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Diagramação e editoração
Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Imprensa
Gerência de Criação e Produção de Arte
Preparação e revisão:
Magda Frediani Martins
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
T911
CDU: 37(81)
Ministério da Educação
Organização
2013
Volume 3
Tecendo narrativas em educação
e diversidade
Sumário
Apresentação............................................................................................................. 5
1 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC). Doutoranda no PROPED- UERJ.
Organizadora da publicação.
2 Professora, escritora e revisora de textos do programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC). Organizadora
e revisora da publicação.
3 Pedro Benjamim Garcia participou de inúmeros debates no programa Salto para o Futuro e foi consultor
da série Oralidade, memória e formação, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) no ano de
2006.
experiências com oralidade e leitura estive- institucionalizadas que calam sobre a identi-
ram presentes na série Oralidade, memória e dade profunda de crianças e jovens descen-
formação. No texto, o autor ressalta, em es- dentes de africanos/as”. Os relatos selecio-
pecial, as rodas com adultos alfabetizandos, nados ocorreram no âmbito do Programa
a partir de uma experiência realizada em um Descolonização e Educação – PRODESE, que
curso supletivo noturno em um colégio da tem como proposta “promover linguagens
Zona Sul do Rio de Janeiro (RJ). No relato educativas que estabeleçam uma relação di-
dessa experiência gratificante, o autor res- nâmica entre os valores sociocomunitários
salta que: “No processo de realização das ro- da tradição afro-brasileira e os códigos da
das de leitura, é possível incentivar a busca sociedade oficial, exigindo e assegurando,
de maior autonomia para pessoas que, em nessa relação, o direito à identidade própria
uma sociedade grafocêntrica, não dominam da nossa população”. A autora destaca, em
a leitura e vivem em condições adversas, em especial, a primeira experiência de Educa-
uma metrópole como o Rio de Janeiro”. Pe- ção Pluricultural no Brasil, conhecida como
dro Benjamim Garcia comenta, ainda, que: Mini Comunidade Oba Biyi (1976-1986), que
“Nas experiências com rodas de leitura, bus- promoveu com muito êxito a educação de
co a ‘gratuidade’ da leitura, o ler pelo prazer crianças e jovens vinculados a uma comuni-
de ler, bem como o desejo, nem sempre ex- dade afro-brasileira na Bahia, a Ilê Axé Opô 6
4 Narcimária Correia do Patrocínio Luz participou como autora de textos e debatedora das séries Oralidade,
memória e formação e Currículo, relações raciais e cultura afro-brasileira, ambas com veiculação no programa Salto
para o Futuro/TV Escola (MEC) no ano de 2006.
5 Azoilda Loretto da Trindade foi consultora da série Multiculturalismo e educação (2002) e do documentário
Africanidades brasileiras e educação, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) no ano de
2008. A autora participou ainda de inúmeros debates, em especial, nas séries envolvendo questões étnico-raciais
nos currículos..
do a autora, seu texto “se configura num a própria trajetória das sociedades auto-
bornal – com algumas cenas, lembranças, proclamadas como civilizadas”. Os autores
reflexões que foram constituindo uma tra- reportam-se aos estudos dos primeiros fol-
jetória de uma educadora imersa nas ques- cloristas, como Cecília Meireles, Mário de
tões da multiculturalidade, em diálogo com Andrade, Câmara Cascudo e Alceu Maynard
vários campos de conhecimento, sobretudo, de Araújo, que com as suas pesquisas pio-
no caso deste texto, relacionados à educa- neiras mostraram as criações culturais de
ção e à televisão”. Neste “bornal”, Azoilda diversas regiões do Brasil. Discutem, ainda,
Trindade traz questões abordadas no pro- os movimentos de cultura popular dos anos
grama Salto para o Futuro e apresenta múl- 1960, como as experiências inovadoras de
tiplas discussões sobre os temas multicul- educação, o alvorecer do cinema novo no
turalismo, diversidade, interculturalidade, Brasil, o teatro do oprimido e as iniciativas
pluralidade, apontando para a necessidade dos centros populares de cultura. Com muita
de “compreender a nossa humanidade tão propriedade, também criticam a invasão da
ampla e tão diversa que, hoje, parece ter mídia e da “massa” sobre as qualidades ar-
uma visibilidade questionadora, que grita e tísticas tradicionais das culturas populares e
afirma diferenças, singularidades, coletivi- preconizam a necessidade da “construção de
dades, muitas vezes silenciadas, ocultadas, vias de mão dupla nas relações entre a escola 7
6 Carlos Rodrigues Brandão foi consultor do documentário Cultura popular e educação, com veiculação
no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) no ano de 2007, tendo ainda contribuído com entrevistas e
depoimentos em outras oportunidades.
7 Eleonora Gabriel foi consultora da série Linguagens artísticas da cultura popular, com veiculação no
programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) em 2005. Participou também de séries voltadas para as diversas
expressões artísticas da cultura brasileira, em especial a dança.
que colorem os jeitos de ser, pensar e agir ficante experiência atuando como consulto-
do povo brasileiro”. Ressalta, ainda, “a ne- ra na edição especial Educação no Brasil: dos
cessidade de falar de inclusão, de diversida- jesuítas ao ano 2000: “Foi interessante viven-
de, de educar para a diferença (...) abrindo ciar essas etapas tão diferentes da elabora-
as possibilidades de trançar arte e cultura ção do programa: as longas horas de grava-
popular na educação, pensando em identi- ção e, depois, a montagem, o que implica
dades e cidadania brasileiras”. Entre outras selecionar e recortar, com base em critérios
reflexões, a autora comenta: “Difícil saber diversificados e de ordem igualmente muito
quem somos se não aprendemos na escola diferenciada. Estes têm a ver com a estética
o valor cultural e artístico de nossa forma- do programa, com a sua coerência interna,
ção, que reuniu, e continua reunindo, vá- com os objetivos que se quer atingir, com
rios jeitos, conhecimentos e modos de fazer. o(s) público(s) a que o programa se dirige
Somos no plural, precisamos cada vez mais (...). A experiência se constituiu para mim,
criar modos de educar para a diferença, para sem dúvida, numa significativa aprendiza-
a diversidade de nossa vida, nossa família, gem”. A autora ressalta, ainda, a importân-
nossos alunos, nossa escola, nossa cidade, cia da participação de “uma historiadora da
nosso estado e país”. educação, que tem por ofício a reconstrução
incessante do passado, num programa que 8
Ana Waleska P. C. Mendonça8 em forma de se intitula Salto para o Futuro”.
depoimento, comenta sobre os desafios de
produzir um texto que teve como proposta
resgatar a memória dos 20 anos do progra-
ma Salto para o Futuro. Ela se reporta às As organizadoras
séries e especiais de que participou, como
educadora e historiadora, e sobre sua grati-
8 Ana Waleska P. C. Mendonça foi consultora do documentário Educação no Brasil: dos jesuítas ao ano 2000,
com veiculação no Salto para o Futuro, no ano de 2000. Como debatedora, participou de diversas séries do Salto,
citadas no início de seu texto.
3. 1
LITERATURA E IDENTIDADE: TECENDO
NARRATIVAS EM RODAS DE LEITURA
Pedro Benjamim Garcia9
A educação busca formar pessoas. Mas... o nhecimento que nasce do coletivo (no caso,
que é formar? Fala-se em formação com o a roda, onde o saber circula). Para que essa
pressuposto de que o seu significado é idên- construção de conhecimento se dê é neces-
tico para todos, o que nem sempre é o caso, sário ter a capacidade de escutar, dialogar e
tendo em vista que trabalhamos com valo- negociar significados. Aprendizado possível
res, área pantano- de ser realizado nas
sa onde o consenso rodas de leitura, que
Como educador, busco a
passa longe. Talvez privilegiam a escuta,
autonomia do educando. A 9
se possa afirmar o diálogo e a negocia-
que, quando fala-
pedagogia desta proposta ção de significados.
mos em Educação, é se explicita – no meu caso –
a transformação que em roda de leitura. Escuta porque tenho
buscamos, transfor- que ouvir o que o
mação que não está outro (ou os outros)
isenta de conformis- têm a dizer; diálogo
mo e deformação. porque, reagindo a essa fala, coloco minha
opinião sobre o que está sendo debatido; ne-
Como educador, busco a autonomia do edu- gociação de sentido, porque nem sempre há
cando. A pedagogia desta proposta se ex- consenso acerca dos temas que estão sendo
plicita – no meu caso – em roda de leitura. tratados, podendo-se chegar a um denomi-
Através desta experiência busco ligar sujeito nador comum – em alguns casos por mútuas
e conhecimento, o que significa que o sujei- concessões – ou à manutenção da divergên-
to não está apartado da construção do co-
10 Segundo Andre Green (GREEN apud STRAUSS, 1981. p. 88), várias ideias se agrupam em torno do termo identidade.
Em primeiro lugar, a identidade está ligada à noção de permanência que escapa às mudanças que possam afetar o sujeito
no decorrer do tempo. Em segundo lugar, assegura a existência do que está separado, permitindo circunscrever a unidade,
indispensável para se fazer distinções. Por último, a identidade é uma das relações possíveis entre dois elementos, através
da qual se estabelece a semelhança absoluta que reina entre eles, permitindo reconhecê-los como idênticos. Estas três
características são solidárias: constância, unidade e reconhecimento do mesmo.
Ainda em relação à identidade, Kobena Mercer afirma que a mesma “se transforma numa questão quando está em crise,
quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é movido pela experiência da dúvida e da incerteza” (MERCER apud
HALL, 1999).
Segundo Stuart Hall,
(...) foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que contribuiu para este ‘supermercado cultural’. Dentro
do discurso de consumismo global, as diferenças e as distinções culturais que até então definiam a identidade, estão reduzidas a
uma espécie de língua franca internacional ou de moeda global, à qual podem traduzir-se todas as tradições específicas e todas
as identidades diferentes (HALL, 1999).
Esta tendência a uma homogeneização cultural, vinculada por um mercado global que invade a privacidade das casas
através de aparatos de tevê, constrói um imaginário coletivo por meio de um chamado ao consumo que alcança quase
toda a aldeia global.
