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GIOVANNI CASERTANO

Porquê continuar a ler Platão hoje?

Vamos supor que se faz esta pergunta a um auditório: ela tem um sentido provocatório.
Vendo bem, ela apresenta-se como, ou melhor, é uma pergunta retórica. Na sua própria formulação
pressupõe uma resposta positiva. Como todas as perguntas, provoca uma expectativa. Como todas
as perguntas retóricas, tem já em si mesma o sentido da resposta. Contudo, se o sentido da expectativa
é unívoco, não unívoca é a atitude com a qual cada um dos ouvintes se põe diante desse sentido. A
expectativa que provoca é: no fim ser-nos-ão dadas razões, mais ou menos boas, com base nas quais
nos será dito que sim, que ainda tem sentido ler Platão hoje. Isto é bastante claro. Mas cada ouvinte
colocar-se-á perante este sentido, perante as coisas que espera que lhe dirá a outra pessoa, numa
situação especial. Alguém poderá pensar: “vai ser o discurso habitual, mais ou menos académico,
feito mais ou menos por dever, sobre os eternos valores ditos pelos grandes pensadores do passado;
não sei para que é que me vai servir, vai ser outra aula aborrecida a que sou obrigado a assistir”. Ou
então: “para mim é importante, gosto de ler, e talvez me agradasse ler também Platão: talvez ouça
coisas que me interessem, talvez não”.
O título de uma conferência sob forma de pergunta é então certamente uma provocação, no
sentido que provoca expectativas diferentes, que poderão vir a ser decepcionantes ou satisfatórias.
Mas a provocação da minha pergunta não é só esta. Ela esconde outra, anterior a esta, e mais subtil
do que ela. A minha provocação esconde-se em dois termos da pergunta e consiste precisamente em
ir contra os sentidos daqueles termos mais comummente subentendidos, aceites, previsíveis, óbvios.
Os dois termos são «ler» e «Platão». A minha provocação consiste em negar os sentidos comuns
dados a estes dois termos. «Ler»: defendo que hoje se lê muito pouco. E esta é uma afirmação que
vai contra o senso comum, que contradiz todos os dados estatísticos. Nunca houve uma época,
como a nossa, em que a difusão da imprensa fosse tão vasta e massificada, em que existissem
milhares de órgãos de informação, em que se publicassem volumes sobre todos os assuntos do saber
humano, até os mais especializados ou curiosos, em que as livrarias e os quiosques estivessem
absolutamente cheios de qualquer tipo de publicação, aquelas para passar o tempo, as científicas, as
literárias, as filosóficas, as jurídicas, etc. E ainda assim, lê-se pouco. E não quero mencionar o facto
de que hoje, diz-se, a leitura do texto impresso está a ser progressivamente substituída pela leitura
electrónica, por documentos e obras em rede, que cobrem, possivelmente de modo ainda mais
detalhado e minucioso, todos os campos do saber e das actividades humanos. Quero dizer que se
está a perder o próprio sentido do termo «leitura». Como a enorme abundância das informações
acaba – como muitos já reconhecem – por determinar uma desinformação, hoje há mais livros a
serem «consumidos» do que a serem lidos. Embora a culpa não seja só do leitor: são os ritmos da
sociedade de hoje a obrigarem-nos não a «ler» mas a «consumir» uma grande quantidade de livros e
de documentos.
O outro termo é «Platão». Platão é um daqueles nomes que passou a fazer parte – como
estava na moda dizer há algumas décadas atrás – do imaginário colectivo, e aqui ocupa um lugar
bem estável ainda hoje. Platão é um daqueles autores de que todos sabem tudo, mesmo sem nunca
ter lido um livro seu. Quem é que não sabe que Platão «é aquele das ideias»? o que defendeu que a
realidade física, corpórea, a realidade concreta não tem sentido nem valor, e só as ideias puras e
abstractas que se encontram num mundo hiperurânio os têm? o que defendeu que o verdadeiro amor
não é o físico, mas o das almas puras que se mantêm inocentes de qualquer contacto com o corpo? o
que defendeu que existem verdades eternas que são sempre as mesmas? o que defendeu que o corpo
morre e a alma se dirige pura até à morada dos deuses?
