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MENTE E MUNDO

John McDowell
ÍNDICE

Prefácio...........................................................................................................
Introdução.......................................................................................................

Primeira Conferência. Conceitos e Intuições..................................................


Segunda Conferência. A Indelimitação do Conceitual...................................
Terceira Conferência. Conteúdo Não-Conceitual...........................................
Quarta Conferência. Razão e Natureza...........................................................
Quinta Conferência. Ação, Significado e o Eu...............................................
Sexta Conferência. Animais Racionais e Outros Animais..............................

Posfácio

Primeira Parte. Davidson Contextualizado.....................................................


Segunda Parte. Apêndice à Terceira Conferência........................................
Terceira Parte. Apêndice à Quinta Conferência...........................................
Quarta Parte. Apêndice à Sexta Conferência...............................................
PREFÁCIO 3
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PREFÁCIO

A porção principal deste livro é uma espécie de transcrição das Conferências John
Locke, que tive a oportunidade de dar na Universidade de Oxford em 1991. Algumas
remodelações foram feitas na forma do texto original. Tentei melhorá-lo, deixando-o mais
claro e mais explícito. Também eliminei expressões como "na próxima semana" e "na
semana passada", pois pareceu-me absurdo conservá-las numa versão que se destina a ser
apreendida pelos olhos, possivelmente numa única sentada – ao menos no que diz respeito
ao texto das conferências. Apesar disso, se desconsiderarmos a correção de uma falsidade
inessencial encontrada no final da última conferência, os textos das seis conferências que
apresento aqui pretendem dizer exatamente aquilo que eu disse em Oxford.
Elas pretendem, além disso, dizer tudo aquilo fazendo uso de um modo de
organização e de um tom de voz que reproduzam os utilizados nas conferências. Quero,
com isto, referir-me a pelo menos três coisas.
Em primeiro lugar, mesmo fazendo revisões no nível das expressões e sentenças,
preservei a ordem das conferências no nível dos parágrafos e seções. Em particular, não
procurei eliminar, ou mesmo diminuir as repetições. Fiz isso na esperança de que
recapitulações freqüentes e às vezes um pouco longas pudessem ser úteis aos meus
ouvintes, e espero que elas também sejam úteis aos meus leitores.
Em segundo lugar, num breve conjunto de conferências, pareceu-me sensato tentar
seguir uma linha de pensamento razoavelmente linear. Ao revisar o texto, não tentei deixá-
lo menos bidimensional. As notas de rodapé, na medida em que vão além da mera
informação bibliográfica, pretendem apenas, como o Posfácio, dar uma indicação daquilo
que seria um tratamento mais acabado de certos temas. Não passam, portanto, de
suplementos ao registro das conferências tais como elas foram dadas.
Em terceiro lugar, tentei não apagar uma certa desprevenção, que me pareceu
apropriada para o formato de uma conferência.

Tenho muitas dívidas importantes a serem reconhecidas.


Se alguém ler estas conferências superficialmente, poderá pensar que, logo após as
primeiras páginas, Donald Davidson figura como uma espécie de inimigo. Espero que fique
claro para leitores menos superficiais que ponho o foco de minhas críticas sobre a obra de
Davidson em sinal de respeito. Defino minha posição por meio de um contraste com a dele
que seria fácil relegar às bordas da pintura, ressaltando a enorme concordância existente
nos pontos mais centrais. Dados meus propósitos nestas conferências, porém, acabei
reforçando o contraste. No Posfácio, tento fazer algumas retificações. O fato é que os
escritos de Davidson têm sido uma constante inspiração para mim, desde que, aconselhado
por David Wiggins, li pela primeira vez "Truth and Meaning", ou talvez "On Saying That"
(não tenho certeza de qual chegou primeiro às minhas mãos).1
A influência exercida sobre mim pelo inigualável livro de P. F. Strawson a respeito
da Primeira Crítica de Kant é muito maior do que notas de rodapé poderiam indicar. 2 Não
estou certo se o Kant de Strawson é realmente Kant, mas tenho certeza de que o Kant de
Strawson ficou muito perto da realização daquilo que Kant queria realizar. Nestas
1
Ambos os ensaios estão agora disponíveis no volume Inquiries into Truth and Interpretation
(Clarendon Press, Oxford, 1984).
2
The Bounds of Sense (Methuen, Londres, 1966). Devo também mencionar aqui Individuals: An
Essay in Descriptive Metaphysics (Methuen, Londres, 1959).
PREFÁCIO 4
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conferências, sigo de perto os passos de Strawson quando utilizo Kant ao considerar o


problema da primeira pessoa (Quinta Conferência). Do mesmo modo, quando uso Kant
para dizer como deveríamos conceber a experiência – a principal coisa que tento fazer
aqui – o Kant que uso é strawsoniano no espírito, quando não o é no detalhe.
A influência de Strawson pode ser sentida no que escrevo tanto direta quanto
indiretamente, por meio de seu discípulo Gareth Evans. Evans não viveu o suficiente para
escrever um prefácio à sua obra seminal The Varieties of Experience.3 Se o tivesse escrito,
certamente teria tentado mostrar até que ponto seu mestre havia determinado a forma de seu
pensamento nos pontos mais centrais. A influência direta que Evans teve sobre mim é
incalculável. Durante toda uma década, a coisa mais importante em minha vida intelectual
foi a convivência acadêmica que tive com ele. Qualquer pessoa que o tenha conhecido sabe
bem o que isto significa: um reservatório inesgotável de estímulo intelectual. Não sei como
eu poderia sequer começar a distinguir em mim a diferença que ele fez. Não posso imaginar
se eu me tornaria filósofo, ou que tipo de filósofo eu teria me tornado sem a sua presença.
Ele é uma das duas pessoas já falecidas com quem eu mais desejaria discutir este livro.
A outra é Wilfrid Sellars. Seu clássico ensaio "Empiricism and the Philosophy of
Mind"4 tornou-se central para mim muito antes de eu sequer pensar em vir para a
Universidade de Pittsburgh, e é uma pena que eu tenha me tornado seu colega numa fase de
sua vida avançada demais para que eu pudesse tirar das conversações que tive com ele o
mesmo proveito que tirei da leitura de seus textos.
Os escritos de Robert Brandon e as conversações que tivemos foram muito
importantes na formação de meu pensamento, usualmente porque ele me forçava a ser claro
a respeito das diferenças, em si mesmas pequenas, que se tornaram para mim o pano de
fundo contra o qual eu vejo nosso amplo campo de concordâncias. Minha maneira de
expressar as coisas traz importantes marcas da influência de Brandon. Entre muitas outras
coisas, eu destacaria o seminário coordenado por ele a respeito da Fenomenologia do
Espírito de Hegel, que freqüentei em 1990. Alguns pensamentos que Brandon despertou em
mim naquela ocasião aparecem explicitamente em um ou dois pontos destas conferências,
mas o efeito geral está por toda parte. Tanto é assim que uma das maneiras pelas quais eu
gostaria que este livro fosse concebido é como um prolegômeno à leitura da
Fenomenologia, exatamente como acontece com o livro de Brandon Making It Explicit:
Reasoning, Representing, and Discursive Commitment.5 Também sou grato a Brandon pela
ajuda e apoio constantes que me deu durante a elaboração das conferências.
Muitas outras pessoas ajudaram-me na elaboração desta obra. Tento mencionar
contribuições específicas em notas de rodapé, mas tenho certeza de que em muitos pontos
eu simplesmente me esqueci de quem me ensinou pela primeira vez a dizer certas coisas
como eu as digo. Sinto muito por isso. Aproveito a ocasião para agradecer a James Conant,
John Haugeland e Danielle Macbeth por toda a ajuda e encorajamento que me deram.

Os primeiros esboços do tipo de formulação a que cheguei aqui foram feitos durante
o inverno de 1986–1987, numa tentativa de pôr sob controle a reação emocional que
sempre me causava a leitura do livro de Richard Rorty Philosophy and the Mirror of

3
Clarendon Press, Oxford, 1982.
4
In Herbert Feigl e Michael Scriven, eds., Minnesota Studies in the Philosophy of Science, vol. I
(University of Minnesota Press, Minneapolis, 1956), pp. 253–329.
5
Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1994.
PREFÁCIO 5
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Nature.6 Aquela já era a terceira ou quarta vez que eu o relia, e creio que foi uma leitura
anterior do livro de Rorty que me conduziu até a obra de Sellars. De todo modo, ficará
bastante claro que a obra de Rorty teve uma importância fundamental para definir o tipo de
posição que defendo aqui.
Usei aqueles primeiros esboços para elaborar as conferências que dei em Oxford
naquele ano acadêmico, o último que passei ali, e nas Conferências Whitehead, que dei em
Harvard na primavera de 1986. Essa obra inicial foi elaborada enquanto eu era bolsista
Radcliffe na área de filosofia. Muito embora esse fruto de minha bolsa de estudos já esteja
um tanto ultrapassado, gostaria de registrar o quanto este livro deve à generosidade do
Radcliffe Institute. Agradeço também aos professores do University College, em Oxford,
que me deram permissão para aceitar essa bolsa.
Sou muito grato ao Departamento de Filosofia da Universidade de Oxford, que tanto
me honrou com o convite para dar as Conferências John Locke, e também aos muitos
amigos que tenho na Inglaterra, pela gentileza que demonstraram durante toda a minha
estadia.

6
Princeton University Press, Princeton, 1979.
INTRODUÇÃO 6
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INTRODUÇÃO

1. Quando foi publicado pela primeira vez, este livro não tinha uma introdução. De lá para
cá, porém, fui sendo levado a perceber que ele é mais difícil de entender do que eu
supunha. Espero que uma visão de conjunto, onde certos detalhes são omitidos para que o
foco seja posto sobre o tema central, possa ajudar ao menos alguns leitores.
Meu objetivo aqui é propor uma abordagem, à maneira de um diagnóstico, de
algumas das angústias características da filosofia moderna – angústias cujo centro estaria,
como sugere o título, na relação entre mente e mundo. Dando continuidade à metáfora
médica, eu diria que um diagnóstico satisfatório deve apontar na direção de uma cura.
Minha meta é explicar como aconteceu de nos vermos diante de coisas com a aparência de
obrigações filosóficas de um tipo que nos é familiar, e desejo que minha explicação permita
desmascarar essa aparência, mostrando que ela é uma ilusão.
É relevante que a ilusão tenha esse poder de nos aprisionar. Quero ser capaz de
reconhecer o poder das fontes dessa ilusão, de tal modo que tenhamos condições de
respeitar a convicção de que as obrigações são genuínas, mas ao mesmo tempo perceber
como podemos, de nossa parte, rejeitar a aparência de estarmos diante de uma tarefa
intelectual urgente.

2. Uma boa via de acesso ao quadro que ofereço é considerar a plausibilidade de um


empirismo mínimo.
Se quisermos dar sentido à idéia de que um estado ou episódio mental está orientado
para o mundo da maneira como uma crença ou um juízo estão, precisamos pôr esse estado
ou episódio num contexto normativo. Uma crença ou juízo de que as coisas são assim e
assim – uma crença ou juízo cujo conteúdo (como costumamos dizer) é que as coisas são
assim e assim – deve ser uma postura ou atitude que é correta ou incorretamente adotada
conforme as coisas sejam ou não, de fato, assim e assim. (Se pudermos dar sentido a uma
crença ou juízo enquanto algo que está orientado para o mundo desta maneira, outros tipos
de posturas ou posições portadoras de conteúdo deverão ser facilmente esclarecidos.) A
relação entre mente e mundo, portanto, é normativa neste sentido: um pensamento que
objetiva um juízo ou a fixação de uma crença é responsável perante o mundo – perante o
modo como as coisas são – no que diz respeito a ter sido ou não corretamente executado.
Mas como elaborar melhor essa idéia de que nosso pensamento é responsável
perante o mundo? Ao tratar desta questão, poderíamos restringir nossa atenção, ao menos
tacitamente, ao tipo de pensamento que é responsável perante o mundo empírico, vale
dizer, que é responsável perante o modo como as coisas são, na medida em que o modo
como as coisas são for empiricamente acessível. Mesmo se acharmos que ser responsável
perante o modo como as coisas são é algo mais inclusivo do que ser responsável perante o
mundo empírico, parece de toda forma correto dizer o seguinte: dado que a situação
cognitiva que nos causa perplexidade é o fato de confrontarmos o mundo por meio da
intuição sensível (para falar em termos kantianos), nossa reflexão a respeito da idéia mesma
de um pensamento orientado para o modo como as coisas são deve começar tratando da
responsabilidade perante o mundo empírico. E como poderíamos entender a idéia de que
nosso pensamento deve satisfações ao mundo empírico, se não fosse por meio da idéia de
que nosso pensamento deve satisfações à experiência? Como poderia o mundo empírico –
ao qual o pensamento empírico, para ser pensamento, necessariamente deve satisfações –
INTRODUÇÃO 7
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dar o seu veredito, a não ser por meio de um veredito do (nas palavras de Quine) "tribunal
da experiência"?7
É isto que entendo por "um empirismo mínimo": a idéia de que a experiência deve
ser um tribunal mediando a maneira pela qual nosso pensamento é responsável perante o
modo como as coisas são, coisa que deve acontecer se quisermos dar sentido ao
pensamento enquanto tal. E este é um dos lados da combinação de plausibilidades que
promete dar conta das angústias filosóficas a que fiz menção mais acima. O outro lado é
uma disposição mental, que examinaremos mais abaixo (§4), que torna difícil perceber
como a experiência poderia funcionar como um tribunal, dando vereditos a respeito de
nosso pensamento.
É claro que, levada ao limite, essa combinação teria por resultado uma antinomia: a
experiência tanto deve (empirismo mínimo) quanto não pode (linha de raciocínio a ser
explorada mais adiante) submeter a julgamento nossas tentativas de decidir como as coisas
são. Considere, entretanto, um estágio no qual a reflexão esteja sujeita a este par de
pressões, mas não de maneira tão autoconsciente a ponto de ficar claro que o que estas
pressões estão gerando é uma antinomia. Tendo uma consciência não-explícita da tensão
existente entre estas duas tendências em seu pensamento, alguém poderia ver-se facilmente
tomado por uma angústia filosófica familiar a respeito daquela orientação da mente em
direção ao mundo, que, assim parecia, nós teríamos que ser capazes de glosar em termos de
responsabilidade perante o modo como as coisas são. Vendo-se nesta posição, esse alguém
iria flagrar-se perguntando – "como é possível haver um pensamento orientado em direção
ao modo como as coisas são?" Esta seria uma questão filosófica bastante familiar do tipo
"como é possível…?". Ela adquire sua agudeza filosófica característica quando é feita
contra o pano de fundo de elementos para uma linha de raciocínio que, se fosse explicitada,
teria por conseqüência revelar que o tema da questão, na verdade, não é de maneira alguma
possível.

3. Pode parecer surpreendente que eu esteja associando o empirismo a uma angústia


filosófica a respeito da possibilidade do pensamento. Certamente, poder-se-ia objetar, o
empirismo é uma posição epistemológica, e a questão relevante deveria, antes, ser a
seguinte: "como é possível haver conhecimento empírico?" Em termos da imagem jurídica
de Quine, isto equivale a dizer algo do seguinte tipo: "Como pode a experiência, quando
leva, digamos, uma crença a julgamento, dar um veredito suficientemente favorável para
que essa crença conte como um caso de conhecimento?"
Suponha, porém, que estejamos propensos a ter nossos pensamentos moldados pelo
segundo elemento em minha combinação de plausibilidades (que, até agora, eu só exibi em
termos de seu efeito). Isto equivale a supor que achamos difícil perceber como a
experiência pode funcionar como um tribunal, levando nossas crenças a julgamento. Esta
seria uma dificuldade a respeito do modo pelo qual a experiência pode dar um veredito
qualquer sobre o nosso pensamento, o que é certamente mais fundamental que uma
dificuldade a respeito do modo pelo qual a experiência pode dar um tipo particular de
veredito – um veredito que atinge um alto grau de favorabilidade.
É bem verdade que a filosofia moderna está impregnada de problemas bem visíveis
a respeito do conhecimento particularmente considerado. Apesar disso, penso que será útil
encarar esses problemas bem visíveis como expressões mais ou menos ineptas de uma
7
"Two Dogmas of Empiricism", in W. V. Quine, From a Logical Point of View (Harvard University
Press, Cabridge, Mass., 1961; 1ª ed. 1953), pp. 20–46, com a citação na p. 41.
INTRODUÇÃO 8
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angústia mais profunda – uma ameaça inceptivamente sentida de que um modo de pensar
no qual nos vamos enredando não torna as mentes apenas capazes, talvez, de vir a saber
algo sobre o restante da realidade, mas faz com que elas simplesmente percam contato com
essa realidade. Um problema que diga respeito à atribuição de conhecimento a nós mesmos
é apenas uma forma, e nem mesmo a mais fundamental, em que aquela angústia se faz
sentir.

4. Qual é a pressão que, exercida sobre nosso pensamento, torna difícil perceber de que
modo a experiência poderia funcionar como um tribunal? Posso trazê-la à luz recapitulando
um elemento central do ataque que Wilfrid Sellars faz ao "Mito do Dado".
Sellars enfatiza que o lugar apropriado para o conceito de conhecimento é um certo
um contexto normativo. Ele diz: "Ao caracterizar um episódio ou um estado como sendo de
conhecimento, não estamos dando uma descrição empírica daquele episódio ou estado. Nós
o estamos colocando no espaço lógico das razões, da justificação e da capacidade de
justificar aquilo que se está dizendo."8 Uma maneira de repetir aquilo em que eu insistia
mais acima (§3) é dizer o seguinte: embora Sellars esteja falando aqui do conhecimento em
particular, este é apenas um modo de enfatizar uma aplicação da idéia de que estar em
contato com o mundo é algo que exige um contexto normativo, quer este contato se dê na
forma de um conhecimento, quer não.
Um modo de expressar aquilo que Sellars tem em vista é dizer que a epistemologia
está sujeita a ser vítima da falácia naturalista.9 Na versão mais geral em que venho
insistindo, a idéia central é que o risco da falácia naturalista está sempre ameaçando
qualquer reflexão a respeito da orientação-ao-mundo enquanto tal, quer esta orientação se
dê na forma de um conhecimento, ou não. Se expressarmos o pensamento de Sellars deste
modo, estaremos identificando o natural – como às vezes Sellars também faz – com aquilo
de que se fala numa "descrição empírica", vale dizer, com o tema de um tipo de discurso
que deve ser contrastado com o posicionamento de algo no quadro normativo de referência
constituído pelo espaço lógico das razões. Sellars separa conceitos que só são inteligíveis
em termos de como eles se prestam a posicionar coisas no espaço lógico das razões, como
por exemplo o conceito de conhecimento, de conceitos que podem ser empregados numa
"descrição empírica". E se lermos sua observação como um alerta contra a falácia
naturalista, entenderemos a "descrição empírica" como um posicionamento das coisas no
espaço lógico da natureza, para cunhar uma expressão que, ao menos no espírito, é
sellarsiana.
O que seria o espaço lógico da natureza? Creio que estaremos captando o essencial
do pensamento de Sellars se virmos o espaço lógico da natureza como o espaço lógico no
qual funcionam as ciências naturais, como o desenvolvimento bem mapeado e em si mesmo
admirável do pensamento moderno já nos capacitou a concebê-las. Poderíamos dizer que
posicionar algo na natureza, na acepção relevante do termo, por oposição a posicioná-la no
espaço lógico das razões, significa situá-la no domínio da lei. O que interessa para o
argumento de Sellars, porém, não é esta ou qualquer outra caracterização positiva, mas sim
a alegação negativa: quaisquer que sejam as relações que constituem o espaço lógico da
natureza, elas são de um tipo diferente das relações normativas que constituem o espaço
8
"Empiricism and the Philosophy of Mind", in Herbert Feigl e Michael Scriven, eds., Minnesota
Studies in the Philosophy of Science, vol. I (University of Minnesota Press, Minneapolis, 1956), pp. 253–329,
trecho citado nas pp. 298–9.
9
Cf. p. 257 de "Empiricism and the Philosophy of Mind" para uma formulação nestes termos.
INTRODUÇÃO 9
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lógico das razões. As relações constitutivas do espaço lógico da natureza, na acepção


relevante, não incluem relações tais como uma coisa ser permitida ou (no caso geral)
correta em função de outra. É isto que Sellars está dizendo quando insiste que uma
"descrição empírica" não pode ser equivalente a posicionar algo no espaço lógico das
razões.
Suponhamos aceita esta dicotomia de espaços lógicos. Em qual destes dois espaços
lógicos residiria o conceito de experiência? Naturalmente, tudo depende daquilo que
entendemos por "experiência". Suponhamos, porém, que desejamos conceber o curso das
experiências de um sujeito como sendo constituído por impressões, impactos do mundo
num possuidor de capacidades sensoriais. Certamente, este discurso a respeito de impactos
do mundo é uma "descrição empírica". Na formulação alternativa que introduzi mais acima,
a idéia de receber uma impressão é a idéia de uma transação no interior da natureza. Pelos
princípios de Sellars, portanto, identificar algo como uma impressão é posicionar esse algo
num espaço lógico diferente daquele no qual cabe falar em conhecimento – ou, para
mantermos o caso geral diante dos olhos, no qual cabe falar em direcionamento ao mundo,
quer isso redunde em conhecimento ou não. Segundo estes princípios, o espaço lógico no
qual o discurso sobre impressões encontra seu lugar adequado não é um espaço no qual as
coisas estão conectadas por relações tais como serem permitidas ou corretas em função de
outras. Portanto, se concebemos a experiência como algo constituído por impressões, ela
não pode, segundo estes princípios, ser usada como um tribunal, algo a que o pensamento
empírico deve satisfações. Supor que ela pudesse seria apenas um caso da falácia
naturalista contra a qual Sellars lança o seu alerta – estaríamos supondo que a "descrição
empírica" poderia ser equivalente a posicionar coisas no espaço lógico das razões.
O que fiz até aqui foi buscar em Sellars uma linha de raciocínio que, ao menos
potencialmente, mantivesse uma tensão com um empirismo mínimo. (Se esta tensão é real,
é algo que está na dependência de o empirismo precisar conceber o "tribunal da
experiência" como sendo constituído por impressões; voltarei a esta questão mais abaixo,
no §6.) Nas conferências que vêm a seguir, é principalmente Donald Davidson que
desempenhará o papel que foi atribuído aqui a Sellars: alguém cujas reflexões sobre a
experiência acabam por desqualificá-la enquanto algo que poderia, de forma inteligível,
constituir um tribunal. Para estes fins, Sellars e Davidson são intercambiáveis. O ataque de
Sellars ao Dado corresponde, de um modo que exploro em minha primeira conferência, ao
ataque de Davidson àquilo que ele chama de "terceiro dogma do empirismo" – o dualismo
entre esquema conceitual e "conteúdo" empírico. E Davidson sugere explicitamente que
esse ataque afasta até mesmo um empirismo mínimo. Ele descreve o terceiro dogma do
empirismo como sendo "talvez o último", já que "se o abandonarmos, não é claro que ainda
restará algo distinto que mereça ser chamado de empirismo".10

5. Venho sugerindo que podemos ligar algumas angústias características da filosofia


moderna à tensão entre duas forças. Ambas as forças possuem uma tendência para moldar
nossa reflexão a respeito do pensamento empírico, e portanto a respeito do
direcionamento-ao-mundo em geral. Uma delas é a atratividade de um empirismo mínimo,
sugerindo que a própria idéia de um direcionamento ao mundo empírico só é inteligível em
termos de responsabilidade perante o tribunal da experiência, concebido em termos de um
mundo que impressiona sujeitos percipientes. A outra é um modo de pensar que faz parecer
10
"On the Very Idea of a Conceptual Scheme", in Donald Davidson, Inquiries into Truth and
Interpretation (Clarendon Press, Oxford, 1984), pp. 183–98, citação à p. 189.
INTRODUÇÃO 10
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impossível que a experiência possa ser um tribunal. A idéia de um tribunal, bem como a
idéia daquilo sobre o que um tribunal dá seus vereditos, coaduna-se com aquilo que Sellars
chama de "o espaço lógico das razões" – um espaço lógico cuja estrutura consiste em
alguns de seus ocupantes serem, por exemplo, permitidos ou corretos em função de outros.
Mas a idéia de experiência, ao menos na medida em que ela é pensada em termos de
impressões, evidentemente encontra seu lugar adequado num espaço lógico de conexões
naturais. Isso pode facilmente nos fazer pensar que, se tentássemos conceber a experiência
como um tribunal, estaríamos condenados a cometer a falácia naturalista, que Sellars
descreve como uma armadilha à espera dos candidatos a epistemólogo. Suponha que
tenhamos uma consciência inexplícita de que nosso pensamento está sujeito a estas duas
forças. Torna-se compreensível, então, que achemos filosoficamente problemático o fato de
o pensamento dizer respeito ao mundo empírico.
Como eu já disse (§1), meu objetivo é fazer um diagnóstico, tendo em vista uma
cura. Se a angústia filosófica a respeito da possibilidade de entrarmos em contato com o
mundo pode ser associada à tensão entre aquelas duas forças, uma cura envolveria uma
resolução da tensão. Obviamente, a descrição dada deixa disponíveis diversas opções para
se fazer isso. Neste livro, eu recomendo uma certa maneira de resolver essa tensão. Darei
aqui uma breve localização dessa maneira, distinguindo-a de algumas outras.

6. Uma opção seria renunciar ao empirismo, ao menos àquele no qual a experiência é


interpretada em termos de impressões. Como já mencionei anteriormente (§4), Davidson
associa explicitamente o destino do empirismo ao do dualismo esquema-conteúdo, que ele
demole com eficiência, de modo semelhante ao que acontece com o ataque de Sellars ao
Mito do Dado. O próprio Sellars, aliás, trabalha no sentido de delinear um conceito de
impressão que esteja completamente separado da epistemologia.
Não creio que uma posição deste tipo possa ser genuinamente satisfatória. Insisto
neste ponto, especialmente no que se refere a Davidson, na primeira das conferências que
integram este livro. A base que Davidson tem para abandonar o empirismo é, em essência, a
alegação de que não podemos tomar a experiência como sendo epistemologicamente
significativa, sob pena de recairmos no Mito do Dado, no qual a experiência, concebida de
tal modo que não poderia ser um tribunal, é apesar disso suposta como algo que submete
nosso pensamento empírico a um julgamento. Isto tem certamente o formato de um
argumento tentando provar que devemos renunciar ao empirismo. O problema é que ele não
mostra como podemos fazer isso. Ele nada faz para dar uma explicação para a
plausibilidade do quadro empirista, segundo o qual só podemos dar sentido à orientação
para o mundo característica do pensamento empírico concebendo este pensamento como
responsável perante o mundo empírico no que diz respeito à sua correção, sendo que só
podemos conceber a responsabilidade perante o mundo empírico enquanto mediada pela
responsabilidade perante um tribunal da experiência concebido em termos de impactos
diretos do mundo sobre possuidores de capacidades perceptivas. Se nos retringirmos às
posições consideradas por Davidson, os atrativos do empirismo conduzem apenas à
incoerência do Mito do Dado. Mas, na medida em que os atrativos do empirismo não
recebem uma explicação satisfatória, aquele fato é apenas fonte de um desconforto
filosófico contínuo, e não uma base para nos sentirmos satisfeitos com o abandono do
empirismo, por mais que a concepção que Davidson tem das opções disponíveis faça com
que essa situação pareça inevitável.
INTRODUÇÃO 11
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É bem verdade que, com base nos princípios que induzem Davidson e Sellars a
rejeitarem o empirismo, o pensamento empírico pode ser visto como estando racionalmente
constrangido por casos em que as coisas aparecem perceptualmente a uma pessoa como
sendo de tal e tal modo. Isto poderia ser apresentado como uma concessão aos atrativos do
empirismo. No entanto, essa concessão não preencheria a lacuna para a qual estou
apontando. Ela não dá uma explicação para os atrativos do empirismo que venha articulada
em termos de impressões. Quando as coisas aparecem perceptualmente para um sujeito
como sendo de tal e tal modo, que as coisas sejam de tal e tal modo é novamente um caso
de conteúdo empírico. Enquanto nada for feito no sentido de solapar a plausibilidade da
tese de que o conteúdo empírico em geral só é inteligível em termos de responsabilidade
perante as impressões, o conteúdo empírico parecerá ser tão problemático neste contexto
quanto no contexto dos juízos e das crenças.

