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20 A S:

Edição Especial - 2013


Volume 3
NOS
Copyright © 2013 by ACERP/TV Escola

Diagramação e editoração
Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Imprensa
Gerência de Criação e Produção de Arte

Preparação e revisão:
Magda Frediani Martins

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

T911

TV, educação e formação de professores [recurso eletrônico] : Salto para o Futuro : 20


anos / Rosa Helena Mendonça, Magda Frediani Martins (org.). - Rio de Janeiro : ACERP ;
Brasília, DF : TV Escola , 2013.

4 v., recurso digital


Formato:
Requisitos do sistema:
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia e índice
ISBN 978-85-60972-02-3 (v. 1) - 978-85-60792-03-0 (v. 2) - 978-85-60792-04-7 (v. 3) - 978-85-
60792-05-4 (v. 4) (recurso eletrônico)

1. Educação 2. Educação - Aspectos sociais 3. TV Escola (Programa de televisão) 4. Livros


eletrônicos. I. Mendonça, Rosa Helena II. Martins, Magda Frediani. III. Ministério da Edu-
cação.

13-1708. CDD: 370.981

CDU: 37(81)

15.03.13 20.03.13 043546


Presidência da República

Ministério da Educação

Secretaria de Educação Básica

TV, educação e formação de


professores:
Salto para o Futuro
- 20 anos -

Organização

Rosa Helena Mendonça


Magda Frediani Martins
(Equipe de Educação da TV Escola)

Salto para o Futuro/TV Escola/ SEB-MEC

Rio de Janeiro/ Brasília

2013
Volume 3
Tecendo narrativas em educação
e diversidade

Sumário

Apresentação............................................................................................................. 5

Rosa Helena Mendonça e Magda Frediani Martins

3. 1 Literatura e identidade: tecendo narrativas em rodas de leitura........................ 9


Pedro Benjamim Garcia

3. 2 Entre a dor de não poder ser e a conquista da alegria de ser............................ 23


Narcimária Correia do Patrocínio Luz

3.3 Multiculturalismo, televisão e cotidiano escolar: um bornal de lembranças.... 35


Azoilda Loretto da Trindade

3.4 “Isso vem do começo do mundo!” – Dados e anotações sobre


a cultura popular ............................................................................................. 50
Carlos Rodrigues Brandão e Alessandra Fonseca Leal

3.5 Para o Salto, de uma educadora.........................................................................61


Eleonora Gabriel

3.6 Um rápido balanço............................................................................................ 72


Ana Waleska P. C. Mendonça
Apresentação

Rosa Helena Mendonça1


Magda Frediani Martins2

A publicação TV, educação e formação de pro- e nuanças de brasilidade. Nesse sentido, os


fessores: Salto para o Futuro – 20 anos come- textos que se seguem expressam com suas
mora a trajetória do programa, ao longo de perspectivas alguns dos objetivos almejados
duas décadas, destacando temas fundamen- e perseguidos pelo programa. Se a narrativa
tais para o debate sobre TV, educação e for- é o gênero primordial dos seres humanos,
mação de professores. Esta publicação, na e é por meio dela que nos constituímos e
sua versão digital, está organizada em qua- que nos relacionamos com os outros, nada
tro volumes, expressos nos seguintes eixos: melhor que dedicarmos um capítulo deste
Volume 1 - LINGUAGENS E SENTIDOS; Volu- livro, que trata dos 20 anos do programa
me 2 - ‘ESPAÇOSTEMPOS’ NOS COTIDIANOS Salto para o Futuro, especialmente às nar- 5
CURRICULARES; Volume 3: TECENDO NAR- rativas. Vale destacar que nos outros capí-
RATIVAS EM EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE; Vo- tulos as narrativas também dão o tom de
lume 4: NOVOS SABERES PARA A EDUCAÇÃO. vários textos, o que evidencia a fragilidade
de algumas classificações que, no entanto,
Este terceiro volume Tecendo narrativas em se fizeram necessárias na organização de
educação e diversidade toma como matéria os uma obra. Aos leitores deixamos o desafio
fios da memória e da experiência. Nele, os au- de recompô-las!
tores narram, por diferentes vieses teóricos,
práticas que desenham currículos voltados No primeiro texto do terceiro volume desta
para uma sociedade multicultural e pluri- coletânea, Pedro Benjamim Garcia3 analisa
étnica. Bordados são, assim, os caminhos e a inter-relação entre literatura e identidade,
preenchimentos de uma escola com cores no contexto de rodas de leitura. Essa e outras

1 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC). Doutoranda no PROPED- UERJ.
Organizadora da publicação.
2 Professora, escritora e revisora de textos do programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC). Organizadora
e revisora da publicação.
3 Pedro Benjamim Garcia participou de inúmeros debates no programa Salto para o Futuro e foi consultor
da série Oralidade, memória e formação, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) no ano de
2006.
experiências com oralidade e leitura estive- institucionalizadas que calam sobre a identi-
ram presentes na série Oralidade, memória e dade profunda de crianças e jovens descen-
formação. No texto, o autor ressalta, em es- dentes de africanos/as”. Os relatos selecio-
pecial, as rodas com adultos alfabetizandos, nados ocorreram no âmbito do Programa
a partir de uma experiência realizada em um Descolonização e Educação – PRODESE, que
curso supletivo noturno em um colégio da tem como proposta “promover linguagens
Zona Sul do Rio de Janeiro (RJ). No relato educativas que estabeleçam uma relação di-
dessa experiência gratificante, o autor res- nâmica entre os valores sociocomunitários
salta que: “No processo de realização das ro- da tradição afro-brasileira e os códigos da
das de leitura, é possível incentivar a busca sociedade oficial, exigindo e assegurando,
de maior autonomia para pessoas que, em nessa relação, o direito à identidade própria
uma sociedade grafocêntrica, não dominam da nossa população”. A autora destaca, em
a leitura e vivem em condições adversas, em especial, a primeira experiência de Educa-
uma metrópole como o Rio de Janeiro”. Pe- ção Pluricultural no Brasil, conhecida como
dro Benjamim Garcia comenta, ainda, que: Mini Comunidade Oba Biyi (1976-1986), que
“Nas experiências com rodas de leitura, bus- promoveu com muito êxito a educação de
co a ‘gratuidade’ da leitura, o ler pelo prazer crianças e jovens vinculados a uma comuni-
de ler, bem como o desejo, nem sempre ex- dade afro-brasileira na Bahia, a Ilê Axé Opô 6

plícito, de que esta atividade possibilite que Afonjá.


as pessoas falem e coloquem para fora suas
fantasias e necessidades”. Azoilda Loretto da Trindade5 expõe e discute
inquietantes questionamentos, como este:
Narcimária Correia do Patrocínio Luz4 se “O reconhecimento da diversidade como
reporta à sua participação no programa Sal- foco, como base, não elimina as distorções
to para o Futuro e traz, em seu texto, “um causadas pelas relações de dominação e de
mosaico de ilustrações”, visando aproximar hierarquização das diferenças. Reconhecer
o leitor de “reflexões importantes envol- as diferenças não significa respeitá-las, se-
vendo nossas comunidades afro-brasileiras, quer saber ou querer aprender a lidar com
ajudando-nos a pensar as práticas escolares elas de modo dialógico e inclusivo”. Segun-

4 Narcimária Correia do Patrocínio Luz participou como autora de textos e debatedora das séries Oralidade,
memória e formação e Currículo, relações raciais e cultura afro-brasileira, ambas com veiculação no programa Salto
para o Futuro/TV Escola (MEC) no ano de 2006.
5 Azoilda Loretto da Trindade foi consultora da série Multiculturalismo e educação (2002) e do documentário
Africanidades brasileiras e educação, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) no ano de
2008. A autora participou ainda de inúmeros debates, em especial, nas séries envolvendo questões étnico-raciais
nos currículos..
do a autora, seu texto “se configura num a própria trajetória das sociedades auto-
bornal – com algumas cenas, lembranças, proclamadas como civilizadas”. Os autores
reflexões que foram constituindo uma tra- reportam-se aos estudos dos primeiros fol-
jetória de uma educadora imersa nas ques- cloristas, como Cecília Meireles, Mário de
tões da multiculturalidade, em diálogo com Andrade, Câmara Cascudo e Alceu Maynard
vários campos de conhecimento, sobretudo, de Araújo, que com as suas pesquisas pio-
no caso deste texto, relacionados à educa- neiras mostraram as criações culturais de
ção e à televisão”. Neste “bornal”, Azoilda diversas regiões do Brasil. Discutem, ainda,
Trindade traz questões abordadas no pro- os movimentos de cultura popular dos anos
grama Salto para o Futuro e apresenta múl- 1960, como as experiências inovadoras de
tiplas discussões sobre os temas multicul- educação, o alvorecer do cinema novo no
turalismo, diversidade, interculturalidade, Brasil, o teatro do oprimido e as iniciativas
pluralidade, apontando para a necessidade dos centros populares de cultura. Com muita
de “compreender a nossa humanidade tão propriedade, também criticam a invasão da
ampla e tão diversa que, hoje, parece ter mídia e da “massa” sobre as qualidades ar-
uma visibilidade questionadora, que grita e tísticas tradicionais das culturas populares e
afirma diferenças, singularidades, coletivi- preconizam a necessidade da “construção de
dades, muitas vezes silenciadas, ocultadas, vias de mão dupla nas relações entre a escola 7

invisibilizadas”. (dentro e fora da sala de aula) e as culturas


populares (dentro e fora das escolas). Esses
Carlos Rodrigues Brandão6 e Alessandra temas sobre cultura popular e patrimônio
Fonseca Leal abordam a temática da cul- imaterial e alguns outros como a educação
tura popular e do patrimônio cultural imate- ambiental estiveram presentes em debates
rial numa dimensão sociopolítica, tendo em no programa Salto para o Futuro.
vista que “o reconhecimento da existência
e da pluralidade de culturas populares vem Eleonora Gabriel7 relembra suas diversas
associado ao reconhecimento – sob as mais participações no Salto para o Futuro, salien-
divergentes interpretações – de que tal fato tando sua alegria por ter tido a oportunida-
se deve a desníveis sociais que acompanham de de falar das “expressões multiculturais

6 Carlos Rodrigues Brandão foi consultor do documentário Cultura popular e educação, com veiculação
no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) no ano de 2007, tendo ainda contribuído com entrevistas e
depoimentos em outras oportunidades.
7 Eleonora Gabriel foi consultora da série Linguagens artísticas da cultura popular, com veiculação no
programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) em 2005. Participou também de séries voltadas para as diversas
expressões artísticas da cultura brasileira, em especial a dança.
que colorem os jeitos de ser, pensar e agir ficante experiência atuando como consulto-
do povo brasileiro”. Ressalta, ainda, “a ne- ra na edição especial Educação no Brasil: dos
cessidade de falar de inclusão, de diversida- jesuítas ao ano 2000: “Foi interessante viven-
de, de educar para a diferença (...) abrindo ciar essas etapas tão diferentes da elabora-
as possibilidades de trançar arte e cultura ção do programa: as longas horas de grava-
popular na educação, pensando em identi- ção e, depois, a montagem, o que implica
dades e cidadania brasileiras”. Entre outras selecionar e recortar, com base em critérios
reflexões, a autora comenta: “Difícil saber diversificados e de ordem igualmente muito
quem somos se não aprendemos na escola diferenciada. Estes têm a ver com a estética
o valor cultural e artístico de nossa forma- do programa, com a sua coerência interna,
ção, que reuniu, e continua reunindo, vá- com os objetivos que se quer atingir, com
rios jeitos, conhecimentos e modos de fazer. o(s) público(s) a que o programa se dirige
Somos no plural, precisamos cada vez mais (...). A experiência se constituiu para mim,
criar modos de educar para a diferença, para sem dúvida, numa significativa aprendiza-
a diversidade de nossa vida, nossa família, gem”. A autora ressalta, ainda, a importân-
nossos alunos, nossa escola, nossa cidade, cia da participação de “uma historiadora da
nosso estado e país”. educação, que tem por ofício a reconstrução
incessante do passado, num programa que 8
Ana Waleska P. C. Mendonça8 em forma de se intitula Salto para o Futuro”.
depoimento, comenta sobre os desafios de
produzir um texto que teve como proposta
resgatar a memória dos 20 anos do progra-
ma Salto para o Futuro. Ela se reporta às As organizadoras
séries e especiais de que participou, como
educadora e historiadora, e sobre sua grati-

8 Ana Waleska P. C. Mendonça foi consultora do documentário Educação no Brasil: dos jesuítas ao ano 2000,
com veiculação no Salto para o Futuro, no ano de 2000. Como debatedora, participou de diversas séries do Salto,
citadas no início de seu texto.
3. 1
LITERATURA E IDENTIDADE: TECENDO
NARRATIVAS EM RODAS DE LEITURA
Pedro Benjamim Garcia9

Apresentação: Rodas de leitura e formação

A educação busca formar pessoas. Mas... o nhecimento que nasce do coletivo (no caso,
que é formar? Fala-se em formação com o a roda, onde o saber circula). Para que essa
pressuposto de que o seu significado é idên- construção de conhecimento se dê é neces-
tico para todos, o que nem sempre é o caso, sário ter a capacidade de escutar, dialogar e
tendo em vista que trabalhamos com valo- negociar significados. Aprendizado possível
res, área pantano- de ser realizado nas
sa onde o consenso rodas de leitura, que
Como educador, busco a
passa longe. Talvez privilegiam a escuta,
autonomia do educando. A 9
se possa afirmar o diálogo e a negocia-
que, quando fala-
pedagogia desta proposta ção de significados.
mos em Educação, é se explicita – no meu caso –
a transformação que em roda de leitura. Escuta porque tenho
buscamos, transfor- que ouvir o que o
mação que não está outro (ou os outros)
isenta de conformis- têm a dizer; diálogo
mo e deformação. porque, reagindo a essa fala, coloco minha
opinião sobre o que está sendo debatido; ne-
Como educador, busco a autonomia do edu- gociação de sentido, porque nem sempre há
cando. A pedagogia desta proposta se ex- consenso acerca dos temas que estão sendo
plicita – no meu caso – em roda de leitura. tratados, podendo-se chegar a um denomi-
Através desta experiência busco ligar sujeito nador comum – em alguns casos por mútuas
e conhecimento, o que significa que o sujei- concessões – ou à manutenção da divergên-
to não está apartado da construção do co-

9 Professor do Mestrado em Educação da Universidade Católica de Petrópolis. Formado em Filosofia pelo


Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ; mestre em Educação pela PUC/RJ e doutor em Antropologia Social
(Museu Nacional/UFRJ). Pesquisador do CNPq, desenvolve trabalhos ligados à formação do leitor na universidade e
em favelas do Rio de Janeiro.
cia (cada um mantendo o seu ponto de vista, posta dos programas, que tiveram como fio
antagônico ao do outro ou outros). condutor a oralidade e a memória, em suas
diversas dimensões: cultural, social e históri-
Esta é uma experiência muito gratifican-
ca. Os artigos escritos para esta série foram
te, tanto para quem dela participa quanto
retomados no livro Educação e identidade: for-
para o leitor-guia que anima o processo de
mação, oralidade e memória, organizado por
conhecimento, como expressa uma profes-
mim e por Maurício Castanheira (2007).
sora: “É preciso que nós, educadores, pro-
porcionemos aos nossos alunos um contato Das experiências que tenho desenvolvido com
prazeroso com a escrita e leitura, para que rodas de leitura, destaco neste texto uma par-
elas possam se constituir numa fonte de in- ticularmente significativa por se tratar de um
formação, prazer e reflexão. Nesse sentido, público de adultos alfabetizandos, oriundos de
o curso representou mais um passo para uma cultura eminentemente oral.
que (re)descobríssemos o mundo da leitura
e por ele nos apaixonássemos”.
1. Introdução
Foi a partir dessa mesma perspectiva que,
ao ser convidado para a consultoria da série Neste texto, analiso a inter-relação entre li-
teratura e identidade10, no contexto de rodas 10
Oralidade, memória e formação (2006), no pro-
grama Salto para o Futuro, apresentei a pro- de leitura11 com adultos alfabetizandos, a

10 Segundo Andre Green (GREEN apud STRAUSS, 1981. p. 88), várias ideias se agrupam em torno do termo identidade.
Em primeiro lugar, a identidade está ligada à noção de permanência que escapa às mudanças que possam afetar o sujeito
no decorrer do tempo. Em segundo lugar, assegura a existência do que está separado, permitindo circunscrever a unidade,
indispensável para se fazer distinções. Por último, a identidade é uma das relações possíveis entre dois elementos, através
da qual se estabelece a semelhança absoluta que reina entre eles, permitindo reconhecê-los como idênticos. Estas três
características são solidárias: constância, unidade e reconhecimento do mesmo.
Ainda em relação à identidade, Kobena Mercer afirma que a mesma “se transforma numa questão quando está em crise,
quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é movido pela experiência da dúvida e da incerteza” (MERCER apud
HALL, 1999).
Segundo Stuart Hall,
(...) foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que contribuiu para este ‘supermercado cultural’. Dentro
do discurso de consumismo global, as diferenças e as distinções culturais que até então definiam a identidade, estão reduzidas a
uma espécie de língua franca internacional ou de moeda global, à qual podem traduzir-se todas as tradições específicas e todas
as identidades diferentes (HALL, 1999).
Esta tendência a uma homogeneização cultural, vinculada por um mercado global que invade a privacidade das casas
através de aparatos de tevê, constrói um imaginário coletivo por meio de um chamado ao consumo que alcança quase
toda a aldeia global.
11 Uma roda de leitura se caracteriza, como diz o nome, por um círculo ou semicírculo, reunindo um determinado
número de pessoas em torno do leitor-guia.
O leitor-guia lê o texto em voz alta e, em geral, o distribui para que os participantes da roda acompanhem sua
leitura. Dinamizar o grupo, fazer com que as pessoas se expressem e postulem, de forma aberta e dinâmica, suas questões,
além de conhecimentos básicos em torno do que é lido, são qualidades que se espera do leitor-guia.
O número de participantes não deve ser tão reduzido que não permita uma variedade de opiniões, nem tão
extenso que se perca a possibilidade de distinguir quem é quem.
O tempo de duração pode variar de uma a uma hora e meia, dividido entre a leitura e o debate; sendo uma hora,
dez a quinze minutos de leitura me parece um tempo razoável, ficando os restantes 45 a 50 minutos para o debate.
O local deve ser fechado, espaçoso, despojado e silencioso.
partir de uma experiência realizada em um instituído – pouco explora a gratuidade do
curso supletivo noturno em um colégio da saber e o imaginário dos alunos.
Zona Sul do Rio de Janeiro.
Apesar de esta desvinculação ter se concre-
Nesse curso, as rodas de leitura foram re- tizado, o fato de a experiência ocorrer no

alizadas durante um semestre, duas vezes interior de uma instituição de ensino cau-
sou o estranhamento de um acontecimento
por semana (segundas e quartas-feiras),
(rodas de leitura com textos literários) fora
das 18h30min às 19h30min, com cerca de
do lugar (escola). Busquei o debate e a tro-
20 alunos, dos quais doze (4 homens e 8
ca de ideias, tanto quanto possível, fora da
mulheres) permaneceram do início ao fim, hierarquia professor/aluno, mas acabou se
sendo que os demais apareciam esporadi- impondo a imagem do professor e não do
camente. leitor-guia (como eu desejava).

As mulheres participantes eram, em sua


maioria, empregadas domésticas, sendo 2. Formação do leitor e
uma governante e outra manicure; os ho- identidade
mens eram faxineiros e porteiros de edifício,
Na inter-relação entre leitura e formação do
sendo um biscateiro e um outro com ativi- 11
leitor está implícita a construção da identi-
dade desconhecida. dade. Isso porque o processo de formação
do leitor incide na subjetividade de cada lei-
Exceto uma das mulheres, todos eram nor- tor-ouvinte (que é o caso da roda de leitura,
destinos. Este evento – realizado antes do onde se privilegia a leitura oral de um texto).
início das aulas – não fazia parte do currícu-
lo do colégio, sendo gratuito e de presença Exemplar, neste sentido, é a pesquisa de
não obrigatória. Carlo Ginzburg: O queijo e os vermes – O co-
tidiano e as ideias de um moleiro perseguido
A proposta de realizar estas rodas de leitura pela Inquisição. Chama a atenção, nessa in-
partiu do meu interesse em tentar compre- vestigação, como o moleiro Menocchio cria

ender a inter-relação da leitura literária com uma cosmogonia a partir de suas leituras e
observações cotidianas. No caso – como res-
a formação do leitor e, consequentemente,
salta Ginzburg – o importante não é tanto o
com a sua identidade.
que Menocchio lê, mas como lê, o que faz de
suas leituras e como as transforma em con-
No contato com o colégio, fiz questão de vicções próprias. Em síntese, como ele é por
desvincular as rodas de leitura do aprendiza- elas formado, como se transforma enquan-
do escolar dos alfabetizandos. Isso porque, to sujeito, vale dizer, como vai constituindo
no meu entender, a escola – com o seu saber sua identidade.
Nas rodas de leitura, busquei compreender chamar João, José, Teresa, Maria, Severino,
as redes de significados enunciados a partir Isaura etc. Esta fala inicial possibilita que to-
dos pontos de vista do outro, no caso, os alu- dos comecem a se conhecer e a estabelecer,
nos adultos em processo de alfabetização. entre si, um nível de sociabilidade.

Janaina Amado e Marieta de Moraes Ferreira, Como quase todos têm baixa autoestima,

na apresentação do livro que organizaram, esta exposição e o intercâmbio de nomes

Usos e abusos da História Oral, chamam a fazem com que os participantes da roda ini-

atenção para a possibilidade de a ciem um processo de reconhecimento mú-


tuo que os fortalece coletivamente.
(…) história oral esclarecer trajetórias
individuais, eventos ou processos que às As razões de cada um se chamar Y, X ou Z são

vezes não têm como ser entendidos ou bastante variadas. Artista de cinema, santo

elucidados de outra forma; são depoi- de devoção, jogador de futebol, nome do pai

mentos de analfabetos, rebeldes, mulhe- ou da mãe são comuns como referência.

res, crianças, miseráveis, prisioneiros,


loucos... (FERREIRA; FIGUEIREDO, 1996, Ainda acerca do nome próprio, busco na li-
p. XIV). teratura a associação do nome com a identi-
dade, como no caso do poema “Morte e vida
Parto do pressuposto de que as narrativas severina”12, de João Cabral de Melo Neto, 12
são formas de autoria. Se existe capacidade em que o personagem busca, a partir do seu
de narrar, de inventar, de projetar a imagina- nome, dizer quem é.
ção, existe reinvenção de si mesmo.
É interessante perceber, nos depoimentos, o
gostar e o não gostar do seu nome. E as ra-
3. Nome próprio e identidade
zões são várias. Em alguns casos, o nome se
Iniciei o primeiro encontro com o “exercício “encaixa” a quem assim se chama; em outros,
do nome”, que consiste em cada participan- o nome estranho foi aos poucos assimilado
te contar a origem do seu nome. O objetivo “e hoje, sim, eu gosto”. Há, também, aqueles
é fazer com que o alfabetizando, que che- que rejeitam seu nome porque está associado
ga envergonhado ao curso de alfabetização, a uma pessoa desagradável ou porque não lhe
diga quem é, de onde veio, a razão de se parece apropriado ao “seu jeito de ser”13.

