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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Escola de Comunicação
Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena

Caminhada como resistência: Entre uma estética da desaparição e e uma dimensão relacional.

Pedro Freitas

Arte e Cena
Profa: Carmen Gadelha

Rio de Janeiro, 2018

Resumo: Esse artigo pretende articular e explicar metodologicamente o conceito de deambulação, central para essa
pesquisa de mestrado. Este se coloca aqui como operatório para analisar performances, peças de teatro, filmes e outros
tipos de obras artísticas que ocorram em espaços urbanos, preferencialmente públicos. A deambulação pretende pensar
o caminhar como uma categoria expressiva na encenação das obras. Aqui pretendo categorizá-la historica e
politicamente - no sentido de sua oposição a uma mentalidade produtivista e naturalista - e esteticamente - ao recorrer a
análise de duas obras do cineasta Tsai Ming-Liang.

Palavras-Chave: cidade, deriva, desterritorialização, cartografia, deambulação.

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1.
Gostaria de levantar a reflexão aqui de que a ideia de uma recuperação da experiência trágica na
contemporaneidade engloba também uma dimensão anti-produtiva. Identifico essa experiência
trágica a partir de dois diagnósticos da experiência contemporânea: o de Byung-Chul Han em seu
livro “Sociedade do Cansaço” (2017) e o de Jonathan Crary no livro 24/7 – “Capitalismo Tardio e
os Fins do Sono” (2016).

A tragédia, em sua circularidade, encarnaria assim uma característica resistente frente aos desejos
desenvolvimentistas da sociedade em que vivemos, e que tem nas grandes metrópoles seu maior
palco. Em grande parte ela vem problematizar a noção de liberdade tal como colocada pelo
existencialismo. Ela parte propriamente de outra acepção sobre a ideia de sujeito, que não mais
agora tem liberdade para escolher os caminhos de sua vida, mas que se lança numa alta cobrança
por desempenho.

Porque esse sujeito assujeitado pela sociedade capitalista poderá ser identificado como uma figura
trágica? Conforme diz Byung-Chul Han, inspirado em Foucault, esse sujeito não se encontra mais
em uma sociedade disciplinar, de forte perspectiva imunológica, pela qual seu trabalho de produção
é caracterizado como um dever. No neoliberalismo o sujeito deve inventar os mecanismos pelo qual
se valoriza. Esse sujeito, produtor de si mesmo, sai de uma relação em conflito com as instituições e
encontra-se agora como empreendedor de si mesmo. Para o filósofo é como se, em relação a
sociedade disciplinar, houvesse um ganho de narcisismo em relação a alteridade.

Agora é o próprio sujeito que se disciplina afim de cumprir as demandas que uma sociedade de
controle, como colocada por Deleuze. Ele nos diz:

As antigas sociedades de soberania manejavam máquinas simples, alavancas, roldanas, relógios; mas as
sociedades disciplinares recentes tinham por equipamento máquinas energéticas, com o perigo passivo da
entropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de controle operam por máquinas de uma terceira
espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo é a interferência, e o ativo a
pirataria e a introdução de vírus.
Não é uma evolução tecnológica sem ser, mais profundamente, uma mutação do capitalismo. É uma
mutação já bem conhecida que pode ser resumida assim: o capitalismo do século XIX é de concentração,
para a produção, e de propriedade. Por conseguinte, erige a fábrica como meio de confinamento, o
capitalista sendo o proprietário dos meios de produção, mas também eventualmente proprietário de outros
espaços concebidos por analogia (a casa familiar do operário, a escola). Quanto ao mercado, é
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conquistado ora por especialização, ora por colonização, ora por redução dos custos de produção. Mas
atualmente o capitalismo não é mais dirigido para a produção, relegada com frequência à periferia do
Terceiro Mundo, mesmo sob as formas complexas do têxtil, da metalurgia ou do petróleo. É um
capitalismo de sobre-produção. Não compra mais matéria-prima e já não vende produtos acabados:
compra produtos acabados, ou monta peças destacadas. O que ele quer vender são serviços, e o que quer
comprar são ações. Já não é um capitalismo dirigido para a produção, mas para o produto, isto é, para a
venda ou para o mercado. Por isso ele é essencialmente dispersivo, e a fábrica cedeu lugar à empresa.
(DELEUZE, 1992, p.221)

Para Byung-Chul, esse sujeito encontra-se imerso em um regime de positividade, muito distinto
daquele de uma sociedade disciplinar. O filósofo esclarece que esse regime se dá a partir de um
afrouxamento de fronteiras entre o tempo do trabalho e o tempo do lazer, onde ambos não se
desvinculam de uma dimensão do consumo, a todo o tempo presente. Há uma indeterminação
mesmo da ideia de trabalho, visto que não se trata mais de um tempo apenas produtivo – um fazer –
mas de outras atividades, como as de divulgar, prospectar e conhecer os meios comerciais onde que
se inserir.

Segundo ele, havia para Nietzsche duas possibilidades de potência, a potência positiva estaria
alinhada com fazer algo, a potência negativa seria a do não-fazer. A sociedade contemporânea,
hiper-conectada e fornecedora de estímulos a todo momento se coloca assim claramente do lado de
uma potência positiva. Ele identifica na capacidade de contemplação uma forma de frear a
tendência a reação imediata aos estímulos:

“A negatividade do não-para é também um traço essencial da contemplação. Na meditação zen, por


exemplo, tenta-se alcançar a negatividade pura do não-para, isto é, o vazio, libertando-se de tudo que aflui
e se impõe. Assim é um processo extremamente ativo, e algo bem distinto que passividade. É um
exercício para alcançar em si um ponto de soberania, de ser centro. Se possuíssemos apenas a potência
positiva, estaríamos, ao contrário, expostos de forma totalmente passiva ao objeto. A hiperatividade é
paradoxalmente uma forma extremamente passiva de fazer, que não admite mais nenhuma ação livre.
Radica-se numa absolutização unilateral da potência positiva.” (HAN, 2017, p.58)

Nesse sentido o sujeito contemporâneo se situaria assim a partir de uma falsa liberdade, imerso em
um regime positivo. A tragicidade, por outro lado, ocuparia o lugar de uma conjugação uma
negatividade e uma positividade. A primeira se referenciaria ao modelo dionisíaco da sociedade
grega e estaria vinculada a essa abertura para a contemplação que retira o sujeito de si e o faz entrar
em um agenciamento com outros. A segunda a uma positividade do fazer, da auto-afirmação e da
exibição que traçam os contornos do indivíduo, sob influência apolínea.

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Crary (2017) denuncia esse mesmo estado-de-coisas na contemporaneidade, destacando como um
ideal desenvolvimentista leva o capitalismo atual a tentar maximizar seu desempenho através da
exploração dos indivíduos. Ele sugere que o sono é uma das últimas barreiras que ainda não cedeu
para a mentalidade produtivista, e destaca como essa tem sido uma premissa que o capitalismo
informacional tenta superar. Segundo o autor, nos últimos cem anos temos assistido a uma queda na
quantidade e qualidade de horas de sono da humanidade.

Para Crary o tempo 24/7 se baseia em um regime da indiferença, na qual a fragilidade da vida
humana é cada vez mais inadequada; em relação a produção, ele naturaliza a ideia de um trabalho
sem pausa. Para além de um tempo voltado apenas para a propriedade de objetos, se trata agora de
uma era onde nossos corpos consomem serviços, imagens, procedimentos e produtos químicos em
níveis alarmantes.

Como exemplo dessa dinâmica, Crary comenta a respeito de um projeto que pretendia iluminar uma
extensa área escura na região da Sibéria a partir do lançamento em órbita de imensos refletores de
luz. Tal experiência não se concretizou por contingências, mas o filósofo parte deste exemplo para
trazer a exata dimensão desse projeto de maximização da produtividade através da tecnologia.
Crary remete ao modelo original do Panóptico de Jeremy Bentham, tal como comenta Foucault, de
inundar espaços com luzes afim de suprimir as sombras e criar condições de vigilância total, graças
a essa visibilidade exacerbada. Não se trata porém de uma vigilância que ocorre através de uma
luminosidade literal, mas de uma incapacitação do visual como forma de dar conta da experiência
do sujeito no mundo:

Ao devastar toda condição de luminosidade, exceto as funcionais, o 24 / 7 participa de um imenso


processo de incapacitação da experiência visual. Ele corresponde a um campo onipresente de operações e
expectativas a que estamos expostos e no qual a atividade ótica individual é transformada em objeto de
observação e administração. Nesse campo, não temos mais acesso à contingência e à variabilidade do
mundo visível. As mudanças recentes mais importantes dizem menos respeito às formas mecanizadas de
visualização do que à desintegração da capacidade humana de ver, em especial da habilidade de associar
identificação visual a avaliações éticas e sociais. Com uma oferta infinita e perpetuamente disponível de
solicitações e atrações, o 24/ 7 incapacita a visão, por meio de processos de homogeneização, redundância
e aceleração. (CRARY, 2016, p.43)

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Penso que podemos fazer uma relação aqui com a ideia de experiência trágica tal como é
comentada por Nietzsche. Essa vivência sem nenhuma forma de acaso ou mistério disponível, e sob
a luz de refletores potentes guarda em si um recalcamento da vida dionisíaca, caracterizada pelo
desejo de se embriagar e ter os contornos individuais ultrapassados. A hiperestimulação sensível
encontra aqui aquele aspecto apolíneo tal como comentado por Nietzsche a respeito da tragédia, o
de uma hipervaloração do Eu, do que se encontra no regime do visível; Ele constitui uma
subjetividade que tem acesso ao todo através de um self.

Crary elenca procedimentos onde a privação de sono tem sido usada afim de se conquistar
objetivos, principalmente de teor militar. Segundo ele atualmente o Pentágono vem estudando
formas de manter soldados acordados pelo período de até sete dias, através de substâncias
neuroquímicas, terapia genética e estimulação magnética transcraniana. (CRARY, 2017, p.12).
Procedimentos semelhantes tem sido utilizados para correções comportamentais de indivíduos -
através por exemplo do isolamento em espaços iluminados e fechados, onde não se possa mais
distinguir a noite do dia - aplicável tanto em situações que vão desde encarceramentos até a
exploração espacial.

