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Letícia Parente
curadoria e organização:
André Parente
Preparações e Tarefas.
Letícia Parente
curadoria e organização:
André Parente
Textos de:
André Parente, Cláudio da Costa, Cristiana Tejo,
Daniela Castro, Fernando Cocchiaralle,
Katia Maciel e Marisa Florido Cesar
ISBN
ISBN
http://www.pacodasartes.org.br
pacodasartes@pacodasartes.org.br
Preparações e Tarefas.
Letícia Parente
curadoria e organização:
André Parente
É com grande satisfação que o Paço das Artes apresenta esta exposição de Letícia Parente, artista que atuou na década de
1970, período rico na cena política e cultural brasileira, quando ao mesmo tempo em que se vivia sob um clima de falta de
liberdade e contestação à ditadura militar surgiam novas experimentações no campo da arte.
Letícia fez parte de uma geração que realizou os primeiros experimentos da videoarte no Rio de Janeiro a partir de 1974.
Ao fazer uso do suporte do vídeo para a arte propôs um deslocamento do foco do objeto para o corpo e a subjetividade.
Hoje, a utilização de novas mídias já está totalmente incorporada à produção das atuais gerações de artistas brasileiros. No
entanto, o trabalho de Letícia Parente foi um marco importante nos primórdios deste processo.
O Paço das Artes considera não somente oportuno mas de extrema importância resgatar e difundir amplamente a obra
desta artista que marcou presença na recente história da arte brasileira.
Esta mostra vem reafirmar a missão do Paço das Artes de exibição, difusão e reflexão da arte contemporânea.
Acreditamos que com esta mostra e este livro oferecemos ao nosso público mais um excelente acesso ao conhecimento do
que há de melhor na produção da arte contemporânea brasileira.
ALÔ,
1
É A LETÍCIA ?
André Parente
A obra de Letícia Parente é pouco conhecida, seja
da crítica, seja do grande público. Isso se deve,
em grande parte, ao fato de que a arte mídia só
veio ganhar espaço no circuito de arte no Brasil
muito recentemente. Mesmo se restringirmos a arte
Para Ana Vitória, mídia a um dos seus principais meios de expressão,
Anna Bella, Essila, Fernando, a videoarte, nenhum dos grandes artistas do
Ivens, Miriam, Paulo e Sonia. mainstream é videoartista. Nenhum dos críticos do
mainstream tampouco tem sequer um texto relevante
sobre videoarte no Brasil.
que se fez desses meios como sua produção teve um tremendo impacto entre seus pares. É
evidente que o grupo desempenhou um papel primordial.
Roberto Pontual costuma situá-los como parte do que ele veio a chamar de Geração 70
(entre os quais estão, além do grupo citado, Antônio Manuel, Maria Maiolino, Cildo
Meireles, Artur Barrio, João Alphonsus, Waltercio Caldas, Iole de Freitas, Tunga, entre
outros), composta por artistas de tendência experimental e/ou conceitual que surgiram
concomitantemente ao aprofundamento da crise do repertório modernista e formalista,
à emergência, no Brasil, dos novos suportes e meios de produção imagética (fotografia,
cinema, audiovisual, artes gráficas, arte postal, xerox) e dos novos espaços, entre eles, a
área experimental do MAM do Rio de Janeiro e o MAC de São Paulo.
O audiovisual
A questão do corpo na arte vem sendo discutida de forma exaustiva nestes últimos anos. No Brasil, desde o “quase
corpo” da obra neoconcreta, que via na obra de arte um “prolongamento da corporalidade”, aos happenings e
performances dos anos 60, em que o corpo do artista se tornou um dos principais personagens por meio do qual as
obras vieram a se revelar como um processo de produção de subjetividade. Trata-se, antes de mais nada, de mostrar
que o corpo é por natureza algo que escapa aos modelos de racionalidade e disciplinaridade cartesianos, iluministas,
fordistas, tayloristas. O corpo é fundamentalmente da ordem da produção, do desejo, do inconsciente, algo que está
sempre escapando ao processo de reificação do corpo como dado, como ordem, como modelo. E mais, o corpo não é
espaço, visto que é processual, não apenas porque se inventa e se reinventa sem cessar, mas porque vai até onde vão os
nossos hábitos e desejos.
Muito do trabalho de Letícia bebeu desta fonte, de uma espécie de neo-kantismo, seja ele estruturalista ou
bachelardiano, em que a estrutura é uma categoria topológica e virtual, pura condição de possibilidade do que vemos,
sentimos e fazemos. Seguindo essa linha de pensamento Letícia sempre parte do corpo ou da casa como os lugares
privilegiados para exprimir ao mesmo tempo o muro que separa o que liberta do que aprisiona. É nesse sentido que
a nosso ver ganha importância a imagem do xerox do alfinete (ver imagem na pág. XX), ao lado do qual se escreve
“liberta, aprisiona”.
Em outro de seus xerox (ver imagem na pág. XX), vemos uma série de imagens dos quadros de Brueghel, nos quais os
personagens são como que aprisionados, sujeitados, amordaçados por meio de cestas e gaiolas. Trata-se, aqui, de uma
imagem recorrente na obra da artista, para quem se a arte tem um papel, é porque ela nos leva a repensar os processos
de subjetivação.
Fotografias
Nos vídeos dos pioneiros, em geral realizados em um único plano-seqüência, gestos cotidianos repetidos de forma ritualística
– subir e descer escadas, assinar o nome, maquiar-se, enfeitar-se, comer, brincar de telefone-sem-fio – são encenados de modo a
produzir uma imagem do corpo. Nos vídeos do grupo, a imagem é uma inflexão, uma dobra, mas a dobra passa pelas atitudes do
corpo, pelo “mergulho no corpo” – termo de Oiticica que retomamos como expressão da reversão estética, a cura da obsessão
formal modernista.
A questão do corpo retorna aqui como um conceito ou atitude crítica, que visa a nos forçar a pensar o intolerável da sociedade
em que vivemos. Em Passagens (1974), Anna Bella Geiger sobe e desce lentamente escadas em um ritmo constante, como
em um rito de passagem; em Dissolução (1974), Ivens Machado assina o seu nome uma centena de vezes até ele se dissolver;
Sônia, em Sem Título (1975), entra em transe como forma de reagir contra o intolerável da televisão que atrapalha a sua
refeição; em A Procura do Recorte (1975), Miriam Danowski recorta bonequinhos em folhas de jornal como forma de
transmutar os pequenos gestos em rituais transgressivos; em Estômago Embrulhado, Paulo Herkenhoff transforma o ato visceral
de comer jornal em uma irônica pedagogia de como “digerir a informação”; em um vídeo coletivo, Telefone sem Fio (1976), o
grupo de artistas dispostos em círculo brinca de telefone-sem-fio enquanto a câmara roda em torno deles e o espectador assiste
ao processo de transformação da informação em ruído, revelando, por meio de uma brincadeira popular, uma das principais
questões teóricas da comunicação (o ruído é parte do processo de comunicação e não apenas interferência).
A obra de Letícia Parente é marcada pela idéia de extrair do corpo uma imagem que nos
dê razão para acreditar no mundo em que vivemos. Os vídeos (ver imagem na pág. XX)
dessa artista são, cada um deles, preparações e tarefas por meio dos quais o corpo revela
os modelos de subjetividade que o aprisionam. Em Marca Registrada (1975), Letícia,
seguindo uma brincadeira nordestina, costura, com agulha e linha, na planta do pé, as
palavras Made in Brasil, ao mesmo tempo em que revela o processo de coisificação do
indivíduo, presente em vários de seus vídeos; no vídeo In (1975), vemos a artista entrar
em um armário, como se tivesse virado roupa; em Tarefa I (1982), a artista se deita em
uma tábua de passar e uma preta passa a sua roupa a ferro (o contraste entre as mãos da
negra que passa a ferro, mas cujo rosto está fora de quadro, e a mulher branca deitada na
tábua de passar faz deste vídeo uma versão tropicalista do quadro de Manet); no vídeo
Preparação I, a artista se prepara para sair, mas ao se maquiar ela cola esparadrapo
em seus olhos e em sua boca, como para revelar que
seus olhos e sua boca são pura máscara, ditada pelas
convenções; em Preparação II, a artista se aplica
uma série de vacinas contra preconceitos (racismo,
colonialismo cultural, mistificação da arte, etc.).
todos são realizados em plano-seqüência. Isso me fez pensar na possibilidade de fazer uma instalação, onde eles fossem
projetados lado a lado, em uma grande parede de 20 metros, de forma que os aspectos comuns – a coisificação da
pessoa, a condição feminina, a opressão das tarefas e preparações cotidianas – fossem potencializados.
Para alguns críticos, os trabalhos de Letícia e do seu grupo são como que registros de performances. Isso porque os
aspectos técnicos da filmagem e da montagem são relegados a um segundo plano. Em todo caso, o que importa é que
nos vídeos dos pioneiros a câmera e a filmagem agem sobre os corpos e personagens como um catalisador. Entretanto,
hoje fica cada vez mais claro que os trabalhos de videoarte diferem dos outros em parte por uma espécie de secura,
de quase ausência de decupagem e de montagem. Na verdade, há um desconhecimento da própria história do cinema
de artista aliado a uma certa postura de colonizado. Não creio que se dissesse isso sobre filmes de Andy Warhol e
Michael Snow. Os corpos monogestuais de Warhol (alguém dorme (Sleep), alguém come (Eat), alguém “experimenta”
um boquete (Blow Job), alguém se beija (Kiss) e os planos-seqüência vazios de Snow (os 45 minutos de zoom de
Wavelength, as três horas de movimentos panorâmicos de La Région Central) são uma das principais tendências do
cinema experimental, em um processo de radicalização dos tempos mortos do cinema do pós-guerra (Neo-Realismo,
Nouvelle Vague, Cinema Novo mundial).
As instalações
Há dispositivo desde que a relação entre elementos heterogêneos (enunciativos, arquitetônicos, tecnológicos,
institucionais, etc.) concorra para produzir no corpo social um certo efeito de subjetivação, seja ele de normalidade e de
desvio (Foucault), seja de territorialização ou desterritorialização (Deleuze), seja de apaziguamento ou de intensidade
(Lyotard). No caso de Letícia, as medidas são produzidas no sentido de produzir no corpo dos visitantes um efeito de
desocultamento dos dispositivos sociais.
Nesse sentido, o que ela faz é criar uma situação, um dispositivo (na verdade, um conjunto de dispositivos) interativo
de medição do corpo. Não se trata de forma alguma de medir para fazer o visitante (aqui, o espectador já não tem mais
nada de espectador, ele é “interator” no sentido mais forte desta palavra) conhecer o seu corpo. A estratégia é muito
Para terminar este texto, gostaria de agradecer a Daniela Bousso pelo convite que me foi
feito para realizar esta exposição no Paço das Artes. Gostaria de agradecer à equipe e aos
amigos do Paço das Artes, em particular a Angela Santos e Marcelo Amorim, bem como
aos colegas Fernando Cocchiarale, Marisa Flórido, Cristiana Tejo, Daniela Castro, Cláudio
da Costa e Katia Maciel por terem aceito o convite para escrever sobre o trabalho de Letícia
Parente.
Letícia Parente: a
videoarte como prática da
divergência
Luiz Cláudio da Costa
O vídeo chegou relativamente cedo ao Brasil e seria rapidamente absorvido pelos artistas plásticos interessados em
novas experimentações e meios não tradicionais. Uma primeira geração de artistas de vídeo surge em 1974 no Rio
de Janeiro, por ocasião de uma mostra de videoarte – realizada na cidade da Filadélfia, nos Estados Unidos – para a
qual alguns cariocas foram convidados. O Rio se tornaria, então, pioneiro na videoarte no país, pela intermediação
de Jom Tob Azulay, que trouxera um equipamento portapack dos Estados Unidos. Foi com esse aparelho que
os artistas cariocas puderam iniciar seus trabalhos de expansão das artes plásticas. São Paulo só começaria a
produzir vídeos a partir de 1976, quando o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo adquiriu
o equipamento e o disponibilizou para os artistas da cidade. A primeira geração de videoarte no Brasil incluía
Sônia Andrade, Fernando Cocchiarale, Anna Bella Geiger e Ivens Machado. No ano seguinte, três outros artistas se
juntariam àqueles: Paulo Herkenhoff, Letícia Parente e Míriam Danowski (MACHADO, 2003).
Letícia formou-se e doutorou-se em química, e a relação com a ciência e o pensamento científico aparece em
seus trabalhos artísticos, seja para problematizar todo pensamento sistematizante e unificante, seja para encontrar
no método científico uma possibilidade de pensamento sensível. Sua primeira exposição individual, Medida1
ocorreu no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1976. Nessa exposição, Letícia induz os participantes a
executar ações físicas, cognitivas, emocionais e reflexivas sobre si mesmos e a registrar os dados de mensuração
e classificação (formas, proporções, capacidades físicas, tipo sanguíneo, etc) em fichas individuais. Letícia
pretende dos participantes “os conhecimentos de parâmetros pessoais”, a “busca de identificação com modelos
O vídeo tem algo da estranheza de Marca Registrada. Aqui, a agulha é substituída pela cobra. Surgem outra vez: a
presença do corpo sem identificação de um rosto, o vínculo forte com o presente da cultura. Mas outros elementos
renovam os problemas: a região do país em questão (o nordeste), uma canção urbana, o contato com o animal repulsivo.
Novos componentes se espacializam e se temporalizam numa mesma prática da disjunção, uma vez que não podem
ser sintetizados numa representação de nação ou de sujeito artista. O vídeo, registrando a ação despretensiosa daquele
que vemos na imagem, agencia forças. Mobilizando um corpo, arregimenta subjetividades. Agregando as sensações
perfurantes da agulha em Marca Registrada ou os sentidos de má índole da cobra, o que se percebe é uma fragilização
tanto da obra como do autor, ainda que a pessoalidade de Letícia, sua proveniência de classe média educada, afinada
com a cultura popular-urbana, suas referências de profissional da química, interessada em dispositivos como agulhas e
cobras, estejam presentes.
No pouco tempo de sua produção artística, entre 1971-1986, Letícia mostrou-se interessada pela prática da contestação
pontual, mas irônica e teatral: a contrariedade enganosa força a vida para fora do instituído. Sua trajetória artística não
foi muito longa, mas apontou para uma intensidade alegre, ainda que grave em certos momentos. O jogo e a brincadeira
sempre fizeram par com a prática questionadora. Feito em co-autoria com Ana Vitória Mussi, Anna Bella Geiger,
Fernando Cocchiarale, Ivens Machado, Miriam Danowski,
Paulo Herkenhoff, Sônia Andrade, o vídeo Telefone sem fio
não é o único trabalho coletivo. Já havia feito outros trabalhos
em parceria com André Parente (O homem do braço e o braço
do homem e Onde, vídeo desaparecido). Telefone sem fio,
entretanto, mostra a importância do jogo, da cena e do engano na
prática contestatória de Letícia Parente sobre as instituições do
sujeito, da autoria, da obra, da verdade científica, do pensamento
lógico que aliena a contradição e o dissenso ou os disfarça
na unidade. Letícia parecia querer forçar o contato das forças
internas do corpo com seu espaço de exterioridade, exigindo-
o passar pelo mundo externo do instituído. Forçar o corpo a
participar de uma cerimônia encenada de contestação artificiosa
em que o mundo da ordem sistematizadora, da burocracia e
do poder implicados no corpo se expanda para fora e permita
a produção de novos sujeitos, sempre esteve presente nos
trabalhos de Letícia.
CANONGIA, Ligia. Quase Cinema: cinema de artista no Brasil, 1970/80. Rio de Janeiro:
FUNARTE, 1981.
MACHADO, Arlindo. Made in Brasil: três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural,
2003.
PROPOSTA DE ARTE EXPERIMENTAL
Letícia T. S. Parente
1. Fundamentação teórica:
2. Proposta
Cr$
5.600,00
JORNAL DO BRASlL
Artes Plásticas
0 texto de hoje, no entanto, é sobre Letícia Parente. Nascida em Salvador (1930), até
pouco tempo atrás ela residiu em Fortaleza, onde expôs pela primeira vez em 1973. Dois
anos antes, estivera no Rio, estudando e participando de seminários com Anna Bella
Geiger. E foi no Rio que se fixou de 1974 para cá. Pode-se dizer que os três anos de sua
atividade têm sido marcados por uma opção de linguagem cujos contornos se definem
desde cedo. O cerco da figura e do ser humano a partir dos mais diferentes pontos e
ângulos de abordagem, utilizando particularmente a fotografia e o audiovisual. Há algo
de fenomenológico, creio que em nível consciente, no seu método de tratar as evidências
deste dado do real, que é o homem. Já era assim nos primeiros trabalhos que conheci
de Letícia, em 1975 – por exemplo, no audiovisual em que apenas números de vários
algarismos apareciam inscritos em cada novo diapositivo, correspondentes a nomes de
pessoas sucedendo-se em ordem alfabética na fita gravada. Quaisquer pessoas, números
e nomes apanhados nas fichas de algum setor da burocracia, malha que processa o
indivíduo como multidão, quer defini-lo e apreendê-lo mas só consegue dessangrá-lo e
diluí-lo.
Por isso, ela deu à exposição o título Medida – um método e uma ironia. Dividiu-a
em dois setores complementares, um servindo à coleta de dados e outro à visão de
dados já previamente registrados. Daí cabe dupla tarefa: a de ver e a de agir. Esses
compartimentos de mensurações constituem, como os chama Letícia, estações, e se
destinam a nos colocar em contato com dados em torno do tipo físico, da respiração, da
resistência, do sangue, da acuidade visual, da atenção e das “medidas secretas” – estas,
ao contrário das anteriores, voltadas para a liberação da subjetividade contra a rigidez
nas medidas que podem ou devem ser exatas e objetivas. Diria que as primeiras estações
referem-se ao corpo, às formas visíveis e a última, à alma, as formas impalpáveis do
pensamento, da imaginação e da memória se desdobrando. Há uma estação extra, a do
gosto, e um audiovisual, Os Recordes, completando a mostra de Letícia.
Ali o visitante se comporta primeiro como quem vê e compulsa dados a ele oferecidos,
inclusive os deixados por visitantes que o antecederam. Mas é logo solicitado a também
produzir dados, por meio de testes que o levam, de estação a estação, a medir a si
próprio e a registrar as medidas. “Quero deflagrar ações até que elas se incorporem
e criem a forma das marcas do homem em sua presente busca: um fio entre os
imensuráveis de sua trama. Desejo capturar vestígios atuais através de quantidades,
medidas que possam se fazer transcender, a fim de que o imponderável invada e faça
nexo ou interrogação.” Dispondo de dados concretos, precisamente mensuráveis, mas
podendo submetê-los à ação aberta que é sua própria existência, o visitante tem como
romper o “espaço imposto das gaiolas”, os números que o indicam em série, porém não o
confirmam como ser único entre outros seres únicos, seus companheiros de humanidade.