A minha verdadeira provocação portanto consiste em negar este sentido do «ler Platão» e
propor outro: uma leitura que seja um colóquio consigo mesmo através de Platão, que seja um
interrogar-se a si mesmo através das perguntas de Platão, que seja um reflectir com a calma e o
tempo necessário para amadurecer as próprias ideias, servindo-se das de Platão, para interiorizar
pensamentos e perspectivas novas, não só através das ideias, mas também através das emoções que
podem ser sugeridas pelo texto platónico. Porque há um ponto acerca do qual é preciso reflectir e
sobre o qual é necessário deitar alguma luz. A leitura do passado, qualquer que seja o nível a que
pertença – literário, filosófico, científico – nunca pode ser um fim em si mesma. Na verdade, nunca
o é, embora haja uma faixa de leitores que teima em defender que a sua tarefa é a de reconstruir
uma verdade que seja o mais possível “objectiva”, entendendo por objectiva a utópica reprodução
de um mundo que teve certas características bem definidas e delimitadas num tempo bem preciso e
apenas nesse tempo. Fundamentalmente são duas as perguntas que se poderiam fazer a este propósito.
Em primeiro lugar: é verdadeiramente possível uma leitura deste tipo? E depois: que sentido pode
ela ter para nós que a fazemos? Honestamente creio que deveríamos responder à primeira pergunta
de forma negativa. É um facto que a leitura do passado faz-se sempre, e não pode senão ser feita,
através de óculos que são os de quem faz investigação: as suas crenças, a sua cultura, as suas
expectativas, numa palavra, as ferramentas hermenêuticas de que dispõe; todas condições de que o
leitor não se pode separar, mesmo que queira fazer uma investigação “pura”, “histórica”,
“objectiva”. Com efeito, acho que isto não se pode negar: quantas interpretações do passado
tivemos na nossa história cultural? Quantas vezes, nas diversas épocas, mudámos as nossas ideias
sobre um autor, uma corrente cultural? Toda a nossa história não é senão este suceder-se de
mudanças nas nossas perspectivas históricas. Porque a nossa leitura nunca é objectiva, é sempre
histórica, entendendo “histórica” em dois sentidos: não só porque se propõe compreender um
momento histórico, isto é, do passado, mas principalmente porque pertence à nossa história,
pertence ao nosso momento histórico, individual e colectivo. E, por conseguinte, interessar-nos-ia,
seria realmente interessante para nós, poderia dizer-nos verdadeiramente alguma coisa estabelecer
de maneira exacta o sentido de um autor, de uma afirmação, de uma filosofia, que estivessem
confinadas exclusivamente num passado que nada tem a ver com o nosso presente? Na verdade, se
o passado é por definição algo que deixou de ser, o sentido do passado pertence ao presente, é
nosso, faz parte de nós seres humanos que vivemos hoje, e é fundamental para projectar o nosso
futuro. Como todos os animais, mas de maneira mais complicada e complexa, muito mais mediata e
articulada, nós recordamos os factos, as vicissitudes, as experiências, quer da nossa vida individual
quer da da espécie, em vista de algo, em vista da atitude que tomamos perante o nosso futuro.
É assim, no que diz respeito ao nosso tema, isto é, ler Platão. Se ler Platão hoje significasse
simplesmente reconfirmar aquela imagem de uma filosofia completamente virada para a fuga deste
mundo, para o estabelecimento de um nítido dualismo entre este mundo e o das perfeições ideais
que com o nosso mundo nada tem a ver, para a defesa da mortificação da nossa corporeidade em
vista de uma vida futura feita apenas de puras almas desencarnadas e felizes nos campos Elíseos,
confesso que para mim não faria absolutamente sentido ler ainda Platão.
Por isso, escolhi três temas, três problemas fundamentais, sobre os quais a leitura de Platão
nos convida ainda hoje a reflectir. A verdade, a morte e o amor.
1) A verdade. Se procurarmos nos textos de Platão uma definição de verdade, para além da
afirmação da exigência da verdade, da afirmação que a verdade deve ser o fim de todos os nossos
discursos e de todas as nossas pesquisas, encontrá-la-emos formalizada pelo menos em dois diálogos:
o Crátilo e o Sofista. No Crátilo, na página 385 B, lemos: «Existem um discurso verdadeiro e um
discurso falso... E o que diz os entes como são é verdadeiro, enquanto que o que os diz como não
são é falso». No Sofista, na página 263 B, depois de ter esclarecido que cada discurso tem uma certa
qualidade e que a qualidade do discurso é o de ser verdadeiro ou falso, Platão escreve: «O que é
verdadeiro, diz acerca de ti as coisas que são como são, o falso diz coisas diferentes das que são,
portanto diz que são as coisas que não são». Como se vê, na realidade não nos encontramos perante
uma definição da verdade, mas sim perante uma definição de “discurso verdadeiro”. Porque a
verdade, ou a falsidade, não são outra coisa senão “qualidades” do discurso, e concernem
exclusivamente ao plano da linguagem. Não existe a verdade na realidade que me circunda, mas
existe a possibilidade de dizer a verdade. Porém, se reflectirmos sobre as definições que lemos,
elas, claríssimas do ponto de vista formal, escondem toda uma série de dificuldades teóricas não
fáceis de esmiuçar, e muito inquietantes.