12 Interessante, no início do conhecido poema de João Cabral, “Morte e vida Severina”, é a busca de
identificação do seu personagem. Primeiramente pelo nome, que é a forma primeira e mais explícita de ser. Mas
esta tentativa falha. E falha porque os severinos são iguais não apenas no nome, mas “em tudo na vida”. Diante
disto só resta ao Severino do poema apontar-se a si mesmo como aquele que fala, distinguindo-se dos demais. É
que a questão da identidade não é fácil. No caso de Severino é a busca de afirmar-se a si mesmo para o outro que o
escuta – outro que é absolutamente necessário para a afirmação do eu.
13 Para falar do inconformismo quanto ao nome, indico o poema “A Antonin Artaud”, de Mário Cesariny
(CESARINY, 1999, p. 50-51).
Seja como for, o nome é sempre um parâme- 4. Leitores em formação
tro significativo na identidade de cada um.
É possível incentivar a formação de leito-
Não saber a origem do mesmo, como ocorre
res de camadas populares, em processo de
com alguns poucos, pode ser significativo.
alfabetização, a partir da literatura? O al-

Este tipo de procedimento costuma desinibir fabetizando, que tem um domínio precário

os mais tímidos, porque os relatos pessoais, da leitura, “lê” através do outro, no caso, o

em função do lugar de origem e da classe leitor-guia.

social, fazem com que as histórias tenham


E aqui faço um parêntesis para lembrar de Jor-
muito em comum.
ge Luis Borges falando da sua cegueira, em um
poema que reproduzo em seu início: “Nadie re-
Posteriormente são lidos, nas rodas, textos
baje a lágrima o reproche./ Esta declaración de
de ficção e poesia. Neles os participantes
la maestria/ De Dios,
encontram (ou pro-
que com magnífica
duzem) pontes onde
É possível incentivar a ironia/ Me dio a la
encontram elemen-
formação de leitores de vez los libros y la no-
tos de identificação
que lhes permitem camadas populares, em che” (BORGES, 1977,
13
p. 119).
se posicionar em re- processo de alfabetização, a
lação ao que é lido. partir da literatura?
Alberto Manguel,
um dos leitores de
Para que isto ocor-
Borges cego, relata a
ra, é importante o
sua experiência:
desempenho do leitor-guia, que é quem lê
os textos. É ele quem anima o grupo, incen- Antes de encontrar Borges, eu lia em
tivando o uso da palavra, fazendo perguntas silêncio, sozinho, ou alguém lia em voz
acerca do que foi lido e, quando solicitado, alta para mim um livro de minha esco-
dando explicações acerca do autor e do texto. lha. Ler para um cego era uma experiên-
cia curiosa, porque, embora com algum
Em todo este processo de rodas de leitura esforço eu me sentisse no controle do
coloca-se a busca de maior autonomia para tom e do ritmo da leitura, era todavia
pessoas que, em uma sociedade grafocêntri- Borges, o ouvinte, quem se tornava o se-
ca, não dominam a leitura e vivem em con- nhor do texto. Eu era o motorista, mas a
dições adversas, em uma metrópole como o paisagem, o espaço que se desenrolava,
Rio de Janeiro. pertenciam ao passageiro, para quem
não havia outra responsabilidade senão Busco na memória os leitores em processo
a de apreender o campo visto das jane- de alfabetização, para quem eu lia textos
las. Borges escolhia o livro, Borges fazia- em rodas de leitura, tentando estabelecer
me parar ou pedia que continuasse, Bor- conexões com a experiência de Manguel.
ges interrompia para comentar, Borges Se nesta relação o poder (de condução) es-
permitia que as palavras chegassem até tava com Borges, na minha experiência era
ele. Eu era invisível. eu que conduzia a leitura. Conduzia como
quem segura a bicicleta de um aprendiz que
E mais adiante: necessita andar sozinho. Neste processo, a
(...) ler em voz alta para ele textos que habilidade de quem ensina é segurar a parte
eu já lera antes modificava aquelas lei- traseira da bicicleta sem que o futuro ciclis-
turas solitárias anteriores, alargava e ta, que olha para frente, perceba se o veículo
inundava minha lembrança dos textos, está (ou não) seguro por outras mãos.
fazia-me perceber o que não percebera
então, mas que agora parecia recordar, Este processo não é linear. Há um segurar

sob o impulso da reação dele (MAN- e um soltar que depende da sensibilidade

GUEL, 2004, p. 33). de quem conduz o processo (o leitor-guia) e


da maior ou menor perícia do aprendiz que, 14
Esta imagem de um cego ilustre, um dos sem se dar conta, pouco a pouco vai assu-

maiores escritores do século XX, apaixona- mindo a condução do veículo, ou seja, vai

do por livros, leitor voraz que perde a visão, aprendendo a ler.

me veio à mente por causa do meu contato


com alfabetizandos que, frequentemente, Busco que o outro se forme como leitor (con-

utilizam a metáfora da cegueira para falar dutor), utilizando a literatura para incentivar

da sua pouca capacidade para ler. o seu desejo de ler e possibilitando, desta for-
ma, que adquira o gosto pela leitura.
De um lado Borges, alguém que leu intensa-
mente e procura olhos para seguir lendo; de Mas qual o ponto em comum e a diferen-

outro, os que buscam o universo da leitura de ça entre sujeitos tão discrepantes: Borges e

forma tateante, como se a luz fosse escassa. meus leitores em processo de formação?

Imagino a emoção de ser leitor de Borges e Ambos leem através de um outro. A dife-

entendo porque, mesmo cego, era o escritor rença é que Borges já percorreu inúmeras

(passageiro) que conduzia o motorista (lei- vezes o caminho da leitura, sabe as trilhas,

tor), fazendo-o modificar suas “leituras soli- embora não mais possa percorrê-las sozi-

tárias anteriores”. nho; enquanto os “meus” leitores, embora


disponham de olhos para ler, decodificam tivas, os acontecimentos cotidianos e a sua
precariamente o que veem. Por isso Borges, própria maneira de ser e atuar, apontando
senhor sem olhos, pode fazer correções, im- para o imprevisível, explicando o improvável
por ritmos, sugerir interpretações. Em cer- e antecipando o porvir.
to sentido, instruir aquele que lê, porque já
sabe os meandros da leitura. Nas experiências com rodas de leitura, bus-
co a gratuidade da leitura, o ler pelo prazer
Minha intenção era fazê-los adquirir quali- de ler, bem como o desejo, nem sempre ex-
dades borgeanas de corrigir, impor ritmo e plícito, de que esta atividade possibilite que
interpretar. Objetivo ambicioso que vale a as pessoas falem e coloquem para fora suas
pena perseguir mesmo sabendo, como dis- fantasias e necessidades. Enfim, o desejo da
se Borges – e eu cito de memória – que “os emergência da fala produzindo autoestima
bons leitores são cisnes ainda mais negros e pela reconstituição de uma identidade frag-
singulares do que os bons autores”. mentada: de um lado, a negação de si intro-
jetada socialmente e, de outro, a busca de
Em um caso e outro, seja o leitor-guia ou o um eu a ser reconstruído. Ilustrativo desse
leitor guiado, aquele que lê é, quase sem- processo de reconstrução do eu é a disser-
pre, um leitor apaixonado por determinados tação de Maria do Socorro Martins Calhau, 15
textos. E são esses textos que em geral lê, que coloca em primeiro plano a questão da
buscando passar para o outro a sua própria identidade em um trabalho de alfabetização
emoção. O que não significa que terá êxito. com operários da construção civil. A mudan-
Mas é, digamos, condição mínima para que ça do comportamento desses operários no
tenha algum sucesso. decorrer do curso, visível no cuidado com a
higiene pessoal e no vestir, ficou mais evi-
E nesta relação entre motorista e passagei- dente quando um deles sentenciou: “Eu tô
ro, para usar a metáfora de Manguel, as tro- virando outro” (CALHAU, 1994, p. 52).
cas se sucedem.
Esta transformação, quando ocorre, é lenta
e se processa no decorrer da experiência. A
5. Da leitura e do imaginário
conquista da fala é a conquista primeira. De
Imaginário é um termo que abrange inúme- início, diziam que não sabiam falar ou que o
ras definições, seja no campo da Filosofia, que falavam não tinha importância. Pouco
seja na área da Psicologia. No que concerne a pouco foram se desinibindo e, a partir dos
a este texto, seu entendimento está restrito textos lidos em voz alta, faziam comentários
à forma como cada um interpreta as narra- e passavam a contar histórias.
E aqui é interessante nos reportarmos ao co- experiência. Penso que imaginava que algo
nhecido texto de Walter Benjamin, “O narra- tão trivial quanto contar histórias deveria
dor”, em que ele afirma: resultar em nada. Muito menos se depen-
desse dele, que afirmava “não dar muito pra
Cada vez mais rara vai se tornando a pos- essas coisas de contar história” e só estava
sibilidade de encontrarmos alguém ver- ali “pra aprender alguma coisa”.
dadeiramente capaz de historiar algum
evento. Quando se faz ouvir num círculo o No entanto, Júlio permaneceu no grupo até o
desejo de que seja narrada uma historieta final e contava histórias, como a que segue:
qualquer, transparecem, com frequência
cada vez maior, a hesitação e o embaraço. As histórias da gente é negócio de pesca.
É como se nos tivessem tirado um poder Porque lá onde eu morava era mais de
que parecia inato, a mais segura de todas pesca. Eu sou da Paraíba, mas fica perto
as coisas seguras, a capacidade de tro- de Cabideiro, tudo litoral de praia. Eles
carmos pela palavra experiências vividas. contavam histórias. Mas era... Era histó-
Uma das causas desta situação é óbvia: as ria de lobisomem, histórias de pescador.
experiências perderam muito do seu valor. A gente saía às duas horas, tá entenden-
E parecem que assim continuam perdendo do, e aí no caminho ia sempre contan- 16
(BENJAMIN, 1993, p. 197). do. Passava em frente ao cemitério, e a
gente contava muitas histórias, mas eu
Walter Benjamin nos fala do desgaste nas não me lembro. Eles inventavam, men-
relações humanas pela falta de intercâmbio tia só pra fazer medo na gente. Pescador
das experiências vividas. Se isto ocorre no antigo sabia que a gente tinha medo de
cotidiano, o mesmo não ocorria nas rodas passar no cemitério. No mar às vezes o
de leitura. Nelas, pelo menos na experiên- barco virava, a gente tinha que arrumar
cia que estou narrando, os alfabetizandos a corda. Um sofrimento danado. Eu era
falavam de si mesmos e contavam casos, pescador e tirador de coco. Lá tem um
estimulados pelas histórias da própria roda. proprietário dos coqueiros e aí vem um
Histórias das quais, inicialmente, eles des- operário pra tirar o coco e dá um real
confiavam, questionando o sentido das mes- para cada pé de coqueiro. Às vezes fica
mas. Como na pergunta de Júlio: “Isso está um de cabeça pra baixo e tem que ir um
servindo para alguma coisa? Tá dando certo? lá tirar (MACHADO, 1999, p. 67).
Se depender de mim vai ser ruim” (MACHA-
DO, 1999, p. 67). É como se ele delegasse ao É importante frisar que quase todos con-
leitor-guia a avaliação do significado desta tavam histórias, e alguns muito bem, com
detalhes, com humor, dando vida aos per- ‘Ontonha’. Então tenho que dizer: não é On-
sonagens. tonha, é Antônia” (MACHADO, 1999, p. 47-
48). O grupo ri, acha engraçado e entende a
Superado o momento do uso espontâneo da diferença. Diferença de quem “conquistou o
fala, é importante focalizar o como se fala. Sul”, “sabe o seu lugar”, e não permite que
Aí também está presente a questão do po- Ontonha substitua Antônia.
der, da discriminação, que se evidencia tan-
to na pronúncia, que indica a proveniência Ela não escondia o seu lugar de origem, mas
regional, quanto no ziguezague, de idas e buscava evidenciar a conquista de uma po-
vindas e repetições, que muitas vezes ocorre sição que a diferenciava dos que permane-
na fala popular. A reprimenda de D. Quixote ceram em sua terra natal. O fato de traba-
a Sancho é, neste sentido, exemplar: lhar como doméstica na casa de uma família
abastada reforçava o seu status. Como pare-
Se dessa maneira contas teu conto, San- cia herdar as roupas da patroa, apresentan-
cho, repetindo duas vezes, não acaba- do-se como alguém de classe média, a mu-
rás em dois dias; conta seguidamente, e dança ficava ainda mais ressaltada.
conta-o como homem de entendimento,
e se assim não for, não digas nada (CER- O “não saber falar” expressa uma diferença 17
VANTES apud FRAGO, 1993, p. 20). percebida pelas pessoas das camadas popu-
lares em relação a um outro que “sabe fa-
Sancho acaba impondo a sua maneira de lar” porque detém a fala legítima. Como não
contar, que é a única que conhece e difere têm esta competência, sentem-se inferiori-
da fala de D. Quixote, próxima da legitimida- zadas e calam-se.
de da norma culta.
Júlio, que veio para o Rio de Janeiro aos 21
Esta questão de poder, que se manifesta anos, dizia não sentir saudade de sua terra.
através da fala, do que se fala e do como se Achava que era “mil vezes melhor” sua vida
fala, pode sofrer discriminação dentro do atual. Lá, dizia ele, continuaria “pescando e
próprio grupo de alunos de origem nordes- tirando coco”. Em certo sentido compara a
tina. O sotaque, que indica a proveniência mesmice de algo que se repete e “não tem
regional, no caso o Nordeste, é rejeitado e futuro” com a dinâmica da grande cidade
substituído – até onde é possível – pelo jeito que, com todas suas mazelas, oferece a pos-
carioca de falar. sibilidade de “melhorar” de vida.

Antônia explicita isto de forma clara, drama- Um dia, brincando com Júlio, perguntei se
tizando: “Quando volto à minha terra ouço: suas histórias eram de “pescador”. Histórias
de pescador, aqui no Brasil e não sei se em a escola ensina e tem pouco ou nenhum es-
outros lugares do mundo, são tidas como paço para o sobrenatural, o mágico, o que
mentirosas. Em geral, é voz corrente dizer foge à racionalidade, ao pragmático.
que contam “vantagens”, aumentando os
Quebrada a resistência inicial, as histórias
fatos, seja em relação ao que pescaram ou
da terra de origem surgiram em profusão,
a aventuras que tenham passado no mar.
como neste exemplo:
Respondeu que não, que eram histórias ver-
dadeiras.
Eu morava no Norte com os meus pais.
À noite, um dia, eu e minha irmã ouvi-
Embora se esquivasse de contar histórias,
mos um barulho, quando abrimos a por-
apontando para outra pessoa do grupo, Jú-
ta para ver o que era, não vimos nada.
lio acabou contando várias (como a narra-
Quando nós acordamos, no dia seguinte,
da anteriormente). Não só contava como
os bichos estavam amarrados ou ma-
lia e, no final do curso, comentou: “Quando
chucados e ninguém sabia explicar o que
eu peguei o hábito de ler, eu não parei mais
tinha acontecido. Todo mundo fala lá no
não. Todo o dia eu tô lendo alguma coisa”
Norte que foi o lobisomem que fez isso.
(MACHADO, 1999, p. 69).
Meu pai fez uma armadilha e viu o lobi-
18
somem. Há pouco tempo atrás liguei pra
minha terra pra saber notícias. Meu pai
6. Histórias verdadeiras
falou que o lobisomem estava preso. Ele
porque inventadas
me disse que era metade homem, me-
Guimarães Rosa, em A hora e a vez de Augus- tade bicho. Uma coisa horrorosa. (MA-

to Matraga, afirma que a sua história não CHADO, 1999, p. 72).

contém mentiras porque é tudo invenção.


Esta história foi ouvida por todos e ninguém
Inventar, neste sentido, se torna algo emi-
demonstrou incredulidade. Pelo contrário, ou-
nentemente criativo.
tros se apressaram a contar casos sobrenatu-

Uma observação que registrei, nesta expe- rais. Luzia também contou o seu, mas fez uma

riência, foi a forma como as pessoas origi- ressalva: “isso acontece muito é no interior, eu

nárias do Nordeste tratavam as histórias acho que aqui na cidade grande não tem essas

passadas em áreas rural e urbana. Na área coisas não” (MACHADO, 1999, p. 72).

rural, o mágico, a oralidade; na área urbana,


Distinguindo o que ocorria no campo e na ci-
a escrita, a racionalidade. Ou, como sinteti-
dade, Luzia mantinha as suas crenças e não
za Paul Zumthor: “as cidades são filhas da
desdenhava os acontecimentos do passado.
escrita” (ZUMTHOR, 1993, p. 91). Escrita que
7. História lida e história crito, a escritura permanece escondida

contada (ZUMTHOR, 1993, p. 91).

Das rodas de leitura participavam, de vez É interessante perceber o comportamento


em quando, escritores e contadores de his- diferenciado dos alunos, na performance do
tórias. Líamos os textos do autor convidado, contador e na leitura em voz alta de um tex-
o que despertava, nos participantes da roda, to escrito. No primeiro caso, se a experiên-
a curiosidade de como produziam seus tex- cia é bem sucedida, todos olham fascinados
tos, detalhes de situações e personagens, se para quem conta, como que se perdendo,
o fato narrado era verídico etc. se enredando na narrativa; já na leitura, por
mais interessante que seja, o envolvimento
O contador de histórias era muito apreciado é menor. Pode-se observar, nesta situação,
pelo grupo. Segundo o depoimento de um
os ouvintes se permitindo gestos paralelos,
deles: “Ele fala como se tivesse acontecido
como abrir cadernos, cochichar algo ao ou-
de verdade. Se a gente parar pra pensar, até
vido do colega, dar um bocejo etc.
chora” (MACHADO, 1999, p. 78).

Outra diferença importante é que, no pri-


Paul Zumthor fala desta diferença: meiro caso, o contador é “dono” da história, 19
ele é o depositário dela, em vez do livro. Ele
(...) Quando um poeta ou seu intérpre- cria um momento único, como em qual-
te canta ou recita (seja o texto impro- quer espetáculo teatral. Já a história do livro
visado, seja memorizado), sua voz, por está contida em um texto escrito e, por esta
si só, lhe confere autoridade. O prestígio razão, pode ser apropriada a qualquer mo-
da tradição, certamente contribui para mento. O livro entesoura a história. Neste
valorizá-lo; mas o que o integra nesta sentido, mesmo quem ainda não domina a
tradição é a ação da voz. Se o poeta ou leitura pode tê-la em mãos.
intérprete, ao contrário, lê num livro o
que os ouvintes escutam, a autoridade Acerca da importância da posse do livro sem
provém do livro como tal, objeto visu- o conhecimento da leitura, lembro de um
almente percebido no centro do espe- trabalho de Elaine Monteiro com crianças
táculo performático; a escritura, com em situação de rua. Há uma passagem em
os valores que ela significa e mantém, que ela contava a história de “João e Maria”
pertence explicitamente à performance. – uma história de rejeição dos filhos pelos
No canto ou na recitação, mesmo se o pais, em função da miséria em que viviam –
texto declamado foi composto por es- quando uma delas pediu o livro emprestado.
Justificou que ali estava a história da sua vida Pelo meu modo de pensar, a pessoa lendo
e que, embora não soubesse ler, um dia iria uma história eu acho mais interessante.
aprender para saber melhor de si mesma. Assim contando eu não sei se ela inven-
tou ali na hora. Eu acho que você lendo
ali na hora a gente entende melhor. Ela
8. O livro sagrado
tá lendo o que está escrito. Inventar é di-

Reverência pelo texto escrito no livro de- ferente. Não é interessante, digamos, o

monstrou Sebastião, que pouco frequenta- senhor conta e eu vou gravar, aí eu che-

va as rodas de leitura. Sendo evangélico, a go num ambiente que alguém conhece

verdade, para ele, adivinha do livro, e justi- aquela história e aí ele fala isso aqui não

ficava: tá no livro não. Aí eu vou ficar mal. No


livro você realmente vai mostrar o jeito

Eu acho importante o livro. Eu aprendi da coisa (MACHADO, 1999, p. 81).

assim se eu for pronunciar uma palavra,


digamos, se o senhor me corrigir, tudo Este leitor endurecido por um preceito de

bem, vou falar: escreve aí pra mim o cer- verdade nada concebia fora do escrito. For-

to que eu vou conferir no livro. Não é in- mação religiosa rígida? Para Sebastião, num
certo sentido, todo o texto tinha uma aura 20
formação certa, é falar o que está escri-
to. É uma garantia, é uma defesa. Eu sou de sacralidade que a oralidade não pode ex-

evangélico. Um dia, na Escola Bíblica, a pressar. Isto talvez explicasse o absenteísmo

professora fez uma pergunta e muitos de Sebastião à “roda de leitura”. Como nos

alunos não sabiam responder. E um ra- relatou no final desta experiência, sua ex-

paz respondia e aí eu gravei a pergun- pectativa era outra:

ta, e aí eu fui procurar no dicionário. E


estava errado. E aí eu fui perguntar pro Muitos alunos, eles pensam que nem eu

professor e ele falou que estava errado. pensei no primeiro dia, eles pensaram

Por quê? Porque está escrito (MACHA- que chegando aqui, cada um ia ler um

DO, 1999, p. 80). livro, tá entendendo? Aquela participa-


ção mais importante. Aí, então eu disse
Sebastião, como religioso, buscava a verda- é ótimo porque é um teste de leitura e
de contida no livro sagrado, a Bíblia, razão eu tenho dificuldade. Se eles vêm, eles
mais do que suficiente para ele privilegiar o quer chegar aqui, e vocês como professo-
escrito. Neste sentido, ao comparar o escri- res, então vocês falam: lê aqui essa folha.
to com a performance do contador, preferia Porque na nossa sala nós temos teste de
o texto lido, “que é uma garantia, uma defe- leitura, a professora manda a gente trei-
sa” contra a livre fantasia:
nar a ler e então os alunos chega lá na Se inicialmente os alunos não falavam, por-
hora, ela chama todos os alunos. Ou lê que “não sabiam contar histórias”, aos pou-
da cadeira ou senta do lado dela e lê. Isso cos foram revelando suas vidas e, puxando
é muito importante. É isso que eles que- pela memória, histórias que conheciam. O
rem, essa participação, chegar aqui e ou- desvelamento da origem de seus nomes, a
vir, eles acham que ouvindo sem ler não identificação dos lugares onde nasceram,
é bom pra eles (MACHADO, 1999, p. 82). o porquê de vir para o Rio, seus amores e
desamores, caminhos e descaminhos pos-
Contrariamente a Sebastião, Luzia, que não sibilitaram que assumissem uma maior es-
tinha o hábito de ler, entrou plenamente pontaneidade, dando margem a um estrei-
nesta viagem: tamento de relações de amizade, através de
afinidades comuns com os companheiros de
Eu comprei um livro de Monteiro Lo- estrada. E, mais que tudo, tomaram gosto
bato, ‘A história do mundo’. Eu come- pelo livro, pela leitura, como foram os casos
cei a ler ontem à noite. Eu comprei lá mais evidentes de Luzia e Júlio. Enfim, se é
na Tijuca de um pessoal que vende nas lícito concluir desta forma uma pesquisa: foi
ruas. Eu tô até interessada em comprar um final feliz.
livro. Antes eu nem ligava pra isso. Ago- 21
ra não. Vocês contam as histórias e eu Palavras-chave: literatura, identidade, ro-

saio correndo atrás da história. Falei das de leitura, formação do leitor.