Letícia Parente mede, portanto, tudo – o tempo também. Durante a nossa permanência
na sala de exposição estaremos sendo obrigados a ouvir de um alto-falante a voz
monocórdia repetindo, em ciclos incessantes: “Cinco segundos, 10 segundos, 15
segundos, 20 segundos, 25 segundos, 30 segundos, 35 segundos, 40 segundos, 45
segundos, 50 segundos, 55 segundos, 60 segundos. Cinco segundos, 10 segundos”,
etc. O tempo bate como um coração naquele espaço. E é medida que nos penetra e nos
regula, igualmente imposta enquanto número. No audiovisual Os Recordes, a prevalência
da medida chega, enfim, ao ponto de mostrar que o ato de medir se tornou compulsivo
num mundo em que cada um tem de ser o maior para ser o melhor: são registros
sucessivos de recordes que um dos dispositivos nos apresentam, dos mais corriqueiros
aos mais estranhos, ao som de palmas padronizadas, como as que ouvimos vindos de
falsos auditórios de TV – as quantidades fora de série, a elefantíase da concorrência, a
desumanizante obsessão humana pela medida. O paraíso seria nada medir.
A CASA
Katia Maciel
Letícia Parente, artista e química, foi casada 20
anos, teve 5 filhos, 14 irmãos e muitos amigos. Além
de conhecer as ditas tarefas do lar, como cozinhar,
costurar e cuidar dos filhos e marido, a moça
baiana ainda dirigia, fez parte da juventude católica
e trabalhava fora como professora de química
na Universidade Federal do Ceará, e depois na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E
tudo isso no Brasil da década de 1960.
In
Marca registrada
De acordo com o projeto, ora faz ênfase maior sobre a arqueologia do tempo presente,
ora sobre uma linguagem denunciante e crítica.
Em alguns projetos o método de abordagem da obra pode estar enriquecido com uma
perspectiva ou ótica utilizável em assuntos científicos. É a destruição de um outro
tabu. A racionalidade que exige, porém, não pretende colocar a lógica num pedestal,
mas também ela passa a ser objeto de crítica e denúncia.
Até certo tempo achei difícil comprar a “barra” de aparecer como cientista profissional
dentro de outra área profissional “oposta”. Tinha a impressão de que os profissionais
de arte não aceitavam essa condição. Aos poucos, perdi a impressão. O relacionamento
procedeu-se como em qualquer outro grupo, isto é, com dificuldades naturais inerentes
às pessoas, pressões externas do meio, etc.
O público me parece muito mais importante porque nele também está incluída a categoria
dos artistas. Não faço restrições ao público. Acho importante qualquer público. Creio
que cada um frui a seu modo. O grau de fruição é aberto. Se o nível da obra é esgotado
no gole de uma pessoa, azar da obra. Foi pouca para a sede e para o espaço.
EXPERIÊNCIA DO GRUPO
Foi das melhores experiências humanas e profissionais que eu já tive. Com todas as
crises de nascimento, crescimento, etc. Quando me afastei “geograficamente” do grupo,
considerei uma perda irreparável.
Indispensável para:
a) Lucidez;
b) Estímulo;
c) Sentido de realidade;
d) Informação;
e) Ação no meio em momentos de atuação política.
A fim de conter momentos significativos de minha produção, bem como uma seleção que
possibilite abranger todas as mídias utilizadas, fiz a seguinte escolha que, abaixo
descrita, será acompanhada, no momento, de fotografias e, posteriormente, na ocasião
propícia, das próprias obras.
Trabalhos em audiovisual (Seqüência de slides com som).
TRABALHOS EM FOTOGRAFIA
TRABALHOS EM VÍDEO
TRABALHOS EM XEROX
Seqüência de trabalhos das séries Mulheres e Casa. A proposta está dentro do pensamento
anterior.
Documentação da mostra de arte experimental Medidas
A referida mostra aconteceu em 1976 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Utilizou-se de um conjunto de mídias: fotografia, xerox, audiovisual, jornal.
A proposta tinha como premissa um questionamento e uma resposta (testemunhal) que chegava
às raias da explicitação escrita em relatórios coletivos e individuais assinados.
A quantificação violentava e feria, porquanto se efetuava sobre sensações, percepções
e limites imponderáveis.
A manifestação externa tomada como assunto deflagrador do processo era a competição em
vários dos seus aspectos.
1
Nota do curador: “O depoimento de Fernando Cocchiarale foi dado a
André Parente”.
A Terceira Via.
Entrevista de
Fernando Cocchiarale
Eu acho que a videoarte é uma manifestação, uma expressão da crise do Modernismo.
A datação é relativa, os americanos tendem a incluir o Expressionismo Abstrato já
no mundo contemporâneo. Eu penso que o mundo contemporâneo e, portanto a arte
contemporânea, tem alguns determinantes muito evidentes, que têm a ver com o pós-
2a Guerra Mundial. O principal deles é a invenção do jovem ao longo da década de
1950. O jovem foi uma maneira de se diluir a oposição proletária ao mundo burguês e
criar, dentro do mundo burguês, diferenças na esfera do comportamento que pudessem
justificar a mudança na permanência.
Muita gente diz que a passagem do moderno para o contemporâneo não se deu
porque, afinal de contas, ainda estamos no capitalismo. Sem dúvida. Mas a invenção
do jovem introduziu uma dinâmica na transformação ética, estética e política, a partir de
uma série de sintomas e manifestações, que também apareceram no campo da arte.
Isso só pôde ser levado a cabo porque houve a disjunção entre arte e imagem durante
um período razoável – que foi o período das vanguardas históricas. Claro que sempre
houve um flerte com a fotografia, desde o estudo do nadar. Também com o cinema, a
gente sabe disso, mas, de qualquer forma, o mainstream da arte moderna ainda era
muito convencional. Você tinha a pintura, a escultura, o desenho. Esse desenho era
feito em um retângulo, horizontal ou vertical, assim como a pintura. Era uma espécie de fechamento da janela
renascentista.
No campo das artes, em relação às transformações do mundo contemporâneo, o pós-2a Guerra e a invenção do
jovem cuidaram de um certo desencanto quanto ao projeto Iluminista, de uma sociedade regulada pela razão e
pela ordem. Então você vê desde fenômenos como beatniks, Allen Ginsberg, isso ainda nos anos 50, ou mesmo
uma vulgata disso, um Rebelde sem Causa, um filme para milhões, Juventude Transviada. O jovem hoje em dia
é um problema porque ele tem de durar até o resto da vida. Depois que você fica jovem uma vez, você vai ficar
jovem até 75 anos. A invenção do jovem criou uma dilatação, uma coisa estranha na relação com o ethos, com
a estética, que justificam a passagem do moderno para o contemporâneo, apesar de você ainda estar em um
regime econômico dominantemente capitalista.
Mas eu acho que é possível a idéia de que você só mudaria radicalmente com a substituição de um modo
de produção dominante por outro, a idéia marxista. Se a gente puser em confronto o que foi empiricamente
conquistado pelos dois regimes, vamos ver que em um determinado momento, o regime soviético primava por ter
uma música clássica, um balé clássico, tudo clássico, enquanto os Beatles viviam na Grã-Bretanha. Isso operou
possibilidades de fraturas ou de fragmentações.
Dentro disso, os meios convencionais da arte moderna se tornaram estranhos a novas alternativas de invenção.
Temos de observar que a transição para a arte contemporânea foi introduzida por artistas que começavam ali,
mas ela foi vivenciada no interior da transformação da obra de vários artistas. Hélio Oiticica fez isso, ele foi
moderno e se tornou contemporâneo. Lygia Clark, Lygia Pape, Anna Bella Geiger, Amélia Toledo. Então não é
uma coisa tão simplória, uma nova geração, é uma coisa mais complicada mesmo. Essa volta a um diferencial,
a reintrodução da narrativa, alguma coisa que conte algo mais que o que ali está, do ponto de vista espacial,
por uma linguagem de formas ordenadas ou desordenadas, algumas bem desdobradas e outras bem menos
complexas.
Mas há a introdução de um fator muito importante,
que eu acho que justifica o Super-8 e o vídeo, que é
a assimilação do tempo na vida social desde o mundo
que resulta do Iluminismo, no mundo moderno. A idéia
de progresso, de avanço da razão, justifica a noção
de obsolescência, que não existia. Eu duvido que na
Idade Média uns carros de boi, uma carroça ficassem
obsoletos em menos de 200 ou 300 anos. A idéia de
que uma coisa vai ser superada e vai ser substituída,
no campo da produção, do objeto, do produto, que hoje
em dia está absolutamente exacerbada, tem a ver com
a invenção desses novos tipos de tema, como a história,
no século 17. Quer dizer, agora você tem uma disciplina,
você tem métodos específicos, você tem a historiografia
para explicar por que as coisas mudam, por que elas se caracteriza por um único sujeito com estilo definido.
se transformam. A introdução do tempo e do movimento
Na época em que começamos a fazer videoarte,
certamente teria de empurrar a obra de arte que vem
nós tínhamos consciência dessas questões, mas
dessa tradição para registros não só técnicos, como a
não conhecíamos os textos da Lygia e do Hélio, não
fotografia, como também o cinema e o vídeo.
estudávamos isso. É importante dizer que o pessoal que
passou pela Anna Bella, aqui no Rio, de alguma maneira
foi formado por uma espécie de terceira via. A via da
Vídeo ou Performance? Anna Bella era mais diretamente internacionalista. Eu li o
Kosuth antes de saber o que era um parangolé.
Naquela época, as performances (que ninguém chamava
de performances, eram happenings ou intervenções) Das outras vias, uma delas era a que vinha de um
tinham por característica um certo desdobramento experimentalismo de origem neoconcreta e a outra
temporal, que precisava ser registrado, digamos, apenas era a que resistia a isso por várias razões, até por um
como memória, ou havia um fotógrafo que pegava a exacerbamento de uma posição formalista. Como a
seqüência, ou alguém com um Super-8, um 36mm, etc. Anna Bella nunca havia explicitado para si o que estava
Então, o vídeo é suscitado por uma demanda muito operando, ninguém pensou sobre o que seria aquilo. Mas
séria, que se dá no campo da experiência artística, se olharmos o grupo de pessoas que passou por ela,
que é pensar agora o tempo e o espaço como valores em graus variados é uma terceira via. Paulo Herkenhoff,
articulados. Não um espaço com um antes e um depois Letícia Parente, Sônia Andrade. E, naquele tempo,
como você pode sugerir no sorriso da Monalisa. Trata-se as duas outras vias não favoreciam isso, porque elas
de um antes e um depois que sustente uma narrativa de estavam ainda, digamos, voltadas para a observação da
qualquer tipo. grandiosidade das questões de que elas eram portadoras.
O vídeo, portanto, é um sintoma, uma resposta de um Muito poucos trabalhos dos pioneiros da videoarte eram
mundo contemporâneo que é fragmentário, e não mais performances. Por exemplo, Versus, do Ivens Machado,
em que ele e um ator negro ficam em ângulos nos quais a câmera vai fundir a imagem só com o movimento – isso é
uma performance, mas é uma performance da câmera. Se não houvesse a câmera, o vídeo, ele não poderia fazer.
Preparações, da Letícia, ou quando a Sônia joga o feijão na câmera podem ser considerados performances. Agora, o
sentido delas é serem vistas em vídeo. Há um equívoco nessa discussão de linguagem, até porque eu não acho nem
que hoje em dia se deva mais falar de linguagem. Nós voltamos para uma neopolitécnia que está no photoshop, que
está no sintetizador. Ficar falando de linguagem hoje em dia é bullshit, mas se as pessoas acham que a linguagem do
vídeo é filmar em close, editar, colocar efeitos, eu diria que é também uma possibilidade do vídeo registrar simplesmente
uma performance. Não poderia aparecer daquele jeito se fosse feita com Super-8, com fotografia ou se pusesse um
desenhista, um Debret para desenhar.
Então eu sou contra essa distinção quase aristocrática ou tecnocrática entre high e low tech. Acho isso absolutamente
ridículo. Muito mais importante é a situação poética. Lembro, por exemplo, do vídeo da Sônia – a performance da Sônia
– tacando o feijão, com uma televisão atrás de si em que, aleatoriamente –isso foi uma coincidência –, ela ligou no Jornal
da Globo. Aquilo quase é um comercial, a narrativa tem tudo a ver com o vídeo. Se entrou tecnologia, efeitos especiais ou
não é o que menos me interessa. Senão ninguém poderia cantar a capella. O velho Walter Benjamim já saca isso quando
ele fala do close. Como é que uma performance de Letícia Parente botando esparadrapos nos olhos e desenhando seus
olhos poderia ser vista tão em close, com tanta intimidade, se não fosse em vídeo? Como é que as pessoas veriam ao
vivo se estivessem a dez metros de distância? Iriam ver um olhinho bem pequeno ou nem veriam, porque o próprio corpo
de Letícia, provavelmente, seria um obstáculo. Então aquilo que eu vejo ali é vídeo.
Eu não considero Medidas uma exposição de arte-ciência. Não por ser retrógrado
ao que se chama arte-ciência, ao contrário, eu acho a arte-ciência retrógrada ao
que a Letícia estava mostrando ali. Porque o evidente na reificação desses aparatos
de mensuração é que ali eram confrontados normas e seus aparelhos de aferição,
supostamente regulados, não com o objetivo de glorificar esse sistema, mas ironizar e
até, em certos momentos, implodi-lo. Então quando se fala em arte-ciência hoje, muitas
vezes, o que há é uma espécie de rendição ao encantamento, o que é normal, pois as
possibilidades que a ciência oferece são maravilhosas.
da incerteza, do jogo, da aposta, com que normalmente um cientista evita conviver porque ele está muito bem
encastelado em todas as suas razões. Em geral, é meio incômodo, do ponto de vista existencial, a pessoa se
enclausurar, seja em uma espécie de moto-contínuo de “Eu sou amor da cabeça aos pés” ou, ao contrário, “Tudo
tem suas razões”. Ela passava de um estado para o outro muito naturalmente.
Nesse trabalho, ela coloca no campo da arte a tênue película entre essas duas partes da sua vida, o lado doutor,
o lado da cientista, e o lado eminentemente sensível. E eu tenho certeza de que se há alguma coisa que a guia e
que implode tudo isso é o lado sensível. Então não existe ainda uma rendição, uma ilustração, um encantamento.
É um trabalho, como você1 disse, foucaultiano, que submete os instrumentos de aferição da disciplina à implosão
pelo seu sentido poético. Porque todo mundo sabia ali que aquilo não tinha nenhum objetivo escrutinador,
esquadrinhador. Aquilo era uma coisa sensual, lúdica.
Esse trabalho me lembra a obra de Barrio quando ele fez os cadernos-livros e os livros-registros – que ele mesmo
diz que não são obras, que as obras são o que acontece ali. Essas experiências são registradas ali com uma
seriedade quase de um viajante Darwin do século 19. Só que o Darwin tinha o telos, que era o amor à verdade,
aquilo tinha um sentido. Quando Barrio faz aquilo é para registrar o quê? Coisas que normalmente não têm
sentido porque nós não emprestamos sentido sensível àquilo. Então ele reifica aquelas experiências do cotidiano
agindo sobre elas como se fosse um cientista.
Eu fico pensando que todos esses trabalhos estão criando um novo sujeito, não mais filosófico e epistemológico,
mas artístico. Então é como se Barrio, ao anotar feito um cientista como um português imprime um peixe em
um papel lá em Lisboa, estivesse sendo como Letícia, trazendo esses instrumentos, essa película, cajuína em
Teresina, fininha, entre arte e ciência. Mas não no sentido de rendição, no sentido de libertação.
Persistência da
consciência: marcas
da identidade
Cristiana Tejo
Sabe-se que é penoso, senão impossível, fugir de nosso tempo. Apesar da subjetividade nortear nossa experiência no mundo, a
conjuntura nutre o olhar e desenvolve o saber que gera o trabalho. Portanto, não seria despropositado ou mesmo leviano afirmar
que todos os autores e artistas são frutos de suas épocas, mesmo que suas obras extravasem o entendimento e a pertinência para
outros contextos e gerações. Dessa forma, poderíamos dizer que Letícia Parente se localiza nesta linhagem: sua obra manifesta
seu tempo. Seus vídeos tangenciam o redimensionamento das identidades, a relocação de papéis sociais, a utilização do corpo
como suporte discursivo, a escalada do consumismo exacerbado e o chamamento para a exploração de novas mídias, aspectos
que caracterizam a arte da segunda metade do século 20. Esses elementos, entretanto, se combinam de maneira muito peculiar
na trajetória desta artista paradigmática da arte conceitual brasileira e fundamentam historicamente parte da produção atual que
lida com essas questões.
Sobressai-se a compreensão apurada de Letícia do corpo feminino como alvo de reificação num período de extremo
questionamento da posição da mulher na sociedade, uma corroboração das colocações de Simone de Beauvoir de que não se
nasce mulher, torna-se. O aprisionamento dos procedimentos de construção visual e identitária femininas é representado a partir
de subversões e paródias de situações cotidianas em ambientes
domésticos, concomitantemente simples e de alta potência
imagética. Em Preparação I, o ato banal de se embelezar para
sair transforma-se no vestir de uma máscara. O deslizar do
batom não evidencia os traços labiais da artista, mas por ser
aplicado sobre um esparadrapo vira um desenho dos lábios,
uma representação por cima da parte verdadeira. O delineador
desenha olhos nos esparadrapos. A maquiagem assume um
caráter de mascaramento. O que supostamente seria feito para
ressaltar a beleza feminina apresenta-se como falseamento,
enganação.
“Em termos de trabalho eu cheguei a articular A Proposta da Casa (série de xerox), cujo
assunto é a casa, em Fortaleza e no MAC-USP, mas dependia do trânsito dentro do espaço.
Comecei o trabalho em xerox em 74, e esporadicamente ainda faço, mas não é o cerne da
questão. É uma casa com cortes, na sua planta baixa, que tem três situações geográficas,
três estados: Bahia, Ceará e Rio, as minhas residências.
Outra coisa importante deste trabalho é que sempre há um elemento de tecnologia do nosso
tempo, que acrescento e procuro contrastar com a linguagem mais poética: então, essa planta
baixa, que é de uma casa típica de BNH, com os sinais de letraset, por exemplo, é seta num
lugar-comum de indicação. Fui colocando idas e vindas, voltas e revoltas na entrada, e no
lugar da conversa tem essas mãos todas aqui (em letraset), diálogos desejados e coisas
assim. No quarto há sete camas em letraset, sete alternativas. Numa mistura de senso,
inocência e sinais estereotipados – aqui rituais de codificação.
Em Mulheres eu já estava numa linha de testemunho um pouco diferente, que era um trabalho
em cima da mulher. O corpo da mulher todo escrito com as suas fissuras, o olhar, os braços.
Todo o corpo em cima de um quadrante terrestre posicionando, e o contorno do corpo todo
feito da própria função do corpo – não no sentido só da função física, mas de uma função
social-humana.
Em geral, a gente tem de ter essa caminhada, um processo de gestação de certo modo, eu não
sei dizer o que é – se é emocional, se é intuitivo –, e depois tem a parte de reflexão.