Ele identifica esse regime contemporâneo, assim como Byung-Chul Han, não como uma força de
submissão da humanidade; mas que revela a “discrepância entre um “mundo da vida” humano e a
evocação de um universo aceso, cujas tomadas se perderam.” (CRARY, 2016, p.40). Uma demanda
por desempenho, visto que há não há situações onde não podemos fazer compras ou explorar os
recursos da rede, esse não-tempo 24/7 se insinua sob todos os aspectos da nossa vida social e
pessoal.

O indivíduo afetado por esse regime de tempo, sem passado nem futuro, encontra-se numa posição
de impotência constante, visto que, se por um lado ele deseja adquirir, ter, ganhar, desperdiçar,
dentro de um regime capitalista, por outro ele se vê constantemente submetido a suas demandas.
Diz ainda que “ao externalizar o indivíduo, transforma-se em objeto de escrutínio e regulação
ininterruptos, o que se coaduna perfeitamente com a organização do terror estatal e com o
paradigma militar-policial da dominância absoluta.” (2016, p. 41)

Perceptivamente, Crary vê na experiência do 24/7, uma incapacitação da experiência visual.


Instaurada numa sociedade constantemente sob estado de vigília. Ele passa a se questionar em
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seguida quando iniciou-se essa crise do visual, a partir de um trecho do filme “Elogio ao Amor”, de
Godard.

Essa também é uma questão para a qual pretendo oferecer algumas respostas parciais ao longo
desse artigo. Segundo Crary, ela é o resultado de um processo de ordem cumulativa, que se dá a
partir da instauração de uma cultura do espetáculo. A imagem assim se torna um elemento sem
passado nem futuro, nos prendendo em um presente cada vez mais reiterado pelos diversas mídias
que nos rodeiam.

2.
Em grande parte uma cultura capitalística parte de um certa ordenação sistemática da duração,
remetendo-nos a todo momento ao tempo cronológico. Esse tempo estratificado se relaciona
fortemente ao caráter utilitarista e precarista marca nosso tempo. Tal marcação ocorre
principalmente através de um regime visual e auditivo que nos solicita a todo momento a situações
de urgência. Nesse artigo pretendo pensar o conceito de deambulação como ferramenta operacional
em suas dimensões políticas e estéticas.

A deambulação é uma prática que vem sendo realizada sistematicamente como elemento
constituidor de uma experiência estética na contemporaneidade, tais como performances, peças de
teatro e filmes. A relação do artista com o espaço urbano é frequentemente uma forma de expor seus
discursos em relação a comunidade. Pensando nisso proponho aqui o conceito para analisar
trabalhos artísticos de site-specific que se dão principalmente em ambientes públicos.

Para isso tecerei algumas reflexões sobre o espaço da cidade na contemporaneidade. O espaço
urbano, sabe-se, tem um características peculiares: dominado pela iniciativa privada e para o
comércio, ele lança seus moradores em um estado constante de deslocamento. Se trata de um
espaço metrificado e especulativo, constantemente retificado pela influência do mercado.

É interessante notar que que entre as edificações históricas da cidade frequentemente o tombamento
se torna a única medida efetiva contra a constante destruição e reconstrução da cidade. Esse sistema
de espaço estriado, mantenedor de uma estrutura social desigual, se serve aqui a uma mentalidade
produtivista, na qual os sujeitos sociais acabam por se tornar sujeitos de desempenho.
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Nesse sentido seria pouco efetivo da minha parte fazer um estudo apenas objectual em relação ao
espaço urbano, sem levar em conta o imbricamento entre individual e coletivo que o marca. O
espaço urbano marca determinadas características da vivência dos sujeitos que tem também uma
significação cultural. Morar em um bairro mais próximo do Centro frequentemente se mostra como
um diferenciador de capital cultural na lógica das grandes cidades.

Penso que o conceito de deambulação como ligado aqui já se relaciona a uma percepção externa em
relação a essas obras. Uma relação que conjugue o sujeito que atua daquele que a espectatoraliza. A
cidade aparece assim como elemento espetacular por definição e o ato da caminhada como uma
prática desterritorializante dos percursos demarcados no espaço urbano.

O caminhar encontra-se aqui portanto entre uma representação - que centrifuga o ambiente em cena
- e uma apresentação, no sentido que é revestido de uma certa falta de intencionalidade, no sentido
que o situacionismo lhe conferiu. Frente a uma sociedade do espetáculo, tal como dito por Guy
Debord (2003), a teoria da deriva propunha ações artísticas a partir de percursos pela cidade. Dentro
das tensões do campo do urbanismo, tais fluxos se opõem diretamente a uma mentalidade
utilitarista a qual estamos submetidos.

Pretendo então tecer algumas reflexões iniciais a respeito deste conceito, suas motivações
metodológicas, assim como as que características que pretende abarcar. Essas reflexões se referem
diretamente ao trabalho de Byung-Chul han (2015) e Jonathan Crary (2017), que nos caracterizam
o capitalismo tardio como um agenciamento que passa por um processo de esgotamento. A
Sociedade do Espetáculo transmuta-se assim em uma sociedade do Desempenho (HAN, 2015),
habitada por sujeitos que já não tem limites cronológicos para o tempo que disponhem para o
trabalho.

Por fim pretende utilizar esse conceito para analisar dois curta-metragens, “Walker” (2012) e “No
No Sleep”(2015), de realizador malaio Tsai Ming-Liang. Ambos foram também importantes na
constituição deste conceito enquanto agente político, por nos darem testemunhos do estado-de-
coisas contemporâneo na vivência das grandes metrópoles. Incatalogáveis tanto quanto ficção
quanto documentário, esses filmes estabelecem seu discurso não por uma enunciação, mas pela
simples apresentação dos personagens em escala com o que os cerca. Refletem e representam o

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papel do caminhante como um sujeito que está subjulgado pelo ambiente da cidade moderna e pela
mentalidade produtivista.

Nesse sentido o conceito de deambulação supõe uma conciliação entre o sujeito ativo e aquele que
opta por uma via contemplativa. Se trata de um tempo como proposto aqui que parte da ideia de
uma coincidência entre um regime fisiológico - estabelecido a partir de um retorno do corpo - e
outro de origem imaginativa. Por imaginação não entende-se aqui uma força informe, mas algo que
é constantemente demarcado pelos aspectos perceptivos do ambiente.

Nesse sentido será de grande valia analisar alguns conceitos de Deleuze como devir, espaço liso /
espaço estriado e cartografia, afim de refletir sobre como se constitui uma psicogeografia do
espaço urbano. Por conta disso, pretendo, ao longo de todo o percurso desse artigo, traçar passagens
- considerações também iniciais - sobre a questão da percepção. Para tal me vali da leitura de “A
imaginação”, de Sartre, no qual este faz um percurso do papel da imagem ao longo da filosofia
moderna, de Descartes a Husserl.

Com este último Sartre teve forte identificação no começo do percurso de sua filosofia. O
descolamento do papel das imagens em relação a consciência, tal como proposto pela
fenomenologia, terminou por ser um dos elementos norteadores de sua filosofia existencial e
humanista. Afim de tornar o homem livre - aqui ainda partimos do referencial antiquado da
categoria “homem” usada pelo filósofo como elemento catalisador dos universais - Sartre tentará
suprimir da percepção sua relação moral com a consciência, afim de liberá-la como depositório de
intencionalidades, fornecendo aí um papel ativo para a imaginação.

Me parece dificil hoje em dia ter esse tipo de utopia liberal. O sujeito contemporâneo, pelo
contrário, encontra-se muitas vezes encarcerado em ambientes privados. Nesse contexto ele se
afasta completamente de uma experiência real - ainda que fugaz e transitória - que o ambiente da
cidade moderna o proporciona. O papel da imaginação aqui é deslocado para o de uma auto-
performatividade. Nesse sentido o conceito parece norteador para obras que pretendem utilizar de
seu potencial espetacular de forma desnaturalizada e crítica em suas relações com a cidade.

A Deriva e a deambulação, tal como pensada pelos situacionistas poderiam se associar como
elementos de uma outra percepção, não mais volta apenas para uma hipertrofia do visual e aos
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instantes que se repetem. Mas uma que se estabelece a partir do momento em que se habita os
espaços - estabelecendo outra temporalidade. Essa percepção se relaciona fortemente a ideia de
uma via contemplativa tal como colocada por Byung-Chul Han. A contemplação aqui prevê uma
temporalidade onde a visualidade se dilui em uma percepção sensorial, provocando assim um
contágio entre os diferentes sentidos. Assim este conceito estaria vinculado a um papel negativo, de
oposição a produtividade, tanto quanto a um papel positivo: o de um retorno do corpo e sua relação
com o espaço como elemento central nas obras a serem analisadas. O lugar da caminhada aqui
surge a partir de seu referencial desterritorializante e retorrializante no regime perceptivo moderno.

Como é possível que os movimentos de desterritorialização e os processos de reterritorialização não


fossem relativos, não estivessem em perpétua ramificação, presos uns aos outros? A orquídea se
desterritorializa, formando uma imagem, um decalque de vespa; mas a vespa se reterritorializa sobre esta
imagem. A vespa se desterritorializa, no entanto, tornando-se ela mesma uma peça no aparelho de
reprodução da orquídea;mas ela reterritorializa a orquídea, transportando o pólen. A vespa e a orquídea
fazem rizoma em sua heterogeneidade. (DELEUZE, 1997, p.18)

Sobre este binômio é importante ressaltar que ambos devem ser utilizados em conjunto, visto que os
domínios do território estão a estrutura de poder da sociedade. Logo, quando alguém é removido,
por exemplo, de uma área “de risco”, esse processo se dá pois já há outra retorrialização -
provavelmente de carater especulativo - em curso.

3.
A operacionalidade do conceito de deambulação proposto aqui pretende responder a uma cultura do
excesso e do consumo rápido tal como conhecemos. Ele encarna um papel duplo: ao mesmo tempo
em que propõe uma representação figurativa, chamando a atenção para a figura do pedestre na
cidade, se presta a ser utilizado como elemento disparador de expressividades cênicas. A ideia de
deambulação vem de encontro a um sujeito que caminha, suspenso entre o estado de uma
reflexividade permanente, potencializadora de representações.