Por detrás de Platão, e bem presentes nas definições que lemos, estão as dramáticas
discussões dos sofistas sobre a negação de uma verdade absoluta e válida para todos, sobre o
necessário relativismo das nossas sensações e dos nossos conhecimentos, que tinham animado o
debate filosófico na segunda metade do século V a.C. Por detrás dos sofistas estava a potente
afirmação parmenídea da identidade ser-pensar-dizer. Cada dizer é um pensar e cada pensar radica-
se no ser (fragmentos 3 e 8). Esta é a garantia da validade cognoscitiva dos nossos discursos sobre a
realidade. Com a nossa linguagem, dizemos e pensamos sempre algo que é e esta é precisamente a
garantia da verdade do que dizemos. Mas esta ligação ser-pensar-dizer, que para Parménides
constituía justamente a garantia da verdade dos nossos conhecimentos, tinha servido aos sofistas
para derrubar a própria possibilidade de uma verdade unívoca e absoluta. Se cada vez que falamos
não fazemos outra coisa senão reflectir uma realidade, e a reflexão da realidade no discurso é a
garantia da verdade, então cada vez que falamos, qualquer que seja o discurso que fazemos, mesmo
o mais contraditório possível sobre o mesmo argumento, dizemos sempre a verdade. Por outras
palavras, não existe o falso, não existe um discurso falso, mas todas as nossas afirmações são
verdadeiras. A rigorosidade e a assertividade com as quais esta tese fora afirmada por Protágoras e
por Górgias comprometeu Platão, pode-se dizer, por toda a vida, numa obra de crítica e de
repensamento do próprio fundamento da doutrina parmenídea. O princípio parmenídeo não se pode
negar: o princípio da verdade não pode ser outro senão a correspondência entre o que dizemos e o
que é, a realidade objectiva. Mas o princípio parmenídeo não se pode aceitar tal como é: se cada vez
que falássemos disséssemos coisas reais, então tudo, isto é, cada discurso, seria verdadeiro. E isto
não é aceitável. A questão fundamental é: não é aceitável de um ponto de vista lógico,
epistemológico, ou de um ponto de vista ético, político? Questão, de resto, não ignota pelos sofistas,
especialmente a Protágoras, para quem, se é verdade que cada discurso é verdadeiro, é verdadeiro
também que nem todo o discurso é útil à cidade, isto é, à comunidade dos homens: porque neste
campo, diante de tantos discursos verdadeiros, o homem deve empenhar-se em defender o discurso
melhor, o que sendo melhor do que os outros serve quer para construir a saúde do indivíduo quer
para construir a da cidade em que o homem vive.
Pois bem, todo o esforço de Platão consiste em procurar ligar de novo o plano ético e
político ao plano lógico e epistemológico. Simplificando: o discurso correcto, política e eticamente,
deve ser também o único discurso verdadeiro. Mas para se obter isto, deve ser modificada a
perspectiva parmenídea. Nela, não existindo o não ser, não se pode sequer dizer o não ser, o que
não é. Mas se não se pode dizer o não ser, o que não é, então tudo é verdadeiro. Portanto, a táctica
estratégica de Platão é a afirmação de que o não ser, as coisas que não são, se podem dizer e nisto
consiste precisamente dizer o falso. Só que aqui é preciso distinguir dois sentidos de não ser: há um
não ser absoluto, um não ser como não existir, e disto, como afirmara Parménides, não se pode
falar. Mas há um não ser relativo, que não significa não existir, e dele se pode falar, e falar dele
significa precisamente fazer um discurso falso. Mas o que é o não ser que existe? Se “existe”, deve
ser uma realidade; se “não é”, é uma realidade “outra”: é o diverso, são coisas diversas das que são,
como vimos pela definição do Sofista. É a aparência, são os phantasmata: as aparências são coisas
que existem, certamente, mas que se apresentam como “outra” coisa relativamente ao que são. Por
outros termos, são, existem, como algo, mas querem ser, isto é, proclamam-se e querem aparecer
como aquilo que não são. E isto é precisamente o falso, ética e politicamente, mas também, na
perspectiva platónica, lógica e gnoseologicamente.