Realmente o pensamento faz a consistência, elabora as amarras das coisas. E a vida é
momento, é paixão, é emoção, é tudo misturado. O pensamento está ali fecundando essas coisas
todas e estruturando, porque às vezes me parece que é assim. Estava preocupada com que as
coisas tivessem vários questionamentos, porque estava interessada nas respostas.”
A CARNE DA
IMAGEM
Marie-José Mondzain
Le Commerce des Regards
A mulher diante do espelho. Nada mais corriqueiro do que vê-la maquiar-se defronte à
superfície do cristal. Salvo que, naquele lavabo, inicia-se um cerimonial que nos sugere
uma estranha violência, uma automutilação simbólica: a boca é silenciada com um pequeno
esparadrapo sobre o qual a mulher delineia seus lábios. Os olhos são então vendados: um
após o outro, e sobre o tecido branco, são desenhados os olhos subtraídos. Tateando à
procura da porta, a mulher enfim retira-se. O que se oculta atrás do mutismo e da cegueira
das imagens?
O vídeo chama-se Tarefa I (1975) e, como em outros vídeos de Letícia Parente, é a artista
que protagoniza a performance no espaço privado de sua casa. São rituais do cotidiano,
pequenos afazeres domésticos e banais desprovidos de narrativa dramática, como passar ou
pendurar a roupa no armário. Mas eis que a roupa ainda veste a artista, aquela que realiza a
ação confunde-se com aquela que sofre a ação: a artista é suspensa pela roupa no armário.
Corpo, carne e o véu que os cobre tornam-se indiscerníveis. O olhar e a voz convocados
no endereçamento são apanhados na armadilha: a imagem é o lugar de uma indecisão, ou,
como diz Marie-José Mondzain, “de uma crise”.
No final dos anos 50 e nos 60, os happenings e as performances já haviam introduzido a
execução de tarefas cotidianas como as Task Performances, de Robert Morris, coreografias
realizadas com Simone Forte e outros dançarinos. O esvaziamento do gesto expressivo do
artista, a incorporação das ações rotineiras e desglamorizadas, com seu tempo operacional,
repetitivo e autômato, a exigência da co-presença do espectador para a completude da obra
vinham opor-se às concepções formalistas da arte. Mas, tal como Bruce Nauman, que na série
Studio Films executaria uma sucessão de atividades em seu ateliê, muitas vezes conduzindo
o corpo à sua quase exaustão, as performances e tarefas de Letícia Parente não se realizam
diante de uma audiência, mas têm a câmera, seu olho maquinal, como testemunha.
Tarefa I parece remeter ao gênero do retrato na arte, expondo-o em toda a sua ambivalência:
de um lado, está a clausura de um si mesmo, figura cega e muda, colocada frente à face e à
visão de um espelho impossível e sob a vigilância de um olho mecânico. De outro, um fora de
si, figura extraviada que se ganha e se perde na própria captura. A imagem solicita a palavra,
o sopro de um sentido partilhado, mas não se deixa capturar ou reduzir-se por ela. Como
devolver àquela figura a voz, se nenhum nome parece adequar-se? O que se mostra ali como
uma fratura íntima é o véu obscurecido de um encontro, de um espaçamento. “Arte”: o nome
instável desse encontro.
“Entretanto, ʻeuʼ não me encontro, nem me reconheço no outro, existo com ele: eu experimento a alteridade e a
alteração que em mim mesmo coloca, fora de mim, nessa exposição, a singularidade de qualquer existência tecendo-
se em tramas e ecos infinitos” — eis a resposta subentendida em outro vídeo, Especular (1978). Nele, o espelho foi
removido. Permanece, pelo nome que o intitula, apenas o adjetivo que designa sua propriedade reflexiva. Em seu
lugar, um jovem casal se olha e se escuta por estetoscópios. Ela diz: “Eu quero ouvir o que em mim você está ouvindo
dentro de você”. Ele responde: “Eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim, o que eu estou ouvindo de você,
dentro de mim”. Ela outra vez: “Eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim, o que eu estou ouvindo de você, o
que você está ouvindo de mim, dentro de você”. E assim, sucessivamente, nos rebatimentos da palavra, Narciso oferece
a hospitalidade a Eco. O que faz a arte senão solicitar o pensamento e a sensibilidade diante do visível e explicitar
seu desamparo diante da face impossível? O
que faz a arte senão expor esse vazio, essa
intermitência, esse espaçamento eclipsado, que
todavia abre o lugar a um terceiro. O lugar de
onde se aguardaria uma resposta, a recompensa
desse dom. Qual é o lugar que ele ocupa nesses
rebatimentos amorosos e fugidios?
imagem, esvaziando-a em submissões crédulas. As tiranias que promovem estratégias de cegueira e de emudecimento:
manipulam o desejo de ver, violentam nossa capacidade de julgar, subtraem-nos a palavra. Encarceram visão e voz na
servidão dos consensos econômicos, políticos, religiosos, fusionais, identitários, quais sejam. Mas ela o faz, acredito,
indagando os fundamentos de nossa relação com a imagem.
Nos vídeos de Letícia Parente, corpo, casa, figura, as tarefas cotidianas ganham contornos singulares, solicitam outras
aproximações. Os rituais domésticos assemelham-se à paixão da carne e da imagem, interrogam a capacidade de
sentir, de afetar e de ser afetado. São as pequenas paixões do cotidiano, suas passagens, os modos de aparição de um
provável homem dotado de palavra e de visão. O que está em questão ali é a natureza da imagem que se ergue e se
imagem que existe por nós e faz um mundo advir
por ela, no jogo das aparições e desaparições
recíprocas entre homem e mundo. O que está
em questão ali, penso, é a possibilidade de um
homem, de uma humanidade sempre por vir.
Figura paradoxal que se debate entre seu excesso,
sua infigurabilidade, e o desejo e desenho de sua
imagem. Entre o véu que cobre a face inominável
e o véu como plano de inscrição de um nome
encarnado. Afinal, aquilo que um dia chamamos
homem nasce da palavra encarnada na imagem.
Mas o que seria hoje, a medida ou a desmedida da existência sem Deus e sem eu, senão o sem-medida enquanto tal, que
conduz o próprio homem a uma outra imensidão? Não mais como substância, não mais como o infinito de Deus, mas a
imensidão da “responsabilidade”2. A imensidão de um cuidado.
Ora, nossa relação com a imagem está indiscutivelmente vinculada ao pensamento cristão. “A imagem fez uma entrada
real em nossa cultura em que a encarnação cristã deu à transcendência invisível e atemporal sua dimensão temporal
e visível, a transcendência que negocia com o acontecimento (...). Deus entra na história pelo nascimento de sua
imagem filial. Doravante, no Ocidente, a manifestação do visível se descreve em termos de nascimento, de morte e de
ressurreição, ela se endereça aos corpos vivos dotados de palavra e julgamento.”3
Nas reflexões de Marie-José Mondzain, o imaginário contemporâneo tem suas fontes na crise do iconoclasmo em
Bizâncio4. Em sua dupla natureza, Verbo e Carne, Cristo é o ícone que serve de modelo, imagem natural de uma
invisibilidade. Foi a partir dessa imagem que o homem pôde produzir imagens artificiais. Por isso o véu do interdito
bíblico, que cobre a imagem de Deus hebreu, pôde se tornar um plano de inscrição da face do homem cristão. A Paixão
de Cristo é oferecida então em espetáculo aos olhos dos homens como uma redenção a imitar. O destino icônico da
paixão ativa de Cristo transforma-se na “paixão da Imagem”, diz a autora, que reúne em si todos os destinos e paixões
em uma única fábula em que fiéis são atores e espectadores. A redenção da própria Humanidade.
Mas se o pensamento cristão instaurou um laço solidário e fundamental entre a palavra invisível transfigurada em
imagem à nossa realidade viva e corpórea, ele o fez preservando seu enigma, seu espelho velado. Enigma da carne
habitada pela Voz invisível que enuncia Sua manifestação, mas que mantém nos filhos o desejo insaciável de ver Sua
face, pois a imagem é sempre estranha àquilo a que ela serve de imagem. Como esse Deus estrangeiro que habitou entre
nós. É em torno dessa invisibilidade estrangeira se institui o que Mondzain denomina o “comércio dos olhares”.
A imagem é o “lugar de crise”, diz. Não é uma experiência mística, mas uma negociação entre o visível e o invisível,
entre a distância e a proximidade. A liberdade face às imagens necessita de um olhar crítico que os coloque em relação.
Crise, do verbo grego krinô: discernir, distinguir,
escolher, julgar. “Ver é julgar.” “Dar à imagem um
estatuto crítico era uma promessa de liberdade.” É a
partir do lugar assinalado para o espectador, que exige
uma distância por onde ele se movimente, que se pode
julgar. “Não se partilha o visível sem construir o lugar
invisível da própria partilha.”5 Ela demanda a palavra,
o apelo e o envio dos olhares, que se encontram pelas
imagens. A economia do visível é uma escolha política,
aquela da partilha do amor e dos ódios, a partilha de um
mundo comum.
imagem, nada se relaciona com o mercado das visibilidades, diz Mondzain. Não é a proliferação das imagens, pelas
técnicas modernas de produção e difusão de imagens, que constitui uma situação nova. “A presença da imagem e
o reconhecimento de seus poderes remonta há milênios.” Não estamos sob a inflação das imagens em um mundo
submerso de coisas a ver, “jamais a imagem esteve tão ameaçada e arrisca-se a desaparecer sob o império das
visibilidades. Há cada vez menos imagens”6.
Quando o comércio dos olhares se transforma na gestão comercial do visível, o mercado dos espetáculos constrói
“o império das barbáries”. A extenuação da imagem condena o olhar e sua liberdade à servidão de “iconocracias”.
Programar o consumo unívoco e o consenso de um sentido é destruir a imagem e produzir a idolatria por um poder
Seria necessário, então, devolver a condição de estrangeiro em sua própria pele, ou antes,
incorporar seu próprio impróprio, encarná-lo: o corpo sem próprio se entrega à errância, que
abre incondicionalmente as fronteiras à alteridade qualquer. Em Preparação II (1976), a
artista se aplica vacinas contra todas as formas de poder e preconceito, contra o pensamento
absoluto que reduz o outro ao espelho dialético do mesmo: anti-racismo, anticolonialismo
cultural, antimistificação política, antimistificação da arte.
abril de 2007
PROPOSTA
GERAL DA
OBRA EM
VÍDEO
Letícia Parente
A artista pretende estabelecer as coordenadas de cada situação
arqueológica, sobretudo com relação ao tempo e ao espaço.
Ano: 1975
Duração: 9 minutos
Formato: porta-pack ½ polegada
Câmera: Jom Tob Azulay
PONTOS (desaparecido)
Ano: 1975
Duração: 6 minutos
Formato: porta-pack ½ polegada
IN Câmera: André Parente
Ano: 1975
Duração: 3 minutos
Formato: porta-pack ½ polegada
Câmera: Jom Tob Azulay
PREPARAÇÃO II
- Anticoloniaismo cultural;
- Anti-racismo;
- Antimistificação política;
- Antimistificação da arte.
Ano: 1976
Duração: 7 minutos
Formato: porta-pack ½ polegada
Câmera: Ana Vitória Mussi
CHAMADA (desaparecido)
Ano: 1978
Duração: 10 minutos
Formato: porta-pack ½ polegada
Câmera: André Parente
Ano: 1978
Duração: 4 minutos
Formato: porta-pack ½ polegada
Câmera: Letícia Parente
ESPECULAR
A primeira afirma:
A segunda responde:
A primeira prossegue:
Ano: 1978
Duração: 4 minutos
Formato: porta-pack ½ polegada
Câmera: Letícia Parente
O HOMEM DO BRAÇO E O BRAÇO DO HOMEM
(em co-autoria com André Parente)
Ano: 1978
Duração: 6 minutos DE AFLICTI (ORA PRO NOBIS)
Formato: porta-pack ½ polegada
Câmera: André Parente e Letícia Parente Aparecem sucessivamente em imagens fixas
Modelo/ator: André Parente gestos de mãos e pés entrelaçados,
contraídos e contorcidos. Cada imagem surge
ONDE (em co-autoria com André Parente, do escuro e depois se dissolve no escuro.
vídeo desaparecido) Uma voz reza uma litania: ORA PRO NOBIS. O
ritmo é como o fechar e abrir de um olho (o
Letícia não deixou nada escrito sobre o olho da câmera), convocado pela invocação.
video ONDE. Trata-se de um jogo de imagens
ao infinito ocasionado pela gravação da Ano: 1979
gravação da imagem de um aparelho de TV Duração: 10 minutos
que transmite a própria imagem do que está Formato: porta-pack ½ polegada
sendo gravado. Constitui-se, portanto, um Fotografias: André Parente
curto-circuito da imagem (da imagem (da Câmera: André Parente
imagem (da imagem))) ao infinito.
Ano: 1981
Duração: 3 minutos
Formato: Betamax, colorido
Câmera: Cacilda Teixeira da Costa
TAREFA I
Ano: 1982
Duração: 3 minutos
Formato: Betamax, colorido
Câmera: desconhecido
Ano: 1981
Duração: 8 minutos
Formato: Betamax, colorido
Câmera: Cacilda Teixeira da Costa
CARIMBO
Ano: 1981
Duração: 10 minutos
Formato: VHS, colorido
Câmera: Roberto Sandoval
Ano: 1983
Duração: 3 minutos
Formato: VHS
Câmera: desconhecido
TELEFONE SEM FIO (em co-autoria com Ana Vitória Mussi, Anna Bella
Geiger, Fernando Cocchiarale, Ivens Machado, Miriam Danowski,
Paulo Herkenhoff, Sônia Andrade)
Ano: 1976
Duração: 13 minutos
Formato: porta-pack ½ reel
Câmera: David Geiger
Vias distorcidas:
costuras, ressignificações
e a sensibilidade que se
renova com o tempo
Daniela Castro
A imagem, disse Godard, é apenas o complemento da idéia que a motiva. Desconstruindo Letícia Parente, de Luiz
Duva, resulta então em imagens-complemento da idéia que o motivou a manipular ao vivo a imagem-complemento da
idéia de Letícia Parente em Marca Registrada, de 1975. Letícia já havia afirmado que sua prática artística era enfatizar
a arqueologia do tempo presente. A estrutura em camadas descrita acima estabelece as coordenadas de uma situação
arqueológica espaço-temporal digna de ser observada em seu caráter experimental, técnico e semântico. Da linearidade
tensa do vídeo de Letícia à sua desconstrução no processo de inacabamento da performance em tempo real de Duva, o que
ainda permanece é a potência inventiva de projetar e experimentar.
* * *
A experimentação com novos meios tecnológicos marcou a produção dos pioneiros do vídeo no Brasil nos idos de 1970.
Longos planos-seqüência como registro de performances, intervenções no monitor de TV, a intercalação de técnicas
(“pintar” com a câmera), a inscrição do absurdo como método de narrar a análise de vivências contrapunham-se à
produção televisiva da época, ordenada e dependente da comunicação informacional (censurada). O processo de transmitir
o conteúdo artístico sobrescreveu-se sobre seu próprio conteúdo1. Sendo o processo o aspecto vital da obra, abre-se a
possibilidade de inserção da interlocução do público na construção de seu conteúdo.
Em tempos anteriores aos dos pioneiros do vídeo, mas não menos conflituosos, Walter Benjamin decretava as vias de
extinção da arte de narrar2. Para o autor, o narrador não está presente entre nós em sua atualidade viva; seu interlocutor
vive a exigência de ocupar uma localização numa distância acomodada, num ângulo favorável, devido à privação de uma
faculdade que parecia ser segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. Isso porque, na modernidade,
o “informar” ocupou a atividade de “narrar”. A informação só se valida no novo, ela só vive nesse momento e tem de se
explicar nele. Os fatos chegam acompanhados de explicações, ou seja, quase nada está a serviço da narrativa, e quase tudo
está a serviço da informação: para Benjamin, metade da arte narrativa está em evitar explicações.
A novidade da experimentação artística com a tecnologia vigente na segunda metade do século 20 se encerrava na própria
técnica. Os vídeos pioneiros não explicavam nada, não informavam. Seja por meio do rigor conceitual ou da linguagem do
absurdo, eles narravam as condições opressivas da vivência diária.
Marca Registrada pretendeu, nas palavras de Letícia, “a materialização da idéia de reificação da pessoa, fato característico
da sociedade no momento histórico presente. A coisificação implica em pertencer. O pertencer, porém, transcende também
à coisificação por força da ligação profunda e indevassável com a terra pátria. A marca registrada pode se assemelhar ao
“ferro” de posse do animal mas também é a base da estrutura acima da qual a pessoa sempre estará constituída em sua
historicidade: quando de pé sobre as plantas dos pés”3. A marca registrada é também o blindspot, o ponto cego da herança
violenta da colonização, patriarcalismo e ditadura que constituem essa historicidade; pois, quando de pé sobre as plantas
dos pés, não se enxerga a marca. Quando de pé, parada ou em movimento, internaliza-se a reificação da pessoa como
produto dessa herança, desde a sua base corpórea até sua estrutura identitária. A linearidade tensa do vídeo é revelada na
agonia da lentidão com que a artista costura na pele o conhecimento da coisificação do sujeito (Made in Brazil), que, sem
se revelar nas imagens do vídeo, só lhe resta levantar e esconder para que se possa continuar o exercício da vida. É como
se a violência constituinte desse conhecimento fosse muito dolorosa para ser contemplada em sua eterna costura. “Dá
muita aflição, porque a agulha entra, fere meu pé – só podia ser meu próprio corpo”4; e só podia ser essa parte do corpo.
Não se rendendo à parálise física da revelação do saber – sentada, imóvel – , há de se levantar e caminhar com ele, mesmo
sem enxergá-lo, mesmo que se escolha temporariamente não sabê-lo – pois ele fere. E deixa marca.
A tensão dessa narrativa se revela na estrutura rigorosa da ação do sujeito consciente em registrar a marca desse
conhecimento e de posteriormente suspendê-lo, como se suspensa fosse, também, a esperança de obter agenciamento sobre
ele. Aqui, antes de ser uma novidade técnica, a tecnologia é o modo pelo qual esse conhecimento é transmitido e dividido
entre Letícia e seu interlocutor; ela é personagem visível e invisível na obra. Para a artista, a tecnologia potencializa ao
máximo todas as vias de acesso e todas as vozes que acrescentam a capacidade de penetrar na ocorrência da narrativa.
Em suma, “o que se quer do vídeo é a possibilidade de confrontar a vivência no nível mais profundo, no plano do
visceral, passando ao do corpóreo tátil com aquelas nas regiões circundantes do externo imediato”5. Diferente do novo da
informação, a narrativa não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver6.