Tal conceito aponta principalmente para o papel performativo que a caminhada pode conter, a partir
de uma ida para as ruas a partir de outra postura estética daquela que comumente tomamos. A rua
aparece aqui como espaço de uma transmutação de identidades, espaço social e disponível para ser
habitado.

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Em sua multiplicidade de convívios, a cidade é entendida aqui como espaço também passível de
uma espectatorialidade, palco-móvel, a partir do qual nos desvinculamos de um regime informativo.
O caminhar surge como eixo desterritorializante na medida em que nos faz abdicar de uma
consciência baseada apenas nas imagens estáticas; e na medida que propõe encontros.

Ao mesmo tempo ele supõe uma indeterminação das identidades em curso, o que me leva a crer que
poderia servir de princípio para analisarmos uma estética da desaparição. A desaparição na massa de
pessoas que compõe as grandes cidades se relaciona aqui também com uma ideia do anonimato
enquanto tática política de resistência as opressões que o capitalismo cognitivo global nos propõe.
O anonimato ganha uma qualidade viral, pelo acesso que proporciona. Ele parte da utilização de
uma iconografia dos símbolos do capital contra ele.

Nessa perspectiva de uma apagamento da identidade como tática política, a deambulação aqui se
inscreve como vivência que é acessível a todos os sujeitos urbanos. Pelo compartilhamento de tal
experiência, ela poderia nos instaurar em uma dimensão relacional, onde real e virtual estão em
imbricamento. Essa estado deambulatório se aplicaria tanto no caminhar quanto a um errar-entre-
imagens da ordem do virtual. Entre essas duas premissas encontra-se os elementos de uma
abstração do corpo e do ambiente em signos óticos.

A reterritorialização que tomamos partido aqui opera em um sentido contrário, o de propor outra
cartografia para o espaço urbano; longe das vias institucionais, essa se caracterizaria pela sua
potência afetiva e estética. O pedestre, em seus descaminhos pela cidade, conteria assim uma
capacidade de alisar o espaço estriado que está determinado pelas estruturas do capital. Para
Deleuze, o espaço liso é um nomos na medida que o estriado é uma logos. O segundo fundamenta-
se fortemente portanto no referencial métrico cartesiano, pelo qual ordenará a cidade. Já o espaço
liso se presta mais a uma desterritorialização. No lugar de uma reflexão formal, ele nos fornece a
matéria. Ao contrário de uma percepção ótica, ele defende uma percepção háptica, baseada em um
regime de intensidades. Ele se caracteriza pelas distâncias e não pelas medidas.

Por isso o que ocupa o espaço liso são as intensidades, os ventos e os ruídos, as forças e as qualidades
tácteis e sonoras, como no deserto, na estepe ou no gelo. Estalido do gelo e canto das areias. O que cobre
o espaço estriado, ao contrário, é o céu como medida, e as qualidades visuais mensuráveis que derivam
dele. (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p.163)

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Se tormarmos a cidade, como, por exemplo, um campo expressivo aberto as reinvidicações das
diversas minorias que a compõem este poderia nos servir de base para pensar a ideia de uma
cartografia das obras a partir de percursos incertos, mapas afetivos, a qual pretendo retornar nesse
artigo.

Se trata propriamente de dois eixos temporais, um voltado para a cidade enquanto instância social e
outro como lugar de reflexão do sujeito sobre a imagem. Como nos relembra Benjamin, a respeito
de Atget, a cidade ganha uma dimensão fantasmática a partir de uma representação em que está
despida de seus referenciais produtivos. Sobre o fotógrafo ele nos diz:

“Atget foi um ator que retirou a máscara, descontente com sua profissão, e tentou, igualmente,
desmascarar a realidade. Viveu em Paris, pobre e desconhevido, desfazia-se de suas fotografos doando a
amadores tão excêntricos como ele, e morreu há pouco tempo, deixando uma obra de mais de quatro mil
imagens” (BENJAMIN, 1987, p.100)

Benjamin diz que as fotografias de Atget são precursoras da fotografia surrealista. Foi dela o papel
primeiro de ir de encontro a uma fotografia convencional, interessada em registrar as identidades -
principalmente a partir da ideia de retrato. O filósofo nos diz ainda que a produção fotográfica se
deu a partir de uma busca pelo que se encontrava perdido na cidade, uma aura romântica, que
provoca uma intensificação. Ele nos diz ainda:

“Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto de tão perto quanto possível, na
imagem, ou melhor, na sua reprodução. E cada dia fica mais nítida a diferença entre a reprodução, como
ela nos é oferecida pelos jornais ilustrados e pelas atualidades cinematográficas, e a imagem. Nesta, a
unicidade e a durabilidade se associam tão intimimamente como, na reprodução, a transitoriedade e a
reprodutibilidade” (Ibid., p.101)

Entre a caminhada e a percepção imagética, a deambulação se apresenta aqui como forma de


encarar a cidade a partir de uma perspectiva relacional. É também devedora de uma larga
perspectiva ocidental que enxerga a cidade como lugar da discussão política, porém igualmente
problematizada pela crise de consciência de um sujeito moderno. Penso que ideia de um movimento
gerado por si, a partir de um direcionamento de energia propõe outra forma de vivência em relação
ao regime imagético moderno.

Nesse sentido a experiência da caminhada aparece como disjuntiva entre uma experiência imagética
e outra perceptiva, conforme a diferenciação que Sartre realiza desses aspectos. Em “A

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imaginação”, ele associa a percepção a consciência, agente no presente, enquanto as imagens
ocupariam uma espécie de não-lugar na esfera do pensamento. Elas surgem justamente quando se
coloca uma disjunção entre intuição e percepção. As imagens se inscrevem em outra camada, que
passam necessariamente pela intencionalidade do sujeito. Em seu postulado sobre a imagem a partir
de Husserl o filósofo francês estabelece as bases do que entendemos como subjetividade da
imagem, descolando-a porém daquele subjetivismo da psicologia.

Nesse sentido penso o conceito de deambulação aqui como elemento tático para uma
expressividade. Ele propõe uma disjunção entre um regime corporal uniformizado e uma
possibilidade de regime de imagens em movimento, próprio da percepção nas cidades em que
vivemos.A deambulação seria assim um estado onde o sujeito estaria imbuído e exposto a
sensorialidade do meio em que se encontra. Tal conceito nos auxiliaria portanto a pensar uma
possibilidade de separar o corpo do pensamento, no contexto de uma experiência urbana.

A caminhada enquanto resistência a um mundo hiperacelerado e hiperconectado traz novamente


para os domínios do corpo a agência do sujeito; Para isso será fundamental para nós analisar nesse
artigo e nos encaminhamentos dessa pesquisa como uma percepção da cidade como espaço
imagético definiu um certo regime de atenções desde o fim do século XIX até nossos tempos.
Desde já podemos adiantar que elas reservaram ao pedestre um papel de passividade frente as
massas maquinárias que atravessam seu percurso.

Nesse sentido recuperar a força matriz - retorno ao corpo - da caminhada é também propor um
regime de vivências que, a partir da noção de cotidiano, proporcione uma força de invenção para o
sujeito. Em tal percurso pretendo, penso que se articulam elementos da psicologia do sujeito nos
princípios do século XX e do estudo das cidades em seus aspectos geográficos e perceptivos.

4.
Para Ben Singer a cidade moderna constitui um ambiente de hiperestimulação dos sentidos, a partir
de uma intensidade e fragmentação das percepções (2011, p.101). Penso que essa experiência é
fundamental para pensarmos esse espaço estriado, atravessado pelas forças do capital, que ainda
permanece erigido. Ela foi disparadora de um tipo de atenção moderna, posteriormente capturada
pelo behaviorismo. Este se opõe diametralmente ao estudo que Sartre e Husserl estabelecem para a
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percepção, visto que parte do princípio que o sujeito se constitui de acordo com comportamentos
psicológicos. Sobre ele, John B. Watson diz:

A psicologia, como um behaviorista a vê, é um ramo puramente objetivo da Ciência Natural. Seu objetivo
teórico é a previsão e o controle do comportamento. A introspecção não é parte essencial de seus métodos
[...] o behaviorista, em seus esforços para conseguir um esquema unitário das respostas animais, não
reconhece uma linha divisória entre homem e besta. (1913, p.1)

Valho-me aqui de uma intuição que relaciona a postura behaviorista com uma percepção que só fora
possível a partir do surgimento das cidades planejadas segundo os grandes planos diretores do
Urbanismo. Leo Charney, citando Georg Simmel, caracteriza a cidade moderna como aquela
provocada pelo “rápido agrupamento de imagens em mudança, a descontinuidade acentuada no
alcance de um simples olhar e a imprevisibilidade de impressões impetuosas”, percebe-se aqui um
forte potencial do cinético como elemento constituidor dessa experiência. Essa experiência parte de
um referencial da cidade do final do século XIX / princípio do século XX, concomitante a difusão
da imprensa, a criação da fotografia e do cinema, de uma cidade que tem seu valor instituído pela
capacidade de difusão das imagens técnicas.

Charney irá identificar como essa experiência constituiu a ideia de uma visualidade propriamente
moderna, a partir da definição da categoria de instante. O instante seria assim tempo de
intensificação das sensações, interrompendo uma dobra da consciência, um espaço voltado para si.

Ele nos fala que essa noção do instante como sentido e experimentado foi um antídoto buscado a
alienação da modernidade, tal como colocado por diversos filósofos. Ela foi buscada por Pater na
noção de instante sublime, assim como por Benjamin a partir da noção de choque, e por Jean
Epstein na noção de Fotogenia.

O instante aparece assim como regime temporal constituidor de uma experiência moderna.
Resultado da percepção do sujeito na cidade moderna, ele é também elemento constituinte de uma
linguagem fotográfica, daí seu papel duplo e auto-reflexivo. Se ele permanece é em um regime de
desaparecimento, na medida em que a própria noção de veracidade das imagens se perdeu.

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Ao fazer da falta um elemento constituidor de sua linguagem a fotografia analógica procura medir o
intervalo que se contrapõe entre aquele que é fotografado e as marcas de sua representação que
restam na materialidade da foto.