7. Sellars e Davidson pensam que somos forçados a renunciar ao empirismo no sentido


relevante do termo, em parte porque eles pensam que o espaço lógico das razões é sui
generis, quando comparado ao espaço lógico no qual Sellars vê a "descrição empírica"
operante, espaço que identifiquei, em nome de Sellars, ao espaço lógico da natureza. Este é,
na verdade, o modo de Sellars fazer suas alegações, mas Davidson tem uma formulação
correspondente. Aquilo que para Sellars é o caráter sui generis do espaço lógico das razões,
para Davidson é o caráter sui generis daquilo que ele chama de "o ideal constitutivo da
racionalidade".11
Isto aponta para uma segunda maneira de resolver a tensão: rejeitar a dicotomia dos
espaços lógicos. Se optarmos por este caminho, podemos aceitar que o conceito de
experiência está adequadamente localizado no espaço lógico da natureza, negando que isto
traga qualquer problema para o empirismo. A idéia é que o espaço lógico das razões – no
qual, se quisermos ficar presos ao empirismo, a experiência deve estar relacionada ao
pensamento empírico – é apenas uma parte do espaço lógico da natureza. As relações
normativas que constituem o espaço lógico das razões podem ser reconstruídas a partir de
materiais conceituais residentes no espaço lógico que Sellars (erroneamente, segundo este
ponto de vista) contrasta com o espaço lógico das razões. Esta perspectiva vem rotulada
neste livro como "naturalismo nu e cru". O naturalismo nu e cru recusa-se a aceitar que as
relações que constituem o espaço lógico das razões não sejam naturais, num sentido da
palavra "natural" que se conecta ao espaço lógico que, em Sellars (e, com outra
terminologia, em Davidson), aparece como o lado oposto no contraste com o espaço lógico
das razões. Segundo este tipo de naturalismo, jogadas que Sellars estigmatizaria como
casos da falácia naturalista são, de fato, naturalistas, mas nem por isso devem ser vistas
como falácias. Podemos aceitar, portanto, que o conceito de experiência está
adequadamente localizado no espaço lógico da natureza, sem que isto impeça a natureza,
assim concebida, de ser inteligível enquanto tribunal. Sendo assim, não existe nenhuma
necessidade de neutralizar os atrativos do empirismo por meio de uma explicação.
Em breve, falarei um pouco mais a respeito do naturalismo nu e cru (§9), mas antes
disso eu gostaria de esboçar um outro modo, que eu recomendo, de resolver essa tensão.

8. Minha proposta retém a idéia rejeitada pelo naturalismo nu e cru de que a estrutura do
espaço lógico das razões seja sui generis, se comparada à estrutura do espaço lógico no
11
Cf. especialmente "Mental Events", in Donald Davidson, Essays on Actions and Events (Clarendon
Press, Oxford, 1980), pp. 207–25, com a passagem citada na p. 223.
INTRODUÇÃO 12
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interior do qual a descrição científica situa as coisas. Mesmo assim, minha alternativa
permite supor (de um modo que não é possível supor quando concordamos com Sellars e
Davidson) que a idéia mesma de experiência é a idéia de algo natural e que o pensamento
empírico deve satisfações à experiência. Isto exige que tenhamos uma nova maneira de
evitar a ameaça da falácia naturalista.
A revolução científica moderna tornou possível uma concepção portadora de uma
clareza sem precedentes a respeito do tipo específico de inteligibilidade que as ciências
naturais nos permitem encontrar nas coisas. Creio que esta nova clareza consiste, em larga
medida, na apreciação de algo próximo daquilo que subjaz ao alerta de Sellars a respeito da
falácia naturalista. Devemos distinguir cuidadosamente a inteligibilidade científico-natural
do tipo de inteligibilidade que algo adquire quando nós o situamos no espaço lógico das
razões. Esta é uma maneira de afirmar a dicotomia dos espaços lógicos, coisa que o
naturalismo nu e cru recusa-se a fazer. Mesmo assim, podemos reconhecer que a idéia de
experiência é a idéia de algo pertencente à natureza, sem estarmos com isso removendo a
idéia de experiência do espaço lógico das razões. O que torna isto possível é o fato de não
precisarmos identificar a dicotomia dos espaços lógicos com uma dicotomia entre o natural
e o normativo. Não precisamos igualar a própria idéia de natureza com a idéia de
instanciações de conceitos que encontram seu lugar adequado no espaço lógico no qual a
inteligibilidade característica da ordem científico-natural é trazida à luz – espaço lógico
reconhecidamente apartado, deste ponto de vista, do espaço lógico das razões.
Se virmos as coisas deste modo, Sellars está correto ao afirmar que o espaço lógico
no qual a investigação científico-natural produz seu tipo específico de compreensão é
estranho ao espaço lógico das razões. O espaço lógico das razões é a moldura no interior da
qual aparece um tipo fundamentalmente diverso de inteligibilidade. E (insistindo no mesmo
ponto em outros termos) Davidson está certo ao dizer que "o ideal constitutivo da
racionalidade" governa conceitos que são, por isso mesmo, absolutamente especiais,
quando comparados ao aparato conceitual das ciências nomotéticas. Uma coisa, no entanto,
é reconhecer isto – em termos sellarsianos, isolar o espaço lógico que será contrastado com
o espaço lógico das razões. Outra coisa é igualar (como faz Sellars, ao menos
implicitamente) aquele espaço lógico ao espaço lógico da natureza. É isto que faz com que
pareça impossível combinar o empirismo com a idéia de que a produção, por parte do
mundo, de uma impressão num sujeito percipiente teria que ser uma ocorrência natural. O
erro, aqui, consiste em esquecer que a natureza inclui uma segunda natureza. Em parte, os
seres humanos adquirem uma segunda natureza ao serem iniciados nas capacidades
conceituais, cujas interrelações encontram seu lugar natural no espaço lógico das razões.
Quando levamos em conta essa segunda natureza, vemos que as operações da
natureza incluem circunstâncias cujas descrições as posicionam no espaço lógico das
razões, por mais sui generis que este espaço lógico possa ser. Isto faz com que seja possível
acomodar as impressões no seio da natureza, sem que isto redunde numa ameaça ao
empirismo. Da tese segundo a qual receber uma impressão é uma transação no interior da
natureza, já não se pode concluir, como fizeram Sellars e Davidson, que a idéia de receber
uma impressão deve ser estranha ao espaço lógico no qual funcionam conceitos como o de
responsabilidade. As capacidades conceituais, cujas interrelações encontram seu lugar
adequado no espaço lógico sui generis das razões, podem ser operativas não apenas nos
juízos – que são os resultados das decisões ativamente tomadas por um sujeito com relação
a algo – como também nas transações que, no interior da natureza, são constituídas pelos
impactos do mundo sobre as capacidades receptivas de um sujeito adequado, vale dizer, um
INTRODUÇÃO 13
_______________________________________________________

sujeito que possua os conceitos relevantes. Impressões podem ser casos em que o sujeito
está diante da aparência perceptual de que as coisas são deste ou daquele modo – casos em
que as coisas lhe aparecem como sendo assim. Ao receber impressões, um sujeito pode
estar aberto ao modo como as coisas manifestamente são. Isto fornece uma interpretação
satisfatória para a imagem de posturas que devem satisfações ao mundo por deverem
satisfações à experiência.

9. A posição que chamo de "naturalismo nu e cru" figura neste livro apenas como um
opositor que possui o ponto de vista que acabo de delinear, no contexto do projeto de
exorcizar algumas das angústias da filosofia. O objetivo compartilhado é perceber que não
necessitamos dar a impressão de que somos obrigados a começar a responder às questões
que expressam tais angústias. Sugeri que podemos reunir estes supostos problemas numa
questão formulada nos seguintes termos – "Como é possível o contéudo empírico?". Visto
do modo como pretendo lidar com ele, o conteúdo empírico assume uma aparência
problemática quando, de modo inexplícito, tomamos consciência de uma aparente tensão
entre o empirismo e o fato de que a idéia de uma impressão é a idéia de uma ocorrência na
natureza. Se pudermos alcançar um modo de ver as coisas no qual, ao fim e ao cabo, não
exista uma tensão neste ponto, a questão, vista como um modo de expressar aquela
perplexidade filosófica, iria se dissolver, situação que deve ser distinguida daquela na qual
a questão foi aparentemente respondida. Se me ocupo do naturalismo nu e cru, é apenas na
medida em que compartilho com ele o desejo de conseguir aquele efeito.12
Há uma possível confusão que devemos evitar neste ponto. Muitas obras
contemporâneas de inspiração naturalista buscaram responder (e não exorcizar) questões do
tipo "como é possível?" feitas a respeito do conteúdo empírico ou de outros aspectos da
dimensão mental (mindedness). Tenho em vista obras que procuram dar uma descrição
perspícua da constituição material, digamos assim, dos seres que percebem, de modo a
tornar inteligível a idéia de que coisas com uma composição meramente material possam
estar equipadas com os complexos relevantes de capacidades. Uma questão para a qual esta
seria uma resposta adequada não seria uma questão "como é possível?" do tipo que me
interessa. Como eu já disse (§2), uma questão "como é possível?" do tipo que me interessa
expressa uma perplexidade peculiar emergindo da consciência inexplícita de um pano de
fundo de nossas reflexões que, uma vez explicitada, forneceria um argumento cuja
conclusão seria que o tópico da questão não é de modo algum possível. Responder a uma
questão "como é possível?" deste tipo em termos, digamos assim, de engenharia, mediante
uma descrição perspícua da constituição material necessária, em nada nos ajudaria. Seria
como responder a Zenão andando por uma sala. É bem possível que investigações que
digam respeito à "engenharia" do processo sejam úteis para outros propósitos. Neste livro,
considero o naturalismo nu e cru apenas como um modo de exorcizar (e não responder) as
questões que expressam aquele tipo peculiarmente filosófico de perplexidade a que me
referi – a perplexidade que emerge de uma disposição do espírito que, uma vez
completamente explicitada, teria o efeito de exibir uma impossibilidade a respeito daquilo
que indagamos nas questões. O naturalismo nu e cru figura aqui – é esta a minha
pretensão – como um modo menos satisfatório de fazer aquilo que eu mesmo faço. Não me
12
O rótulo "naturalismo nu e cru" talvez não seja totalmente adequado para referir-se a uma posição
com motivações tão sofisticadas como esta. Reconheço isto na primeira nota de rodapé da quinta conferência.
O problema é que acabei ficando prisioneiro desse rótulo, na medida em que dei grande destaque a ele nas
conferências que estão na origem deste livro.
INTRODUÇÃO 14
_______________________________________________________

ocuparei com as questões e respostas que aparecem em investigações a respeito do


maquinismo envolvido na dimensão mental (mindedness).
Tentei tornar plausível a idéia de que as ansiedades que pretendo exorcizar emergem
do pensamento – com freqüência apenas incoativo – de que a estrutura do espaço lógico das
razões é sui generis, se comparado ao arcabouço lógico no qual a compreensão
científico-natural se realiza. Deste ponto de vista, não é surpreendente que o período no
qual o tratamento destas supostas dificuldades aparece como a principal tarefa da filosofia
coincida com o surgimento da ciência moderna, período no qual a compreensão
científico-natural, tal como o instrumental contemporâneo nos permite concebê-la, estava
se separando de uma concepção até então indiferenciada da compreensão em geral. A meu
ver, um elemento importante nesta clarificação do alvo próprio da ciência da natureza foi
uma consciência cada vez mais forte de que devemos distinguir nitidamente a compreensão
científico-natural do tipo de compreensão que obtemos quando situamos aquilo que é
compreendido no espaço lógico das razões, vale dizer, uma consciência de que o espaço
lógico das razões possui uma estrutura sui generis, tal como Sellars e Davidson alegam,
cada qual a seu modo, que ele possui.
O naturalismo nu e cru sustenta que aquele sentimento talvez incoativo de uma
divisão conceitual nítida estava simplesmente equivocado, e que poderíamos exibir o
equívoco reconstruindo a estrutura do espaço lógico das razões em termos compatíveis com
o espaço lógico da compreensão científico-natural. Esta alegação é meramente
programática, mas tenho outros motivos para considerar o naturalismo nu e cru
insatisfatório. O ponto central de minhas críticas foi mencionado no início desta Introdução
(§1). É fácil ser cativado pelo tipo de filosofia que pretendo exorcizar, e isto não se deve ao
fato de sermos estúpidos. Quero dizer que o exorcismo proposto será tanto mais satisfatório
quanto mais nos permitir respeitar, enquanto insights, os pensamentos motrizes dos que são
acometidos por angústias filosóficas familiares, estabelecendo obrigações intelectuais para
si mesmos (pensamentos motrizes que são os nossos, quando somos acometidos por
aquelas ansiedades), independentemente do fato de pretendermos desmascarar como
ilusórias aquelas supostas obrigações. É exatamente neste ponto que o quadro que ofereço
difere do oferecido pelo naturalismo nu e cru. Respeito, enquanto insight, a convicção
básica que gera as ansiedades, bem como a dificilmente questionável concepção das
impressões como ocorrências naturais. Tal como vejo as coisas, aqueles que acham que a
filosofia deve responder (ao invés de exorcizar) questões a respeito de como as mentes
podem entrar em contato com o mundo não estão errados ao supor que o espaço lógico das
razões é sui generis, assumindo exatamente aquela postura que parece nos conduzir aos
problemas sobre como a responsividade a razões pode ajustar-se ao mundo natural. (Na
verdade, penso que esta é uma das principais lições que nossos ancestrais souberam
aprender na época do surgimento da ciência moderna.) Podemos rejeitar a obrigação de
tentar responder as questões características da filosofia moderna, sem precisar negar, como
faz o naturalismo nu e cru, que existe um insight real operando quando parecemos estar em
face daquela obrigação.
Adiantando aqui minhas conclusões, não preciso fingir que possuo um argumento
provando que o programa do naturalismo nu e cru (reconstruir a estrutura do espaço lógico
das razões em termos compatíveis com o espaço lógico da compreensão científico-natural)
não pode ser executado. O ponto é que a mera disponibilidade de um exorcismo alternativo
e, segundo creio, mais satisfatório solapa uma das motivações filosóficas – a única
relevante para os meus propósitos neste livro – para supormos que o programa deva ser
INTRODUÇÃO 15
_______________________________________________________

factível. Não é filosoficamente ameaçador supormos a existência de um insight no


pensamento de que a razão não é natural, no único sentido da palavra "natural" que o
naturalismo nu e cru aceitaria.

10. Espero ter deixado claro que a reflexão sobre a experiência perceptiva serviu nesta
introdução, e servirá ao longo de todo o livro, apenas como a exemplificação de um tipo.
Perplexidades análogas estão sempre prestes a surgir quando desejamos falar a respeito da
responsividade a razões. "Responsividade a razões" é uma boa glosa para uma determinada
noção de liberdade. Sendo assim, a perplexidade, em sua forma mais geral, diz respeito a
como a liberdade, tomada nesse sentido, ajusta-se ao mundo natural. Isto parece difícil de
se compreender quando estamos propensos a identificar o natural com exemplificações de
conceitos cuja proveniência é o espaço lógico que Sellars contrasta com o espaço lógico das
razões. Na Quinta Conferência, falarei brevemente a respeito de uma outra ocorrência desse
mesmo tipo.
Alguns leitores amistosos discordaram da atitude negativa assumida neste livro para
com o que chamei de "filosofia construtiva" (cf., p. ex., o final do §3 da Quinta
Conferência). Gostaria de relacionar aquilo a que eu pretendo me referir quando uso essa
expressão ao encaminhamento que dei às coisas nesta introdução. O que eu chamo de
"fazer filosofia construtiva" é a tentativa de responder a questões filosóficas do tipo que
especifiquei acima: questões do tipo "como é possível?", associadas a um sentimento de
urgência derivado de uma disposição de espírito tal que, submetida a um exame minucioso,
forneceria material para a construção de um argumento cuja conclusão seria que o objeto
dessas questões é algo impossível. Evidentemente, envolver-se nesse projeto só parece
sensato na medida em que não entendemos muito bem a enrascada que parece motivá-lo.
Se a disposição de espírito for deixada como está, não poderemos evidenciar a
possibilidade daquilo, seja lá o que for, a respeito de que estamos fazendo perguntas; se a
disposição de espírito for desalojada, a questão "como é possível?" já não parece mais
apontar para lugar algum. Seja por qual caminho for, já não haverá mais a perspectiva de
responder à questão tal como ela fora supostamente entendida. Portanto, se estou correto a
respeito do caráter das angústias filosóficas com que pretendo lidar, não resta dúvida de que
a elaboração de uma "filosofia construtiva", no sentido que dou a esta expressão, não é a
maneira adequada de abordá-las. Como já disse, precisamos exocizar as questões, ao invés
de tentar respondê-las. Naturalmente, isto exige trabalho duro – uma filosofia construtiva
em outro sentido, se se quiser assim. É o que estou oferecendo neste livro.
CONCEITOS E INTUIÇÕES 16
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AS CONFERÊNCIAS
CONCEITOS E INTUIÇÕES 17
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PRIMEIRA CONFERÊNCIA

CONCEITOS E INTUIÇÕES

1. O tema geral de que estarei me ocupando nestas conferências é o modo como os


conceitos medeiam as relações entre as mentes e o mundo. Enfocarei a discussão de um
ponto de vista filosófico familiar, que Donald Davidson descreveu como o dualismo do
esquema e do conteúdo.13 Isto nos levará rapidamente de volta a Kant. Um de meus
principais objetivos é sugerir que Kant deveria ocupar um lugar de destaque em nossa
discussão a respeito do modo como o pensamento está ligado à realidade.
Quando Davidson fala sobre um dualismo do esquema e do conteúdo, "esquema"
significa "esquema conceitual". Se o conteúdo está dualisticamente oposto àquilo que é
conceitual, "conteúdo" não pode significar aquilo que tem freqüentemente significado na
filosofia contemporânea, isto é, aquilo que é dado por uma cláusula "que" em contextos
como, por exemplo, a atribuição de uma crença. Apenas para dispormos de um rótulo,
chamarei o conteúdo, tomado neste sentido, de "conteúdo representacional". O conteúdo
representacional não pode ser dualisticamente contraposto àquilo que é conceitual. Isto é
óbvio, por mais simpáticos que sejamos à idéia de haver conteúdos representacionais de
natureza não-conceitual. (Tratarei deste assunto em minha Terceira Conferência.)
Sendo assim, por que o contéudo haveria de ser aquilo que está contraposto aos
conceitos no dualismo que Davidson critica? Podemos compreender a terminologia a partir
do modo como ela aparece na observação de Kant – "Pensamentos sem conteúdo são
vazios".14 Um pensamento é vazio, caso não haja nada que alguém pense quando o pensa,
ou seja, caso careça daquilo que estou chamando de "conteúdo representacional". Isto
significa que, na realidade, ele não é um pensamento, e é certamente isto que Kant está
querendo dizer. Ele não está metido na tentativa absurda de chamar nossa atenção para um
tipo particular de pensamentos – os vazios. Quando Kant afirma que pensamentos sem
contéudo são vazios, ele não está meramente afirmando uma tautologia: "sem conteúdo"
não é simplesmente uma outra maneira de se dizer "vazio", como aconteceria caso
"conteúdo" significasse apenas "conteúdo representacional". A expressão "sem conteúdo"
aponta na direção daquilo que explicaria o tipo de vacuidade que Kant tem em vista.
Podemos especificar essa explicação a partir da outra metade da observação kantiana:
"intuições sem conceitos são cegas". Pensamentos sem conteúdo – que, na verdade, não
seriam de modo algum pensamentos – seriam um jogo conceitual completamente
desconectado das intuições, isto é, de porções daquilo que nos é dado na experiência. É a
conexão desses conceitos com aquilo que nos é dado na experiência que fornece o
conteúdo, a substância que, de outro modo, os pensamentos não teriam.
Desenha-se, portanto, o seguinte quadro. O fato de os pensamentos não serem
vazios, o fato de eles terem conteúdo representacional emerge de um jogo recíproco entre
conceitos e intuições. O "conteúdo", no dualismo davidsoniano, corresponde às intuições, a

13
"On the Very Idea of a Conceptual Scheme", em Inquiries into Truth and Interpretation (Clarendon
Press, Oxford, 1984), pp. 183–198. Cf. especialmente p. 187, "um dualismo do esquema total (ou linguagem)
e do conteúdo não-interpretado", e p. 189, "o dualismo do esquema conceitual e do conteúdo empírico".
14
Crítica da Razão Pura, A51/B75.
CONCEITOS E INTUIÇÕES 18
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porções daquilo que nos é dado na experiência, entendidas em termos de uma concepção
dualista daquele jogo recíproco.

2. O pano de fundo kantiano explica por que aquilo que, no dualismo examinado por
Davidson, está contraposto ao conceitual é freqüentemente descrito como o Dado. Na
realidade, "dualismo do esquema e do Dado" é um rótulo mais adequado que "dualismo do
esquema e do conteúdo", já que nele não ressoa confusamente a idéia do conteúdo
representacional. Ao mesmo tempo, ele sugere uma compreensão específica da razão pela
qual esse dualismo é tentador.
Kant faz sua observação a respeito de intuições e conceitos no curso de uma
exposição que descreve o conhecimento empírico como o resultado da uma cooperação
entre receptividade e espontaneidade, entre sensibilidade e entendimento. 15 Devemos
perguntar agora por que o entendimento, cuja contribuição nesta obra conjunta é dispor
sobre os conceitos, parece ser adequadamente descrito em termos de espontaneidade. Uma
resposta esquemática, mas sugestiva, é dizer que a topografia da esfera conceitual é
constituída por relações racionais. O espaço dos conceitos é, pelo menos em parte, aquilo
que Sellars chamava de "o espaço das razões".16 Quando Kant descreve o entendimento
como uma faculdade de espontaneidade, isto é um reflexo de seu modo de encarar as
relações entre razão e liberdade. A imposição racional da necessidade não é apenas
compatível com a liberdade; é também constitutiva dela. Dito na forma de um slogan, o
espaço das razões é o reino da liberdade.17
No entanto, a suposição de que a liberdade no domínio do pensamento empírico seja
total e, em particular, de que ela não esteja submetida a nenhuma coerção vinda de fora da
esfera conceitual pode parecer uma ameça à própria possibilidade de que os juízos de
experiência sejam fundamentados de um modo que os relacione a uma realidade externa ao

15
Eis o contexto em que ocorre a passagem que citei: "Se quisermos chamar de sensibilidade a
receptividade com que nosso espírito acolhe representações ao ser afetado de tal e tal modo, então o
entendimento será a espontaneidade do conhecimento, a faculdade que o espírito possui de produzir
representações a partir dele mesmo. Nossa natureza é tal que nossa intuição só pode ser sensível – ela contém
apenas o modo como somos afetados pelos objetos. O entendimento, por outro lado, é a faculdade de pensar
os objetos da intuição sensível. Não devemos preferir uma destas características de nosso espírito em
detrimento da outra. Sem a sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado; sem o entendimento, nenhum objeto
seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas."
16
"Ao caracterizar um episódio ou estado como sendo de conhecimento, não estamos dando uma
descrição empírica daquele episódio ou estado. Nós o estamos posicionando no espaço lógico das razões, das
justificativas e da capacidade de justificarmos aquilo que foi dito." Esta passagem pode ser encontrada na
p. 298–9 do clássico ataque de Sellars ao Mito do Dado, "Empiricism and the Philosophy os Mind", in
Herbert Feigl e Michael Scriven, eds., Minnesota Studies in the Philosophy os Science, vol. 1 (University of
Minnesota Press, Minneapolis, 1956), pp. 253–329. Em grande parte do restante destas conferências, estarei
tentando pôr em dúvida a tese de Sellars segundo a qual o posicionamento de algo no espaço lógico das
razões deve, enquanto tal, ser contraposto ao fornecimento de uma descrição empírica desse algo. Não
obstante isso, o tema do posicionamento de algo no espaço lógico das razões é de crucial importância para
mim.
Digo que o espaço dos conceitos é pelo menos parte do espaço das razões para deixar em aberto, por
enquanto, a questão de saber se o espaço das razões pode se estender para além do espaço dos conceitos. Cf. o
texto citado na nota seguinte para um desenvolvimento desta idéia.
17
Para uma discussão cuidadosa desta idéia, cf. Robert Brandon, "Freedom and Constraint by
Norms", American Philosophical Quarterly 16 (1979), pp. 187–196.
CONCEITOS E INTUIÇÕES 19
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pensamento. Ora, certamente deve haver uma fundamentação desse tipo se quisermos que a
experiência seja uma fonte de conhecimento e, de modo mais geral, se quisermos que a
ligação entre os juízos empíricos e a realidade possa ser inteligivelmente inserida no quadro
que vamos elaborar. Quanto mais enfatizamos a conexão entre razão e liberdade, mais nos
arriscamos a perder de vista o modo como o exercício dos conceitos é capaz de constituir
juízos afiançados sobre o mundo. Aquilo que pretendíamos conceber como o exercício de
conceitos ameaça transformar-se numa seqüência de movimentos de um jogo fechado sobre
si mesmo. Isto, por sua vez, vai minando a própria idéia de que ao fazer estes movimentos
estejamos exercitando conceitos. Adequar crenças empíricas às razões para possuí-las não é
um jogo fechado em si mesmo.
O dualismo do esquema conceitual e do "conteúdo empírico", do esquema e do
Dado, é uma resposta a esta preocupação. A característica central do dualismo é permitir
que reconheçamos uma coerção externa imposta à liberdade que temos de mobilizar nossos
conceitos empíricos. Justificações empíricas dependem de relações racionais, relações que
estão dentro do espaço das razões. A idéia supostamente reconfortante é que as justificações
empíricas teriam seu fundamento último em imposições externas exercitando-se sobre o
domínio conceitual. Sendo assim, o espaço das razões é concebido como sendo mais
extenso que o espaço dos conceitos. Suponha que estejamos elaborando o fundamento, a
justificação para uma crença ou juízo. A idéia é que, esgotados todos os movimentos
disponíveis no interior do espaço dos conceitos, todos os movimentos que nos levam de um
item conceitualmente organizado até outro, haverá ainda um movimento adicional que
podemos fazer: apontar para algo que foi simplesmente recebido na experiência. Só se pode
tratar aqui de um apontar para algo, já que ex hypothesi este último lance numa justificação
é feito depois de exaurirmos as possibilidades de buscar a fundamentação de um item
conceitualmente organizado (e nessa medida suscetível de expressão articulada) num outro.
Nosso ponto de partida foi o pensamento expresso na observação de Kant: a idéia
mesma de conteúdo representacional, e não apenas a idéia de juízos adequadamente
justificados, pressupõe um jogo recíproco entre conceitos e intuições, entendidas como
porções daquilo que nos é dado na experiência. Não fosse assim, aquilo que pensamos ser
um retrato do exercício de conceitos só poderia ser o retrato de um jogo de formas vazias.
Passei então a falar sobre como a idéia do Dado é parte integrante de uma concepção do
fundamento que nos leva a considerar determinados juízos empíricos como portadores de
conhecimento. No entanto, esta idéia explicitamente epistemológica estava diretamente
vinculada à idéia mais geral de que eu havia partido. Juízos empíricos em geral – quer
reflitam conhecimento, quer não, ou, de modo mais geral, quer sejam ou não justificados
(eventualmente num grau muito menor do que o exigido para um conhecimento) – devem
possuir um conteúdo que admita justificação empírica, mesmo quando nenhuma
justificação estiver sendo dada (no caso, por exemplo, de um palpite sem nenhum
fundamento). Não poderíamos começar a supor que compreendemos como esse apontar
para uma porção do Dado poderia justificar o uso de um conceito no juízo – como esse
apontar poderia, no limite, exibir o juízo como portador de conhecimento – a menos que
tomássemos esta possibilidade de garantia como algo constitutivo da identidade do
conceito, e constitutivo, portanto, de sua contribuição para qualquer conteúdo pensável de
que ele faça parte, seja o conteúdo de um juízo portador de conhecimento, de um juízo
menos substancialmente justificado, ou de qualquer outro tipo de juízo.
Esta suposta exigência estaria imediatamente relacionada a conceitos
observacionais, isto é, a conceitos aptos a figurar em juízos que respondem à experiência de
CONCEITOS E INTUIÇÕES 20
_______________________________________________________

modo imediato. A suposta exigência reflete-se numa imagem familiar da formação desses
conceitos, imagem esta que é a contraparte natural da idéia do Dado. A idéia é que, se os
conceitos devem ser ao menos parcialmente constituídos pelo fato de os juízos de que eles
fazem parte estarem fundamentados no Dado, então as capacidades conceituais associadas
devem ser adquiridas por meio de confrontos com porções apropriadas do Dado, isto é, em
ocasiões nas quais fosse factível apontar para uma garantia última. Ocorre, porém, que em
qualquer colisão ordinária de algo com nossa sensibilidade, o que nos é apresentado é um
Dado múltiplo. Deste modo, o sujeito só poderia formar o conceito observacional caso
abstraísse o elemento correto da multiplicidade que lhe foi apresentada.
Esta imagem abstrativa do papel do Dado na formação dos conceitos foi
vigorosamente criticada, de um ponto de vista wittgensteiniano, por P.T. Geach. 18 Voltarei
aos pensamentos de Wittgenstein a respeito deste tipo de questão um pouco mais adiante
(§7).
Já munidos desta imagem de como a substância empírica é insuflada nos conceitos
no nível mais elementar, dos conceitos observacionais, é fácil produzir uma extensão dessa
imagem para os outros níveis. A idéia é que a substância empírica é transmitida do nível
elementar até os conceitos empíricos mais distanciados da experiência imediata, com a
transmissão sendo feita ao longo dos canais constituídos pelos vínculos inferenciais que
mantêm coeso um sistema de conceitos.