Para dar um exemplo relativo aos dias de hoje: há discursos que querem parecer discursos de
paz mas são “outra” coisa, isto é, são discursos de guerra; manifestam-se como discursos éticos e
são vulgares discursos de interesse; parecem discursos de economia sã e são discursos de
exploração; parecem discursos de solidariedade e são discursos de subjugação. E então, pode servir
ainda para qualquer coisa, a exigência platónica de distinguir a aparência de ser do ser real?
2) A morte. À morte é dedicado um diálogo, o Fédon, o mais explorado e ao mesmo tempo,
talvez por isso mesmo, o menos conhecido de Platão. O Fédon foi lido por séculos, e ainda hoje é
lido, como o diálogo em que se demonstra a imortalidade da alma e a mortalidade do corpo.
Naturalmente, isto é verdade, mas parar nesta afirmação significa transformar uma verdade numa
falsidade. Porque essas demonstrações estão no interior de um discurso que mistura de maneira
sapiente (e também dramática, isto é, artisticamente) mito com discurso lógico, exigência ética e
postulado teorético; e é só tendo presente esta trama complexa que se poderá perceber o significado
da morte e da imortalidade platónicas. Este diálogo contém dois núcleos teoréticos fundamentais
para a doutrina platónica: a teoria das ideias e a teoria da anamnese. Porém, eles estão inseridos no
“conto” de uma morte, a de Sócrates, o homem-símbolo da filosofia, e este conto, como todos os
contos, deixa um amplo espaço ao mito, à metáfora, à analogia. Se não se agarrar esta íntima
ligação de mito e logos no Fédon, fica-se condenado a uma leitura simplista e superficial do diálogo.
Convém, diz Sócrates ao ínicio do diálogo, no último dia da sua vida terrena, sobretudo para
quem está para se ir embora, não só investigar, como sempre se fez, mas também contar mitos sobre
esta viagem. E todo o Fédon não será senão esta íntima ligação de discursos, que investigam
aspectos fundamentais da doutrina platónica, e de mitos sobre a morte e sobre o que está para além da
morte. No Fédon há pelo menos três sentidos para o conceito de morte, e em todo o diálogo Platão
joga, consciente e propositadamente, com a ambiguidade da sua ligação. Por um lado, a morte é a
“separação”, a decomposição dos elementos que constituem cada composto e, por conseguinte,
também o homem que, simplificando, é um composto de corpo e de alma. É o sentido “filosófico”,
pré-socrático, do termo morte: Parménides, Empédocles, Anaxágoras, Demócrito, todos defenderam
que aquilo que os homens chamam “nascer” não é senão a agregação dos elementos eternos num
composto individual; e aquilo a que chamam “morte” não é senão a desagregação desse composto e o
permanecer desses elementos na sua eternidade. Por outro lado, há o sentido comum da morte como
aniquilação, destruição, corrupção: e este é o sentido que causa mais medo na maioria das pessoas, e
contra este medo, como veremos, não há raciocínio que ganhe; só o mito pode tentar “encantá-lo”,
exorcizá-lo. Sob estes sentidos e atrás deles, há a alusão explícita a um terceiro sentido, metafórico, da
morte, que se liga intimamente à mensagem ética: morte como um morrer para a vida que a maioria
das pessoas leva e, por conseguinte, como a necessidade de abandonar riquezas, poder, prazer
desenfreado, para se dedicar “à alma”, que significa precisamente «viver com virtude e sabedoria».
Portanto, se a morte é qualquer coisa, ela é separação de elementos que podem subsistir separadamente
uns dos outros, ou podem compor-se dando lugar àquilo que nós chamamos simplesmente vida. De
facto, «estar morto» não é outra coisa senão esta condição de separação, quer do corpo quer da alma,
que “vivem” cada um por conta própria. Portanto, morte é, rigorosamente falando, a vida separada
dos elementos que compõem o homem. Neste horizonte, é claro, não há espaço para uma imortalidade
que não a dos elementos que formam o composto “homem”. O homem é mortal, imortais são a sua
alma e o seu corpo.