* * *
Tampouco foi a intenção de Duva meramente re-enformar (de re-formar e re-informar) a obra de Letícia do ponto de
vista da novidade técnica. O artista assegura-se da faculdade de intercambiar experiências, re-enunciando a potência
inventiva de Marca Registrada. De imediato, um primeiro acesso à performance de Duva pode ser entendido como uma
atualização das possibilidades de experimentação com dispositivos tecnológicos atuais. E de fato o é. Mas há também
a intenção em Desconstruindo Letícia Parente de revelar uma atualização na sensibilidade que se renova com o tempo:
do analógico linear às variações algorítmicas com suas regras arbitrárias determinadas pela combinação de um simples
binário, que organizam nosso cotidiano, determinam nosso comportamento, sempre com a ligeira sensação de que o real
está constantemente nos escapando, escorrendo pelos dedos das mãos.
O plano visceral que se espera do vídeo se mantém. Já o plano do corpóreo tátil transborda nas regiões circundantes do
externo imediato, pois a performance ocorre em três telas de 200 x 300 cm cada, delineando uma gramática espacial
propiciada pela sua arquitetura imersiva e pelo descompasso da desconstrução das imagens do vídeo em tempo real. O
espectador costura seu próprio percurso dentro da performance de Duva, escolhendo as vias de ressignificação da narrativa
sugerida pelo artista.
Os primeiros dez minutos da apresentação mostram Marca Registrada na íntegra. A partir daí, Duva manipula as imagens
se valendo de “marcas” que ele inseriu no vídeo, desconstruindo-o, cortando-o, distorcendo-o. A fita VHS do vídeo
de Letícia entregue ao artista continha fortes drop-outs, pequenas falhas resultantes do desprendimento das partículas
magnéticas devido ao defeito da fita ou ao seu envelhecimento. Como efeito visual, durante a reprodução, aparecem linhas
horizontais brancas na imagem. Duva isolou e transformou esse efeito em um frame de vídeo, distribuindo-o (sampleando)
aleatoriamente pelo vídeo inteiro. Esses riscos, além do efeito sonoro gerido da própria imagem, funcionam como marcas
de manipulação durante a performance. O resultado é uma não-linearidade tensa e cortante. “Quem hoje consegue registrar
os vários níveis de emoção de uma coisa sem danificar profundamente a imagem?”7
Essa questão, colocada em 1984 por Francis Bacon – fonte infindável de inspiração para Duva na criação de inúmeros
de seus trabalhos –, foi em resposta à pergunta sobre o porquê das distorções em suas pinturas. Para Bacon, a técnica ou
o meio de reprodução (medium) de uma idéia é tão artificial, que para resgatá-la da artificialidade e remetê-la de novo ao
real, só a partir da violência da distorção, ou da desconstrução de sua forma verdadeira. A técnica só importa enquanto
remete a algo que a ultrapassa, sem o que não se justifica8.
A releitura sobre a obra de Letícia Parente proposta por Duva não se valida somente na novidade do uso diversificado
com novos meios tecnológicos. Aqui, a tecnologia é também personagem visível e invisível. É sobretudo a espacialização
da narrativa, ao invés de sua temporalização, e a capacidade de inscrever a experiência do interlocutor dentro dela que
recupera com força para o real a idéia já distorcida que a artista traçou há 32 anos. O processo de transmissão do conceito
da obra inclui o aleatório, o inacabado, o recombinado, o repetido, o interrompido. Ao participador é dada a oportunidade
de alinhavar os recortes e escolher suas próprias vias de acesso à narrativa; ou seja, lhe é dado o agenciamento sobre ela.
* * *
A distorção maior e mais sensível em Desconstruindo Letícia Parente é a inauguração do agenciamento sobre o
conhecimento doloroso da coisificação do sujeito. As imagens manipuladas em tempo real não têm começo nem fim;
sua escrita é arbitrária e nada impede que se leia seu conceito a partir da descostura da marca que registra a constituição
do sujeito sobre o signo da historicidade colonialista e patriarcal. No processo de distorcer sua condição coisificada e
assegurando sua condição como sujeito da ação de descostura, Letícia desenraiza-se. E se levanta apenas com uma leve
cicatriz.
1
“A arte é um instrumento de descoberta e conhecimento do mundo, remetendo àquele que se conecta com ela; não ao seu conteúdo mais direto, propriamente dito, ʻmas ao modo pelo qual ele é
transmitidoʼ (processo).” Trecho do texto “Projeto de Arte Experimental”, escrito por Letícia Parente em 1976; cedido pelo curador dessa mostra e filho da artista, André Parente.
2
Walter Benjamin. “O Narrador: Considerações sobre a Obra de Nikolai Leskov”, in Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. São Paulo: Brasiliense,
1994, pp. 197-221 (publicado em 1936 sob o título “Der Erzähler: Betrachtungen zum Werk Nikolai Lesskows”)
3
Letícia Parente, “Proposta Geral da Obra em Vídeo”. Texto não publicado. Cedido gentilmente por André Parente.
4
Ibid.
5
Ibid.
6
Benjamin, p. 204.
7
David Sylvester, Entrevistas com Francis Bacon: A Brutalidade dos Fatos. Trad. Maria Teresa Resende Costa. São Paulo: Cosac Naify, 1995, p. 148.
8
Jean-Claude Bernardet, O Autor no Cinema. São Paulo: ed. Brasiliense/Edusp, 1994, p. 56.
ALÔ, É A LETÍCIA ?1 que surgiram concomitantemente ao aprofundamento da crise do
repertório modernista e formalista, à emergência, no Brasil, dos
Para Ana Vitória, novos suportes e meios de produção imagética (fotografia, cinema,
Anna Bella, Essila, Fernando, Ivens, audiovisual, artes gráficas, arte postal, xerox) e dos novos
Miriam, Paulo e Sonia. espaços, entre eles, a área experimental do MAM do Rio de Janeiro
e o MAC de São Paulo.
Em todos esses casos em que há um forte investimento do corpo e da Com essa estética da desaparição em que a obra para contemplação
subjetividade, ainda que diferentemente em outros filmes de artista se vê desmaterializada, problematizada e desdobrada em eventos,
da época, a montagem aparece como procedimento que interessa reflexões, depoimentos, notas, escritos. E desse processo fazem
ao artista. Assunto de debate, no sentido de uma recuperação parte o envolvimento físico-corporal e mental-conceitual tanto
dos escritos de Eisenstein e Vertov pela crítica cinematográfica do artista como do espectador. Com isso surge, no rastro dessa
daqueles anos, a montagem torna-se procedimento integrante na errância de obra, a prática da performance como indispensável, uma
produção dos filmes de alguns artistas plásticos envolvidos com vez que o produto, obra ou objeto final tornavam-se desobrigados.
cinema. A montagem métrica - que segundo a reflexão de Eisenstein, A tendência à dissolução do objeto levava muitos artistas a se
soma-se à rítmica, à tonal, à atonal e à intelectual - utilizada interessarem por esse novo campo de expressão, o vídeo. A imagem-
por Lygia Pape é, dentre outros, um dos processos mais elementares movimento era atraente para o artista interessado nas dobras da
na construção de conflitos e contrapontos (EISENSTEIN, 1990). Lygia obra sempre ausente, porém estendida em registros fotográficos,
Pape reinventa esse procedimento simples do cinema tradicional e fílmicos, literários, etc. O cinema, porém, tal como havia se
cria um problema para a medida metricamente calculada colocando-a estabelecido, colocava o artista-autor e o espectador em lugares
em contato com a forte conotação erótica de seu tema: o erotismo distintos e a obra cinematográfica, ainda que questionando os
desmontando a racionalidade matemática. O problema da montagem no sentidos e as identidades fixas, devolvia os atores vinculados
cinema mundial e também no Brasil era retomado em grande parte por ao processo da obra a seus lugares tradicionais. O cinema tinha
influência dos filmes e reflexões de Jean-Luc Godard desde os tempos seu espaço próprio para acontecer, a sala escura. Era preciso
de crítico, no final dos anos 50 e início dos anos 60, nos Cahiers possibilitar a participação corporal na produção do sentido de
de Cinema, revista francesa de cinema que ajudou a impulsionar a outros atores envolvidos no processo fílmico - os espectadores.
conhecida Politique des auteurs e a Nouvelle Vague. O pensamento Coisas inesperadas estavam por vir.
plástico-cinematográfico de Godard, fundado na montagem que
utilizava cenas, sons e escritos gráficos na imagem em disjunção, A nova tecnologia de captação de imagem em movimento que chegava
colocava pensamentos, tempos e gêneros artísticos, literários e ao Brasil com o portapack permitiria fazer o que o cinema não era
cinematográficos em relação de exterioridade paradoxal, avultando capaz: ver o registro da imagem no mesmo instante de sua produção,
o sentido e lhe devolvendo as múltiplas direções. além de possibilitar a participação de outros atores no processo.
No que diz respeito às performances, o vídeo permitiria tornar,
Nos anos 70, os artistas plásticos vinham de um contexto que imediatamente, um trabalho de corpo em acontecimento de imagem,
colocava em dúvida a legitimidade dos suportes tradicionais. o que daria complexidade temporal ao evento presencial por sua
Afloravam também os questionamentos sobre a função da arte, o imediata virtualização. Na imagem do vídeo, a presença tornava-se
circuito e o mercado em que a obra se insere. Como fetiche de problemática, desmaterializada, reflexiva e agenciadora de duas
consumo e signo de status social, a obra de arte é entendida antes formas de presença, a física-referencial e a virtual-indicial Essa
como parte de uma engrenagem do que objeto cultural significante. mídia viria somar às novas idéias vigentes da obra ausente, que
A Revista Malasartes do fim do ano de 1975 publicaria dois exigia tanto do artista como do espectador desdobramentos fantasmas,
textos importantes relativos às questões que o meio artístico elaborações conceituais, movimentos corporais e processamentos
estava interessado no momento. O célebre artigo de Joseph temporais. Em resumo, o vídeo exigia uma assimilação do sentido
Kosuth, de 1969, traduzido para a Malasartes, foi fundamental como marca e cicatriz da experiência física.
para os desdobramentos das artes plásticas de modo geral e,
especificamente, para a arte conceitual. Kosuth levantava os É nesse contexto que os trabalhos de Letícia Parente surgem,
problemas da separação entre a arte e a estética e perguntava-se tornando ainda mais complexa a relação com o espectador. Suas
sobre a função da arte. Tratava do estatuto do objeto artístico performances não existiriam para uma platéia, mas tão somente
e da relevância, para o pensamento e para a produção de arte, para a câmera que a registrava. Um trabalho de videoarte não seria
do contexto institucional em que esta se encontra: o museu, a apresentado em salas escuras com espectadores sentados, mas em
galeria, o curador, o crítico, o historiador, etc - “a existência qualquer lugar onde houvesse um equipamento de exibição e uma TV.
dos objetos, ou seu funcionamento dentro de um contexto de arte, Por falta de recursos técnicos acessíveis aos artistas naquele
é irrelevante para o julgamento estético” (KOSUTH, 1975). O meio momento, os vídeos produzidos pela primeira geração não seriam
artístico tornava-se consciente de que o objeto de arte participa editados. Manteriam, ao contrário, apenas o registro do gesto
da constituição de um sistema de circulação e que seu valor não performático do artista, o confronto da câmera com seu corpo -
provém apenas de sua composição formal. O outro texto publicado procedimento mais elementar dessa nova arte que surgia.
na Revista Malasartes, do crítico Ronaldo Brito, esclarecia essa
função do objeto artístico como fetiche para o mercado e para a O conhecimento do trajeto de Letícia é ainda precário, apesar do
legitimação de uma classe social (BRITO, 1975). esforço de alguns poucos interessados que vem organizando o acervo
da artista. Os primeiros trabalhos de Letícia datam de 1975, sendo
Era um momento de questionar a experiência estética fundada Marca Registrada o vídeo mais conhecido e perturbador para a época.
nas formas sensíveis do objeto e no sentimento de gosto da Nesse trabalho, a artista borda com uma agulha na sola do próprio
recepção contemplativa, marcando a passagem do objeto ao pé a frase “Made in Brasil”. É interessante notar a ausência de
evento que artistas provenientes do Neoconcretismo já vinham composição, o desprezo pela estruturação, a improvisação tanto
efetuando. A problematização do objeto estético enquanto produto da câmera que observa quanto da performer que necessita refazer
final levaria os artistas a valorizarem mais os processos de seus gestos quando um ponto de seu bordado se desfaz. Não há uma
investigação, as mudanças e transformações intermináveis de um composição e nem mesmo construção de obra. Apenas o registro de
evento sempre por vir. A crítica de arte, por sua vez, não podia uma ação familiar e sem grandes pretensões, ainda que a frase
mais analisar somente os elementos formais da composição de uma que Letícia borda em seu pé tenha sentidos simbólicos precisos
obra que discursa sobre seu próprio meio. A crítica haveria de vinculados ao contexto cultural e político da época. Mas o que
incluir a recepção e o espaço no qual o trabalho se insere, as impropriamente nos perturba é o efeito, a variação do atual visado
que não podemos fixar. Dois vídeos de 1978, Quem Piscou Primeiro? e Especular
reproduzem a relação entre duas pessoas, o primeiro na forma
Havia um discurso cultural no momento que privilegiava a noção de um jogo e o segundo, na forma de uma conversa absurda entre
“nacional-popular”. Havia, por outro lado, os artistas da geração os participantes através de uma espécie de estetoscópio duplo.
70 que problematizavam toda idéia de comunidade nacional, afirmando Não há dúvida nesses dois trabalhos, o diálogo que Letícia
a diferença, a subjetividade e o corpo. Havia um governo repressor mantém com os objetos relacionais de Lygia Clark, como Óculos,
de um lado e a esperança de abertura política de outro. Havia a de 1968. Nesse trabalho Lygia Clark adaptou óculos de mergulho
tristeza das mortes promovidas pela ditadura e a esperança de um para a utilização de dois participantes que captam imagens de
Brasil desenvolvido e de livre mercado. Havia as experimentações si mesmos e do ambiente circundante por meio de espelhos que
dos artistas conceituais e a crença num mercado para a arte podem ser rodados conforme a participação. O objeto torna-se
internacional produzida no Brasil. Todas as contradições parecem lugar para estabelecimento de um diálogo entre os participantes.
se multiplicar nesse vídeo feito sem pretensão, sem estrutura, Os dois vídeos de Letícia Parente, produzidos dez anos mais
sem composição. Registrando em seu próprio corpo as múltiplas tarde, mantém a mesma ordem do jogo para potencializar o
contradições do momento, Letícia afirma e rejeita os vários diálogo e a relação entre os participantes. O objeto produzido,
discursos vigentes na cena artística dos anos 70: a noção de obra o estetoscópio duplo, só faz sentido se utilizado como processo
de arte como objeto para um mercado de elite, a idéia de identidade de relacionamento intersubjetivo, de aproximação com o outro,
nacional, a mulher de classe média, o cinema, a política, a de contato, enfim, com o estranho. No caso específico do vídeo
ditadura, a diferença, o sentimento de desprezo, a indiferença, a Especular, o objeto utilizado cria um estranho paradoxo que
falta de sentido, a tristeza, a esperança, etc. mostra que a aproximação com o universo de Lígia Clark não
era superficial. O estetoscópio é um instrumento de ausculta
Marca Registrada ironiza várias noções, conceitos e valores dos de sons internos do corpo (coração, pulmão, estômago, etc) ao
anos 70, criando estranhos paradoxos. Se a frase é uma referência passo que no jogo proposto por Letícia, o aparelho colocado
à artista, tudo está fora de lugar, porque é redundante e óbvio. no ouvido dos dois participantes não permite a ausculta do
A ironia é manifesta. Se a referência é o discurso vigente da espaço interior do outro. Mas interioridade e exterioridade
identidade cultural unificada na comunidade imaginada da nação, criam conexões e atravessamentos, contato e disjunção. A frase
o desprezo parece evidente uma vez que a inscrição é bordada na que os participantes repetem com variações múltiplas – “Eu
parte mais baixa de seu corpo. O fato de ser brasileira ou de quero ouvir o que você está ouvindo de mim dentro de você”,
participar dessa comunidade imaginada é o que menos importa. E se “Eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim do que eu estou
a referência da inscrição é a obra que produz, sua indiferença ouvindo de você dentro de mim”, etc – indica o contato entre
também é total, uma vez que é coisa a ser pisada. É negada a noção interioridade e exterioridade que está se produzindo mútua
de obra. O que faz a obra é a experiência do descentramento que e indistintamente, num processo de repetição e variação, de
ela é capaz de produzir, por isso a execução de ações excêntricas. estranho acordo trabalhado na dissensão. Esses vídeos não
O ato de bordar, na cultura patriarcal brasileira, é função da são produzidos para a contemplação. Não são propriamente nem
mulher. Bordando sobre a sola do pé, Letícia afirma e rejeita belos nem sublimes, ainda que o sejam impropriamente. Não são
a experiência da identidade feminina vigente em nossa cultura. tampouco discursos estéticos auto-reflexivos, denunciadores
Letícia produz todos esses movimentos, fazendo justamente o que do aparato artístico ou mecânico. O que não implica que não
é dela esperado. Vai ao encontro do esperado com a imagem do haja aspectos contemplativos e auto-reflexivos nesses vídeos.
inesperado. Apenas pretendemos enfatizar que a pretensão é a de praticar
um pensamento e uma política de produção de subjetividade.
Para além dos sentidos simbólicos, há ainda outros indizíveis. Esses vídeos são por isso antes mobilizadores de variações
Fazendo penetrar a fina agulha nas camadas superficiais de sua de identidades individuais e culturais fixas, apresentando
pele, invadindo a superfície de seu corpo com aquele instrumento a subjetividade como extratos fluidos de interioridade e
pungente, Letícia desarticula silenciosamente uma cadeia de exterioridade, discurso e invenção, poder e construção, marca e
experiências, valores, conceitos e idéias enraizadas na cultura ramificação.
artística e na cena política do momento. Mais do que minar A arte nos trabalhos de Letícia Parente torna-se campo
valores arcaicos substituindo-os com outros mais novos, Letícia de experiência, prática do estranhamento do hábito, do
dá mobilidade aos sentidos. Parece antes colocá-los a mover-se do comportamento e do mundo da cultura e das instituições. Em
que trocá-los por outros quaisquer que pudessem valer mais. Não há Nordeste (1981), vemos uma mala de couro rústico sendo aberta
o novo a ser substituído pelo antigo, mas há movimento crítico, e em seu interior duas cobras vivas sobre um lençol branco.
questionamento. São justamente os valores, sejam eles da arte, da A pessoa, que jamais é identificada por seu rosto, manipula o
cultura ou da política que estão em questão. Afinal, um trabalho lençol e modifica a posição das cobras. Nada sobre o nordeste
artístico exposto sobre a sola do pé que tocará a terra, o chão, brasileiro temos acesso nesse vídeo, nada sobre o sertão tão
não é aceitável para os valores de uma cultura que acredita que a presente nas telas de nosso cinema desde os anos 60, nenhuma
arte eleva o espírito. representação do outro. A identificação e representação não são
mais possíveis, mas ainda assim é preciso inscrever sensações.