3. Tentei explicar o que torna tão atraente a idéia do Dado. Na verdade, porém, essa idéia é
inútil para as finalidades que ela se propõe.
A idéia do Dado é a idéia de que o espaço das razões, o espaço das justificações e
das garantias ultrapassa os limites da esfera conceitual. A extensão adicional do espaço das
razões deve lhe permitir incorporar impactos não-conceituais vindos de fora do âmbito do
pensamento. Mas não podemos realmente entender as relações que afiançam um juízo, a
não ser como relações no interior do espaço dos conceitos: relações como a de implicação,
ou a de probabilificação, que relacionam potenciais exercícios de capacidades conceituais.
A tentativa de estender o escopo das relações justificadoras para além da esfera conceitual
não pode fazer aquilo que ela foi chamada a fazer.
O que queríamos era o restabelecimento da segurança de que quando usamos nossos
conceitos no juízo, nossa liberdade – nossa espontaneidade no exercício de nosso
entendimento – é constrangida a partir de uma instância externa ao pensamento, e
constrangida de modo a que possamos apelar a essa instância para justificar nosso juízo. No
entanto, quando compreendemos que o espaço das razões é mais amplo que a esfera
conceitual, podendo assim incorporar impactos extraconceituais vindos do mundo, o
resultado é uma imagem na qual a coerção externa é exercida nas fronteiras do espaço
dilatado das razões, por meio daquilo que somos obrigados a descrever como um impacto
bruto vindo do exterior. Esta imagem talvez nos assegure de que não somos responsáveis
por aquilo que acontece nas fronteiras externas – de que não somos responsáveis, portanto,
pela influência daquilo que ocorre naquela região sobre outras regiões mais internas. O que
acontece ali é o resultado de uma força alienígena – o impacto causal do mundo operando
sem o controle de nossa espontaneidade. Uma coisa, no entanto, é estarmos isentos de
responsabilidade, em virtude de a posição em que nos encontramos poder ser reduzida, em
última instância, à força bruta; coisa muito diferente é termos uma justificação. Na

18
Mental Acts (Routledge and Kegan Paul, Londres, 1957), §§6–11.
CONCEITOS E INTUIÇÕES 21
_______________________________________________________

realidade, a idéia do Dado oferece-nos exculpações, no lugar das justificações que


buscávamos.19
Pode ser difícil aceitar que o Mito do Dado é um mito. Pode parecer que, se
rejeitarmos o Dado, estaremos simplesmente nos expondo mais uma vez à ameaça contra a
qual a idéia do Dado era uma defesa – a ameaça de que em nossa imagem não haja lugar
para nenhuma coerção externa imposta à nossa atividade no pensamento e no juízo
empírico. Pode parecer que estejamos preservando o papel da espontaneidade, ao mesmo
tempo em que nos recusamos a atribuir qualquer papel à receptividade, o que é intolerável.
Se nossa atividade no pensamento e no juízo empírico deve ser identificável como algo
relacionado à realidade, deve existir alguma coerção externa. Deve haver um papel para a
receptividade, como há para a espontaneidade; para a sensibilidade, como há para o
entendimento. Ao perceber isto, recuamos sob pressão e fazemos apelo ao Dado, apenas
para constatar uma vez mais que ele não pode nos ajudar. Corremos o risco de ficarmos
prisioneiros de uma oscilação eterna.
Mas é possível achar um modo de descer dessa gangorra.

4. A idéia original kantiana é que o conhecimento empírico resulta de uma cooperação entre
receptividade e espontaneidade. (Aqui, a palavra "espontaneidade" pode ser tomada como
um simples rótulo para o envolvimento de capacidades conceituais.) Podemos descer da
gangorra caso consigamos nos agarrar firmemente a esta idéia: a contribuição da
receptividade para esse trabalho conjunto não é separável nem mesmo em pensamento.
As capacidades conceituais relevantes são exercidas na receptividade. (É importante
que este não seja o único contexto em que tais capacidades estão operantes. Voltarei ao
tema no §5.) Elas não se exercem sobre uma entrega extraconceitual da receptividade.
Devemos entender aquilo que Kant chama de "intuição" – o ingresso de experiências – não
como a mera obtenção de um Dado extraconceitual, mas como um tipo de ocorrência ou
estado que já possui conteúdo conceitual. Na experiência, percebemos (por exemplo,
vemos) que as coisas são de tal e tal modo. Esta é o tipo da coisa que também podemos,
por exemplo, julgar.

19
Na conferência, usei a palavra "excuses" (escusas), no lugar de "exculpations" (exculpações). Zvi
Cohen me fez notar que aquela palavra não marca o contraste de que preciso. Necessito de um termo que
sugira algo análogo à situação de alguém que se encontra num lugar do qual foi banido, mas é exculpado pelo
fato de que um tornado levou-o até ali. Sua ida até lá está completamente excluída do domínio daquilo pelo
que ele é responsável. Não se trata, aqui, de alguém que ainda é responsável pelo que fez, mesmo havendo
base para a aplicação de sanções mais brandas.
Quando somos tentados pelo Mito do Dado, procuramos cuidadosamente garantir que as relações
que cruzam as fronteiras do espaço dos conceitos (relações vigentes entre porções do Dado e os mais básicos
juízos de experiência) possam ser constituidoras de razões. É exatamente por isso que fizemos o espaço das
razões desbordar do espaço dos conceitos. Esquecemo-nos, porém, de levar em conta a que se parecerão as
coisas nas novas fronteiras do espaço das razões, que agora faz divisa com uma realidade independente.
Precisávamos ver nossos exercícios da espontaneidade sujeitos a constrangimentos impostos pelo próprio
mundo, mas isto deveria acontecer de um modo que não solapasse a aplicabilidade da própria noção de
espontaneidade. Precisávamos ser capazes de atribuir a nós mesmos uma liberdade responsável, de modo a
estarmos no interior do escopo da justificação possível ao longo de todo o caminho que vai dar nesse contato
último de nossa vida mental com o mundo. Meu principal objetivo nesta conferência é mostrar o quanto é
difícil perceber que podemos alcançar esses dois desideratos: um constrangimento racional vindo do mundo e
uma espontaneidade atuante ao longo de todo o processo. O Mito do Dado renuncia ao segundo; a resposta
davidsoniana, que examinarei mais adiante (§6), renuncia ao primeiro.
CONCEITOS E INTUIÇÕES 22
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É claro que podemos nos iludir, supondo que percebemos as coisas de um certo
modo, quando na verdade as coisas não são assim. Quando não estamos iludidos, porém,
percebemos as coisas como elas são. Pouco importa que possamos nos iludir. Não falarei
sobre isso antes de minha última conferência, e mesmo então não falarei muito.
Segundo o ponto de vista que estou defendendo, os conteúdos conceituais que
permanecem mais próximos do impacto da realidade externa sobre a sensibilidade não
estão, por serem conceituais, a alguma distância do impacto. Eles não resultam de um
primeiro passo dado no interior do espaço das razões, passo que seria recuperado em último
lugar quando expuséssemos nossas justificativas, levando-se em conta o modo como essa
atividade justificadora é concebida pelo dualismo do esquema e do Dado. Este suposto
primeiro passo seria um movimento que vai da impressão, concebida como a mera recepção
de uma porção do Dado, para um juízo justificado por essa impressão. As coisas, porém,
não são assim. Os conteúdos conceituais que são, neste sentido, os mais básicos já estão
presentes nas próprias impressões, nesses impactos do mundo sobre nossa sensibilidade.
Isto abre espaço para uma nova noção daquilo que faz com que algo esteja dado,
uma noção que está livre da confusão entre justificativa e exculpação. Já não precisamos
mais tentar mostrar que o espaço das razões é mais extenso que o espaço dos conceitos.
Quando estabelecemos os fundamentos de um juízo empírico, o último passo nos conduz a
experiências. As experiências já contêm conteúdo conceitual, e este último passo não nos
conduz, portanto, para fora do espaço dos conceitos. No entanto, ele nos conduz até algo
em que a sensibilidade – a receptividade – está operante, de modo que não precisamos mais
ficar paralizados diante da liberdade implícita na idéia de que nossas capacidades
conceituais pertencem a uma faculdade de espontaneidade. Não precisamos mais nos
preocupar com o fato de o quadro que traçamos ter deixado de fora a coerção externa
exigida para que nossas capacidades conceituais possam ser reconhecidas como algo que se
relaciona com o mundo de algum modo.

5. Eu afirmei (§4) que, quando passamos por uma experiência, nossas capacidades
conceituais são utilizadas na receptividade, e não exercidas sobre dados supostamente
antecedentes da receptividade. Não quero dizer com isso que essas capacidades sejam
exercidas sobre alguma outra coisa. Seria destoante, neste contexto, falar num exercício das
capacidades conceituais. Seria adequado falar assim de uma atividade, e a experiência é
passiva.20 Na experiência, encontramo-nos investidos de conteúdo. Quando um conteúdo
está disponível para nós, nossas capacidades conceituais já entraram em jogo, sem que
tivéssemos escolha a esse respeito. O contéudo não é algo que nós mesmos construímos,
como quando decidimos o que dizer a respeito de algo. Na verdade, é exatamente pelo fato
de a experiência ser passiva – por ser um caso de receptividade operante – que a noção de
experiência defendida aqui é capaz de satisfazer à ânsia por um limite imposto à liberdade,
ânsia que está na raiz do Mito do Dado.

20
Naturalmente, não estou negando que a experiência do mundo envolva atividade. Procurar é uma
atividade, do mesmo modo que observar, examinar, e assim por diante. (Isto é enfatizado por pessoas que
pensam que não deveríamos conceber a experiência como uma recepção passiva. É o caso, por exemplo, de
J.J. Gibson, The Senses Considered as Perceptual Systems (George Allen and Unwin, Londres, 1968).) Mas o
controle que temos sobre aquilo que acontece na experiência tem limites. Podemos decidir qual será nosso
posto de observação, qual é o tipo de som que nossa nossa atenção irá focalizar, e assim por diante, mas, feito
tudo isso, já não depende de nós o tipo de experiência que iremos ter. É sobre este resíduo mínimo que estou
insistindo.
CONCEITOS E INTUIÇÕES 23
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Como a experiência é passiva, o envolvimento de capacidades conceituais na


experiência não garante por si só um encaixe adequado para a idéia de uma faculdade da
espontaneidade. Pode parecer, por isso, que eu não esteja de fato desmantelando o Mito do
Dado, mas apenas rejeitando os termos que criam o problema aparente que ele é chamado a
resolver. O que dá origem à tentação de apelarmos ao Dado é a idéia de que a
esponteneidade caracteriza exercícios do entendimento conceitual, de tal modo que a
espontaneidade se estenderia por todo o campo dos conteúdos conceituais que estão mais
próximos aos impactos do mundo sobre nossa sensibilidade. Precisamos conceber esta
espontaneidade expansiva como estando submetida a um controle externo ao nosso
pensamento, sob pena de representarmos as operações da espontaneidade como um giro
sem atrito ocorrendo no vazio. É o Dado que parece suprir esse controle externo. E, agora,
poderia parecer que, ao salientar que a experiência é passiva, eu estivesse dissolvendo essa
tentação negando que a espontaneidade se estenda por todo o campo do conteúdo da
experiência, muito embora eu afirme que as capacidades conceituais estão operantes na
experiência.
Mas não é assim. A ânsia por um atrito externo em nossa imagem da espontaneidade
não pode ser satisfeita desse modo, por uma simples restrição no âmbito da espontaneidade,
fazendo com que ela seja menos extensa que a esfera do conceitual.
Não seríamos capazes de conceber o caráter conceitual das capacidades que estão
em jogo na experiência, caso elas se manifestassem apenas na experiência, apenas em
operações de receptividade. Elas não poderiam ser reconhecidas como capacidades
conceituais, a menos que também pudessem ser exercitadas no pensamento ativo, isto é,
exercitadas de um modo que garantisse um encaixe adequado para a idéia de
espontaneidade. No mínimo, deve ser possível decidir se devemos ou não julgar que as
coisas são tais como nossa experiência nos mostra que elas são. O modo como as coisas nos
são dadas na experiência não é algo que esteja sob nosso controle, mas cabe a nós decidir se
aceitamos ou rejeitamos as aparências.21 Além disso, mesmo quando consideramos apenas
juízos que registram a experiência, os quais já são ativos naquele sentido mínimo, devemos
reconhecer que a capacidade de usar conceitos nesses juízos não é auto-sustentável – ela
não pode estar a postos independentemente de uma capacidade de usar aqueles mesmos
conceitos fora daqueles contextos. Isso acontece mesmo com os conceitos que estão mais
imediatamente ligados ao caráter subjetivo da própria experiência, os conceitos das
qualidades secundárias. De modo completamente geral, as capacidades que são utilizadas
na experiência podem ser reconhecidas como conceituais apenas contra o pano de fundo do
fato de que alguém que as possui é capaz de responder a relações racionais que ligam os
conteúdos dos juízos de experiência a outros conteúdos ajuizáveis. Estas ligações dão aos
conceitos seus lugares enquanto elementos de visões possíveis do mundo.
Considere, por exemplo, os juízos sobre cores. Estes juízos envolvem uma gama de
capacidades conceituais cuja integração à compreensão do mundo é tão sutil quanto
qualquer outra. Mesmo assim, ninguém poderia fazer um só juízo diretamente
observacional sobre cores, se não houvesse um contexto capaz de assegurar que a pessoa
que faz tal juízo compreende que cores são propriedades potenciais de coisas. A capacidade
de enunciar os nomes "corretos" de cores em resposta a estímulos que chegam ao sistema
visual (capacidade possuída, creio, por alguns papagaios) não evidencia a posse dos
21
Uma boa ilustração disto nos é dada por ilusões familiares. Na ilusão de Müller-Lyer, nossa
experiência nos mostra duas linhas de comprimentos diferentes, mas qualquer pessoa com conhecimento do
que se passa não afirmará que é assim que as coisas são.
CONCEITOS E INTUIÇÕES 24
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conceitos relevantes caso o sujeito não entenda, por exemplo, que tais respostas refletem
uma sensibilidade a um tipo de estado de coisas do mundo cuja ocorrência independe das
perturbações ocorridas em seu fluxo de consciência. A necessária compreensão de fundo
inclui, por exemplo, o conceito de superfície visível dos objetos, bem como o conceito das
condições adequadas para dizermos, apenas olhando para um objeto, a cor que esse objeto
tem.22
Naturalmente, os conceitos que podem fazer parte do conteúdo da experiência não
estão restritos a conceitos de qualidades secundárias. Quando levamos isso em conta, torna-
se ainda mais claro que a operação passiva das capacidades conceituais na sensibilidade
não é inteligível independentemente de seu exercício ativo no juízo e no pensamento dessas
coisas no juízo.
As capacidades conceituais que são passivamente trazidas postas em jogo na
experiência pertencem a uma rede de capacidades envolvidas no pensamento ativo, rede
esta que governa racionalmente a produção das respostas que, na busca da compreensão,
vamos dando aos impactos do mundo sobre a nossa sensibilidade. E parte daquilo que está
envolvido na idéia de que o entendimento é uma faculdade de espontaneidade – de que as
capacidades conceituais são capacidades cujo exercício está no domínio da liberdade
responsável – é que a rede, tal como um indivíduo pensante a encontra no governo de seu
pensamento, não é sacrossanta. O pensamento empírico ativo, ao acontecer, está sob a
constante obrigação de refletir a respeito das credenciais das conexões supostamente
racionais que o governam. Deve haver uma disposição constante para remodelar conceitos
e concepções, caso seja isso o que a reflexão recomendar. Sem dúvida, há pouquíssimas
chances de que tenhamos um dia necessidade de remodelar os conceitos nas bordas mais
externas do sistema, os conceitos mais imediatamente observacionais, para responder a
pressões surgidas no interior do sistema. No entanto, esta perspectiva improvável é capaz
de realçar o ponto que me interessa no momento. E o ponto é o seguinte: muito embora a
experiência, por si só, não se encaixe sem sobras na idéia de espontaneidade, mesmo os
conceitos mais imediatamente observacionais são parcialmente constituídos pelo papel que
desempenham em algo que, na verdade, é apropriadamente concebido em termos de
espontaneidade.23
Assim, não podemos simplesmente segregar o envolvimento passivo de nossas
capacidades conceituais na experiência dos efeitos potencialmente debilitantes da liberdade
implícita na idéia de espontaneidade. Se pensarmos que o modo de tirar partido da
passividade da experiência é negar que a espontaneidade estenda-se até o conteúdo da
experiência, nós simplesmente recairemos numa versão enganadoramente formulada do
Mito do Dado. Se tentarmos manter a espontaneidade fora desse quadro, e apesar disso
continuarmos falando de capacidades conceituais atuantes na experiência, o discurso a
respeito de capacidades conceituais transforma-se em mero jogo de palavras. O problema
do Mito do Dado é que, na melhor das hipóteses, ele nos oferece exculpações, ali onde
necessitávamos de justificações. Esse problema reaparece aqui, associado aos efeitos sobre
a espontaneidade das assim chamadas entregas conceituais da sensibilidade. Se tais efeitos
são concebidos fora do âmbito da espontaneidade, fora do domínio da liberdade
22
Para uma maior elaboração de pontos como este, cf. Sellars, "Empiricism and the Philosophy of
Mind", §§10-20.
23
Pretendo que as imagens utilizadas neste parágrafo remetam o leitor ao conhecidíssimo parágrafo
final do artigo clássico de W.V. Quine "Two Dogmas of Empiricism", em From a Logical Point of View
(Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1961, 1ª ed. 1953), pp. 20–46.
CONCEITOS E INTUIÇÕES 25
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responsável, então, na melhor das hipóteses, eles farão com que não possamos ser culpados
por acreditar em qualquer coisa que eles nos tenham levado a acreditar, sem que estejamos
por isso justificados em nossas crenças.
Nâo estou propondo, portanto, uma derrota fácil do Dado, a ser conseguida pela
exploração do fato de que a experiência é passiva, estando, por isso, fora do âmbito da
espontaneidade. O ponto de vista que estou advogando afirma que, embora a experiência
seja passiva, ela põe em funcionamento capacidades que pertencem genuinamente à
espontaneidade.

6. Não é preciso atribuir a um mero descuido superficial o fato de alguém não ter visto aqui
uma possibilidade – não ter compreendido como capacidades que pertencem à
espontaneidade poderiam estar inextricavelmente envolvidas numa operação de mera
receptividade. Pode ser difícil ver nisto uma saída, e a dificuldade tem raízes profundas.
Darei uma primeira ilustração daquilo que estou dizendo recorrendo ao próprio
Davidson. Num artigo bastante conhecido, no qual recomenda uma abordagem coerentista
da verdade e do conhecimento,24 Davidson mostra-se incapaz de enxergar a solução que
descrevi. Não apresenta argumentos contra essa solução – ela simplesmente não figura
entre as possibilidades que ele contempla.
Davidson deixa claro que, se concebermos a experiência em termos de impactos
sobre a sensibilidade ocorrendo fora do espaço conceitual, não devemos pensar que
podemos apelar à experiência para justificar juízos ou crenças. Isto seria recair no Mito do
Dado, com sua confusão entre justificativa e exculpação. O espaço das razões não se
estende para além do espaço dos conceitos para abarcar uma recepção nua e crua do Dado.
Até aqui, temos exatamente aquilo em que venho insistindo.
No entanto, Davidson pensa que a experiência só pode ser concebida como um
impacto extraconceitual sobre a sensibilidade, e conclui daí que a experiência deve estar
fora do espaço das razões. Segundo Davidson, a experiência é causalmente relevante na
determinação dos juízos e crenças de um sujeito, mas ela não tem qualquer relação com a
justificação ou a garantia desses juízos e dessas crenças. Ele afirma que "nada pode contar
como razão para termos uma crença, a não ser uma outra crença" (p. 310), querendo dizer
com isso, em particular, que a experiência não pode contar como uma razão para termos
uma crença.
É claro que eu concordo com o ponto de partida desta linha de raciocínio. A
conclusão, porém, é completamente insatisfatória. Davidson rechaça o Mito do Dado, a
ponto de negar à experiência qualquer papel justificador, mas no desfecho coerentista
encontramos nada mais nada menos que uma variante daquela concepção da
espontaneidade sem atrito que tornava a idéia do Dado tão atraente. Este é apenas um dos
movimentos na oscilação a que me referi mais acima. Nada o impede de acabar
desencadeando, por sua vez, o recuo usual. Davidson descreve nosso pensamento empírico
como uma atividade em que nos engajamos sem nenhuma restrição racional, submetida
apenas à influência causal, vinda de fora. A angústia que surge, neste ponto, diz respeito à
possibilidade de esta descrição acomodar a relação com a realidade característica do
pensamento empírico, e é exatamente este tipo de angústia que pode fazer com que o apelo
ao Dado pareça necessário. Davidson nada faz para diminuir a angústia. Penso que
24
"A Coherence Theory of Truth and Knowledge", reimpresso em Ernest LePore, ed., Truth and
Interpretation: Perspectives on the Philosophy of Donald Davidson (Basil Blackwell, Oxford, 1986),
pp. 307–19.
CONCEITOS E INTUIÇÕES 26
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deveríamos desconfiar de sua imperturbável confiança no fato de o conteúdo empírico


poder ser inteligivelmente integrado a nossas descrições, pouco importando aqui termos
estipulado cuidadosamente que os impactos do mundo sobre nossos sentidos nada têm a ver
com justificações.
Naturalmente, Davidson acredita que sua posição é um lugar no qual o pensamento
pode encontrar repouso, e não um movimento em meio a uma oscilação sem fim. Penso,
entretanto, que ele só dá um jeito de as coisas parecerem assim porque não vai
suficientemente a fundo na motivação do Mito do Dado.
Ele observa que uma concepção fundacionista da experiência "leva ao ceticismo"
(p. 314). É claro que, na epistemologia, um apelo ao Dado não nos leva a lugar nenhum.
Não é verdade, porém, que as angústias filosóficas referentes ao ceticismo nasçam de um
fracasso da idéia do Dado. Tampouco é verdade que a idéia do Dado seja algo que nos
ocorre em reflexões despreocupadas, como se viesse do nada, apresentando-se como uma
base possível para a epistemologia do conhecimento empírico, de tal modo que pudéssemos
descartá-la sem traumas caso percebêssemos que ela não funciona. Longe disso, a idéia do
Dado é uma resposta a um modo de pensar que está na base da angústia filosófica usual a
respeito do conhecimento empírico, e esse modo de pensar é exatamente aquilo que
Davidson endossa.
Podemos nos sentir constrangidos a aceitar a idéia do Dado. É isso que acontece
quando estamos impactados pela idéia de que as capacidades conceituais pertencem a uma
faculdade da espontaneidade. Afligimo-nos, então, com o fato de nossa descrição roubar de
si mesma a possibilidade de que nosso exercício dos conceitos possa ser aquilo que ela diz
que ele é, visto que essa descrição excluiu qualquer restrição racional vinda de fora da
esfera do pensamento. Uma das formas que esta angústia assume é o medo de não
possuirmos nenhum modo convincente de evidenciar que somos capazes de possuir
conhecimento empírico. O recuo em direção ao Dado resultante desta angústia – seja em
sua forma genérica (como é possível que exercícios da espontaneidade digam respeito a
uma realidade que está fora da esfera do pensamento?), seja na forma especificamente
espistemológica (como é possível que exercícios da espontaneidade redundem em
conhecimento?) – é uma resposta natural àquele mesmo tipo de "teoria coerentista da
verdade e do conhecimento" que Davidson recomenda. Tais teorias expressam
precisamente a idéia debilitante de que a espontaneidade do pensamento conceitual não está
sujeita a uma coerção racional vinda de fora. A retórica coerentista sugere imagens de uma
clausura no esfera do pensamento, por oposição à idéia de um contato com algo exterior a
essa esfera. Para aquele que acha tais imagens a um só tempo apropriadas e preocupantes, a
idéia do Dado pode dar a impressão de estar reinstituindo uma referência do pensamento à
realidade. Neste ponto do exercício dialético, de nada adianta salientar que essa aparência é
ilusória e que a idéia do Dado não cumpre as promessas que parece fazer, caso a angústia
capaz de levar essa idéia a parecer, apesar de tudo, inescapável continue sendo premente,
ou até mesmo se torne mais exacerbada. O resultado disso tudo é simplesmente a evidência
de que nenhuma das duas posições que estamos sendo instados a eleger é satisfatória.
Davidson nada faz para dissuadir-nos de tomar sua retórica coerentista em termos da
imagística da clausura. Pelo contrário, ele nos encoraja a fazê-lo. A certa altura, ele diz, "É
claro que não podemos sair de nossas peles para descobrir o que está causando os eventos
internos de que temos consciência" (p. 312). Esta observação, tal como está, é bastante
insatisfatória. Por que supor que, para descobrir algo a respeito dos objetos externos, nós
deveríamos sair de nossas peles? (É claro que não podemos fazer isso.) E por que supor que
CONCEITOS E INTUIÇÕES 27
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estamos interessados em descobrir aquilo que causa os eventos internos de que temos
consciência, ao invés de supor que estamos interessados apenas na disposição geral de
nosso meio ambiente? Naturalmente, sair de nossas peles não é o mesmo que sair de nossos
pensamentos. É possível, no entanto, entender como Davidson pode fazer esta observação
de modo tão despreocupado se pressupusermos que o confinamento literal no interior de
nossas peles soa para ele como o análogo de um confinamento metafórico no interior de
nossas crenças, confinamento este que ele de bom grado permite que seu coerentismo
sugira. No quadro traçado por Davidson, não podemos sair do interior de nossas crenças.
Davidson sabe perfeitamente que esta imagística do confinamento tende a induzir
um retrocesso para a idéia do Dado, para a idéia de que a verdade e o pensamento
dependem de relações racionais com algo exterior ao domínio conceitual. Ele pensa que
pode dar rédeas soltas à imagística da clausura, mas antecipar-se ao retrocesso defendendo,
nos quadros de seu coerentismo, a reconfortante tese de que "a crença é verídica por
natureza" (p. 314). Davidson defende essa tese fazendo uma conexão entre crença e
interpretação, e afirmando pertencer à natureza da interpretação que um intérprete deva, na
maioria das vezes, verificar que os sujeitos que ele interpreta estão corretos a respeito do
mundo com o qual ele pode observá-los interagindo causalmente.
Não quero entrar no mérito deste argumento. Quero perguntar, entretanto, com que
grau de eficiência ele pode nos tranqüilizar, caso estejamos preocupados em saber se o
coerentismo de Davidson é capaz de incorporar a relação do pensamento com a realidade.
Suponha que alguém experimente esta preocupação da seguinte forma: nada, no quadro que
nos é ofereciso por Davidson, impediria alguém de ser um cérebro posto na cuba de um
cientista maluco. A resposta de Davidson parece ser que, se alguém fosse um cérebro numa
cuba, seria correto interpretar as crenças dessa pessoa como sendo, em sua maioria, crenças
verdadeiras a respeito do ambiente eletrônico do cérebro.25 Será esta, no entanto, a
tranqüilidade de que precisamos para ficarmos imunizados contra os atrativos do Dado?
Supostamente, o argumento deveria partir do conjunto de crenças em que supostamente
estamos enclausurados em nossos esforços ativos para adequar nosso pensamento às
justificativas disponíveis. Ele deveria fazer com que a imagística da clausura não fosse
ameaçadora, assegurando-nos que aquelas crenças são, em sua maioria, verdadeiras. No
entanto, a resposta às angústias referentes ao cérebro na cuba atuaram na direção errada. A
resposta não diminui nosso temor de que o quadro que pintamos talvez deixe nosso
pensamento sem contato com o mundo exterior a nós. Ela apenas nos deixa uma atordoante
sensação de que nossa preensão do objeto de nossas crenças não é assim tão firme quanto
pensávamos.26

25
Valemo-nos aqui do testemunho de Richard Rorty. Cf. "Pragmatism, Davidson, and Truth", p. 340,
in LePore, ed., Truth and Interpretation, pp. 333–55.
26
É preciso cuidado para dizer com exatidão por que a resposta é insatisfatória. Não se trata de uma
advertência a respeito da possibilidade de estarmos redondamente enganados a respeito dos objetos de nossas
crenças. Se eu protestasse que uma de minhas crenças não diz respeito a impulsos elétricos ou coisas do
gênero, mas sim, digamos, a um livro, a resposta poderia ser a seguinte: "Mas é claro que sua crença diz
respeito a um livro – desde que a expressão 'um livro', tal como você a usa, seja corretamente interpretada." A
reinterpretação que se tem em vista, para fazer frente à hipótese de que eu seja um cérebro numa cuba, afeta
minhas crenças de nível superior a respeito dos objetos de minhas crenças de primeiro nível de um modo que
se ajusta com perfeição aos efeitos que a mesma reinterpretação tem sobre minhas crenças de primeiro nível.
O problema é que, no argumento que Rorty atribui a Davidson, nós alteramos o meio ambiente real (tal como
este é visto pelo intérprete e introduzido na intepretação), sem mudar o modo como as coisas aparecem para
quem crê, não obstante o fato de a interpretação dever captar o modo como o sujeito da crença está em
CONCEITOS E INTUIÇÕES 28
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Penso que a conclusão correta é a seguinte: qualquer que seja o crédito que demos
ao argumento de Davidson segundo o qual um corpo de crenças é seguramente constituído,
em sua maior parte, por crenças verdadeiras, quando o argumento começa, já é tarde demais
para que ele possa fazer da posição de Davidson uma escapatória genuína da oscilação.
A única motivação para o Mito do Dado que aparece no pensamento de Davidson é
um ceticismo superficial, no qual, dado um certo número de crenças, preocupamo-nos com
as credenciais que essas crenças possuem. Mas o Mito do Dado tem uma motivação mais
profunda na idéia de que, se a espontaneidade não está sujeita a coerções racionais vindas
de fora, tal como o coerentismo de Davidson afirma que ela não está, então não podemos
entender como exercícios da espontaneidade são capazes de representar o mundo.
Pensamentos sem intuições são vazios, e a dificuldade, aqui, não pode ser superada
atribuindo-se às intuições um impacto causal sobre nossos pensamentos. Só é possível dar
lugar ao conteúdo empírico em nossa abordagem caso reconheçamos que pensamentos e
intuições estão racionalmente conectados. Ao rejeitar isto, Davidson destrói seu direito à
idéia da qual parte seu argumento supostamente tranqüilizador – a idéia de um corpo de
crenças. Nese caso, sua tentativa de neutralizar a imagística da clausura não funciona, e sua
posição assume a forma de uma variante de uma das fases da oscilação. Uma escapatória
genuína exigiria que evitássemos o Mito do Dado sem renunciar à afirmação de que a
experiência é uma coerção racional imposta ao pensamento.
Sugeri que podemos fazer isto, caso reconheçamos que as impressões do mundo
sobre nossos sentidos já estão dotadas de conteúdo conceitual. Há uma barreira, no entanto,
que impede Davidson de enxergar quaisquer possibilidades nesta direção. Voltarei ao tema
em conferências posteriores.