A este sentido da morte sobrepõe-se imediatamente outro, metafórico, que é introduzido
com uma série de “alterações de sentido” das expressões comuns, que são típicas da filosofia
platónica. Sócrates convida Eveno a segui-lo, isto é, a morrer. Que raio de exortação, comenta
Símias! Sim, porque os filósofos não se ocupam senão de morrer e de estar mortos. E Símias ri, ao
pensar no sentido que a maioria dá à afirmação, isto é, que os filósofos são como os moribundos
que vagueiam tristemente entre os homens. Mas o sentido das expressões é: que os homens sejam
filósofos e que cuidem da alma durante a sua vida. Este sentido aparece claramente das páginas 64
A-69 E, nas quais o discurso é feito com a ligação de mito e de logos, ligação que pretende delinear
uma contraposição entre vida e morte, que não é outra coisa senão uma contraposição entre dois
tipos de vida. A morte aqui torna-se o sentido da vida, isto é, a actividade da alma que, só se se
esquecer do corpo, “separando-se” dele, pode adquirir a sabedoria, pode entrar em contacto com a
verdade, pode raciocinar, pode “ver” as ideias, que não se vêem com os olhos do corpo, mas com os
da alma. É a nossa alma, portanto, que quanto menos estiver misturada às necessidades, aos medos
e aos obstáculos que o nosso corpo lhe apresenta, mais consegue alcançar o verdadeiro objectivo da
vida do filósofo, que é sempre o de conhecer todas as coisas, de adquirir verdade e inteligência: em
suma, de adquirir o saber. E então a morte, isto é, o morrer para os medos, para as ninharias, a
purificação das tarefas quotidianas no amplo horizonte dos conhecimentos, é vivida plenamente
pelo filósofo já nesta vida.
Mas isto pode não ser suficiente para os homens comuns, e também para os filósofos de
nível não elevado. Eles têm necessidade de saber que, quando se morre, a alma, com todas as suas
faculdades e a sua inteligência, existe ainda em algum lugar e não se destrói e perece no momento
em que o homem morre. Mas para estas pessoas não podemos senão contar mitos, diz Sócrates, para
ver se aquela esperança é verosímil. O mito de que estamos a falar é aquele antigo discurso dos
órficos, segundo os quais as almas chegam ao Hades partindo do nosso mundo e de lá regressam
novamente a este. Se assim é, ou seja, se os vivos se regeneram dos mortos, deve existir este
mundo. De facto, as almas não poderiam renascer se não existissem e assim haveria uma prova
suficiente da sua existência. Mas se isto ainda não for suficiente para “garantir” a própria
imortalidade da alma? Neste momento do diálogo, a intervenção do interlocutor de Sócrates,
Símias, é extremamente significativa. A persuasão derivante do discurso que se acabou de concluir
é indiscutível. Todavia, a demonstração parece ainda claudicante, e pede-se outra completa (77 C5).
Mas aqui Sócrates recusa-se: no plano demonstrativo, o logos que se fez está completo. E Platão é
excepcional. Evidentemente a demonstração, o logos demonstrativo, racional, correcto, não basta
para convencer e persuadir, porque a convicção e a persuasão pertencem também ao plano do
affectus, e há uma “paixão” que neste momento entra em jogo, uma paixão que é forte, na maioria
das pessoas, e que cria obstáculos àquela convicção e persuasão: é o medo da morte, que nada tem a
ver com a sua compreensão racional. Por isso a intervenção de Cebes a este ponto é extremamente
significativa: «Sócrates, tenta convencer-nos como se tivéssemos medo. Ou melhor, não como se
nós tivéssemos medo: talvez haja em nós uma espécie de criança que tem medo destas coisas». Esta
intervenção é um indício do facto que Cebes (e com ele os que são filósofos do seu nível) está
plenamente consciente de que o discurso demonstrou e, por conseguinte, convenceu aquela parte dele
que filosofa, mas não é suficiente para a criança que está nele e que não consegue filosofar. Mas
aqui não são mais necessários os discursos demonstrativos: com as crianças não se raciocina; são
precisos discursos não que demonstrem, mas que encantem, e Sócrates declara ser bom nestas
coisas como tantos outros homens bons, gregos ou bárbaros. Como se dissesse que enfeitiçar a
morte, isto é, tranquilizar as almas medrosas, pode ser feito por qualquer “homem bom”. Pelo
contrário, olhar a morte nos olhos com um raciocínio rigoroso que insira a vida humana numa maior
e mais vasta vida cósmica, isto, só um “homem filósofo” é capaz de o fazer.