Se ainda hoje permanecemos sob uma ordem de instantes que se sucedem, é preciso ter em conta
que estamos dentro das imagens, na medida que somos o tempo todo vigiados pelo regime do
capital. Já não é possível pensar uma linguagem fotográfica a partir da referência a uma lógica
objetiva, que procura encontrar nas imagens traços de uma realidade. Feito isso estaríamos sob o
risco de um regime modelar, na medida em que captura nossos desejos e os expõe enquanto
mercadorias. A cidade moderna baudelairiana, dos princípios do século XX, estabelece-se como
uma espécie de protótipo de um ambiente perceptivo baseada em uma maximização do olhar. Ela
estabelece um tipo de regime escópico específico , como nos demonstra Jonathan Crary, pelo qual
há uma constante solicitação de atenção por parte do caminhante. (CRARY, 2007)

A cidade moderna encarnou assim um potencial de formação estética e política que foi fundamental
para constituir o sujeito do século XX. Em especial Leo Charney nos mostra no seu texto que
Benjamin, ao analisar a cidade moderna das décadas de 10 e 20, destaca a ideia de um “agora da
reconhecibilidade”. Segundo ele, “para o historiador materialista, cada época com a qual se ocupa é
somente uma história antecipada daquela que realmente o preocupa. (BENJAMIN apud
CHARNEY, p. 321).

Ainda que não totalmente por imagens, as cidades são ainda hoje espaços de resistência para o
caminhante, no sentido de impor-lhes um regime de esperas e acelerações, a partir de uma
submissão de sua figura ao tráfego veicular. Podemos supor que daí surge a hipótese de que é esse
regime de choques e sensações um dos responsáveis hoje pela hiperestimulação direcionada a
produtividade no mundo contemporâneo.

Em última instância, Benjamin vê na capacidade de ordenar essas imagens que nos provêm da
experiência na cidade moderna, uma forma de se distituir de uma ordem linear e desenvolvimentista
a partir da ideia de outro produtivismo, menos desenvolvimentista:

Benjamin descreve suas Passagens não como um trabalho completo [...] mas como um evento
progressivo, uma meditacão peripatética ou flanêrie, na qual tudo o que é encontrado por acaso no

14
caminho torna-se uma direção potencial que seus pensamentos podem tomar. (Sieburth apud CHARNEY,
p. 321)

Benjamin nos diz ainda que a confecção dessa colagem conceitual devia muito à montagem do
cinema. Seu método estaria baseado em uma exibição total no lugar de uma demonstração. Nos
remetemos aqui a diferenciação que Deleuze realiza entre apresentação e representação.

Para Deleuze, a imagem-cristal - termo que o filósofo utiliza no livro Imagem-Tempo, sobre o
cinema moderno, seria responsável por se opor a um regime sensório-motor como aquele próprio de
uma representação clássica. São imagens que se abrem para a matéria, fragmentando-se
rapidamente em elementos puramente óticos e sonoros.

“O cinema sempre contará o que os movimentos e os tempos da imagem lhe fazem contar. Se o
movimento recebe sua regra de um esquema sensório-motor, isto é, apresenta um personagem que reage a
uma situação, então haverá uma história. Se, ao contrário, o esquema sensório-motor desmorona, em
favor de movimentos não orientados, desconexos, serão outras formas, mais devires que
histórias” (DELEUZE, 1990, p.77)

Nesse sentido a ideia de deambulação, partindo da experiência do caminhar provocaria um


decréscimo de representação, um devir-múltiplo, pelo qual o sujeito se dissassocia de sua própria
identidade. O sujeito se abre aí a uma multiplicidade, no sentido que Deleuze nos aponta em
Nietzsche em sua terceira figura de transmutação, presente em Zaratustra. Há aí também uma
inspiração no sentido do que constituiria uma filosofia dos meios expressivos, a partir do momento
que a noção de Verdade já não se constitui para a criança; sua inversão torna a verdade agora como
submetida a vontade. Uma e outra se tornam uma prática necessária no caminho das metamorfoses
interiores.

O devir, tal como colocado por Deleuze, se caracteriza por um estado de incompletude radical e
abertura ao desejo. Em uma análise das durações na percepção, o filósofo nos fala que esse constitui
por um regime temporal sem antes nem depois, responsável pela multiplicação de si no
acontecimento e no encontro.

O devir, tal como colocado por Deleuze (1997, p.15) não é uma correspondência de relações,
tampouco uma semelhança ou uma imitação. Ele não pertence a ordem do imaginário; ele desvia-se

15
a dicotomia entre ser e imitar; assim o devir-multiplo aqui evocado não tem a pretensão de que o
sujeito se destitua de sua identidade, mas que entre em uma confluência temporal com outras.

Há uma proximidade entre a ideia de devir tal como proposta pelo filósofos e as fases do espírito
que Nietzsche identifica. Para Deleuze, o devir tem também um significado político, a ver com a
construção de uma contra-hegemonia, no sentido que o sujeito homem, branco e heterossexual deve
passar por diversos devires, mais identificados com uma minoria. Em Mil Platôs ele nos diz, junto a
Guattari, que esse sujeito devêm primeiro mulher, em oposição a representação de si. Em um
segundo estágio, ele devêm criança – tal como nos diz Nietzsche – e por fim, devem animal,
mergulhando definitivamente no múltiplo.

Pelo contrário, afirma-se o Uno do múltiplo, o Ser do devir. Ou então, como diz Nietzsche, afirma-se a
necessidade do acaso. Dionísio o jogador. O verdadeiro jogador faz do acaso um objeto de afirmação:
afirma os fragmentos, os membros do acaso; desta afirmação nasce o número necessário, que reconduz o
lançamento dos dados. Vemos qual é a terceira figura: o jogo do eterno Retorno. Retornar é precisamente
o ser do devir; o uno do múltiplo, a necessidade do acaso.
(DELEUZE, 2007, p.57)

Ele cria uma multiplicidade na medida em que o retorno será sempre a um Outro. “O eterno
Retorno é a Repetição; mas é a Repetição que seleciona, a Repetição que salva. Segredo prodigioso
de uma repetição libertadora e selecionante”.

Essa repetição instaura uma multiplicidade na medida em que o retorno não é do mesmo, mas de
Outro. Ele torna-se afirmação de uma outra vontade. Nesse sentido o Eterno Retorno constitui-se
aqui como uma força diametralmente oposta ao ressentimento, sentimento que para Nietzsche
comanda as forças reativas.

Esse devir-múltiplo se vê estabelecido aqui nos convívios sociais que se dão no espaço urbano. A
cidade se estabelece como lugar prioritário tanto para uma vivencia micropolítica – ao nível do
indivíduo e suas relações – quanto macropolítica, na medida em que a cidade é espaço de disputa e
manifestação de diferentes setores da sociedade.

Nesse sentido o caminhar, o estar-em-espaço público e participar de suas interações ganha um


caráter de abertura de escuta ao outro e de elogio a um convívio comum que formula as bases para o

16
debate político e social, dissociando-nos de um regime onde o sujeito volta-se apenas para si e para
a superação de suas limitações produtivas.

Esse outro que retorna faz do tempo da caminhada um tempo de seu gerenciamento. Mais do que
estabelecer seus ritmos, ele deixa-se levar pelo passo da multidão. O sujeito na acepção deleuziana
está diluído em uma estrutura molecular, e é nesta concepção que o filósofo se fundamenta para
enunciar uma passagem do devir-criança para o devir-imperceptível. Assim, fase a fase, o devir se
torna um conceito que constitui o que chamo aqui de uma estética da desaparição, no sentido de se
afastar de uma ideia de consciência e de um narcisismo exacerbado.

Mais do que presentes nas cidades, hoje em dia as imagens nos surgem a partir de uma navegação
virtual entre figuras-textos que afeta nossa percepção inclusive na forma como assimilamos e
reprogramamos o espaço urbano. A tela surge como um Outro da cidade; espaço abismático no
qual o sujeito trafega entre informações mas onde sempre retorna a si mesmo como possuidor de
uma posição fixa ao redor do qual tal mundo se organiza. A tragicidade que se instaura em um
regime imagético digital é equivalente aquela ganha pela pintura ao se deslocar do quadro, nos
princípios de uma arte visual moderna.

A deambulação parte de uma inspiração imagética no sentido das leituras que as redes
proporcionam para as imagens digitais. Nas redes, as imagens estão em um regime transicional e
midiático entre outros objetos. Elas nos convidam a nos perdermos. O errar entre imagens associado
com o caminhar, contudo, partem de uma postura ativa, uma forma de perceber e de reordenar as
imagens, muito mais do que apenas reagir a elas. O movimento torna-se o vetor de uma outra forma
de contato com o espaço onde o sujeito se encontra. Dessa forma instaura uma desterritorialização e
um desapego da ideia de funcionalidade das trajetórias. Se ecoam aqui elementos de uma Teoria da
Deriva, no sentido em que essa é entendida como uma psicogeografia social. Compartilho com ela o
elogio que propõe aos sujeitos de uma abertura emocional aos acasos.

Ela também se relaciona com a proposta de uma outra via contemplativa, no sentido que nos fala
Byung-Chul Han, no sentido de entendê-la como prática política de caráter terapêuticovisto que
nos solicita uma via contemplativa para a percepção frente as demandas de um capital que nos
estabelece enquanto sujeitos insaciáveis de desempenho.

17
5.
O Discurso do Método (2011), de Descartes, pode ser tratado também como um tratado de
autolibertação de uma série de prisões que as linhas científicas então existentes não davam conta e
que o filósofo antevera. Em seu texto revezam-se as intuições a respeito dos entrecruzamentos entre
diversas ciências, além de uma informação de raiz subjetiva, auto-fabulatória na qual o filósofo
narra seu percurso em relação ao conhecimento.

Suas referências durante o texto em relação ao espaço em que viveu são o que fundamenta um
referencial histórico em seu discurso. São algumas as referências no livro as viagens do autor para
outros países, a partir do contato com outras culturas. Tal conhecimento traz uma dimensão
simbólica que ele narra para esclarecer a forma como estabelece seus métodos para chegar ao
conhecimento.