11 Uma roda de leitura se caracteriza, como diz o nome, por um círculo ou semicírculo, reunindo um determinado
número de pessoas em torno do leitor-guia.
O leitor-guia lê o texto em voz alta e, em geral, o distribui para que os participantes da roda acompanhem sua
leitura. Dinamizar o grupo, fazer com que as pessoas se expressem e postulem, de forma aberta e dinâmica, suas questões,
além de conhecimentos básicos em torno do que é lido, são qualidades que se espera do leitor-guia.
O número de participantes não deve ser tão reduzido que não permita uma variedade de opiniões, nem tão
extenso que se perca a possibilidade de distinguir quem é quem.
O tempo de duração pode variar de uma a uma hora e meia, dividido entre a leitura e o debate; sendo uma hora,
dez a quinze minutos de leitura me parece um tempo razoável, ficando os restantes 45 a 50 minutos para o debate.
O local deve ser fechado, espaçoso, despojado e silencioso.
partir de uma experiência realizada em um instituído – pouco explora a gratuidade do
curso supletivo noturno em um colégio da saber e o imaginário dos alunos.
Zona Sul do Rio de Janeiro.
Apesar de esta desvinculação ter se concre-
Nesse curso, as rodas de leitura foram re- tizado, o fato de a experiência ocorrer no
alizadas durante um semestre, duas vezes interior de uma instituição de ensino cau-
sou o estranhamento de um acontecimento
por semana (segundas e quartas-feiras),
(rodas de leitura com textos literários) fora
das 18h30min às 19h30min, com cerca de
do lugar (escola). Busquei o debate e a tro-
20 alunos, dos quais doze (4 homens e 8
ca de ideias, tanto quanto possível, fora da
mulheres) permaneceram do início ao fim, hierarquia professor/aluno, mas acabou se
sendo que os demais apareciam esporadi- impondo a imagem do professor e não do
camente. leitor-guia (como eu desejava).
ender a inter-relação da leitura literária com uma cosmogonia a partir de suas leituras e
observações cotidianas. No caso – como res-
a formação do leitor e, consequentemente,
salta Ginzburg – o importante não é tanto o
com a sua identidade.
que Menocchio lê, mas como lê, o que faz de
suas leituras e como as transforma em con-
No contato com o colégio, fiz questão de vicções próprias. Em síntese, como ele é por
desvincular as rodas de leitura do aprendiza- elas formado, como se transforma enquan-
do escolar dos alfabetizandos. Isso porque, to sujeito, vale dizer, como vai constituindo
no meu entender, a escola – com o seu saber sua identidade.
Nas rodas de leitura, busquei compreender chamar João, José, Teresa, Maria, Severino,
as redes de significados enunciados a partir Isaura etc. Esta fala inicial possibilita que to-
dos pontos de vista do outro, no caso, os alu- dos comecem a se conhecer e a estabelecer,
nos adultos em processo de alfabetização. entre si, um nível de sociabilidade.
Janaina Amado e Marieta de Moraes Ferreira, Como quase todos têm baixa autoestima,
Usos e abusos da História Oral, chamam a fazem com que os participantes da roda ini-
vezes não têm como ser entendidos ou bastante variadas. Artista de cinema, santo
elucidados de outra forma; são depoi- de devoção, jogador de futebol, nome do pai
12 Interessante, no início do conhecido poema de João Cabral, “Morte e vida Severina”, é a busca de
identificação do seu personagem. Primeiramente pelo nome, que é a forma primeira e mais explícita de ser. Mas
esta tentativa falha. E falha porque os severinos são iguais não apenas no nome, mas “em tudo na vida”. Diante
disto só resta ao Severino do poema apontar-se a si mesmo como aquele que fala, distinguindo-se dos demais. É
que a questão da identidade não é fácil. No caso de Severino é a busca de afirmar-se a si mesmo para o outro que o
escuta – outro que é absolutamente necessário para a afirmação do eu.
13 Para falar do inconformismo quanto ao nome, indico o poema “A Antonin Artaud”, de Mário Cesariny
(CESARINY, 1999, p. 50-51).
Seja como for, o nome é sempre um parâme- 4. Leitores em formação
tro significativo na identidade de cada um.
É possível incentivar a formação de leito-
Não saber a origem do mesmo, como ocorre
res de camadas populares, em processo de
com alguns poucos, pode ser significativo.
alfabetização, a partir da literatura? O al-
Este tipo de procedimento costuma desinibir fabetizando, que tem um domínio precário
os mais tímidos, porque os relatos pessoais, da leitura, “lê” através do outro, no caso, o
maiores escritores do século XX, apaixona- mindo a condução do veículo, ou seja, vai
utilizam a metáfora da cegueira para falar dutor), utilizando a literatura para incentivar
da sua pouca capacidade para ler. o seu desejo de ler e possibilitando, desta for-
ma, que adquira o gosto pela leitura.
De um lado Borges, alguém que leu intensa-
mente e procura olhos para seguir lendo; de Mas qual o ponto em comum e a diferen-
outro, os que buscam o universo da leitura de ça entre sujeitos tão discrepantes: Borges e
forma tateante, como se a luz fosse escassa. meus leitores em processo de formação?
Imagino a emoção de ser leitor de Borges e Ambos leem através de um outro. A dife-
entendo porque, mesmo cego, era o escritor rença é que Borges já percorreu inúmeras
(passageiro) que conduzia o motorista (lei- vezes o caminho da leitura, sabe as trilhas,
tor), fazendo-o modificar suas “leituras soli- embora não mais possa percorrê-las sozi-
Antônia explicita isto de forma clara, drama- Um dia, brincando com Júlio, perguntei se
tizando: “Quando volto à minha terra ouço: suas histórias eram de “pescador”. Histórias
de pescador, aqui no Brasil e não sei se em a escola ensina e tem pouco ou nenhum es-
outros lugares do mundo, são tidas como paço para o sobrenatural, o mágico, o que
mentirosas. Em geral, é voz corrente dizer foge à racionalidade, ao pragmático.
que contam “vantagens”, aumentando os
Quebrada a resistência inicial, as histórias
fatos, seja em relação ao que pescaram ou
da terra de origem surgiram em profusão,
a aventuras que tenham passado no mar.
como neste exemplo:
Respondeu que não, que eram histórias ver-
dadeiras.
Eu morava no Norte com os meus pais.
À noite, um dia, eu e minha irmã ouvi-
Embora se esquivasse de contar histórias,
mos um barulho, quando abrimos a por-
apontando para outra pessoa do grupo, Jú-
ta para ver o que era, não vimos nada.
lio acabou contando várias (como a narra-
Quando nós acordamos, no dia seguinte,
da anteriormente). Não só contava como
os bichos estavam amarrados ou ma-
lia e, no final do curso, comentou: “Quando
chucados e ninguém sabia explicar o que
eu peguei o hábito de ler, eu não parei mais
tinha acontecido. Todo mundo fala lá no
não. Todo o dia eu tô lendo alguma coisa”
Norte que foi o lobisomem que fez isso.
(MACHADO, 1999, p. 69).
Meu pai fez uma armadilha e viu o lobi-
18
somem. Há pouco tempo atrás liguei pra
minha terra pra saber notícias. Meu pai
6. Histórias verdadeiras
falou que o lobisomem estava preso. Ele
porque inventadas
me disse que era metade homem, me-
Guimarães Rosa, em A hora e a vez de Augus- tade bicho. Uma coisa horrorosa. (MA-
Uma observação que registrei, nesta expe- rais. Luzia também contou o seu, mas fez uma
riência, foi a forma como as pessoas origi- ressalva: “isso acontece muito é no interior, eu
nárias do Nordeste tratavam as histórias acho que aqui na cidade grande não tem essas
passadas em áreas rural e urbana. Na área coisas não” (MACHADO, 1999, p. 72).
Reverência pelo texto escrito no livro de- ferente. Não é interessante, digamos, o
monstrou Sebastião, que pouco frequenta- senhor conta e eu vou gravar, aí eu che-
verdade, para ele, adivinha do livro, e justi- aquela história e aí ele fala isso aqui não
bem, vou falar: escreve aí pra mim o cer- verdade nada concebia fora do escrito. For-
to que eu vou conferir no livro. Não é in- mação religiosa rígida? Para Sebastião, num
certo sentido, todo o texto tinha uma aura 20
formação certa, é falar o que está escri-
to. É uma garantia, é uma defesa. Eu sou de sacralidade que a oralidade não pode ex-
professora fez uma pergunta e muitos de Sebastião à “roda de leitura”. Como nos
alunos não sabiam responder. E um ra- relatou no final desta experiência, sua ex-
professor e ele falou que estava errado. pensei no primeiro dia, eles pensaram
Por quê? Porque está escrito (MACHA- que chegando aqui, cada um ia ler um
Nós, que começamos este trabalho sem sa- sertação (Mestrado em Educação). Rio de Ja-
ber muito bem qual seria o ponto de che- neiro: Faculdade de Educação/Pontifícia Uni-
gada, concluímos que ele foi bem sucedido. versidade Católica do Rio de Janeiro, 1994.
CERVANTES, M. apud FRAGO, A. V. Alfabetiza- Educação/Universidade Federal do Rio de Ja-
ção na sociedade e na História. Porto Alegre: neiro, 1999.
Artes Médicas, 1993. p. 20.
MANGUEL, A. Uma história da leitura. São
CESARINY, M. A Antonin Artaud. In: Pena Ca- Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 33.
pital. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999. p. 50-51.
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FERREIRA, M. M. e FIGUEIREDO, Janaína P. Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
Amado Baptista de. (orgs.). Usos & abusos da 1997. p. 145-6.
História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getu-
lio Vargas, 1996. p. XIV e XV. MERCER, K. apud HALL, S. A identidade cul-
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lidade de diálogo com crianças e adolescentes
GINZBURG, C. O queijo e os vermes – O co-
em situação de rua. Dissertação (Mestrado
tidiano e as idéias de um moleiro perseguido
em Educação). Rio de Janeiro: Faculdade de 22
pela Inquisição. São Paulo: Companhia das
Educação/ Pontifícia Universidade Católica
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do Rio de Janeiro, 1995.