7. O Mito do Dado expressa uma ânsia de coerção racional vinda de fora do reino do
pensamento e do juízo. Esta ânsia nos é muito familiar no contexto do conhecimento
empírico a respeito do mundo à nossa volta – o conhecimento fornecido por aquilo que
Kant chamava de "sentido externo".27 É instrutivo, porém, percebermos que a expressão
espacial que acabei de usar, "fora do reino do pensamento e do juízo", é apenas uma
metáfora. A mesmíssima tentação manifesta-se em relação àquilo que Kant chamava de
"sentido interno".28 O reino do pensamento e do juízo inclui juízos a respeito das
percepções daquele que pensa, de seus pensamentos, de suas sensações, e coisas
semelhantes. As capacidades conceituais operantes nesses juízos precisam pertencer à
espontaneidade, da mesma forma que qualquer outra capacidade conceitual, o que também
pode fazer surgir para esta região do pensamento o espectro de um giro sem atrito no
vácuo. Aí, então, daquele modo que a esta altura já deve ter se tornado familiar, para que o
atrito seja assegurado, conforme o exige um conteúdo genuíno, parece que somos obrigados
a admitir que os exercícios conceituais desta região estão racionalmente fundamentados em
algo extraconceitual – simples presenças que seriam os fundamentos últimos dos juízos.

contato com o mundo. Isto me faz pensar que é impossível alegar que o argumento introduz qualquer idéia
genuína de estar em contato com algo em particular. Os objetos que, na visão do intérprete, são aquilo a que
as crenças do sujeito se referem tornam-se, por assim dizer, meramente numenais no que diz respeito ao
sujeito
27
P. ex., em B67.
28
P. ex., em A22/B37. Para uma ocorrência das duas expressões juntas numa única discussão, veja-se
a nota de rodapé em Bxxxix–xli.
CONCEITOS E INTUIÇÕES 29
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Esta descrição de um modo aparentemente inevitável de pensar ajusta-se bem ao


alvo de Wittgenstein no assim chamado Argumento da Linguagem Privada. Se
compreendermos essa argumentação de modo a vê-la como uma rejeição generalizada do
Dado, facultaremos a nós mesmos o acesso a uma apreciação aguda de sua cogência. E
talvez possamos ter uma compreensão mais complexa e interessante daquilo que está em
jogo, se considerarmos o modo como essa argumentação surge naquelas conhecidas
passagens de Wittgenstein.29
Digo "o assim chamado Argumento da Linguagem Privada" porque, de acordo com
esta leitura, o cerne da concepção que Wittgenstein está atacando é a alegação de que os
"juízos do sentido interno" estão, em última instância, fundamentados em simples
presenças, e não a tentativa de encontrar um modo de pôr essas simples presenças em
palavras. Se uma pessoa imbuída dessa concepção fosse convencida por um argumento de
que a linguagem não é capaz de incluir os itens em que ela insiste, essa pessoa poderia
responder que é exatamente isso que ela queria estabelecer. Se a linguagem pudesse incluí-
los, isto significaria que eles estão dentro da esfera conceitual, e tais itens são admitidos
tendo-se em vista a admissão de algo que limite a espontaneidade, algo que, vindo de fora,
mova-se no interior daquela esfera. Sendo assim, a linguagem certamente não pode capturá-
los. Apesar disso (talvez pareça necessário insistir), esses itens estão ali para serem
indigitados como justificativas últimas de juízos do "sentido interno". A motivação
fundamental do ataque de Wittgenstein não é eliminar a idéia de uma linguagem privada,
pois esta eliminação, por si só, apenas faria com que a linha de raciocínio a que ele está se
opondo recuasse até aí. O ataque de Wittgenstein desmantela inclusive esta posição, que já
deixou para trás a idéia de uma linguagem privada, aplicando a ela a máxima geral: uma
simples presença não pode ser fundamento de coisa nenhuma.
No entanto, quem já se convenceu de que os fundamentos últimos para os juízos de
experiência devem ser porções do Dado será levado a comprometer-se com a possibilidade
de conceitos postados o mais proximamente possível daqueles fundamentos últimos, no
sentido de que o conteúdo desses conceitos estaria totalmente determinado pelo fato de que
os juízos que os envolvem são avalizados por simples presenças do tipo apropriado. Estes
conceitos seriam aqueles que julgamos poderem ser expressos pelos termos de uma
linguagem privada. Apenas uma pessoa poderia ser o sujeito a quem é dada uma porção
específica do Dado. Portanto, qualquer conceito constituído por uma relação justificadora
com uma simples presença teria que ser, nessa medida, um conceito privado. Seria natural
supor que estes conceitos privados foram adquiridos por abstração a partir de um Dado
múltiplo, como acontece na história a respeito da formação de conceitos que mencionei
mais atrás. O trabalho abstrativo é feito pela definição ostensiva privada que aparece na
argumentação de Wittgenstein.
Deste modo, o fato de situarmos o Argumento da Linguagem Privada no contexto de
uma rejeição geral do Dado não nos dispensa de considerá-lo um argumento contra a
linguagem privada, ou de todo modo contra os conceitos privados enquanto tais. Apesar
disso, penso que as observações de Wittgenstein especificamente relacionadas à linguagem
privada são postas na perspectiva correta quando as vemos como esforços para insistir nas
conseqüências que tem para a linguagem uma tese mais geral – a tese de que uma simples
29
Estendi-me um pouco mais a respeito desta leitura de Wittgenstein em "One Strand in the Private
Language Argument", Grazer Philosophische Studien 33/34 (1989), 285–303. Veja-se também meu ensaio
"Intentionality and Interiority in Wittgenstein", in Klaus Puhl, ed., Meaning Scepticism, (De Gruyter, Berlin,
1991), pp. 148–69.
CONCEITOS E INTUIÇÕES 30
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presença não pode fornecer ao repertório conceitual um input justificador vindo de fora,
que é exatamente o tipo de coisa pelo que a conexão entre conceitos e espontaneidade nos
fez ansiar. Se um conceito é constituído por uma articulação justificadora com uma simples
presença – o que equivale a dizer que ele é um conceito privado – então a espontaneidade
não chega até ele. Na realidade, o objetivo desta concepção é justamente isentar os
exercícios destes supostos conceitos da responsabilidade que acompanha a espontaneidade.
O que temos aqui é uma variante de uma estrutura que mencionei mais acima (§5),
conectada a uma concepção equivocada do fato de que a experiência é passiva. Chamar
algo a que a espontaneidade não se estende de "um conceito" e chamar a articulação de
"racional" é rotulação fraudulenta: o que estamos fazendo, na verdade, é rotular uma
exculpação como justificação, na vã esperança de que a rotulação possa transformar uma
coisa na outra.
Mencionei o ataque wittgensteiniano feito por Geach à abordagem abstrativa da
formação de conceitos (§2). Venho sugerindo que o Argumento da Linguagem Privada faz
uso de uma rejeição geral do Dado. Seria enganoso, porém, apresentar o Argumento da
Linguagem Privada como uma aplicação particular de um pensamento mais geral. Como eu
já disse, qualquer conceito constituído por uma relação justificadora com uma simples
presença teria que ser um conceito privado. Fazer a abstração que necessária para a
formação de tal conceito seria dar a si mesmo uma definição ostensiva privada. Com efeito,
a idéia de que os conceitos possam ser formados por uma abstração a partir do Dado é, sem
tirar nem pôr, a idéia da definição ostensiva privada. Deste modo, o Argumento da
Linguagem Privada coincide exatamente com a rejeição do Dado, na medida em que esta
rejeição diz respeito às possibilidades abertas à linguagem. Não se trata de uma aplicação
de uma recusa generalizada do Dado a uma área em particular. O que constitui uma
aplicação da tese mais geral é, isto sim, a recusa das simples presenças enquanto aquilo que
as sensações, etc. são.
É indiferente que as ocasões corretas para a realização de uma definição ostensiva
privada devam ser sinalizadas pelas outras pessoas. Este seria um modo de alguém poder
nutrir a esperança de integrar um elemento privado (a responsividade racional a uma
simples presença) a um conceito compósito que também possui um aspecto público
(vinculação racional a um repertório conceitual compartilhável). Wittgenstein expressa esta
idéia na seguinte passagem: "Ou será que é assim: a palavra 'vermelho' significa algo
conhecido por todos e, além disso, para cada pessoa, significa algo conhecido apenas por
ela? (Ou talvez: ela refere-se a algo conhecido apenas por ela.)"30 Se a idéia de
responsividade racional a uma simples presença não passa de uma confusão, a vinculação a
um repertório compartilhável não pode salvar estes supostos conceitos compósitos de
estarem viciados por seus elementos privados. A confusão entre justificativa e exculpação
reaparece agora na juntura dos supostos ingredientes do conceito compósito.
O Mito do Dado é especialmente insidioso no caso do "sentido interno". No caso do
"sentido externo", a idéia é que o Dado medeia entre o sujeito da experiência e uma
realidade externa independente da qual o sujeito toma consciência por intermédio desta
mediação. Se rejeitamos o Dado, não estamos com isto abolindo a realidade externa, mas
apenas nos obrigando a não supor que a consciência dessa realidade é mediada daquele
modo. Mas os objetos do "sentido interno" são acusativos internos da consciência que as
"experiências internas" constituem; eles não têm uma existência independente dessa

30
Philosophical Investigations (Basil Blackwell, Oxford, 1951), §273.
CONCEITOS E INTUIÇÕES 31
_______________________________________________________

consciência.31 Isto significa que, se as simples presenças permanecerem em nosso quadro,


elas serão os únicos objetos de consciência em jogo. Elas não podem figurar como
mediadoras da consciência de algo que está para além delas – não, pelo menos, se a
consciência mediada for ela mesma concebida em termos de um "sentido interno" em
ação.32 O resultado é que, neste ponto, ao rejeitarmos o Dado, pode parecer que estejamos
rejeitando também a consciência "interna". Parece não haver mais nada de que a
"experiência interna" pudesse ser experiência.
Como podemos, pois, rejeitar o Dado sem obliterar a consciência "interna"? Para
atribuirmos às impressões do "sentido interno" o papel correto na justificação dos juízos,
precisamos concebê-las, a exemplo das impressões do "sentido externo", como se elas
próprias possuíssem conteúdo conceitual; para acrescentar a isto o necessário limite à
liberdade da espontaneidade, precisamos insistir no fato de que elas são realmente
impressões, produtos da receptividade. Deste modo, as impressões do "sentido interno"
devem ser, como as impressões do "sentido externo", ocorrências passivas nas quais as
capacidades conceituais são postas em funcionamento. No entanto, para respeitar aquilo
que dissemos sobre os acusativos internos, não podemos conceber estar operações passivas
de capacidades conceituais seguindo ponto a ponto o modelo do "sentido externo". Não
podemos supor que estas operações de capacidades conceituais constituam uma consciência
de circunstâncias que sempre irão ocorrer e e sempre irão imprimir-se num sujeito do modo
como se imprimem em função de alguma relação apropriada que mantêm com sua
sensibilidade. Sem dúvida, há circunstâncias que ocorrem sempre e que figuram na
etiologia das impressões do "sentido interno": danos físicos, por exemplo, no caso de uma
sensação de dor. Se quisermos respeitar, no entanto, aquilo que ficou dito a respeito dos
acusativos internos, não podemos supor que tais circunstâncias sejam objetos de uma
consciência constituída pelas impressões do "sentido interno". (Muito embora nos seja
certamente possível aprender a descobrir coisas a respeito dessas circunstâncias a partir das
impressões do "sentido interno".) Se for possível fazer com que os juízos do "sentido
interno" sejam a respeito de algo, é necessário que eles sejam a respeito das próprias
impressões do "sentido interno", e não a respeito de uma coisa independente, da qual as
impressões seriam a tomada de consciência.
Esta é uma área bastante difícil. O próprio Wittgenstein, por vezes, parece deixar
transparecer um compreensível desejo de se esquivar das dificuldades. Penso, aqui, no fato
de que ele às vezes parece estar muito próximo de negar que a auto-atribuição de sensações
seja uma asserção, isto é, a articulação de um juízo a respeito de um estados de coisas.33
Afirmei que deveríamos fazer uma conexão entre "experiência interna" e
capacidades conceituais, de modo a levar o paralelismo entre "sentido interno" e "sentido
externo" tão longe quanto possível. Uma óbvia fonte de dificuldades para este ponto de
vista está no fato de haver criaturas que não possuem faculdade de espontaneidade e
31
Veja-se P.F. Strawson, The Bounds of Sense (Methuen, Londres, 1966), pp. 100–1.
32
Não que a "experiência interna" não possa mediar a consciência. Por exemplo, uma determinada
sensação poderia produzir uma consciência mediada de uma certa condição corporal. Aqui, porém, o objeto
da consciência mediada não é "interno" no sentido kantiano do termo. Cf. o texto que vem em seguida.
33
P. ex., na p. 68 do Blue Book (The Blue and Brown Books [Basil Blackwell, Oxford, 1958]): "A
diferença entre as proposições 'eu tenho dor' e 'ele tem dor' não é aquela que existe entre 'L.W. tem dor' e
'Smith tem dor'. Antes, ela corresponde à diferença entre gemer e dizer que alguém está gemendo." Não entro
no mérito daquilo que está sendo dito na primeira dessas sentenças. Sentenças como a segunda, no entanto,
sugerem, ao menos para certos comentadores, uma doutrina que assimila "declarações" [avowals] a outros
modos de expressão, de modo a distanciá-las das asserções, e isto me parece uma atitude evasiva.
CONCEITOS E INTUIÇÕES 32
_______________________________________________________

certamente podem, por exemplo, sentir dores. (Lembremo-nos de que o termo


"espontaneidade" alude a capacidades conceituais. Nâo estou tentando obliterar o caráter
semovente da vida meramente animal.) Voltarei a este ponto em conferências posteriores.
Meu objetivo aqui não é esgotar a discussão, mas apenas sugerir a possibilidade de lermos
o Argumento da Linguagem Privada como um ataque ao Dado.

8. Nesta conferência, afirmei que temos a tendência a cair numa oscilação intolerável:
numa fase, somos levados a um coerentismo incapaz de dar sentido à relação entre o
pensamento e uma realidade objetiva; na outra fase, retrocedemos para um apelo ao Dado,
que se revela inútil. Tentei mostrar que, para sairmos desta oscilação, precisamos de uma
concepção das experiências que as considere como estados ou ocorrências passivas, mas
que refletem capacidades conceituais – capacidades que pertencem à espontaneidade –
operantes. Na próxima conferência, começarei a examinar algumas dificuldades trazidas
por esta concepção.
A INDELIMITAÇÃO DO CONCEITUAL 33
_______________________________________________________

SEGUNDA CONFERÊNCIA
A INDELIMITAÇÃO DO CONCEITUAL

1. Em minha primeira conferência, falei a respeito de uma tendência para oscilar entre duas
posições insatisfatórias: de um lado, um coerentismo que ameaça desconectar o pensamento
da realidade; de outro, um inútil apelo ao Dado, no sentido de simples presenças que
deveriam constituir os fundamentos últimos dos juízos empíricos. Sugeri que, para
escaparmos dessa oscilação, precisamos encarar as próprias experiências como estados ou
ocorrências que combinam receptividade e espontaneidade de modo inextricável. Não
devemos supor que a espontaneidade figure apenas em juízos nos quais imputamos uma
estrutura às experiências, concebendo estas experiências como entregas feitas pela
receptividade, sem que a espontaneidade tivesse contribuído em nada para sua constituição.
Experiências são, de fato, a receptividade em operação. Nesta medida, elas podem
satisfazer a necessidade de um controle externo exercendo-se sobre nossa liberdade no
âmbito do pensamento empírico. No entanto, as capacidades conceituais, capacidades que
pertencem à espontaneidade, já se encontram em ação nas próprias experiências, e não
apenas nos juízos que se baseiam nelas. É assim que as experiências podem, de maneira
inteligível, manter relações racionais com nossos exercícios da liberdade implícita na idéia
de espontaneidade.
Nesta segunda conferência, começarei a examinar alguns problemas ligados a esta
concepção.
Pode ser difícil perceber que haja lugar para uma concepção deste tipo. Em minha
primeira conferência (§6), lancei mão do coerentismo de Davidson para ilustrar esse ponto.
Sugeri que a posição de Davidson é representativa de um modo de pensar no qual aquilo
que estou recomendando com tanta insistência nem mesmo chega a despontar como uma
opção disponível. Mais adiante (a partir da Quarta Conferência), tentarei dizer algo a
respeito das razões pelas quais é difícil chegarmos a esta posição, ficando por isso
inclinados a supor que estamos condenados a escolher uma daquelas duas posições
originais. Procurarei sugerir que as dificuldades neste campo resultam de uma influência
compreensivelmente poderosa exercida sobre o aspecto geral de nossos pensamentos, da
qual podemos todavia nos libertar.
Entretanto não é isto que planejo fazer nesta conferência. Não pretendo sugerir que
a objeção que estou prestes a considerar seja por si só reveladora das raízes mais profundas
de nossas dificuldades. Na melhor das hipóteses, talvez mantenha algum tipo de conexão
com elas. Mas espero que, ao discuti-la, eu projete uma luz mais esclarecedora sobre a
concepção que estou recomendando.

2. O que quero examinar nesta conferência é uma objeção motivada pelo idealismo.
Ao que parece, é necessário que uma realidade exterior aos atos de pensar e de
julgar imponha coerções racionais a ambos, caso queiramos compreendê-los enquanto atos
que dizem respeito a uma realidade que está fora do pensamento. Davidson nega que exista
qualquer necessidade desse tipo, propondo que nos arranjemos apenas com coerções
causais. Sugeri que Davidson só consegue sentir-se confortável com isto porque pensa que
não há outra opção, já que, como ele mesmo percebe com toda clareza, o Mito do Dado é
uma via sem esperança. Neste ponto, eu afirmo, ele está errado. Existe uma opção, e este
fato remove a única razão aparente para negarmos a necessidade de coerções racionais
A INDELIMITAÇÃO DO CONCEITUAL 34
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vindas de fora: a única aparente razão para negarmos que pensamentos sem uma conexão
racional com as intuições seriam vazios.
Quando tentamos reconhecer a necessidade de coerções racionais externas, podemos
acabar supondo que deva haver relações de fundamentação última cujo alcance ultrapasse
completamente o domínio conceitual. É essa a idéia do Mito do Dado, e naturalmente a
concepção que descrevi não faz qualquer concessão a ele. O Mito do Dado é precisamente
uma das duas ciladas opostas de que essa concepção pretende nos libertar.
Na concepção que estou recomendando, a necessidade de coerção externa é
satisfeita pelo fato de que experiências são receptividade operante. Isto, no entanto, não
impede as experiências de desempenharem um papel na justificação, tal como fazia sua
contraparte no Mito do Dado, pois o que se afirma aqui é que as próprias experiências já
vêm investidas de conteúdo conceitual. O envolvimento simultâneo da receptividade e da
espontaneidade nos permite dizer que, na experiência, podemos observar como as coisas
são. O modo como as coisas são é algo independente de nosso pensamento (exceto
naturalmente no caso especial em que o modo como as coisas são consiste no fato de
alguém estar tendo tais e tais pensamentos). Ao ser recepcionado na experiência, o modo
como as coisas são torna-se disponível para impor a nossos exercícios de espontaneidade o
controle racional necessário vindo de fora do pensamento.
É claro que podemos nos iludir, pelo menos no caso da "experiência externa". A
discussão desse tema será feita apenas na última conferência. Desde já, porém, insisto em
dizer que, ao reconhecermos a possibilidade de estarmos iludidos, não estamos com isso
renunciando à frase "observar como as coisas são" enquanto descrição daquilo que acontece
quando não estamos iludidos. Numa experiência específica na qual alguém não está iludido,
o que essa pessoa observa é que as coisas são de tal e tal modo. Que as coisas são de tal e
tal modo é o conteúdo da experiência, e também pode ser o conteúdo de um juízo: torna-se
o conteúdo de um juízo caso o sujeito decida tomar a experiência pelo seu valor de face.
Nessa medida, ele é um conteúdo conceitual. Mas que as coisas são de tal e tal modo
também é, caso não estejamos iludidos, um aspecto da disposição geral do mundo: é o
modo como as coisas são. Assim, a idéia de operações de receptividade conceitualmente
estruturadas nos permite falar na experiência enquanto abertura para a disposição geral da
realidade. A experiência permite que a própria disposição geral da realidade exerça uma
influência racional sobre aquilo que um sujeito pensa.
Esta imagem de uma abertura para a realidade está ao nosso dispor em virtude do
modo como identificamos essa realidade que impõe sua marca sobre um sujeito por ocasião
da experiência. Embora a realidade seja independente de nosso pensamento, ela não deve
ser imaginada como algo que está fora de um limite externo que engloba a esfera
conceitual. Que as coisas são de tal e tal modo é o conteúdo conceitual de uma experiência,
mas se o sujeito da experiência não estiver iludido, essa mesmíssima coisa – que as coisas
são de tal e tal modo – é também um fato perceptível, um aspecto do mundo perceptível.
Ora, pode parecer que esta recusa em localizar a realidade perceptível fora da esfera
conceitual deva ser um tipo de idealismo, no sentido em que chamar uma posição de
"idealismo" é declarar que ela não reconhece genuinamente que a realidade é independente
de nosso pensamento. Se isto fosse verdade, minha afirmação da independência da
realidade seria insincera, algo dito apenas da boca para fora. No entanto, embora seja fácil
compreender esta objeção e ter simpatia por ela, ela é falsa. Ela reflete, por um lado, a
convicção de que devemos escolher entre a negação coerentista de que o pensamento e o
juízo estejam sujeitos a coerções racionais vindas de fora; por outro, um apelo ao Dado
A INDELIMITAÇÃO DO CONCEITUAL 35
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como aquilo que impõe a coerção. Se alguém acha que estas são as únicas opções e mostra-
se mais sensível aos defeitos de um coerentismo desenfreado do que à inutilidade do Dado,
então qualquer coisa que esteja aquém da crença no Dado irá soar como um menosprezo
pela independência da realidade. Mas o propósito da terceira opção, desta opção que estou
sugerindo, é justamente permitir a admissão de uma realidade independente exercendo
controle sobre o nosso pensamento, sem cair na confusão entre justificativa e exculpação
característica do apelo ao Dado.