O comportamento disciplinado de um corpo dócil que age cegamente A música dos Novos Baianos insere às experiências de Letícia
comandado por ordens que ele mesmo desconhece parece mesmo Parente naquele momento pós-tropicalista em que a arte faz
interessar a artista. Em Preparação (1974), Letícia se prepara sentido enquanto experiência de expansão dos sentidos, das
para sair. Desviando dessa ação cotidiana simples e familiar sensações e dos valores. Ao nomear Nordeste esse trabalho,
por meio da teatralização, Letícia se coloca diante do espelho Letícia não propõe uma imagem da cultura nordestina, mas antes
e cobre os olhos e a boca com esparadrapos. Sobre eles, desenha mobiliza a experiência singular dessa região de nosso corpo
outros olhos e outra boca. O que se revela nesse trabalho é a cultural ao qual se dá o nome de “Nordeste”.
afirmação de uma necessidade, um desejo: falsear o corpo é inventar
um sujeito, é potencializar outros modos de ver e sentir. Outros O vídeo tem algo da estranheza de Marca Registrada. Aqui, a agulha
comportamentos implicam em novas subjetividades. Essa é a política é substituída pela cobra. Surgem outra vez: a presença do corpo
do corpo praticada por Letícia Parente em seus vídeos, o que sem identificação de um rosto, o vínculo forte com o presente da
mostra que o campo da estética não diz respeito somente ao gosto cultura. Mas outros elementos renovam os problemas: a região
e às formas, mas também a uma esfera prática. A arte se expande do país em questão (o nordeste), uma canção urbana, o contato
ao cotidiano e ao espaço da existência para retirar-lhe a vida com o animal repulsivo. Novos componentes se espacializam e se
escondida nos escombros do corpo disciplinado. temporalizam numa mesma prática da disjunção, uma vez que não
podem ser sintetizados numa representação de nação ou de sujeito
Compartilhar a existência com o outro, descobrir-se como um artista. O vídeo, registrando a ação despretensiosa daquele que
outro fez parte das pretensões artísticas de Letícia Parente.
vemos na imagem, agencia forças. Mobilizando um corpo, arregimenta contexto discursivo, institucional, subjetivo ou político, sempre
subjetividades. Agregando as sensações perfurantes da agulha em mobilizando seu próprio corpo e/ou outros participantes, é impor
Marca Registrada ou os sentidos de má índole da cobra, o que se o engano, o erro, o desacordo. Em Preparação II (1975), Letícia
percebe é uma fragilização tanto da obra como do autor, ainda registra a situação do processo de sua saída do país. Entendemos
que a pessoalidade de Letícia, sua proveniência de classe média o contexto pelas fichas do Ministério da Saúde que a artista
educada, afinada com a cultura popular-urbana, suas referências de preenche após cada uma das vacinas que aplica em seu próprio
profissional da química, interessada em dispositivos como agulhas braço. Como em seus outros vídeos, a única tomada registrada
e cobras, estejam presentes. pelo aparelho não mostra o rosto da artista, sempre fora do campo
de visão da imagem. Nesse trabalho de 1975, a artista demonstra
No pouco tempo de sua produção artística, entre 1971-1986, Letícia claramente seu interesse por agenciar questões éticas e políticas
mostrou-se interessada pela prática da contestação pontual, mas além das artísticas, por meio da mobilização de seu próprio corpo.
irônica e teatral: a contrariedade enganosa força a vida para Aplica-se cada uma das vacinas contra o “racismo”, o “colonialismo
fora do instituído. Sua trajetória artística não foi muito longa, cultural”, a “mistificação política” e a “mistificação da arte”.
mas apontou para uma intensidade alegre, ainda que grave em Fica claro que o contexto político coercitivo do governo militar
certos momentos. O jogo e a brincadeira sempre fizeram par com a está em pauta e figurado na instituição do Ministério da Saúde.
prática questionadora. Feito em co-autoria com Ana Vitória Mussi, Mas o contexto artístico que problematizava a propriedade da Arte
Anna Bella Geiger, Fernando Cocchiarale, Ivens Machado, Miriam está acentuado pela ironia do trabalho. Aplica-se vacinas contra
Danowski, Paulo Herkenhoff, Sônia Andrade, o vídeo Telefone vários valores instituídos, do racismo à mistificação artística.
sem fio não é o único trabalho coletivo. Já havia feito outros Aqui o movimento é contrário à fetichização do objeto de arte que o
trabalhos em parceria com André Parente (O homem do braço e o mercado necessita, colocando em questão o que é próprio à arte.
braço do homem e Onde, vídeo desaparecido). Telefone sem fio,
entretanto, mostra a importância do jogo, da cena e do engano na Se por um lado não se fetichiza o trabalho artístico operando
prática contestatória de Letícia Parente sobre as instituições do uma forte ausência de interesse estético pela pouca nitidez da
sujeito, da autoria, da obra, da verdade científica, do pensamento imagem (e de som, quando existente), os vídeos de Letícia impõe
lógico que aliena a contradição e o dissenso ou os disfarça na um pensamento que é simples relação de contato, operação de
unidade. Letícia parecia querer forçar o contato das forças proximidade física. Tal como Lygia Clark que havia descoberto
internas do corpo com seu espaço de exterioridade, exigindo- um pensamento disjuntivo a partir da “linha orgânica”, Letícia
o passar pelo mundo externo do instituído. Forçar o corpo a descobriu a disjunção pelo contato entre a arte e a ciência, o
participar de uma cerimônia encenada de contestação artificiosa corpo cotidiano e o cerimonioso, a instituição e a contrafação,
em que o mundo da ordem sistematizadora, da burocracia e do o valor e a fraude, o acontecido e o encenado. Lygia colocou
poder implicados no corpo se expanda para fora e permita a em contato superfícies (planos, coisas, objetos, corpos) e pela
produção de novos sujeitos, sempre esteve presente nos trabalhos disjunção “escapou do objeto em favor do evento” (BASBAUM, 2006).
de Letícia. Letícia encontrou a imagem da disjunção em seu próprio corpo e
subjetividade, ambos marcados pelo pensamento lógico científico das
No currículo da artista consta da participação na XVI Bienal medidas e dos métodos. Colocando a presença de seu corpo físico em
Internacional de São Paulo, em 1981, no interior do Projeto Arte contato com sua presença virtual, Letícia descobriu a simulação,
Postal. Para essa exposição Letícia produziu o vídeo Carimbo. a encenação e o engano como ordens do corpo, do pensamento e da
Vemos o rosto da artista sobre o qual está sendo escrito o endereço arte em sua impropriedade própria.
da XVI Biena1. A instituição endereçada e para a qual pretende
enviar o trabalho é inscrita na superfície de seu próprio corpo/ Um presente desdobrado em imagem, um corpo que se faz ausente
rosto. As inscrições visíveis provocam o discurso da artista na variação, uma ação que não faz obra são agenciamentos que
que narra sua dificuldade com a Empresa Brasileira de Correios mobilizam o pensamento, mas não chegam a se transformar em reflexão
e Telégrafos, cuja burocracia não permitiu que ela gravasse sua analítica ou trabalhos artísticos auto-reflexivos. Não se pode
proposta original de trabalho. No vídeo não gravado, Letícia dizer que os vídeos de Letícia sejam propriamente auto-reflexivos
teria sua testa carimbada nos espaços da instituição de postagem. porque faltam-lhes a nitidez ilusionista do cinema ou porque os
Em Carimbo, vemos, porém, outra situação. Além da inscrição de drop-outs comentam o meio enquanto dispositivo eletrônico. Ainda
endereçamento feita no rosto da artista, vemos ainda um grande que haja essa dimensão de exposição dos dispositivos técnico
papel que, segundo consta nas descrições do vídeo, é uma foto do e artístico, seus trabalhos são mobilizadores de um pensamento
rosto da artista sendo novamente endereçado à Biena1. A gravação que é puro traço. A figura da auto-reflexividade está inscrita
do vídeo Carimbo é precária, mal escutamos o que narra a artista. como cicatriz que não permite que o trabalho volte-se somente
Mas percebe-se um trabalho feito em estrutura de parênteses. para si mesmo, autonomizando esse processo de outras operações
Vemos no início, alguém colocando uma fita de vídeo no aparelho e esferas. A heteronomia marca os trabalhos de Letícia: eles
para exibição na TV. A imagem da inscrição de endereçamento sobre existem em relação com o mundo das instituições, dos poderes e
o rosto da artista é vista nessa TV. Na parede ao fundo, vemos dos discursos. O pensamento é antes o agenciamento produzido entre
um cartaz da Bienal. A gravação de Carimbo parece ser feita em forças, campos, e esferas contrárias e sempre exteriores. Seus
um escritório e então deduzimos que o vídeo é o registro da vídeos são, nesse sentido, marcas dos eventos e das ações que se
recepção pela Bienal. No fim, a mesma pessoa que colocou o vídeo no propõe atuar, índice de um contexto histórico e cultural que se
aparelho, retira-o. Letícia alcança questionar duas instituições impõe à imagem. Mas enquanto índice é também erro e armadilha,
num mesmo trabalho. A Bienal não é objeto de polêmica, mas os ironia e encenação, tudo conduzindo às ramificações e aos desvios
Correios. A arte postal em vídeo – processo precário e ainda seja dos gêneros artísticos, dos valores instituídos, dos
não institucionalizado pelo sistema das artes – parece estranha comportamentos sistematizados, das instituições e burocracias,
para o espaço que a receberá, ainda que tenha a instituição dos saberes e poderes. Letícia Parente praticou a arte do vídeo
proposto o Projeto de Arte Postal. Mesmo que trate diretamente da como potencializadora de um pensamento da divergência, esse que
instituição que lhe causou problemas – os Correios – por ordem de permite a ramificação dos sentidos e o desdobramento dos eventos.
uma burocracia amedrontada e cega, Carimbo, de maneira irônica e
sob o signo do engano e da ambigüidade, submete a Bienal e seus Bibliografia
dispositivos burocráticos também à mesma crítica.
BASBAUM, Ricardo. “Within the organic line and after”. In: Alberro,
Parece que seus trabalhos frágeis, porém intensos, vídeos que
Alexander. Buchmann, Sabeth. (Ed.). Art after Conceptual Art..
são meros registros de ações não dramáticas, ainda que teatrais
Cambridge: MIT Press, Generali Foundation, 2006
e falsificantes, forçam uma compreensão da arte: o lugar da
BRITO, Ronaldo. “Análise do circuito”. In: Malasartes, Nº 1, set./
prática da impropriedade. Agenciar-se com o exterior de um
out./nov., 1975. Dentro disso, os meios convencionais da arte moderna
CANONGIA, Ligia. Quase Cinema: cinema de artista no Brasil, se tornaram estranhos a novas alternativas de invenção. Temos
1970/80. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981. de observar que a transição para a arte contemporânea foi
EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme.Rio de Janeiro: Zahar, 1990. introduzida por artistas que começavam ali, mas ela foi vivenciada
KOSUTH, Joseph. “Arte depois da fiolosofia”. In: Malasartes, Nº 1, no interior da transformação da obra de vários artistas. Hélio
set./out./nov., 1975. Oiticica fez isso, ele foi moderno e se tornou contemporâneo.
MACHADO, Arlindo. Made in Brasil: três décadas do vídeo brasileiro. Lygia Clark, Lygia Pape, Anna Bella Geiger, Amélia Toledo. Então
São Paulo: Itaú Cultural, 2003. não é uma coisa tão simplória, uma nova geração, é uma coisa mais
complicada mesmo. Essa volta a um diferencial, a reintrodução
da narrativa, alguma coisa que conte algo mais que o que ali
A Terceira Via. Entrevista de Fernando Cocchiarale está, do ponto de vista espacial, por uma linguagem de formas
ordenadas ou desordenadas, algumas bem desdobradas e outras bem
Eu acho que a videoarte é uma manifestação, uma expressão menos complexas.
da crise do Modernismo. A datação é relativa, os americanos tendem
a incluir o Expressionismo Abstrato já no mundo contemporâneo. Eu Mas há a introdução de um fator muito importante, que
penso que o mundo contemporâneo e, portanto a arte contemporânea, eu acho que justifica o Super-8 e o vídeo, que é a assimilação do
tem alguns determinantes muito evidentes, que têm a ver com o pós- tempo na vida social desde o mundo que resulta do Iluminismo, no
2a Guerra Mundial. O principal deles é a invenção do jovem ao longo mundo moderno. A idéia de progresso, de avanço da razão, justifica
da década de 1950. O jovem foi uma maneira de se diluir a oposição a noção de obsolescência, que não existia. Eu duvido que na Idade
proletária ao mundo burguês e criar, dentro do mundo burguês, Média uns carros de boi, uma carroça ficassem obsoletos em menos
diferenças na esfera do comportamento que pudessem justificar a de 200 ou 300 anos. A idéia de que uma coisa vai ser superada e
mudança na permanência. vai ser substituída, no campo da produção, do objeto, do produto,
que hoje em dia está absolutamente exacerbada, tem a ver com a
Muita gente diz que a passagem do moderno para o invenção desses novos tipos de tema, como a história, no século
contemporâneo não se deu porque, afinal de contas, ainda estamos no 17. Quer dizer, agora você tem uma disciplina, você tem métodos
capitalismo. Sem dúvida. Mas a invenção do jovem introduziu uma específicos, você tem a historiografia para explicar por que as
dinâmica na transformação ética, estética e política, a partir de coisas mudam, por que elas se transformam. A introdução do tempo
uma série de sintomas e manifestações, que também apareceram no e do movimento certamente teria de empurrar a obra de arte que vem
campo da arte. dessa tradição para registros não só técnicos, como a fotografia,
como também o cinema e o vídeo.
Nesse último, podemos considerar o Abstracionismo, mesmo
o expressivo, como o Expressionismo Abstrato americano, como uma Vídeo ou Performance?
espécie de poética do sujeito. O sujeito concretista é quase um
sujeito cartesiano e um sujeito Pollock é quase a legitimação da Naquela época, as performances (que ninguém chamava
existência de um inconsciente, de um interior – não importa, são de performances, eram happenings ou intervenções) tinham por
faces diferentes do sujeito. Por isso mesmo, eles colocam a sua característica um certo desdobramento temporal, que precisava ser
unidade, que vem lá de dentro, projetada, na sua obra, que tem um registrado, digamos, apenas como memória, ou havia um fotógrafo
estilo, e pode ser detectável e reconhecível formalmente. que pegava a seqüência, ou alguém com um Super-8, um 36mm, etc.
Então, o vídeo é suscitado por uma demanda muito séria, que se dá
Isso só pôde ser levado a cabo porque houve a disjunção no campo da experiência artística, que é pensar agora o tempo e
entre arte e imagem durante um período razoável – que foi o período o espaço como valores articulados. Não um espaço com um antes e
das vanguardas históricas. Claro que sempre houve um flerte com a um depois como você pode sugerir no sorriso da Monalisa. Trata-se
fotografia, desde o estudo do nadar. Também com o cinema, a gente de um antes e um depois que sustente uma narrativa de qualquer
sabe disso, mas, de qualquer forma, o mainstream da arte moderna tipo.
ainda era muito convencional. Você tinha a pintura, a escultura,
o desenho. Esse desenho era feito em um retângulo, horizontal ou O vídeo, portanto, é um sintoma, uma resposta de um
vertical, assim como a pintura. Era uma espécie de fechamento da mundo contemporâneo que é fragmentário, e não mais se caracteriza
janela renascentista. por um único sujeito com estilo definido.
No campo das artes, em relação às transformações do Na época em que começamos a fazer videoarte, nós
mundo contemporâneo, o pós-2a Guerra e a invenção do jovem cuidaram tínhamos consciência dessas questões, mas não conhecíamos os
de um certo desencanto quanto ao projeto Iluminista, de uma textos da Lygia e do Hélio, não estudávamos isso. É importante
sociedade regulada pela razão e pela ordem. Então você vê desde dizer que o pessoal que passou pela Anna Bella, aqui no Rio, de
fenômenos como beatniks, Allen Ginsberg, isso ainda nos anos 50, alguma maneira foi formado por uma espécie de terceira via. A
ou mesmo uma vulgata disso, um Rebelde sem Causa, um filme para via da Anna Bella era mais diretamente internacionalista. Eu li
milhões, Juventude Transviada. O jovem hoje em dia é um problema o Kosuth antes de saber o que era um parangolé.
porque ele tem de durar até o resto da vida. Depois que você fica
jovem uma vez, você vai ficar jovem até 75 anos. A invenção do Das outras vias, uma delas era a que vinha de um
jovem criou uma dilatação, uma coisa estranha na relação com o experimentalismo de origem neoconcreta e a outra era a que
ethos, com a estética, que justificam a passagem do moderno para o resistia a isso por várias razões, até por um exacerbamento de
contemporâneo, apesar de você ainda estar em um regime econômico uma posição formalista. Como a Anna Bella nunca havia explicitado
dominantemente capitalista. para si o que estava operando, ninguém pensou sobre o que seria
aquilo. Mas se olharmos o grupo de pessoas que passou por ela,
Mas eu acho que é possível a idéia de que você só mudaria em graus variados é uma terceira via. Paulo Herkenhoff, Letícia
radicalmente com a substituição de um modo de produção dominante Parente, Sônia Andrade. E, naquele tempo, as duas outras vias não
por outro, a idéia marxista. Se a gente puser em confronto o que favoreciam isso, porque elas estavam ainda, digamos, voltadas
foi empiricamente conquistado pelos dois regimes, vamos ver que para a observação da grandiosidade das questões de que elas eram
em um determinado momento, o regime soviético primava por ter portadoras.
uma música clássica, um balé clássico, tudo clássico, enquanto
os Beatles viviam na Grã-Bretanha. Isso operou possibilidades de Muito poucos trabalhos dos pioneiros da videoarte eram
fraturas ou de fragmentações. performances. Por exemplo, Versus, do Ivens Machado, em que ele
e um ator negro ficam em ângulos nos quais a câmera vai fundir a
imagem só com o movimento – isso é uma performance, mas é uma Eu não considero Medidas uma exposição de arte-ciência.
performance da câmera. Se não houvesse a câmera, o vídeo, ele Não por ser retrógrado ao que se chama arte-ciência, ao contrário,
não poderia fazer. Preparações, da Letícia, ou quando a Sônia eu acho a arte-ciência retrógrada ao que a Letícia estava mostrando
joga o feijão na câmera podem ser considerados performances. ali. Porque o evidente na reificação desses aparatos de mensuração
Agora, o sentido delas é serem vistas em vídeo. Há um equívoco é que ali eram confrontados normas e seus aparelhos de aferição,
nessa discussão de linguagem, até porque eu não acho nem que hoje supostamente regulados, não com o objetivo de glorificar esse
em dia se deva mais falar de linguagem. Nós voltamos para uma sistema, mas ironizar e até, em certos momentos, implodi-lo. Então
neopolitécnia que está no photoshop, que está no sintetizador. quando se fala em arte-ciência hoje, muitas vezes, o que há é
Ficar falando de linguagem hoje em dia é bullshit, mas se as uma espécie de rendição ao encantamento, o que é normal, pois as
pessoas acham que a linguagem do vídeo é filmar em close, editar, possibilidades que a ciência oferece são maravilhosas.