com a minha madrinha pra juntar livro


pra mim. Eu não tinha esse interesse.
Referências
Agora eu tenho. Eu tava na Tijuca e vi
esse pessoal que vende livros na rua,
BENJAMIN, W. Obras escolhidas (Magia e Téc-
e então eu tava num ponto de ônibus,
nica, Arte e Política). São Paulo: Brasiliense,
atravessei a rua pra poder comprar um
1993. p. 197.
livro, pra ver se tinha um livro de his-
tória interessante. Mas tava chovendo,
BORGES, J. L. Obra poética (1923/1977). Bue-
não deu tempo de escolher muito. Eu
nos Aires: Alianza Três/Emecé, 1977. p. 119.
comprei o primeiro que eu vi na frente
(MACHADO, 1999, p. 62).
CALHAU, M. S. M. Eu tô virando outro. Dis-

Nós, que começamos este trabalho sem sa- sertação (Mestrado em Educação). Rio de Ja-

ber muito bem qual seria o ponto de che- neiro: Faculdade de Educação/Pontifícia Uni-

gada, concluímos que ele foi bem sucedido. versidade Católica do Rio de Janeiro, 1994.
CERVANTES, M. apud FRAGO, A. V. Alfabetiza- Educação/Universidade Federal do Rio de Ja-
ção na sociedade e na História. Porto Alegre: neiro, 1999.
Artes Médicas, 1993. p. 20.
MANGUEL, A. Uma história da leitura. São
CESARINY, M. A Antonin Artaud. In: Pena Ca- Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 33.
pital. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999. p. 50-51.
MELLO NETO, J. C. Morte e vida severina. In:
FERREIRA, M. M. e FIGUEIREDO, Janaína P. Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
Amado Baptista de. (orgs.). Usos & abusos da 1997. p. 145-6.
História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getu-
lio Vargas, 1996. p. XIV e XV. MERCER, K. apud HALL, S. A identidade cul-
tural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:
GARCIA, Pedro Benjamim e CASTANHEIRA,
DP&A, 1999.
Maurício (orgs.). Educação e identidade: for-
mação, oralidade e memória. Rio de Janeiro: MONTEIRO, E. Lendo com a boca e com o pen-
Publit Soluções Editoriais, 2007. samento: a Oficina de Literatura como possibi-
lidade de diálogo com crianças e adolescentes
GINZBURG, C. O queijo e os vermes – O co-
em situação de rua. Dissertação (Mestrado
tidiano e as idéias de um moleiro perseguido
em Educação). Rio de Janeiro: Faculdade de 22
pela Inquisição. São Paulo: Companhia das
Educação/ Pontifícia Universidade Católica
Letras, 1987.
do Rio de Janeiro, 1995.
GREEN, A. apud LÉVI-STRAUSS, Claude (org.).
Atomo de parentesco y relaciones edificas. In: La ROSA, J. G. A hora e a vez de Augusto Matra-

identidad. Barcelona: Petrel, 1981. p. 87-117. ga. In: Sagarana. Rio de Janeiro: José Olym-
pio, 1958. p. 358.
MACHADO, D. A leitura oral coletiva: Uma co-
munidade de leitores. Dissertação (Mestrado ZUMTHOR, P. A letra e a voz. São Paulo: Com-
em Educação). Rio de Janeiro: Faculdade de panhia das Letras, 1993. p. 91 e 114.
3. 2
ENTRE A DOR DE NÃO PODER SER E A
CONQUISTA DA ALEGRIA DE SER
Para atender às expectativas das crianças e jovens integrantes de uma comunidade de
tradições culturais afro-brasileiras, e que se sentiam rejeitadas pelas escolas do sistema
oficial de ensino, constituiu-se um novo “continente pedagógico” que iria caracterizar
o projeto educacional Mini Comunidade Oba Biyi. O caminho indicado na primeira me-
tade do século passado por Mãe Aninha, Iyalorixá Oba Biyi, de ver as crianças da co-
munidade no dia de amanhã ‘de anel no dedo e aos pés de Xangô’, inspirou a trajetória
de nascimento de uma nova linguagem educacional. Fundou-se um espaço pedagógico
assentado na recriação das linguagens e nos valores da comunidade. Da tradição, nas-
ceu o novo; gerado na criação de um novo currículo, uma nova forma de aprendizagem.
(...) A cultura que guarda o saber da tradição comunitária passa a ocupar o centro da
experiência educacional (…) (Marco Aurélio Luz)

Narcimária Correia do Patrocínio Luz14 23

Introdução professoras o acesso às questões urgentes


e necessárias para fazer circular vida nas
Este texto mostra o resultado de algumas
escolas.
contribuições que tive a satisfação de apre-
sentar para integrar a história do programa Nossa participação no Salto para o Futuro15
Salto para o Futuro, um espaço comunica- carregou inquietações e proposições, des-
cional singular que atravessa vários can- dobramentos de linguagens criativas e ori-
tos do Brasil, permitindo aos professores e ginais, capazes de inundar o cotidiano das

14 Professora Titular Plena do Departamento de Educação do Campus I da Universidade do Estado da Bahia-UNEB;


Doutorado em Educação; Pós-Doutorado em Comunicação e Cultura; pesquisadora no campo da Diversidade Cultural
e Educação; coordenadora do PRODESE- Programa Descolonização e Educação e do projeto Dayó: afirmando a alegria
socioexistencial em comunalidades africano-brasileiras, indicado como semifinalista entre os vinte melhores projetos da
8ª Edição do Prêmio ITAÚ UNICEF 2009 no conjunto de 1.917 projetos inscritos no Brasil. O projeto DAYÓ se realiza na
Associação Crianças Raízes do Abaeté em Itapuã, Salvador, Bahia.
15 http://www.tvbrasil.org.br/saltoparaofuturo /. Cf. artigo do programa temático Currículo Relações Raciais e
Cultura afro-brasileira: África Viva e Transcendente! no Boletim eletrônico do Salto http://www.tvbrasil.org.br/fotos/salto/
series/175527Relraciais.pdf. Cf. artigo do programa temático Oralidade Memória e Formação - No Tempo em que os seres
humanos conversavam com as Árvores: http://www.tvbrasil.org.br/fotos/salto/series/212454Oralidade.pdf
escolas com as vidas que caracterizam as cial, exigindo e assegurando, nessa relação,
comunidades afro-brasileiras. o direito à identidade própria da nossa po-
pulação. Assim se instalam, no âmbito do
Os diálogos que estabeleci com outros/as co- PRODESE, estratégias para formar pessoas
legas nos programas temáticos ainda têm re- capacitadas para interagir com os códigos
percussão nacional e sua importância é reco- da sociedade urbano-industrial e reforçar, ao
nhecida nas mudanças de comportamento e mesmo tempo, os valores das comunidades
/ou concepções que muitos/as telespectado- afro-brasileiras. O PRODESE atua no plano
res/as revelam quando me reconhecem nas das atividades didáticas, tanto da graduação
ruas, aproveitando para comentar, elogiar e quanto da pós-graduação, e também promo-
sugerir novas questões. ve estudos e pesquisas integradas à extensão
universitária.
Para essa publicação comemorativa dos vin-
te anos do Salto para o Futuro, trago um mo- Feitos esses esclarecimentos, vamos nos
saico de ilustrações que irão nos aproximar aproximar do primeiro relato que ilustrará
de reflexões importantes envolvendo nossas nossas preocupações. É a história de uma
comunidades afro-brasileiras, ajudando-nos criança negra do sexo masculino com seis
a pensar as práticas escolares instituciona- anos, numa escola pública na Região Metro- 24
lizadas que calam sobre a identidade pro- politana de Salvador (RMS), vivendo o ciclo
funda de crianças e jovens descendentes de de alfabetização. Na rua onde ela mora tam-
africanos/as. bém está localizada a escola que frequenta
e sua comunidade-terreiro, onde ela integra
Vou aqui destacar três dos muitos relatos a hierarquia, e faz a sua primeira iniciação.
que tive a oportunidade de acompanhar de Feita a iniciação, a criança volta para a es-
perto e que chegaram ao meu conhecimen- cola assumindo a identidade mítica carac-
to através de professores/as, pesquisadores/ terística do rito de iniciação realizado em
as do Programa Descolonização e Educação sua comunidade, mas, infelizmente, a cada
– PRODESE, grupo de pesquisa que coorde- dia vive a hostilidade de coleguinhas e pro-
no no Departamento de Educação do Cam- fessora, que cientes do seu vínculo com a
pus I da Universidade do Estado da Bahia. A comunidade-terreiro, se afastam dela osten-
proposição do PRODESE na área de Educa- sivamente.
ção é promover linguagens educativas que
estabeleçam uma relação dinâmica entre Um colega manifestou:

os valores sociocomunitários da tradição “– Você é do candomblé e gente do candomblé


afro-brasileira e os códigos da sociedade ofi- não presta!”
Sobre a reação da professora diante do fato? portanto, os ancestrais, e são elas que esta-
Preferiu ignorar as formas agressivas que o belecem a dinâmica da relação entre os seres
grupo de alunos/as expressava. A rejeição é humanos e a natureza.
tanta que a criança afro-brasileira, alvo das
constantes agressões, prefere se isolar de Mais uma ilustração para compor o mosai-
tudo e de todos. Essa situação adversa ainda co das nossas reflexões: a história da ado-
teve um dado cruel: a escola chama a mãe lescente iniciada na tradição afro-brasileira
da criança e numa conversa, recheada de hi- que frequenta o Ensino Fundamental. A ado-
pocrisia, sugere que ela tire o filho da esco- lescente, portando o seu colar de contas na
la para “o bem estar sala de aula, incomo-
dele”. da uma professora
Se somos educadores no (de formação evangé-
Outra ilustração, Brasil, não podemos ter lica) que, num repen-
também numa escola medo de pensar e realizar te, vai até a jovem,
pública na RMS, é de arranca-lhe o colar de
iniciativas socioeducativas
uma criança que to- contas do pescoço e
a partir do que somos
dos os dias, ao entrar diz: “– Isso é coisa do
na escola, saúda o como povo que possui, diabo! Essas contas es- 25
Iroko, uma importan- na dinâmica da sua tão me incomodando!
te árvore que na tra- constituição, civilizações Aqui você não fica com
dição afro-brasileira milenares das Américas e da esse bagulho!”
representa a ances-
África.
tralidade. Uma pro- As contas se espa-
fessora comenta com lham pelo chão da
a outra: sala. Entre risos fre-
néticos dos colegas, a jovem, constrangida
“– Acho que esse menino não é bom da cabeça!. e profundamente agredida, sai da sala cor-
Você já reparou que sempre ele conversa com rendo e chorando muito. Vai para casa e não
aquela árvore?” E riem da situação, achando- quer mais retornar para a escola.
a absurda, passando a tratá-lo com um caso
preocupante de saúde mental. Nenhuma dessas situações ocorreu sem que
os pais e responsáveis reagissem às agres-
Uma observação importante: na tradição sões. A equipe do PRODESE entra nas cenas
africano-brasileira as árvores carregam o providenciando espaços de (re)educação
princípio de ancestralidade e representam, desses/as professores/as, assegurando aos
alunos/as o direito à alteridade civilizatória sentar contribuições primorosas para as
afro-brasileira. histórias humanas, características dos distin-
tos povos, é o que importa na composição de
O conjunto dessas ilustrações que apresen- uma ética do futuro.
tamos até aqui destaca a dor de não poder
ser, que aflige crianças, jovens e adultos O PRODESE vem desenvolvendo iniciativas
afro-brasileiros. institucionais que promovem nos espaços
de “formação” de professores/as a transcen-
Nosso desafio: provocar os/as educadores/as dência em face dos jargões, repetições de
fazendo-os/as pensar a identidade profunda discursos e conceitos ainda baseados nos
de crianças e jovens descendentes de afri- sistemas sociais do século XIX, ou as rotu-
canos/as no Brasil. Se somos educadores no lações e desdobramentos de dados estatís-
Brasil, não podemos ter medo de pensar e ticos e modismos. São fronteiras discursivas
realizar iniciativas socioeducativas a partir e conceituais perversas, a exemplo das clas-
do que somos como povo que possui, na di- sificações que sobredeterminaram o desti-
nâmica da sua constituição, civilizações mi- no de muitos povos considerados “pagãos”,
lenares das Américas e da África. “primitivos”, “selvagens”, “não humanos”,
“incapazes de civilização e de história”, “pe- 26
Temos que aprender a ter orgulho desse le- cadores”, “feiticeiros”, “sem alma”...
gado e respeitá-lo! Infelizmente, na nossa
trajetória de formação para professores/as, Nas suas iniciativas institucionais de desco-
muitas vezes, tendemos a nos afastar, es- lonização da Educação, o PRODESE se apoia
quecer, ter vergonha e, até mesmo, temer numa importante referência teórica que é
os valores e linguagens que comunicam o o pensamento de Frantz Fanon16, que nos
patrimônio da civilização africana que tam- auxilia a superar o crivo do conhecimento
bém protagoniza a nossa formação social, a neocolonial, que ainda estrutura e organi-
nossa história. za os currículos dos cursos de formação de
professores/as. Sobre isso aprendemos que:
Perceber e admitir a riqueza de valores con-
tidos no contínuo dessas civilizações mile- (...) O colono faz a história e sabe que a
nares, assumindo-as como capazes de apre-

16 Frantz Fanon (1925-1961), formado em Psiquiatria, nasceu na ilha de Martinica, considerado território
francês situado na América Central. No início dos anos 1950 tornou-se argelino e passou a contribuir com os argelinos
na luta pela libertação do país, colônia francesa desde 1830. Participou de congressos pan-africanos representando a
Argélia e é uma figura exponencial no contexto Pan-Africano no mundo. A Argélia tornou-se independente um ano
após sua morte.
faz... E porque se refere constantemen- senfreada de uma singularidade admiti-
te à história de sua metrópole, indica de da como absoluta18.
modo claro que ele é aqui o prolonga-
Há um clamor das comunidades afro-brasilei-
mento dessa metrópole. A história que
ras por políticas públicas na área de Educação
escreve não é, portanto, a história da re-
capazes de estabelecer espaços institucionais
gião por ele saqueada, mas a história de
de combate ao racismo e suas engrenagens
sua nação no território explorado, viola-
ideológicas, que tendem a tragar a vida de
do e esfaimado. A imobilidade a que está
crianças e jovens que vivem situações no co-
condenado o colonizado só pode ter fim
tidiano escolar marcadas por muita dor e hu-
se o colonizado se dispuser a pôr termo
milhação.
à história da colonização, à história da
pilhagem, para criar a história da nação,
Esse mosaico de reflexões que desenvolve-
a história da descolonização. Mundo
mos é, portanto, uma homenagem e uma
compartimentado, maniqueísta, imóvel,
forma de solidarizar-se com todas as crianças
mundo de estátuas: a estátua do general
e jovens que não abrem mão do seu direito
que efetuou a conquista, a estátua do
de ser, viver seus ritos de iniciação e de pas-
engenheiro que construiu a ponte. Mun-
sagem nas suas instituições, elaborando as
do seguro de si, que esmaga com suas 27
linguagens e valores que contribuem para a
pedras os lombos esfolados pelo chicote.
expansão da ancestralidade afro-brasileira.
Eis o mundo colonial (...)17.

Uma observação necessária: quando nos re-


Não é fácil esse exercício de pensar, sabemos
ferimos à ancestralidade, estamos conside-
bem disso, mas no legado de Frantz Fanon
rando a importância das lideranças comuni-
encontramos um ânimo que nos convida de
tárias que se dedicaram em vida ao bem-estar
modo radical a
da família, linhagem, comunidade através
da manutenção do patrimônio civilizatório
(...) recomeçar tudo (...) reinterrogar o
que sustenta o bem-estar, destino individual
solo, o subsolo, os rios - e por que não?
e coletivo. Ancestral é aquele/a que em vida
- o sol (...). A discussão do mundo colo-
deu continuidade e garantiu a expansão da
nial pelo colonizado não é um confronto
memória da sua comunidade. Os ancestrais
racional de pontos de vista. Não é um
são lembrados e consagrados para depois,
discurso universal, mas a afirmação de-

17 FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.


18 Idem
em outro plano de existência, continuarem nas Américas. É o membro mais velho da fa-
protegendo e fortalecendo os vínculos da co- mília Axipá no Brasil. Podemos afirmar que é
munidade e, ainda, promovendo a alegria de um Omo Bibi, um bem-nascido.
sua gente. Enfim, é aquele/a que dedicou sua
vida para garantir a continuidade da civiliza- “(...) Na tradição afro-brasileira de ori-
ção africana no Brasil. gem nagô, omo bibi quer dizer bem
nascido, isto é, aquela pessoa que vem
a esse mundo para dar continuidade à
A alegria de ser
expansão de uma linhagem, de uma fa-
Todos esses relatos aproximam-nos de uma mília considerada muito antiga, recep-
referência histórica na minha formação táculo de tesouros de valores espirituais
como educadora e que também representa e experiências históricas de grande valor
um marco na história da Educação no Brasil. para a comunalidade. Os valores espiri-
Trata-se da primeira experiência de Educação tuais estão expressos pela continuidade
Pluricultural no Brasil, conhecida como Mini e expansão das instituições religiosas,
Comunidade Oba Biyi (1976-1986), que pro- de um lado, o culto aos orixá, forças
moveu com muito êxito a educação de crian- cósmicas que constituem o universo,
ças e jovens vinculados a uma comunidade princípios de natureza, e de outro o cul- 28

afro-brasileira na Bahia, Ilê Axé Opô Afonjá. to aos ancestres e ancestrais, como aos
Esa, espírito das pessoas que se destaca-
Cabe destacar que a concepção e realização ram na tradição religiosa, ou aos Babá
da Mini Comunidade Oba Biyi deve-se à per- Egun, espíritos dos ojé, sacerdotes que
sonalidade exponencial de Deoscoredes Ma- se destacaram no culto aos ancestres
ximiliano dos Santos, o Mestre Didi. O Mestre masculinos”19 .
Didi pertence à família Axipá, originária de
Oyó, e uma das sete famílias fundadoras da Um episódio que marcou significativamente
cidade de Ketu. Essa família repõe no Brasil, o início da Mini Comunidade Oba Biyi foi um
especificamente na Bahia, uma dinâmica so- comentário de uma das crianças da comuni-
ciopolítica, mítico-religiosa da cultura Nagô dade, ao lhe indagarem por que ela não fre-
expressa em casas tradicionais como o Ilê quentava a escola oficial que era tão próxima
Axé Opô Afonjá. Mestre Didi é neto de Iyá Oba ao Ilê Axé Opô Afonjá.
Biyi e filho de sangue de Mãe Senhora, ambas
expressivas lideranças da tradição africana – Não gostam da gente, lá!

19 LUZ, Marco Aurélio. A Favor de Egun. A Tarde, Salvador, 09 de abril, 2005. Caderno Cultural.
As escolas oficiais geograficamente próxi- sacerdotal nagô de Eugênia Anna dos Santos,
mas à comunidade eram muito distantes, ou a Iyalorixá fundadora do Ilê Opô Afonjá na ter-
melhor, desenvolviam uma pedagogia que ritorialidade do Cabula, em Salvador, Bahia.
negava os valores da comunidade, fazendo Quando Mãe Aninha, a Iyá Oba Biyi implantou
com que as crianças se distanciassem dos a comunidade-terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá
valores existenciais próprios da comunida- em 1910, nas imediações do Cabula, foi por-
de, rejeitando-os, denegando-os, melhor di- que considerou, sobretudo, que aquele ter-
zendo, não gostavam da forma de ser dessas ritório estava profundamente marcado pelo
crianças. A realidade escolar das crianças da passado heroico de continuidade civilizató-
comunidade do Opô Afonjá naquela época ria, rico em axé e forças míticas emanadas
era muito traumática. As crianças que foram pelos antepassados africanos do quilombo
escolhidas pela famí- do Cabula. Esse ter-
lia “para estudar” no ritório se impregnou
A Iyá Oba Biyi sempre
mais das vezes, de profundo signifi-
dizia: “Quero ver nossas cado histórico para a
(...) se afasta- crianças de hoje, no dia de população afro-brasi-
ram da própria amanhã, de anel no dedo leira, que reelaborou,
família, perde- 29
e aos pés de Xangô.” É no no local, modos de
ram o orgulho sociabilidade ancora-
âmago desse desejo de Mãe
pelos valores dos à preservação da
Aninha, que se implanta a
da tradição, memória coletiva das
constituíram Mini Comunidade Oba Biyi. comunidades que ali
uma identida- existiram. Não há pro-
de fracionada, e vas de que o Ilê Opô
muitas vivem como almas no exílio, so- Afonjá esteja localizado no lugar exato do
frendo o impacto da política racista da quilombo do Cabula, disperso em 1807, mas
barragem social no contexto da socie- preserva-se a memória simbólica daqueles
dade oficial europocêntrica identificada que se insurgiram ao Estado colonial escra-
com a política do branqueamento . 20
vista.