O método cartesiano utilizado pelo autor procurava ir de encontro aos princípios que
fundamentavam a Escolástica, guia científico proveniente de um cristianismo que encontrava-se em
declínio. Ao procurar reorganizar o conhecimento autoritariamente imposto pela Igreja, Descartes
criou as bases para a ciência moderna, em especial em seu aspecto lógico e no privilégio que
fornece a um raciocínio analítico-matemático. As bases que constituem o que se entende como
cartesianismo parte de uma aproximação entre o que surgiu de um encontro da álgebra com a
geometria. Daí estabeleceram-se métodos como a geometria analítica e o sistema de coordenadas.

Não há rastro de marcas do corpo em seu discurso, visto que o cartesianismo propunha um sistema
de valores para o qual procurava ordenar a mente, não contaminada pelos elementos físicos.
Descartes estabeleceu as bases de um idealismo moderno, que se congrega no conceito de
indivíduo.. Nesse sentido ao mesmo tempo direcionava-se para erigir as bases de uma nova ciência
como propunha um modelo moral de conformação a sociedade tal como existente. Em seu sistema
filosófico a ideia de corpo sofre uma negação epistemológica. Seu pensamento reflete sobre a
constituição do sujeito pensante procurando sempre, porém, dar conta de uma independência do
pensamento em relação ao ambiente em que este se encontra.

Sua filosofia tem como foco principal a constituição, portanto, de uma subjetividade mental
racionalista, que está fundada sobre raízes históricas e que se utiliza das formas de ordenação da

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história - modos de relatar - para combater um ceticismo proeminente. Com o cartesianismo se
coloca o problema da Experiência e modernidade ganha suas bases para constituir um pensamento
que se caracteriza por sua auto-reflexividade.

Apesar de se basear em um sistema lógico, parto do pressuposto que o cartesianismo como o


conhecemos hoje se tornou fundador de uma filosofia moderna na medida em que absorveu não só
um discurso mas os próprios estratagemas que Descartes usa para se representar no texto. Seu
sistema de coordenadas permite localizá-lo enquanto indivíduo frente a tradição modelar de uma
ideologia cristã. É esse aspecto representativo do sujeito que pretendo problematizar aqui, a partir
da leitura de outros filósofos sobre sua obra.

Acredito que nesse processo haja um imbricamento de discussões vigentes sobre a crise da
representação na áreadas Artes da Cena. Acredito que é possível fazer esta relação através de uma
apreensão poética de certos trechos do Discurso do Método - ecoando definições das ciências
humanas. A imaginação que temos de uma ciência descartiana é sem dúvida debitaria de figuras que
ele usa para descrever sua trajetória de pensamento, como a do viajante:

“Minha segunda máxima era ser o mais firme e resoluto que pudesse em minhas ações, e não seguir com
menos constância as opiniões mais duvidosas, uma vez que por elas me tivesse determinado, do que as
seguiria se fossem muito seguras. Nisto, imitando os viajantes, que, achando-se perdidos em alguma
floresta, não devem ficar perambulando de um lado para outro, e menos ainda ficar parados num lugar,
mas andar sempre o mais reto que puderem na mesma direção, e não a modificar por razões
insignificantes, mesmo que talvez, no início, tenha sido apenas o acaso que lhes tenha determinado a
escolha: pois desse modo, se não vão exatamente onde desejam, ao menos acabarão chegando a algum
lugar, onde verossilmente estarão melhor do que no meio de uma floresta” (DESCARTES, 2001, p.29)

O caminho do pensamento para Descartes é, portanto, esse caminho reto para sair da floresta, em
direção a um espaço mais habitável. O espaço conturbado desse ambiente, simbolizado por seu
excesso de risco, seria deixado para trás nas trajetórias que o pensamento traz em direção a um
ambiente mais ordenado e que pudesse se tornar tábula rasa para a construção: o deserto.

“...e faz justamente oito anos que esse desejo levou-me à resolução de afastar-me de todos os lugares
onde pudesse ter conhecidos e retirar-me para aqui, um país onde a longa duração da guerra fez
estabelecer-se tal ordem que os exércitos que nele se mantêm parecem servir apenas para que se gozem os
frutos da paz com muito mais segurança e onde, entra a multidão de um grande povo muito ativo e mais
preocupado com seus próprios negócios do que curioso dos alheios, sem me faltar nenhuma das

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comodidades das cidades mais frequentadas, pude viver tão solitário e retirado como nos mais longínquos
desertos” (DESCARTES, 2011, p. 31)

Sua determinação em seguir adiante pode ser lida tanto como um elogio de uma linearidade, de viés
historiográfico, quanto um rompimento com uma tradição clássica. A mentalidade de seguir adiante
- abrir vias - estará de seu percurso ao presente muito ligada a uma mentalidade moderna, conforme
nos comenta Marshall Berman (2009). Mentalidade esta progressista e teleológica que estará na
fundação de uma estrutura mecanicista do pensamento nos dois séculos seguintes, assim como
fundamentará a ideia de uma ciência das cidades - o urbanismo.

Como pensar uma cartografia que tem o corpo não só como dado informacional, mas como
elemento constituinte de suas intensidades? Seria preciso considerar o corpo como elemento
constituidor da experiência?

Entendo que há aqui a possibilidade de uma equivalência entre os traçados geométricos e os


percursos do sujeito urbano que trafega no espaço urbano a partir de um viés utilitarista.
(DEBORD, 2003).

Nesse sentido pretendo estabelecer aqui pontos de contato com os métodos cartesianos a partir de
duas leituras, a primeira de Jean-Paul Sartre, no seu livro “A imaginação”, 2009, no qual há uma
crítica a ideia de metafísica, e no qual irá desdobrá-la em uma reflexão sobre o papel da Experiência
como fundadora do existencialismo.

Formulo a hipótese que o elogio de Sartre a imaginação pode nos ajudar a desnaturalizar a ideia de
uma existência puramente pautada pela eficiência e gestão do nosso próprio tempo. O processo de
imaginar seria peça-chave e componente necessária para a invenção dos sujeitos. Conjugando-a
com a ideia de Benjamin de escovar a historia a contrapelo (1987, p. 222-232) temos aqui uma
constatação de que compor narrativas não passa apenas pela ideia de um construir, mas de relatar a
partir de materialidades.

O sujeito contemporâneo é muitas vezes tratado apenas como um ponto dentro do espaço
demarcado e valorizado do terreno urbano. Espaço este em grande parte estratificado pela ideia de
um urbanismo funcional.. Nesse sentido, por mais que nosso pensamento tente se desenredar de
uma ideologia moderna, ele é condicionado na própria medida em que nossos deslocamentos pela
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cidade são regulados pelos poderes hegemônicos. Para as redes de conhecimento não somos mais
do que vetores que se movem, rastreados a partir de localizações via satélite.

Porém se entendermos o método cartográfico como possibilidade narrativa, ele se potencializa em


seu aspecto mais essencialmente moderno: sua capacidade de inventar novas origens, criar tábulas
rasas que apagam o passado tradicional e que refunda novas bases para a produção de
conhecimentos. Entre estas estaria propriamente uma instância fundadora da capacidade de
produção imagética da modernidade. O produtor de narrativas na contemporaneidade está desta
forma entre aquele sujeito que se desloca na dimensão urbana e o sujeito produtor de imagens. A
partir de uma lógica de organização em rede por um capitalismo informacional (Castells, 2009) e
pela cultura de imagens se torna ele próprio um elemento que precisa ser constantemente
refabricado e redivulgado, afim de sobreviver na lógica do mercado cultural.

A partir de uma análise cartográfica, o espaço urbano surge aqui como uma evidência possível
enquanto um elemento constituidor de capital simbólico. A capacidade de compor cartografias
próprias, além de método para a constituição de narrativas, se torna também uma forma de
estabelecer linhas de fuga ao espaço estriado na cidade. Por isso, como forma de reatualizar
filosoficamente essa ideia de cartografia pretendo recorrer a prática e nova significação que Deleuze
dá para esse termo.(1997). Pretendo refletir sobre como este conceito ajuda a pensar práticas
autônomas e vivências contemporâneias disjuntivas em relação a um sistema de produção
capitalística.

A essa ideologia penso, enfim, ser necessária sobrepor outra, que se volte para um imbricamento da
ideia de corpo e cidade. O caminhar, entendido aqui como eixo desterritorializante, tem algo de
inapreensível. Ele representa uma fronteira frente as codificações que nos impõe a constante
vigilância do capital. No conceito de deambulação ele quer ser entendido, ao invés de elemento
comportamental como constituinte de uma expressividade do sujeito. No lugar da funcionalidade
própria do corpo estriado, decodificado pelas ciências, proponho uma aproximação da cidade como
corpo sem órgãos, tal como nos refere Deleuze (1997, p.8-27). Este conceito se refere a um corpo
destituído de qualquer orgânica e funcional, que se extende todo como matéria sensível,
estabelecido a partir de um regime de intensidades e descontinuidades.

21
Por fim, já entrando no caráter analítico frente as obras derivativas que este trabalho propõe,
pretendo refletir sobre a cartografia como um campo reflexivo de mudanças, práticas de
acompanhamento de processos. Penso que ela se relaciona também a um regime contemporâneo
onde a ideia de autoralidade encontra-se em questão já que estratégias de anonimato tem se tornado
uma ferramenta mais eficaz no contexto de repressão que vivemos. Nesse sentido a experiência da
caminhada alcança seu potencial expressivo justamente pelo que ela engendra de comum em relação
aos cidadãos urbanos. Ela traça um movimento de retorno ao chão, agora desterritorializado das
estrias econômicas e reteritorializado pelos corpos que escapam.

6.
Em sua primeira obra, “A Imaginação”, Sartre investiga como através de alguns sistemas filosóficos
da modernidade, a ideia de imagem esteve apartada do que constituiria e experiência racional dos
sujeitos. Logo no começo de seu ensaio, o filósofo diz que a imagem, para o projeto cartesiano
constituiria o local onde se funda o limite da exterioridade. A imaginação, portanto, passaria por
uma via do entendimento que, somado a impressão que o sujeito tinha do mundo, nos fornecia uma
consciência dessa imagem.

Estamos aqui no momento exato da construção do indivíduo moderno. A imagem, mais do que ser
um campo de difusão de conhecimentos e possibilidade de ação política, se encontra restrita a um
ideal narcísico, onde o sujeito se reconhece e estabelece seu papel social em relação ao redor. Ela
está portanto submetida pela consciência e tem pouca ou nenhuma liberdade como instância
articuladora e relacional entre os indivíduos.