Com efeito, diz Sócrates, se nem sequer consigo convencer os amigos filósofos, como posso
esperar convencer todos os outros de que o momento que estou a viver nada tem de diferente de
todos os outros que vivi? Em cada instante que o homem vive, encontra-se perante a morte, e para o
filósofo, que discorre e investiga em cada momento da sua vida, um instante não é diferente do
outro. Quando muito, encontrando-se numa condição como a que está a viver neste momento, isto
é, com a consciência de estar a viver o último instante da sua vida, Sócrates discorrerá melhor e
mais agradavelmente do que no passado. Exactamente como os cisnes que, quando se apercebem de
que estão para morrer, cantam mais e melhor que no passado. Pelo contrário, são os homens
comuns que, precisamente por causa do seu medo da morte, dizem que os cisnes cantam pela dor e
pelo sofrimento. Portanto Sócrates está pronto para o seu “canto do cisne”. As páginas que se
seguem, praticamente até ao fim do diálogo, constituem a delineação de uma teoria da imortalidade
da alma toda inserida num horizonte puramente ético. Por um lado, aqui a lógica reduz-se a
tautologia, e “alma” acaba por tornar-se sinónima de vida. O que realmente é imortal, então, é a
vida e dizer que “a alma do homem” é imortal, reduz-se a dizer que ele, como indivíduo, vive
enquanto vive; depois a vida, isto é, a alma, em si imortal, passará para outros. Por outro lado,
reduz-se a mito: um belo mito que só a imaginação e a fantasia do génio platónico podiam narrar-
nos. E o mito tem apenas um sentido ético, não é outra coisa senão o convite a cuidar da nossa alma
para que ela seja regrada e sábia; numa palavra, para que nesta vida se cultive a filosofia e se tenha
a coragem de o fazer. Portanto, há também uma necessidade que o mito, junto com o discurso,
complete a persuasão do homem para que este viva bem, isto é, cultive a virtude e o conhecimento.
E quando mito e logos estão de acordo, então o seu sentido é um só, e diz respeito exclusivamente a
esta vida que o homem vive na terra. Platão di-lo de maneira explícita, a meio dos mitos que conta:
a verdadeira “purificação” da alma, ou melhor, a purificação absolutamente suficiente, não é a que
se alcança depois da morte, mas aquela que se realiza pela filosofia, e é necessário «fazer tudo para
participar da virtude e da inteligência nesta vida». Então, segundo o mito, a alma é imortal porque
vai para o Hades; segundo o logos, a alma é imortal só durante aquele tempo, mais ou menos longo,
que cada homem quis e soube dedicar à inteligência das coisas e ao bem agir.
Para dar um exemplo relativo aos dias de hoje: perante o medo da morte que também hoje se
manifesta na desenfreada busca de divertimento e de evasão, que não são outra coisa senão uma
tentativa de se esquecer de si mesmo; perante este medo da morte que se manifesta nos mil discursos
consoladores que construímos, em boa ou má fé, para o exorcizar; perante o espectáculo quotidiano
de homens que provocam com extrema facilidade a morte de outros por banais interesses
individuais, colectivos ou estatais: ainda tem sentido o discurso platónico sobre a morte, que outra
coisa não é senão um convite a bem viver, com virtude e inteligência, como homens, como género
humano, esta única vida concedida a cada indivíduo?
3) O amor. A imortalidade, portanto, pode ser conquistada pelo homem com conhecimento e
recta acção, só no tempo da sua vida mortal. Esta perspectiva transparece também em algumas
belíssimas páginas de outro diálogo, o Banquete. Nele, ao conhecimento se acrescenta o amor,
como o dissera Empédocles. Um e o outro são indispensáveis para a imortalidade humana. Como se
sabe, o Banquete é o diálogo que Platão dedica explicitamente ao elogio do amor, ou melhor, aos
diversos elogios do amor, pronunciados pelas várias personagens que participam do banquete. Entre
eles, o diálogo entre Sócrates e Diotima, sacerdotisa de Mantineia, desempenha um papel central.
Na sua estrutura, as páginas 207-209 são muito importantes e são as que nos interessam. Trata-se da
“causa” do amor e encontramo-nos perante algumas das mais belas páginas de Platão, as quais, só
por si, bastariam para destruir a imagem (ainda hoje dura de morrer) de um Platão metafísico e
defensor da “contemplação”, ou da fuga do mundo do devir, etc. Pelo contrário, dessas páginas
aparece a imagem de um Platão não só grande pensador dialéctico, mas também defensor de uma
concepção do saber como contínua e infinita busca e aquisição de conhecimentos sempre novos e
que se renovam sempre.