GREEN, A. apud LÉVI-STRAUSS, Claude (org.).
Atomo de parentesco y relaciones edificas. In: La ROSA, J. G. A hora e a vez de Augusto Matra-
identidad. Barcelona: Petrel, 1981. p. 87-117. ga. In: Sagarana. Rio de Janeiro: José Olym-
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MACHADO, D. A leitura oral coletiva: Uma co-
munidade de leitores. Dissertação (Mestrado ZUMTHOR, P. A letra e a voz. São Paulo: Com-
em Educação). Rio de Janeiro: Faculdade de panhia das Letras, 1993. p. 91 e 114.
3. 2
ENTRE A DOR DE NÃO PODER SER E A
CONQUISTA DA ALEGRIA DE SER
Para atender às expectativas das crianças e jovens integrantes de uma comunidade de
tradições culturais afro-brasileiras, e que se sentiam rejeitadas pelas escolas do sistema
oficial de ensino, constituiu-se um novo “continente pedagógico” que iria caracterizar
o projeto educacional Mini Comunidade Oba Biyi. O caminho indicado na primeira me-
tade do século passado por Mãe Aninha, Iyalorixá Oba Biyi, de ver as crianças da co-
munidade no dia de amanhã ‘de anel no dedo e aos pés de Xangô’, inspirou a trajetória
de nascimento de uma nova linguagem educacional. Fundou-se um espaço pedagógico
assentado na recriação das linguagens e nos valores da comunidade. Da tradição, nas-
ceu o novo; gerado na criação de um novo currículo, uma nova forma de aprendizagem.
(...) A cultura que guarda o saber da tradição comunitária passa a ocupar o centro da
experiência educacional (…) (Marco Aurélio Luz)
16 Frantz Fanon (1925-1961), formado em Psiquiatria, nasceu na ilha de Martinica, considerado território
francês situado na América Central. No início dos anos 1950 tornou-se argelino e passou a contribuir com os argelinos
na luta pela libertação do país, colônia francesa desde 1830. Participou de congressos pan-africanos representando a
Argélia e é uma figura exponencial no contexto Pan-Africano no mundo. A Argélia tornou-se independente um ano
após sua morte.
faz... E porque se refere constantemen- senfreada de uma singularidade admiti-
te à história de sua metrópole, indica de da como absoluta18.
modo claro que ele é aqui o prolonga-
Há um clamor das comunidades afro-brasilei-
mento dessa metrópole. A história que
ras por políticas públicas na área de Educação
escreve não é, portanto, a história da re-
capazes de estabelecer espaços institucionais
gião por ele saqueada, mas a história de
de combate ao racismo e suas engrenagens
sua nação no território explorado, viola-
ideológicas, que tendem a tragar a vida de
do e esfaimado. A imobilidade a que está
crianças e jovens que vivem situações no co-
condenado o colonizado só pode ter fim
tidiano escolar marcadas por muita dor e hu-
se o colonizado se dispuser a pôr termo
milhação.
à história da colonização, à história da
pilhagem, para criar a história da nação,
Esse mosaico de reflexões que desenvolve-
a história da descolonização. Mundo
mos é, portanto, uma homenagem e uma
compartimentado, maniqueísta, imóvel,
forma de solidarizar-se com todas as crianças
mundo de estátuas: a estátua do general
e jovens que não abrem mão do seu direito
que efetuou a conquista, a estátua do
de ser, viver seus ritos de iniciação e de pas-
engenheiro que construiu a ponte. Mun-
sagem nas suas instituições, elaborando as
do seguro de si, que esmaga com suas 27
linguagens e valores que contribuem para a
pedras os lombos esfolados pelo chicote.
expansão da ancestralidade afro-brasileira.
Eis o mundo colonial (...)17.
afro-brasileira na Bahia, Ilê Axé Opô Afonjá. to aos ancestres e ancestrais, como aos
Esa, espírito das pessoas que se destaca-
Cabe destacar que a concepção e realização ram na tradição religiosa, ou aos Babá
da Mini Comunidade Oba Biyi deve-se à per- Egun, espíritos dos ojé, sacerdotes que
sonalidade exponencial de Deoscoredes Ma- se destacaram no culto aos ancestres
ximiliano dos Santos, o Mestre Didi. O Mestre masculinos”19 .
Didi pertence à família Axipá, originária de
Oyó, e uma das sete famílias fundadoras da Um episódio que marcou significativamente
cidade de Ketu. Essa família repõe no Brasil, o início da Mini Comunidade Oba Biyi foi um
especificamente na Bahia, uma dinâmica so- comentário de uma das crianças da comuni-
ciopolítica, mítico-religiosa da cultura Nagô dade, ao lhe indagarem por que ela não fre-
expressa em casas tradicionais como o Ilê quentava a escola oficial que era tão próxima
Axé Opô Afonjá. Mestre Didi é neto de Iyá Oba ao Ilê Axé Opô Afonjá.
Biyi e filho de sangue de Mãe Senhora, ambas
expressivas lideranças da tradição africana – Não gostam da gente, lá!
19 LUZ, Marco Aurélio. A Favor de Egun. A Tarde, Salvador, 09 de abril, 2005. Caderno Cultural.
As escolas oficiais geograficamente próxi- sacerdotal nagô de Eugênia Anna dos Santos,
mas à comunidade eram muito distantes, ou a Iyalorixá fundadora do Ilê Opô Afonjá na ter-
melhor, desenvolviam uma pedagogia que ritorialidade do Cabula, em Salvador, Bahia.
negava os valores da comunidade, fazendo Quando Mãe Aninha, a Iyá Oba Biyi implantou
com que as crianças se distanciassem dos a comunidade-terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá
valores existenciais próprios da comunida- em 1910, nas imediações do Cabula, foi por-
de, rejeitando-os, denegando-os, melhor di- que considerou, sobretudo, que aquele ter-
zendo, não gostavam da forma de ser dessas ritório estava profundamente marcado pelo
crianças. A realidade escolar das crianças da passado heroico de continuidade civilizató-
comunidade do Opô Afonjá naquela época ria, rico em axé e forças míticas emanadas
era muito traumática. As crianças que foram pelos antepassados africanos do quilombo
escolhidas pela famí- do Cabula. Esse ter-
lia “para estudar” no ritório se impregnou
A Iyá Oba Biyi sempre
mais das vezes, de profundo signifi-
dizia: “Quero ver nossas cado histórico para a
(...) se afasta- crianças de hoje, no dia de população afro-brasi-
ram da própria amanhã, de anel no dedo leira, que reelaborou,
família, perde- 29
e aos pés de Xangô.” É no no local, modos de
ram o orgulho sociabilidade ancora-
âmago desse desejo de Mãe
pelos valores dos à preservação da
Aninha, que se implanta a
da tradição, memória coletiva das
constituíram Mini Comunidade Oba Biyi. comunidades que ali
uma identida- existiram. Não há pro-
de fracionada, e vas de que o Ilê Opô
muitas vivem como almas no exílio, so- Afonjá esteja localizado no lugar exato do
frendo o impacto da política racista da quilombo do Cabula, disperso em 1807, mas
barragem social no contexto da socie- preserva-se a memória simbólica daqueles
dade oficial europocêntrica identificada que se insurgiram ao Estado colonial escra-
com a política do branqueamento . 20
vista.
O nome Oba Biyi significa em yorubá “o rei A Iyá Oba Biyi sempre dizia: “Quero ver nos-
nasce aqui”, vem da homenagem ao nome sas crianças de hoje, no dia de amanhã, de
20 LUZ, Marco Aurélio. Agadá dinâmica da Civilização Africano-Brasileira. Salvador: Edições SECNEB e EDUFBA,
1995, p. 666.
anel no dedo e aos pés de Xangô.” É no âma- “De anel no dedo e aos pés de Xangô” significa
go desse desejo de Mãe Aninha, que se im- procurar superar os obstáculos, que se institu-
planta a Mini Comunidade Oba Biyi. cionalizaram na África e no Brasil, e em outros
países ex-colonizados, através da pedagogia
A Iyá Oba Biyi nos indicou o grande desafio eurocêntrica.
que se apresenta para nós, educadores: de
um lado o “anel no dedo”, que significa a pos- A imagem da África e do africano pro-
sociedade oficial, e de outro, Xangô, orixá do humilhante, além de falsa, que mina ou
fogo que assegura a vida no aiyê21, a expansão impossibilita toda aspiração da criança
presença transatlântica dos valores culturais nialismo. Contestar e banir este sistema
pedagógica que estabelecesse uma relação di- gânica e primária da organização polí-
nâmica entre os valores comunitários da tradi- tica, porque, como um sistema, ele cor-
21 Mundo visível.
22 NASCIMENTO, Elisa. Pan-africanismo na América do Sul. Petrópolis: Vozes, 1985, p.36.
23 AWAONIYI, Timothi, apud LUZ, Marco Aurélio. Agadá dinâmica da Civilização Africano-Brasileira. Salvador:
Edições SECNEB e EDUFBA, 1995, p. 657.
europeizado. Aqueles que não se educavam amplo salão. A concepção era de um espaço
pela escola colonial eram chamados de ará- livre para as crianças explorarem e desenvol-
oko (ignorantes, sem educação) e os valores verem todos os sentidos do corpo, não havia
culturais da tradição ficavam reduzidos à bancos e carteiras, era um espaço permeado
percepção etnocêntrica que os classificava pela estrutura do terreiro, onde as atividades
de “pagãos”, “primitivos” e “bárbaros” 23. e/ou aprendizagem ocorressem ao ar livre ou
no salão. Tinha também uma cozinha gran-
Nada mais importante para o ser humano do
de, banheiros e vegetação na área externa.