Ao analisar essa característica de uma filosofia moderna, Sartre descreve que, para Descartes, as
imagens serviriam como movimentos que produziam um aparecimento na consciência. Sua crítica
ao projeto cartesiano parte da difícil delimitação que Descartes não estabelece entre as imagens
enquanto provindas de uma sensibilidade corporal e as imagens enquanto parte constuidora da
psique. Em Descartes as imagens são apenas um resultado do sistema mecanicista que submete o
sujeito a uma ordem racional. É a esse racionalismo que o filósofo francês tentará sobrepor seu
sistema filosófico, afim de esvaziar a consciência de referentes, tornando-a espaço de invenção
existencial.

22
Como parte constitutiva do imaginário, o projeto cartesiano não permite distinguir assim as
sensações vividas pelo indivíduo das lembranças ou ficções, visto que em ambos se estabelecem os
mesmos movimentos cerebrais. O que constituiria essa diferença seria propriamente o entendimento
- um conceito já pertencente a um caráter racionalista do pensamento de Descartes. Sartre ressalta:
”Contudo, embora se oponha à ideia clara, a imagem tem em comum com ela o fato de também ser
uma ideia: é uma ideia confusa, que se apresenta como um aspecto degradado do pensamento, mas
na qual se exprimem as mesmas ligações que no entendimento.” (SARTRE, 2009, p. 15)

Já para Spinoza - influenciador notório da filosofia de Deleuze - Sartre identifica que a imagem
guarda semelhanças com a doutrina cartesiana, porém ganha a qualidade de uma afecção do corpo
humano; nesse sentido a lembrança seria uma ressureição material (2009, p.14). O mundo da
imagem estaria assim indissociado do pensamento ainda que ambos permanecessem submetidos ao
mundo das ligações mecânicas, visto que tanto imagens quanto sensações exprimiriam estados do
corpo.

O corpo aqui citado é aquele do sujeito do início do século XIX. Se trata de um corpo masculino
em grande parte voltado para o trabalho e para a adequação a sociedade da época, e a imagem se
torna apenas a expressão de um mundo de aparências. Entre o mundo da imagem e do pensamento,
Sartre diz haver um hiato (p.19), na qual o sujeito questiona sua própria identidade. Acredito haver
aqui alguns princípios torneados do que formularia a ideia de uma indústria cultural no século
seguinte: o homem como uma espécie de depositório que consome imagens e as submete a um
entendimento um viés mecanicista que subjulga a consciência física. Seja através de Descartes ou
Spinoza ou Leibniz, a noção de imagem é considerada uma coisa, colocada na ordem de um objeto
o qual subexiste num mundo interior.
________________________________________________________________________________

Para Sartre a coincidência entre imagem e percepção leva a um postulado metafísico. É essa
metafísica, provinda desde o cartesianismo que o filósofo tenta combater, em seu esforço de tornar
a consciência um espaço livre, depositório de ações tomadas por uma intencionalidade do sujeito.

Nesse sentido Sartre busca romper com a ideia de um continuum entre percepção e imaginação
como o que guia por exemplo a filosofia bergsoniana. A sua conceituação negativa de duração

23
pretendo contrapor aqui mais adiante uma positiva, defendida por Deleuze a partir de seu conceito
de devir.

Em Sartre a imaginação aparece portanto com uma força dissociada da percepção do sujeito. As
imagens se estabeleceriam exatamente no momento em que haveria um engano entre aquilo que a
imagem fornece a consciência e o que a percepção oferece. Nesse sentido Sartre rompe com um
pensamento auto-reflexivo moderno visto que esse propõe um regime onde as imagens se
estabelecem como coisas, objetos ideais em um regime representativo. Para o filósofo o que cria
uma instância diferenciadora é a capacidade do sujeito de intencionalizar o seu discurso.

Aqui é onde Sartre encontra com Husserl em sua acepção fenomenológica da psicologia, e, em
parte, onde começa a tomar um caminho diverso do que procuro estabelecer nesse trabalho a partir
do conceito de deambulação.

A imagem entendida como entidade independente da percepção reatuliza aqui uma noção de corpo
virtualizado, alienado dos modos de obtenção de conhecimento, que é parte do projeto filosófico
cartesiano. Na diferenciação entre percepção e imaginação, Sartre nos diz: “ O problema colocado
pela fisiologia cartesiana retorna na psicologia pura”. (SARTRE, 2009, p. 106). Penso que aqui
ocorre o corte onde Sartre se afasta de uma filosofia materialista e entra em consonância com uma
psicologia sintética, afim de criar uma tábula rasa por onde poderá erigir sua próprio filosofia do
sujeito - o existencialismo.

Ao procurar estabelecer uma teoria da imaginação, ele nos diz que dois problemas filosóficos
deveriam ser respondidos: uma de um certo automatismo que os espíritos tomam ao lidar com as
imagens - estabelecido pelos associacionistas - e outra sobre qual o papel estas desempenham nas
operações do pensamento.

Ele erige então o substrato pelo qual desenvolverá a ideia de liberdade do sujeito: “De fato se
subtraímos a imagem à consciência, tiramos desta última toda a sua liberdade. Se a fazemos entrar
na consciência, todo o universo entra com ela e a consciência prontamente se solidifica, como uma
solução supersaturada” (SARTRE, 2009, p.110).

24
Sartre está consciente dos riscos de se submeter as imagens a um regime de purezas, visto que, em
uma psicologia sintética, que enxerga a imaginação como uma proto-consciência, essa ganha uma
dimensão também metafísica, com a qual o filósofo tenta a todo momento romper.

Para resolver ambas as questões ele opta por um regime de falsidades, no sentido que a imagem se
torna sinônimo de toda percepção falsa. A imagem reencontra aqui seu papel fantasmático, de forma
semelhante com a que Benjamin analisaria as fotografias de Atget (1987, p.100). Ela nos imbui em
um jogo de presença-ausência, onde se organizará necessariamente como diferença daquilo que fora
percebido. É exatamente nesse entre que se instaura a intencionalidade do sujeito, dada a partir de
um juízo:

O objeto real que o juízo falseará por uma excessiva precipitação, por paixão, é o dado cinestésico - ou
ainda, inúmeras percepções fugazes: imagens complementares, manchas entópticas (...) Nunca há,
portanto, representações independentes com um conteúdo próprio e uma vida autônoma: uma imagem
não é senão uma percepção falseada (Id., p.114).

Porque nos remetemos a tal referencial aqui? Possivelmente pois ele parte da indiferenciação entre
um regime fisiológico puro - identificado na metafísica cartesiana - e uma psicologia pura - própria
do fim do século XIX, através de nomes como Taine, Spaier e Würsburg. O conceito de
deambulação aqui estabelecido retoma um referencial fisiológico recalcado, pré-existencial, que
vem complementar uma vivência a partir da deriva entre-imagens. Nesse sentido a deambulação
enquanto conceito aponta para uma via dialética entre o projeto experimental e o fenomenológico.
O deambular estabelece portanto uma indissociabilidade entre sujeito e objeto, que se afetam
dialeticamente. Nesse sentido ele serve como um possível elemento evidenciador de uma crise de
consciência do sujeito moderno. A problemática não se resolve visto que em um método
cartográfico saimos de um regime reflexivo e o foco transfere-se do indivíduo para o
acontecimento.

A partir da relação colocada aqui com Benjamin em suas Teses sobre o Conceito de História (1987),
traço uma trajetória que imbrica o existencialismo sartriano e influência da Internacional
Situacionista em seu discurso sobre o cotidiano. Tal pensamento é em grande parte proponente da
experiência da Deriva nas grandes cidades (CERTEAU, 1998). Sabe-se da grande influência que o
pensamento de Sartre exerceu na França, em especial nos eventos de Maio de 68. Também a
Internacional Situacionista, da qual Guy Debord fazia parte, teve papel predominante naqueles
25
eventos. Não parece absurdo pensar que a Deriva e as formas desfuncionalizadas de operar com a
cidade significaram naquele contexto um importante catalisador dos acontecimentos protagonizados
pelos estudantes.

Parto portanto que no decorrer dessa pesquisa os entrecruzamentos entre esse período de gestação
do existencialismo com uma prática política situacionista poderia nos levar a uma reflexão aguda
sobre este momento, tão fascinante quanto ainda opaco em sua significação histórica.

7.
Feito o diagnóstico de um estado de coisas contemporâneo e o percurso histórico entre a filosofia
fenomenológica e existencial em Sartre, pretendo agora trazer a tona o método cartográfico tal
como utilizado por Deleuze e Guattari como forma de pensarmos a operacionalidade do conceito de
deambulação em sua aplicação na análise de obras artísticas da contemporaneidade.

Como já comentado a deambulação surge aqui como um conceito de características essencialmente


anti-produtivas e anti-utilitaristas, ecoando uma série de considerações feitas por Guy Debord e pela
Internacional Situacionista a respeito da vida nos grandes centros urbanos. Se trata aqui de uma
teoria pensada a partir da ação do artista-pesquisador em confronto com o ambiente que o cerceia.

Nesse sentido a teoria científica na contemporaneidade se encontra em um estado de crise, visto que
esta constitui também a realidade histórica na qual a pesquisa se estabelece. A crise da verdade e
sua fragmentação em discursos subjetivos que a atravessam ressoam fortemente na proposta
cartográfica como esboçada por Deleuze e Guattari. Segundo Romagnoli (2009, p.171):
“Cartografar é mergulharmos nos afetos que permeiam os contextos e as relações que pretendemos
conhecer, permitindo ao pesquisador também se inserir na pesquisa e comprometer-se com o objeto
pesquisado, para fazer um traçado singular do que se propõe a estudar. “

Em seu texto sobre o rizoma, os filósofos comentam que este contém seis características, e a quinta
delas se estabelece justamente a partir do método cartográfico. O rizoma, enquanto força movente
do desejo, compõe uma cartografia na medida em que não tem começo nem fim, ele é somente um
meio, com múltiplas entradas. O rizoma, “mapa e não decalque” (1997, P.20), se abstém de um
regime representativo que se constitui a partir da psicologia do sujeito. Ele se volta a uma
experimentação ancorada no real. Esse real não ganha aqui um valor ontológico ou epistemológico,

26
mas apenas a atribuição de uma relação provisória em um contexto local específico. Deleuze nos
diz sobre o mapa:

Ele contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos, para sua abertura
máxima sobre um plano de consistência. Ele faz parte do rizoma. O mapa é aberto, é conectável em todas
as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente.
(DELEUZE e GUATTARI, 1997, p.21).