Vejamos: qual é a causa deste amor e desejo? Há uma “atitude” de todos os animais, uma
sua “disposição amorosa” para o acasalamento e criação da prole, e esta atitude não deriva de uma
disposição racional. Qual é então a causa desta “atitude”? Ela reside precisamente no facto de que a
natureza mortal procura, o mais possível, ser sempre, isto é, ser imortal. E pode sê-lo só com a
geração, porque com ela deixa outro ser novo no lugar do velho. E aqui cai por terra uma
observação importante a propósito da conexão dialéctica realizada pela linguagem, pelos “nomes”
que usamos: a conexão entre idêntico e diverso e, por conseguinte, entre morte e vida. De facto, de
cada ser vivo, diz-se que “vive” e que “é o mesmo”. E dizer que um homem é sempre a mesma
pessoa, desde criança até velho, serve-nos para identificar aquele homem e distingui-lo, entre outras
coisas, dos outros homens com o “nome” que lhe é próprio. Esta operação de “identificação”,
literalmente falando, isto é, a de considerar sempre idêntico um homem que é sempre diferente, é
indispensável nos nossos discursos, para podermos referir-nos a ele. Mas esta é precisamente um
fingimento linguístico, embora necessário. Diz-se que é o mesmo, diz-se que é sempre igual, quando,
na realidade, aquele homem nunca tem em si as mesmas coisas, aliás torna-se sempre novo. Não só;
a sua vida, o seu estar vivo, é tal justamente porque ele vai morrendo continuamente em todo o seu
corpo. E isto não acontece só relativamente ao corpo, mas sim no que diz respeito à alma: os hábitos,
as opiniões, os desejos, os prazeres, as dores, os temores nunca permanecem idênticos, nunca são os
mesmos, uns nascendo e outros desaparecendo. A identidade, portanto, de um homem é dada
precisamente pelo seu próprio modo de ser sempre diferente.
Ainda mais surpreendente, continua Platão, é o facto de que também as nossas experiências
intelectuais, os nossos conhecimentos, o nosso “saber”, nunca são os mesmos, mas passam também
pela situação do nosso ser vivos morrendo, isto é, renovando-nos. Com efeito, se a vida é um
contínuo morrer e renascer, uma renovação, também o nosso saber, que faz parte da nossa vida, que
é vida, para poder estar vivo, deve renovar-se continuamente, ou seja, perecer e renascer. Tal como
um homem, para se aproximar da imortalidade, deve, segundo o corpo, deixar um ser novo no lugar
do velho, também segundo a alma, deveria deixar um pensamento novo no lugar do velho. De facto,
diz Platão que também os conhecimentos nascem e morrem, razão pela qual os homens nunca são
os mesmos relativamente ao seu saber. E cada conhecimento apresenta esta mesma característica. O
que chamamos ‘estudar’, isto é, cuidar da própria alma, cuidar dos próprios conhecimentos, é um
processo dinâmico e nunca uma aquisição definitiva, que se deu uma só vez e permanece sempre
idêntica em nós. “Cuidar dos nossos conhecimentos” significa então possuir qualquer coisa no seu
contínuo devir, razão pela qual o nosso saber é tal só e somente se se renovar continuamente. Saber
realmente algo é tal só se não for um saber fossilizado, só se nunca for idêntico, envelhecido, só se
se rejuvenescer e se transformar. Só desta forma tudo o que é mortal se conserva, se salva: não com
o ser sempre absolutamente idêntico, como o divino, mas com o deixar no seu lugar, no lugar do
que envelhece e se vai embora, outro ser jovem tal como ele era. É com este subterfúgio que o que é
mortal participa da imortalidade.
Portanto, o homem não é imortal, como os deuses, ou como os elementos sempre idênticos
que compõem os aspectos sempre diferentes da realidade, mas possui “subterfúgios” para poder
alcançar uma sua forma própria de imortalidade. Um desses, vimos, é o conhecimento, com o qual
ele, na sua vida mortal, ao renovar aspectos sempre diversos do saber, participa da imortalidade de
um saber que está sempre para além de todos os nascimentos e mortes dos homens que o alcançam.
O outro subterfúgio é precisamente o amor, que é o fim mais alto da actividade humana. Estamos
nas páginas 209-212 do diálogo, que medem as etapas de uma ascensão intelectual e cognoscitiva
que se pode dar só se se for tomado pelo eros. Também aqui por demasiado tempo se viu uma
ascensão à qual se fazia corresponder de forma muito simplista uma ascese, um processo que
culminava numa espécie de visão estática e inefável da ideia. Mas não é assim: esta ascensão tem
para Platão um valor cognoscitivo e ético que nada tem a ver com a “fuga do mundo”. As suas
etapas são o amor pela beleza dos corpos, depois pela beleza das almas, depois pela beleza das
acções e das normas, e em seguida pela beleza das ciências. Assim, fixando o olhar no belo já tão
amplo e deixando de se afeiçoar à beleza que existe num único objecto como um servo, deixa de ser
um homem trivial e mesquinho. Mas virando-se para o amplo mar do belo e contemplando-o, ele
concebe muitos, belos e excelentes discursos e pensamentos num infinito amor pelo saber.
Portanto o amor, por quem quer que se manifeste, é sempre amor pelo belo, pela beleza.
