides com som). voltas e revoltas na entrada, e no lugar da conversa tem essas mãos
todas aqui (em letraset), diálogos desejados e coisas assim. No
Dimensões – Seria uma espécie de topologia de dimensão interna quarto há sete camas em letraset, sete alternativas. Numa mistura
projetada no espaço, no tempo e, sobretudo, também na de senso, inocência e sinais estereotipados – aqui rituais de
velocidade que é fruto da relação dos dois outros – “comunica- codificação.
se nos outros apenas uma orientação para o segredo sem jamais
poder dizer objetivamente o segredo” (Bachelard) (Rio de Em Mulheres eu já estava numa linha de testemunho um pouco
Janeiro, 1975). diferente, que era um trabalho em cima da mulher. O corpo da mulher
todo escrito com as suas fissuras, o olhar, os braços. Todo o corpo
Trabalhos em fotografia em cima de um quadrante terrestre posicionando, e o contorno do
corpo todo feito da própria função do corpo – não no sentido só da
Projeto 158 – A interferência nas dimensões da face, alongando- função física, mas de uma função social-humana.
a ou encurtando-a, indica, por meio de uma ideologia
aparentemente flagrada em caricatura, a relação de dominação 0 outro era uma seqüência de perucas, de fisionomias de mulheres.
do exterior sobre a interioridade das pessoas (Rio de A contradição, as perucas, as mulheres carregando perucas,
Janeiro,1976) os manequins carregando as perucas e as mulheres imitando as
fisionomias dos manequins – aquele efeito estilizado do manequim.
Trabalhos em vídeo Havia uma seqüência de óculos: uns que davam felicidade, outros
que estavam ainda com olhos e narizes, boca sentimental, todo
Marca Registrada – De forma cruenta e remanescente de antigo aquele jargão do consumo querendo decifrar o psiquismo feminino,
costume popular presente em brincadeiras infantis, a autora usando ao mesmo tempo e veiculando a propaganda.
costura no próprio pé, com linha preta, bordando as palavras
MADE IN BRASIL (preto-e-branco – 11 minutos). A fase do corpo que testemunha situações culturais, políticas e
sociais culminou em um trabalho de vídeo que de todos foi o que
Preparação I – Relação da pessoa da artista, através de seu conseguiu a sigla mais forte – chama-se Marca Registrada. Nesse
corpo, com o contexto político-social e suas conseqüências. trabalho eu costuro na sola do pé com uma agulha e uma linha preta
Presente, sobretudo, a opressão e a censura à lucidez e à as palavras Made in Brasil na pele. É uma agonia! Dá muita aflição,
fala. porque a agulha entra, fere o meu pé – só podia ser o meu próprio.
Há um costume popular na Bahia em que se borda muito com uma linha
Ambos os trabalhos são desenvolvidos na linha do testemunhal; na palma da mão e na sola do pé. Esse é o trabalho de vídeo de 75,
ponto de encontro dos caminhos por onde passa a arqueologia do que sintetiza essa fase toda.
tempo presente (Rio de Janeiro,1975).
Em geral, a gente tem de ter essa caminhada, um processo de
Trabalhos em xerox gestação de certo modo, eu não sei dizer o que é – se é emocional,
se é intuitivo –, e depois tem a parte de reflexão. Realmente o
pensamento faz a consistência, elabora as amarras das coisas. E a b) Audiovisual – O Livro dos Recordes;
vida é momento, é paixão, é emoção, é tudo misturado. O pensamento c) Livretos e álbuns xerografados ou de fotografias:
está ali fecundando essas coisas todas e estruturando, porque às - Classificação de figuras humanas de telas célebres;
vezes me parece que é assim. Estava preocupada com que as coisas - Propostas de medições “para fazer em casa”;
tivessem vários questionamentos, porque estava interessada nas - Coletânea de material de livros científicos antigos e revistas
respostas.” e jornais atuais sobre testes, classificações, tipologia,
caracteres diferenciais, valorativos, etc.

4. Disposição no espaço
PROPOSTA DE ARTE EXPERIMENTAL
Vide layout anexo.
Letícia T. S. Parente
5. Época preferida
1. Fundamentação teórica:
Abril ou maio de 1976.
A arte é um instrumento de descoberta e conhecimento do mundo,
remetendo àquele que se contacta com ela, não ao seu conteúdo 6. Previsão de gastos
mais direto, propriamente dito, “mas ao modo pelo qual ele é
transmitido” (processo). Cr$

Trata-se de uma tentativa de denunciar, sob a forma de material para construir os dispositivos de medidas 1.000,00
mensurações competitivas criadas num espaço e todos os gestos audiovisual 1.000,00
dela decorrentes, a atmosfera de concorrência e tensão sob a fotos, xerox e álbuns 800,00
qual vivemos no tempo histórico, em que os sistemas procuram fichas individuais e coletivas 800,00
enquadrar as pessoas para classificá-las quantitativamente ou catálogos (1.000 exemplares) 2.000,00
distingui-las segundo categorias fixas de comportamento.
5.600,00
O importante e desejável, mais do que as atividades que as
pessoas desempenham durante a presença e participação no âmbito
da mostra, é a verificação e a vivência de respostas ao nível
de um público bastante variado em nível cultural e de faixa
etária.

2. Proposta

O que se pretende é a criação de um ambiente onde as pessoas


sejam convidadas ou induzidas a:

a) Ações físicas – Execução de medidas (sobre si


próprias) em torno de capacidades e atributos físicos, recursos
e habilidades individuais, etc.;
b) Ações cognitivas – Conhecimento de parâmetros pessoais
(importantes ou não); registro de dados observados em fichas
individuais e coletivas permitindo a comparação dos mesmos;
c) Atitudes emocionais – Envolvimento com clima
competitivo (ou resistência, ou indiferença) em relação a
si mesmas e aos outros; busca de identificação com modelos
estáticos preestabelecidos por uma tipologia e caracterologia
(pseudocientíficas e obsoletas) ainda vigentes em certos níveis
de informação da mass media;
d) Ação reflexiva – Constatação por analogia do clima
competitivo do mundo contemporâneo, sob formas disfarçadas
de informação, e a denúncia das mesmas como dado referencial
crítico.

3. Formalização da proposta

a) Montagem de dispositivos semi-empíricos (criados pela


proponente) de mensuração de dados pessoais:
Por exemplo:
1. Dados biométricos
1.1. Para classificação tipológica:
Forma do rosto;
Proporções do corpo, etc.
1.2. Para avaliação de capacidades físicas
Força manual;
Resistência ao frio e ao calor;
Capacidade respiratória;
Reação à luz;
Tipo sanguíneo;
Tipo de pele e cabelo, etc.
apoio institucional
realização
Concepção editorial Paço das Artes
Organização André Parente
Coordenação editorial Marcelo Amorim
Projeto gráfico Patrícia Dominguez
Textos André Parente, Cláudio da Costa, Cristiana Tejo, Daniela Castro, Fernando Cocchiaralle, Kátia
Maciel, Marisa Florido Cesar e Marília Mazzucchelli
Revisão ??????????????
Versão para o inglês ????????????????
Fotografias Domingues, Letícia Parente

Título Preparações e Tarefas. Letícia Parente


Formato 20 x 20 cm
Tipografia Trauma e Arial
Miolo Off set 180 g/m2
Capa CartãoTriplex 350 g/m2
Número de páginas 120
Tiragem 1.000

Este livro foi produzido em dezembro de 2007.

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