que se sentir aceito, amado, querido e respei-
tado. A Mini Comunidade Oba Biyi absorvia Sobre a concepção espaço-temporal da Mini,
profundamente essas preocupações, tanto Marco Aurélio Luz, que participou da coorde-
assim que a ideia nucleadora do espaço ar- nação da experiência de educação no período
quitetônico e do cotidiano espaço-temporal de 1978 a 1985, comenta:
pedagógico refletia nas crianças o prazer de
sentir-se em casa, à vontade, seguras, felizes, A forma de comunicação básica da Mini
expressando com desenvoltura a sua identi- não se assentava na escrita. A forma de
dade e os códigos culturais da comunidade. comunicação dava margem àqueles có-
digos tradicionais de comunicação da 31
A criação da Mini Oba Biyi proporcionou às comunidade, que se manifestavam atra-
crianças um espaço para participar, opinar, vés da dramatização, dança, música,
acompanhar, sugerir, desde a construção do etc. Mas, em relação à linguagem peda-
prédio até as vivências do dia a dia com os gógica, especialmente, esse espaço pro-
professores e funcionários, consolidando a piciava essas formas de comunicação. A
dimensão política de afirmação dos valores Mini foi concebida com um grande sa-
da tradição. lão, um pátio e uma varanda. Não se ca-
racterizava com salas de aula, carteiras,
O prédio da Mini foi construído sob a super-
com aquele mobiliário sobredetermina-
visão das crianças, que diariamente acompa-
do pela escrita, com aquela prancheta,
nhavam os operários, os materiais, bastante
com obsessão para caderno, lápis, livro,
envolvidas com o processo, pois sentiam re-
e a criança diante do quadro de giz, e
almente que era delas e para elas que estava
o professor na frente. Esse espaço dava
sendo erguido aquele espaço.
outra dinâmica. Tinha salão de ativida-
Projetou-se um espaço que abrigasse uma des por centro de interesses, onde se de-
comunidade infantil, uma casa com o esti- senvolviam atividades com as turmas do
complexo civilizatório está expresso e pro- mestre letivo no Festival de Artes Inte-
cura caracterizar aspectos estruturadores gradas Mini Comunidade Oba Biyi. Nes-
24 LUZ, Narcimária. ABEBE: a criação de novos valores para a educação. Salvador: Edições SECNEB, 2000, p.67.
25 LUZ, 1977, p. 66.
26 LUZ, Marco Aurélio. O rei nasce aqui (contracapa). Salvador: Fala Nagô, 2007.
dos socioculturais diferentes com liber- “Aiyó, aiyó, alegria alegria, omo nilê
dade e integridade26. aiyó”, filhos da casa alegria. É essa ale-
gria que envolve ou deve envolver o es-
Depois de destacarmos a importância da
paço, luzes e cores, tatilidade, sinergia,
Mini Comunidade Oba Biyi na constituição
comunalidade, sociabilidade na educa-
de um currículo capaz de lidar com o patri-
ção desdobrada dos valores e linguagem
mônio afro-brasileiro, insistimos no convite
da tradição africana. Na Mini, a alegria
aos educadores: sensibilizem-se, aprendam
estava na vida cotidiana, no brincar, no
e respeitem as linguagens próprias do co-
elaborar, no aprender, jogando, repre-
nhecimento milenar que organizam e es-
sentando, transformando, criando, fa-
truturam as comunidades afro-brasileiras, a
zendo arte conjuntamente num só cor-
exemplo dos ritos de iniciação vividos pelas
po comunal. Enfim, a Mini propiciava
crianças e jovens que ilustramos no início
um gostar de estar no mundo, se diver-
desse texto.
tindo e sublimando a angústia existen-
cial, substituindo-a pelo efeito estético
Se realmente pretendemos realizar uma
da busca da beleza, odara, e pela busca
“Educação para todos”, como proclama a
do conhecimento que implica, sobretu-
Constituição brasileira, teremos que consi-
do, em aceitar o mistério do existir27.
33
derar de forma respeitosa uma ética da coe-
xistência que aceite o patrimônio de conhe-
Povos que vivem fora da Europa, a exemplo
cimentos das histórias humanas das nossas
da África, Austrália, Américas e Ásia, apelam
comunidades afro-brasileiras. É através des-
para outros códigos e formas de comunica-
sas comunidades e de toda a pujança do pa-
ção característicos dos seus modos de socia-
trimônio civilizatório africano característi-
bilidade para localizar-se e falar dos lugares,
co, que nossas crianças e jovens estruturam
territorialidades que os envolvem.
suas identidades profundas.
27 LUZ, Marco Aurélio. O rei nasce aqui (contracapa). Salvador: Fala Nagô, 2007.
os primórdios da humanidade, indicando e linguagens radicalmente distintos das ins-
princípios ético-estéticos para que o corpo tituições que se baseiam nos valores da civi-
comunitário se expanda e dê continuidade lização europeia e sua História e Geografia
aos elos de ancestralidade que projetam e totalitárias e laicizadas.
anunciam a África viva aqui.
Uma mensagem importante que dinamiza
Os caminhos que vamos trilhando indicam
a ética das comunidades afro-brasileiras: a
a possibilidade de uma educação em que
árvore que não tem raiz não se apruma, não
nossas crianças e jovens aprendam a lidar
consegue se alimentar da matéria primor-
com o repertório de códigos da sociedade
dial, e é incapaz de gerar; e o pior é que ela
urbano-industrial imersa nas políticas de
será carregada pelo vento.
globalização, mas utilizando-os como es-
tratégia de legitimação da alteridade civili-
Desse pensamento dos mais antigos/as
zatória africana. É assim que vamos vendo
aprendemos que é importante saber quem
gerações de afro-brasileiros, conquistando
nós somos, as nossas origens, a trajetória
espaços institucionais fincando, recriando e
dos nossos/as antepassados/as, valorizar a
expandindo o repertório de valores das suas
nossa gente, as nossas comunidades afro-
comunidades, e tendo acesso ao direito à al- 34
brasileiras, pois isso nos tornará árvores
teridade, tão precioso ao existir.
frondosas com raízes profundas e capazes
Não podemos colocar um “manto de ferro” de gerar muitos frutos e sementes que ali-
nas crianças que vivem imersas nos valores mentarão as gerações sucessoras.
3.3 Multiculturalismo, Televisão e cotidiano
Escolar: um Bornal de Lembranças
Esse texto se configura num bornal – com Num dos programas sobre Pluralidade Cul-
algumas cenas, lembranças, reflexões que tural, eu e uma outra professora participa-
foram constituindo uma trajetória de uma mos como pessoas que davam depoimentos
educadora imersa nas questões da multi- ao vivo, as duas negras e com cabelo natural
culturalidade, em diálogo com vários cam- e ambas com o penteado tipo pompom. Sur-
pos de conhecimento, sobretudo, no caso presa a: não existia maquiagem para nossas
deste texto, relacionados à educação e à peles. Surpresa b: uma pessoa comenta, na
televisão. Televisão, por causa de algumas sala: “(...) uniforme estes cabelos?” Surpre-
consultorias no programa Salto para o Fu- sa, porque não se discutia o modelo “pa-
35
turo/ TV Escola (MEC) e no Projeto ‘A Cor drão” dos cabelos das apresentadoras, nem
da Cultura’, do Canal Futura, e também um certo modelo “global” dos programas.
por estarmos vivendo um momento his-
tórico de reflexões e tentativas de romper Cena 2
hegemonias e exclusões, visando visibilizar
positiva e criticamente a nossa diversidade A consultoria da série Multiculturalismo,
étnico-racial em todos os espaços sociais. em 2002, foi um laboratório. A riqueza dos
textos, do material produzido, o debate de
Lembranças e cenas que nos ajudaram a propostas em torno de temas que, hoje, são
compor este texto. Lembranças e cenas de focos de discussão, como a questão afro-
bastidores, que mostram que o que vemos brasileira, a indígena, a homoafetiva, a reli-
na tela é um produto, um retrato momentâ- giosa, a de gênero, a transdisciplinaridade...
neo, e que tem uma história de construção. Tudo com embates, humanidades, vaidades,
Vamos especificar com duas cenas: relações de poder, enfrentamento de precon-
ceitos e construção de conceitos... Lembro,
Cena 1 por exemplo, que no primeiro VT sugerimos
mes para compreender a nossa humanidade Então viu uma árvore, dessas que têm
tão ampla e tão diversa que, hoje, parece ter água dentro, e parou, abriu a planta e
31 Um mito é uma narrativa de caráter simbólico, relacionada a uma dada cultura. O mito procura explicar
a realidade, os fenômenos naturais, as origens do mundo e do homem por meio de deuses, semideuses e heróis.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mito Acesso em 23/07/2011.
Visões de mundo – lugares – autoestima habita entre nós e em nós. Narrativas que
– estimas – memórias – marcas – nome apresentam mundos e mundos, pessoas,
– iniciais – ciclos – traumas – alegrias – possibilidades que, tecidas umas nas e com
tristezas – superações – histórias – redes as outras, carregam sementes de invenções/
(familiares, apoio, solidariedade, afetivas) reinvenções de existências. A Ciência (no
– tradições – aprendizagens – dobra – li- singular e no plural) é narrativa, o conheci-
nhagens – ancestralidade – afetos – religio- mento é narrativa, a explicação do mundo é
sidade – obstáculos – sexualidade – racis- narrativa, o que vimos, o que sentimos, com-
mos – preconceitos – dificuldades – saúde/ preendemos e somos é narrativa. As espe-
doença – ausências – mágoas – resistências cializações são narrativas, as disciplinas são
– forças – legados – filosofias – vitórias – narrativas. As imagens televisivas são narra-
escutas – saberes – falas – passado entrela- tivas. Neste sentido, a palavra, a expressão,
çado com o presente – inserções – mudan- a marca de cada um(a) de nós é narrativa.