O filósofo nos fala da importância de não diferenciar o mapa do decalque como aqueles que
diferencial o bem do mal. A partir da ideia de uma psicogeografia, a cartografia serviria assim como
um conceito reflexivo, a partir do qual não é mais possível pensar o sujeito como elemento pelo
qual o universo das coisas se organiza. Parto da hipótese que há um aumento aqui da importância da
relação ambiental e espacial em detrimento de um referencial cartesiano. A consciência nesse
sentido não pode ser encarada como um substrato independente, ainda que despida de toda
significação racional. O sujeito que pensa está no mundo, e se constitui como um sujeito local,
atravessado por subjetivações (BADIOU, 1995). A crise de verdade pela qual passamos tem direta
relação com esse esvaziamento da objetividade enquanto categoria epistemológica.

O caminhar, enquanto eixo desterritorializante, surge aqui como um elemento de que constitui uma
humildade epistemológica (ROMAGNOLI, 2009, p.168), já dissociada de uma obtenção da verdade
científica. Sua pretensão é a de devir um múltiplo, colocando em relação o artista com aqueles que
interagem com sua obra no espaço urbano. Não se trata mais de diferenciar o objeto-obra de seu
meio-cidade, mas justamente de operacionalizar um conceito que sirva de auxílio para obras que
fazem da indefinição entre materialidade e ambiente seu próprio elemento de linguagem.

A cartografia encontra o conceito de deambulação aqui a partir da ideia de sua operacionalização


em trabalhos de site-specific, apresentações, performances, filmes, realizados para determinados
espaços, e dificilmente traduzidos em outros: “A cartografia é um modo de conceber a pesquisa e o
encontro do pesquisador com seu campo. Entendemos que a cartografia é um modo de conceber a
pesquisa e o encontro do pesquisador com seu campo”. (ROMAGNOLI, 2009, p.169)

Com o auxílio do método cartográfico procurei estabelecer aqui uma investigação que, longe estar
concluída, insiste no reconhecimento de um conhecimento local e transitório no conjunto artista-
obra, e na passagem que se dá na fruição de um Uno a um múltiplo. Nesse sentido ele pretende se
27
prestar também a uma operação transdisciplinar, que atravesse diversas áreas artísticas e campos de
conhecimento.

O método cartográfico surge aqui portanto como uma alternativa aos modelos científicos
hegemônicos que se caracterizam por isolar os objetos do meio afim de analisá-los. Segundo
Mairesse (2003), a cartografia acontece como um dispositivo pois a partir do encontro do
pesquisador com um objeto diversas forças se fazem, visto que o método “desencadeia um processo
de desterritorialização no campo da ciência, para inaugurar uma nova forma de produzir o
conhecimento, um modo que envolve a criação, a arte, a implicação do autor, artista, pesquisador,
cartógrafo. (2003, p.259).

Rompendo com um caráter transcendente se uma filosofia centrada no sujeito, a cartografia


convoca a imanência, procurando identificar a exterioridade das forças que atual na realidade e que
afetam as subjetividades que ela engendra. Estas não se qualificam apenas como o sujeito mas
como uma rede de relações que esses constituem. A subjetividade surge aqui como um
entrecruzamento de linhas identitárias com linhas flexíveis, que criam zonas de indeterminação e
permitem a criação de novos territórios existenciais.

A deambulação como prática artística se coloca nesse contexto como uma forma oposta de um
processo classificatório, no espaço urbano, homogeniza os fluxos da vida. Em seu devir imanente,
ela estabelece uma ação que se constitui molecularmente, seja através de agrupamentos massivos ,
seja através de rupturas individuais; ela se constitui portanto como força heterogênea, que falseia-se
em homogeneidade através de um comportamento cognitivo comum - o caminhar.

Por fim, vale um adendo. Como ressalta Deleuze, assistimos comumente a adestração de
comportamentos nomádicos - que tem uma relação com o alisamento do espaço - em linhas
estratificadas, a partir do sistema de valores capitalístico. Sobre essas territorializações identitárias,
novas desterriolizações irão surgir. Nesse sentido a deambulação assume um papel aqui
radicalemnte transitório, ela é propriamente um transe , que desorganiza uma relação estratificada
com a cidade. Ela estabelece-se como uma forma fluida, na qual o sujeito transita entre sua
individualidade e um devir-coletivo que o cerca.

28
“Um território existencial é formado quando os elementos heterogêneos que compõem a subjetividade
ganhar alguma homogeneidade, determinada composição. Esse território localiza-se na interface entre o
que se repete e é conhecido e o que pode afetar, desterritorializar, produzir outra composição, via
agenciamentos” (ROMAGNOLI, 2009, p.169)

Essa composição de transes surge aqui exatamente como a força que desorganiza qualquer
referencial de real. Ela incita um regime dialético entre realidade e ilusão, regime este no qual
acredito que as obras que este conceito se presta a analisar se localizam. O real, tal como indicado
por Deleuze e Guattari em seu texto sobre o rizoma, se torna uma instância muito passageira e
possível a partir apenas de simultaneidades, do cruzamento que se estabelece entre duas
subjetividades em um instante no tempo.

Ele integra portanto um agenciamento baseado em um regime de aproximação e afastamentos.


Nesse sentido, seria mais fácil tocá-lo do que propriamente visá-lo; o que constitui os discursos de
obras deambulatórias são muito mais os regimes corporais que estabelecem, a performatividade
(FÉRAL, 2009) do sujeito como um afastar-se de si, do que uma objetividade que pudesse
apreender ou registrar a realidade.

Talvez seja necessário portanto, em um próximo passo, investigarmos ao que se refere a ideia de
ilusão se dissociada de uma cultura dos espetáculos - um regime que concerne seu poder discursivo
a uma totalização do olhar. Sem querer fazer desta escrita um sistema, como podemos, afim de
compor cartografias minoritárias e de ação política, investigar a performatividade como um
conceito que abarque um comportamento de caráter coletivo? Nesse sentido ela se estabelece como
ponto de entrada e não discurso programático. Poderia ela, enfim se dissociar dos limites de uma
expressividade individual?
________________________________________________________________________________

Apêndice:
Operação do conceito de Deambulação para análise dos filmes “Walker” e “No No Sleep”,
de Tsai Ming-Liang.

Afim de ensaiar algumas respostas ao diagnóstico pessimista elaborado por Byung-Chul Han e
Jonathan Crary a respeito de nossa sociedade, pretendo contrapor aqui o projeto crítico e estético do
realizador malaio Tsai Ming-Liang.

29
Há aqui um pequeno parênteses a ser feito. Acredito que pode ser questionável, pelo leitor, a opção
de identificar nos filmes um objeto ideal para o conceito de deambulação aqui apresentado.
Considerando o imbricamento sujeito-objeto no qual o método cartográfico de Deleuze e Guattari
se baseia, essa acepção a primeira vista parece ter fundamento. Porém parto do princípio que o
cinema de Tsai Ming-Liang não estabele um ideal representativo clássico, como comentário
objetivo sobre a realidade.

Parto do princípio que, ao erigir um retrato sobre um sujeito contemporâneo em deriva, Ming-Liang
não o faz apenas a partir de seus personagens, mas também de um estudo sobre a matéria que se
apresenta em cena. Isso pode ser constatado pelos longos tempos mortos no qual o realizador
fundamenta sua encenação. Sendo assim, tal diagnóstico não se estabelece apenas como
representação mas apresentação a partir de uma forte crença no cinema como expositor de um real.

A partir de um regime sensorial, Ming-Liang constrói um cinema delicado, dos pequenos gestos,
onde o elemento humano se confunde com a paisagem e frequentemente se imbrica em outros
modos de vida. Faz isso contudo sem deixar de ter uma veia altamente crítica a respeito dos limites
e desigualdades intrínsecas a modernidade. O exemplo mais clemente nesse sentido talvez seja o de
seu recente filme Cães Errantes (2014), no qual um personagem vaga pela cidade acompanhado de
sua família. Sua condição de invisibilidade nesse espaço é reforçada pela comparação da família
com os animais, estabelecida apenas pelo título. Durante todo o seu desenvolver, acompanharemos
a trajetória desta família a partir de um regime frequentemente entramos em confluência com o
olhar dos personagens. Um regime da insignificância dos eventos, onde as transformações
narrativas acontecem a partir da superfície da imagem. A identificação se dá pois, ao nos deixar
levar por situações insignificantes, sermos colocados na mesma posição invisibilizada que seus
atores. Essa característica apresentativa aproxima o cinema de Liang tanto do documentário quanto
da performance, no sentido que não há uma narrativa formalizada e linear pela qual vemos o
desenrolar de fatos. Há só um tempo ralentado, um presente refabricado a partir do qual
compartilhamos de uma condição perceptiva. Liang estabelece assim uma das características
centrais de seu cinema: uma forte sensorialidade.

30
Em Walker (2012)1, temos os mesmos termos discursivos. Um personagem sem nome, vestido com
trajes de monge deambula por ambientes urbanos saturados de informação. Seus passos são
extremamente lentos. Durante vinte minutos vemos sua travessia entre uma casa e os limites da
cidade - travessia está que se inicia de manhã e, a partir de elipses, chega à noite.

Ocorre aqui uma imbricação entre o aparelho de captação e o próprio corpo do sujeito que trafega,
visto que não nos é possível saber se a ralentação do tempo se dá a partir de uma captação em
câmera lenta ou a partir de um trabalho de performance por parte do ator, no sentido de
desnaturalizar um tempo de caminhada. Através de planos fixos e longos, o caminhar apresenta-se
aqui como campo de invenção de uma nova temporalidade, ao mesmo tempo que aponta para uma
condição própria do sujeito na cidade, na qual mesmo quando este se volta para uma experiência
interior - como suponhamos que é a vida de um monge - seu corpo é colocado em uma dimensão
espetacular, sem consentimento prévio.