3. Creio que é útil, neste ponto, refletirmos a respeito de uma observação de Wittgenstein:
"Quando dizemos e queremos dizer que tal e tal coisa ocorre, nós – e nosso querer dizer –
não nos detemos em algum lugar aquém do fato, mas queremos dizer: isto-é-assim."34
Wittgenstein chama a isto de paradoxo. E isto porque, especialmente quando conjugado ao
fato de que "o pensamento pode ser sobre o que não ocorre" 35, ele pode provocar uma
reação em que nossas mentes ficam perplexas diante daquilo que parece ser um poder
miraculoso do pensamento, no sentido mais geral do termo (neste caso, querer dizer aquilo
que se diz): o poder de "capturar a realidade em sua rede". 36 Mas Wittgenstein também
afirma, corretamente, que a observação "tem a forma de um truísmo".
Podemos formular a mesma idéia num estilo com o qual Wittgenstein iria sentir-se
desconfortável: não existe lacuna ontológica entre o tipo de coisa que podemos querer
dizer, ou de modo geral entre o tipo de coisa em que podemos pensar e o tipo de coisa que
pode ocorrer. Quando alguém pensa de modo verdadeiro, aquilo em que ele pensa é aquilo
que ocorre. Como o mundo é tudo que ocorre (como ele próprio escrevera) 37, não há lacuna
entre o pensamento, enquanto tal, e o mundo. Naturalmente, o pensamento pode distanciar-
se do mundo por ser falso, mas não há distância do mundo que esteja implícita na própria
idéia de pensamento.
Mas dizer que não há lacuna entre o pensamento enquanto tal e o mundo é apenas
dar a um truísmo a roupagem de um linguajar pomposo. No final das contas, o que se está
dizendo é que podemos pensar, por exemplo, que a primavera começou, e que exatamente
essa coisa, que a primavera começou, pode ocorrer. Isto é um truísmo, e não pode envolver
algo metafisicamente litigioso, tal como um menosprezo pela independência da realidade.
Quando formulamos isso em termos pomposos, dizendo que o mundo é feito do tipo de
coisa que alguém pode pensar, uma fobia do idealismo pode fazer com que as pessoas
suspeitem de que estamos renunciando à independência da realidade – como se
estivéssemos representando o mundo como uma sombra de nosso pensamento, ou até
mesmo como sendo constituído por material mental. Mas o fato de o tipo de coisa em que
podemos pensar ser idêntico ao tipo de coisa que pode ocorrer poderia muito bem ser
interpretado no sentido contrário, como um convite para entendermos a noção do tipo de
coisa em que podemos pensar em termos de um entendimento supostamente anterior do

34
Philosophical Investigations, §95.
35
O §95 continua assim: "Mas este paradoxo (que tem a forma de um truísmo) também pode ser
expresso deste modo: o pensamento pode ser sobre o que não ocorre."
36
Cf. Philosophical Investigations, §429: "Como é possível ao pensamento lidar com o próprio
objeto? Sentimos como se, por seu intermédio, tivéssemos capturado a realidade em nossa rede."
37
Tractatus Logico-Philosophicus (Routledge and Kegan Paul, Londres, 1961), §1.
A INDELIMITAÇÃO DO CONCEITUAL 36
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tipo de coisa que pode ocorrer.38 E, de fato, não há razão para procurarmos uma prioridade
num sentido ou no outro.
Se dizemos que deve haver uma coerção racional exercendo-se sobre o pensamento
a partir de fora, de modo a assegurarmos um reconhecimento apropriado da independência
da realidade, ficamos à mercê de um tipo bastante conhecido de ambigüidade.
"Pensamento" pode significar o ato de pensar, mas pode significar também o conteúdo que
é pensado – aquilo que alguém pensa. Ora, se quisermos dar o devido reconhecimento à
independência da realidade, precisaremos de uma coerção exterior ao pensamento e ao
juízo, entendidos enquanto exercícios de espontaneidade. Esta coerção não precisa vir de
um lugar exterior aos conteúdos pensáveis. Estaríamos realmente menosprezando a
independência da realidade, caso igualássemos os fatos em geral com exercícios de
capacidades conceituais – atos de pensar – ou representássemos os fatos como reflexos de
exercícios deste tipo; ou, ainda, caso igualássemos fatos perceptíveis em particular com
estados ou ocorrências nas quais capacidades conceituais são postas em operação na
sensibilidade – com experiências – ou representássemos aqueles fatos como reflexos destes
estados ou ocorrências. Mas, ao contrário disto tudo, não seria idealista a afirmação de que
fatos perceptíveis são essencialmente capazes de imprimir-se sobre percipientes em estados
ou ocorrências do último tipo, nem a afirmação de que os fatos em geral são essencialmente
capazes de serem abrangidos pelo pensamento em exercícios de espontaneidade, que são
ocorrências do primeiro tipo.
O fato de a experiência ser passiva, de ser uma questão de receptividade operante,
deveria nos dar a garantia de que temos toda a coerção externa que é razoável esperar. A
coerção vem de fora do pensar, mas não de fora daquilo que é pensável. Quando
rastreamos as justificativas a contrapelo, a última coisa a que chegamos ainda é um
conteúdo pensável, e não algo ainda mais último que isso, um mero apontar para uma
porção do Dado. Mas estes conteúdos pensáveis terminais são postos em jogo por
operações da receptividade, e isto significa que, quando apelamos para eles, nós efetivamos
aquela coerção que deve se exercer sobre o ato de pensar a partir de uma realidade externa
a ele. Os conteúdos pensáveis que são últimos na ordem das justificações são conteúdos de
experiências, e ao passarmos por uma experiência abrimo-nos a fatos manifestos, fatos que,
haja o que houver, ocorrem, e que se imprimem sobre nossa sensibilidade. (De qualquer
modo, parecemos estar abertos a fatos e, se não formos vítimas de uma ilusão, de fato
estamos.) Parafraseando Wittgenstein, quando vemos que tal e tal coisa ocorre, nem nós,
nem nossa visão estacionam num ponto anterior ao fato. O que vemos é: que tal e tal coisa
ocorre.

4. O aforismo de Wittgenstein pode ser reformulado de maneira análoga para qualquer


formação conceitual da subjetividade. Não é esta possibilidade geral considerada em si
mesma que afiança a imagem da abertura. A imagem da abertura é apropriada para a
experiência em particular, e para colocar esta imagem em jogo precisamos fazer um apelo à

38
O Tractatus é freqüentemente lido desta maneira. Para um exemplo recente, David Pears, The
False Prison, vol. 1 (Clarendon Press, Oxford, 1987). Oponentes do tipo de leitura oferecida por Pears
tendem muitas vezes a encontrar no Tractatus uma tese que defende uma prioridade no sentido contrário, ou
pelo menos a não distinguir claramente suas interpretações deste tipo de leitura. (Isso pode lhes valer uma
acusação de idealismo.) Não sei se qualquer uma destas alegações de prioridade poderia ser encontrada no
Tractatus.
A INDELIMITAÇÃO DO CONCEITUAL 37
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passividade característica da experiência. O contexto geral, no entanto, é relevante para a


disponibilidade da imagem.
Para mostrar de que modo isto se dá, quero recordar aqui algo que eu disse em
minha primeira conferência (§5) para me opor a um mal-entendido envolvido na idéia de
que as capacidades conceituais estão passivamente operantes na experiência. O mal-
entendido, neste caso, consiste em supor que, quando apelamos à passividade, nós isolamos
esta invocação do conceitual daquilo que torna plausível atribuir capacidades conceituais
em geral a uma faculdade da espontaneidade. Contra isto, insisti em que não poderíamos
reconhecer capacidades operantes na experiência como sendo capacidades conceituais, a
não ser pelo modo como elas se integram a uma rede racionalmente organizada de
capacidades voltadas para o ajuste ativo do pensamento de alguém às entregas feitas pela
experiência. Um repertório de conceitos empíricos é isto. A integração serve para
posicionar até mesmo os juízos mais imediatos de experiência como elementos possíveis de
uma visão de mundo.
Podemos observar isto até mesmo quando nos restringimos a conceitos de
qualidades secundárias, que não podem ser entendidas fazendo-se abstração do caráter
subjetivo da experiência. O que é ser vermelho, por exemplo, não é inteligível se não vier
no mesmo pacote que o entendimento do que é parecer vermelho. A idéia de ser vermelho
não é mais extensa do que a idéia de ser como as coisas vermelhas se parecem nas
circunstâncias adequadas. Isto tem uma conseqüência que pode ser expressa do seguinte
modo: embora julgar que algo é vermelho seja uma atividade, um exercício de
espontaneidade, esse julgar está tão próximo da passividade da experiência quanto um juízo
poderia estar. Conceitos de cor estão apenas minimamente integrados ao trabalho ativo de
acomodar nosso pensamento às entregas continuamente feitas pela experiência, e portanto
apenas minimamente integrados a possíveis visões de mundo. Mesmo assim, eles estão
integrados, ainda que minimamente. Ninguém pode ser reconhecido como um sujeito que
tem experiências de cor se não possuir uma compreensão de fundo que possibilite uma
adequação dos juízos que afirmam tais experiências à visão de mundo desse sujeito. O
sujeito deve estar equipado com coisas como o conceito das superfícies visíveis dos
objetos, e o conceito das condições adequadas para se dizer, olhando para uma coisa, qual é
a cor dela.
Estas observações, que repetem algo que eu disse em minha primeira conferência,
dizem respeito a experiências e juízos que determinam o lugar de uma cor no ambiente
perceptível. Há um outro tipo de experiência cromática para a qual também devemos
encontrar um lugar: o rótulo "experiência cromática" pode aplicar-se a meras sensações, a
operações do "sentido interno".39 Por exemplo, um golpe na cabeça pode fazer com que
alguém "veja vermelho" sem que a experiência faça com que a cor "vista" refira-se ao
ambiente perceptível. Ora, tenho insistido em dizer que experiências em geral são estados
ou ocorrências nas quais as capacidades conceituais são postas passivamente em operação.
Seria preferível que isto valesse para estas "experiências internas" de cores tanto quanto
para quaisquer outras experiências. E creio que deveríamos entender o papel dos conceitos
de cor nestas "experiências internas" de maneira derivada, a partir do papel que elas
desempenham na "experiência externa". Quando caracterizamos uma "experiência interna"
de "ver vermelho", o conceito de vermelho contribui para a compreensão porque, nos

39
Cf. Primeira Conferência, §7.
A INDELIMITAÇÃO DO CONCEITUAL 38
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aspectos relevantes, a experiência é subjetivamente semelhante à experiência de ver (ou


parecer estar vendo) que algo – algum objeto "externo" – é vermelho.
Pode ser tentador querer enxergar as coisas da maneira oposta: supor que o papel
"interno" dos conceitos de cor é autonomamente inteligível, e tentar explicar seu papel
"externo" em termos da idéia de que cair sob um conceito de cor é, para um objeto
"externo", ser capaz de causar a "experiência interna" apropriada em condições adequadas
de visão. Podemos ser encorajados a assumir este ponto de vista se pensarmos da seguinte
maneira: caso ser vermelho e parecer vermelho fossem inteligíveis apenas em termos um
do outro, seria um mistério como alguém pôde quebrar este círculo – um mistério que
poderíamos ter a esperança de dissipar explicando tanto ser vermelho quanto parecer
vermelho em termos da experiência "interna" de "ver vermelho".
Mas devemos resistir a esta tentação. Se o papel "interno" dos conceitos de cor fosse
um ponto de partida auto-sustentável, a compreensão da "experiência externa" da cor se
tornaria impossível. Que alquimia seria capaz de transmudar uma "experiência interna"
numa "experiência externa"? Se na evolução de nosso entendimento a cor figura
primeiramente enquanto um traço da "experiência interna", e não como uma propriedade
aparente dos objetos, como nosso entendimento poderia ter tido a idéia de projetar aquilo
sobre o mundo? Partindo desse ponto, poderíamos conseguir externalizar, na melhor das
hipóteses, uma propensão a induzir em nós o traço relevante da "experiência interna". Mas
é duvidoso que a idéia de ter essa propensão seja equivalente à idéia de ter a cor apropriada.
Esta última idéia requer que nossa experiência e nosso pensamento posicionem algo
fenomênico no mundo externo, ao passo que a concepção baseada na "propensão" mantém
aquilo que é fenomênico na mente.40 De qualquer modo, o círculo – a dependência mútua
dos conceitos de ser vermelho e de parecer vermelho – é completamente inofensivo. Não
representa uma ameaça, por exemplo, a uma visão adequada sobre como são adquiridos os
conceitos de cor. Nós simplesmente temos que supor que eles nos são dados apenas
enquanto elementos num feixe de conceitos que devem ser adquiridos simultaneamente. 41
Sendo assim, proponho que ponhamos o foco sobre o papel desempenhado pelos conceitos
de cor (e, de modo mais geral, pelos conceitos de qualidades secundárias) na "experiência
externa", assumindo que isto é que é fundamental.
Na "experiência externa", um sujeito é passivamente investido de conteúdos
conceituais, pondo em operação capacidades integradas sem junturas num repertório
conceitual empregado por ele em atividades contínuas de ajuste de sua visão de mundo,
habilitando-a a passar pelo escrutínio de suas credenciais à racionalidade. É esta integração
que nos permite conceber a experiência enquanto consciência – ou pelo menos consciência
aparente – de uma realidade que independe da experiência. Para melhor apreciarmos este
ponto, continuemos considerando a maneira pela qual as cores fazem parte do contéudo da
experiência. Mesmo aqui, onde as ligações com o sistema total são mínimas, as capacidades
conceituais relevantes estão integradas à espontaneidade como um todo, de modo a tornar o
sujeito capaz de compreender suas experiências (experiências nas quais aquelas
capacidades conceituais são postas em operação) como vislumbres – ou pelo menos
40
Uma coisa é glosar ser vermelho em termos de ser tal que pareça vermelho; outra muito diferente é
glosá-lo em termos de ser tal que induza uma certa "experiência interna" em nós. Repare que, em "parecer
vermelho", "vermelho" expressa um conceito da "experiência externa", da mesma forma que o faz em "ser
vermelho". Na verdade, expressa exatamente o mesmo conceito. (Sellars insiste neste ponto em "Empiricism
and the Philosophy of Mind".)
41
Cf. Sellars, "Empiricism and the Philosophy of Mind", §§18–20.
A INDELIMITAÇÃO DO CONCEITUAL 39
_______________________________________________________

aparentes vislumbres – do mundo: internalizações, ao menos aparentes, de aspectos de uma


realidade que vai além daquilo que está manifesto nas próprias experiências. Se um
conceito de cor é posto em operação numa experiência (com o conceito desempenhando
aqui seu papel "externo"), as conexões racionais do conceito ajudam a dar forma ao
conteúdo da aparência, de tal modo que aquilo que parece acontecer é compreendido como
algo repleto de implicações para a situação cognitiva do sujeito no mundo: por exemplo,
que ele está diante de um objeto com uma superfície visível iluminada de tal e tal modo.
A noção de vislumbre é distintamente visual, mas podemos generalizá-la, de modo a
fazê-la incluir experiências não-visuais. O modo pelo qual as capacidades conceituais
operacionalizadas numa experiência estão racionalmente ligadas à rede total faz com que o
sujeito da experiência interprete aquilo que a experiência internaliza (ou pelo menos parece
internalizar) como sendo parte de uma realidade mais ampla, realidade que pode ser
abrangida pelo pensamento, mas não está disponível nesta experiência. O objeto da
experiência é entendido como algo que se integra a uma realidade mais ampla, de um modo
que espelha a integração dos conceitos relevantes ao repertório da espontaneidade como um
todo. Mesmo no caso da experiência cromática, esta integração nos permite compreender a
experiência enquanto consciência de algo independente da própria experiência: algo que é
mantido no seu devido lugar por estar associado a uma realidade mais ampla, permitindo
que possamos dar sentido ao pensamento de que isto seria assim, mesmo que não estivesse
sendo experimentado como sendo assim.
Tudo isto vale, conforme tenho insistido, mesmo quando nos restringimos aos
modos de os conceitos de qualidades secundárias figurarem no conteúdo da experiência. E
o ponto não estaria assegurado para este caso específico dizendo-se que devemos entender
qualquer experiência particular de uma qualidade secundária contra o pano de fundo de
outras experiências possíveis ou efetivas de qualidades secundárias. Não podemos construir
um mundo do qual faça sentido dizer que tais experiências são vislumbres utilizando
somente os tópicos característicos daqueles juízos que estão apenas minimamente afastados
da passividade da experiência, como acontece aos juízos que atribuem qualidades
secundárias.42 Devemos entender o mundo experienciável como um tema do pensamento
ativo racionalmente constrangido por aquilo que a experiência revela. As capacidades
passivamente postas em operação na experiência só podem ser reconhecidas como
capacidades conceituais porque podemos fazer a idéia de espontaneidade encaixar-se ali. E
não faremos a idéia de espontaneidade encaixar-se de modo genuíno, caso tentemos
conceber uma prática de pensamento que se afasta dos casos efetivos de passividade da
experiência a uma distância suficiente apenas para contemplar mais casos da mesma coisa,
aí incluídos os casos meramente possíveis. Agindo desse modo, faremos jus no máximo à
idéia de uma seqüência ordenada de "experiências internas". Na verdade, não penso que
façamos jus nem mesmo a isto, já que não podemos atribuir sentido à "experiência interna"
na ausência de um mundo; mas apenas bem mais à frente (Quinta Conferência) ficará claro
por que digo isto – se é que isto ficará claro alguma vez. Neste momento, quero ressaltar
apenas o seguinte: se tentamos conceber um modo de experiência cromática, por exemplo,
assim tão tenuamente integrada numa prática de pensamento e juízo ativos, é misterioso
como aquilo que estamos concebendo poderia equivaler a uma "experiência externa" de

42
Este é um modo de expressar algo em que Gareth Evans insiste em "Things without the Mind – a
Commentary on Chapter Two of Strawson's Individuals", in Zak van Straaten, ed., Philosophical Subjects:
Essays Presented to P. F. Strawson (Clarendon Press, Oxford, 1980), pp. 76–116.
A INDELIMITAÇÃO DO CONCEITUAL 40
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cor – como a experiência cromática poderia ser experienciada como um traço de uma
realidade "externa".
O modo como a experiência está racionalmente associada à atividade de ajustar uma
visão de mundo fica ainda mais claro quando paramos de nos restringir a conceitos de
qualidades secundárias. É claro que outros conceitos também figuram na experiência. Seria
completamente errado supor que a experiência dá guarida apenas a aspectos da realidade
cujos conceitos estejam inextricavelmente ligados a conceitos de modos da aparência, tal
como no exemplo que nos é dado pelo vínculo entre aquilo que consideramos como sendo
vermelho e aquilo que consideramos como parecendo vermelho. (Como se outros aspectos
do mundo não nos pudessem vir à mente na experiência, mas apenas no pensamento
teórico.) As próprias experiências recebem do mundo pensável muito mais do que
qualidades fenomênicas naquele sentido.
Generalizada, a observação de Wittgenstein de que partimos afirma que o
pensamento não se detém num ponto anterior aos fatos. O mundo é abrangível pelo
pensamento. O que venho frisando é que isso constitui um pano de fundo sem o qual o
modo específico de a experiência apreender o mundo seria ininteligível. E a dependência
não se dá apenas nessa direção. Não podemos primeiro dar sentido ao fato de o mundo ser
pensável, abstração feita da experiência, para a partir de então dar sentido à experiência. O
que está em questão não poderia ser o mundo pensável, ou, dito de outra forma, nossa
imagem do equipamento do entendimento não poderia ser aquilo que ela precisa ser – a
imagem de um sistema de conceitos e concepções com um substancial conteúdo empírico –
se essa imagem já não incorporasse esse sistema enquanto o meio no interior do qual
exercitamos um pensamento ativo que reage racionalmente às prestações da experiência.
Pensamentos sem intuições seriam realmente vazios. Para compreender o conteúdo
empírico em geral, precisamos enxergá-lo no lugar dinâmico que ele ocupa numa atividade
autocrítica – a atividade pela qual buscamos compreender o mundo tal como ele se impõe
aos nossos sentidos.

5. Falar nas imposições feitas aos nossos sentidos não é um convite a supor que todo o
sistema dinâmico, esse meio no interior do qual nós pensamos, seja mantido em ordem por
ligações extraconceituais com algo exterior a ele. Dizer isto é simplesmente enfatizar mais
uma vez que não devemos imaginar uma fronteira externa em torno da esfera do conceitual,
com uma realidade fora dessa fronteira impondo-se para dentro do sistema. Quaisquer
imposições que cruzassem essa fronteira só poderiam ser causais, e não racionais. Esta é o
ponto em que Davidson está perfeitamente correto, e ele enfatiza que deveríamos nos
conformar com a afirmação de que, na experiência, o mundo exerce uma influência
meramente causal sobre nosso pensamento. No entanto, estou tentando descrever uma
forma de afirmar que, na experiência, o mundo exerce uma influência racional sobre nosso
pensamento. Isso exige que deletemos de nossa imagem a fronteira externa. As impressões
sobre nossos sentidos que mantêm o sistema dinâmico em movimento já vêm equipadas
com um sistema conceitual. Os fatos que se tornam (ou parecem tornar-se) manifestos para
nós nessas impressões não estão do outro lado de uma fronteira externa que circunscreve a
esfera conceitual, nem as imposições do mundo sobre nossa sensibilidade são passagens
para dentro dessa fronteira. Quero insistir em que podemos efetuar esse apagamento da
fronteira externa sem cairmos no idealismo, sem menosprezar a independência da
realidade.
A INDELIMITAÇÃO DO CONCEITUAL 41
_______________________________________________________

Sempre nos encontramos já mantendo contato com o mundo em atividades


conceituais no interior de um sistema dinâmico desse tipo. Qualquer entendimento desta
condição cuja esperança faça algum sentido deve vir do interior do sistema. Não pode se
tratar aqui de representar os ajustes do sistema ao mundo a partir de uma perspectiva
lateralizada, isto é, uma perspectiva na qual o sistema esteja circunscrito por uma fronteira
e o mundo esteja fora dessa fronteira. Esta é exatamente a forma que nossa imagem não
deve assumir.
Naturalmente, um outro ser pensante pode nos parecer opaco inicialmente. Pode
custar trabalho tornar disponíveis para nós os conteúdos conceituais dos contatos com o
mundo feitos por outra pessoa. E, nesse meio tempo, o mundo com o qual essa pessoa faz
contato certamente já é visível para nós. Nada do que eu disse é uma ameaça a este fato
óbvio. O que eu realmente quero excluir é a idéia de que, quando trabalhamos para fazer
com que uma outra pessoa seja inteligível, nós exploramos relações que podemos discernir
de antemão entre o mundo e algo visado de antemão enquanto um sistema de conceitos no
interior do qual essa outra pessoa pensa; e isso de tal modo que, à medida que conseguimos
sondar o conteúdo das capacidades conceituais inicialmente opacas operante no interior do
sistema, nós vamos acrescentando detalhes a uma figura lateralizada – aqui o sistema
conceitual, ali o mundo – que sempre esteve disponível, ainda que apenas em esboço
inicialmente. É forçosamente uma ilusão supor que esta idéia ajuste-se ao trabalho de
interpretação necessário para chegarmos a compreender certas pessoas, ou que uma
variante dessa idéia ajuste-se ao modo pelo qual adquirimos a capacidade de entender
outros falantes de nossa própria língua ao longo do processo usual de formação. Esta
imagem coloca o mundo fora de uma fronteira que circunda o sistema que nós
supostamente viemos a entender. Isto significa que essa imagem não pode representar
qualquer coisa genuinamente reconhecível como o entendimento de um conjunto de
conceitos dotados de substância empírica. Estes supostos conceitos poderiam ser associados
a impactos do mundo apenas causalmente, e não racionalmente (a tese de Davidson
novamente); venho tentando demonstrar que isto faz com que seu status de conceitos com
substância empírica, determinantes potenciais do conteúdo de juízos que dizem respeito ao
mundo empírico, seja um mistério. (Penso que estas considerações depõem contra certos
apelos à noção davidsoniana de interpretação radical, procedimento pelo qual alguém, a
partir do nada, chegaria a compreender uma língua estrangeira sem lançar mão de recursos
externos, tais como dicionários e coisas semelhantes.)43
A ilusão é insidiosa o bastante para nos fazer almejar uma compreensão lateralizada
de nosso próprio pensamento, imaginando ser esta a condição de uma pessoa que nos
compreende. Alguma imagem lateralizada deve ser inócua no caso de um ser pensante que
é opaco para nós, e pode então parecer óbvio que superar a opacidade seja preencher as
lacunas da imagem lateralizada, deixando sua orientação geral intocada. Isto, porém, é
forçosamente errôneo. O erro consiste em não dar o devido peso ao seguinte fato: na
imagem lateralizada inócua, a pessoa que ainda não entendemos figura enquanto ser
pensante apenas da maneira mais abstrata e indeterminada possível. Assim que o caráter
específico de seu pensamento começar a ganhar visibilidade para nós, já não estaremos
mais preenchendo lacunas numa imagem lateralizada de como seu pensamento está
relacionado ao mundo; estaremos começando a compartilhar com essa pessoa um ponto de
vista no interior de um sistema de conceitos, um ponto de vista a partir do qual podemos

43
Tenho em vista o uso que Rorty faz de Davidson em "Pragmatism, Davidson and Truth".
A INDELIMITAÇÃO DO CONCEITUAL 42
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juntar-nos a ela para lançarmos um olhar compartilhado sobre o mundo, sem a necessidade
de ultrapassar uma fronteira que encerra o sistema de conceitos.44

6. Tenho falado a respeito de como as capacidades conceituais postas em operação na


experiência estão integradas à espontaneidade como um todo. Sugeri que é essa integração
que faz com que um sujeito possa entender uma experiência "externa" como a consciência
de algo objetivo, de algo independente da própria experiência. O objeto de uma
experiência, o estado de coisas experienciado como ocorrente, é entendido como parte do
mundo pensável tomado como um todo. Como o todo é independente desta experiência
particular, podemos usar a ligação com um todo que, em sua maior parte, não foi
experienciado para fixar a posição do objeto desta experiência particular, perguntando
como teriam sido as coisas caso a experiência não tivesse ocorrido. Isto depende do modo
específico de os conceitos se integrarem à experiência em geral, modo que, conforme
afirmei, os conceitos de cor exemplificam num grau mínimo.
Em minha primeira conferência (§7), eu disse que o objeto de uma "experiência
interna" não possui esta independência com respeito à própria experiência. Um objeto da
"experiência interna", eu disse, não tem existência independentemente da consciência que a
experiência constitui.
Isto pode criar uma tensão em nosso entendimento da "experiência interna". É fácil
pensar que não poderíamos manter a alegação de que uma "experiência interna" não tem
um objeto independente da própria experiência, a menos que interpretássemos os objetos da
"experiência interna" como porções do Dado constitutivamente relacionados de alguma
forma às ocorrências de sua recepção, isto é, como "objetos privados". Se estivermos
persuadidos pela argumentação de Wittgenstein contra esta suposta concepção, sentiremo-
nos pressionados a negar que a "experiência interna" seja uma questão de estar consciente
de algo, tese que nos desobrigaria de nos preocuparmos com a relação entre eventos no
fluxo de consciência e os supostos objetos de tais eventos, mas que seria semelhante à
constrangedora estratégia filosófica de "fingir-se anestesiado";45 ou, então, mantendo a
consciência em jogo, renunciar à alegação de que um objeto da "experiência interna" não é
independente dessa experiência. Se adotarmos este último ponto de vista, a "experiência
interna" torna-se, no final das contas, a consciência de circunstâncias que ocorrem de um
modo ou de outro, independentemente de alguém ter consciência delas. Quando a
"experiência interna" relevante for uma sensação, circunstâncias corporais
convenientemente relacionadas a ela parecerão aptas a desempenhar esse papel. Isto
assimila a "experiência interna", na medida em que esta consiste na consciência de algo, à
"experiência externa"; a única diferença é que o objeto da experiência não está muito
distante. Todas estas posições são tão insatisfatórias, que podemos acabar simpatizando
com Wittgenstein no que diz respeito a uma tentação a que, segundo alguns comentadores,
ele teria algumas vezes sucumbido: a inclinação de negar que auto-atribuições de
sensações, etc., expressem juízos.
Penso que será útil neste ponto fazer uso do fato de que os conceitos da "experiência
externa" estão integrados à espontaneidade em geral de um modo bem específico. É
possível encontrar um outro modo específico de integração para os conceitos da
44
Pretendo que isto traga à lembrança o conceito de "fusão de horizontes" explorado por Hans-Georg
Gadamer em Truth and Method (Crossroad, New York, 1992), pp. 307–7.
45
Tomo esta expressão de A.J. Ayer, "The Concept of a Person", p. 101, in The Concept of a Person
and Other Essays (Macmillan, Londres, 1964), pp. 82–128. Ayer atribui a idéia a C.K. Ogden e I.A. Richards.
A INDELIMITAÇÃO DO CONCEITUAL 43
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"experiência interna". Até certo ponto, impressões da "experiência interna" são semelhantes
às impressões da "experiência externa". Todas elas são ocorrências passivas na quais as
capacidades conceituais são postas em operação. E não se trata de dizer que as capacidades
conceituais postas em operação na "experiência interna" não estão integradas à
espontaneidade em geral, ou, o que dá na mesma, que o objeto de uma "experiência
interna" não é compreendido de modo a posicioná-lo como um elemento possível de uma
visão do mundo. Isto simplesmente nos impediria de reconhecer aqui qualquer espécie de
capacidade conceitual. Mas o modo de integração neste caso não é do tipo que confere
independência aos objetos de que estamos conscientes.
Não poderíamos atribuir a um sujeito a capacidade de usar, digamos, o conceito de
dor em juízos da "experiência interna", se esse sujeito não compreendesse de que modo a
circunstância de que tratam aqueles juízos ajusta-se ao mundo como um todo. Isto requer
que o sujeito compreenda a circunstância de ele estar sentindo dores como um caso
particular de um tipo geral de estado de coisas – alguém estar sentindo dores. Deste modo,
ele deve compreender que a capacidade conceitual mobilizada nas "experiências internas"
relevantes não está restrita ao papel que desempenha na "experiência interna" e nos juízos
sobre a "experiência interna": essa capacidade não está restrita, portanto, ao papel que
desempenha na primeira pessoa do presente. 46 Isto resulta naquilo que podemos pensar
como sendo um caso-limite da estrutura consciência-objeto. Podemos entender uma
impressão do "sentido interno" na qual o conceito de dor, por exemplo, é posto em jogo
como uma consciência da circunstância de que o indivíduo está com dor. A estrutura
consciência-objeto está em perfeita ordem simplesmente porque o sujeito não concebe o
que vem a ser, para ele, estar com dor – a circunstância que é objeto de sua consciência –
exclusivamente em termos de um ponto de vista "interno", ou de primeira pessoa, voltado
para aquelas circunstâncias que constituem a consciência que ele tem da dor. Ele
compreende que a mesmíssima circunstância é pensável – por alguma outra pessoa, ou por
ele mesmo em outras ocasiões – de modo a não envolver um pensamento que esteja
expressando uma "experiência interna". Isto da à idéia dessa circunstância uma
independência com relação à consciência que o sujeito tem dela. Mas, embora sua
concepção da circunstância não seja conseguida exclusivamente por meio dessa consciência
que é a operação "interna" da sensibilidade, a circunstância não é nada senão a própria
operação da sensibilidade.
Vale a pena comparar os objetos da "experiência interna", dotados dessa
substancialidade limítrofe, com as qualidades secundárias da "experiência externa". Num
certo sentido, os objetos da "experiência interna" estão menos firmemente enraizados na
realidade objetiva que as qualidades secundárias. Num outro sentido, porém, são mais
independentes da experiência característica em termos da qual eles são identificados, sendo
assim mais substanciais. Por um lado, as qualidades secundárias estão aí
independentemente de qualquer experiência particular na qual sua presença seja revelada,
enquanto um objeto da "experiência interna" não é algo que esteja aí independentemente da
experiência. Por outro lado, no entanto, um sujeito compreende a especificidade sensorial
de uma qualidade secundária exclusivamente por meio daquilo que se sente ao experienciá-
la, muito embora um sujeito deva compreender que os objetos potenciais de sua

46
Cf. P.F. Strawson, Individuals, An Essay in Descriptive Metaphysics (Methuen, Londres, 1959),
cap. 3, bem como o uso feito por Gareth Evans das idéias de Strawson no cap. 7 de The Varieties of Reference
(Clarendon Press, Oxford, 1982).
A INDELIMITAÇÃO DO CONCEITUAL 44
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"experiência interna" são, por sua essência, também pensáveis de uma perspectiva diferente
daquele de quem os experiencia.47

7. Venho tentando demonstrar que, nos juízos de experiência, as capacidades conceituais


não se exercem sobre entregas não-conceituais da sensibilidade. As capacidades conceituais
já estão operantes nas próprias entregas da sensibilidade. Em minha primeira conferência
(§5), sugeri que é melhor desqualificarmos a questão sobre aquilo a que as capacidades
conceituais se aplicam na experiência. Se falarmos sobre um exercício de capacidades
conceituais neste contexto, pomos em perigo nossa capacidade de insistir na passividade da
experiência, e isto é essencial, caso queiramos sufocar nossa ânsia pelo Dado. No entanto,
ao desqualificar a questão sobre aquilo em que as capacidades conceituais são exercitadas,
não estou desqualificando a questão sobre aquilo a que os conteúdos conceituais
passivamente recebidos na experiência estão relacionados, ou dizem respeito. E a resposta
óbvia, quando a questão é feita nessa forma geral, é que eles dizem respeito ao mundo, tal
como esse mundo aparece ou se manifesta (aparentemente, ao menos) para o sujeito da
experiência. Não é preciso que isto desencadeie uma fobia do idealismo.
Ao rejeitarmos o Mito do Dado, rejeitamos a idéia de que, rastreando o fundamento
de um juízo, possamos, no final do processo, estar apontando para uma mera presença. Isto
pode gerar um certo desconforto. Pode parecer que estejamos nos privando de um papel
justificador que deve ser possível atribuir ao gesto de apontar, caso queiramos ser capazes
de nos assegurarmos de que nossa concepção do pensamento envolve um reconhecimento
suficiente da independência da realidade. Deve ser possível que as justificações dos juízos
incluam o gesto de apontar para certos aspectos do mundo, pois sem isto essas justificações
correriam o risco de parecer um círculo fechado no interior do qual nossos exercícios da
espontaneidade se movimentam sem sofrer atrito.
Agora, porém, que estamos precavidos contra a ambigüidade de expressões como
"fora da esfera do pensamento" (§3), ficou fácil lidar com esta situação. Estão em jogo duas
concepções diferentes do papel justificador do ato de apontar. Segundo a concepção que
estou recomendando, as justificações podem muito bem incluir um gesto de apontar
dirigido para fora da esfera do pensamento, na direção de aspectos do mundo. Nós só
caímos no Mito do Dado quando supomos que este gesto de apontar teria que violar uma
fronteira no interior da qual estaria a esfera dos conteúdos pensáveis.