O nome Oba Biyi significa em yorubá “o rei A Iyá Oba Biyi sempre dizia: “Quero ver nos-
nasce aqui”, vem da homenagem ao nome sas crianças de hoje, no dia de amanhã, de

20 LUZ, Marco Aurélio. Agadá dinâmica da Civilização Africano-Brasileira. Salvador: Edições SECNEB e EDUFBA,
1995, p. 666.
anel no dedo e aos pés de Xangô.” É no âma- “De anel no dedo e aos pés de Xangô” significa
go desse desejo de Mãe Aninha, que se im- procurar superar os obstáculos, que se institu-
planta a Mini Comunidade Oba Biyi. cionalizaram na África e no Brasil, e em outros
países ex-colonizados, através da pedagogia
A Iyá Oba Biyi nos indicou o grande desafio eurocêntrica.
que se apresenta para nós, educadores: de
um lado o “anel no dedo”, que significa a pos- A imagem da África e do africano pro-

sibilidade de mobilidade social da população mulgada pelas escolas anglo e latino-

infantojuvenil de descendência africana na americanas é uma imagem grotesca,

sociedade oficial, e de outro, Xangô, orixá do humilhante, além de falsa, que mina ou

fogo que assegura a vida no aiyê21, a expansão impossibilita toda aspiração da criança

de linhagens, da existência concreta ininter- negra à realização humana. Na própria

rupta, filhos, descendência, ancestralidade, África, essas distorções prevalecem nos

continuidade da comunidade afro-brasileira, sistemas educativos herdados do colo-

presença transatlântica dos valores culturais nialismo. Contestar e banir este sistema

africanos. de mitos racistas na educação da crian-


ça negra e substituí-lo com uma afirma-

A proposição de uma educação no contexto ção autêntica da identidade verdadeira 30


desse desafio foi promover uma linguagem e positiva do africano é uma função or-

pedagógica que estabelecesse uma relação di- gânica e primária da organização polí-

nâmica entre os valores comunitários da tradi- tica, porque, como um sistema, ele cor-

ção e os códigos da sociedade oficial, exigindo rói diretamente o potencial de um povo

e assegurando, nesta relação, o direito à iden- rumo à realização do seu protagonismo

tidade própria das crianças e jovens. Assim, se histórico22.

instala, no âmbito da Mini Comunidade Oba


Timothi Awaoniyi, em relato sobre o sistema
Biyi, o desafio de “formar” pessoas capazes de
oficial de ensino na Nigéria, disse que o Ilê
educar sabendo interagir com os códigos da
Ekó (como é chamada a casa de ensino/sa-
sociedade urbano-industrial influenciada pelos
ber) se caracterizava como uma instituição
valores europeus, e reforçar, ao mesmo tempo,
fora das relações comunitárias. Ser educado
os valores das comunidades afro-brasileiras.
no contexto colonial e neocolonial era ser

21 Mundo visível.
22 NASCIMENTO, Elisa. Pan-africanismo na América do Sul. Petrópolis: Vozes, 1985, p.36.
23 AWAONIYI, Timothi, apud LUZ, Marco Aurélio. Agadá dinâmica da Civilização Africano-Brasileira. Salvador:
Edições SECNEB e EDUFBA, 1995, p. 657.
europeizado. Aqueles que não se educavam amplo salão. A concepção era de um espaço
pela escola colonial eram chamados de ará- livre para as crianças explorarem e desenvol-
oko (ignorantes, sem educação) e os valores verem todos os sentidos do corpo, não havia
culturais da tradição ficavam reduzidos à bancos e carteiras, era um espaço permeado
percepção etnocêntrica que os classificava pela estrutura do terreiro, onde as atividades
de “pagãos”, “primitivos” e “bárbaros” 23. e/ou aprendizagem ocorressem ao ar livre ou
no salão. Tinha também uma cozinha gran-
Nada mais importante para o ser humano do
de, banheiros e vegetação na área externa.
que se sentir aceito, amado, querido e respei-
tado. A Mini Comunidade Oba Biyi absorvia Sobre a concepção espaço-temporal da Mini,
profundamente essas preocupações, tanto Marco Aurélio Luz, que participou da coorde-
assim que a ideia nucleadora do espaço ar- nação da experiência de educação no período
quitetônico e do cotidiano espaço-temporal de 1978 a 1985, comenta:
pedagógico refletia nas crianças o prazer de
sentir-se em casa, à vontade, seguras, felizes, A forma de comunicação básica da Mini
expressando com desenvoltura a sua identi- não se assentava na escrita. A forma de
dade e os códigos culturais da comunidade. comunicação dava margem àqueles có-
digos tradicionais de comunicação da 31
A criação da Mini Oba Biyi proporcionou às comunidade, que se manifestavam atra-
crianças um espaço para participar, opinar, vés da dramatização, dança, música,
acompanhar, sugerir, desde a construção do etc. Mas, em relação à linguagem peda-
prédio até as vivências do dia a dia com os gógica, especialmente, esse espaço pro-
professores e funcionários, consolidando a piciava essas formas de comunicação. A
dimensão política de afirmação dos valores Mini foi concebida com um grande sa-
da tradição. lão, um pátio e uma varanda. Não se ca-
racterizava com salas de aula, carteiras,
O prédio da Mini foi construído sob a super-
com aquele mobiliário sobredetermina-
visão das crianças, que diariamente acompa-
do pela escrita, com aquela prancheta,
nhavam os operários, os materiais, bastante
com obsessão para caderno, lápis, livro,
envolvidas com o processo, pois sentiam re-
e a criança diante do quadro de giz, e
almente que era delas e para elas que estava
o professor na frente. Esse espaço dava
sendo erguido aquele espaço.
outra dinâmica. Tinha salão de ativida-

Projetou-se um espaço que abrigasse uma des por centro de interesses, onde se de-

comunidade infantil, uma casa com o esti- senvolviam atividades com as turmas do

lo da Bahia, com telhas, varandas, pátio, um prontidão, os professores começavam


as atividades e a criança poderia circu- Mas essas transmissões só se realizam atra-
lar de um centro de interesse para ou- vés de relações interdinâmicas e interpesso-
tro e vice-versa. No pátio e na varanda ais, envolvendo os mais velhos e os jovens,
aconteciam as aulas de alfabetização. numa dimensão pedagógica que apela para
Nessa varanda tinha uma grande mesa códigos e formas de comunicação genuina-
com os bancos, mantendo a caracterís- mente africanos. É necessário enfatizar que
tica do mobiliário da comunidade, e um as palavras, emanadas através dos contos,
quadro-de-giz presente nas aulas de al- têm muito poder de realização, isto porque
fabetização. No pátio se desenvolvia a mobilizam, encantam, fascinam, exploram
música, dança e dramatizações24. o imaginário da comunidade afro-brasileira
recriando e (re)atualizando todo o sistema
Do cotidiano da Mini Comunidade Oba Biyi, simbólico e conhecimentos éticos e estéti-
destacamos também a força encantadora cos que os integram, e (...) antes de serem
dos contos de Mestre Didi, que embasavam formas de arte, (os textos) são formas que le-
o cotidiano curricular da Mini, influencian- vam a carga de significar as múltiplas relações
do uma dimensão pedagógica infantojuve- do homem com seu meio técnico e ético25.
nil, onde valores, cosmovisão, ética comu-
nitária, hierarquias, línguas, modos de vida, E mais: 32
princípios filosóficos, códigos estéticos, Em torno dos contos foram se organi-

modos e formas de comunicação, concep- zando as atividades da aprendizagem, o

ções culinárias, organização político-social, espectro de conhecimentos de variados

elaborações territoriais, enfim, todo um matizes, e que culminavam a cada se-

complexo civilizatório está expresso e pro- mestre letivo no Festival de Artes Inte-

cura caracterizar aspectos estruturadores gradas Mini Comunidade Oba Biyi. Nes-

da identidade profunda das comunalidades sas ocasiões, as crianças interagiam com

tradicionais da Bahia. a comunidade expressando emoções e


conhecimentos de uma estética consti-
Os contos são transmitidos de geração a ge- tuída de ludicidade, saber e alegria. Nes-
ração, mais que isso, eles comunicam expe- sa toada fundou-se um novo território
riências entre gerações, de uma para outra, de aprendizagem, o da educação pluri-
conforme também as hierarquias comunitá- cultural africano-brasileira. Inaugura-se
rias detentoras da sabedoria milenar. a possibilidade de circulação entre mun-

24 LUZ, Narcimária. ABEBE: a criação de novos valores para a educação. Salvador: Edições SECNEB, 2000, p.67.
25 LUZ, 1977, p. 66.
26 LUZ, Marco Aurélio. O rei nasce aqui (contracapa). Salvador: Fala Nagô, 2007.
dos socioculturais diferentes com liber- “Aiyó, aiyó, alegria alegria, omo nilê
dade e integridade26. aiyó”, filhos da casa alegria. É essa ale-
gria que envolve ou deve envolver o es-
Depois de destacarmos a importância da
paço, luzes e cores, tatilidade, sinergia,
Mini Comunidade Oba Biyi na constituição
comunalidade, sociabilidade na educa-
de um currículo capaz de lidar com o patri-
ção desdobrada dos valores e linguagem
mônio afro-brasileiro, insistimos no convite
da tradição africana. Na Mini, a alegria
aos educadores: sensibilizem-se, aprendam
estava na vida cotidiana, no brincar, no
e respeitem as linguagens próprias do co-
elaborar, no aprender, jogando, repre-
nhecimento milenar que organizam e es-
sentando, transformando, criando, fa-
truturam as comunidades afro-brasileiras, a
zendo arte conjuntamente num só cor-
exemplo dos ritos de iniciação vividos pelas
po comunal. Enfim, a Mini propiciava
crianças e jovens que ilustramos no início
um gostar de estar no mundo, se diver-
desse texto.
tindo e sublimando a angústia existen-
cial, substituindo-a pelo efeito estético
Se realmente pretendemos realizar uma
da busca da beleza, odara, e pela busca
“Educação para todos”, como proclama a
do conhecimento que implica, sobretu-
Constituição brasileira, teremos que consi-
do, em aceitar o mistério do existir27.
33
derar de forma respeitosa uma ética da coe-
xistência que aceite o patrimônio de conhe-
Povos que vivem fora da Europa, a exemplo
cimentos das histórias humanas das nossas
da África, Austrália, Américas e Ásia, apelam
comunidades afro-brasileiras. É através des-
para outros códigos e formas de comunica-
sas comunidades e de toda a pujança do pa-
ção característicos dos seus modos de socia-
trimônio civilizatório africano característi-
bilidade para localizar-se e falar dos lugares,
co, que nossas crianças e jovens estruturam
territorialidades que os envolvem.
suas identidades profundas.

Nas comunidades afro-brasileiras, nossas

Conclusão crianças aprendem, elaboram conhecimen-


tos e expressam esses universos caracterís-
Na Mini Comunidade Oba Biyi, primeira ticos do pensamento africano e suas atua-
experiência de Educação Pluricultural no lizações nas Américas através da vivência
Brasil e com a qual aprendemos muito ao e convivência com orikis, contos, instru-
longo dos anos, se entoava um cântico afro- mentos percussivos cujos toques falam/co-
brasileiro nagô: municam/relatam histórias que anunciam

27 LUZ, Marco Aurélio. O rei nasce aqui (contracapa). Salvador: Fala Nagô, 2007.
os primórdios da humanidade, indicando e linguagens radicalmente distintos das ins-
princípios ético-estéticos para que o corpo tituições que se baseiam nos valores da civi-
comunitário se expanda e dê continuidade lização europeia e sua História e Geografia
aos elos de ancestralidade que projetam e totalitárias e laicizadas.
anunciam a África viva aqui.
Uma mensagem importante que dinamiza
Os caminhos que vamos trilhando indicam
a ética das comunidades afro-brasileiras: a
a possibilidade de uma educação em que
árvore que não tem raiz não se apruma, não
nossas crianças e jovens aprendam a lidar
consegue se alimentar da matéria primor-
com o repertório de códigos da sociedade
dial, e é incapaz de gerar; e o pior é que ela
urbano-industrial imersa nas políticas de
será carregada pelo vento.
globalização, mas utilizando-os como es-
tratégia de legitimação da alteridade civili-
Desse pensamento dos mais antigos/as
zatória africana. É assim que vamos vendo
aprendemos que é importante saber quem
gerações de afro-brasileiros, conquistando
nós somos, as nossas origens, a trajetória
espaços institucionais fincando, recriando e
dos nossos/as antepassados/as, valorizar a
expandindo o repertório de valores das suas
nossa gente, as nossas comunidades afro-
comunidades, e tendo acesso ao direito à al- 34
brasileiras, pois isso nos tornará árvores
teridade, tão precioso ao existir.
frondosas com raízes profundas e capazes

Não podemos colocar um “manto de ferro” de gerar muitos frutos e sementes que ali-

nas crianças que vivem imersas nos valores mentarão as gerações sucessoras.
3.3 Multiculturalismo, Televisão e cotidiano
Escolar: um Bornal de Lembranças

Azoilda Loretto da Trindade28

Esse texto se configura num bornal – com Num dos programas sobre Pluralidade Cul-
algumas cenas, lembranças, reflexões que tural, eu e uma outra professora participa-
foram constituindo uma trajetória de uma mos como pessoas que davam depoimentos
educadora imersa nas questões da multi- ao vivo, as duas negras e com cabelo natural
culturalidade, em diálogo com vários cam- e ambas com o penteado tipo pompom. Sur-
pos de conhecimento, sobretudo, no caso presa a: não existia maquiagem para nossas
deste texto, relacionados à educação e à peles. Surpresa b: uma pessoa comenta, na
televisão. Televisão, por causa de algumas sala: “(...) uniforme estes cabelos?” Surpre-
consultorias no programa Salto para o Fu- sa, porque não se discutia o modelo “pa-
35
turo/ TV Escola (MEC) e no Projeto ‘A Cor drão” dos cabelos das apresentadoras, nem
da Cultura’, do Canal Futura, e também um certo modelo “global” dos programas.
por estarmos vivendo um momento his-
tórico de reflexões e tentativas de romper Cena 2
hegemonias e exclusões, visando visibilizar
positiva e criticamente a nossa diversidade A consultoria da série Multiculturalismo,
étnico-racial em todos os espaços sociais. em 2002, foi um laboratório. A riqueza dos
textos, do material produzido, o debate de
Lembranças e cenas que nos ajudaram a propostas em torno de temas que, hoje, são
compor este texto. Lembranças e cenas de focos de discussão, como a questão afro-
bastidores, que mostram que o que vemos brasileira, a indígena, a homoafetiva, a reli-
na tela é um produto, um retrato momentâ- giosa, a de gênero, a transdisciplinaridade...
neo, e que tem uma história de construção. Tudo com embates, humanidades, vaidades,
Vamos especificar com duas cenas: relações de poder, enfrentamento de precon-
ceitos e construção de conceitos... Lembro,
Cena 1 por exemplo, que no primeiro VT sugerimos

28 Professora doutora em comunicação e cultura.


colocar a música ‘Wonderful World’, com o uma visibilidade questionadora, que grita e
Louis Armstrong, quase uma ode à multicul- afirma diferenças, singularidades, coletivi-
turalidade, e alguém vetou argumentando dades, muitas vezes silenciadas, ocultadas,
que a música não era em português. invisibilizadas. A diversidade que nos pare-
ce em conflito, pois são raros os momentos
Foi uma experiência muito rica e que conso- do alinhamento entre os tantos eus que nos
lidava, em mim, a certeza de que a televisão habitam, nestes emaranhados de nós que vi-
pode estar a serviço da vida, da diversidade, vem em nós.
do conhecimento. Contudo...
Nós, porque mesmo acreditando que somos
Vivem em nós inúmeros;  vários num só, ainda assim sonhamos com
Se penso ou sinto, ignoro  a identidade, com a homogeneidade. Somos
Quem é que pensa ou sente.  “metamorfoses ambulantes”. Metamorfoses
Sou somente o lugar  polifônicas, polissêmicas, policromáticas
­Onde se sente ou pensa.  em dissonâncias e consonâncias constantes
e assustadoramente belas e complexas.
Tenho mais almas que uma. 
Há mais eus do que eu mesmo.  36
Como ilustração da riqueza da diversidade,
Existo, todavia 
recontamos um mito da criação humana Io-
Indiferente a todos. 
ruba30:
Faço-os calar: eu falo. 

Olodumaré, que é um deus iorubá, quis


Os impulsos cruzados 
criar a Terra e deu um punhado dela,
Do que sinto ou não sinto 
num saquinho, para Obatalá ir criá-
Disputam em quem sou. 
la. Antes de ir, Obatalá teria que fazer
Ignoro-os. Nada ditam 
a oferenda a Exu, pois sem movimento
A quem me sei: eu ‘screvo29.
não há ação. Obatalá, que é muito ve-

Multiculturalismo, diversidade, intercultu- lho, esqueceu e foi andando, andando

ralidade, pluralidade... Nomes e mais no- devagarzinho, e no caminho sentiu sede.

mes para compreender a nossa humanidade Então viu uma árvore, dessas que têm

tão ampla e tão diversa que, hoje, parece ter água dentro, e parou, abriu a planta e

29 Poema de Ricardo Reis (Fernando Pessoa).


30 Os iorubás ou iorubas (em iorubá: Yorùbá), também conhecidos como yorubá (io•ru•bá) ou yoruba, são um
dos maiores grupos etnolinguísticos ou grupo étnico na África Ocidental. http://pt.wikipedia.org/wiki/Iorub%C3%A1s
em 23/07/2011.
bebeu. Só que era uma bebida que dava vos e culturas têm seus mitos de criação do
um pouco de tontura, e então ele deitou mundo e dos seres humanos. Também por
debaixo da árvore e acabou dormindo. ser este um mito que utilizamos em vários
textos para a publicação eletrônica/boletim
Enquanto isso, Odudua, que também do Salto para o Futuro, que escrevi na tenta-
queria criar a Terra, fez as oferendas a tiva de inserir em microespaços outros mo-
Exu e alcançou Obatalá. Vendo-o dormir, dos de ver-sentir-interpretar a vida.
achou que ele iria se atrasar muito, pe-
gou o saquinho e foi ele mesmo criar a Destacamos que a questão da DIVERSIDADE
Terra. E criou. nos remete a uma pluralidade de temas e
caminhos reflexivos. Como ilustração, des-
Obatalá acor- taco alguns surgidos
dou e viu a Ter- num encontro de 120
Somos “metamorfoses
ra criada, e foi minutos entre cerca
reclamar para
ambulantes”. Metamorfoses de 40 estudantes de
Olodumaré, polifônicas, polissêmicas, um curso de aperfei-
que enviou e policromáticas çoamento, aula de
deu a ele barro, em dissonâncias e multiculturalismo 37
para que crias- e cotidiano escolar,
consonâncias constantes e
se os homens quando cada pes-
assustadoramente belas e
na Terra. Oba- soa apresentou uma
talá foi e criou
complexas. representação de
os homens, si, sua marca, seus
mas de vez em projetos, num dos
quando tomava a bebida da árvore, de raros momentos coletivos em que a escuta
que tinha gostado e... Não chegava a e expressões múltiplas se encontram e refle-
dormir, mas, meio tonto, fazia seres hu- xões coletivas acerca das singularidades co-
manos de todos os tipos. muns foram postas no centro da discussão.
De cada exposição, destacamos um item,
Mito31 este escolhido pelo modo que coloca que como uma encruzilhada nos remete a
os seres humanos na sua pluralidade e por vários caminhos e possibilidades de reflexão
destacar/sublinhar e lembrar que vários po- e ação:

31 Um mito é uma narrativa de caráter simbólico, relacionada a uma dada cultura. O mito procura explicar
a realidade, os fenômenos naturais, as origens do mundo e do homem por meio de deuses, semideuses e heróis.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mito Acesso em 23/07/2011.
Visões de mundo – lugares – autoestima habita entre nós e em nós. Narrativas que
– estimas – memórias – marcas – nome apresentam mundos e mundos, pessoas,
– iniciais – ciclos – traumas – alegrias – possibilidades que, tecidas umas nas e com
tristezas – superações – histórias – redes as outras, carregam sementes de invenções/
(familiares, apoio, solidariedade, afetivas) reinvenções de existências. A Ciência (no
– tradições – aprendizagens – dobra – li- singular e no plural) é narrativa, o conheci-
nhagens – ancestralidade – afetos – religio- mento é narrativa, a explicação do mundo é
sidade – obstáculos – sexualidade – racis- narrativa, o que vimos, o que sentimos, com-
mos – preconceitos – dificuldades – saúde/ preendemos e somos é narrativa. As espe-
doença – ausências – mágoas – resistências cializações são narrativas, as disciplinas são
– forças – legados – filosofias – vitórias – narrativas. As imagens televisivas são narra-
escutas – saberes – falas – passado entrela- tivas. Neste sentido, a palavra, a expressão,
çado com o presente – inserções – mudan- a marca de cada um(a) de nós é narrativa.
ças – maternidade/paternidade – ganhos/ Nossa presença no mundo é narrativa e este
perdas – cobranças – ritmos – estilos emaranhado de narrativas, construídas em
– tempos – sonhos – ética – manifestações rede, não hierarquizadas, em diálogo, sem
artístico/culturais – pertenças/pertenci- começo, sem meio e sem fim, nos convida
mentos – mudanças e permanências – eu/ a pensar outras narrativas que possam tecer 38

eus – parcerias... uma ainda não narrada história da educação


da diversidade, das diferenças, dialógica, in-
clusiva.
PONTOS DE ATENÇÃO:

Como uma tentativa de reflexão, diante de 2. Naturalização do historicamente e

várias possibilidades e caminhos, após a es- socialmente construído

cuta e observações de inúmeras narrativas,


O acesso a narrativas, quer sejam lineares
alguns pontos são passiveis de atenção:
ou não, o acesso ao pensamento do Ou-

1. Multiculturalidade como narrativa tro, à lógica do Outro, o contato com ou-


tras narrativas, além das nossas e das que

Uma vez ouvi de Fernando Lebeis, professor validamos, convidam-nos a sair do campo

de Cultura Popular, este dito: Se tem nome da naturalização e entrar no campo do his-

existe. As múltiplas culturas ganham vida, toricamente e socialmente construído. De

existência, pelas narrativas de quem as pro- acordo com o modo como vemos o mundo,

duz, de quem as cria e alimenta. A palavra, as cosmogonias se alteram, se criam e se re-

o verbo que se faz carne, ideia, existência e criam ao longo do tempo, da história e das
sociedades. A vida é mudança e transforma- Só que, num processo de dissonância que
ção constante de um modo incapturável. consolida narrativas em que alguns se
acham valendo mais, tendo mais poderes
3. Processos institucionalizados e insti- que outros, sobretudo no que se refere aos
tuintes poderes de dominação, de existência, de
cidadania, de vida, podemos dizer que as
Se a Vida é mudança, transformação, meta- relações de poder marcam lugares sociais.
morfose, como se explicam “as verdades”? Lugares onde algumas narrativas são legiti-
Talvez, numa tentativa inglória de assentar madas, acolhidas, ecoadas em detrimento
a poeira, de controlar o incontrolável, como de outras, consolidando-se assim desigual-
uma espécie de dissonância entre narrativas dades, exclusões, distorções...
do visto, sentido e vivido, nos instituímos
rotulando, etiquetando, normatizando, re- 6. Cotidianos x dominantes
gulando, legalizando tentando, como disse,
talvez, controlar a força instituinte da vida. Partindo do pressuposto de que todos têm
e exercem o poder, nos voltamos para o co-
4. Relações de poder tidiano, como lugar de acontecimentos, do
‘aqui-agora’, de relações, encontro, confron- 39
Obviamente não estamos voltados apenas para tos, desencontros... Cotidiano como lugar
o caos ou para o princípio do prazer, pois vive- das práticas, das experimentações, das vi-
mos em grupo, em sociedade, mediados pela vências, das narrativas e, ao mesmo tempo,
comunicação, por coletividades. Também não campo das potências, campo de práticas e
podemos ficar presos(as) à bipolaridade ou ao relações de dominação da potência, da nar-
espectro da dicotomia: prazer-realidade; vida- rativa, do poder do outro, seja este outro
morte; branco-negro, homem-mulher, sim- gente na sua diversidade. Natureza na sua
não, isto ou aquilo... A Vida é muito mais que diversidade, seres vivos na sua diversidade,
isto. Por outro lado, sabemos que o instituído conhecimento na sua diversidade.
se consolida nas relações de poder estabele-
cidas em confrontos, negociações, conflitos, 7. Pontos de vista diferentes
mortes, guerras, silenciamentos... A vida social
é tensionada pelas relações marcadas pelo po- Trouxemos o poeta Ricardo Reis, um mito
der no seu sentido mais amplo e universal, ou Ioruba, palavras e expressões apreendidas
seja, todos nós temos e exercemos poder. num encontro, convite a pesquisar imagens
e histórias como da Vênus negra, do homem
5. Lugares sociais vitruviano, do osso de Ishango, para que
possamos pensar que, diante da diversidade, está presente nas diversas culturas a re-
vemos pontos de vistas diversos, diferencia- alidade diabólica. Não se trata de uma
dos, nem sempre em disputa, muitas vezes personificação do mal, como faz uma fé
complementares, outras vezes dissonantes, mais simplória e menos depurada. Mas
outras vezes abomináveis, outras vezes in- sim de um movimento oposto ao do sím-
compreendidos, outras vezes reprimidos, bolo. Do grego, diabólico seria a junção
mas presentes, vivos, a despeito das rela- de “dia” (longe, distante, fora de) + “bo-
ções de dominação. lós” (levar, movimentar, trazer, bailar),
ou seja, dividir, separar, levar para longe.