ças – maternidade/paternidade – ganhos/ Nossa presença no mundo é narrativa e este
perdas – cobranças – ritmos – estilos emaranhado de narrativas, construídas em
– tempos – sonhos – ética – manifestações rede, não hierarquizadas, em diálogo, sem
artístico/culturais – pertenças/pertenci- começo, sem meio e sem fim, nos convida
mentos – mudanças e permanências – eu/ a pensar outras narrativas que possam tecer 38
Uma vez ouvi de Fernando Lebeis, professor validamos, convidam-nos a sair do campo
de Cultura Popular, este dito: Se tem nome da naturalização e entrar no campo do his-
existência, pelas narrativas de quem as pro- acordo com o modo como vemos o mundo,
o verbo que se faz carne, ideia, existência e criam ao longo do tempo, da história e das
sociedades. A vida é mudança e transforma- Só que, num processo de dissonância que
ção constante de um modo incapturável. consolida narrativas em que alguns se
acham valendo mais, tendo mais poderes
3. Processos institucionalizados e insti- que outros, sobretudo no que se refere aos
tuintes poderes de dominação, de existência, de
cidadania, de vida, podemos dizer que as
Se a Vida é mudança, transformação, meta- relações de poder marcam lugares sociais.
morfose, como se explicam “as verdades”? Lugares onde algumas narrativas são legiti-
Talvez, numa tentativa inglória de assentar madas, acolhidas, ecoadas em detrimento
a poeira, de controlar o incontrolável, como de outras, consolidando-se assim desigual-
uma espécie de dissonância entre narrativas dades, exclusões, distorções...
do visto, sentido e vivido, nos instituímos
rotulando, etiquetando, normatizando, re- 6. Cotidianos x dominantes
gulando, legalizando tentando, como disse,
talvez, controlar a força instituinte da vida. Partindo do pressuposto de que todos têm
e exercem o poder, nos voltamos para o co-
4. Relações de poder tidiano, como lugar de acontecimentos, do
‘aqui-agora’, de relações, encontro, confron- 39
Obviamente não estamos voltados apenas para tos, desencontros... Cotidiano como lugar
o caos ou para o princípio do prazer, pois vive- das práticas, das experimentações, das vi-
mos em grupo, em sociedade, mediados pela vências, das narrativas e, ao mesmo tempo,
comunicação, por coletividades. Também não campo das potências, campo de práticas e
podemos ficar presos(as) à bipolaridade ou ao relações de dominação da potência, da nar-
espectro da dicotomia: prazer-realidade; vida- rativa, do poder do outro, seja este outro
morte; branco-negro, homem-mulher, sim- gente na sua diversidade. Natureza na sua
não, isto ou aquilo... A Vida é muito mais que diversidade, seres vivos na sua diversidade,
isto. Por outro lado, sabemos que o instituído conhecimento na sua diversidade.
se consolida nas relações de poder estabele-
cidas em confrontos, negociações, conflitos, 7. Pontos de vista diferentes
mortes, guerras, silenciamentos... A vida social
é tensionada pelas relações marcadas pelo po- Trouxemos o poeta Ricardo Reis, um mito
der no seu sentido mais amplo e universal, ou Ioruba, palavras e expressões apreendidas
seja, todos nós temos e exercemos poder. num encontro, convite a pesquisar imagens
e histórias como da Vênus negra, do homem
5. Lugares sociais vitruviano, do osso de Ishango, para que
possamos pensar que, diante da diversidade, está presente nas diversas culturas a re-
vemos pontos de vistas diversos, diferencia- alidade diabólica. Não se trata de uma
dos, nem sempre em disputa, muitas vezes personificação do mal, como faz uma fé
complementares, outras vezes dissonantes, mais simplória e menos depurada. Mas
outras vezes abomináveis, outras vezes in- sim de um movimento oposto ao do sím-
compreendidos, outras vezes reprimidos, bolo. Do grego, diabólico seria a junção
mas presentes, vivos, a despeito das rela- de “dia” (longe, distante, fora de) + “bo-
ções de dominação. lós” (levar, movimentar, trazer, bailar),
ou seja, dividir, separar, levar para longe.
32 Fonte: http://pt.shvoong.com/humanities/174491-simb%C3%B3lico-diab%C3%B3lico/#ixzz1T0Qp37qj
Acesso em 24/07/2011.
33 Saartjie “Sarah” Baartman (1789-1815) foi a mais famosa de, pelo menos, duas mulheres hotentotes usadas
como atrações secundárias de circo na Europa do século XVIII sob o nome de Vénus Hotentote. http://pt.wikipedia.
org/wiki/Saartjie_Baartman Acesso em 24/07/2011.
34 É um desenho famoso que acompanhava as notas que Leonardo da Vinci fez ao redor do ano 1490 num
dos seus diários. Descreve uma figura masculina desnuda separadamente e simultaneamente em duas posições
sobrepostas, com os braços inscritos num círculo e num quadrado. A cabeça é calculada como sendo um oitavo da
altura total. Às vezes, o desenho e o texto são chamados de Cânone das Proporções. http://pt.wikipedia.org/wiki/
Homem_Vitruviano_(desenho_de_Leonardo_da_Vinci). Acesso em 24/07/2011.
35 O osso de Ishango é uma ferramenta de osso que data do Paleolítico Superior, aproximadamente entre
Homem Vitruviano e 20.000 a.C. Este objeto consiste num longo osso castanho (mais especificamente, a fíbula
de um babuíno) com um pedaço pungente de quartzo incrustado num dos seus extremos, talvez utilizado para
gravar ou escrever. A princípio pensava-se que fora utilizado para realizar contagens, já que o osso tem uma série
de traços talhados divididos em três colunas, que abrangem todo o comprimento da ferramenta, mas alguns
cientistas sugestionaram que as agrupações dos traços indicam uma compreensão matemática que vai para além
da contagem. http://pt.wikipedia.org/wiki/Osso_de_Ishango Acesso em 24/07/2011.
Essas imagens e suas legendas e referências, respeito à vida...
por si, já nos falam de multiculturalidade.
Mas, sendo um texto que pretende dialogar Trabalhar na perspectiva da diversidade não
com educadoras(es), explicamos que nossa é algo simples e fácil. Leva-nos a romper
intenção, ao apontá-las, sem rigor meto- com a ideia enraizada de homogeneidade.
dológico, é sinalizar que para onde olhar-
mos, em qualquer campo do saber, estamos Por exemplo, ainda existe, na escola, a ilu-
diante da diversidade, da multiplicidade, do são de turmas homogêneas (por nível de
diverso no universo. Estamos diante do in- aprendizagem, por faixa etária, por classe
capturável da vida e do desafio de educação social...).
para o não sabido.
Tensionar o discurso da igualdade. Não so-
mos todos iguais,
ALERTAS
somos diferentes,
O reconhecimento Trabalhar na perspectiva mas em termos de
da diversidade como da diversidade não é direito humano, so-
foco, como base, algo simples e fácil. cial, político, somos
não elimina as dis- iguais (em tese). 41
Leva-nos a romper com
torções causadas Contudo, numa so-
a ideia enraizada de
pelas relações de ciedade estratifica-
dominação e de hie-
homogeneidade. da, hierarquizada,
rarquização das di- excludente, as de-
ferenças. Reconhe- sigualdades sociais
cer as diferenças não significa respeitá-las, são evidentes, desigualdades manifestas nos
sequer saber ou querer aprender a lidar com dados oficiais, desigualdade de gênero, de
elas de modo dialógico e inclusivo. O ma- etnia...
chismo, o racismo, o elitismo, a intolerância
religiosa, a homo e lesbofobia, dentre outras Tudo isto nos tira do ilusório conforto do
manifestações de apartação do Outro, pres- “JÁ SEI”, nos convidando a estudar, ler o
supõem o reconhecimento da existência do mundo, abrir os poros para novas formas
Outro, da diferença, da diversidade, só que de aprender além dos livros, sem prescindir
pressupõem também a existência de um pa- deles, convida-nos a criar e a correr riscos
drão a ser seguido, perseguido, buscado, co- para trilhar caminhos nunca antes navega-
piado, desejado, padrões de negação ou não dos... Camões e Fernando Pessoa: navegar é
aceitação do Outro, de negação da vida, do preciso, viver não é preciso:
Navegadores antigos tinham uma É a forma que em mim tomou o
frase gloriosa: misticismo da nossa Raça37.
36 “Navigare necesse; vivere non est necesse” – em latim, frase de Pompeu, general romano (106-48 a.C.), dita
aos marinheiros, amedrontados, que recusavam viajar durante a guerra. Cf. Plutarco, in Vida de Pompeu.
37 Fernando Pessoa. Navegar é preciso. http://www.revista.agulha.nom.br/fpesso05.html em 24/07/2011.
38 Edgar Morin. Sete saberes necessários à educação do futuro. Unesco.
Contudo, buscaremos inspiração num ou- O irmão de Osíris, Set, governava apenas
tro mito africano, agora egípcio, que nos foi o deserto, situação que não lhe agrada-
apresentado no documentário do Salto para va. Movido pela inveja, decide engendrar
o Futuro “Africanidades Brasileiras e educa- um plano para matar o irmão. Auxilia-
ção” e que ilustra nosso momento de agre- do por setenta e dois conspiradores, Set
gar, conhecer, interligar histórias, culturas, convidou Osíris para um banquete. No
conhecimentos, humanidade: decurso do banquete, Set apresentou
uma magnífica caixa-sarcófago que pro-
O mito de Osíris39 meteu entregar a quem nela coubesse.
Os convidados tentam ganhar a caixa,
O mito de Osíris é conhecido graças a mas ninguém cabia nesta, dado que Set
várias fontes, sendo a principal o relato a tinha preparado para as medidas de
de Plutarco (século I) De Iside et Osiride Osíris. Convidado por Set, Osíris entra
(Sobre Ísis e Osíris). Alguns textos egíp- na caixa. É então que os conspiradores
cios, como os Textos das Pirâmides, trancam-na e atiram-na para o rio Nilo.
os Textos dos Sarcófagos e o Livro dos A corrente do rio arrasta a caixa até ao
Mortos, narram vários elementos do mar Mediterrâneo, acabando por atin-
mito, mas de uma forma fragmentária gir Biblos (Fenícia). 43
e desconexa.