8. As pessoas muitas vezes objetam a posições como esta que estou estimulando, dizendo
que elas incorporam um antropocentrismo arrogante, uma confiança infundada no fato de o
mundo estar completamente ao alcance de nossa capacidade de pensar. Isto tem um aspecto
no mínimo semelhante ao de uma acusação de idealismo. Por que deveríamos estar tão

47
A segunda metade deste contraste é um pouco frágil. Poderíamos dizer que a especificidade
sensorial de um objeto da "experiência interna" é igualmente compreendido exclusivamente por meio daquilo
que se sente ao experienciá-lo. Aquilo que apreendo no pensamento não pode ser a dor de outra pessoa, a
menos que eu tenha em mente aquilo que essa pessoa sente ao experienciá-la. Quando digo que a
circunstância de alguém sentir dor é pensável de um modo que não passa por suas "experiências internas" da
dor, não estou pretendendo sugerir que a circunstância é pensável fazendo-se abstração de sua "experiência
interna" da dor – em termos comportamentais, por exemplo. No caso das qualidades secundárias, porém, não
há nada paralelo a este jogo entre os pontos de vista da primeira e da terceira pessoa. Esta nota responde a um
comentário feito por Danielle Macbeth.
A INDELIMITAÇÃO DO CONCEITUAL 45
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seguros de nossa capacidade de abarcar o mundo, senão porque concebemos o mundo como
uma sombra ou reflexo de nosso pensamento?48
Mas a acusação de arrogância não iria aderir à posição que estou recomendando.
Em minha primeira conferência, eu disse que a faculdade da espontaneidade carrega
consigo uma obrigação permanente de refletir a respeito das credenciais dos vínculos
supostamente racionais que, num dado momento, alguém imagina estarem governando a
atividade de ajustar sua própria visão de mundo em resposta à experiência. Assegurar que
nossos conceitos e concepções empíricas estão à altura de certas exigências é um trabalho
constante e árduo para o entendimento. Ele requer paciência e algo semelhante à
humildade. Não há garantia de que o mundo esteja completamente ao alcance de um
sistema de conceitos e concepções, tal como estes se apresentam num dado momento de
seu desenvolvimento histórico. Não há garantia alguma – eis por que a obrigação de refletir
é permanente.
Tendemos a não aceitar que essa obrigação seja permanente. Imaginamos que a
obrigação não estará mais em vigor quando contemplarmos um estado de coisas que
mereça ser chamado de "o final da investigação". 49 Este seria um estado de coisas no qual a
investigação, aí incluída a investigação reflexiva a respeito das credenciais daquilo que
atualmente consideramos como sendo uma investigação, não é mais necessária. Alguém
poderia muito bem argumentar que, mesmo enquanto mero ideal da razão, esta concepção é
suspeita: o que pode ser ela, senão um reflexo vestigial da deslastreada confiança em
nossos poderes de que a objeção se queixa? Mas a idéia de um fim da investigação não faz
parte da posição que estou recomendando.

9. Nestas duas primeiras leituras, fiz uma apresentação da tendência que temos de oscilar
entre a admissão do Mito do Dado e a negação de que a experiência tenha alguma ligação
racional com o pensamento. Afirmei que, para escapar desta alternância, devemos sustentar
que, na experiência, a espontaneidade está inextricavelmente envolvida nas entregas feitas
pela receptividade. Não devemos supor que, ao cooperar com a espontaneidade, a
receptividade dê uma contribuição separável, mesmo que ela só fosse separável em
pensamento. Nesta conferência, discuti uma acusação de idealismo, no sentido de um
fracasso em se reconhecer que a realidade é independente do pensamento. Este é um bom
contexto para levantarmos a questão a respeito de como minha descrição da rota de fuga
está relacionada a Kant, cuja terminologia estou obviamente utilizando.
Kant atribui à receptividade uma contribuição separável em sua cooperação com a
espontaneidade? Tanto um "sim" quanto um "não" parecem ser respostas corretas.
Do ponto de vista da experiência, a resposta é "não". Se supomos a existência de
uma contribuição empiricamente separável vinda da receptividade, comprometemo-nos
com algo Dado na experiência que poderia constituir o fundamento extraconceitual último
para tudo que é conceitual, e um modo de expressar um dos pensamentos centrais de Kant é
dizer que esta idéia deve ser rejeitada. Para Kant, a experiência não absorve fundamentos

48
Sobre este tipo de acusação de idealismo, cf. Thomas Nagel, The View from Nowhere (Oxford
University Press, New York, 1986), cap. 6.
49
A idéia está implícita em observações bastante conhecidas de C.S. Peirce, como esta: "A opinião
que está fadada a ser finalmente aceita por todos que investigam é o aquilo que chamamos de verdade, e o
objeto representado nesta opinião é o real." "How to Make Our Ideas Clear" in Writings of Charles S. Peirce,
vol. 3 (Indiana University Press, Bloomington, 1986), pp. 257–76; originalmente publicado em Popular
Science Monthly 12 (janeiro de 1878), pp. 286–302.
A INDELIMITAÇÃO DO CONCEITUAL 46
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últimos aos quais pudéssemos apelar apontando para fora da esfera do contéudo pensável.
Na experiência, nós absorvemos, por meio de impactos sobre os sentidos, elementos da
realidade que não estão de modo algum fora da esfera do contéudo pensável.
Mas Kant também tem um ponto de vista transcendental, e da perspectiva
perspectiva transcendental parece haver, de fato, uma contribuição isolável vinda da
receptividade. Na perspectiva transcendental, a receptividade figura como uma
suscetibilidade ao impacto de uma realidade supra-sensível, realidade da qual se espera que
seja independente de nossa atividade conceitual num sentido mais forte do que qualquer um
que convenha ao mundo empírico ordinário.
Se nos restringimos ao ponto de vista da própria experiência, o que encontramos em
Kant é precisamente a imagem que venho recomendando: uma concepção na qual a
realidade não está localizada fora da fronteira que circunda a esfera conceitual. Nâo é por
acaso que consego expressar em termos kantianos aquilo que estou aconselhando. O fato de
a experiência envolver receptividade assegura a coerção necessária vinda de fora do
pensamento e do juízo. Como, no entanto, as entregas da receptividade já utilizam
capacidades pertencentes à espontaneidade, podemos coerentemente supor que a coerção é
racional. É assim que nossa imagem evita a armadilha do Dado.
Apesar disto, a perspectiva transcendental embute esta imagem potencialmente
libertadora numa versão particular daquela perspectiva lateralizada que mencionei mais
acima (§5), com o espaço dos conceitos circunscrito, e algo – nesta versão, não mais o
mundo empírico ordinário, mas o mundo supra-sensível –posto para fora de suas fronteiras
externas. Nesse arcabouço, o pensamento libertador não pode assumir a forma adequada. A
partir do momento em que o supra-sensível entra em cena, sua radical independência de
nosso pensamento tende a apresentar-se simplesmente como a independência que qualquer
realidade genuína deve possuir. Comparativamente, a reivindicação de independência do
mundo empírico acaba parecendo fraudulenta. Somos instados a supor que a estrutura
fundamental do mundo empírico seja, de algum modo, um produto da subjetividade em sua
interação com uma realidade supra-sensível que, assim que passa a fazer parte do quadro,
impõe-se para nós como a sede da verdadeira objetividade. Mas como pode o mundo
empírico ser genuinamente independente de nós, se somos em parte responsáveis por sua
estrutura fundamental? De nada adiantará nos dizerem que é só transcendentalmente
falando que a estrutura fundamental do mundo empírico é de nossa lavra.50
Atribuir à experiência a passividade empírica ordinária já satisfaz nossa
necessidade, pois isso assegura que quando invocamos a espontaneidade associada ao
emprego de conceitos no pensamento empírico, não nos condenamos a representar o
pensamento empírico livre de coerções racionais, girando sem atrito no vazio. De qualquer
forma, a idéia de uma passividade transcendental é na melhor das hipóteses problemática, e
de um modo bem conhecido. Segundo o próprio Kant, devemos entender a causalidade
como algo que opera no interior do mundo empírico. A adição desta idéia problemática
apenas debilita a confiança que a passividade empírica poderia proporcionar.
Kant fica a um passo de encontrar uma saída satisfatória da oscilação. Ele indica o
modo de desfazer a confusão central do Mito do Dado. Segundo o Mito do Dado, a
obrigação de ficarmos responsavelmente atentos aos ditames da razão se interrompe
quando chegamos aos derradeiros pontos de contato entre pensamento e realidade; o Dado
50
Para uma expressão de insatifação que segue esta mesma linha de raciocínio, veja-se a intervenção
de Barry Stroud no simpósio "The Disappearing We" (comentando um texto de Jonathan Lear), Proceedings
of the Aristotelian Society, vol. 58 (1984), pp. 243–58.
A INDELIMITAÇÃO DO CONCEITUAL 47
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é um efeito bruto do mundo, e não algo justificado por ele. Na verdade, porém, a obrigação
deve vigorar ao longo de todo o percurso que conduz à realidade. O próprio mundo deve
exercer uma coerção racional sobre o nosso pensamento. Se supusermos que a
responsabilidade racional cessa no ponto mais afastado do espaço das razões, mas ainda
anterior ao mundo, nossa imagem já não estará afigurando nada que possa ser reconhecido
como juízo empírico; teremos suprimido completamente o conteúdo empírico. Não fosse
pelo arcabouço transcendental, poderíamos atribuir a Kant uma clara formulação desta
idéia. Foi assim que interpretei sua alegação quase explícita de que os pensamentos seriam
vazios sem intuições.
A idéia de uma faculdade da espontaneidade é a idéia de algo que nos capacita a ter
responsabilidade por nossas vidas. Kant mostra o caminho que leva a uma posição na qual
podemos aplicar satisfatoriamente esta idéia ao pensamento empírico: podemos afirmar que
a investigação empírica é uma região de nossas vidas na qual exercemos uma liberdade
responsável, sem deixar que este pensamento ameace tirar de nossas mãos a exigência de
que o pensamento empírico esteja sob a coerção do próprio mundo. Mas o arcabouço
transcendental nos obriga a enfraquecer nossas afirmações. Transcendentalmente falando,
nossa liberdade responsável no âmbito do pensamento empírico parace ficar aquém de uma
liberdade genuína. É como se Kant estivesse dizendo que, embora uma exculpação não
possa fazer as vezes de uma justificativa, e embora empiricamente falando possamos ter
justificativas para nossos juízos empíricos, o melhor que podemos obter para os juízos
empíricos, em termos transcendentais, são exculpações.
Este é um aspecto profundamente insatisfatório da filosofia de Kant. 51 Aquilo que
falei até aqui sobre isso é excessivamente simples, em especial quando dei a impressão de
que não seria complicado extirpar o arcabouço transcendental. Falarei um pouco mais a
respeito mais adiante (Quinta Conferência).
Penso ser necessário admitir que o efeito do arcabouço transcendental é tornar a
filosofia de Kant idealista no sentido que venho considerando. Isto vai de encontro às
intenções de Kant, mas, a despeito de suas enfáticas negativas, o efeito de sua filosofia é
um menosprezo pela independência da realidade à qual nossos sentidos nos dão acesso. A
responsabilidade por isto cabe precisamente àquele aspecto da filosofia de Kant que, aos
olhos de alguns de seus sucessores, aparecia como uma traição ao idealismo: o fato de ele
51
Compare-se isto com Henry E. Allison, Kant's Transcendental Idealism: An Interpretation and
Defense (Yale University Press, New Haven, 1983). Allison defende o idealismo transcendental partindo da
hipótese de que ele seria a única alternativa a um fenomenalismo psicologista. Seu pensamento central está
resumido na seguinte passagem (p. 13): "Na verdade, pode-se afirmar que o principal problema levantado
pela Crítica é o de saber se é possível isolar um conjunto de condições de possibilidade do conhecimento das
coisas … que possamos distinguir das condições de possibilidade das próprias coisas. Como o primeiro tipo
de condição equivaleria a uma condição das coisas tais como elas aparecem, e o segundo a uma condição das
coisas tais como elas são em si mesmas, uma resposta afirmativa a esta questão implica na aceitação da
distinção transcendental [entre coisas tais como elas aparecem e coisas tais como elas são em si mesmas] e,
com isso, na aceitação do idealismo. Se, por outro lado, a questão é respondida negativamente, como ocorre
na versão usual, então quaisquer condições supostamente 'subjetivas' serão inevitavelmente interpretadas em
termos psicológicos. A leitura subjetivista, psicologista, fenomenalista de Kant, que é característica da versão
usual, é assim uma conseqüência direta da resposta negativa que ela dá a esta questão." Concordo que não
deveríamos encontrar um psicologismo subjetivista em Kant. (No entanto, o representante escolhido por
Allison da "versão usual", que vê em Kant um psicologismo fenomenalista, é The Bounds of Sense, de
Strawson, e essa leitura do livro de Strawson me parece absurda.) Não concordo que uma resposta negativa à
questão de Allison implique inevitavelmente no psicologismo. Isto tornaria incompreensíveis as respostas que
Fichte e, de modo especial, Hegel deram a Kant.
A INDELIMITAÇÃO DO CONCEITUAL 48
_______________________________________________________

reconhecer uma realidade fora da esfera do conceitual. Aqueles sucessores afirmavam que
devemos descartar o supra-sensível se quisermos alcançar um idealismo consistente. Na
verdade, esse movimento libera o insight de Kant, permitindo-lhe proteger o respeito do
senso comum pela independência do mundo ordinário.
Como eu disse, se abstrairmos o papel do supra-sensível no pensamento de Kant, o
que nos resta é um quadro no qual a realidade não está localizada fora de uma fronteira que
circunscreve o conceitual. Aquilo em que tenho insistido aqui é que este quadro não
menospreza a independência da realidade. O quadro não ofende o senso comum; pelo
contrário, ele o protege.
A rejeição da idéia de que o reino conceitual tenha uma fronteira externa é central
para o Idealismo Absoluto, e chegamos a um ponto em que poderíamos começar a
domesticar a retórica daquela filosofia. Considere, por exemplo, esta observação de Hegel:
"Ao pensar, eu sou livre, pois não estou em um outro."52 Isto expressa exatamente a
imagem que venho usando, na qual o conceitual é indelimitado; não há nada fora dele. O
ponto é o mesmo daquela observação de Wittgenstein que discuti durante algum tempo
(§§3 e 4): "Nós – e nosso querer dizer – não nos detemos em algum lugar aquém do fato".
Gostaria de levar isto mais adiante, mas por várias razões, das quais o fato de eu já ter
falado o suficiente para uma conferência talvez seja a menos importante, não posso fazer
isso agora.

10. Tenho afirmado que o conteúdo da experiência é conceitual, e muitas pessoas acham
que isso não pode estar correto. Em minha próxima conferência, discutirei esta questão.

52
Phenomenology of Spirit (Oxford University Press, Oxford, 1977), §197 (p. 120). Robert B.
Pippin, na p. 164 de Hegel's Idealism: The Satisfaction of Self-Consciousness (Cambridge University Press,
Cambridge, 1989) lê esta observação como sendo, antes de mais nada, uma manifestação de estoicismo,
embora ele diga que "ela também é claramente indicativa da posição em direção à qual Hegel está
avançando". É desta última interpretação que eu necessito, e me parece que ela é a primeira coisa que deveria
ser dita a respeito daquela observação. Os parágrafos iniciais de uma seção da Fenomenologia geralmente
prefiguram "a posição em direção à qual Hegel está avançando". É só mais adiante, na mesma seção, que uma
insuficiência vem à luz. Esta observação é feita na seção intitulada "Estoicismo", mas ela pertence à fase
daquela seção que marca o progresso, anteriormente à emergência de algo que mantenha o pêndulo dialético
oscilando.
CONTEÚDO NÃO-CONCEITUAL 49
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TERCEIRA CONFERÊNCIA
CONTEÚDO NÃO-CONCEITUAL

1. Venho falando a respeito de um par de armadilhas opostas: por um lado, um coerentismo


que não reconhece uma coerção racional externa sobre o pensamento e, portanto, eu alego,
não pode dar lugar de modo genuíno a qualquer tipo de conteúdo empírico; por outro lado,
um recuo para o Mito do Dado, que oferece no máximo exculpações, ali onde precisamos
de justificações. Tentei persuadi-los de que a maneira de parar de oscilar entre estas duas
armadilhas é conceber o conhecimento empírico como uma cooperação entre a
sensibilidade e o entendimento, como fez Kant. Para evitarmos que se torne ininteligível o
modo de as entregas feitas pela sensibilidade poderem estar em relações fundamentadoras
com exercícios paradigmáticos do pensamento, tais como juízos e crenças, devemos
conceber esta cooperação de um modo absolutamente especial: devemos reiterar que o
entendimento já está inextricavelmente implicado nas próprias entregas da sensibilidade.
Experiências são impressões que o mundo causa sobre nossos sentidos, são produtos da
receptividade; mas aquelas impressões já são dotadas, elas mesmas, de conteúdo conceitual.
A alegação feita assim, sem mais preâmbulos, de que o conteúdo perceptivo da
experiência é conceitual deve ter provocado um franzir de cenhos desde minha primeira
conferência. Irei defendê-la aqui contra algumas dúvidas.
Antes de começar, deixem-me lembrá-los de que a questão não pode ser
neutralizada como se ela girasse em torno do uso feito por mim de uma terminologia
idiossincrática – como se eu estivesse apenas afixando o rótulo "conceitual" sobre o
conteúdo da experiência, apesar de encarar o conteúdo da experiência do mesmíssimo
modo que meus oponentes, quando dizem que este conteúdo não é conceitual, ou que pelo
menos não é completamente conceitual. É essencial à imagem que estou recomendando que
a experiência tenha o conteúdo que tem em virtude da entrada em operação, na
sensibilidade, de capacidades que são de maneira genuína elementos uma faculdade de
espontaneidade. Estas mesmas capacidades também devem poder ser exercitadas nos
juízos, e isto exige que elas estejam racionalmente vinculadas a todo um sistema de
conceitos e concepções no interior do qual aquele que possui estes conceitos e concepções
dedica-se a uma atividade contínua de ajustar seu pensamento à experiência. Na verdade,
pode haver outros elementos no sistema que não sejam capazes de figurar na experiência de
maneira alguma. Em minha última conferência, afirmei que é apenas porque a experiência
envolve capacidades pertencentes à espontaneidade que podemos entender a experiência
como consciência, ou aparente consciência, de aspectos do mundo. O modo como estou
explorando a idéia kantiana de espontaneidade obriga-me a dar uma interpretação exigente
a palavras como "conceito" e "conceitual". É essencial às capacidades conceituais, no
sentido exigente do termo, que elas possam ser exploradas no pensamento ativo, no
pensamento que está aberto a uma reflexão sobre sua próprias credenciais racionais. 53
Quando digo que o conteúdo da experiência é conceitual, é isso que entendo por
"conceitual".

53
Vale a pena notar, já que isso ajuda a ressaltar o quanto é exigente a concepção relevante do
conceitual, que esta abertura à reflexão implica em autoconsciência da parte do sujeito pensante. Neste ponto,
porém, relegarei a observação a esta nota de rodapé, já que é só mais tarde (Quinta Conferência) que as
questões referentes à autoconsciência virão ao proscênio.
CONTEÚDO NÃO-CONCEITUAL 50
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2. Para dar um foco à discussão, passarei a examinar aquilo que Gareth Evans diz sobre esta
questão.
Evans faz a alegação igualmente não-qualificada de que o conteúdo da experiência
perceptiva é não-conceitual. Segundo Evans, o conteúdo conceitual só entra em jogo, no
contexto da percepção, nos juízos baseados na experiência. Quando formamos um juízo
com base na experiência, movemo-nos do conteúdo não-conceitual para o conteúdo
conceitual.
Os estados informacionais que um sujeito adquire por meio da percepção são
não-conceituais, ou não-conceitualizados. Juízos baseados em tais estados
envolvem necessariamente conceitualização: quando nos movemos de uma
experiência perceptiva para um juízo sobre o mundo (usualmente exprimível em
alguma forma verbal), estamos exercitando habilidades conceituais básicas. … O
processo de conceitualização ou juízo leva o sujeito a se deslocar de um tipo de
estado informacional (que possui um conteúdo de um certo tipo, isto é, um conteúdo
não-conceitual) para um outro tipo de estado cognitivo (que possui um conteúdo de
um tipo diferente, isto é, um conteúdo conceitual).54
Estes estados informacionais de tipo não-conceitual resultam do desempenho pelas
percepções de seu papel naquilo que Evans chama de "o sistema informacional" (p. 122). O
sistema informacional é o sistema de capacidades que exercitamos quando reunimos
informações a respeito do mundo usando nossos sentidos (percepção), recebemos
informações dos outros por meio da comunicação (testemunho) e retemos informações ao
longo do tempo (memória).55
É fundamental para a concepção de Evans que "as operações do sistema
informacional" sejam "mais primitivas" que as habilidades conceituais racionalmente
interconectadas que abrem espaço para a noção de juízo e para uma noção estrita de crença
(p. 124).56 Eis como expressar este pensamento nos termos que venho utilizando: as
operações do sistema operacional são mais primitivas que as operações da espontaneidade.
O ponto pode ser estabelecido diretamente no caso da percepção e da memória que, como
diz Evans, "nós compartilhamos com os outros animais" (p. 124), isto é, com criaturas às
quais a idéia de espontaneidade não tem nenhuma aderência. Surpreendentemente, ele
insiste na tese mesmo no caso dos testemunhos: "o mecanismo por meio do qual obtemos
informações dos outros … já está operante num estágio do desenvolvimento intelectual
humano que antecede a aplicabilidade da noção mais sofisticada" (p. 124). O que ele quer
dizer neste ponto é que, no caso de boa parte dos conhecimentos adquiridos por uma
exposição a situações em que tais conhecimentos foram asseridos, a pessoa que os adquiriu
não tinha condições de entender tais asserções na ocasião em que foram feitas.
Evans identifica, então, as experiências perceptivas como estados do sistema
informacional que possuem um conteúdo não-conceitual.57 Segundo Evans, as capacidades
conceituais de uma pessoa são postas em operação pela primeira vez apenas quando ela faz
54
The Varieties of Reference, p. 227 (grifos conforme o original). A menos que digamos o contrário,
todas as citações de Evans feitas nesta conferência serão extraídas desta obra. Gostaria de explicitar desde
já minha convicção de que a tese que me leva a polemizar com Evans não é essencial para as
principais teses defendidas no livro tão profundamente importante que ele escreveu. Retornarei às teses
principais de Evans em minha Quinta Conferência (§6).
55
Cf. pp. 122–9.
56
Falarei um pouco a respeito da noção estrita de crença no §6.
57
Seria fácil complicar a abordagem de Evans de modo a acomodar o fato de que o termo
"experiência" pode aplicar-se tanto a ocorrências quanto a estados.
CONTEÚDO NÃO-CONCEITUAL 51
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um juízo de experiência, e nesse momento uma nova espécie de conteúdo entra em cena.
Compare isto com a abordagem que eu aconselho. Segundo a imagem que eu recomendo, o
conteúdo de uma experiência perceptiva já é conceitual. Um juízo de experiência não
introduz um novo tipo de conteúdo, mas simplesmente endossa o conteúdo conceitual, ou
parte dele, já possuído pela experiência na qual o juízo se fundamenta.58
É importante não conceber erroneamente esta divergência. Na opinião de Evans, as
experiências são estados do sistema informacional e, nessa condição, elas possuem um
conteúdo que é não-conceitual. Mas ele não identifica a idéia de uma experiência com a
idéia de um estado informacional perceptivo produzido independentemente da
espontaneidade pelas operações do sistema informacional. Pelo contrário, ele insiste em
que os estados informacionais perceptivos, com seu conteúdo não-conceitual, "ipso facto
não são experiências, isto é, estados de um sujeito consciente" (p. 157). Segundo Evans, um
estado do sistema informacional perceptivo só deve ser considerado uma experiência caso
seu conteúdo não-conceitual estiver disponível como "input para um sistema pensante,
aplicador de conceitos e raciocinante" (p. 158), ou seja, caso seu conteúdo não-conceitual
estiver disponível para uma faculdade de espontaneidade capaz de fazer ou se recusar a
fazer juízos de experiência com base no estado perceptivo. Deste modo, um estado
informacional não-conceitual produzido pelo elemento perceptivo do sistema informacional
numa criatura que carece de uma faculdade de espontaneidade não é considerado uma
experiência perceptiva, muito embora um estado que consideremos uma experiência
perceptiva, por estar disponível para a espontaneidade, seja em si mesmo apenas um estado
informacional não-conceitual, dotado de seu conteúdo não-conceitual independentemente
da entrada em cena da faculdade da espontaneidade.