8. Diversidade Assim, toda atitude de divisão, de sepa-


ração, é uma atitude diabólica32.

Vivemos um momento de desassossego, sa-


ímos da zona de conforto do pensamento 9. Diversos olhares, narrativas, concep-

único, da ilusão da unidade, da universidade ções e vivências

para a diversidade, a multiplicidade, do sim-


Canções, poemas, múltiplas linguagens...
bólico para o diabólico. Símbolo, em grego,
Representações do tempo...
40
(...) seria a união de duas palavras “sin” Manifestações culturais, artísticas,
(junto, perto, ao lado) + “bolós” (levar, esportivas, religiosas...
movimentar, trazer, bailar), que numa
A Vênus Negra (Venus hotentote)33.
leitura imediata quer dizer: trazer para
O homem vitruviano34.
junto. Assim, todo símbolo tem por fun-
ção trazer o que representa. (...) Também Osso de Ishango35.

32 Fonte: http://pt.shvoong.com/humanities/174491-simb%C3%B3lico-diab%C3%B3lico/#ixzz1T0Qp37qj
Acesso em 24/07/2011.
33 Saartjie “Sarah” Baartman (1789-1815) foi a mais famosa de, pelo menos, duas mulheres hotentotes usadas
como atrações secundárias de circo na Europa do século XVIII sob o nome de Vénus Hotentote. http://pt.wikipedia.
org/wiki/Saartjie_Baartman Acesso em 24/07/2011.
34 É um desenho famoso que acompanhava as notas que Leonardo da Vinci fez ao redor do ano 1490 num
dos seus diários. Descreve uma figura masculina desnuda separadamente e simultaneamente em duas posições
sobrepostas, com os braços inscritos num círculo e num quadrado. A cabeça é calculada como sendo um oitavo da
altura total. Às vezes, o desenho e o texto são chamados de Cânone das Proporções. http://pt.wikipedia.org/wiki/
Homem_Vitruviano_(desenho_de_Leonardo_da_Vinci). Acesso em 24/07/2011.
35 O osso de Ishango é uma ferramenta de osso que data do Paleolítico Superior, aproximadamente entre
Homem Vitruviano e 20.000 a.C. Este objeto consiste num longo osso castanho (mais especificamente, a fíbula
de um babuíno) com um pedaço pungente de quartzo incrustado num dos seus extremos, talvez utilizado para
gravar ou escrever. A princípio pensava-se que fora utilizado para realizar contagens, já que o osso tem uma série
de traços talhados divididos em três colunas, que abrangem todo o comprimento da ferramenta, mas alguns
cientistas sugestionaram que as agrupações dos traços indicam uma compreensão matemática que vai para além
da contagem. http://pt.wikipedia.org/wiki/Osso_de_Ishango Acesso em 24/07/2011.
Essas imagens e suas legendas e referências, respeito à vida...
por si, já nos falam de multiculturalidade.
Mas, sendo um texto que pretende dialogar Trabalhar na perspectiva da diversidade não
com educadoras(es), explicamos que nossa é algo simples e fácil. Leva-nos a romper
intenção, ao apontá-las, sem rigor meto- com a ideia enraizada de homogeneidade.
dológico, é sinalizar que para onde olhar-
mos, em qualquer campo do saber, estamos Por exemplo, ainda existe, na escola, a ilu-
diante da diversidade, da multiplicidade, do são de turmas homogêneas (por nível de
diverso no universo. Estamos diante do in- aprendizagem, por faixa etária, por classe
capturável da vida e do desafio de educação social...).
para o não sabido.
Tensionar o discurso da igualdade. Não so-
mos todos iguais,
ALERTAS
somos diferentes,
O reconhecimento Trabalhar na perspectiva mas em termos de
da diversidade como da diversidade não é direito humano, so-
foco, como base, algo simples e fácil. cial, político, somos
não elimina as dis- iguais (em tese). 41
Leva-nos a romper com
torções causadas Contudo, numa so-
a ideia enraizada de
pelas relações de ciedade estratifica-
dominação e de hie-
homogeneidade. da, hierarquizada,
rarquização das di- excludente, as de-
ferenças. Reconhe- sigualdades sociais
cer as diferenças não significa respeitá-las, são evidentes, desigualdades manifestas nos
sequer saber ou querer aprender a lidar com dados oficiais, desigualdade de gênero, de
elas de modo dialógico e inclusivo. O ma- etnia...
chismo, o racismo, o elitismo, a intolerância
religiosa, a homo e lesbofobia, dentre outras Tudo isto nos tira do ilusório conforto do
manifestações de apartação do Outro, pres- “JÁ SEI”, nos convidando a estudar, ler o
supõem o reconhecimento da existência do mundo, abrir os poros para novas formas
Outro, da diferença, da diversidade, só que de aprender além dos livros, sem prescindir
pressupõem também a existência de um pa- deles, convida-nos a criar e a correr riscos
drão a ser seguido, perseguido, buscado, co- para trilhar caminhos nunca antes navega-
piado, desejado, padrões de negação ou não dos... Camões e Fernando Pessoa: navegar é
aceitação do Outro, de negação da vida, do preciso, viver não é preciso:
Navegadores antigos tinham uma É a forma que em mim tomou o
frase gloriosa: misticismo da nossa Raça37.

“Navegar é preciso; viver não é


E neste campo de imprecisão e precisão
preciso”36.
(necessidade), ficam-nos ainda questões, in-
quietações cotidianas que compartilhamos:
Quero para mim o espírito [d]esta
frase,
Se somos todos diferentes, como lidar com es-
transformada a forma para a casar
tas diferenças no cotidiano escolar e na televi-
como eu sou:
são? Como proceder diante da diversidade no
cotidiano escolar? E na televisão?
Viver não é necessário; o que é neces-
sário é criar. Não temos respostas, lamentavelmente, te-
Não conto gozar a minha vida; nem mos trilhas, pistas, indícios e sinais
em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande, a)‘Remembrar’ os conhecimentos. Edgar
ainda que para isso tenha de ser o Morin já nos convida a isto:
meu corpo e a (minha alma) a lenha
42
desse fogo. É necessário promover grande re-
membramento dos conhecimentos
Só quero torná-la de toda a humani- oriundos das ciências naturais, a fim
dade; de situar a condição humana no mun-
ainda que para isso tenha de a per- do dos conhecimentos derivados das
der como minha. ciências humanas, para colocar em
Cada vez mais assim penso. evidência a multidimensionalidade e
a complexidade humanas, bem como
Cada vez mais ponho da essência integrar (na educação do futuro) a
anímica do meu sangue contribuição inestimável das huma-
o propósito impessoal de engrande- nidades, não somente a filosofia e a
cer a pátria e contribuir história, mas também a literatura, a
para a evolução da humanidade. poesia, as artes (...)38.

36 “Navigare necesse; vivere non est necesse” – em latim, frase de Pompeu, general romano (106-48 a.C.), dita
aos marinheiros, amedrontados, que recusavam viajar durante a guerra. Cf. Plutarco, in Vida de Pompeu.
37 Fernando Pessoa. Navegar é preciso. http://www.revista.agulha.nom.br/fpesso05.html em 24/07/2011.
38 Edgar Morin. Sete saberes necessários à educação do futuro. Unesco.
Contudo, buscaremos inspiração num ou- O irmão de Osíris, Set, governava apenas
tro mito africano, agora egípcio, que nos foi o deserto, situação que não lhe agrada-
apresentado no documentário do Salto para va. Movido pela inveja, decide engendrar
o Futuro “Africanidades Brasileiras e educa- um plano para matar o irmão. Auxilia-
ção” e que ilustra nosso momento de agre- do por setenta e dois conspiradores, Set
gar, conhecer, interligar histórias, culturas, convidou Osíris para um banquete. No
conhecimentos, humanidade: decurso do banquete, Set apresentou
uma magnífica caixa-sarcófago que pro-
O mito de Osíris39 meteu entregar a quem nela coubesse.
Os convidados tentam ganhar a caixa,
O mito de Osíris é conhecido graças a mas ninguém cabia nesta, dado que Set
várias fontes, sendo a principal o relato a tinha preparado para as medidas de
de Plutarco (século I) De Iside et Osiride Osíris. Convidado por Set, Osíris entra
(Sobre Ísis e Osíris). Alguns textos egíp- na caixa. É então que os conspiradores
cios, como os Textos das Pirâmides, trancam-na e atiram-na para o rio Nilo.
os Textos dos Sarcófagos e o Livro dos A corrente do rio arrasta a caixa até ao
Mortos, narram vários elementos do mar Mediterrâneo, acabando por atin-
mito, mas de uma forma fragmentária gir Biblos (Fenícia). 43
e desconexa.
Ísis, desesperada com o sucedido, parte
à procura do marido, procurando obter
Osíris é apresentado como filho de Geb
todo o tipo de informações dos encon-
e Nut, tendo como irmãos Ísis, Néftis e
tros pelo caminho. Chegada a Biblos, Ísis
Seth. É, portanto, um dos membros da
descobre que a caixa ficou inscrustrada
Enéade de Heliópolis. Ísis não era apenas
numa árvore que tinha, entretanto, sido
sua irmã, mas também a sua esposa.
cortada para fazer uma coluna no pa-
lácio real. Com a ajuda da rainha, Ísis
Osíris governou a terra (o Egipto), tendo
corta a coluna e consegue regressar ao
ensinado aos seres humanos as técnicas
Egipto com o corpo do amado, que es-
necessárias à civilização, como a agri-
conde numa plantação de papiros.
cultura e a domesticação de animais.
Foi uma era de prosperidade que, contu-
Contudo, Seth encontrou a caixa e, fu-
do, chegaria ao fim.
rioso, decide esquartejá-lo em catorze

39 http://pt.wikipedia.org/wiki/Os%C3%ADris Acesso em 24/07/2011.


pedaços; o corpo é espalhado por todo o diálogo, os encontros cognoscentes.Trago
o Egipto. Em alguns textos do período uma frase do professor Ubiratan D’Ambrosio
ptolemaico, teriam sido dezesseis ou acerca da transdisciplinaridade, para poten-
quarenta e duas partes. Quanto ao sig- cializar este desafio que a nós, educadoras e
nificado destes números, deve referir-se educadores, se coloca:
ao fato de que o catorze é o número de
dias que decorre entre a lua cheia e a lua O essencial na transdisciplinaridade re-
nova e o quarenta era o número de pro- side numa postura de reconhecimento
víncias (ou nomos) em que o Egipto se de que não há espaço e tempo culturais
encontrava dividido. privilegiados que permitam julgar e hie-
rarquizar, como mais correto ou mais
Ísis, auxiliada pela sua irmã Néftis, partiu
certo ou mais verdadeiro, complexos de
à procura das partes do corpo de Osíris.
explicação e convivência com a realida-
Conseguiu reunir todas, com excepção
de que nos cerca. A transdisciplinarida-
do pênis, que teria sido devorado por um
de repousa sobre uma atitude aberta,
ou três peixes, conforme a versão. Para
de respeito mútuo e mesmo humildade,
suprir a falta deste, Ísis criou um falo ar-
com relação a mitos, religiões e sistemas
tificial com caules vegetais. Ísis, Néftis e 44
de explicações e conhecimentos, rejei-
Anúbis procedem então à prática da pri-
tando qualquer tipo de arrogância e pre-
meira mumificação. Ísis transforma-se
potência. A transdisciplinaridade é, na
em seguida num milhafre que, graças
sua essência, transcultural. Exige a par-
ao bater das suas asas sobre o corpo de
ticipação de todos, vindos de todas as re-
Osíris, cria uma espécie de ar mágico que
giões do planeta, de tradições culturais
acaba por ressuscitá-lo; ainda sob a for-
e formação e experiência profissional as
ma de ave, Ísis une-se sexualmente a Osí-
mais diversas40.
ris e desta cópula resulta um filho, o deus
Hórus. Ísis deu à luz este filho numa ilha Trago, já que dialogo com educadoras(es)
do Delta, escondida de Set. A partir de no seu sentido amplo, a história de Ananse41
então, Osíris passou a governar apenas o como ilustração e consequências deste des-
mundo dos mortos. Quanto ao seu filho, membramento:
conseguiu derrubar Set e passou a reinar
sobre a Terra. Houve um tempo em que na Terra não ha-
via histórias para se contar, pois todas per-
b)Transdisciplinar o conhecimento tenciam a Nyane, o Deus do Céu. Kwaku
Ananse, o Homem Aranha, queria comprar
Ideias como o tear, o tecer redes, o bricolar... as histórias de Nyame, o Deus do Céu, para
contar ao povo de sua aldeia, então, por opardo, que adorava jogos, logo se interes-
isso, um dia, ele teceu uma imensa teia de sou: – Como se joga este jogo? – Com cipós,
prata que ia do céu até o chão e por ela eu amarro você pelo pé com o cipó, depois
subiu. desamarro, aí é a sua vez de me amarrar.
Ganha quem amarrar e desamarrar mais
Quando Nyame ouviu Ananse dizer que
depressa, disse Ananse. – Muito bem, ros-
queria comprar as suas histórias, ele riu
nou o leopardo, que planejava devorar o
muito e falou: – O preço de minhas histó-
Homem Aranha assim que o amarrasse.
rias, Ananse, é que você me traga Osebo,
o leopardo de dentes terríveis; Mmboro, os Ananse, então, amarrou Osebo pelos pés, e
marimbondos que picam como fogo, e Mo- quando ele estava bem preso, pendurou-o
atia, a fada que nenhum homem viu. amarrado a uma árvore dizendo: –Agora
Osebo, você está pronto para encontrar
Ele pensava que, com isso, faria Ananse de-
Nyame, o Deus do Céu.
sistir da ideia, mas esse apenas respondeu:
– Pagarei seu preço com prazer, e ainda lhe Aí, Ananse cortou uma folha de bana-
trago Ianysiá, minha velha mãe, sexta filha neira, encheu uma cabaça com água
de minha avó. e atravessou o mato alto até a casa de 45
Mmboro. Lá chegando, colocou a folha
Novamente o Deus do Céu riu muito e fa-
de bananeira sobre sua cabeça, der-
lou: – Ora, Ananse, como pode um velho
ramou um pouco de água sobre si, e o
fraco como você, tão pequeno, tão peque-
resto sobre a casa de Mmboro, dizendo:
no, pagar o meu preço?
– Está chovendo, chovendo, chovendo,

Mas Ananse nada respondeu, apenas des- vocês não gostariam de entrar na mi-

ceu por sua teia de prata que ia do Céu nha cabaça para que a chuva não estra-

até o chão para pegar as coisas que Deus gue suas asas? – Muito obrigado, Muito

exigia. Ele correu por toda a selva até que obrigado!, zumbiram os marimbondos,

encontrou Osebo, o leopardo de dentes ter- entrando para dentro da cabaça que

ríveis. – Aha, Ananse! Você chegou na hora Ananse tampou rapidamente.

certa para ser o meu almoço. – O que tiver


de ser será – disse Ananse. Mas primeiro O Homem Aranha, então, pendurou a

vamos brincar do jogo de amarrar? O le- cabaça na árvore junto a Osebo dizendo:

40 Ubiratan D’Ambrosio.Transdisciplinaridade e a proposta de uma nova universidade. http://vello.sites.uol.


com.br/meta.htm Acesso em 24/07/2011.
41 http://pt.wikipedia.org/wiki/Ananse Acesso em 24/07/2011.
– Agora, Mmboro, você está pronto para novo: – Bebê de borracha, se você não
encontrar Nyame, o Deus do Céu. me responde, eu vou lhe dar outro tapa.

Depois, ele esculpiu uma boneca de ma- E como a boneca continuasse parada,
deira, cobriu-a de cola da cabeça aos deu-lhe um tapa ficando, agora, com as
pés, e colocou-a aos pés de um flam- duas mãos presas. Mais irritada ainda,
boyant onde as fadas costumam dan- a fada tentou livrar-se com os pés, mas
çar. À sua frente, colocou uma tigela de eles também ficaram presos. Ananse, en-
inhame assado, amarrou a ponta de um tão, saiu de trás do arbusto, carregou a
cipó em sua cabeça, e foi se esconder fada até a árvore onde estavam Osebo e
atrás de um arbusto próximo, seguran- Mmboro, dizendo: – Agora, Moatia, você
do a outra ponta do cipó e esperou. Mi- está pronta para encontrar Nyame, o
nutos depois chegou Moatia, a fada que Deus do Céu.
nenhum homem viu. Ela veio dançando,
dançando, dançando, como só as fadas Aí, ele foi à casa de Ianysiá, sua velha
africanas sabem dançar, até aos pés do mãe, sexta filha de sua avó e disse: –
flamboyant. Lá, ela avistou a boneca e Ianysiá, venha comigo, vou dá-la a Nya-
a tigela de inhame. – Bebê de borracha. me em troca de suas histórias. 46
Estou com tanta fome, poderia dar-me
um pouco de seu inhame? Depois, ele teceu uma imensa teia de prata
em volta do leopardo, dos marimbondos e
Ananse puxou a sua ponta do cipó para da fada, e uma outra que ia do chão até o
que parecesse que a boneca dizia sim Céu e por ela subiu carregando seus tesou-
com a cabeça; a fada, então, comeu ros até os pés do trono de Nyame. – Ave
tudo, depois agradeceu: – Muito obriga- Nyame! – disse ele. – Aqui está o preço
da, bebê de borracha. que você pede por suas histórias: Osebo, o
leopardo de dentes terríveis, Mmboro, os
Mas a boneca nada respondeu, e a fada, marimbondos que picam como fogo, e Mo-
então, ameaçou: – Bebê de borracha, se atia, a fada que nenhum homem viu. Ainda
você não me responde, eu vou te bater. lhe trouxe Ianysiá, minha velha mãe, sexta
filha de minha avó.
E como a boneca continuasse parada,
deu-lhe um tapa ficando com sua mão Nyame ficou maravilhado, e chamou to-
presa na sua bochecha cheia de cola. dos de sua corte dizendo: – O pequeno
Mais irritada ainda, a fada ameaçou de Ananse trouxe o preço que peço por mi-
nhas histórias, de hoje em diante, e para um de nós existem joio e trigo. Aprendi tam-
sempre, elas pertencem a Ananse e serão bém, nestas buscas de inclusão, a ver e rever
chamadas de histórias do Homem Ara- valores e conceitos pertencentes a grupos
nha! Cantem em seu louvor! não hegemônicos na sociedade e na escola.
A compreensão e o aprendizado destes va-
Ananse, maravilhado, desceu por sua teia lores como pedagógicos e didáticos podem
de prata levando consigo o baú das histó- ajudar-nos a enfrentar o cronificado quadro
rias até o povo de sua aldeia, e quando ele de produção e reprodução de desigualdades
abriu o baú, as histórias se espalharam pe- na nossa sociedade. Conhecer quem somos e
los quatro cantos do mundo vindo chegar de onde viemos, o que nos constitui cultural-
até aqui. mente, pode ser de grande valia.

Destaco este item, pois acreditamos que a 9) Reaprender a aprender


vida precisa ser colocada à frente dos conhe-
cimentos, das disciplinas, dos meios de co- Como docentes, diante de perspectivas mul-

municaçao, das técnicas, das ferramentas, ticulturais e transdisciplinares, inovadoras

do status. Estes só têm sentido se estiverem e inclusivas, é inevitável reaprendermos a

a favor e não contra a existência, qualquer aprender, buscarmos o prazer do conhecer


47
existência. e reconhecer o mundo.

8) Rever conceitos e valores Por exemplo, ou a título de ilustração, esta


capacidade de voltar atrás para reconstituir
Há muito tempo ouço educadores dizerem algo que ficou pendente, para que possa-
que os/as estudantes oriundos/as das classes mos seguir carregadas(os) energeticamente,
populares não têm valores, não têm cultu- com a energia vital equilibrada, não é nova,
ra ou estas são menores. Esta escuta sensí- povos africanos, os acã da África ocidental
vel ao que docentes dizem sobre discentes, (notadamente os asante de Gana), nos ofe-
como as/os avaliam, como as/os tratam, tem recem os Adinkras, um entre vários sistemas
me despertado interesse, seja em qual dos de escrita africanos. Os adinkras representam
lados se encontrem as/os docentes ou como ideias expressas em provérbios. Além da repre-
transitem neste espectro que vai da desqua- sentação grafada, são estampados em tecidos
lificação total ao respeito total a estas/es e adereços, esculpidos em madeira ou em pe-
estudantes. Com esta escuta, aprendi que o ças de ferro para pesar ouro42.
cotidano escolar é mais complexo e amalga-
mado do que imaginamos, não sendo pos- 10) Redescobrir o humano em nós e nas
sível separar o joio do trigo, pois em cada outras pessoas
(…) um ser racional e irracional, capaz ças negras. Quando conhecemos o amor,
de medida e desmedida; sujeito de afeti- quando amamos, é possível enxergar
vidade intensa e instável. Sorri, ri, chora, o passado com outros olhos; é possível
mas sabe também conhecer com objeti- transformar o presente e sonhar o fu-
vidade; é sério e calculista, mas também turo. Esse é o poder do amor. O amor
ansioso, angustiado, gozador, ébrio, ex- cura44.
tático; é um ser de violência e de ternu-
Maria Beatriz Nascimento, em um trabalho
ra, de amor e de ódio; é um ser invadi-
sobre Quilombo (1993)45:
do pelo imaginário e pode reconhecer o
real (...); que secreta o mito e a magia,
A filosofia bantu, da força vital, perma-
mas também a ciência e a filosofia; que
neceu até hoje no modo de ser do brasilei-
é possuído pelos deuses e pelas Ideias,
ro. A aparente aceitação das dificuldades
mas que duvida dos deuses e critica as
baseia-se justamente naquela filosofia,
Ideias; nutre-se dos conhecimentos com-
que impõe a que se desempenhe a vida,
provados, mas também de ilusões e de
fortalecendo-a no corpo físico e na mente
quimeras 43.
como “instrumento de luta”. Assim, as
Poderíamos trazer aqui várias outras pesso- religiões afro-brasileiras de origem ban- 48
as para fortalecer este item: tu ou nagô (etnias da África Ocidental)
sincretizaram-se para fornecer aos seus
Bell Hooks, com sua perspectiva de trazer o adeptos o princípio desta força que fun-
amor para nossas vidas: ciona como ‘máquina-de-guerra’ exis-
tencial e física. Marcando-se, como no
Quando nós, mulheres negras, expe-
quilombo ancestral, por ritos iniciáticos,
rimentamos a força transformadora
o fortalecimento do indivíduo como um
do amor em nossas vidas, assumimos
território que se desloca no campo geo-
atitudes capazes de alterar completa-
gráfico, incorporando um paradigma
mente as estruturas sociais existentes.
vivo e atuante no território americano
Assim, poderemos acumular forças para
fundado pelos seus antepassados escra-
enfrentar o genocídio que mata diaria-
vos e quilombolas. Agindo nos seus locais,
mente tantos homens, mulheres e crian-

42 http://ipeafro.org.br/home/br/acoes/17/17/adinkra/ Acesso em 24/07/2011.