colocar efeitos, eu diria que é também uma possibilidade do vídeo
registrar simplesmente uma performance. Não poderia aparecer Mas o que se chama de arte-ciência é quase fruto de uma
daquele jeito se fosse feita com Super-8, com fotografia ou se sedução recíproca e no trabalho de Letícia o que há é uma espécie
pusesse um desenhista, um Debret para desenhar. de tensão explícita e intencional. Até porque essa artista foi a
pessoa que eu conheci que mais tinha as duas coisas, a arte e a
Então eu sou contra essa distinção quase aristocrática ciência. Ela era uma química impecável, chefe do Centro de Ciências
ou tecnocrática entre high e low tech. Acho isso absolutamente do Rio de Janeiro, mas sempre deixava claro que essa atividade
ridículo. Muito mais importante é a situação poética. Lembro, por como artista era o gancho que ela possuía com um outro lado,
exemplo, do vídeo da Sônia – a performance da Sônia – tacando o poético, humano, imprevisível, um lado do risco, da incerteza, do
feijão, com uma televisão atrás de si em que, aleatoriamente – jogo, da aposta, com que normalmente um cientista evita conviver
isso foi uma coincidência –, ela ligou no Jornal da Globo. Aquilo porque ele está muito bem encastelado em todas as suas razões. Em
quase é um comercial, a narrativa tem tudo a ver com o vídeo. geral, é meio incômodo, do ponto de vista existencial, a pessoa se
Se entrou tecnologia, efeitos especiais ou não é o que menos me enclausurar, seja em uma espécie de moto-contínuo de “Eu sou amor
interessa. Senão ninguém poderia cantar a capella. O velho Walter da cabeça aos pés” ou, ao contrário, “Tudo tem suas razões”. Ela
Benjamim já saca isso quando ele fala do close. Como é que uma passava de um estado para o outro muito naturalmente.
performance de Letícia Parente botando esparadrapos nos olhos e
desenhando seus olhos poderia ser vista tão em close, com tanta Nesse trabalho, ela coloca no campo da arte a tênue
intimidade, se não fosse em vídeo? Como é que as pessoas veriam película entre essas duas partes da sua vida, o lado doutor, o lado
ao vivo se estivessem a dez metros de distância? Iriam ver um da cientista, e o lado eminentemente sensível. E eu tenho certeza
olhinho bem pequeno ou nem veriam, porque o próprio corpo de de que se há alguma coisa que a guia e que implode tudo isso é o
Letícia, provavelmente, seria um obstáculo. Então aquilo que eu lado sensível. Então não existe ainda uma rendição, uma ilustração,
vejo ali é vídeo. um encantamento. É um trabalho, como você4 disse, foucaultiano,
que submete os instrumentos de aferição da disciplina à implosão
A Contribuição dos Vídeos pelo seu sentido poético. Porque todo mundo sabia ali que aquilo
não tinha nenhum objetivo escrutinador, esquadrinhador. Aquilo era
A contribuição artística desses trabalhos é inegável uma coisa sensual, lúdica.
e eu poderia citar, de cara, a obra de Letícia Made in Brasil,
que se tornou emblema de uma mostra retrospectiva de vídeos, Esse trabalho me lembra a obra de Barrio quando ele
diria eu, quase um emblema da videoarte brasileira. Então, se fez os cadernos-livros e os livros-registros – que ele mesmo diz
uma obra tem essa potência, eu não preciso dizer nada. Outro que não são obras, que as obras são o que acontece ali. Essas
exemplo é o sucesso recentíssimo dos trabalhos da Sônia Andrade experiências são registradas ali com uma seriedade quase de um
– recente no sentido de reconhecimento –, que participou de viajante Darwin do século 19. Só que o Darwin tinha o telos, que
uma exposição no Louvre. O vídeo em que ela enrola um fio de era o amor à verdade, aquilo tinha um sentido. Quando Barrio faz
náilon em torno do rosto foi associado pela curadora a Degas. aquilo é para registrar o quê? Coisas que normalmente não têm
Tratam-se de narrativas ou neonarrativas feitas sobre temas e sentido porque nós não emprestamos sentido sensível àquilo. Então
questões que hoje são candentes e reconhecidas em toda a produção ele reifica aquelas experiências do cotidiano agindo sobre elas
artística contemporânea. A questão do corpo, por exemplo, que como se fosse um cientista.
está nos trabalhos de Letícia, de Sônia. Esta joga o feijão,
enrosca o rosto. A Anna Bella sobe as escadas. Quer dizer, há uma Eu fico pensando que todos esses trabalhos estão criando
performance, uma ação direta do artista. um novo sujeito, não mais filosófico e epistemológico, mas artístico.
Então é como se Barrio, ao anotar feito um cientista como um
Agora, uma curiosidade: como é que a Anna Bella poderia português imprime um peixe em um papel lá em Lisboa, estivesse
subir e descer tantas escadas, externas e internas, se não fosse sendo como Letícia, trazendo esses instrumentos, essa película,
em um registro feito em vídeo? A linguagem do vídeo é isso cajuína em Teresina, fininha, entre arte e ciência. Mas não no
também. Eu tive consciência no meu trabalho de que a televisão sentido de rendição, no sentido de libertação.
era um meio de comunicação absolutamente essencial para o Brasil,
naquele momento de ditadura, e, por meio da intervenção direta
do defeito, tomei como lema o check-out desse sistema. A idéia A CASA
era introduzir nesse sistema eficiente algo que comunicasse pela
falha, pelo defeito, pela falta. Eu também só poderia fazer isso Letícia Parente, artista e química, foi casada 20 anos, teve
em vídeo. O próprio Herkenhoff, na série Estômago Embrulhado, 5 filhos, 14 irmãos e muitos amigos. Além de conhecer as ditas
quando ele filma uma notícia de jornal, “Cruzeiro já circula tarefas do lar, como cozinhar, costurar e cuidar dos filhos e
livremente no Paraguai”, lê a notícia, o público lê também, marido, a moça baiana ainda dirigia, fez parte da juventude
ele come e sai pela rua repetindo a notícia até a memória ficar católica e trabalhava fora como professora de química
diluída. Isso é um Globo Repórter no meio da rua. É feito com na Universidade Federal do Ceará, e depois na Pontifícia
quê? Carvão, pastel, crayon? Não, só podia ser feito em vídeo! Universidade Católica do Rio de Janeiro. E tudo isso no Brasil
Não poderia ter sido visto de outra maneira se não fosse visto do da década de 1960.
jeito que foi. E foi concebido para ser visto em vídeo, então é
videoarte, sim, e tem qualidades estéticas inegáveis. Os vídeos que a artista produziu entre 1975-82 mostram imagens
que não saem de casa. Letícia Parente tece um fio sutil entre a
Exposição Medidas casa e um pensamento sensível da arte. Com agulha e linha ela
costura o Brasil na sola do pé, com o ferro de passar ela refaz
as posições entre patroa e empregada e entre roupa e corpo, com Ora pro nobis
o cabide se guarda no armário e com a maquiagem inventa uma
máscara que cega. Cada trabalho realizado acrescenta ao vivido A voz repete a oração. Ora pro nobis, ora pro nobis, ora pro
e com ele se confunde. A casa é então a família, a religião, o nobis. A cada repetição a fotografia em preto-e-branco das mãos
país, a casa é tudo e todos ao mesmo tempo, que, convidados a entrelaçadas na reza é trocada por outra que também reza. A
permanecer diante da câmera, não disfarçam suas imagens. O que voz da artista é rouca e pede ora pro nobis. Nesta prece a luz
vemos é cru, sem retoques, sem segundas intenções. surge e desaparece. Na reza não se reza, não há pedidos ou
agradecimentos, apenas a ladainha que sussurra, que comove, que
Letícia não enfeita os momentos do cotidiano que escolhe. Ela aflige. Na repetição dos gestos e da reza há apenas o sentimento
faz passar os dias que passam por ela de uma outra maneira. Eu da prece.
sou uma coisa no meio das coisas e desejo agir como elas, ficar
dentro do armário, me estender sobre a tábua de passar. Ao mesmo
tempo eu subverto. A empregada passa a patroa e meu pé é a minha Do canto da casa Letícia Parente olhou e viu outras casas. Do
terra. Nesse duplo movimento reside a tensão que caracteriza afastamento e da proximidade desse olhar surgiram alguns dos
a obra de arte, um olho que assiste ao que é enquanto o outro primeiros vídeos da arte brasileira, vídeos curtos, agudos,
insiste no que não é. breves como relatos íntimos, mas que vão além da cotidianidade
e apontam para o que está no avesso das nossas ações banais, o
acolhimento da poesia que se repete todo dia.
Preparação
Diante do espelho a artista inverte a própria imagem, mas não se Katia Maciel
trata da visão de cima para baixo, trata-se da cegueira no lugar
da visão. Letícia cuidadosamente, como uma mulher que prepara a A CARNE DA IMAGEM
maquiagem antes de sair de casa, cuida de cada parte do rosto.
Cola primeiro um esparadrapo na boca e contorna os lábios por
cima. Depois, também por cima de cada olho, repete a mesma
operação. O desenho no esparadrapo refaz o que esconde. Sem fala Se a imagem no espelho se assemelha a nós o suficiente
e sem visão, a mulher continua armando o cabelo e fixa no espelho para ter direito a um nome, o nosso, esse nome só faz sentido
seu olho construído e bem aberto e depois deixa o espelho e o para o ouvido e a voz de um outro. O espelho não tem ouvidos e a
banheiro e a casa. imagem só adquire sentido na triangulação em que a voz pede ao
olhar para não se tomar por aquilo que ele vê, senão será tomado
In por aquilo que ele não vê. Onde estão as vozes que constroem nosso
olhar para lhe dar visibilidade?
Quantas vezes já penduramos roupas no armário? E quantas vezes Marie-José Mondzain
já desejamos nos trancar em casa ou fechar a porta do quarto? O Le Commerce des Regards
isolamento e o fechamento nos remetem às sensações de angústia,
mas também à tranqüilidade e à paz. A artista desloca operações
e objetos. Por que não nos pendurarmos juntos com a roupa?
Por que não nos sentirmos como a roupa? Por que não deixar
de sentir? Por que não guardar o que sentimos? Ela parece não A mulher diante do espelho. Nada mais corriqueiro do que vê-la
pensar, ela está apenas fazendo mais uma tarefa do dia, não há maquiar-se defronte à superfície do cristal. Salvo que, naquele
tempo para pensar no cotidiano, é uma coisa atrás da outra. lavabo, inicia-se um cerimonial que nos sugere uma estranha
Mas, quando se fecha no armário, o tempo se guarda junto com a violência, uma automutilação simbólica: a boca é silenciada
artista. com um pequeno esparadrapo sobre o qual a mulher delineia seus
lábios. Os olhos são então vendados: um após o outro, e sobre
o tecido branco, são desenhados os olhos subtraídos. Tateando à
Tarefa 1 procura da porta, a mulher enfim retira-se. O que se oculta atrás
do mutismo e da cegueira das imagens?
Letícia deita sobre a tábua de passar diante da sua empregada,
que tranqüilamente passa a ferro a patroa vestida ,com a mesma O vídeo chama-se Tarefa I (1975) e, como em outros vídeos de
atenção nos detalhes de quem passa uma roupa estendida e plana. Letícia Parente, é a artista que protagoniza a performance no
A artista tem a calma de uma roupa vazia, não se move, não espaço privado de sua casa. São rituais do cotidiano, pequenos
reclama, permanece. Ela é uma roupa qualquer, num dia qualquer. afazeres domésticos e banais desprovidos de narrativa dramática,
Não há indiferença, é apenas mais uma tarefa cumprida. Na como passar ou pendurar a roupa no armário. Mas eis que a roupa
relação entre a patroa e a empregada não há tensão, apenas uma ainda veste a artista, aquela que realiza a ação confunde-
cumplicidade muda. se com aquela que sofre a ação: a artista é suspensa pela
roupa no armário. Corpo, carne e o véu que os cobre tornam-se
Marca registrada indiscerníveis. O olhar e a voz convocados no endereçamento são
apanhados na armadilha: a imagem é o lugar de uma indecisão, ou,
Os pés caminham, e depois as pernas que se cruzam mostram para como diz Marie-José Mondzain, “de uma crise”.
a câmera parada a sola de um dos pés. A mão surge com a linha
e a agulha que costura as palavras Made in Brasil. Brasil com No final dos anos 50 e nos 60, os happenings e as performances já
“s”diante da presença americana que se desenha nos pés sobre os haviam introduzido a execução de tarefas cotidianas como as Task
quais pisamos. Os pontos são firmes como se fosse em um tecido Performances, de Robert Morris, coreografias realizadas com Simone
estendido. Sem qualquer hesitação, Letícia tece na própria Forte e outros dançarinos. O esvaziamento do gesto expressivo do
pele o estado do Brasil, um país feito fora daqui, propriedade artista, a incorporação das ações rotineiras e desglamorizadas,
estrangeira, o Brasil de 1974, estranho a nós mesmos. A com seu tempo operacional, repetitivo e autômato, a exigência
pele cede à pressão da agulha que não pára. No gesto não há da co-presença do espectador para a completude da obra vinham
violência, mas coragem. Brasil é uma casa estranha, nós e outros opor-se às concepções formalistas da arte. Mas, tal como Bruce
ao mesmo tempo. Nauman, que na série Studio Films executaria uma sucessão de
atividades em seu ateliê, muitas vezes conduzindo o corpo à sua
quase exaustão, as performances e tarefas de Letícia Parente não
se realizam diante de uma audiência, mas têm a câmera, seu olho Na instalação Medidas (1976), realizada no Museu de Arte Moderna
maquinal, como testemunha. do Rio de Janeiro, as pessoas eram convidadas a passar por uma
série de testes e escolhas tipológicas para montar seu perfil ou
Tarefa I parece remeter ao gênero do retrato na arte, expondo-o sua face. Eram formas de mensuração, classificação e catalogação
em toda a sua ambivalência: de um lado, está a clausura de um si as mais diversas: definições dos tipos físicos (altura, peso,
mesmo, figura cega e muda, colocada frente à face e à visão de um forma do rosto e proporções da face); comparação e escolha de
espelho impossível e sob a vigilância de um olho mecânico. De uma das imagens da história da arte (como Virgens e Vênus) ou de
outro, um fora de si, figura extraviada que se ganha e se perde tipologias supostamente científicas; um audiovisual com slides,
na própria captura. A imagem solicita a palavra, o sopro de um extraídos do livro Guiness do ano, que exibiam o que escapava dos
sentido partilhado, mas não se deixa capturar ou reduzir-se por padrões e das medidas habituais (como a mulher mais gorda ou as
ela. Como devolver àquela figura a voz, se nenhum nome parece unhas mais compridas); um ambiente em que se guardavam as medidas
adequar-se? O que se mostra ali como uma fratura íntima é o véu secretas. Dispostos em seqüência linear, cada um passava por essa
obscurecido de um encontro, de um espaçamento. “Arte”: o nome espécie de “estações de sua paixão pessoal” munido de uma ficha em
instável desse encontro. que preenchia seus dados particulares.
“Entretanto, ‘eu’ não me encontro, nem me reconheço no outro, “A medida é a conveniência [convenience] de um ser a um outro ou
existo com ele: eu experimento a alteridade e a alteração que em a si mesmo”, disse Jean-Luc Nancy. Se a Antigüidade era o mundo
mim mesmo coloca, fora de mim, nessa exposição, a singularidade de da “medida, do horizonte, do phronésis, da mésotès e do metron
qualquer existência tecendo-se em tramas e ecos infinitos” — eis a – em que a hybris era por excelência a desmedida mensurável
resposta subentendida em outro vídeo, Especular (1978). Nele, o – essa medida era a conveniência de ser si mesmo, o modo e não
espelho foi removido. Permanece, pelo nome que o intitula, apenas sua dimensão.”1 A medida do mundo moderno e ocidental foi, por
o adjetivo que designa sua propriedade reflexiva. Em seu lugar, sua vez, o modo desmedido do infinito. Um modo infinito de ser cujo
um jovem casal se olha e se escuta por estetoscópios. Ela diz: fundo é cristão. Pois ainda que a criatura conservasse uma medida
“Eu quero ouvir o que em mim você está ouvindo dentro de você”. pelo reflexo de Deus, guardaria também o vestígio de seu criador:
Ele responde: “Eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim, o homem, medida de todas as coisas, esse filho do humanismo grego
o que eu estou ouvindo de você, dentro de mim”. Ela outra vez: e cristão, possuiria por conveniência Sua imensidão, Sua não-
“Eu quero ouvir o que você está ouvindo de mim, o que eu estou medida.
ouvindo de você, o que você está ouvindo de mim, dentro de você”.