Ísis, desesperada com o sucedido, parte
à procura do marido, procurando obter
Osíris é apresentado como filho de Geb
todo o tipo de informações dos encon-
e Nut, tendo como irmãos Ísis, Néftis e
tros pelo caminho. Chegada a Biblos, Ísis
Seth. É, portanto, um dos membros da
descobre que a caixa ficou inscrustrada
Enéade de Heliópolis. Ísis não era apenas
numa árvore que tinha, entretanto, sido
sua irmã, mas também a sua esposa.
cortada para fazer uma coluna no pa-
lácio real. Com a ajuda da rainha, Ísis
Osíris governou a terra (o Egipto), tendo
corta a coluna e consegue regressar ao
ensinado aos seres humanos as técnicas
Egipto com o corpo do amado, que es-
necessárias à civilização, como a agri-
conde numa plantação de papiros.
cultura e a domesticação de animais.
Foi uma era de prosperidade que, contu-
Contudo, Seth encontrou a caixa e, fu-
do, chegaria ao fim.
rioso, decide esquartejá-lo em catorze
Mas Ananse nada respondeu, apenas des- vocês não gostariam de entrar na mi-
ceu por sua teia de prata que ia do Céu nha cabaça para que a chuva não estra-
até o chão para pegar as coisas que Deus gue suas asas? – Muito obrigado, Muito
exigia. Ele correu por toda a selva até que obrigado!, zumbiram os marimbondos,
encontrou Osebo, o leopardo de dentes ter- entrando para dentro da cabaça que
vamos brincar do jogo de amarrar? O le- cabaça na árvore junto a Osebo dizendo:
Depois, ele esculpiu uma boneca de ma- E como a boneca continuasse parada,
deira, cobriu-a de cola da cabeça aos deu-lhe um tapa ficando, agora, com as
pés, e colocou-a aos pés de um flam- duas mãos presas. Mais irritada ainda,
boyant onde as fadas costumam dan- a fada tentou livrar-se com os pés, mas
çar. À sua frente, colocou uma tigela de eles também ficaram presos. Ananse, en-
inhame assado, amarrou a ponta de um tão, saiu de trás do arbusto, carregou a
cipó em sua cabeça, e foi se esconder fada até a árvore onde estavam Osebo e
atrás de um arbusto próximo, seguran- Mmboro, dizendo: – Agora, Moatia, você
do a outra ponta do cipó e esperou. Mi- está pronta para encontrar Nyame, o
nutos depois chegou Moatia, a fada que Deus do Céu.
nenhum homem viu. Ela veio dançando,
dançando, dançando, como só as fadas Aí, ele foi à casa de Ianysiá, sua velha
africanas sabem dançar, até aos pés do mãe, sexta filha de sua avó e disse: –
flamboyant. Lá, ela avistou a boneca e Ianysiá, venha comigo, vou dá-la a Nya-
a tigela de inhame. – Bebê de borracha. me em troca de suas histórias. 46
Estou com tanta fome, poderia dar-me
um pouco de seu inhame? Depois, ele teceu uma imensa teia de prata
em volta do leopardo, dos marimbondos e
Ananse puxou a sua ponta do cipó para da fada, e uma outra que ia do chão até o
que parecesse que a boneca dizia sim Céu e por ela subiu carregando seus tesou-
com a cabeça; a fada, então, comeu ros até os pés do trono de Nyame. – Ave
tudo, depois agradeceu: – Muito obriga- Nyame! – disse ele. – Aqui está o preço
da, bebê de borracha. que você pede por suas histórias: Osebo, o
leopardo de dentes terríveis, Mmboro, os
Mas a boneca nada respondeu, e a fada, marimbondos que picam como fogo, e Mo-
então, ameaçou: – Bebê de borracha, se atia, a fada que nenhum homem viu. Ainda
você não me responde, eu vou te bater. lhe trouxe Ianysiá, minha velha mãe, sexta
filha de minha avó.
E como a boneca continuasse parada,
deu-lhe um tapa ficando com sua mão Nyame ficou maravilhado, e chamou to-
presa na sua bochecha cheia de cola. dos de sua corte dizendo: – O pequeno
Mais irritada ainda, a fada ameaçou de Ananse trouxe o preço que peço por mi-
nhas histórias, de hoje em diante, e para um de nós existem joio e trigo. Aprendi tam-
sempre, elas pertencem a Ananse e serão bém, nestas buscas de inclusão, a ver e rever
chamadas de histórias do Homem Ara- valores e conceitos pertencentes a grupos
nha! Cantem em seu louvor! não hegemônicos na sociedade e na escola.
A compreensão e o aprendizado destes va-
Ananse, maravilhado, desceu por sua teia lores como pedagógicos e didáticos podem
de prata levando consigo o baú das histó- ajudar-nos a enfrentar o cronificado quadro
rias até o povo de sua aldeia, e quando ele de produção e reprodução de desigualdades
abriu o baú, as histórias se espalharam pe- na nossa sociedade. Conhecer quem somos e
los quatro cantos do mundo vindo chegar de onde viemos, o que nos constitui cultural-
até aqui. mente, pode ser de grande valia.
49
Como, numa perspectiva inclusiva, não hierárquica, sem racismo, sem machismo, trabalhar
com a alteridade, a multiculturalidade, no cotidiano escolar? E, no caso deste texto, tendo a
televisão como parceira?
47 Antropólogo, professor visitante da Universidade Federal de Uberlândia, como bolsista senior da CAPES.
Coordenador do Projeto Etnocartografias do Rio São Francisco.
48 Mestranda em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia.
49 Entrevista concedida para o livro coordenado por Olavo Romano: Mestres Minas Ofícios Gerais – resgate
cultural do artesanato mineiro – Araxá, publicado pelo SEBRAE-MG, Belo Horizonte, em 2000 (página 29).
ques”, um folgazão violeiro e improvisador Este texto não versa sobre a dimensão
de quadras da dança (ou “folga”, ou “fun- mais própria e diretamente antropológica
ção”) de São Gonçalo. De igual maneira, to- da questão do patrimônio cultural imate-
ques de viola, músicas sertanejas, criações rial. Isto será feito em um outro momento
artesanais de palha, madeira ou barro, recei- e em dimensões mais amplas. Ele trata da
tas de cura popular patrimonial, receitas de sua dimensão mais sociopolítica. Ou seja,
“comidas típicas” oscilam, de Sul a Norte do procura dar conta de definir, relacionar e
Brasil, entre o anonimato absoluto, a auto- compreender alguns conceitos situados en-
ria mítica e a autoria humana reconhecida e tre a cultura popular e o patrimônio cultu-
certificada. ral imaterial. E isto será realizado em outro
momento através de uma talvez enfadonha,
Assim também, criações populares de todos mas necessária reconstrução da trajetória
os tipos e padrões podem ser atribuídas, al- que, iniciada na UNESCO e em processo em
gumas vezes, à criação, ao “dom”, à pos- inúmeras nações em todo o mundo e, de
se ou mesmo à propriedade de uma pessoa maneira especial, em nosso caso, no Brasil,
única, de um par de autores, de uma família, gerou e segue gerando propostas, projetos e
de uma descendência familiar – “começou políticas. Lembremos, no entanto, que aqui
com o pai de meu avô e segue comigo que mesmo, no Brasil de agora, há um crescente 51
estou ensinando aos meus filhos” – e outras interesse por este intervalo entre a cultura
vezes a uma parentela ampliada, a uma con- popular e o patrimônio cultural imaterial. Vá-
fraria profana ou religiosa, ou mesmo a uma rios documentos governamentais de âmbito
comunidade. federal, estadual ou mesmo municipal têm
sido editados. E vários artigos, escritos tan-
Na verdade, quando estudamos a história to por profissionais vinculados a entidades
da arte em todo o mundo e ao longo das culturais governamentais, quando a institui-
eras, vemos que o reconhecimento de uma ções acadêmicas ou mesmo a organizações
autoria e os direitos devidos a esta autoria não-governamentais relacionadas à arte e
reconhecida variavam muito. Bach e outros cultura, têm sido escritos e colocados em
músicos anteriores à sua época, ou posterio- diálogo.
res a ela, nem sempre assinavam as partitu-
ras de suas músicas. Livros e folhetos do que
1. Do folclore à cultura
veio a ser o romance moderno circulavam
popular
entre elite e povo sem qualquer nome de au-
tor. O mesmo acontecia em alguns tempos e Recuemos alguns passos... Sabemos já que
lugares com obras de artes plásticas. uma parte bastante significativa disto, a que
se dá agora o nome de patrimônio cultural “descobrir” primeiro que os selvagens das
imaterial, recebeu em outros tempos – nem Américas e da África possuíam culturas, con-
tão passados assim – e segue recebendo até sideradas primitivas, para se admitir que os
hoje nomes como: antiguidades, tradições camponeses de suas nações também possu-
populares, folclore (folk-lore), cultura tradi- íam as suas culturas tradicionais, populares.
cional (primitiva, iletrada, rústica, camponesa
etc.), cultura patrimonial, cultura popular. Desde então é presente, ainda, e depende,
como sempre, das diferenças de olhares e de
Da parte do que poderíamos, por uma con- teorias, uma interminável discussão sobre os
trovertida oposição, chamar de cultura erudi- fundamentos e o grau de autonomia das di-
ta, cultura letrada, cultura acadêmica, cultura versas formas de realizações de culturas po-
hegemônica ou mesmo cultura dominante, o pulares. O que não deverá parecer algo sem
reconhecimento de que “as gentes do povo” sentido, se nos lembrarmos que o debate
também são criadoras e possuem formas pró- sobre a substância e o significado da própria
prias ou apropriadas de cultura é tardio. Ele cultura é até hoje – e hoje mais do que nunca
surge em algumas áreas da Europa no século – uma questão aberta entre os estudiosos, a
XVIII, mas torna-se tema de pesquisa e teoria começar pelos próprios antropólogos.
apenas ao longo do século XIX. O romantismo 52
tem aí um lugar muito importante. Chama a atenção o fato de que dois historia-
dores europeus, muito conhecidos no Brasil,
O reconhecimento da existência e da plura- recorrem a um mesmo estudioso anterior,
lidade de culturas populares vem associado para lembrar que mais do que uma separa-
ao reconhecimento – sob as mais divergen- ção em camadas superpostas, ou mais do que
tes interpretações – de que tal fato se deve uma “dominação” relativa ou absoluta das
a desníveis sociais que acompanham a pró- culturas eruditas sobre as populares, o que
pria trajetória das sociedades autoprocla- parece ter havido sempre é uma relação de
madas como civilizadas. Mas é o interesse circularidade entre atores, autores e padrões
pelo exótico entre o ancestralmente orien- ou sistemas de e entre culturas. O autor lem-
tal e o primitivamente selvagem que sugere brado é Mickhail Bakhtin, e os historiados
a alguns pioneiros europeus o estudo das que o recordam nas páginas introdutórias de
culturas “outras” de seus próprios mundos seus respectivos livros são Carlo Ginzburg e
sociais. Foi necessário ao europeu letrado Peter Burke50. Não serão os únicos.