3. Quase ao final de minha primeira conferência (§7), mencionei uma dificuldade que seria
natural sentirmos quando nos pomos a aplicar à "experiência interna" a imagem que venho
recomendando da experiência em geral, imagem na qual as experiências são estados ou
ocorrências nas quais as capacidades conceituais são postas em operação. Venho afirmando
que é essencial às capacidades conceituais que elas pertençam à espontaneidade, isto é, a
uma faculdade que exercitamos no controle ativamente autocrítico daquilo que pensamos, à
luz das entregas feitas pela experiência. Mas isto significa que não podemos atribuir as
capacidades conceituais que fariam parte da abordagem da "experiência interna" que
endossei – a capacidade, por exemplo, de usar o conceito de dor – a muitas criaturas às
quais seria um absurdo negar a capacidade de sentir dor. O que quer que seja verdadeiro a
respeito daquilo que acontece a uma criatura desprovida de espontaneidade quando ela
sente dor, isso que acontece não pode ser a ocorrência de uma "experiência interna", caso
aceitemos a imagem da experiência que venho recomendando.
Obviamente, isto não é exclusividade da "experiência interna"; aplica-se à
"experiência externa" de maneira semelhante. Uma "experiência externa" que tenha o

58
Repare que a fundamentação não precisa depender de um passo inferencial que nos leve de um
conteúdo para outro. O juízo de que as coisas são de tal e tal modo pode fundamentar-se numa aparência
perceptiva de que as coisas são de tal e tal modo. Isto não destrói a riqueza característica da experiência
(especialmente da experiência visual). Um típico juízo de experiência efetua uma seleção no conteúdo da
experiência em que ele se baseia. A experiência que fundamenta o juízo de que as coisas são de tal e tal modo
não precisa ser esgotada ao nos fornecer a aparência de que as coisas são de tal e tal modo. Evans não crê que
os juízos efetuem uma seleção a partir de um rico estoque de conteúdos que sejam, desde logo, conceituais.
No juízo, segundo ele, temos uma transição de um tipo de conteúdo para outro.
CONTEÚDO NÃO-CONCEITUAL 52
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propósito de revelar que as coisas são de tal e tal modo é, segundo a abordagem que estou
recomendando, um estado ou ocorrência que envolve a operação de capacidades
conceituais que seriam ativamente exploradas ao julgarmos que as coisas são de tal e tal
modo. Neste caso, "experiência externa" é algo que só pode ser atribuído a uma criatura
capaz de pensar ativamente. Temos, portanto, um caso paralelo ao anterior. Sou obrigado a
negar a algumas criaturas a "experiência externa" de aspectos de seu meio ambiente, apesar
de ser absurdo negar que elas sejam perceptualmente sensíveis a tais aspectos. Seres
pensantes ativos e capazes de autocrítica não são as únicas criaturas perceptivamente
sensíveis a aspectos de seu meio ambiente.
No ponto em que estamos, estou simplesmente reconhecendo este duplo
desconforto, e não procurando aliviá-lo. Mais adiante, tentarei fazer isto (Sexta
Conferência). Uma objeção direta seria afirmar que a noção de experiência precisa ser
completamente separada de qualquer coisa que esteja próxima do conceito de
espontaneidade. Neste caso, não seríamos obrigados a ter histórias diferentes para contar a
respeito das vidas sensíveis de animais racionais e não-racionais. Tudo o que desejo
estabelecer neste momento é que uma pessoa que se sinta atraída por esta linha de
raciocínio não pode tomar Evans facilmente como aliado. Tanto na sua imagem quanto na
minha, o conceito de experiência possui um uso restrito, governado por um vínculo de tipo
genericamente kantiano com aquilo que, no final das contas, é a idéia de espontaneidade.

4. Venho me preocupando nestas conferências com uma permanente ameaça de sermos


tomados por uma certa angústia filosófica. Se pusermos o foco na liberdade que a noção de
espontaneidade implica, aquilo que pretendia ser uma imagem do pensamento com
conteúdo empírico ameaça degenerar-se na imagem de um giro em falso no vazio. Para
superar isso, precisamos reconhecer uma coerção externa sobre o exercício da
espontaneidade no pensamento empírico. Neste ponto, porém, chegamos ao outro lado
daquela dificuldade permanente: devemos evitar conceber a coerção externa de um modo
que só a tornasse capaz de, na melhor das hipóteses, fornecer exculpações, ali onde
precisaríamos de justificativas. Alguém pode simplesmente recusar-se a enfrentar esta
dificuldade, recusando-se a abrir qualquer espaço, numa explicação da experiência, a
qualquer coisa semelhante à idéia de espontaneidade. Como ressaltei há pouco, no entanto,
não foi este o caminho tomado por Evans.
Para reconhecer a necessária coerção externa, devemos apelar à receptividade.
Insisti em que a maneira de introduzir a receptividade sem meramente empurrar a gangorra
de volta para o Mito do Dado seria a seguinte: não devemos supor que a receptividade dê
uma contribuição separável (nocionamente, que seja) em sua cooperação com a
espontaneidade.
Evans não respeita este preceito. Na explicação que Evans dá para a experiência, a
receptividade participa na condição de elemento perceptivo do sistema informacional. Sua
idéia é que o sistema perceptivo produz seus estados portadores de conteúdo
independentemente de quaisquer operações da espontaneidade. É bem verdade que esses
estados portadores de conteúdo contam como experiências (no sentido restrito, de sabor
kantiano, empregado por Evans) apenas em virtude do fato de estarem disponíveis para a
espontaneidade. Mas a espontaneidade não influi na determinação de seu conteúdo. Deste
modo, as operações independentes do sistema informacional figuram na abordagem de
Evans como uma contribuição separável feita pela receptividade em sua cooperação com a
espontaneidade.
CONTEÚDO NÃO-CONCEITUAL 53
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Neste caso, a maneira pela qual as experiências estão relacionadas a capacidades


conceituais no quadro traçado por Evans é exatamente a maneira pela qual as intuições
estão relacionadas a conceitos no quadro do conhecimento empírico que Kant, tal como eu
o leio, apresenta como insustentável, pelo menos enquanto um quadro do modo como as
coisas se passam do ponto de vista da experiência. É bem verdade que Kant tenta conceder
uma espécie de correção para um quadro com esses contornos no nível transcendental, mas
a explicação da experiência proposta por Evans não pretende ser apenas
transcendentalmente correta, seja lá qual for o significado dessa expressão. Portanto, a
menos que haja algo de errado nas considerações kantianas que detalhei em minhas duas
primeiras conferências, elas devem demolir a abordagem da experiência feita por Evans.
Pode ser difícil acreditar que a visão oferecida por Evans da experiência seja uma
versão do Mito do Dado. A abordagem suavemente naturalista que Evans nos oferece dos
estados informacionais perceptivos não guarda nenhum sinal das obsessões epistemológicas
que normalmente operam na motivação do Mito do Dado. O que usualmente subjaz ao
Mito é a preocupação de que o envolvimento da espontaneidade em nossa imagem do
pensamento empírico faça parecer misterioso o fato de estarmos representando algo que
mantém contato com a realidade. Não há nenhum sinal dessa preocupação em Evans.
Além disso, parece haver um problema mais específico na atribuição do Mito do
Dado a Evans. Se as experiências, como Evans as concebe, são intuições sem conceitos,
num sentido que tornaria sua posição vulnerável ao ataque feito por Kant ao Mito do Dado,
então essas intuições deveriam ser cegas. Mas Evans tem o cuidado de dotar as
experiências de conteúdo representacional, independentemente, inclusive, daquela
disponibilidade para a espontaneidade em virtude da qual elas contam como experiências.
O conteúdo é com certeza não-conceitual, mas alguém poderia perguntar como isso teria a
capacidade de justificar a imagem da cegueira. Certamente, alguém poderia pensar, algo
que é cego deveria ser totalmente desprovido de conteúdo representacional.
A estrutura do posicionamento de Evans pode ser comparada à estrutura de um
posicionamento que examinei em minha primeira conferência (§5), quando eu tentava
evitar uma interpretação indevida daquilo que eu vinha recomendando. Tal posicionamento
dava a impressão de aceitar que as capacidades conceituais são postas em operação na
experiência. No entanto, tratava estados e ocorrências descritos nesses termos como se eles
estivessem separados da espontaneidade. O propósito era assegurar que eles não estivessem
sujeitos aos efeitos potencialmente debilitantes provocados pela liberdade que a idéia de
espontaneidade implica.
O que eu disse a respeito daquele posicionamento foi que, no contexto do
insulamento em relação à espontaneidade, falar em conceitos é apenas um jogo de palavras.
O que se tem em vista ao afirmar que a experiência envolve capacidades conceituais é a
possibilidade de atribuir às experiências uma influência racional sobre o pensamento
empírico. Mas o que se tem em vista com a estratégia de insulamento é confinar a
espontaneidade no interior de fronteiras que deixem as experiências do lado de fora. Isto
significa que as relações supostamente racionais entre experiências (que esta posição não
concebe como operações da espontaneidade) e juízos (que ela concebe como operações da
espontaneidade) não podem pertencer, elas próprias, ao escopo da espontaneidade e serem
passíveis de revisão, caso tal revisão viesse a ser recomendada pelo auto-esquadrinhamento
do pensamento ativo. Isto significa que não podemos genuinamente reconhecer tais
relações como potencialmente constituidoras de razão. Não podemos impor limites ao
auto-esquadrinhamento da razão. Se quisermos ser capazes de afirmar que as operações das
CONTEÚDO NÃO-CONCEITUAL 54
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capacidades conceituais na experiência impõem-se racionalmente ao nosso pensamento (e


assim devemos proceder, caso queiramos que elas possam ser reconhecidas como
operações de capacidades conceituais em geral), devemos reconhecer que aquelas relações
racionais entram no escopo da espontaneidade. E é difícil perceber como poderíamos
reconhecer isto se, ao mesmo tempo, nos recusamos a aceitar que os estados e ocorrências
perceptivos que estão numa das pontas dessas relações envolvem capacidades próprias de
uma espontaneidade operante.
A abordagem da experiência feita por Evans não é culpada dessa rotulagem
fraudulenta, já que ele mantém os conceitos fora do conteúdo da experiência. Mas a palavra
"contéudo" desempenha, na abordagem de Evans, exatamente o mesmo papel que, na
posição que vínhamos examinando, era desempenhado pelo uso fraudulento do termo
"conceitual", isto é, aquela palavra faz parecer que somos capazes de reconhecer relações
racionais entre experiências e juízos, de tal modo que podemos dizer, como faz Evans, que
juízos de experiência são "baseados" na experiência (p. 227), ainda que estas relações
devam cruzar a fronteira que circunscreve a espontaneidade. O mesmo deve continuar
valendo aqui. Se estas relações devem ser genuinamente reconhecíveis enquanto
constituidoras de razões, não podemos confinar a espontaneidade numa fronteira que essas
relações devem cruzar. As próprias relações devem ser capazes submeter-se ao
auto-esquadrinhamento do pensamento ativo.
A posição de Evans tem uma aparência enganadoramente inofensiva. Pode parecer
óbvio que o possuidor de um certo conteúdo representacional, seja de caráter conceitual ou
não, é capaz de manter relações racionais, tais como a implicação ou a atribuição de
probabilidade, com o possuidor de um outro conteúdo. Com a espontaneidade confinada,
porém, perdemos o direito de concluir despreocupadamente que um termo dessa relação
possa ser a razão de alguém para o outro. Se a experiência é retratada como um input que a
espontaneidade recebe de fora, então faremos novamente uma rotulagem fraudulenta ao
usarmos a palavra "conteúdo" para designar algo que podemos, apesar de tudo, supor que a
experiência tenha, de tal modo que as relações contituidoras de razão pudessem se dar de
modo inteligível entre experiências e juízos. O rótulo só serve para mascarar o fato de que
as relações entre experiências e juízos foram concebidas para fazer frente a duas demandas
incompatíveis: permitir que as experiências sejam razões para juízos e permanecer fora do
alcance da investigação racional.59
Estou afirmando que, embora Evans tenha o cuidado de reconhecer a presença de
conteúdo nas experiências, isto não as exime de serem intuições num sentido que nos
autoriza a aplicar-lhes o refrão kantiano: como não têm conceitos, elas são cegas. E, na
verdade, é possível interpretar minha afirmação de tal modo que Evans não teria objeções
contra ela. Foi um erro sugerir que as experiências, como ele as concebe, jamais poderiam
ser cegas por estarem dotadas de conteúdo. Faz toda a diferença que esse conteúdo deva ser
não-conceitual.
Como poderíamos trocar em miúdos essa imagem da cegueira? Dizer que uma
experiência não é cega é dizer que ela é inteligível para o seu sujeito enquanto pretenção a
59
Por que não podemos reconhecer que as relações entre experiência e juízo devem ser racionais, e
devem estar, portanto, no âmbito da espontaneidade, sem nos comprometermos com isso a fazer concessões a
respeito da própria experiência? Afirmei que é difícil perceber de que modo esta combinação poderia
funcionar, mas na medida em que a posição de Evans parecer ingênua, aquela dificuldade parecerá
desaparecer. Ao invés de alterar radicalmente a forma como esta conferência foi originalmente apresentada,
deixarei a discussão deste tema para o Posfácio.
CONTEÚDO NÃO-CONCEITUAL 55
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ser consciência de um aspecto da realidade objetiva: enquanto algo que se pareça com um
vislumbre do mundo. O próprio Evans insiste em dizer que só podemos afirmar que a
experiência não é cega se tivermos como pano de fundo um entendimento do modo como
percepção e realidade estão relacionados – algo que seja suficiente para sustentar a idéia de
que o mundo se revela para um sujeito percipiente em diferentes regiões e sob diferentes
aspectos, dependendo da movimentação do sujeito pelo mundo. 60 Esse pano de fundo só
pode funcionar para um sujeito que possua uma concepção autoconsciente de como sua
experiência está relacionada ao mundo, e isto não faz sentido na ausência de capacidades
conceituais no sentido forte, isto é, de uma faculdade de espontaneidade.61
Deste modo, quando Evans diz que as experiências, consideradas em si mesmas,
têm conteúdo não-conceitual, ele não está se antecipando à minha sugestão de que as
experiências, como ele as concebe, são cegas, pois são intuições sem conceitos. A seu ver, o
que torna inteligível o fato de os olhos do pensamento empírico estarem abertos não é a
alegação de que, mesmo consideradas independentemente de qualquer conexão com a
espontaneidade, as experiências possuem conteúdo (não-conceitual). É, isto sim, a alegação
de que aquele conteúdo está disponível para a espontaneidade, de que ele é candidado a
integrar-se à visão de mundo conceitualmente organizada de um ser pensante
autoconsciente. Estou apenas sublinhando um aspecto da própria maneira de Evans ver as
coisas quando digo que, segundo ele, o item que constitui uma experiência, considerado em
si mesmo (abstração feita daquela disponibilidade para a espontaneidade em virtude da qual
ele adquire o título de "experiência"), é cego.
Isto tudo estaria muito bem, caso pudéssemos dar sentido ao pontencial para
vincular-se racionalmente a uma visão de mundo, potencial este que deveria fazer do item
uma experiência, isto é, algo que não fosse cego. É bem verdade que, ao atribuirmos
conteúdo a esses itens que as experiências são independentemente de eles estarem
disponíveis para a espontaneidade, parecemos estar abrindo espaço para tais vínculos.
Apesar disso, no entanto, venho insistindo em afirmar que, quando o conteúdo é
classificado como não-conceitual, esta aparência revela-se ilusória.

60
Cf. p. 176: "Qualquer sujeito capaz pensamentos a respeito de um mundo espacial objetivo deve
conceber suas experiências corriqueiras como devidas simultaneamente ao modo como o mundo é e à sua
variável posição nesse mundo. … A capacidade de nos pensarmos localizados no espaço e trilhando um
caminho contínuo através dele está necessariamente envolvida na capacidade de concebermos os fenômenos
que nos chegam como sendo independentes da percepção que temos deles – de concebermos o mundo como
algo com que nos "deparamos". Cf. também p. 222: "Qualquer ser pensante que tenha alguma idéia de um
mundo espacial objetivo – a idéia de um mundo de objetos e fenômenos que podem ser percebidos, mas cuja
existência não depende do fato de serem percebidos – deve ser capaz de pensar em sua percepção do mundo
como sendo simultaneamente devida à sua posição no mundo e à condição do mundo naquela posição. A idéia
mesma de um mundo espacial perceptível e objetivo traz consigo a idéia do sujeito como um ser no mundo,
que tem o curso de suas percepções determinadas por sua posição cambiante no mundo e pelo modo mais ou
menos estável de o mundo ser." Evans desenvolve estas idéias em "Things without the Mind". Elas
desempenham um papel central na leitura que Strawson faz de Kant. Cf. The Bounds of Sense, cap. 2,
especialmente p. 104.
61
Em "Things without the Mind", Evans tenta mostrar que a idéia de um objeto de experiência "não
pode se sustentar sozinha, sem tem uma teoria à sua volta" (p. 88). A teoria necessária, neste caso, diz respeito
às condições sob as quais algo perceptível é efetivamente percebido (pp. 88–9). Se atribuímos sentido à noção
kantiana de espontaneidade, devemos seguramente supor que a posse da espontaneidade marca a diferença
entre criaturas das quais seja possível pensar que tenham uma teoria deste tipo, ainda que apenas
implicitamente, e outras criaturas das quais não possamos pensar tal coisa.
CONTEÚDO NÃO-CONCEITUAL 56
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Não estou dizendo que há algo de errado com a noção de conteúdo não-conceitual,
qualquer que seja ela. Seria perigoso negar, acomodado numa poltrona filosófica, que a
psicologia cognitiva seja uma disciplina intelectualmente respeitável, ao menos na medida
em que ela permanece no interior de suas fronteiras legítimas. É difícil perceber como a
psicologia cognitiva poderia avançar sem atribuir conteúdo a estados e eventos internos de
um modo que não esteja constrangido pelas capacidades conceituais das criaturas cujas
vidas ela tenta tornar inteligíveis. Mas estaremos atraindo problemas, caso borremos a
distinção entre, de um lado, o papel teórico respeitável que conteúdos não-conceituais
desempenham na psicologia cognitiva e, de outro, a noção de conteúdo adequada às
capacidades exercitadas no pensamento ativo autoconsciente – como se o fato de nossos
pensamentos e experiências conscientes possuirem conteúdo pudesse ser entendido como a
vinda à tona de parte do conteúdo que uma boa teoria psicológica atribuiria a incidentes
ocorridos nas profundezas de nossos mecanismos cognitivos.62

5. Por que Evans pensa que deve localizar as experiências fora da esfera do conceitual? Se
sua posição é um caso de recaída no Mito do Dado, ela é, mesmo assim, um caso especial.
Como eu já disse, ela não tem origem na motivação epistemológica usual – o repúdio de
uma imagem que ameça deixar o pensamento empírico sem contato com a realidade e,
deste modo, irreconhecível enquanto pensamento empírico.
Uma das considerações a que Evans se mostra sensível diz respeito ao caráter
determinado dos detalhes que o conteúdo da experiência pode possuir. Ele alega que todos
esses detalhes não poderiam ser capturados pelos conceitos que estão à disposição do
sujeito. "Será que nós realmente entendemos a sugestão de que possuímos tantos conceitos
de cor quantas são as tonalidades de cor que somos capazes de discriminar
sensorialmente?"63 Além de Evans, há outros que também se valeram deste tipo de
consideração para exigir a atribuição à experiência de um conteúdo não-conceitual. Esta
formulação inclui pessoas que não acompanham Evans quando este relega todo o conteúdo
da experiência à esfera do não-conceitual. Essas pessoas tentam acomodar a constatação
fenomenológica feita por Evans dizendo que o conteúdo da experiência é, em parte,
não-conceitual.64
Quando Evans sugere que nosso repertório de conceitos cromáticos possui uma
granulação mais grosseira do que nossas abilidades de discriminar matizes, sendo, assim,
incapaz de captar o detalhamento fino de nossa experiência cromática, o que ele tem em
mente é o tipo de capacidade conceitual associada a expressões cromáticas como
"vermelho", "verde" e "castanho queimado". Estas palavras e frases expressam conceitos de

62
Para uma exposição clara e envolvente desta figura da "vinda à tona", cf. Daniel Dennett, "Toward
a Cognitive Theory of Consciousness", in his Brainstorms: Philosophical Essays on Mind and Psychology
(Bradford Books, Montgomery, Vt., 1978), pp. 149–73. Dennett sugere que o papel do conteúdo no nível
pessoal deve ser entendido em termos de nosso acesso a parte do conteúdo que figura numa história
subpessoal de nossos mecanismos internos. Penso que a própria descrição de Dennett sugere fortemente que
há algo de errado com esta imagem: ela acaba levando-o a fazer a afirmação altamente implausível de que a
consciência perceptiva seja uma questão de pressentimentos ou premonições, que só diferem dos
pressentimentos e das premonições usuais pelo fato de não estarem isolados (cf. 165–6). Discuto este ponto
em "The Concept of Perceptual Experience", Philosophical Quarterly 44 (1994), 190–205.
63
The Varieties of Reference, p. 229. É óbvio que a cor figura, neste caso, como representante de
numerosos traços de nossa experiência.
64
Christopher Peacocke assume este ponto de vista numa obra recente. Para um panorama geral, cf.
A Study of Concepts (MIT Press, Cambridge, Mass., 1992).
CONTEÚDO NÃO-CONCEITUAL 57
_______________________________________________________

segmentos do espectro. A idéia de Evans é que a experiência cromática pode apresentar


propriedades que correspondam a algo mais semelhante a linhas do espectro, sem largura
discernível.
Mas, por que deveríamos aceitar que a habilidade de abarcar cores no pensamento
conceitual esteja restrita aos conceitos expressos por palavras como "vermelho" e "verde",
ou frases, como "castanho queimado"? É possível adquirir o conceito de matiz de cor, e a
maioria de nós, de fato, o adquiriu. Por que não dizer que estamos, com isso, preparados
para abarcar os matizes em nosso pensamento conceitual com exatamente a mesma
determinação que tais matizes apresentam em nossa experiência visual, de tal modo que
nossos conceitos seriam capazes capturar as cores com uma acuidade tão grande quanto a
da experiência que as apresenta? Em meio a uma experiência do tipo que supostamente
transcende nossas capacidades conceituais – experiência que ex hypothesi fornece uma
amostra adequada – podemos dar expressão lingüística a um conceito que tem exatamente a
mesma granulação da experiência pronunciando uma frase como "aquele matiz", na qual o
demonstrativo se vale da presença da amostra.
Precisamos tomar cuidado com o tipo de capacidade conceitual envolvida aqui. É
melhor não pensar que essa capacidade só possa ser exercida quando o caso que ela deve
capacitar seu possuidor a assimilar no pensamento estiver disponível para ser usado
enquanto amostra no contexto em que lhe damos expressão lingüística. Isto traria dúvidas
quanto ao fato de ela ser reconhecível enquanto capacidade conceitual. Considere a
tentativa de darmos expressão a um pensamento de um modo que se valha da
disponibilidade da amostra, dizendo (possivelmente a nós mesmos) algo do tipo: "Minha
experiência visual representa algo como possuindo aquele matiz". Suponha que procuremos
sustentar que esta tentativa de expressar um pensamento contém uma expressão para um
conceito cromático que está restrito a esta ocasião de proferimento. Isto se parece ao caso
imaginado por Wittgenstein da pessoa que diz "Eu sei qual é a minha altura" e, para provar
isso, põe a mão em cima da cabeça. 65 O suposto pensamento – "Eu tenho esta altura",
"Parece-me que algo possui aquele matiz" – está sendo articulado de modo a não guardar
nenhuma distância em relação àquilo que determinaria a sua verdade, distância esta que
seria necessária para que ele seja, antes de mais nada, reconhecível como um pensamento.
Podemos garantir que aquilo que estamos considerando pode ser genuinamente
reconhecido como uma capacidade conceitual se insistirmos em que exatamente a mesma
capacidade de abarcar uma cor na mente pode, em princípio, persistir após a própria
experiência. Na presença da amostra original, "aquele matiz" pode dar expressão ao
conceito de um matiz; o que nos garante que ele é um conceito – o que nos garante que os
pensamentos que o utilizam guardam a distância necessária daquilo que determinaria sua
verdade – é o fato de a capacidade associada ser capaz de persistir no futuro, ainda que seja
apenas por um espaço curto de tempo, e que, persistindo, ela também possa ser usada em
pensamentos a respeito daquilo que, naquele momento, é passado, ainda que seja apenas
um passado recente.66 O que está em jogo, aqui, é uma capacidade recognitiva,
possivelmente de vida muito curta, que principia com a experiência. É o conteúdo
conceitual dessa capacidade recognitiva que pode se explicitar com a ajuda de uma
amostra, algo que seguramente estará disponível por ocasião da experiência com a qual a
65
Philosophical Investigations, §279.
66
Obviamente, as pessoas diferem umas das outras quanto à capacidade de retenção que suas
memórias exibem para matizes precisos. Sem dúvida, essa memória pode ser cultivada, como a memória para
sabores é cultivada por aqueles que aspiram tornar-se bons entendedores de comidas e de vinhos.
CONTEÚDO NÃO-CONCEITUAL 58
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capacidade principia. Num momento posterior da vida dessa capacidade, pode-se


novamente dar expressão lingüística a ela, se o curso da experiência for favorável, isto é, se
a experiência nos puser novamente (ou ainda) diante da amostra adequada. Mas, mesmo na
ausência de uma amostra, a capacidade, enquanto perdurar, continuará podendo ser
explorada em pensamentos baseados na memória: pensamentos que não são
necessariamente capazes de receber uma expressão pública que determine completamente
seu conteúdo.
Se estas capacidades recognitivas são conceituais, a questão de Evans não tem a
resposta que ele pensa que ela tem. É verdade que não temos, já prontos, antes mesmo dos
rumos realmente tomados pelo curso de nossa experiência cromática, tantos conceitos
cromáticos quantos são os matizes de cor que podemos discriminar sensorialmente. Mas, se
temos o conceito de um matiz, nossos poderes conceituais são completamente adequados
para capturar nossa experiência cromática em todos os seus detalhes determinados.
Que razão poderia haver para nos recusarmos a admitir que essas capacidades
recognitivas são conceituais? Elas parecem perfeitamente adequadas para fazer parte de um
entendimento de como as experiências se apossam de certos aspectos do mundo, da
maneira como descrevi em minhas duas primeiras conferências. Eu afirmei que podemos
dar sentido a esta imagem da experiência se apossando do mundo, ou ficando aberta para
ele, se supusermos que a experiência envolve a operação de capacidades que são
conceituais, no sentido de estarem racionalmente integradas à espontaneidade como um
todo. O ponto fenomenológico destacado por Evans é que o mundo de que a experiência
toma posse tem uma granulação mais fina do que poderíamos registrar se apelássemos
apenas a capacidades conceituais exprimíveis por termos e frases genéricos referentes às
cores. É bem verdade que as capacidades dotadas de granulação fina de que lancei mão têm
um caráter especial, marcado pelo modo como expressões demonstrativas teriam que
figurar em suas expressões lingüísticas. Mas, por que isso deveria impedir-nos de
reconhecê-las como estando, ao seu próprio modo, integradas racionalmente à
espontaneidade, de tal modo que elas podem simplesmente assumir o posto que lhes cabe
em meu arcabouço geral? Aliás, por que elas nem sequer são levadas em conta na
argumentação de Evans, e no apelo feito por muitos outros a considerações semelhantes às
que conduzem a argumentação de Evans, referentes à finura da granulação?67
A própria identidade de uma destas capacidades recognitivas de curto prazo está
ligada a um caso particular do tipo de impacto sobre a sensibilidade que esperamos que seja
capturado pelo conceito correspondente. A capacidade de abarcar um matiz em nosso
pensamento (enquanto aquele matiz, como podemos dizer em circunstâncias favoráveis)
principia quando um caso do matiz figura em nossa experiência. 68 Não há como dizer que
67
Peacocke é uma exceção; cf. A Study of Concepts, pp. 83–4. Repare, porém, que, muito embora
Peacocke de fato reconheça que a finura da granulação não ameaça a tese de que o conteúdo da experiência é
conceitual, ele não deixa de alegar, numa passagem anterior, que seu ponto de vista apresenta uma vantagem,
pois "aqueles que escreveram sobre o conteúdo objetivo da experiência notaram com freqüência que uma
experiência pode possuir um conteúdo com granulação mais fina do que poderia ser formulado mediante o
uso de conceitos possuídos por aquele que teve a experiência" (p. 67). Caso seja falsa esta afirmação
freqüentemente feita pelos que escreveram sobre o assunto, por que levá-la em conta deveria ser uma
vantagem, do ponto de vista de Peacocke?
68
Num outro sentido, a capacidade de ter em mente aquele matiz em particular é estável, e requer
apenas a posse do conceito de um matiz qualquer, juntamente com as capacidades estáveis de discriminação
do sujeito. A experiência eleva este potencial estável a um certo grau de realização. A capacidade de ter em
mente aquele matiz como sendo aquele matiz está operante em ato na experiência, e estará operante em
CONTEÚDO NÃO-CONCEITUAL 59
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capacidade é essa, abstração feita da própria experiência ativadora. É assim que estas
capacidades permitem que os detalhes sensíveis de fina granulação que figuram no curso
efetivo da vida visual sejam assimilados pelo conteúdo conceitual da experiência visual.
Isto significa que, do ponto de vista de um dualismo do conceito e da intuição, estas
capacidades pareceriam híbridas. As intuições vêm mescladas em sua própria constituição,
e isto poderia explicar por que elas nem mesmo figuram como candidatas a serem
reconhecidas como capacidades conceituais. Mas, se é por isso que o pensamento de Evans
toma o rumo que tomou, o efeito é obviamente danoso. Evans está tentando impor uma
distância entre o conceitual, por um lado, e o impacto do mundo sobre nossos sentido, por
outro. Se admitirmos de antemão que o papel desempenhado pela intuição em sua
constituição nos impede de considerar que estas capacidades sejam (puramente)
conceituais, a distância está sendo pressuposta, e não demonstrada. E, obviamente, esta
razão para nos recusarmos a aceitar que estas capacidades sejam conceituais é igualmente
ilícita para os que usam o caráter finamente granado da experiência para recomendar uma
posição mista, na qual o conteúdo da experiência seria em parte conceitual, em parte
não-conceitual.
Evans pensa que intuição e conceito, dualisticamente concebidos, precisam ser
repartidos entre experiência e juízo. Proponentes da posição mista diferem de Evans por
pensar que intuição e conceito podem ser justapostos na experiência. Na medida em que a
afirmação de que intuições, concebidas como não-conceituais, devem figurar na
experiência estiver baseada no argumento referente à finura da granulação, esta posição
mista irá padecer da mesma instabilidade nos fundamentos que afeta a opinião de Evans.
Além disso, se simplesmente justapusermos as duas espécies de conteúdo na experiência, a
posição mista torna difícil para ela mesma a assimilação do ponto forte da opinião de
Evans, ou seja, a idéia kantiana de que precisamos apelar a capacidades conceituais se
quisermos dar inteligibilidade ao fato de a experiência não ser cega.69