E assim, sucessivamente, nos rebatimentos da palavra, Narciso Mas o que seria hoje, a medida ou a desmedida da existência sem Deus
oferece a hospitalidade a Eco. O que faz a arte senão solicitar o e sem eu, senão o sem-medida enquanto tal, que conduz o próprio
pensamento e a sensibilidade diante do visível e explicitar seu homem a uma outra imensidão? Não mais como substância, não mais
desamparo diante da face impossível? O que faz a arte senão expor como o infinito de Deus, mas a imensidão da “responsabilidade”2. A
esse vazio, essa intermitência, esse espaçamento eclipsado, que imensidão de um cuidado.
todavia abre o lugar a um terceiro. O lugar de onde se aguardaria
uma resposta, a recompensa desse dom. Qual é o lugar que ele Ora, nossa relação com a imagem está indiscutivelmente vinculada
ocupa nesses rebatimentos amorosos e fugidios? ao pensamento cristão. “A imagem fez uma entrada real em nossa
cultura em que a encarnação cristã deu à transcendência invisível
Letícia Parente é uma das primeiras a trabalhar com videoarte e atemporal sua dimensão temporal e visível, a transcendência
no país. E, de certo modo, seus vídeos estão em diálogo com as que negocia com o acontecimento (...). Deus entra na história
questões da história da arte e de suas imagens, mas confrontam- pelo nascimento de sua imagem filial. Doravante, no Ocidente, a
se, também, tanto com a invasão das visibilidades da televisão e manifestação do visível se descreve em termos de nascimento, de
da propaganda, quanto com o roubo das imagens de uma sociedade morte e de ressurreição, ela se endereça aos corpos vivos dotados
de controle, que então se anunciava. A onividência divina dando de palavra e julgamento.”3
vez ao olho das câmeras de vigilância. Seus vídeos interrogam as
tiranias que exercitam e extraem o poder da imagem, esvaziando-a Nas reflexões de Marie-José Mondzain, o imaginário contemporâneo
em submissões crédulas. As tiranias que promovem estratégias de tem suas fontes na crise do iconoclasmo em Bizâncio4. Em sua dupla
cegueira e de emudecimento: manipulam o desejo de ver, violentam natureza, Verbo e Carne, Cristo é o ícone que serve de modelo,
nossa capacidade de julgar, subtraem-nos a palavra. Encarceram imagem natural de uma invisibilidade. Foi a partir dessa imagem
visão e voz na servidão dos consensos econômicos, políticos, que o homem pôde produzir imagens artificiais. Por isso o véu do
religiosos, fusionais, identitários, quais sejam. Mas ela o interdito bíblico, que cobre a imagem de Deus hebreu, pôde se
faz, acredito, indagando os fundamentos de nossa relação com a tornar um plano de inscrição da face do homem cristão. A Paixão de
imagem. Cristo é oferecida então em espetáculo aos olhos dos homens como
uma redenção a imitar. O destino icônico da paixão ativa de Cristo
Nos vídeos de Letícia Parente, corpo, casa, figura, as tarefas transforma-se na “paixão da Imagem”, diz a autora, que reúne em si
cotidianas ganham contornos singulares, solicitam outras todos os destinos e paixões em uma única fábula em que fiéis são
aproximações. Os rituais domésticos assemelham-se à paixão da atores e espectadores. A redenção da própria Humanidade.
carne e da imagem, interrogam a capacidade de sentir, de afetar
e de ser afetado. São as pequenas paixões do cotidiano, suas Mas se o pensamento cristão instaurou um laço solidário e
passagens, os modos de aparição de um provável homem dotado de fundamental entre a palavra invisível transfigurada em imagem à
palavra e de visão. O que está em questão ali é a natureza da nossa realidade viva e corpórea, ele o fez preservando seu enigma,
imagem que se ergue e se desdobra para além da visibilidade, que seu espelho velado. Enigma da carne habitada pela Voz invisível
exige um vazio, uma invisibilidade no coração do visível. Que que enuncia Sua manifestação, mas que mantém nos filhos o desejo
demanda uma liberdade e uma resistência. O que está em questão é insaciável de ver Sua face, pois a imagem é sempre estranha àquilo
a potência da imagem que existe por nós e faz um mundo advir por a que ela serve de imagem. Como esse Deus estrangeiro que habitou
ela, no jogo das aparições e desaparições recíprocas entre homem entre nós. É em torno dessa invisibilidade estrangeira se institui
e mundo. O que está em questão ali, penso, é a possibilidade de o que Mondzain denomina o “comércio dos olhares”.
um homem, de uma humanidade sempre por vir. Figura paradoxal que
se debate entre seu excesso, sua infigurabilidade, e o desejo e A imagem é o “lugar de crise”, diz. Não é uma experiência mística,
desenho de sua imagem. Entre o véu que cobre a face inominável e mas uma negociação entre o visível e o invisível, entre a distância
o véu como plano de inscrição de um nome encarnado. Afinal, aquilo e a proximidade. A liberdade face às imagens necessita de um olhar
que um dia chamamos homem nasce da palavra encarnada na imagem. crítico que os coloque em relação. Crise, do verbo grego krinô:
discernir, distinguir, escolher, julgar. “Ver é julgar.” “Dar
à imagem um estatuto crítico era uma promessa de liberdade.” a conjuntura nutre o olhar e desenvolve o saber que gera o
É a partir do lugar assinalado para o espectador, que exige trabalho. Portanto, não seria despropositado ou mesmo leviano
uma distância por onde ele se movimente, que se pode julgar. afirmar que todos os autores e artistas são frutos de suas épocas,
“Não se partilha o visível sem construir o lugar invisível da mesmo que suas obras extravasem o entendimento e a pertinência
própria partilha.”5 Ela demanda a palavra, o apelo e o envio dos para outros contextos e gerações. Dessa forma, poderíamos
olhares, que se encontram pelas imagens. A economia do visível é dizer que Letícia Parente se localiza nesta linhagem: sua obra
uma escolha política, aquela da partilha do amor e dos ódios, a manifesta seu tempo. Seus vídeos tangenciam o redimensionamento
partilha de um mundo comum. das identidades, a relocação de papéis sociais, a utilização
do corpo como suporte discursivo, a escalada do consumismo
O comércio dos olhares, a economia própria à imagem, nada se exacerbado e o chamamento para a exploração de novas mídias,
relaciona com o mercado das visibilidades, diz Mondzain. Não é a aspectos que caracterizam a arte da segunda metade do século 20.
proliferação das imagens, pelas técnicas modernas de produção e Esses elementos, entretanto, se combinam de maneira muito peculiar
difusão de imagens, que constitui uma situação nova. “A presença na trajetória desta artista paradigmática da arte conceitual
da imagem e o reconhecimento de seus poderes remonta há milênios.” brasileira e fundamentam historicamente parte da produção atual
Não estamos sob a inflação das imagens em um mundo submerso de que lida com essas questões.
coisas a ver, “jamais a imagem esteve tão ameaçada e arrisca-se Sobressai-se a compreensão apurada de Letícia do corpo feminino
a desaparecer sob o império das visibilidades. Há cada vez menos como alvo de reificação num período de extremo questionamento da
imagens”6. posição da mulher na sociedade, uma corroboração das colocações
de Simone de Beauvoir de que não se nasce mulher, torna-se. O
Quando o comércio dos olhares se transforma na gestão comercial aprisionamento dos procedimentos de construção visual e identitária
do visível, o mercado dos espetáculos constrói “o império das femininas é representado a partir de subversões e paródias de
barbáries”. A extenuação da imagem condena o olhar e sua liberdade situações cotidianas em ambientes domésticos, concomitantemente
à servidão de “iconocracias”. Programar o consumo unívoco e o simples e de alta potência imagética. Em Preparação I, o ato banal
consenso de um sentido é destruir a imagem e produzir a idolatria de se embelezar para sair transforma-se no vestir de uma máscara. O
por um poder econômico totalizante. Extravia-se o lugar do deslizar do batom não evidencia os traços labiais da artista, mas
espectador: não há palavra, escolha, ou um juízo sobre nossos por ser aplicado sobre um esparadrapo vira um desenho dos lábios,
gostos e afetos. Não há a partilha de uma vida em comum. uma representação por cima da parte verdadeira. O delineador
desenha olhos nos esparadrapos. A maquiagem assume um caráter
Assim o plano de inscrição se transforma no registro da de mascaramento. O que supostamente seria feito para ressaltar a
mercadoria. E o fora do lugar, o exterior que se abriria à cidade beleza feminina apresenta-se como falseamento, enganação.
humana se converte na inscrição de um poder entre fronteiras dos Em outra performance sem audiência, a artista abre um armário e
territórios econômicos, no solo indiferenciado das identificações pendura-se num cabide através de sua própria roupa. Neste outro
e incorporações do mercado. No vídeo mais conhecido de Letícia comentário sobre os adereços que podem garantir a feminilidade,
Parente, Marca Registrada (1975), a artista costura, na pele da fica mais evidente a crítica ao processo de coisificação do humano,
sola do pé, a expressão Made in Brasil. Não a imagem da palavra já identificado como Homo consumericus5. Roupa e mulher confundem-
inscrita na carne, mas a marca exaurida. se de tal forma que não se apartam. A vestimenta que ganha
crescentemente o poder de definição de identidade e status cola-se
Seria necessário, então, devolver a condição de estrangeiro em no indivíduo, que parece não mais significar nada sem seu símbolo
sua própria pele, ou antes, incorporar seu próprio impróprio, de colocação e expressão. Ainda sob a abordagem da aderência
encarná-lo: o corpo sem próprio se entrega à errância, que e contaminação da identidade pelas vestes e consumo, Letícia
abre incondicionalmente as fronteiras à alteridade qualquer. Parente deita-se numa tábua de passar roupa. Seu traje-pele
Em Preparação II (1976), a artista se aplica vacinas contra é passado a ferro. Não há truques. A crueza do ato é uma das
todas as formas de poder e preconceito, contra o pensamento maneiras de amplificar a urgência de seu discurso crítico, assim
absoluto que reduz o outro ao espelho dialético do mesmo: anti- como se fazia nos anos 70, a exemplo das performances desafiadoras
racismo, anticolonialismo cultural, antimistificação política, e arriscadas de Marina Abramovic e Chris Burden, entre outros.
antimistificação da arte. A contundência da imagem (que é diretamente ligada à verdade,
à realidade) é um recurso usado amplamente pelos artistas a
E talvez o lugar do espectador da arte deva ser apenas esse sem- partir da segunda metade do século 20. Ver é crer, e no caso de
lugar como abertura infinita. As imagens da arte são essa oferta ao Letícia, assim como no de muitos outros artistas, a ação vista
olhar de qualquer um como pura despesa, como a prodigalidade de um é a ação praticada. Marca Registrada, trabalho exponencial da
excesso que não se deixa figurar. Para nomear a carne do mundo e artista baiana, apropria-se novamente da pele. Não mais como
partilhá-la com outros é necessário um dom que não tem certeza de indistinção entre indivíduo e consumo, mas como superfície
sua recompensa: a recompensa da acolhida de um olhar, o sopro e a escrevente. A artista borda os dizeres Made in Brasil na sola
inscrição de uma palavra estrangeira. E, ainda que o olho e a voz de seu pé num grande close da câmera. Mesmo sabendo que essa
não vierem recolher essa graça, não há como evitar o chamado. brincadeira recorrente no sertão nordestino não fere a epiderme e
é reversível, o ato suscita apreensão e desconforto. Fica patente
A imagem se fez carne. Desde então, o que será a carne de nossas o intuito e a carga simbólica de sua performance: o pertencimento
imagens? marcado com severidade e agressividade, que é eternizado em nosso
Marie-José Mondzain imaginário. A preferência pela língua inglesa e o uso de uma
Image, Icône, Économie técnica tradicional de sua região natal ressaltam outra questão
identitária, a cultural. Uma constante nos debates intelectuais
brasileiros desde a independência do Brasil, os questionamentos
Marisa Flórido Cesar sobre a influência estrangeira e o colonialismo cultural ressoam
abril de 2007 fortemente não apenas no país, mas internacionalmente, graças
ao processo de independência política e econômica que diversas
sociedades atravessam a partir dos anos 60, além do aumento do
fluxo de imigração mundial. Esses tópicos servem ainda de pano de
fundo para Preparação II. Uma pessoa aplica em si mesma vacinas
Persistência da consciência: marcas da identidade contra o colonialismo cultural, o racismo, as mistificações
política e da arte. A ação é seguida do preenchimento de um cartão
Sabe-se que é penoso, senão impossível, fugir de nosso convencional de vacinação.
tempo. Apesar da subjetividade nortear nossa experiência no mundo, O Homem do Braço e o Braço do Homem assinala uma fase posterior
das investigações de Letícia Parente. Seu foco migra para uma única mensagem. Desde então a carne ressuscitada e o corpo
discussão mais abrangente do corpo e inclui a afetividade e eucarístico é o corpo institucional da Igreja.
6
comunicação como catalisadores de seus trabalhos. O tom assumido MONDZAIN, Marie-José. Le Commerce des Regards. op.cit p.17.
nessas obras do final dos anos 70 pende para o lúdico, assimilando
o outro (a artista deixa de ser a protagonista das ações e passa JORNAL DO BRASlL
a orquestrar os trabalhos). Nesse vídeo, Letícia versa sobre a Rio de Janeiro, quinta-feira, 24 de junho de 1976
mitificação da virilidade e da resistência esperadas do corpo Artes Plásticas
masculino. Um anúncio luminoso de uma academia de ginástica MEDIDAS, POR FORA E POR DENTRO
mostra o movimento incansável de um halterofilista contraindo Roberto Pontual
seu bíceps, numa clara demonstração de força. Após um período Dá ao mesmo tempo alívio e esperança uma exposição como a de
longo de exposição à seqüência repetida do néon, uma imagem de um Letícia Parente, aberta desde o dia 10 no Museu de Arte Moderna
rapaz de carne e osso copiando o movimento braçal é sobreposta. do Rio de Janeiro. Alívio porque, no meio de uma temporada sem
Assistimos à sua tentativa de manter o ritmo da máquina e sua maior garra e interesse como a atual, ela reafirma a vitalidade
gradual falha. Seria uma antecipação da discussão sobre gênero do trabalho no âmbito da proposição experimental, exatamente um
que atualizou apenas recentemente os argumentos feministas? dos aspectos que melhor havia definido o comportamento das artes
Especular e Quem Piscou Primeiro? partem do espelhamento e da visuais no Rio em 1975 e que se estava demonstrando em recesso nos
complementação como argumento. No primeiro, observamos um processo últimos seis meses. Esperança por vir talvez indicar a retomada
de diálogo e reciprocidade. Um casal busca clarificar seu processo mais compacta da atividade nesse setor no próximo segundo semestre.
de escuta. A cada fala a conversa vai se tornando mais complexa, Por coincidência, Letícia expõe na sala ao lado da individual do
sem que a dupla escorregue no entendimento mútuo de suas ações. jovem paulista Wilson Alves, o premiado da Arte Agora I. A mostra
O segundo vídeo coloca um casal de frente para uma TV. Vemos dele, no momento se encerrando, constituiu outro dos raros pontos
apenas seus reflexos no aparelho de televisão e devemos prestar instigantes no comodismo da temporada e redobrou sua importância
atenção no causador do fim da brincadeira. Assim que um dos dois por comprovar a vitalidade de que também se nutre a nossa recente
pisca o olho, o vídeo escurece e a gincana acaba. Potencialmente escultura e/ou objeto – com um modo específico de indagação, mais
um trabalho de percepção, Quem Piscou Primeiro? ativa também do que visual, mágica e lúdica.
a capacidade de olhar para o outro, de se deter no rosto de 0 texto de hoje, no entanto, é sobre Letícia Parente. Nascida em
alguém, mesmo este encontro sendo mediado pelo vídeo. Tal aspecto Salvador (1930), até pouco tempo atrás ela residiu em Fortaleza,
afetivo é arrematado por De Aflictibus, uma seqüência de slides onde expôs pela primeira vez em 1973. Dois anos antes, estivera
de entrelaçamentos corporais de todos os tipos. Experimentação no Rio, estudando e participando de seminários com Anna Bella
plástica que se tornou freqüente nos últimos anos, Letícia Parente Geiger. E foi no Rio que se fixou de 1974 para cá. Pode-se dizer
ritma imagens de fusões corporais com uma frase que mais parece que os três anos de sua atividade têm sido marcados por uma
mantra entoado gravemente. A produção contemporânea brasileira opção de linguagem cujos contornos se definem desde cedo. O cerco
atual deve muito à investigação desta artista e de sua geração. A da figura e do ser humano a partir dos mais diferentes pontos e
amnésia reinante obstaculiza o surgimento de um experimentalismo ângulos de abordagem, utilizando particularmente a fotografia e
pungente e não ingênuo. o audiovisual. Há algo de fenomenológico, creio que em nível
consciente, no seu método de tratar as evidências deste dado do
Cristiana Tejo é diretora do Museu de Arte Moderna Aloísio real, que é o homem. Já era assim nos primeiros trabalhos que
Magalhães. conheci de Letícia, em 1975 – por exemplo, no audiovisual em que
apenas números de vários algarismos apareciam inscritos em cada
(Footnotes) novo diapositivo, correspondentes a nomes de pessoas sucedendo-se
1
Trata-se de uma frase dita em um vídeo de Letícia Parente intitulado A Chamada (1978), em ordem alfabética na fita gravada. Quaisquer pessoas, números e
material considerado perdido. Na própria descrição da artista: “A artista entra num apartamento, nomes apanhados nas fichas de algum setor da burocracia, malha que
chega à sala onde numa mesa está um gravador de som e um telefone. Grava numa fita a processa o indivíduo como multidão, quer defini-lo e apreendê-lo
pergunta: ‘ALÔ, É A LETÍCIA?’. Repete a pergunta muitas vezes. Pára a gravação. Volta a mas só consegue dessangrá-lo e diluí-lo.
fita. Aciona de novo o gravador e deixa a pergunta ecoando. Liga o telefone para o seu próprio Nessa visão crítica do envolvimento burocrático, Letícia Parente
apartamento e deixa o fone perto do gravador. Sai do apartamento, desce as escadas, chega à rua, se irmanava a Margareth Maciel, jovem carioca, também conhecida
desce a ladeira, entra no seu próprio prédio, sobe as escadas, chega à porta de seu apartamento, do público a partir de 1975, com trabalhos em torno do passaporte,
abre a porta com a chave, escuta o telefone tocando, retira-o do gancho, ouve sua voz gravada da certidão de nascimento e da carteira de identidade – alguns
perguntando: ‘ALÔ, É A LETÍCIA?’. Responde: ‘É A LETÍCIA...’” entre tantos outros dos nossos documentos, seguranças numéricas
e tipológicas no sistema, ainda que nos reduzam de formas vivas,
2
Isso foi, aliás, o que a motivou a realizar duas cópias do seu vídeo Marca Registrada, um na verdade imensuráveis, a formas arquivadas, papel-poeira de
preto-e-branco (1975) e outro colorido (1980). Na verdade, o master da primeira versão foi repartição. Mas a mostra atual de Letícia mantém elos muito mais
dado como perdido, em uma mostra na Argentina, no CAIC, tendo retornado anos depois. diretos com a exposição que Emil Forman realizou igualmente no
3
Nota do curador: “O nome da exposição é “Medidas”, ocorre que no folder do MAM o nome MAM, em agosto do ano passado, reunindo em painéis cerca de 2,5
é “Medida” no singular. Este erro induziu os comentadores a utilizá-lo no singular. Entretanto, mil fotos emolduradas, além de filmes exibidos no mesmo recinto,
tanto no projeto, como em textos posteriores, a autora se refere a exposição sempre no plural”, tudo concentrado numa única figura: a de sua própria mãe. Se
4
Nota do curador: “O depoimento de Fernando Cocchiarale foi dado a André Parente”. Emil individualizava a esse ponto o objeto de abordagem – dando
5
Colocação de Gilles Lipovetsky em Tempos Hipermodernos, pp 122. ao ambiente uma atmosfera final de santuário, morbidez de dados
mortos que se acumulavam para modelar um ser ainda vivo –, Letícia
(Endnotes) procura o pólo oposto. Faz de cada visitante o centro, foco a
1
NANCY, Jean-Luc. Démesure Humaine. In: Être Singulier Pluriel. ser medido por todo tipo de variável capaz de caracterizá-lo como
Paris: Éditions Galilée, 1996. p.205 forma física e processo mental, corpo e alma, indivíduo. Ambos,
2
Idem ibidem. Emil e Letícia, medem obsessivamente o ser humano, o mais próximo
3
MONDZAIN, Marie-José. Le Commerce des Regards. Paris: Éditions ou o mais distante, o conhecido ou o anônimo. Mas o mede, como
du Seuil, 2003. p.18. também Margareth, antiburocraticamente, para torná-lo consciente
4
MONDZAIN, Marie-José Image, Icône, Économie: Les Sources de sua vida individualizada.