50 Ver o prefácio à edição italiana de O queijo e os vermes, de Ginzburg e os três primeiros capítulos da parte
1: Em busca da cultura popular, de Cultura popular na idade moderna, de Peter Burke.
Deve chamar também a nossa atenção o fato poderia classificar como passadista ou não
de que diante das intermináveis incertezas científico52. Comissões estaduais de folclore e
a respeito do tema de seu estudo, logo no a Comissão Nacional do Folclore seguem rea-
primeiro parágrafo do prólogo, Peter Burke lizando um trabalho nem sempre visível, mas
opte por definir a cultura popular pelo que ainda de extrema relevância a respeito de cul-
ela não é. turas dos povos do país.
Quanto à cultura popular, talvez seja Por volta dos anos 1960, uma nova pro-
te, como uma cultura não-oficial, a cul- no Brasil e em pouco tempo difunde-se
tura da não-elite, das “classes subalter- por uma vasta área da América Latina. É
Meireles, Mário de Andrade, Câmara Cascu- tos “daquele tempo”, a vocação para o tra-
apenas em quatro nomes dentre uma quan- em que se vive, e em que se reproduz, é a
lheres que tanto no passado, nos meados de o próprio ser humano. Ele envolve uma prá-
século XX, quanto até hoje, produziram e se- tica biologicamente coletiva e socialmente
guem elaborando estudos que apenas uma cultural. Realiza-se como uma ação social-
53 Talvez o livro em que esta ideia aparece com maior vigor, de acordo com os termos, críticas e propostas
dos anos 1960, seja o livro escrito pelo educador Paulo Freire, quando já no exílio no Chile: Pedagogia do Oprimido.
alguns casos de organização de unidades, munidade da Rocinha”, até populações dos
grupos, e até mesmo associações locais ou “fundos do sertão” ou dos ermos da Amazô-
mesmo regionais de cultura popular. Criado- nia, vemos comunidades indígenas, quilom-
res individuais e/ou corporados de modali- bolas, vazanteiras, veredeiras, de “fundo de
dades de culturas patrimoniais reconhecem- pasto”, em pouco tempo, passarem de aglo-
se, aproximam-se por iniciativa própria ou merados tão escondidos quanto possível
com diferentes tipos de ajudas “de fora” . “dos poderosos”, a comunidades populares
Aqui e ali surgem pequenas unidades sociais organizadas, a unidades sociais de teor polí-
em nome de artis- tico-cultural, desde o
tas e artesãos popu- âmbito de ação local
lares, de unidades Populações, povoações, até as redes regionais
de rituais popula- comunidades estão agora ou mesmo nacionais,
res, como as Com- formando categorias
com um pé fincado na
panhias de Santos étnicas, profissionais
terra de suas mais arcaicas
Reis ou as Associa- ou territoriais de ati-
ções de Congos e
e valorizadas “tradições” va luta por seus direi-
de Moçambiques, e o outro fixado, cada vez tos. E não apenas o
dos festejos de São mais, em tudo aquilo que é direito de salvaguar- 57
54 Entre nós uma diferença entre o “folclórico” e o “popular” nunca foi claramente resolvida. Afortunadamente,
pensamos nós. Em Buenos Aires, em uma loja de artigos musicais, Astor Piazola poderá oscilar entre música erudita
e/ou popular. Carlos Gardel e seus CDs de tango estarão na seção de música popular. Já Jorge Cafrune estará na
estante de música folclórica. Por outro lado, esta pequena passagem do músico e pesquisador Eduardo Gramani
estabelece outras fronteiras: Ao contrário do que se observa com outros instrumentos “brasileiros” que são
utilizados na música folclórica, a rabeca quase não participa da chamada “música popular”, mantendo sua atuação
restrita (com algumas exceções), às festas religiosas e folclóricas da região. Rabeca, o som inesperado, pesquisa de
Eduardo Gramani e organização editorial de Daniella Gramani, também responsável pela publicação em 2002, sem
indicação de local. A citação está na página 9, na introdução. Resta perguntar a razão pela qual o autor colocou
“música popular” entre aspas e não fez o mesmo com folclórico.
cionais das culturas populares. É quando, nas, são de vários modos re-visitadas e disto
em uma direção, é considerado como “raí- resulta uma produção acadêmica, ou não,
zes” e, em outra, como “sertanejo”, tornado bastante grande e variada.
“country”. É também a transformação for-
Finalmente, o quarto acontecimento talvez
çada e forjada de rituais populares em es-
seja o que aqui nos interessa mais de per-
petáculos, desde os “concursos de Folias de
to. Justamente quando silenciam ou falam
Santos Reis” ao espetáculo “global” do Boi
em surdina as suas vozes de protesto e de
Bumbá de Parintins. Muito já foi escrito so-
ação política – os MCPs e seus herdeiros de
bre os dois acontecimentos, que quebram o
causa – surgem, sobretudo da parte de agên-
intercâmbio entre fronteiras culturais deste
cias governamentais direta ou indiretamen-
tipo, em uma ou noutra direções, e ele me-
te vinculadas à “questão cultural”, as mais
recerá apenas uma breve lembrança aqui.
diferentes modalidades de propostas, ações
do universo das culturas populares de par- são delimitada aqui de propósito, é o objeto
te de outros estudiosos e pesquisadores que mais próximo deste escrito. Para nos aproxi-
não são folcloristas e outros interessados marmos dele teremos que realizar uma es-
em nossas “tradições populares”. Depois pécie de viagem de fora para dentro ou, se
59
das incursões francamente pioneiras de quisermos, do universal para o nacional. Ou,
sociólogos, como Maria Isaura Pereira de ainda, da UNESCO e instituições de foro in-
linhas acima, pelo menos dos anos 1970 em Cultura do Brasil. Por enquanto são encon-
Uma outra, recente e em pleno curso, é a BRANDÃO, Carlos Rodrigues e Raiane Assump-
do Salto para o Futuro. Através dela realiza- ção. A cultura rebelde. Escritos sobre a educa-
se, passo a passo e sempre de maneira ex- ção popular ontem e agora. São Paulo: Editora
perimental e transformável, a construção de e Livraria Instituto Paulo Freire, 2009.
vias de mão dupla nas relações entre a esco-
la (dentro e fora da sala de aulas) e as cultu- BURKE, Peter. Cultura popular na idade moder-
ras populares (dentro e fora das escolas). Se na. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
podemos pensar que a educação, a escola e
as salas de aula de crianças e jovens são cada FÁVERO, Osmar. Cultura popular e educação po-
vez mais (para o bem e para o mal) perpassa- pular – memória dos anos sessenta. 2ª edição.
das e invadidas pelas mais diversas influências, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.
vindas ou não de um acesso cada vez mais fácil
e perigosamente desmesurado de todas as mí- FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de 60
dias, por que não lançar mão delas e de seus Janeiro: Paz e Terra, 2005.
mais fecundos momentos e instrumentos para
estabelecer um diálogo entre “o que se apren- GRAMANI, Eduardo. Rabeca, o som inesperado.
de na escola” e “o que se aprende com a vida”? Organizado por Daniella Gramani. Produção
Cultural de Curitiba, 2002.
Um refrão popular transformado em mar-
chinha de carnaval diz que “inspiração não GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São
se aprende na escola”. Pode ser verdade. E Paulo: Companhia das Letras, 1987.
não seria, se a educação escolar aprender
a inspirar-se mais em formas e alternativas QUINTAS, José da Silva. O difícil espelho – limi-
dialógicas e criativas do que em ‘ensinar-e- tes e possibilidades de uma experiência de cul-
aprender’. No entanto – e agora muito mais tura e educação. Brasília: Edições do Patrimô-
para o bem do que para o mal – aquilo que é nio/IPHAN, 1996.
obra dos mais diferentes homens e das mais
diversas mulheres inspiradamente criadoras ROMANO, Olavo. Mestres Minas Ofícios Gerais –
de nossas culturas não deve apenas “entrar resgate cultural do artesanato mineiro – Araxá.
na escola pela porta da frente”, como deve Belo Horizonte: SEBRAE -MG, 2008.
3.5 Para o Salto, de uma educadora
Eleonora Gabriel55
Recebi um convite para festar com o progra- guerreiras, sem perder as raízes e, por isso,
ma Salto para o Futuro. Em 2011, o progra- sem perder a ternura.
ma completou vinte anos de empenho para
trazer aos educadores e ao público em geral Falo de expressões humanas que vêm da
não só experiências pedagógicas bem suce- vida, de casa, das ascendências que passam
didas, mas, sobretudo, a esperança de que, de mão em mão, de boca em boca e nos
apesar de tudo, podemos criar uma escola constituem como sabedores de algo, que se
feliz, afetiva, conectada com o global, ilu- fosse ouvido, visto, tocado, saboreado em
minando o local, seu espaço, tempo e suas seus gostos e cheiros pelas instituições de
61
gentes. ensino, o caminho do conhecimento seria
perfumado de brasilidade.