43 Edgar Morin, op cit.
44 Por Bell Hooks - “O amor cura” http://primeiropovo.blogspot.com/2009/06/por-bell-hooks-o-amor-cura.
html Acesso em 24/07/2011.
45 Mimeografado.
seja no “terreiro” místico, nas comunida- Viva a burilação eterna, a possibilidade:
des familiares, nas favelas, nos espaços o esmeril dos dissabores!
recreativos (manifestando a música de Abaixo o estéril arrependimento
origem africana, afro-americana ou afro- a duração inútil dos rancores.
brasileira), os povos africanos da América
Um brinde ao que está sempre nas
provocam mudanças nas relações raciais
nossas mãos:
e sociais.
a vida inédita pela frente
Elisa Lucinda, com sua ‘Libação’46: e a virgindade dos dias que virão!

(...) Preferimos, contudo, parar de encher este


bornal, que para se construir me possibili-
A vida não tem ensaio
tou aprender mais sobre esta temática, com
mas tem novas chances.
a questão que permanece:

49

Como, numa perspectiva inclusiva, não hierárquica, sem racismo, sem machismo, trabalhar
com a alteridade, a multiculturalidade, no cotidiano escolar? E, no caso deste texto, tendo a
televisão como parceira?

46 http://www.elisalucinda.com.br/bau/libacao.htm Acesso em 24/07/2011.


3.4 “Isso vem do começo do mundo!”
– Dados e anotações sobre a cultura popular
Carlos Rodrigues Brandão47
Alessandra Fonseca Leal48

É da água, é do fogo; é do princípio do mundo.

Antônio Silvério – mestre ferreiro49

Algumas palavras iniciais canto ou uma sequência de dança devocio-


nal, como a da Função de São Gonçalo, seja
A primeira parte do título deste texto pode
atribuída a um ser sacralizado, que pode ir
parecer estranha, mas tem a sua razão de
do santo cuja dança celebra a sua memória
ser. O fato de que esteja entre aspas também.
à própria divindade.
Quando perguntamos a alguém sobre a ori-
gem e a autoria de uma música, de um “can- Em outras situações – e elas são múlti-
torio” de rituais tradicionais do catolicismo plas, variadas e frequentes – a autoria de 50
popular, como uma Folia de Santos Reis, ou algo a que, de modo geral, denominamos
um Terno de Congos ou de Moçambiques, como folclore, tradições populares, cultura(s)
um conto antigo, uma lenda ou mesmo uma popular(es), e, de alguns anos para cá, patri-
receita de doce caseiro, não é raro receber, mônio cultural, patrimônio cultural imaterial,
como resposta, que não se sabe por comple- costuma ser apontada uma autoria nomi-
to quem é o autor. A seguir, alguém sempre nada, individual, familiar, ou coletivamen-
remete a origem dessas produções culturais te corporada. Alguém já falecido há longo
a tempos imemoriais. “Isso vem do começo ou há pouco tempo, mas cujas criações de
do mundo”. Uma fórmula algo mais realista autoria são atestadas e comunitariamente
e próxima é também costumeira: “Isso veio reconhecidas, ou alguém ainda vivo. Um
do tempo dos nossos antigos”. Pode mesmo “mestre de Folia do Divino Espírito Santo”,
acontecer que uma forma de oração, um um notável “capitão de terno de moçambi-

47 Antropólogo, professor visitante da Universidade Federal de Uberlândia, como bolsista senior da CAPES.
Coordenador do Projeto Etnocartografias do Rio São Francisco.
48 Mestranda em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia.
49 Entrevista concedida para o livro coordenado por Olavo Romano: Mestres Minas Ofícios Gerais – resgate
cultural do artesanato mineiro – Araxá, publicado pelo SEBRAE-MG, Belo Horizonte, em 2000 (página 29).
ques”, um folgazão violeiro e improvisador Este texto não versa sobre a dimensão
de quadras da dança (ou “folga”, ou “fun- mais própria e diretamente antropológica
ção”) de São Gonçalo. De igual maneira, to- da questão do patrimônio cultural imate-
ques de viola, músicas sertanejas, criações rial. Isto será feito em um outro momento
artesanais de palha, madeira ou barro, recei- e em dimensões mais amplas. Ele trata da
tas de cura popular patrimonial, receitas de sua dimensão mais sociopolítica. Ou seja,
“comidas típicas” oscilam, de Sul a Norte do procura dar conta de definir, relacionar e
Brasil, entre o anonimato absoluto, a auto- compreender alguns conceitos situados en-
ria mítica e a autoria humana reconhecida e tre a cultura popular e o patrimônio cultu-
certificada. ral imaterial. E isto será realizado em outro
momento através de uma talvez enfadonha,
Assim também, criações populares de todos mas necessária reconstrução da trajetória
os tipos e padrões podem ser atribuídas, al- que, iniciada na UNESCO e em processo em
gumas vezes, à criação, ao “dom”, à pos- inúmeras nações em todo o mundo e, de
se ou mesmo à propriedade de uma pessoa maneira especial, em nosso caso, no Brasil,
única, de um par de autores, de uma família, gerou e segue gerando propostas, projetos e
de uma descendência familiar – “começou políticas. Lembremos, no entanto, que aqui
com o pai de meu avô e segue comigo que mesmo, no Brasil de agora, há um crescente 51
estou ensinando aos meus filhos” – e outras interesse por este intervalo entre a cultura
vezes a uma parentela ampliada, a uma con- popular e o patrimônio cultural imaterial. Vá-
fraria profana ou religiosa, ou mesmo a uma rios documentos governamentais de âmbito
comunidade. federal, estadual ou mesmo municipal têm
sido editados. E vários artigos, escritos tan-
Na verdade, quando estudamos a história to por profissionais vinculados a entidades
da arte em todo o mundo e ao longo das culturais governamentais, quando a institui-
eras, vemos que o reconhecimento de uma ções acadêmicas ou mesmo a organizações
autoria e os direitos devidos a esta autoria não-governamentais relacionadas à arte e
reconhecida variavam muito. Bach e outros cultura, têm sido escritos e colocados em
músicos anteriores à sua época, ou posterio- diálogo.
res a ela, nem sempre assinavam as partitu-
ras de suas músicas. Livros e folhetos do que
1. Do folclore à cultura
veio a ser o romance moderno circulavam
popular
entre elite e povo sem qualquer nome de au-
tor. O mesmo acontecia em alguns tempos e Recuemos alguns passos... Sabemos já que
lugares com obras de artes plásticas. uma parte bastante significativa disto, a que
se dá agora o nome de patrimônio cultural “descobrir” primeiro que os selvagens das
imaterial, recebeu em outros tempos – nem Américas e da África possuíam culturas, con-
tão passados assim – e segue recebendo até sideradas primitivas, para se admitir que os
hoje nomes como: antiguidades, tradições camponeses de suas nações também possu-
populares, folclore (folk-lore), cultura tradi- íam as suas culturas tradicionais, populares.
cional (primitiva, iletrada, rústica, camponesa
etc.), cultura patrimonial, cultura popular. Desde então é presente, ainda, e depende,
como sempre, das diferenças de olhares e de
Da parte do que poderíamos, por uma con- teorias, uma interminável discussão sobre os
trovertida oposição, chamar de cultura erudi- fundamentos e o grau de autonomia das di-
ta, cultura letrada, cultura acadêmica, cultura versas formas de realizações de culturas po-
hegemônica ou mesmo cultura dominante, o pulares. O que não deverá parecer algo sem
reconhecimento de que “as gentes do povo” sentido, se nos lembrarmos que o debate
também são criadoras e possuem formas pró- sobre a substância e o significado da própria
prias ou apropriadas de cultura é tardio. Ele cultura é até hoje – e hoje mais do que nunca
surge em algumas áreas da Europa no século – uma questão aberta entre os estudiosos, a
XVIII, mas torna-se tema de pesquisa e teoria começar pelos próprios antropólogos.
apenas ao longo do século XIX. O romantismo 52

tem aí um lugar muito importante. Chama a atenção o fato de que dois historia-
dores europeus, muito conhecidos no Brasil,
O reconhecimento da existência e da plura- recorrem a um mesmo estudioso anterior,
lidade de culturas populares vem associado para lembrar que mais do que uma separa-
ao reconhecimento – sob as mais divergen- ção em camadas superpostas, ou mais do que
tes interpretações – de que tal fato se deve uma “dominação” relativa ou absoluta das
a desníveis sociais que acompanham a pró- culturas eruditas sobre as populares, o que
pria trajetória das sociedades autoprocla- parece ter havido sempre é uma relação de
madas como civilizadas. Mas é o interesse circularidade entre atores, autores e padrões
pelo exótico entre o ancestralmente orien- ou sistemas de e entre culturas. O autor lem-
tal e o primitivamente selvagem que sugere brado é Mickhail Bakhtin, e os historiados
a alguns pioneiros europeus o estudo das que o recordam nas páginas introdutórias de
culturas “outras” de seus próprios mundos seus respectivos livros são Carlo Ginzburg e
sociais. Foi necessário ao europeu letrado Peter Burke50. Não serão os únicos.

50 Ver o prefácio à edição italiana de O queijo e os vermes, de Ginzburg e os três primeiros capítulos da parte
1: Em busca da cultura popular, de Cultura popular na idade moderna, de Peter Burke.
Deve chamar também a nossa atenção o fato poderia classificar como passadista ou não
de que diante das intermináveis incertezas científico52. Comissões estaduais de folclore e
a respeito do tema de seu estudo, logo no a Comissão Nacional do Folclore seguem rea-
primeiro parágrafo do prólogo, Peter Burke lizando um trabalho nem sempre visível, mas
opte por definir a cultura popular pelo que ainda de extrema relevância a respeito de cul-
ela não é. turas dos povos do país.

Quanto à cultura popular, talvez seja Por volta dos anos 1960, uma nova pro-

melhor de início defini-la negativamen- posta a respeito da cultura popular surge

te, como uma cultura não-oficial, a cul- no Brasil e em pouco tempo difunde-se

tura da não-elite, das “classes subalter- por uma vasta área da América Latina. É

nas, como chamou-as Gramsci51. importante lembrar o que representaram


os movimentos de cultura popular dos anos
Retornemos ao Brasil. Durante anos que 1960 para compreendermos o intervalo
vão pelo menos de nossos escritores e raros existente entre o fecundo trabalho dos
estudiosos de um romantismo em versão folcloristas e também dos pesquisadores
brasileira aos primeiros escritores regiona- dos “estudos de comunidade”, no Brasil,
listas, o interesse pelas diferentes criações dos movimentos de estudo e militância da 53
de culturas populares coube aos primeiros e através da cultura e, deles, aos temas
folcloristas. É com as suas pesquisas pionei- e dilemas de nossos dias, no que toca à
ras que uma outra face do que se cria como cultura popular.
cultura de Norte a Sul do Brasil começou a
tomar uma forma sistemática. Entre Cecília Segundo os termos próprios dos documen-

Meireles, Mário de Andrade, Câmara Cascu- tos “daquele tempo”, a vocação para o tra-

do e Alceu Maynard de Araújo, para ficarmos balho de transformar e significar o mundo

apenas em quatro nomes dentre uma quan- em que se vive, e em que se reproduz, é a

tidade apreciável de outros homens e mu- mesma vocação de transformar e significar

lheres que tanto no passado, nos meados de o próprio ser humano. Ele envolve uma prá-

século XX, quanto até hoje, produziram e se- tica biologicamente coletiva e socialmente

guem elaborando estudos que apenas uma cultural. Realiza-se como uma ação social-

compreensão empobrecida de seu trabalho mente necessária e motivada.

51 Peter Burke, op. cit. p. 15.


52 O SESC editou recentemente em um volume único, com cinco CDs, os registros sonoros da “missão
cultural” de Mário de Andrade em suas viagens de pesquisa pelo Brasil.
A própria sociedade em que o indivíduo gado o tempo de fazer essas culturas, que
converte-se em uma pessoa humana é uma agora recebiam outros nomes, como “subal-
realização de sua cultura, no sentido mais ternas”, “oprimidas”, “alienadas”, “domi-
amplo que é possível atribuir a esta palavra. nadas”, não apenas falarem de si e de seus
mundos, através de seus contos e cantos,
De igual maneira, tudo o que envolve a iden- mas dizerem de modo agora crítico e con-
tidade e a própria consciência humana, aqui- tundente algo sobre a sua condição social.
lo que permite ao ser humano não apenas Era preciso torná-las – e aos seus atores/au-
conhecer, como os animais, mas conhecer-se tores – conscientes (outra palavra cara e fre-
conhecendo – o que lhe faculta transcender quente, então) de sua própria condição, mas
simbolicamente o mundo da natureza de que também de seu poder. Era urgente transpor
é parte e sobre o qual age – é uma construção para um plano político aquilo que até então
social que acompa- havia sido estuda-
nha, ao longo de sua do e compreendido
A própria sociedade em que
história, o acontecer como algo apenas
do trabalho humano
o indivíduo converte-se em residualmente cul-
ao ‘sair-de-si’, unir-se uma pessoa humana é uma tural.
a outros e agir sobre realização de sua cultura, 54

o seu mundo e sobre no sentido mais amplo que Assim, fundada em


si mesmo. é possível atribuir a esta ideologias e asso-
ciada à “frente de
palavra.
A principal crítica luta” e a movimen-
aos estudiosos das tos entre reforma-
culturas tradicionais dores e revolucio-
no início dos anos 1960 não era muito dife- nários da sociedade nacional, uma outra
rente daquela que, muitos anos antes, Karl cultura popular pretendeu ser um corpo de
Marx fizera aos filósofos de seu tempo. Foi ideias e práticas renovadoras e questionado-
grande o esforço para compreender modos ras em vários planos. Usando a mesma ex-
de vida e formas de ser, sentir, viver, criar e pressão corrente na Europa desde o século
pensar de camponeses, pescadores e outras XIX, a proposta dos movimentos de cultura
categorias de pessoas e de grupos humanos popular (MCPs) dos anos iniciais da década
criadores de nossas “tradições populares”. de 1960 redimensiona o valor original da cul-
Mas também homens e mulheres subalter- tura popular, tal como pensada, antes, sob o
nos, “dominados” (palavra frequente então) nome de folclore. Culturas de segmentos do
e pertencentes às classes populares. Era che- povo brasileiro.
A oposição social entre modos sociais de Ao lado do domínio político direto exercido
participação na cultura é o que explica a pelas diversas instituições do poder sobre a
existência e o modo de realizar-se da cultura vida social, existe um controle que é exercido
popular. No interior de sociedades desiguais pela “cultura dominante” sobre uma múlti-
e excludentes, esta é uma das dimensões de pla “cultura dominada”. De muitos modos
universalização da cultura que é negada, a e através de diversos artifícios de comuni-
partir de suas diferenças assumidas, mas cação e de inculcação de palavras, valores e
não de suas desigualdades impostas. E não ideias, realiza-se um “trabalho” contínuo de
raro são justamente aqueles que não a pra- bloqueio e cooptação das diferentes “mani-
ticam – e, muitas vezes, limitam-se a estu- festações populares”, de tudo aquilo que “o
dá-las, compreendê-las, classificá-las, agir povo vive e cria”, que pudesse vir a expres-
“sobre” elas – que sar a sua condição
criam a própria ideia de classe e um ho-
de culturas populares, Nos termos dos rizonte de eman-
entre outras. Nos ter- movimentos de cultura cipação popular. O
mos dos movimentos popular, o povo deveria domínio da cultu-
de cultura popular, ser compreendido como ra erudita sobre a
o povo deveria ser popular seria um 55
autor, ator e consumidor
compreendido como processo. Ele mobi-
de sua própria experiência
autor, ator e consu- lizaria recursos, ca-
midor de sua própria cultural, aquela que traduz nais, meios, pesso-
experiência cultural, a sua existência de criador. as especializadas,
aquela que traduz a grupos de controle,
sua existência de criador. de propaganda, de educação. Ele inovaria
meios, recursos e tecnologias, ampliaria e
Mas de um criador subalterno, subordinado. testaria com frequência crescente as suas
Ao mesmo tempo em que “reflete” a origi- estratégias de comunicação. Assim, agiria
nalidade de seu próprio modo de vida, uma em nome de um absorver, retraduzir, e esva-
cultura popular é, também ela, subalterna. ziar invasoramente os domínios e formas de
E aqui é fácil encontrar o eco da forte pre- expressão das criações patrimoniais do povo.
sença do pensamento de Antônio Gramsci,
Assim sendo, os diferentes setores das classes
um autor e militante bastante lido e citado,
populares reproduzem, como sendo sua, uma
inclusive, por Paulo Freire, talvez o principal
cultura “culturalmente” mesclada e situada
porta-voz dos movimentos de cultura e de
fora do eixo da identidade das classes popu-
educação popular dos anos 1960.
lares. Uma cultura politicamente dominada quecida memória do que representaram, em
e externa ao processo político de gestão do seu tempo, os movimentos de cultura popu-
poder. Uma cultura, enfim, simbolicamen- lar e seus derivados: as experiências inova-
te alienada e colocada fora do eixo de uma doras de educação popular; o alvorecer do
consciência crítica53. Dentro desta situação, cinema novo no Brasil; o teatro do oprimido,
não sendo conscientizado pela sua própria de Augusto Boal; as iniciativas dos centros
cultura, o povo não poderá sê-lo por outro populares de cultura espalhados por quase
qualquer meio usual na conjuntura de do- todo o Brasil de então. Diversas experiên-
minação. E, no entanto, somente a partir da cias, depois severamente reprimidas pelos
ação conscientizada e organizada das clas- governos militares, a partir mesmo de 1964,
ses populares é legítimo imaginar a possibi- de que, de um modo ou de outro, todas as
lidade de um projeto de libertação de todas atuais alternativas de políticas culturais ino-
as esferas de domínio na sociedade de clas- vadoras são herdeiras. Em boa medida, fora
ses. E, compreendia-se, então, que uma das preciosas exceções, os estudos realizados a
frentes de luta neste sentido seria, propria- respeito da história ou “de histórias” sobre
mente, politicamente cultural. E seria, ain- formas patrimonial-populares de criação e
da, culturalmente educativa. Daí o lugar ati- vivência de cultura são marcados por cruza-
vo de movimentos e de processos de cultura mentos ideológicos (não raro sob o disfarce 56
popular e a sua associação com instituições de serem científicos), ou fazem concessões
dedicadas à educação popular. indevidas ao um certo “espírito de época”.
De tal sorte que são raros os casos em que

2. Da cultura popular ao uma visão completa e envolvente está por

patrimônio cultural ser realizada.