Assim nos são apresentadas duas temporalidades colocadas em conflito apenas a partir de dois
regimes imagéticos, um da aceleração e outro da ralentação (frames do filme estão disponíveis no
Anexo 1). A caminhada surge aqui como uma potencial resistência em relação a velocidade do
desenvolvimento urbano. A montagem é suprimida, mínima, e as decisões estéticas do diretor
passam a se dar não através do choque provocado pela edição mas no interior dos planos, a partir
de um regime de intensidades. Uma interioridade existencial encontra assim seu discurso referente
dentro de uma interioridade fílmica; já que em seu percurso de passagens, diferentemente do que
poderíamos supor, o filme estabelece um regime cada vez mais centrípeto, ou seja, voltado para a
figura em seu interior e não para as continuidades do espaço filmado.

O discurso sobre a relação do monge com aquele espaço se organiza a partir de uma forma
minimalista, estabelecida apenas a partir da escala do corpo humano em relação a paisagem e da
duração. Ming-Liang adere sua encenação a temporalidade de seu protagonista, assumindo sua
intenção crítica em relação a urbanização e se afastando portanto de um regime de representação
isento de intencionalidade. Essa afirmação se dá porém, em um nível infraverbal, a partir de um
trabalho com imagens.

O filme se encontra disponível online no seguinte endereço: https://vimeo.com/49339358 (acesso em 17.01.18)


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O filme termina com o dia já amanhecendo na cidade. O rosto do protagonista enquanto ele
lentamente come um pedaço de pão. Uma canção - diegética, extra-diegética? não se sabe - começa
a tocar. Ela fala sobre um amor impossibilitado pelas desigualdades inerentes a sociedade: If the
stream divides the land / those with riches stand on the side of happiness.

A aderência de Ming-Liang a uma temporalidade pré-moderna surge aqui através de seu elogio a
duração. O binômio que marca o filme é o da tradição dos hábitos versus a força da hiper estrutura.
Trata enfim de uma certa inconciliação entre essas duas representações. Uma inconciliação que não
se dá apenas no nível do simples dissenso - visto que o regime do filme é quase totalmente material.
Mas que parte de uma dessincronia perceptiva; os regimes temporais da pré e pós-modernidade não
se conciliam nem se chocam, visto que não convivem entre si.

A deambulação do protagonista possibilita ao espectador um nível de imersão na obra,


característica essa que se imbrica de maneira estreita com o conceito . O deambular é um estar-
entre, ver e ser visto, um jogo estabelecido entre duas formas representativas na imagem. Ele é ao
mesmo tempo corpo-no-espaço em um mundo fechado em si-mesmo (e aqui ecoam as teorias que
aproximam a cidade contemporânea de um sistema programado) e um deslizar em primeira pessoa
onde nos é oferecida uma percepção outra, mas onde, a custa disso, o indivíduo se apaga da
imagem.

O dispositivo-cinema aqui se realiza como uma instância que apresenta o sujeito submetido a uma
hiperrealidade. A dilatação do tempo exerce uma função de maximizar a presença do sujeito. Frente
a essa excessiva presentificação podemos pensar na câmera aqui como um meio que virtualiza, no
sentido que retira esse sujeito de um referencial verossímil a partir de uma saturação exacerbada.
No jogo entre a câmera que tudo-vê (o mundo organizado como espetáculo) e a câmera que assume
a posição do sujeito por um jogo de pontos-de-vista, há um limiar trágico que contamina a estética
do filme até a conclusão do desaparecimento dessa figura.
Já em No No Sleep (2015)2, há uma maior elaboração narrativa, ainda que esta se mantenha
suprimida de qualquer comunicação verbal. Aqui a paisagem é a da grande cidade a noite. Poderia
ser qualquer grande cidade a noite, dado a homogeneização desses não-lugares. Porém, se trata de
Tokyo. A continuidade com o projeto anterior se dá a partir da mesma figura do monge, que

2O filme se encontra disponível online no seguinte endereço:: http://www.dailymotion.com/video/x4m186q (acesso em


18.01.18)
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atravessa, a passos lentos, uma passarela a noite. (frames do filme no Anexo 2). Sua figura surge do
fundo de tela, sombreada e confundida com o espaço da cidade, como em um reaparecimento.
Enquanto seu passo executa um ritmo ralentado, o movimento da cidade (e do plano) se estabelece
especialmente pelos brilhos da cidade a noite, que refletem nas superfícies da passarela. O monge
opera uma deambulação na medida em que performa o mesmo caminhar lento, demarcado, como se
ao caminhar deixasse um rastro de sua figura.

Em seguida porém, o filme se liberta do personagem. Ming-Liang filma a chegada do metrô em


uma estação - remetendo aos primórdios do cinema? -, mas a partir do momento em que o trem
entra em movimento, a câmera segue seu movimento e se levanta sobre a cidade. Percebemos que
se trata de um drone que sobrevoa o espaço urbano. Distanciando-se e se aproximando do metrô em
movimento a iamgem se abstrái. Há uma catástrofe do visual - como nos diria Luis Carlos Oliveira
Jr. (2010, p.107)3 . Um drone filma um metrô. Na indefinição de suas formas é quase possível dizer
que o metrô, pela instauração de movimento filma de volta o drone, é ele quem instaura o
dispositivo que permite que a coreografia se constitua - a partir da velocidade as máquinas se
reconhecem ontologicamente.

Acompanhamos o movimento até o trem estacionar na próxima estação. Onde em Walker havia
resistência ao movimento do mundo através de outra temporalidade, em No No Sleep essa
temporalidade transita para uma dimensão meditativa. Há uma aderência ao meio.

Passamos então a uma cena em térmica, onde encontramos outro homem. Ele se despe e entra nas
águas quentes. Seu corpo é magro. Em sua companhia está o monge, também despido de suas
vestes. Há aqui uma elipse, uma supressão do tempo do deslocamento; um aparecimento repentido
da figura do monge onde não parecia ter havido nenhuma elipse.

Se nas fotografias de Atget sobre a cidade moderna, através da representação de uma cidade despida
de presenças, Walter Benjamin nos disse sobre esvaecimentos e fantasmagorias - típicos de um
regime analógico onde a presença se distinguia entre opacidades e transparências em um

3 Luiz Carlos Oliveira Jr. usa o termo para se referir ao filme Sombre, de Phillippe Grandrieux. Para o teórico, Grandrieux
é um dos cineastas contemporâneos que integram uma estética do fluxo, assim como Tsai Ming-Liang. O termo foi
cunhado pela crítica francesa contemporânea que Oliveira Jr. analisa em sua dissertação de mestrado. As principais
características de uma estética do fluxo seriam sua oposição a um estética do plano; uma relação próxima com as artes
visuais e a instalação; e um interesse temático por questões profundas da psique humana. Um cinema da pulsão e da
matéria.
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determinado espaço, em No No Sleep a imagem simplesmente se teleporta para outra dimensão.
Estamos propriamente em outro regime temporal, o qual perdeu qualquer referencialidade em uma
duração linear.

Toda a sequência da térmica apresenta planos próximos, de caráter sensorial demarcado. As


sensações que estes personagens vivenciam são, porém, já estabelecidas a partir de um ambiente
artificial. Estamos novamente no jogo entre real e virtual, na medida que o artifício das sensações
fabricadas por máquinas é realizado. Tal impressão é retificada pelo desenho sonoro do filme, em
grande parte composto pelo som de máquinas operando, zumbidos de ar-condicionado, vozes de
televisão ao fundo, elementos que contribuem para uma sensação de confinamento. Entre os dois
personagens, nenhum contato, nenhum diálogo. Nos corpos nus, nenhum desejo. É como mesmo se
ambos estivessem imersos em si. Nesse sentido realça-se aqui o prognóstico de uma sociedade
individualizada e uma solidão exacerbada em relação a Walker. Enquanto lá esse isolamento
aparecia como resultado de uma escolha espiritual, aqui ela se dá como característica social de um
estado de coisas.

O estado deambulatório do monge é portanto suprimido em favor de uma reflexividade interior;


aqui não capitaneada pela lógico e pelo racional, tal como no referencial cartesiano mas dada a
partir de um se perder nas sensações: a água que toca o corpo, a fumaça que evapora.

Os últimos dois planos do filme reforçam essa crítica. O personagem do homem magro está em um
cubículo de confinamento - espaços existentes em Tokyo onde as pessoas pagam um valor ínfimo
para ter onde dormir. Esta cápsula se restringe a uma cama e uma tela com conteúdos informáticos.
Miang posiciona a câmera exatamente onde estaria a tela. Vemos a reflexão das luzes sobre o
personagem, que cria uma flicagem descontínua. O personagem se revira na câmera por vários
minutos sem conseguir encontrar uma posição.
O monge aparece em um cubículo idêntico em seguida, sem reflexos e mergulhado em sono
profundo. Entre os dois há um comentário, aqui sim, ressaltado pela montagem. Durante a duração
é como se a reflexão em relação ao ambiente dos personagens fosse se entremeando lentamente a
partir da sensação. Estamos no polo oposto do discurso cartesiano, na medida em que agora são as
sensações - tanto as provocadas por elementos reais quanto artificiais que comandam o processo
cognitivo, provocando assim uma reflexão social sobre os papeis que ocupamos na
contemporaneidade.
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Em ambos os filmes está colocado o binômio produtivismo x contemplação, tal como o identifica
Byung-Chan Han. De Jonathan Crary, nos remetemos a representação dos distúrbios do sono como
problema característico da contemporaneidade. Tsai Ming-Liang nos dá a ver que talvez, nesse
mundo entremeado por impulsos artificiais, uma mente vazia de imagens talvez tenha a rota
possível de uma saída de emergência.

Se durante os últimos dois séculos o discurso dominante na psicologia tentou tratar a mente humana
exatamente como espaço depositório de imagens - imagens de lembranças que retornam, imagens
de desejo que se formam - talvez o estado contemplativo seja um primeiro passo para voltarmos
nossa atenção para o espaço ao redor. E lidar com seus potenciais materiais sem supor a ele tábulas
rasas ou significações anteriores.

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Anexo 1
Frames de Walker, de Tsai Ming-Liang:

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38
Anexo 2
Frames de No No Sleep, de Tsai Ming-Liang:

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40

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