Participei de vários programas com funções
diferentes, mas sempre conversando sobre Tive a oportunidade de construir este aro-
cultura popular brasileira. ma lendo Paulo Freire, ouvindo Carlos Ro-
drigues Brandão, Cascia Frade e outros mes-
Se na minha escola de terceiro grau eu não tres acadêmicos que desenvolveram teorias
tivesse sido sensibilizada para essa sabedo- e ações inspiradas na pesquisa em campo,
ria, para essa cultura que – de tão íntima isto é, próximos às pessoas, trocando com
– nem sempre a valorizamos como tal, pos- elas saberes e emoções, que é como tento
sivelmente eu não estaria nessa festa, re- atuar.
fletindo sobre a valorização de cada um de
nós, como criadores, e o que isso pode signi- Conheci o programa Salto para o Futuro
ficar na construção de pessoas mais críticas, por causa dos convites, e as séries que tive
Grosso modo, é como se a cultura esti- Ensina o educador Carlos Rodrigues Bran-
citado) que é uma mostra de trabalhos rela- o que importa é reaprender com a arte,
em escolas e projetos sociais. Cada ano re- povo – dos vários povos do povo – outras
2011 foram mais de seiscentas. Em 2010, sentir e pensar a vida com a sabedoria e
a data coincidiu com uma prova proposta a sensibilidade das artes e das culturas
pelo município, e uma escola, que participa do povo (BRANDÃO, 2005, p.22).
Para completar, apresento a vocês um exemplo de PESQUISA SOBRE SI. Cada educador(a) pode
adaptar e construir a sua, junto com sua comunidade acadêmica. Além de estreitar laços afeti-
69
vos, a gente se entende como um ser cheio de histórias e talentos, que pertence a algum grupo
social, ou a mais de um grupo, e que é responsável por isso e pela memória que está sendo
construída agora no presente e que vai saltar para o futuro. E, sobretudo, é muito divertido
observar como somos diversos e muito parecidos também!
PESQUISA SOBRE SI
*Companhia Folclórica do Rio-UFRJ
Nome: FOTO:
E-mail e telefone:
Bairro:
Idade:
A ideia é cada um construir uma árvore ge- de migrantes de outro país ou de outro
nealógica e suas curiosidades culturais, isto estado ou cidade brasileira etc.
é, contar em texto e imagem:
No primeiro momento, a gente acha que
1) As nacionalidades e naturalidades de
não vive nada disso, mas é só querer pes-
vocês, dos pais, avós, bisavós e ir até
quisar sobre si que muita história vai brotar.
onde conseguirem pesquisar.
Tem dado bons resultados e as pessoas, ge-
ralmente, se surpreendem com as descober-
2) Lembrar e/ou perguntar o que cada
tas e se sentem criadoras de cultura. Uma
uma dessas pessoas de sua vida e você
cultura muito íntima que, de tão natural,
gostavam de brincar ou brincam.
muitas vezes, não é valorizada como tal.
3) Lembrar e/ou perguntar o que cada
uma dessas pessoas de sua vida e você Se você não estiver em contato com nin-
gostavam de dançar ou dançam. guém da família, busque amigos, vizinhos.
O importante é se divertir com a sua própria
4) Lembrar e/ou perguntar o que sua fa-
história e como ela está refletida no seu jei-
mília ou amigos faziam ou fazem nas
to de ser... ou não.
festas de Natal, Carnaval ou Junina. 70
7) Conte um talento seu.
5) Contar alguma outra curiosidade
como: alguém que faz um prato gos- 8) Fale sobre seus desejos profissionais.
toso em determinada época do ano ou
comemoração, lembrança de alguma
música ou hábito especial, um costu- Referências
me religioso ou lúdico, uma supersti-
BERNARDO, Delcio José. “Jongo: uma didá-
ção etc.
tica a caminho da escola”. In: Boletim Salto
para o Futuro - Linguagens Artísticas da Cultu-
6) Procurar encontrar, na cidade ou no
bairro onde nasceu, ou vive ou traba- ra Popular. Rio de Janeiro: TV Escola, março
FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a Liberda- MARTINS, Carlos Henrique dos Santos. “Cul-
de. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. tura popular urbana e educação: o que a es-
cola tem a ver com isso?”. In: Boletim Salto
GABRIEL, Eleonora. “Escorrego mas não caio é
para o Futuro - Linguagens Artísticas da Cultu-
o jeito que o corpo dá” - as danças folclóricas
ra Popular. Rio de Janeiro: TV Escola, março
como expressão artística de identidade e ale-
2005.
gria. Niterói: UFF. Dissertação de Mestrado
em Ciência da Arte-IACS, 2003.
71
3.6 Um Rápido Balanço
A proposta de produzir um texto que resga- • Ainda em 1999, o especial do Dia do Pro-
tasse a memória dos anos de participação no fessor: “Educação: dos jesuítas ao ano
programa Salto para o Futuro pareceu-me, 2000”;
de início, uma empresa meio nebulosa... Por
• 2001 – “O Direito à Educação”;
onde começar? De que ponto partir?
Participando do programa
Por sorte, lá estavam registradas as minhas
participações no programa, com o ano de No primeiro programa de que participei,
participação e a respectiva temática. Aí vão buscava-se proceder a uma espécie de balan-
elas: ço, significativamente empreendido no con-
texto das comemorações dos 500 anos da
• 1999 – “Porque não me ufano do meu país?” chegada dos portugueses a estas terras que
(da série “Debates Contemporâneos: outros viriam a constituir o que chamamos hoje de
500”); Brasil. Um dado sintomático: começamos a
No entanto, o próprio título da mesa: “Por Além disso, entrei, pela primeira vez em
que não me ufano do meu país?” apontava uma sala de edição. Foi interessante viven-
para uma visão meio depreciativa dessa his- ciar essas etapas tão diferentes da elabora-
tória, que servia também como um provoca- ção do programa: as longas horas de grava-
tivo, já que a proposta, a partir dessa leitu- ção e, depois, a montagem, o que implica
ra não muito complacente, era pensar nos selecionar e recortar, com base em critérios
“outros 500”, a história servindo como base diversificados e de ordem igualmente muito 73
para a projeção de um novo futuro para o diferenciada. Estes têm a ver com a estética
país, que se pretendia rompesse com a line- do programa, com a sua coerência interna,
aridade do passado. Perceber que essa histó- com os objetivos que se quer atingir, com
ria passada não é tão linear assim, resgatar o(s) público(s) a que o programa se dirige, as
propostas e experiências não muito bem su- restrições de ordem financeira e até política.
cedidas, porque tantas vezes interrompidas, A experiência se constituiu para mim, sem
pareceu-me uma contribuição imprescin- dúvida, numa significativa aprendizagem.
dível para que essa projeção de um novo e
diferente futuro tivesse alguma concretude. O resultado final foi fantástico (sem falsa
modéstia, já que o grande mérito foi do di-
O especial que se seguiu foi uma enorme retor, Otávio Bezerra). Sem que soubésse-
aventura, no sentido literal do termo. Além mos, de antemão, quem eram os demais en-
de entrevistada e meio consultora, também trevistados, creio que os depoimentos que
participei ao vivo de várias partes do pro- constituíram o fio do programa acabaram
grama. E como a opção foi gravá-lo em dis- por compor um todo coerente, que refletia
tintos locais que, de alguma forma, recrias- uma visão muito próxima do significado que
sem o ambiente da temática ou do período atribuíamos à história e dos desafios que ela
coloca para projetarmos no futuro a educa- que falei nesses programas, mas parece-me
ção que queremos. evidente a convergência dos temas. Para
garantir a efetivação do direito à educação,
O programa “rodou mundo”. Reapresenta- é preciso atender aos direitos do educador,
do várias vezes, constantemente, recebia principal instrumento de concretização do
um retorno de algum aluno, ex-aluno ou de primeiro. São direitos do educador ter um
pessoas as mais inesperadas: “vi a senhora salário digno, ter condições adequadas de
na televisão, professora”. Ia conferir e era trabalho e até garantia de formação contí-
ele, o especial dos 500 anos... Na forma de nua e permanente, condição que lhe é cons-
fita de vídeo, usei-o muitas vezes, como ma- tante e contraditoriamente cobrada.
terial didático, inclusive uma delas em uma
apresentação para uma plateia bem diversi- Considerando os mais de dez anos passados
ficada, dentro da “Mostra PUC”, seguindo- do primeiro desses programas (2001), acho
se um bate-papo, que avançamos
com outro dos entre- Para garantir a efetivação bastante no que se
vistados, o professor refere ao direito à
do direito à educação,
Antonio Edmilson educação das crian-
é preciso atender aos 74
Rodrigues, colega ças. As estatísticas
do Departamento de
direitos do educador, nos mostram que
História. principal instrumento de conseguimos co-
concretização do primeiro. locar praticamen-
O enorme sucesso te quase todas na
do programa reafir- escola, ao menos
mou-me o interesse que a história desperta, no período de escolaridade obrigatória, e
quando abordada de forma significativa, e vamos aumentando progressivamente esse
a sua importância para equacionarmos as tempo. Mas permanece o desafio de garan-
questões atuais da nossa educação. tir a aprendizagem efetiva das crianças e as
recentes avaliações do MEC confirmam que
As três últimas temáticas, lançando-lhes um há muito ainda a avançar nessa direção.
olhar retrospectivo, parecem-me constituir
um conjunto: o direito à educação, por um Qualquer melhoria nesse sentido passa ne-
lado, a formação do professor, por outro e, cessariamente pelo professor e pelo currí-
na conjunção dos dois temas, direitos de culo. Aliás, prioritariamente pelo professor,
educadores e de educandos e o currículo. até porque é ele quem operacionaliza o cur-
Por certo, não me recordo em detalhes do rículo.
Em artigo que escrevi recentemente para Fazer o difícil e fazê-lo em grande escala –
o Jornal dos Economistas, chamava atenção parece-me que a lição do mestre ainda não
para a centralidade dessa questão. Ressalta- foi aprendida e o desafio permanece, com
va, entre outras coisas, que já nem mais for- o agravante de que a urgência é ainda mais
mamos inicialmente professores na medida premente e que os resultados, em educação,
de nossas necessidades: só se fazem sentir a médio prazo.