Dada a brevidade deste estudo, dentre os


Temos hoje uma lembrança fragmentada e
diferentes acontecimentos importantes na
fugidia do que foram os nossos estudiosos
“área da cultura” queremos recordar aqui
folcloristas, como Mário de Andrade e Câma-
apenas quatro. Eles talvez sejam os mais
ra Cascudo, tanto quanto cientistas sociais
relevantes em uma era que vai do final dos
em algum momento dedicados a estudos de
anos 1960 até o presente momento.
criações populares, como ninguém menos
do que Florestan Fernandes e Maria Isaura
O primeiro envolve um lento e muito varia-
Pereira de Queirós. Temos também uma es-
do processo de autorreconhecimento e, em

53 Talvez o livro em que esta ideia aparece com maior vigor, de acordo com os termos, críticas e propostas
dos anos 1960, seja o livro escrito pelo educador Paulo Freire, quando já no exílio no Chile: Pedagogia do Oprimido.
alguns casos de organização de unidades, munidade da Rocinha”, até populações dos
grupos, e até mesmo associações locais ou “fundos do sertão” ou dos ermos da Amazô-
mesmo regionais de cultura popular. Criado- nia, vemos comunidades indígenas, quilom-
res individuais e/ou corporados de modali- bolas, vazanteiras, veredeiras, de “fundo de
dades de culturas patrimoniais reconhecem- pasto”, em pouco tempo, passarem de aglo-
se, aproximam-se por iniciativa própria ou merados tão escondidos quanto possível
com diferentes tipos de ajudas “de fora” . “dos poderosos”, a comunidades populares
Aqui e ali surgem pequenas unidades sociais organizadas, a unidades sociais de teor polí-
em nome de artis- tico-cultural, desde o
tas e artesãos popu- âmbito de ação local
lares, de unidades Populações, povoações, até as redes regionais
de rituais popula- comunidades estão agora ou mesmo nacionais,
res, como as Com- formando categorias
com um pé fincado na
panhias de Santos étnicas, profissionais
terra de suas mais arcaicas
Reis ou as Associa- ou territoriais de ati-
ções de Congos e
e valorizadas “tradições” va luta por seus direi-
de Moçambiques, e o outro fixado, cada vez tos. E não apenas o
dos festejos de São mais, em tudo aquilo que é direito de salvaguar- 57

Benedito ou de novo, ativamente presente da de suas terras e


Nossa Senhora do territórios, mas de
e participante, presencial e
Rosário. O trabalho todo um modo pe-
virtual, político e formador
criador popular dei- culiar de vida. Uma
xa de ser folclorica-
de novas alternativas cultura, ou um entre-
mente “anônimo” de empoderamento e cruzamento de cultu-
e os seus criadores representatividade. ras.
– autores e/ou ato-
res – identificam-se Populações, povoa-
e são reconhecidos. ções, comunidades estão agora com um pé
fincado na terra de suas mais arcaicas e va-
Este processo acompanha um outro e é in- lorizadas “tradições” e o outro fixado, cada
dissociável dele. Falamos de todo um neoa- vez mais, em tudo aquilo que é novo, ativa-
contecer que não raro ocupa manchetes de mente presente e participante, presencial e
jornais. Desde povoações de morros do Rio virtual, político e formador de novas alter-
de Janeiro, antes chamadas de “Favela da Ro- nativas de empoderamento e representativi-
cinha” e agora autoidentificadas como “Co- dade.
Mais do que isto. Pessoas e grupos territo- rior da própria ideia de “popular”. A fórmula
riais, étnicos e culturais que começam agora MPB, “música popular brasileira” bem tra-
a ‘falar-por-si-mesmos’, a produzirem e leva- duz este acontecer54.
rem a congressos acadêmicos ou ao Con-
gresso Nacional as suas próprias palavras. De um lado, o florescimento de um grande
Podemos acreditar que a composição social número de ‘artistas-de-fronteiras’, algumas
de comissões locais, estaduais e nacionais vezes autoassumidos como “músicos de ra-
“de cultura” – assim como as “de saúde”, ízes”. Situados aquém e além de possíveis
“de educação” ou “de meio ambiente” – so- linhas culturais divisórias (se é que elas exis-
frerão, em pouco tempo, urgentes e justas tem) entre Elomar, Dorothy Marques e Mil-
mudanças. ton Nascimento ou Gilberto Gil, eles levam
a um ponto mais próximo do “propriamente
O segundo acontecimento traz de volta as popular” um intercâmbio entre recriações ou
ideias não apenas de Mickhail Bakhtin, lem- “interpretações de empréstimo” de músicas
bradas por Ginzburg e Burke, a que nos refe- ou de formas de cantar e dizer já bastante co-
rimos anteriormente, mas de vários outros nhecidas desde décadas bem passadas. Um
estudiosos da cultura, que antes e depois renascer da viola caipira em mãos de músi-
dele tratam de estabelecer, ao mesmo tem- cos como Renato Andrade, Paulo Freire (o 58
po, as fronteiras entre as diferentes moda- outro), Ivan Vilela ou Pereira da Viola é uma
lidades de culturas e as contínuas quebras, outra clara e feliz expressão de como o “cai-
rupturas e mútuas incursões entre “um lado pira” pode, em pouco tempo, transitar para
e o outro”. De um lado, assistimos a um di- o modernamente “sertanejo” e, dele, ou para
álogo, ora necessário e fecundo, ora arbitrá- além dele, para uma música que nem por ser
rio e ameaçador, entre diferentes criadores e “de viola” deixa de aspirar a fronteira entre o
agentes de/entre culturas. Entre o erudito e popular e o francamente erudito.
o popular – ou o folclórico e suas variações
De outro lado, há a invasão da mídia e da
– de antes, há um alargamento de mútuos
“massa” sobre qualidades artísticas tradi-
territórios culturais e de fronteiras no inte-

54 Entre nós uma diferença entre o “folclórico” e o “popular” nunca foi claramente resolvida. Afortunadamente,
pensamos nós. Em Buenos Aires, em uma loja de artigos musicais, Astor Piazola poderá oscilar entre música erudita
e/ou popular. Carlos Gardel e seus CDs de tango estarão na seção de música popular. Já Jorge Cafrune estará na
estante de música folclórica. Por outro lado, esta pequena passagem do músico e pesquisador Eduardo Gramani
estabelece outras fronteiras: Ao contrário do que se observa com outros instrumentos “brasileiros” que são
utilizados na música folclórica, a rabeca quase não participa da chamada “música popular”, mantendo sua atuação
restrita (com algumas exceções), às festas religiosas e folclóricas da região. Rabeca, o som inesperado, pesquisa de
Eduardo Gramani e organização editorial de Daniella Gramani, também responsável pela publicação em 2002, sem
indicação de local. A citação está na página 9, na introdução. Resta perguntar a razão pela qual o autor colocou
“música popular” entre aspas e não fez o mesmo com folclórico.
cionais das culturas populares. É quando, nas, são de vários modos re-visitadas e disto
em uma direção, é considerado como “raí- resulta uma produção acadêmica, ou não,
zes” e, em outra, como “sertanejo”, tornado bastante grande e variada.
“country”. É também a transformação for-
Finalmente, o quarto acontecimento talvez
çada e forjada de rituais populares em es-
seja o que aqui nos interessa mais de per-
petáculos, desde os “concursos de Folias de
to. Justamente quando silenciam ou falam
Santos Reis” ao espetáculo “global” do Boi
em surdina as suas vozes de protesto e de
Bumbá de Parintins. Muito já foi escrito so-
ação política – os MCPs e seus herdeiros de
bre os dois acontecimentos, que quebram o
causa – surgem, sobretudo da parte de agên-
intercâmbio entre fronteiras culturais deste
cias governamentais direta ou indiretamen-
tipo, em uma ou noutra direções, e ele me-
te vinculadas à “questão cultural”, as mais
recerá apenas uma breve lembrança aqui.
diferentes modalidades de propostas, ações

O terceiro acontecimento é a “descoberta” e políticas culturais. Este, em uma dimen-

do universo das culturas populares de par- são delimitada aqui de propósito, é o objeto

te de outros estudiosos e pesquisadores que mais próximo deste escrito. Para nos aproxi-

não são folcloristas e outros interessados marmos dele teremos que realizar uma es-

em nossas “tradições populares”. Depois pécie de viagem de fora para dentro ou, se
59
das incursões francamente pioneiras de quisermos, do universal para o nacional. Ou,

sociólogos, como Maria Isaura Pereira de ainda, da UNESCO e instituições de foro in-

Queirós e Florestan Fernandes, lembrados ternacional derivadas, para o Ministério da

linhas acima, pelo menos dos anos 1970 em Cultura do Brasil. Por enquanto são encon-

diante – justamente quando desapareceram tros e ‘documentos-de-encontros’ produ-


zidos em imensa maioria por “gente como
os antecedentes movimentos de cultura po-
nós”, entre ministérios e universidades.
pular – em todo o país há um vertiginoso
Mas, do lado “de lá”, do lado daqueles em
e durante longo tempo crescente interesse,
nome de quem nos reunimos e falamos, co-
primeiro de antropólogos, depois de soció-
meçam a se elevar vozes que nos desafiam
logos, historiadores, linguistas e, mais tarde
com a pergunta: “até quando...?”
ainda, até mesmo de neoestudiosos ou espe-
cialistas nos diferentes ramos e campos da
Entre estas alternativas, algumas experiên-
comunicação social, pelas mais diferentes
cias do passado próximo e do presente pa-
“manifestações” culturais populares. Das
recem apontar para horizontes promissores
Folias de Santos Reis ao Carnaval Carioca,
nesta difícil empreitada que é lidar sem dis-
passando pela Capoeira e o Candomblé, o
torcer com as culturas populares, sobretudo
Cordel e as Estórias de Trancoso, invenções
no difícil intervalo entre elas e a educação.
patrimoniais populares, religiosas ou profa-
Uma experiência passada foi a do Projeto fazer dela também uma sua outra “casa de
Interação entre a educação e os diferentes cultura”.
contextos culturais, levada a efeito pela FU-
NARTE no coração dos anos 1980. Referências

Uma outra, recente e em pleno curso, é a BRANDÃO, Carlos Rodrigues e Raiane Assump-
do Salto para o Futuro. Através dela realiza- ção. A cultura rebelde. Escritos sobre a educa-
se, passo a passo e sempre de maneira ex- ção popular ontem e agora. São Paulo: Editora
perimental e transformável, a construção de e Livraria Instituto Paulo Freire, 2009.
vias de mão dupla nas relações entre a esco-
la (dentro e fora da sala de aulas) e as cultu- BURKE, Peter. Cultura popular na idade moder-
ras populares (dentro e fora das escolas). Se na. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
podemos pensar que a educação, a escola e
as salas de aula de crianças e jovens são cada FÁVERO, Osmar. Cultura popular e educação po-
vez mais (para o bem e para o mal) perpassa- pular – memória dos anos sessenta. 2ª edição.
das e invadidas pelas mais diversas influências, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.
vindas ou não de um acesso cada vez mais fácil
e perigosamente desmesurado de todas as mí- FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de 60
dias, por que não lançar mão delas e de seus Janeiro: Paz e Terra, 2005.
mais fecundos momentos e instrumentos para
estabelecer um diálogo entre “o que se apren- GRAMANI, Eduardo. Rabeca, o som inesperado.
de na escola” e “o que se aprende com a vida”? Organizado por Daniella Gramani. Produção
Cultural de Curitiba, 2002.
Um refrão popular transformado em mar-
chinha de carnaval diz que “inspiração não GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São
se aprende na escola”. Pode ser verdade. E Paulo: Companhia das Letras, 1987.
não seria, se a educação escolar aprender
a inspirar-se mais em formas e alternativas QUINTAS, José da Silva. O difícil espelho – limi-
dialógicas e criativas do que em ‘ensinar-e- tes e possibilidades de uma experiência de cul-
aprender’. No entanto – e agora muito mais tura e educação. Brasília: Edições do Patrimô-
para o bem do que para o mal – aquilo que é nio/IPHAN, 1996.
obra dos mais diferentes homens e das mais
diversas mulheres inspiradamente criadoras ROMANO, Olavo. Mestres Minas Ofícios Gerais –
de nossas culturas não deve apenas “entrar resgate cultural do artesanato mineiro – Araxá.
na escola pela porta da frente”, como deve Belo Horizonte: SEBRAE -MG, 2008.
3.5 Para o Salto, de uma educadora

Eleonora Gabriel55

Recebi um convite para festar com o progra- guerreiras, sem perder as raízes e, por isso,
ma Salto para o Futuro. Em 2011, o progra- sem perder a ternura.
ma completou vinte anos de empenho para
trazer aos educadores e ao público em geral Falo de expressões humanas que vêm da
não só experiências pedagógicas bem suce- vida, de casa, das ascendências que passam
didas, mas, sobretudo, a esperança de que, de mão em mão, de boca em boca e nos
apesar de tudo, podemos criar uma escola constituem como sabedores de algo, que se
feliz, afetiva, conectada com o global, ilu- fosse ouvido, visto, tocado, saboreado em
minando o local, seu espaço, tempo e suas seus gostos e cheiros pelas instituições de
61
gentes. ensino, o caminho do conhecimento seria
perfumado de brasilidade.
Participei de vários programas com funções
diferentes, mas sempre conversando sobre Tive a oportunidade de construir este aro-
cultura popular brasileira. ma lendo Paulo Freire, ouvindo Carlos Ro-
drigues Brandão, Cascia Frade e outros mes-
Se na minha escola de terceiro grau eu não tres acadêmicos que desenvolveram teorias
tivesse sido sensibilizada para essa sabedo- e ações inspiradas na pesquisa em campo,
ria, para essa cultura que – de tão íntima isto é, próximos às pessoas, trocando com
– nem sempre a valorizamos como tal, pos- elas saberes e emoções, que é como tento
sivelmente eu não estaria nessa festa, re- atuar.
fletindo sobre a valorização de cada um de
nós, como criadores, e o que isso pode signi- Conheci o programa Salto para o Futuro
ficar na construção de pessoas mais críticas, por causa dos convites, e as séries que tive

55 Mestre em Ciência da Arte/UFF. Especialista em Folclore Brasileiro-UFRJ, licenciada em Educação Física-


UFRJ, professora adjunta da Escola de Educação Física e Desportos-UFRJ. Coordenadora e diretora artística da
“Companhia Folclórica do Rio-UFRJ”. Em 2012, a Companhia completou 25 anos.
oportunidade de assistir me ensinaram uma Ensino Fundamental - Educação Física,
infinidade de coisas, mesmo não sendo es- p. 71).
pecificamente da minha área.
Aliás, escrever o que se sente, o que se vive,
A primeira vez que fui convidada a participar tem sido para mim um método para come-
do Salto foi numa série sobre Educação Físi- çar uma escrita, que me leva a buscar funda-
ca. Eu deveria escrever um texto sobre Rit- mentações teóricas e construir um discurso.
mos e Expressões Culturais, baseado no PCN
da área. E agora? Apesar de desenvolver, há Depois desta exigência que tive a sorte de
alguns anos, na época, e até hoje comple- receber, continuei, mais estimulada, a pen-
tando vinte e quatro anos, um projeto aca- sar sobre como poderia estar trazendo para
dêmico intitulado Companhia Folclórica do meus alunos, futuros professores ou artis-
Rio-UFRJ, que realiza atividades de pesqui- tas da Escola de Educação Física e Dança
sa, ensino e extensão sobre dança, teatro e da UFRJ, e para outros, a possibilidade de
músicas folclóricas brasileiras, “deu aquele enxergar a cultura popular nos seus luga-
gelo na barriga”! Mais uma vez, a alegria res de moradia, trabalho, nas suas histó-
e a participação coletiva de meu povo, fa- rias pessoais, nas suas comemorações, com
zendo arte, me salvaram. Era Carnaval e eu olhos curiosos sobre si e sobre o outro. No 62
tinha acabado de assistir ao desfile de Esco- primeiro momento, todos achavam que não
las de Samba Mirins. Encantada com o que viviam nada disso, mas descobrimos, juntos,
havia visto e ouvido, fiquei me perguntando que é só querer investigar que muita histó-
se os professores daquelas crianças sabiam ria será revelada. Os resultados são até hoje
que elas se expressavam daquele jeito, com surpreendentes e conseguimos desvelar ou-
aquela força de fala, de linguagem. E por aí tros lados das famílias, dos bairros e de si,
foi: que nos são tão naturais que não percebe-
mos como cultura, como saber. E percebe-
Num país em que pulsam a capoeira, o mos como pode ser importante incentivar
samba o bumba-meu-boi, o maracatu, o em cada um de nós este conhecimento, que
frevo, o afoxé, a catira, o baião, o xote, pode ser o mote de processos de ensino e
o xaxado, entre muitas outras mani- aprendizagem mais conectados com a vida
festações, é surpreendente o fato de a real de educandos e educadores. Vale repetir
Educação Física, durante muito tempo, os dizeres do mestre:
ter desconsiderado essas produções da
cultura popular como objeto de ensino (...) a educação ou a ação cultural para
e aprendizagem (PCN ­3º e 4º ciclos do a libertação, em lugar de ser aquela alie-
nante transferência de conhecimento, Por quê? Ele: – Ninguém me perguntou! Como
é o autêntico ato de conhecer, em que tantos outros, esse pequeno artista e folião,
os educandos – também educadores – talvez, tenha dificuldade em ser alfabetiza-
como consciências “intencionadas” ao do, em organizar o discurso, em ser discipli-
mundo, ou como corpos conscientes, se nado etc. e tal. A escola perde esse potencial.
inserem com os educadores – educandos
também – na busca de novos conheci- A outra história é que a Companhia Folcló-
mentos, como consequência do ato de rica do Rio-UFRJ organizou um Encontro de
reconhecer o conhecimento existente Reisados, convidando grupos de Pastoris
(FREIRE, 1984, p. 99). e Folias de Reis. Uma aluna universitária,
quando chegou ao local da festa, veio me fa-
Vejamos dois exemplos, todos, por coin- lar, muito emocionada, pois tinha estudado
cidência, ligados a Folias de Reis, manifes- numa escola todo o Ensino Fundamental e o
tação popular muito frequente no Rio de Ensino Médio, e seu filho está nesta escola
Janeiro e invisível para a maioria da popu- agora, e convivera durante todo esse tempo
lação. Há poucos anos, a Secretaria Estadu- (e seu filho convive) com “Seu Zé”, zelador
al de Cultura do Rio de Janeiro organizou do estabelecimento. E estava vendo-o ali,
um Encontro de 30 Folias da cidade, coisa fardado, cantando, organizando o grupo de 63
rara, que precisa ser retomada! Nosso grupo Folia, um Mestre. Ela disse: – Como eu nun-
da UFRJ ficou encarregado de apresentar o ca soube disso? Como minha escola nunca me
evento. Fazendo parte daquele momento de contou? Ninguém deve saber, meu Deus! A es-
pura arte e devoção brasileira, havia um Pa- cola não conhece os talentos de sua comu-
lhaço de Folia, dançando de forma exemplar nidade e não identifica e valoriza seus agen-
e versejando como gente grande. Era um tes culturais e suas criações. Mas isso não
menino de oito anos, mulato de cabelo para precisa ser eterno!
o alto e oxigenado, isto é, um garoto como
tantos outros alunos de escolas públicas de Vivemos num supermercado cultural da al-
comunidades da cidade maravilhosa. Eu lhe deia global, que inventa desejos homogêne-
perguntei: – Palhaço Casquinha (este perso- os de estilos, lugares e imagens, buscando
nagem geralmente tem apelidos), você gosta uma massificação, que auxilia a dinâmica
de fazer parte da Folia de Reis? incontrolável do capitalismo e a hegemonia
imperialista, o que para os povos dos países
Ele respondeu: – Gosto sim! Eu, curiosa: – O do Terceiro Mundo ou em desenvolvimen-
pessoal da sua escola sabe que você é Palhaço to, historicamente desvalorizados por seus
e que recita tão bem? Ele disse: – Não. Eu: – próprios governos, representa o perigo da
globalização. Aquela velha história de va- para a diferença, para a diversidade de nossa
lorizarmos tudo o que vem de fora e não a vida, nossa família, nossos alunos, nossa es-
nós mesmos, o que desvincula, mais ainda, cola, nossa cidade, nosso estado e país.
as identidades de seus tempos, lugares, his-
tórias e tradições. O mundo de hoje parece O Salto para o Futuro me convidou para ou-
menor, com certeza, mais interconectado, o tras participações.A última foi em 2011, no
que tem efeito direto sobre as identidades programa sobre DANÇA, coordenado por
culturais, influenciando todos os sistemas Isabel Marques, e pude falar sobre dança
de representação de si e do coletivo. Urge popular e educação, sobretudo o FESTIVAL
que nós nos (re)conheçamos valorosos! Sen- FOLCLORANDO, que a Companhia Folclórica
do assim, temos a do Rio-UFRJ organi-
chance de nos sen- za e reúne dezenas
O mundo de hoje parece
tirmos pessoas iden- de trabalhos de pes-
tificadas umas com
menor, com certeza, mais quisa e montagem
as outras e, ao mes- interconectado, o que artística realizados
mo tempo, distintas tem efeito direto sobre por crianças e ado-
das demais. Assim, as identidades culturais, lescentes da rede
a identidade e a al- pública e privada 64
influenciando todos os
teridade (referente de ensino e projetos
sistemas de representação
ao que é do outro), sociais do Estado do
a similaridade e a
de si e do coletivo. Urge que Rio de Janeiro. A ou-
diversidade marcam nós nos (re)conheçamos tra oportunidade foi
o sentimento de per- valorosos! em 2009, no novo
tencer ao todo, sen- formato do progra-
do particular. ma, quando fui en-
trevistada sobre o papel das universidades
Difícil saber quem somos se não aprende- na valorização da Cultura Popular. Falando
mos na escola o valor cultural e artístico de também sobre os saberes do povo e sobre
nossa formação, que reuniu, e continua reu- educação, estavam comigo, em entrevis-
nindo, vários jeitos, conhecimentos e mo- tas individuais: Tião Rocha, que realiza um
dos de fazer. E esta mistura de gentes pode trabalho em Minas Gerais, de repercussão
ser nosso grande potencial, potencial criati- internacional, e outro educador represen-
vo, que cria formas de comunicação e arte, tante do Instituto Paulo Freire. Aquela pro-
formas de cultura. Somos no plural, preci- fessora assustada da primeira participação
samos cada vez mais criar modos de educar estava ali, depois de alguns anos, compac-
tuando com duas celebridades da educação É claro, que eles, os mestres populares, ti-
brasileira. Que salto o Salto para o Futuro nham que estar presentes e ter voz. Pessoas
me ajudou a realizar! que levam toda uma existência se dedicando
para que esse conhecimento tradicional con-
Em 2005, tive a oportunidade muito es- tinue sendo transmitido e se dinamizando,
pecial de organizar uma série chamada juntando os tempos da ancestralidade e da
“Linguagens Artísticas da Cultura Popu- contemporaneidade que, muitas vezes, são
lar”, que teve o objetivo de dialogar com invisíveis a instituições acadêmicas e pou-
os professores sobre experiências em sala co valorizados pela sociedade. No primeiro
de aula e em outros ambientes educacio- programa da série, professores que formam
nais, na realização de atividades pedagógi- professores discutiram a importância do de-
cas inspiradas nas linguagens artísticas da senvolvimento da arte popular na educação,
cultura popular brasileira: artes plásticas, seus valores artísticos, culturais, educacio-
dança, teatro, música e literatura. Enfoca- nais e políticos. No segundo, os profissio-
mos a importância de que essas expressões nais de educação que realizam projetos com
fizessem parte dos currículos da Educação linguagens artísticas no dia a dia da sala de
Infantil à universidade, como disciplinas aula. No terceiro, representantes de grupos
e/ou estratégias de ensino, valorizando artísticos desenvolvidos dentro dos espaços 65
a ideia de que todos nós somos criadores educacionais: a busca de talentos e a arte
culturais e que aprendemos durante toda popular construindo conhecimento, alegria
uma vida saberes “oficiais” e, também, os e cidadania. No quarto, mestres populares
gerados nas famílias e na sociedade, como e trabalhos sociais dentro da escola e em
já refletimos anteriormente. Nessa série, comunidades, a herança cultural de descen-
tentamos entender a cultura popular como dentes transgredindo histórias. E no último,
cultura dinâmica, presente no meio rural a escola abre a porta da frente para a cultura
e urbano, que junta tradição e atualidade popular urbana e se integra à comunidade,
sempre em transformação, um encontro desmarginalizando e incluindo suas expres-
entre tempos e espaços, com essência de sões artísticas.
brasilidade, juntando o local com o global,
o velho e o novo, completando um com o Tentamos reforçar, nessa série, a impor-
poder do outro, como diz Carlos Rodrigues tância social das manifestações que levam
Brandão (1993), e mostrando a importância nossas crianças e nossos jovens a criar for-
de trazermos, para dentro das Instituições ças de participação coletiva, repensando,
de ensino, os mestres populares. artisticamente, várias questões, inclusive a
brasilidade. E como as escolas e outros es- Peço licença aos mestres participantes para
paços de educação podem incluir toda esta usar e abusar de suas palavras complemen-
criação e recriação de arte em seus conte- tando esta festa! Reproduzo integralmente
údos, disciplinas e projetos pedagógicos. parte de dois discursos que, de alguma for-
Como sabemos, a arte tem sido importan- ma, reafirmam pensamentos já ditos aqui e
te alicerce de muitos trabalhos com crian- que eu não conseguiria reescrever com tan-
ças e adolescentes, principalmente viventes ta força.
em comunidades de risco social, que, em
sua maioria, pertencem às nossas escolas Delcio José Bernardo, jongueiro de Angra
e a outros espaços educacionais públicos. dos Reis-RJ, é servidor público, formado em
A arte contra a violência e a desvalia! Ex- Comunicação Social, com Pós-Graduação:
pressões multiculturais que colorem nossos Raça, Etnia e Educação no Brasil – Niterói-
jeitos de ser, pensar e agir, demonstrando a RJ, Faculdade de Educação – Programa de
necessidade de falarmos de inclusão, de di- Ensino Sobre o Negro na Sociedade Brasi-
versidade, de educar para a diferença, tão leira, Universidade Federal Fluminense-UFF,
natural entre tantos povos que compõem o nascido em Mambucaba, 4º Distrito de An-
povo brasileiro, abrindo as possibilidades de gra dos Reis, Rio de Janeiro, um dos berços
trançarmos arte e cultura popular na educa- do Jongo em nosso Estado. Jongo, citado 66