Passar do amor por um corpo belo ao amor pelos corpos belos e pelas almas belas é uma aquisição
importante neste processo de educação e de enriquecimento da nossa sensibilidade; significa
reconhecer que o que amamos é precisamente esta “expansão” do nosso ser, do nosso modo de ser;
uma expansão que tem o nome justamente de beleza. Este algo que chamamos “belo” aparece-nos
sempre mais como algo que se mostra não limitadamente, mas que é perceptível numa pluralidade
de coisas, de aspectos, que é precisamente o que no-los torna desejáveis, objectos do nosso desejo
amoroso. E tudo isto torna-nos melhores, torna melhor quem ama e quem é amado, empenhando-os
na construção contínua de novos “belos discursos”. Quando se chega a este nível, alcança-se a
primeira plena consciência do modo “amoroso” de agir no mundo.
É a conquista de um maior fôlego “vital” que permite compreender e fazer mais: não nos
esqueçamos que aqui Platão está a descrever precisamente as modalidades da vida que a tornam
digna de ser vivida para o homem.
Parece-me evidente que Platão cria o horizonte da liberdade como uma liberdade que não
separa, que não pode separar o agir do perceber. O homem que alcançou a capacidade de olhar para
dentro deste horizonte amplo, de fixar o olhar no que é belo neste sentido sempre mais amplo, é o
homem que se libertou da escravidão, é o homem livre. Também aqui, o que se alarga sempre mais
é o horizonte dos discursos que o homem é capaz de fazer: o homem servo é aquele cujo horizonte é
limitado, o homem livre é aquele vê longe; o homem servo é o que faz pequenos discursos, aliás o
seu pequeno e limitado discurso, o homem livre é aquele que é capaz de fazer muitos, belos e
excelentes discursos, que é capaz de conceber os próprios pensamentos no quadro de uma filosofia
não mesquinha, mas de horizontes amplos.
A presença do amor neste processo de aprendizagem, de ampliação dos nossos conhecimentos
e dos nossos saberes, é fundamental para Platão. Ela significa não somente a aquisição de uma série
sempre mais ampla de noções, mais ou menos especializadas, mas a capacidade de dar um sentido
novo às coisas que sabemos e que fazemos. E o sentido novo não é só conseguir ver que há beleza e
maravilha na pluralidade das acções e de pensamentos, mas é também e principalmente conseguir
adquirir esta mesma capacidade. Portanto, a beleza não reside nas coisas, mas na capacidade de a
ver nas coisas. Reconhecê-la nas coisas que nascem e perecem, que mudam, significa poder
reconhecê-la sempre, enquanto ser que é sempre igual em algo que não o é: o igual e o diverso são
sempre necessários.
Aqui, no Banquete, a ideia do belo é a condição que nos consente desfrutar do amplo mar
das coisas belas, não de as transcender ou renegar. Alcançar esta “ideia do belo” é um acto de amor,
tal como educar outrem para esta ideia é um acto de amor. Este é o fim de Eros e do que os homens
fazem em nome do amor. E este fim não é uma mera contemplação estática, uma “visão” que
determina a afasia: não tem absolutamente nada de místico. Pelo contrário, é o início de uma nova
actividade, contínua e infinita, e que tem uma forte conotação ética. As coisas, e o homem também,
nascem e morrem. Reconhecer o belo que nasce e morre em coisas sempre diversas, e portanto o
belo que não nasce e não morre, ser educados no seu reconhecimento, saber reconhecê-lo, é o acto
de amor mais elevado a que o homem possa aspirar. Quando consegue, está em contacto com a
verdade (212 A), e só então consegue “procriar” a verdadeira excelência. Virtude e verdade são
portanto sinais não de uma fuga do mundo, mas de um novo modo de viver no mundo, que é pensar
e agir com beleza e com amor, com excelência e verdade. E esta é também a imortalidade mortal
dos homens.
Para dar um exemplo relativo aos dias de hoje: perante o viver o amor como posse egoísta ou
simples e superficial gratificação; perante o viver o amor como limitação nos horizontes de uma vida
feita de pequenos discursos; numa palavra, perante o viver o amor como servos, que significa
fechamento para o novo, incapacidade de se renovar: ainda tem sentido a perspectiva platónica do
amor como tensão e abertura para o amplo mar das coisas belas, como conquista da capacidade de
ver a beleza das coisas, dos corpos, das almas, dos conhecimentos, como desejo de se ser belos e de
fazer coisas belas, juntamente com a amada, juntamente com todos os outros homens?
tradução de Maria da Graça Gomes de Pina

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