Byzantines de l’Imaginaire Contemporain. Paris: Éditions du Por isso, ela deu à exposição o título Medida – um método e uma
Seuil, 1996. ironia. Dividiu-a em dois setores complementares, um servindo à
5
MONDZAIN, Marie-José. Le Commerce des Regards. op.cit p.146. coleta de dados e outro à visão de dados já previamente registrados.
Entretanto, não deixando à liberdade de cada um compor sua Daí cabe dupla tarefa: a de ver e a de agir. Esses compartimentos
troca com a divindade, a Igreja construiria pelos séculos os de mensurações constituem, como os chama Letícia, estações, e
dispositivos coletivos, as regras da partilha, a política e se destinam a nos colocar em contato com dados em torno do tipo
a doutrina das visibilidades programáticas comunicando uma
físico, da respiração, da resistência, do sangue, da acuidade
visual, da atenção e das “medidas secretas” – estas, ao contrário A artista chega ao espelho do banheiro e vai se preparar para
das anteriores, voltadas para a liberação da subjetividade contra sair. Cola um esparadrapo sobre um dos olhos e desenha sobre
a rigidez nas medidas que podem ou devem ser exatas e objetivas. o esparadrapo com lápis de sobrancelha um olho aberto. Faz o
Diria que as primeiras estações referem-se ao corpo, às formas mesmo com o outro olho. Em seguida, cobre a boca com esparadrapo
visíveis e a última, à alma, as formas impalpáveis do pensamento, também, e desenha uma boca sobre ele com um batom. Ajeita o
da imaginação e da memória se desdobrando. Há uma estação extra, cabelo. Pega a bolsa e sai.
a do gosto, e um audiovisual, Os Recordes, completando a mostra
de Letícia. Ano: 1975
Ali o visitante se comporta primeiro como quem vê e compulsa Duração: 6 minutos
dados a ele oferecidos, inclusive os deixados por visitantes que Formato: porta-pack ½ polegada
o antecederam. Mas é logo solicitado a também produzir dados, Câmera: Jom Tob Azulay
por meio de testes que o levam, de estação a estação, a medir a
si próprio e a registrar as medidas. “Quero deflagrar ações até
que elas se incorporem e criem a forma das marcas do homem em MARCA REGISTRADA
sua presente busca: um fio entre os imensuráveis de sua trama.
Desejo capturar vestígios atuais através de quantidades, medidas
que possam se fazer transcender, a fim de que o imponderável
invada e faça nexo ou interrogação.” Dispondo de dados concretos, A autora costura a sola do pé com uma agulha com linha preta.
precisamente mensuráveis, mas podendo submetê-los à ação aberta Borda a inscrição “MADE IN BRASIL”.
que é sua própria existência, o visitante tem como romper o
“espaço imposto das gaiolas”, os números que o indicam em série, O trabalho pretende a materialização da idéia de reificação da
porém não o confirmam como ser único entre outros seres únicos, pessoa, fato característico da sociedade no momento histórico
seus companheiros de humanidade. presente. A coisificação implica em pertencer. O pertencer, porém,
Letícia Parente mede, portanto, tudo – o tempo também. Durante a transcende também à coisificação por força da ligação profunda
nossa permanência na sala de exposição estaremos sendo obrigados e indevassável com a terra pátria. A marca registrada pode se
a ouvir de um alto-falante a voz monocórdia repetindo, em ciclos assemelhar ao “ferro” de posse do animal mas também é a base da
incessantes: “Cinco segundos, 10 segundos, 15 segundos, 20 estrutura acima da qual a pessoa sempre estará constituída em sua
segundos, 25 segundos, 30 segundos, 35 segundos, 40 segundos, 45 historicidade: quando de pé sobre as plantas dos pés.
segundos, 50 segundos, 55 segundos, 60 segundos. Cinco segundos,
10 segundos”, etc. O tempo bate como um coração naquele espaço. E Ano: 1975
é medida que nos penetra e nos regula, igualmente imposta enquanto Duração: 9 minutos
número. No audiovisual Os Recordes, a prevalência da medida chega, Formato: porta-pack ½ polegada
enfim, ao ponto de mostrar que o ato de medir se tornou compulsivo Câmera: Jom Tob Azulay
num mundo em que cada um tem de ser o maior para ser o melhor:
são registros sucessivos de recordes que um dos dispositivos nos IN
apresentam, dos mais corriqueiros aos mais estranhos, ao som
de palmas padronizadas, como as que ouvimos vindos de falsos A artista entra no seu próprio armário vazio e se pendura através
auditórios de TV – as quantidades fora de série, a elefantíase de sua roupa, pelos ombros, num cabide. Fecha-se a porta do
da concorrência, a desumanizante obsessão humana pela medida. O armário, encerrando-a.
paraíso seria nada medir.
Ano: 1975
Duração: 3 minutos
Formato: porta-pack ½ polegada
PROPOSTA GERAL DA OBRA EM VÍDEO Câmera: Jom Tob Azulay
O ponto referencial do espaço, na maioria das vezes, é a própria Uma mão desenha uma caneta com pena sobre uma cartolina. Depois
autora como elemento ora passivo, ora ativo da ação. de desenhada, a caneta é recortada e costurada com agulha e linha
preta sobre o dedo indicador da mão esquerda. Em seguida a pena é
A tecnologia, representada pelo recurso sempre presente, é, na imersa num tinteiro e com ela marca-se um ponto sobre uma folha
maioria das vezes, um personagem visível ou invisível. Pode ser de papel.
obstáculo nos cortes, ponte de união entre o perto e o longe e
denotador das distâncias, para vencê-las ou ampliá-las, entre os Ano: 1975
diversos níveis de consciência interna do personagem. O que se Duração: 6 minutos
quer, em suma, do vídeo, é a possibilidade de confrontar a vivência Formato: porta-pack ½ polegada
ao nível mais profundo, do plano do visceral ao plano do corpóreo Câmera: André Parente
tátil com aquelas regiões circundantes do exterior imediato.
A terceira via localiza-se dentro do meio tecnológico que grava a Ano: 1978
sua voz, transmite-a pelo telefone até a sua casa, fá-la esperar Duração: 6 minutos
até sua chegada e chama-a. A esta ela própria responde: “É A Formato: porta-pack ½ polegada
LETÍCIA”. Câmera: André Parente e Letícia Parente
Modelo/ator: André Parente
Ano: 1978
Duração: 10 minutos ONDE (em co-autoria com André Parente, vídeo desaparecido)
Formato: porta-pack ½ polegada
Câmera: André Parente Letícia não deixou nada escrito sobre o video ONDE. Trata-se de um
jogo de imagens ao infinito ocasionado pela gravação da gravação da
QUEM PISCOU PRIMEIRO imagem de um aparelho de TV que transmite a própria imagem do que
está sendo gravado. Constitui-se, portanto, um curto-circuito da
Duas pessoas (André e Angela Parente) sentadas diante de um imagem (da imagem (da imagem (da imagem))) ao infinito.
espelho olhando uma para a outra através do mesmo. Por trás de
ambas um painel e nesse painel um orifício por onde sai a objetiva Ano: 1978
de uma câmera de vídeo (o terceiro olho) na direção do espelho. As Duração: 4 minutos
pessoas se observam para ver quem pisca primeiro. Num determinado Formato: porta-pack ½ polegada
momento dão o jogo por encerrado. Mas quem piscou primeiro? Câmera: André Parente
Ano: 1979
Duas pessoas, sentadas no chão, uma de frente para a outra, estão Duração: 10 minutos
ligadas por uma espécie de estetoscópio duplo, de modo que os Formato: porta-pack ½ polegada
tubos que saem dos ouvidos de cada uma se ligam no meio, através Fotografias: André Parente
de um tubo comum. Câmera: André Parente
A primeira afirma:
NORDESTE
“Eu estou pensando que você está escutando o que eu estou
falando.” Uma mala de couro rústica é arrastada pela autora até o centro do
campo visual. A mala é aberta e vê-se dentro dela duas cobras vivas
A segunda responde: sobre um lençol branco. A artista procura retirar o lençol sem ser
atingida pelas cobras. Ao retirá-lo fecha a mala e abraça-se ao
“Eu estou pensando que você está escutando o que eu estou mesmo. Música de fundo: canção de Caetano Veloso (“No dia que eu
falando do que você pensava que eu estava escutando do que você vim embora...”) terminando no verso “e a mala cheirava mal...”
falava.”
Ano: 1981
A primeira prossegue: Duração: 3 minutos
Formato: Betamax, colorido
Câmera: Cacilda Teixeira da Costa A característica principal do meu trabalho é não ter se fixado
em nenhuma característica preferencialmente. A sua dinâmica
é mais ramificada do que linear. Deixo que ele persiga um
TAREFA I processo, o meu processo de descoberta e visão. Suas raízes de
unidade evidentes estão dentro de mim e resultam da interação
Letícia não deixou nenhuma anotação sobre este vídeo. A artista da minha realidade com a realidade social e histórica do meu
deita-se dobre a tábua de passar e alguém passa a sua roupa a ferro tempo e do meu momento. É mais interrogativo que descritivo.
(ela estando dentro da mesma). Atendendo a uma intencionalidade com o máximo de rigor que me
é possível, a uma coerência de leitura que possa conseguir,
Ano: 1982 nem por isso escapa a um contorno maior, acrescido pela
Duração: 3 minutos interação da obra com aqueles que a fruem. A participação do
Formato: Betamax, colorido público é um elemento esperado e levado em conta.
Câmera: desconhecido
De acordo com o projeto, ora faz ênfase maior sobre a
arqueologia do tempo presente, ora sobre uma linguagem
VOLTA AO REDOR DO GLOBO (desaparecido) denunciante e crítica.
Dentro de um carro chegando num cruzamento encontra-se um Há variação de meios. Há seleção de meios. Há somatória e
jornalista com o jornal O Globo fazendo gestos espontâneos (quase combinação de meios. De preferência meios não convencionais.
ritualísticos, de apresentação de “mercadoria”). Toma-se o jornal, Crítica à maneira tradicional de arte, desde que não se
mostra-se o título e faz-se um círculo demarcado pelo asfalto em coloque como objeto de consumo, no sentido de não estar
torno de O Globo. dirigido à venda, embora isso possa ocorrer. Aberto a vários
níveis de leitura e de público sem preocupação seletiva ou de
Ano: 1981 diluição, torna-se muitas vezes um fato escandalizante dentro
Duração: 8 minutos das “ortodoxias artistas”, uma vez que não exclui nem impõe
Formato: Betamax, colorido nenhum tipo de pessoa. Isso acrescenta então novo aspecto
Câmera: Cacilda Teixeira da Costa crítico com relação ao sistema de arte e a desmistifica.
Ano: 1976 O público me parece muito mais importante porque nele também
Duração: 13 minutos está incluída a categoria dos artistas. Não faço restrições
Formato: porta-pack ½ reel ao público. Acho importante qualquer público. Creio que cada
Câmera: David Geiger um frui a seu modo. O grau de fruição é aberto. Se o nível da
obra é esgotado no gole de uma pessoa, azar da obra. Foi pouca
para a sede e para o espaço.
Experiência do grupo
Letícia Parente por Letícia Parente
Foi das melhores experiências humanas e profissionais que eu já
tive. Com todas as crises de nascimento, crescimento, etc. Seqüência de trabalhos das séries Mulheres e Casa. A proposta
Quando me afastei “geograficamente” do grupo, considerei uma está dentro do pensamento anterior.
perda irreparável.
Documentação da mostra de arte experimental Medidas
Indispensável para:
A referida mostra aconteceu em 1976 no Museu de Arte Moderna do
a) Lucidez; Rio de Janeiro.
b) Estímulo; Utilizou-se de um conjunto de mídias: fotografia, xerox,
c) Sentido de realidade; audiovisual, jornal.
d) Informação;
e) Ação no meio em momentos de atuação política. A proposta tinha como premissa um questionamento e uma resposta
(testemunhal) que chegava às raias da explicitação escrita em
A existência de um grupo de arte é uma luta contínua contra um relatórios coletivos e individuais assinados.
condicionamento do artista individualista. As ações podem ser
algumas vezes infantis ou superficiais. Mas sem passar pela A quantificação violentava e feria, porquanto se efetuava sobre
experiência muita coisa válida não será descoberta. sensações, percepções e limites imponderáveis.
Do ponto de vista pessoal, a afeição e sentimentos negativos A manifestação externa tomada como assunto deflagrador do
fazem parte da mistura. Tudo muito importante. Ameaçam e processo era a competição em vários dos seus aspectos.
cimentam. Fazem crescer ou fragmentam. Quanto à perenidade, é
difícil mantê-la. Os grupos também terão de se abrir, fechar,
refazer, ampliar, cessar, aparentemente morrer, nascer de novo Letícia Parente
e tal. Livro: Arte e Novos Meios (FAAP)
Transferi para cá a necessidade de vivenciar em grupo problemas “Em termos de trabalho eu cheguei a articular A Proposta da Casa
da vida profissional deste setor de atividade. Não creio que (série de xerox), cujo assunto é a casa, em Fortaleza e no MAC-USP,
possa mais dispensá-lo. mas dependia do trânsito dentro do espaço.
Comecei o trabalho em xerox em 74, e esporadicamente ainda faço,
mas não é o cerne da questão. É uma casa com cortes, na sua
Proposta de seriação de trabalhos planta baixa, que tem três situações geográficas, três estados:
Bahia, Ceará e Rio, as minhas residências.
A fim de conter momentos significativos de minha produção, bem
como uma seleção que possibilite abranger todas as mídias Outra coisa importante deste trabalho é que sempre há um elemento
utilizadas, fiz a seguinte escolha que, abaixo descrita, será de tecnologia do nosso tempo, que acrescento e procuro contrastar
acompanhada, no momento, de fotografias e, posteriormente, na com a linguagem mais poética: então, essa planta baixa, que é de
ocasião propícia, das próprias obras. uma casa típica de BNH, com os sinais de letraset, por exemplo, é
seta num lugar-comum de indicação. Fui colocando idas e vindas,
Trabalhos em audiovisual (Seqüência de slides com som). voltas e revoltas na entrada, e no lugar da conversa tem essas mãos
todas aqui (em letraset), diálogos desejados e coisas assim. No
Dimensões – Seria uma espécie de topologia de dimensão interna quarto há sete camas em letraset, sete alternativas. Numa mistura
projetada no espaço, no tempo e, sobretudo, também na de senso, inocência e sinais estereotipados – aqui rituais de
velocidade que é fruto da relação dos dois outros – “comunica- codificação.
se nos outros apenas uma orientação para o segredo sem jamais
poder dizer objetivamente o segredo” (Bachelard) (Rio de Em Mulheres eu já estava numa linha de testemunho um pouco
Janeiro, 1975). diferente, que era um trabalho em cima da mulher. O corpo da mulher
todo escrito com as suas fissuras, o olhar, os braços. Todo o corpo
Trabalhos em fotografia em cima de um quadrante terrestre posicionando, e o contorno do
corpo todo feito da própria função do corpo – não no sentido só da
Projeto 158 – A interferência nas dimensões da face, alongando- função física, mas de uma função social-humana.
a ou encurtando-a, indica, por meio de uma ideologia
aparentemente flagrada em caricatura, a relação de dominação 0 outro era uma seqüência de perucas, de fisionomias de mulheres.
do exterior sobre a interioridade das pessoas (Rio de A contradição, as perucas, as mulheres carregando perucas,
Janeiro,1976) os manequins carregando as perucas e as mulheres imitando as
fisionomias dos manequins – aquele efeito estilizado do manequim.
Trabalhos em vídeo Havia uma seqüência de óculos: uns que davam felicidade, outros
que estavam ainda com olhos e narizes, boca sentimental, todo
Marca Registrada – De forma cruenta e remanescente de antigo aquele jargão do consumo querendo decifrar o psiquismo feminino,
costume popular presente em brincadeiras infantis, a autora usando ao mesmo tempo e veiculando a propaganda.
costura no próprio pé, com linha preta, bordando as palavras
MADE IN BRASIL (preto-e-branco – 11 minutos). A fase do corpo que testemunha situações culturais, políticas e
sociais culminou em um trabalho de vídeo que de todos foi o que
Preparação I – Relação da pessoa da artista, através de seu conseguiu a sigla mais forte – chama-se Marca Registrada. Nesse
corpo, com o contexto político-social e suas conseqüências. trabalho eu costuro na sola do pé com uma agulha e uma linha preta
Presente, sobretudo, a opressão e a censura à lucidez e à as palavras Made in Brasil na pele. É uma agonia! Dá muita aflição,
fala. porque a agulha entra, fere o meu pé – só podia ser o meu próprio.
Há um costume popular na Bahia em que se borda muito com uma linha
Ambos os trabalhos são desenvolvidos na linha do testemunhal; na palma da mão e na sola do pé. Esse é o trabalho de vídeo de 75,
ponto de encontro dos caminhos por onde passa a arqueologia do que sintetiza essa fase toda.
tempo presente (Rio de Janeiro,1975).
Em geral, a gente tem de ter essa caminhada, um processo de
Trabalhos em xerox gestação de certo modo, eu não sei dizer o que é – se é emocional,
se é intuitivo –, e depois tem a parte de reflexão. Realmente o
pensamento faz a consistência, elabora as amarras das coisas. E a b) Audiovisual – O Livro dos Recordes;
vida é momento, é paixão, é emoção, é tudo misturado. O pensamento c) Livretos e álbuns xerografados ou de fotografias:
está ali fecundando essas coisas todas e estruturando, porque às - Classificação de figuras humanas de telas célebres;
vezes me parece que é assim. Estava preocupada com que as coisas - Propostas de medições “para fazer em casa”;
tivessem vários questionamentos, porque estava interessada nas - Coletânea de material de livros científicos antigos e revistas
respostas.” e jornais atuais sobre testes, classificações, tipologia,
caracteres diferenciais, valorativos, etc.
4. Disposição no espaço
PROPOSTA DE ARTE EXPERIMENTAL
Vide layout anexo.
Letícia T. S. Parente
5. Época preferida
1. Fundamentação teórica:
Abril ou maio de 1976.
A arte é um instrumento de descoberta e conhecimento do mundo,
remetendo àquele que se contacta com ela, não ao seu conteúdo 6. Previsão de gastos
mais direto, propriamente dito, “mas ao modo pelo qual ele é
transmitido” (processo). Cr$
Trata-se de uma tentativa de denunciar, sob a forma de material para construir os dispositivos de medidas 1.000,00
mensurações competitivas criadas num espaço e todos os gestos audiovisual 1.000,00
dela decorrentes, a atmosfera de concorrência e tensão sob a fotos, xerox e álbuns 800,00
qual vivemos no tempo histórico, em que os sistemas procuram fichas individuais e coletivas 800,00
enquadrar as pessoas para classificá-las quantitativamente ou catálogos (1.000 exemplares) 2.000,00
distingui-las segundo categorias fixas de comportamento.
5.600,00
O importante e desejável, mais do que as atividades que as
pessoas desempenham durante a presença e participação no âmbito
da mostra, é a verificação e a vivência de respostas ao nível
de um público bastante variado em nível cultural e de faixa
etária.
2. Proposta
3. Formalização da proposta