ção, pensando em identidades e cidadania no texto de Delcio, como sendo “Dança de


brasileiras. Pluralidade que cria arte, cul- origem africana que chegou ao Brasil por
tura, solidariedade, regras de convivência, intermédio dos Bantos, grande família etno-
ética, pertencimento, autoestima, respeito linguística, dos negros que viviam na região
à riqueza patrimonial identitária, com cara do Congo-Angola e que foram os primeiros
de Brasil, que precisa entender-se valoriza- escravizados a chegar no Brasil” (BERNAR-
do para enfrentar o maravilhoso e perigoso DO, 2005, p. 52). Ele conta:
mundo globalizado.
Impulsionado por minha mãe, come-
Revelo aqui o que alguns autores dos textos cei, em 1974, com nove anos de idade, a
que dão base às discussões dos programas frequentar as aulas no Colégio. [...] Foi
nos presentearam. Busque, no site do pro- um verdadeiro choque, era como se eu
grama, as publicações eletrônicas. Estamos nunca tivesse vivido nada antes, toda
no primeiro programa de 2005, 20/03 a 01/04, história era relacionada a um grupo ao
Linguagens Artísticas da Cultura Popular. qual eu não conhecia. Na escola nunca
se falou de jongo, capoeira, candomblé,
ou qualquer outra manifestação cultu- bom porque nós lutamos com o braço, a
ral ou religiosa ligada ao povo negro. A força e a coragem, vocês têm tudo isso
impressão era de que essas manifesta- e mais a leitura e o estudo para debater
ções não existiam. [...] Foi na escola que com os grandões’ […] (BERNARDO, 2005,
conheci de perto o preconceito.[...] Tem p. 46 e 50).
um momento importante que gosto de
recordar, trata-se de uma conversa com A Companhia Folclórica do Rio-UFRJ tem
um jovem de 18 anos da Comunidade comprovado isso, realizando o Encontro
quilombola de Santa Rita do Bracuhy, com Mestres Populares na UFRJ, em 2010,
ao qual solicitei que convidasse seu pai, na terceira edição. Este evento é um espa-
um senhor de 80 ço de encontro,
anos para falar em igualdade, do
para um grupo Abrir as portas da escola saber acadêmico
de jovens sobre para a cultura, tradicional com o saber po-
a sua experiên- e contemporânea, da pular. Convidamos
cia de vida na- integrantes de gru-
comunidade de que ela faz
quela comuni- pos tradicionais e
parte é estar interagindo, 67
dade. Para meu seus mestres e re-
espanto, o rapaz
interpenetrando, alizamos, em três
me disse o se- transgredindo e criando dias, palestras que
guinte: ‘Meu pai uma Escola Viva. falem sobre temá-
não sabe falar, ticas pertinentes à
não, ele tem ver- situação do mestre
gonha, acho que de manifestações
ele não sabe a história daqui’. Conhecen- tradicionais frente às políticas públicas, pro-
do o pai do rapaz, eu mesmo fiz o con- pomos momentos de discussão para que os
vite, o que foi aceito de imediato. Para grupos coloquem questões locais e oficinas
surpresa do jovem, o pai deu uma belís- com mestres que dão um banho de habilida-
sima aula de história sobre a comuni- de em ensinar, o que fazem por toda a vida.
dade, com muita vitalidade e confiança E o encontro se faz, a deusa Minerva (símbo-
em uma comunidade mais forte e mais lo da UFRJ) recebe uma umbigada bem fir-
unida. Desculpando-se por sua timidez e mada do mestre popular e saem dançando,
falta de leitura, finalizou dizendo, ‘fico tocando e cantando a alegria dessa parceria.
muito feliz de ver tantos jovens lutan-
do por um Bracuhy melhor, isso é muito Abrir as portas da escola para a cultura, tra-
dicional e contemporânea, da comunidade competente o adiamento do teste ou mu-
de que ela faz parte é estar interagindo, in- dança de horário para aquelas turmas que
terpenetrando, transgredindo e criando uma iriam apresentar trabalhos no Festival. A res-
Escola Viva. “A escola necessita escorrer para posta foi que as escolas que gostam de rea-
a rua. Por sua vez, a rua quer e precisa inva- lizar essas “atividades charmosas” deveriam
dir a escola”, diz Carlos Henrique Martins, entender que isso não pode interferir nas
também participante da série, descrevendo atividades do calendário curricular. Calma,
uma situação mais comum: companheiros, não podemos desistir!

Grosso modo, é como se a cultura esti- Ensina o educador Carlos Rodrigues Bran-

vesse contida em uma mochila que de- dão:

vesse ser deixada na porta da escola e,


A educação que tanto revê os seus cur-
ao ultrapassar os seus muros e portões,
rículos ganharia muito em qualidade
o aluno tivesse de abandonar sua baga-
se [...] ousasse reencontrar um sentido
gem de conhecimentos e estivesse apto
menos utilitário e mais humanamente
a receber outros novos que nem sempre
integrado e interativo em sua missão de
lhe dizem respeito ou despertam seus
educar pessoas. [...] Ensinar a pensar e
interesses [...]. Há um enorme potencial 68
sensibilizar o pensamento entretecendo
cultural trazido pelos alunos e que é si-
a matemática e a música, a gramática e
lenciado por conta da necessidade, ou
a poesia, a filosofia e a física. Um outro
até mesmo da obrigatoriedade, que a
passo estaria na redescoberta do valor
maioria dos professores têm em cumprir
humano e artístico das criações popu-
com exigências institucionais relaciona-
lares. Mas seria então necessário trazê-
das aos conteúdos voltados para a série
las para a escola e para a educação, não
e para as disciplinas específicas (MAR-
como fragmentos do que é pitoresco e
TINS, 2005, p.57 e 53).
curioso, ou como um momento de apren-

Na UFRJ realizamos o Festival Folclorando (já dizado de hora de recreio. Ao contrário,

citado) que é uma mostra de trabalhos rela- o que importa é reaprender com a arte,

tivos à cultura popular que se desenvolvem com o imaginário e com a sabedoria do

em escolas e projetos sociais. Cada ano re- povo – dos vários povos do povo – outras

cebemos mais crianças e adolescentes, em sábias e criativas maneiras de viver, e de

2011 foram mais de seiscentas. Em 2010, sentir e pensar a vida com a sabedoria e

a data coincidiu com uma prova proposta a sensibilidade das artes e das culturas

pelo município, e uma escola, que participa do povo (BRANDÃO, 2005, p.22).

desde a primeira edição, solicitou ao órgão


Nestes 34 anos de Magistério, sendo 32 na que compactuem com essa força de estu-
UFRJ, dos quais 25 atuando na Companhia do, ação e coragem. O Salto me proporciona
Folclórica do Rio-UFRJ, não estou tão sonha- isso, o encontro, que vira trança, que vira
dora como antes, mas continuo mantendo ciranda, uma rede que tece com fios de luz
minha poesia e acreditando que os momen- real e brilhante. E sempre me diz: Vamos?
tos de educação que alguns de nós criam e
Como vocês viram, recordando a minha his-
executam têm, sim, o potencial da transfor-
tória, posso declarar que o programa Salto
mação social. E a gente vai afirmando, ques-
para o Futuro, da TV Escola, transforma a
tionando, desconstruindo e construindo.
grande mídia em fonte de saber e me de-
Um certo tipo de amor? Não há Educação
safiou e auxiliou na busca de ser uma pro-
sem amor (Paulo Freire). Acho que a gente
fissional mais consciente e corajosa. Viva o
que escolhe esta missão amorosa tem es-
Salto! Viva a parceria da Educação e a Cultu-
perança de que a vida possa ser melhor. É
ra Popular Brasileira!
preciso encontrar outras vozes e corações

Para completar, apresento a vocês um exemplo de PESQUISA SOBRE SI. Cada educador(a) pode
adaptar e construir a sua, junto com sua comunidade acadêmica. Além de estreitar laços afeti-
69
vos, a gente se entende como um ser cheio de histórias e talentos, que pertence a algum grupo
social, ou a mais de um grupo, e que é responsável por isso e pela memória que está sendo
construída agora no presente e que vai saltar para o futuro. E, sobretudo, é muito divertido
observar como somos diversos e muito parecidos também!

PESQUISA SOBRE SI
*Companhia Folclórica do Rio-UFRJ

Nome: FOTO:
E-mail e telefone:
Bairro:
Idade:
A ideia é cada um construir uma árvore ge- de migrantes de outro país ou de outro
nealógica e suas curiosidades culturais, isto estado ou cidade brasileira etc.
é, contar em texto e imagem:
No primeiro momento, a gente acha que
1) As nacionalidades e naturalidades de
não vive nada disso, mas é só querer pes-
vocês, dos pais, avós, bisavós e ir até
quisar sobre si que muita história vai brotar.
onde conseguirem pesquisar.
Tem dado bons resultados e as pessoas, ge-
ralmente, se surpreendem com as descober-
2) Lembrar e/ou perguntar o que cada
tas e se sentem criadoras de cultura. Uma
uma dessas pessoas de sua vida e você
cultura muito íntima que, de tão natural,
gostavam de brincar ou brincam.
muitas vezes, não é valorizada como tal.
3) Lembrar e/ou perguntar o que cada
uma dessas pessoas de sua vida e você Se você não estiver em contato com nin-
gostavam de dançar ou dançam. guém da família, busque amigos, vizinhos.
O importante é se divertir com a sua própria
4) Lembrar e/ou perguntar o que sua fa-
história e como ela está refletida no seu jei-
mília ou amigos faziam ou fazem nas
to de ser... ou não.
festas de Natal, Carnaval ou Junina. 70
7) Conte um talento seu.
5) Contar alguma outra curiosidade
como: alguém que faz um prato gos- 8) Fale sobre seus desejos profissionais.
toso em determinada época do ano ou
comemoração, lembrança de alguma
música ou hábito especial, um costu- Referências
me religioso ou lúdico, uma supersti-
BERNARDO, Delcio José. “Jongo: uma didá-
ção etc.
tica a caminho da escola”. In: Boletim Salto
para o Futuro - Linguagens Artísticas da Cultu-
6) Procurar encontrar, na cidade ou no
bairro onde nasceu, ou vive ou traba- ra Popular. Rio de Janeiro: TV Escola, março

lha, e/ou na sua escola, alguma mani- 2005.

festação ou festa da cultura popular:


BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Cultura na Rua.
uma Folia de Reis, algum artesão, uma
São Paulo: Papirus, 1989.
Escola de Samba, um bloco de Carna-
val, uma Festa Junina, um grupo de Hip
______. O Que é Folclore. Brasília-DF: Editora
Hop, ou Funk, ou Forró, ou Pagode, um
Brasiliense, 1993.
grupo de devotos religiosos, um grupo
______ “Viver de criar cultura, cultura popu- ______ “Linguagens Artísticas da Cultura Po-
lar, arte e educação”. In: Boletim Salto para o pular”. In: Boletim Salto para o Futuro- Lin-
Futuro - Linguagens Artísticas da Cultura Po- guagens Artísticas da Cultura Popular. Rio de
pular. Rio de Janeiro: TV Escola, março 2005. Janeiro: TV [Escola, março 2005.

FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a Liberda- MARTINS, Carlos Henrique dos Santos. “Cul-
de. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. tura popular urbana e educação: o que a es-
cola tem a ver com isso?”. In: Boletim Salto
GABRIEL, Eleonora. “Escorrego mas não caio é
para o Futuro - Linguagens Artísticas da Cultu-
o jeito que o corpo dá” - as danças folclóricas
ra Popular. Rio de Janeiro: TV Escola, março
como expressão artística de identidade e ale-
2005.
gria. Niterói: UFF. Dissertação de Mestrado
em Ciência da Arte-IACS, 2003.

71
3.6 Um Rápido Balanço

Ana Waleska P. C. Mendonça56

A proposta de produzir um texto que resga- • Ainda em 1999, o especial do Dia do Pro-
tasse a memória dos anos de participação no fessor: “Educação: dos jesuítas ao ano
programa Salto para o Futuro pareceu-me, 2000”;
de início, uma empresa meio nebulosa... Por
• 2001 – “O Direito à Educação”;
onde começar? De que ponto partir?

• 2005 – “Formação Contínua de Professo-


Resolvi empreender uma consulta ao meu
res”;
“currículo Lattes”, que, bem ou mal – na
maior parte das vezes com muita má vonta- • 2007 – “Educandos e Educadores: seus di-
de – somos obrigados (as), pobres acadêmi- reitos e o currículo”.
72
cos (as), a preencher e a manter atualizado,
O que depreender dessa listagem? Que fio
na medida do possível. Habituada a vê-lo
condutor buscar? Foram essas questões, afi-
como um instrumento de cobrança, desta
nal, que se constituíram em guias da refle-
vez, no entanto, ele assumiu o papel de fon-
xão e que procuro socializar com esse texto.
te de informações e acabou configurando o
meu ponto de partida.

Participando do programa
Por sorte, lá estavam registradas as minhas
participações no programa, com o ano de No primeiro programa de que participei,
participação e a respectiva temática. Aí vão buscava-se proceder a uma espécie de balan-
elas: ço, significativamente empreendido no con-
texto das comemorações dos 500 anos da
• 1999 – “Porque não me ufano do meu país?” chegada dos portugueses a estas terras que
(da série “Debates Contemporâneos: outros viriam a constituir o que chamamos hoje de
500”); Brasil. Um dado sintomático: começamos a

56 Doutora em Educação – PUC-Rio.


contar a nossa história com a “descoberta” cronológico de que estávamos falando, isso
dos portugueses, mesmo que o termo apon- implicou várias excursões pela cidade na
te para a existência anterior da terra e do Kombi da TVE, com a equipe de filmagem.
povo que a habitava. Uma história construí- Filmamos na PUC, no Paço Imperial, no Arco
da num olhar retrospectivo e que foi buscar do Telles, no Museu da República e no belís-
até uma certidão de nascimento: a famosa simo prédio do MEC, espécie de síntese do
Carta de Caminha, que ajudou na elabora- nosso modernismo, e surpreendentemente
ção da imagem sempre recorrente de um tão mal tratado, indicando o duplo e persis-
país rico e imenso, mas cuja realização está tente descaso dos nossos governantes com a
sempre postergada para o futuro... nossa cultura e com a nossa educação.

No entanto, o próprio título da mesa: “Por Além disso, entrei, pela primeira vez em
que não me ufano do meu país?” apontava uma sala de edição. Foi interessante viven-
para uma visão meio depreciativa dessa his- ciar essas etapas tão diferentes da elabora-
tória, que servia também como um provoca- ção do programa: as longas horas de grava-
tivo, já que a proposta, a partir dessa leitu- ção e, depois, a montagem, o que implica
ra não muito complacente, era pensar nos selecionar e recortar, com base em critérios
“outros 500”, a história servindo como base diversificados e de ordem igualmente muito 73
para a projeção de um novo futuro para o diferenciada. Estes têm a ver com a estética
país, que se pretendia rompesse com a line- do programa, com a sua coerência interna,
aridade do passado. Perceber que essa histó- com os objetivos que se quer atingir, com
ria passada não é tão linear assim, resgatar o(s) público(s) a que o programa se dirige, as
propostas e experiências não muito bem su- restrições de ordem financeira e até política.
cedidas, porque tantas vezes interrompidas, A experiência se constituiu para mim, sem
pareceu-me uma contribuição imprescin- dúvida, numa significativa aprendizagem.
dível para que essa projeção de um novo e
diferente futuro tivesse alguma concretude. O resultado final foi fantástico (sem falsa
modéstia, já que o grande mérito foi do di-
O especial que se seguiu foi uma enorme retor, Otávio Bezerra). Sem que soubésse-
aventura, no sentido literal do termo. Além mos, de antemão, quem eram os demais en-
de entrevistada e meio consultora, também trevistados, creio que os depoimentos que
participei ao vivo de várias partes do pro- constituíram o fio do programa acabaram
grama. E como a opção foi gravá-lo em dis- por compor um todo coerente, que refletia
tintos locais que, de alguma forma, recrias- uma visão muito próxima do significado que
sem o ambiente da temática ou do período atribuíamos à história e dos desafios que ela
coloca para projetarmos no futuro a educa- que falei nesses programas, mas parece-me
ção que queremos. evidente a convergência dos temas. Para
garantir a efetivação do direito à educação,
O programa “rodou mundo”. Reapresenta- é preciso atender aos direitos do educador,
do várias vezes, constantemente, recebia principal instrumento de concretização do
um retorno de algum aluno, ex-aluno ou de primeiro. São direitos do educador ter um
pessoas as mais inesperadas: “vi a senhora salário digno, ter condições adequadas de
na televisão, professora”. Ia conferir e era trabalho e até garantia de formação contí-
ele, o especial dos 500 anos... Na forma de nua e permanente, condição que lhe é cons-
fita de vídeo, usei-o muitas vezes, como ma- tante e contraditoriamente cobrada.
terial didático, inclusive uma delas em uma
apresentação para uma plateia bem diversi- Considerando os mais de dez anos passados
ficada, dentro da “Mostra PUC”, seguindo- do primeiro desses programas (2001), acho
se um bate-papo, que avançamos
com outro dos entre- Para garantir a efetivação bastante no que se
vistados, o professor refere ao direito à
do direito à educação,
Antonio Edmilson educação das crian-
é preciso atender aos 74
Rodrigues, colega ças. As estatísticas
do Departamento de
direitos do educador, nos mostram que
História. principal instrumento de conseguimos co-
concretização do primeiro. locar praticamen-
O enorme sucesso te quase todas na
do programa reafir- escola, ao menos
mou-me o interesse que a história desperta, no período de escolaridade obrigatória, e
quando abordada de forma significativa, e vamos aumentando progressivamente esse
a sua importância para equacionarmos as tempo. Mas permanece o desafio de garan-
questões atuais da nossa educação. tir a aprendizagem efetiva das crianças e as
recentes avaliações do MEC confirmam que
As três últimas temáticas, lançando-lhes um há muito ainda a avançar nessa direção.
olhar retrospectivo, parecem-me constituir
um conjunto: o direito à educação, por um Qualquer melhoria nesse sentido passa ne-
lado, a formação do professor, por outro e, cessariamente pelo professor e pelo currí-
na conjunção dos dois temas, direitos de culo. Aliás, prioritariamente pelo professor,
educadores e de educandos e o currículo. até porque é ele quem operacionaliza o cur-
Por certo, não me recordo em detalhes do rículo.
Em artigo que escrevi recentemente para Fazer o difícil e fazê-lo em grande escala –
o Jornal dos Economistas, chamava atenção parece-me que a lição do mestre ainda não
para a centralidade dessa questão. Ressalta- foi aprendida e o desafio permanece, com
va, entre outras coisas, que já nem mais for- o agravante de que a urgência é ainda mais
mamos inicialmente professores na medida premente e que os resultados, em educação,
de nossas necessidades: só se fazem sentir a médio prazo.

Os cursos de licenciatura, especialmente


em determinadas áreas, deixaram de ser Uma reflexão final: a
atrativos e o número de professores que utilidade da história
se formam é absolutamente insuficien-
Nessa parte final, peço licença para trazer as
te para atender à demanda. Na origem
palavras igualmente abalizadas de Antonio
dessa crise o desprestígio da profissão,
Nóvoa (2004), historiador da educação por-
face, entre outras coisas, aos baixíssi-
tuguês, e referência também no Brasil, que,
mos salários (MENDONÇA, 2010).
ao prefaciar o primeiro volume de uma cole-
E completava, afirmando que o foco das po- tânea de História da Educação, pergunta-se
líticas educativas deveria, necessariamente, pela sua utilidade.
ser o professor, salário, qualificação e con- 75
Lamentando-se por um certo desprestígio
dições de trabalho constituindo o tripé que
dessa disciplina específica nos dias de hoje,
deveria orientar tais políticas.
dentro do campo da educação – embora dis-
Não podendo fugir ao vício de historiadora, ciplina fundadora do mesmo – o autor colo-
trazia, por fim, as palavras de Anísio Teixeira ca-se a pergunta: “para que serve a história
que, há mais de 40 anos, apontava para a da educação?”. Destaco algumas das respos-
imensa urgência de um efetivo investimento tas que encaminha:
no preparo do magistério em face do cres-
“11) Para cultivar um saudável ceticismo,
cimento vertiginoso e avassalante do sistema
em um mundo que endeusa acritica-
escolar. E insistia:
mente tudo o que é novo;
Essa conjuntura, que é a de fazer o difí-
12) Para pensar os indivíduos como pro-
cil e fazê-lo em grande escala e depressa,
dutores de história, servindo esta para
obriga-nos a planejar a formação do ma-
nos colocar diante de um patrimônio
gistério no Brasil em termos equivalentes
de ideias, projetos e experiências;
aos de uma campanha para formação de
um exército destinado a uma guerra já 13)Para explicar que não há mudança sem
em curso (TEIXEIRA, 1969, p. 240). história e que a mudança imaginada
a partir de um não-lugar, sem raízes e a minha atuação profissional e que funda-
sem história, é mera ilusão (NÓVOA, mentaram, sem dúvida, a minha colabora-
2004).” ção com o programa.

E em outro texto seu, o autor advertia:


Nessa certeza estaria o fio condutor que
explica (ou pode explicar) a participação de
O mínimo que se exige de um historiador
uma historiadora da educação, que tem por
é que seja capaz de refletir sobre a his-
ofício a reconstrução incessante do passa-
tória da sua disciplina, de interrogar os
do, num programa que se intitula Salto para
sentidos vários do trabalho histórico, de
o Futuro...
compreender as razões que conduziram
à profissionalização do seu campo aca-
dêmico. O mínimo que se exige de um Bibliografia
educador é que seja capaz de sentir os
MENDONÇA, Ana Waleska P. C. A Tragédia
desafios do tempo presente, de pensar a
do Ensino Público no Rio de Janeiro. Jornal
sua ação nas continuidades e mudanças
dos Economistas, n. 253, agosto de 2010, p.
do trabalho pedagógico, de participar cri-
12-13.
ticamente na construção de uma escola
76
mais atenta às realidades dos diversos
NÓVOA, António. História da educação: Per-
grupos sociais. A História da Educação só
cursos de uma disciplina. Análise Psicológica,
existe a partir desta dupla possibilidade,
4 (XVI), 1996, p. 417-434.
que implica novos entendimentos do tra-
balho histórico e da ação educativa (...)
________. Prefácio. In: STEPHANOU, Maria
(NÓVOA, 1996, p. 417).
e BASTOS, Maria Helena Câmara (orgs). His-
tórias e memórias da educação no Brasil, v. I.
A certeza de que a história é útil, sim, e
Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.
muito, para a educação e para o educador,
e a atitude proposta por Nóvoa, acima, que
TEIXEIRA, Anísio. Escolas de Educação. RBEP,
aponta para a possibilidade de que esta per-
v. 51, n. 114, abril/jun. 1969, p. 239-259.
mita novos entendimentos da ação educati-
va, é que vêm pautando, ao longo do tempo,

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