6. Uma segunda consideração a que Evans recorre diz que os estados do sistema
informacional são, em suas palavras, "independentes de crenças" (p. 123). O conteúdo de
uma experiência perceptiva não pode ser explicado como o conteúdo de uma crença efetiva
apropriada, já que pode não haver uma crença com o conteúdo adequado. Uma ilusão de
ótica comum continua a apresentar sua aparência ilusória, muito embora o sujeito não
acredite que as coisas são como parecem. Algumas pessoas tentam preservar uma conexão
definicional entre conteúdo informacional e conteúdo de crença, e ao mesmo tempo
reconhecer este último ponto, sugerindo que o conteúdo de uma experiência pode ser
capturado como algo que a experiência dá a seu sujeito – "uma inclinação prima facie a
acreditar" (p. 124). Evans responde (ibid.): "Não consigo evitar a sensação de que isto está
errado. É melhor reservar a palavra 'crença' para a noção de um estado cognitivo muito
mais sofisticado: um estado que está conectado à (e, na minha opinião, definido em termos
da) noção de juízo e, portanto, também à noção de razões." Isto é, falando nos termos que

potência, depois, nos pensamentos que lançam mão de uma lembrança da experiência.
69
As principais linhas argumentativas daquilo que digo nesta conferência remontam a um seminário
que dei (junto com Colin McGinn) em Oxford, em 1986. Mas, desde então, minhas idéias a respeito deste
assunto foram se enriquecendo a partir de discussões com Sonia Sedivy, que chegou a idéias semelhantes de
forma independente, ao reagir à tese sellarsiana de que a especificidade sensorial da experiência perceptiva
precisa ser explicada em termos de impressões, por oposição a conceitos. Cf. sua dissertação defendida em
1990 na Universidade de Pittsburgh, "The Determinate Character of Perceptual Experience".
CONTEÚDO NÃO-CONCEITUAL 60
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venho utilizando: deveríamos reservar a idéia de crença para algo que só pode ser entendido
no contexto da idéia de espontaneidade, a idéia de um empreendimento ativo no qual um
sujeito exerce um controle racional sobre a modelagem de seu pensamento. Não que todas
as nossas crenças sejam o resultado de uma decisão ativa. Mas tem uma certa razão quem
reserva o nome "crença" para um tipo de estado cognitivo que está essencialmente incluído
no escopo dos poderes que temos de tomar decisões de maneira ativa. Mesmo no caso de
uma crença que simplesmente constatamos existir em nós, a questão de nosso direito a ela
sempre pode ser levantada. Podemos resumir aquilo que Evans está sugerindo a respeito
das crenças dizendo que a crença é uma disposição para fazer juízos, e julgar é
essencialmente um ato da espontaneidade.
Aqui, Evans está insistindo em que o contexto apropriado para colocarmos as
capacidades conceituais é a atividade de tomar decisões, e eu venho chamando a atenção
para isto no decorrer das conferências. No entanto, ele usa isto como um argumento para
mostrar que o conteúdo da experiência não pode ser conceitual, e na minha opinião isto
revela um ponto cego em seu raciocínio. O que ele diz não depõe contra a concepção de
experiência que venho recomendando: uma concepção segundo a qual as capacidades que
pertencem à espontaneidade já estão operantes na receptividade, ao invés de trabalharem
sobre algo fornecido a elas de modo independente pela receptividade. Evans não argumenta
contra esta concepção. Ela simplesmente não faz parte do elenco de possibilidades que ele
considera.
Quem afirma que o conteúdo da experiência é conceitual e insere a idéia do
conceitual no contexto correto deve indicar uma conexão entre as capacidades conceituais
que acredita estarem operantes na percepção e o exercício ativo da espontaneidade nos
juízos. Evans leva em consideração um único modo pelo qual alguém poderia tentar indicar
a conexão, a saber, pela identificação das experiências com disposições para julgar. A idéia
seria que estas disposições são realizadas em juízos efetivos somente quando uma cláusula
do tipo "sendo iguais as outras coisas" é satisfeita. É assim que esta posição acomoda o fato
de a experiência ser "independente de crenças": as outras coisas não conseguem ser iguais
na presença de ilusões de que temos conhecimento, e em quaisquer outras circunstâncias
em que haja experiências sem a crença correspondente.
Evans objeta que este quadro falsifica a fenomenologia da percepção (p. 229): "A
proposta é implausível, pois não acontece de simplesmente nos vermos tomados por uma
comichão de aplicar um certo conceito – uma convicção de que ele teria aplicação na
vizinhança imediata. Nada poderia falsificar mais os fatos envolvidos na situação." O
quadro interpõe uma distância entre a experiência considerada em si mesma e o emprego
ativo de conceitos no juízo, distância que seria supostamente vencida pela idéia de
disposição. A objeção de Evans é que, mesmo assim, o quadro liga o conteúdo da
experiência ao pensamento ativo de modo excessivamente próximo, sendo incapaz, por
isso, de fazer justiça à experiência. Suponha que a cláusula "sendo iguais as outras coisas"
seja satisfeita, e que haja a inclinação para aplicar um certo conceito num juízo. Esta
inclinação não tem início simplesmente assim, de modo inexplicável. Se alguém faz mesmo
o juízo, ele é arrancado dessa pessoa pela experiência, que servirá como razão para ela ter
feito o juízo. Num quadro no qual tudo que existe por trás do juízo é uma disposição para
fazê-lo, a própria experiência acaba se perdendo.
Tudo isto é muito perspicaz, e acho que é devastador para a sugestão de que
poderíamos trazer a experiência para dentro do escopo de uma faculdade de espontaneidade
concebendo as experiências como disposições para julgar. Mas nada disto afeta a posição
CONTEÚDO NÃO-CONCEITUAL 61
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que estou recomendando. De acordo com ela, as capacidades conceituais já estão operantes
na própria experiência. Não é que as operações em ato das capacidades conceituais só
apareçam, num primeiro momento, em realizações de disposições para julgar com as quais
as experiências são identificadas, de tal modo que a experiência fique conectada aos
conceitos apenas por meio de uma potencialidade. Fazer com que as coisas apareçam para
alguém de um certo modo já é, por si só, uma modalidade da operação em ato das
capacidades conceituais.
Este modo de operação das capacidades conceituais é especial porque, visto do lado
do sujeito, ele é passivo, um reflexo da sensibilidade. No contexto daquela alegação, dá
bastante trabalho assegurar que as capacidades são reconhecíveis como capacidades
genuinamente conceituais, isto é, que a menção ao conceitual não é um mero jogo de
palavras. É preciso que exatamente as mesmas capacidades possam também ser exploradas
nos juízos ativos. E o que assegura esta identificação entre capacidades operantes nas
aparências e capacidades operantes nos juízos é a maneira pela qual as aparências estão
racionalmente ligadas à espontaneidade de maneira geral: a maneira pela qual as aparências
podem se tornar razões para juízos a respeito da realidade objetiva – e, de fato, tornam-se
razões para juízos em circunstâncias adequadas ("sendo iguais as outras coisas").
Ora, esta ligação entre experiência e espontaneidade é similar, de certos pontos de
vista, à ligação que é efetuada, na posição atacada por Evans, pela concepção das
experiências enquanto disposições para julgar. No entanto, a ligação que tenho em vista, ao
contrário daquela, conecta experiências a juízos enquanto razões para estes últimos. Isto
significa que minha imagem não possui a característica de que Evans se queixa: de que,
havendo uma inclinação para se fazer um juízo de experiência, a inclinação parece emergir
misteriosamente da situação, assumindo o aspecto de uma convicção inexplicável de que
um certo conceito "tem aplicação na vizinhança imediata". Muito pelo contrário, quando
alguém de fato tem uma convicção desse tipo, minha imagem permite que ela esteja
satisfatoriamente fundamentada no modo como as coisas aparecem a essa pessoa.
Em minha Primeira Conferência (§6), sugeri que o coerentismo de Davidson reflete
um obstáculo no caminho que nos levaria a ver que as operações das capacidades
conceituais podem ser passivas. O mesmo obstáculo parece estar atuante no argumento que
Evans constrói a partir do fato de a experiência ser "independente de crenças". De fato,
Davidson e Evans representam os dois lados de um dilema posto por aquele obstáculo. Se
uma pessoa não consegue perceber que as capacidades conceituais podem estar operantes
na própria sensibilidade, ela terá duas opções: ou bem, como Davidson, insistir em que a
experiência está apenas causalmente (e não racionalmente) relacionada ao pensamento
empírico; ou, então, como Evans, recair no Mito do Dado, e tentar atribuir à experiência,
concebida como algo extraconceitual, relações racionais com o pensamento empírico.
Davidson afirma que o Mito do Dado só pode ser evitado se negarmos que a experiência
seja epistemologicamente significante. Evans, por boas razões, não pode engolir essa
negativa, e mostra que compartilha a opinião de Davidson sobre as possibilidades, adotando
coerentemente uma forma do Mito do Dado. O que eu digo é que não precisamos nos
trancafiar no interior deste quadro de possibilidades. Retornarei a este ponto na próxima
conferência.

7. Já mencionei uma terceira consideração a que Evans faz apelo. Trata-se do fato de que
compartilhamos a percepção (e também a memória) com os "animais" (p. 124), isto é, com
CONTEÚDO NÃO-CONCEITUAL 62
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criaturas às quais não podemos atribuir capacidades conceituais, no exigente sentido em


que Evans e eu estamos de acordo.
Isto me traz de volta à zona dos desconfortos gêmeos que mencionei mais acima
(§3). Tanto Evans quanto eu estamos comprometidos com a existência de histórias
diferentes para se contar a respeito dos eventos perceptivos em criaturas que possuem
espontaneidade e em criaturas que não a possuem. No primeiro caso, podemos aplicar o
conceito de experiência, no sentido estrito que a põe em conexão com capacidades
conceituais; no outro caso, não podemos. Mas, pode parecer que a posição de Evans faça
com que a conseqüência seja menos embaraçosa, já que ela nos fornece algo que podemos
supor sem rodeios que seja comum aos dois casos, a saber, os estados do sistema
informacional, com seu conteúdo não-conceitual.
Podemos abalar um pouco essa impressão se considerarmos o terceito elemento do
sistema informacional, o sistema testemunhal. Segundo Evans, temos conhecimento
derivado das operações do sistema testemunhal que funcionava antes de estarmos em
condições de entender os desempenhos lingüísticos em questão. Portanto, o sistema
testemunhal é, em si mesmo, "mais primitivo" que o entendimento. E há nisto um
paralelismo parcial com o fato de compartilhamos a percepção e a memória com os outros
animais. Suponha, então, que nosso compartilhamento da percepção com criaturas que não
possuem espontaneidade fosse uma boa razão para atribuir conteúdo não-conceitual à nossa
experiência perceptiva, com base no fato de que, se disséssemos que o conteúdo da
experiência é conceitual, isto poria este tipo de conteúdo fora do alcance daqueles outros
percipientes. Neste caso, por um raciocínio semelhante, o fato parcialmente paralelo a
respeito das operações primitivas do sistema testemunhal deveria ser uma boa razão para
supor que o conteúdo não-conceitual esteja envolvido em nosso trato maduro com o
sistema testemunhal, quando, de fato, entendemos os desempenhos lingüísticos que
presenciamos. Mas, se há algo que seguramente envolve capacidades conceituais, esse algo
é a linguagem. Sendo assim, qual é o papel destas capacidades conceituais em nosso trato
maduro com o sistema testemunhal, já que o conteúdo envolvido é não-conceitual? Há um
paralelismo exato entre o quadro traçado por Evans do papel das capacidades conceituais
na experiência e a seguinte idéia: as capacidades conceituais exercitadas quando
entendemos um desempenho lingüístico não entram na determinação do conteúdo ao qual
uma pessoa supõe estar sendo apresentada, mas servem apenas para dar conta do acesso
que essa pessoa tem àquele conteúdo, que é independentemente determinado pelas
operações do sistema informacional. Mas esta é seguramente uma idéia muito pouco
atraente.
Se compartilhamos a percepção com os outros animais, é claro que temos algo em
comum com eles. Somos tentados a pensar que deva ser possível isolar aquilo que temos
em comum com eles por uma subtração daquilo que é específico a nosso respeito, de modo
a obter um resíduo que podemos reconhecer como aquilo que figura na vida perceptiva dos
outros animais. É esse o papel desempenhado, no quadro de Evans, pelos estados
informacionais, com seus conteúdos não-conceituais. Nada nos obriga, porém, a tentar
acomodar a combinação de um elemento comum com uma diferença gritante, como se
estivéssemos fazendo uma fatoração: supor que nossa vida perceptiva inclua um núcleo que
também podemos reconhecer na vida perceptiva dos outros animais, e um ingrediente extra
adicionado. Se tomarmos este rumo, não haverá maneira satisfatória de entender o papel
desse suposto núcleo em nossa vida perceptiva. Estamos diante do dilema em cujas
CONTEÚDO NÃO-CONCEITUAL 63
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alternativas exludentes encontramos Davidson e Evans – cada um deles, segundo o que


estou dizendo, iludido pela idéia de que sua posição é satisfatória.
Nós podemos evitar o dilema. Não precisamos dizer que temos aquilo que os outros
animais têm, conteúdo não-conceitual, e também uma outra coisa a mais, já que somos
capazes de conceitualizar aquele conteúdo, e eles, não. Ao invés disso, podemos dizer que
temos aquilo que os outros animais têm, sensibilidade perceptiva a características de nosso
meio ambiente, mas a possuímos de um modo especial. Nossa sensibilidade perceptiva ao
nosso meio ambiente é recebida no âmbito da faculdade da espontaneidade, e é isso que nos
faz diferentes deles.
Acho que deveríamos ser capazes de avançar resolutamente nesta direção. Mas,
pode ser que estas formulações comecem a revelar o caráter do obstáculo a que venho
aludindo: uma influência compreensivelmente poderosa sobre a modelagem de nosso
pensamento, que tende a obliterar a possibilidade mesma de uma imagem correta. A
dificuldade vem à tona em questões deste tipo: como pode a espontaneidade permear nossa
vida, a ponto mesmo de estruturar aspectos dela que refletem nossa condição natural –
aspectos de nossa vida que refletem aquilo que temos em comum com os outros animais? A
idéia é que a liberdade da espontaneidade deve ser um tipo de isenção da natureza, algo que
permite que nos elevemos acima dela, e não nossa maneira especial de viver uma vida
animal. Voltarei a estes temas na próxima conferência.
RAZÃO E NATUREZA 64
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QUARTA CONFERÊNCIA
RAZÃO E NATUREZA

1. Até aqui, ocupei-me das dificuldades de que podemos ser vítimas em nossa reflexão a
respeito do juízo e do conhecimento empíricos, se tentarmos incorporar a posição assumida
por Kant ao falar em espontaneidade.
Aceitar essa posição significa reconhecer que o ato de julgar é um emprego ativo de
capacidades que nos dão o poder de assumir o comando de nosso pensamento. Isto, porém,
nos ameaça com uma oscilação entre duas alternativas impalatáveis. A ameaça inicial é a de
perdermos a conexão entre o pensamento empírico e uma realidade independente, conexão
que deve existir, se quisermos que seja possível reconhecer aquilo que está em questão
como algo que diz respeito a uma realidade independente. A idéia de espontaneidade é uma
idéia de liberdade, e isto ameaça levar aquilo que era visado como pensamento empírico a
degenerar, em nossa imagem, num giro sem atrito no vazio. Ao recuar desta posição, somos
tentados a supor que podemos reinstaurar o atrito entre o pensamento e o mundo fazendo
com que nossas justificações de juízos empíricos se interrompam ao chegarem em objetos
de ostensão pura, não contaminados pela conceitualização. Mas, quando pensamos bem a
respeito desta alternativa, percebemos que estes supostos pontos finais da justificação não
podem, de modo inteligível, ser usados como razões do sujeito para os juízos que faz. E
agora nos sentimos tentados a fazer um recuo até a renúncia à necessidade de atrito.
Tenho afirmado que devemos conceber as experiências como estados ou ocorrências
nas quais as capacidades pertencentes à espontaneidade estão em funcionamento nas
efetivações da receptividade. As experiências têm o conteúdo que têm em virtude de as
capacidades conceituais estarem operantes nelas, isto é, capacidades que pertencem
genuinamente ao entendimento: é essencial ao fato de elas serem as capacidades que são
que elas possam ser exploradas no pensamento ativo e potencialmente autocrítico. Mas,
quando estas capacidades entram em jogo na experiência, o sujeito da experiência é
passivo, objeto da ação de uma realidade independente. Quando a experiência torna o
conteúdo conceitual disponível para alguém, temos aí a própria sensibilidade da pessoa
operando, e não o entendimento pondo uma construção sobre algumas entregas
pré-conceituais da sensibilidade. Ao menos no que diz respeito à "experiência externa", o
conteúdo conceitual já é trazido pelas impressões que a realidade independente deixa nos
sentidos de alguém. Isto nos permite reconhecer a existência de um constrangimento
externo exercido sobre a liberdade da espontaneidade, sem cairmos em contradição.
Podemos, assim, exorcizar o espectro do giro sem atrito, que nos priva de qualquer coisa
que possamos reconhecer como um conteúdo empírico.
A posição em que estou insistindo faz apelo à receptividade para assegurar o atrito,
como o Mito do Dado, mas, ao contrário do Mito do Dado, ela considera que as
capacidades da espontaneidade estão em jogo o tempo todo, até os fundamentos últimos
dos juízos empíricos. É isso que nos capacita a reintroduzir o atrito, sem destriur a idéia de
fundamentos últimos, como faria o Mito do Dado.
Eu sugeri (Primeira Conferência, §6; Terceira Conferência, §§6, 7) que há uma
dificuldade posta no caminho que leva à aceitação desta concepção – uma dificuldade cujas
raízes são profundas. Podemos ter uma idéia disto se compararmos os pontos de vista de
Davidson e de Evans, como fiz no final da última conferência. Tanto Davidson quanto
Evans pretendem reservar um lugar para aquilo que é essencial no discurso kantiano a
respeito da espontaneidade. Nenhum deles se sente atraído por um naturalismo nu e cru,
RAZÃO E NATUREZA 65
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que optasse por não se envolver de nenhum modo com este campo da filosofia, negando
que a espontaneidade do entendimento seja sui generis da maneira sugerida por sua ligação
com a idéia de liberdade. Mas eles não chegam a considerar a possibilidade de que as
capacidades conceituais já poderiam estar operantes em efetivações da sensibilidade. Não é
que eles aleguem que tal possibilidade não existe; essa possibilidade simplesmente não faz
parte de seu pensamento. E o resultado desta ausência é que eles se vêm confrontados pela
escolha que descrevi. Na medida em que a operação passiva das capacidades conceituais
não está no horizonte das opções, não podemos nem mesmo apresentar a experiência como
um constrangimento racional exercido sobre o pensamento empírico, sem cairmos no Mito
do Dado. Isto, porém, seria representar de tal modo aquelas que deveriam ser justificações
últimas, que sua capacidade de exercer qualquer influência racional tornar-se-ia
ininteligível. Venho repetindo que isto é intolerável: nos limites desta concepção das
possibilidades, não há como conceder ao pensamento nenhum atrito com uma realidade
independente. É isto, porém, que nós devemos ter, se quisermos que nossa imagem
contenha um conteúdo empírico de um modo ou de outro. Não existe, aqui, um lugar
confortável para repouso, e algo profundo deve estar exercendo sua influência, persuadindo
Davidson e Evans, cada qual de um modo, do contrário disso tudo que estou dizendo.
Davidson adota uma versão de um dos lados deste dilema – a renúncia a um
controle racional vindo de uma realidade independente. Ele acha que uma ligação
meramente causal, e não racional, entre o pensamento e uma realidade independente pode
funcionar como interpretação da idéia de que o conteúdo empírico requer fricção contra
algo externo ao pensamento. Mas isto não funciona. Pensamentos sem intuições seriam
vazios, como Kant quase chega a dizer. Se quisermos evitar a ameaça de vacuidade,
precisamos ver as intuições mantendo relações racionais com aquilo que devemos pensar, e
não mantendo apenas relações causais com aquilo que de fato pensamos. Não sendo assim,
a própria idéia daquilo em que pensamos acaba se perdendo. Os itens que queríamos que
fossem pensamentos ainda estão sem intuições, no sentido relevante, e, portanto, ainda
estão vazios. Davidson consegue manter-se confortável em seu coerentismo, que dispensa
constrangimentos racionais ao pensamento vindos de fora, mas apenas porque não percebe
a ameaça de vacuidade. Ele acha que a única razão para querermos uma conexão racional
entre intuições e pensamentos é a segurança de estarmos justificados ao aceitar os
pensamentos, como se pudéssemos dar por assentado que eles são mesmo pensamentos,
que eles possuem conteúdo. Mas, se não permitimos que as intuições mantenham relações
racionais com os pensamentos, é exatamente o fato de eles possuírem conteúdo que é posto
em questão. Quando Davidson tenta demonstrar que um corpo de crenças certamente é
verdadeiro em sua maior parte, ele se serve da idéia de um corpo de crenças, um corpo de
estados que possuem conteúdo. E isto significa que, por mais que o argumento, tomado em
seus próprios termos, pudesse funcionar bem, ele acaba chegando tarde demais para
neutralizar o problema surgido deste lado do dilema.
Evans se apega a uma versão do outro lado do dilema. Como Davidson, Evans
considera que as experiências são extraconceituais (no caso de Evans, devemos
acrescentar – quando tomadas em si mesmas). Mas, ao contrário de Davidson, Evans pensa
que as experiências podem, a um só tempo, ser extraconceituais e constituir um
constrangimento racional imposto às operações da espontaneidade. Ele acha que os juízos
podem ser "baseados nas" experiências, muito embora as experiências sejam externas à
espontaneidade. Evans está certo, contra Davidson, na crença implícita que motiva este
ponto de vista: se os pensamentos não devem ser vazios, isto é, se de um modo ou de outro
RAZÃO E NATUREZA 66
_______________________________________________________

eles devem ser pensamentos, eles têm que ser racionalmente responsivos a intuições. Mas
não há como fazer com que a posição de Evans seja coerente. Davidson está certo, contra
Evans, ao dizer que, se as experiências são extraconceituais, elas não podem ser aquilo em
que o pensamento está racionalmente fundamentado. Quando Evans invoca o conteúdo
não-conceitual, isto serve apenas para mascarar o fato de que, excluindo as experiências da
província da espontaneidade, ele fez com que seja impossível perceber de que modo uma
experiência pode ser a razão que alguém tem para um exercício paradigmático da
espontaneidade, tal como um juízo.
A situação, portanto, é a seguinte. Dado um pressuposto compartilhado por
Davidson e Evans, eles estão confinados às duas posições entre as quais cada um deles faz
sua escolha. E cada um parece ter um argumento absolutamente cogente contra o outro.

2. Eu gostaria de começar a descobrir esse bloco mental que parece ter raízes profundas e
que produz esta situação desconfortável. Esta é uma tarefa que estava à minha espreita
desde a primeira conferência.
Evans oferece uma série de razões para afirmar que o conteúdo de nossas
experiências perceptivas é não-conceitual. Uma delas, que discuti brevemente no final de
minha última conferência (§7), é o fato de que compartilhamos a percepção com criaturas
que não possuem capacidades conceituais, no sentido exigente aceitado por Evans:
compartilhamos a percepção com criaturas incapazes de pensamento ativo e autocrítico.
Insisti em dizer que este ponto não é capaz de afastar a imagem que venho
defendendo, na qual a espontaneidade permeia todo o nosso trato perceptivo com o mundo,
aí incluídas as próprias impressões da sensibilidade. Esse ponto não pode nos obrigar a
substituir a nossa imagem pela de Evans, na qual a espontaneidade, que distingue nossa
vida perceptiva, está excluída de uma parte dessa vida – a sensibilidade, que, para ele, deve
ser independente da espontaneidade, já que é comum a nós e a outros percipientes mais
primitivos. O que temos em comum com animais que não falam é a impressionabilidade
por características do meio ambiente. Podemos dizer que há dois tipos de
impressionabilidade desse tipo, uma permeada pela espontaneidade, e outra independente
dela. Isto é suficiente para acomodar a combinação de semelhança e diferença entre nós e
os animais que não falam, mas não como Evans o faz, numa fatoração da verdade a nosso
respeito em componentes independentes concernindo àquilo que é semelhante e àquilo que
é diferente. E é bom mesmo que esta alternativa esteja disponível, já que a fatoração de
Evans nos levaria de volta ao dilema eu havia começado a abordar com mais detalhes.
A comparação dos animais sem linguagem conosco não pode exigir a separação
entre sensibilidade e entendimento, ou a excluisão das intuições do escopo da
espontaneidade. Mas, conforme sugeri no final de minha última conferência, a comparação
pode nos levar a ver por que é tão fácil pensar que a separação seja compulsória. Essa
comparação pode dar início a uma explicação de por que nós tendemos a desconsiderar a
mera possibilidade de que essas capacidades conceituais, entendidas no sentido exigente,
possam estar operantes nas efetivações de nossa sensibilidade.
Animais que não falam são seres da natureza, e nada além disso. Seu ser está
inteiramente contido na natureza. Em particular, suas interações sensoriais com o meio
ambiente são eventos naturais. Nós somos semelhantes aos animais que não falam na
medida em que também somos perceptualmente impressionáveis pelo meio ambiente. A
sensorialidade é um traço de sua vida animal, e deveria ser algo de animal também em
nosso caso. A sensorialidade dos animais que não falam é um dos modos pelos quais o ser
RAZÃO E NATUREZA 67
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animal deles, o seu ser puramente natural, se realiza, e nossa sensorialidade, vista enquanto
aspecto de nossa vida animal, deveria ser igualmente um modo pelo qual nosso ser natural
se realiza. (Mesmo que estejamos prontos a admitir que nosso ser não é puramente natural,
ele é pelo menos parcialmente natural.)
Mas parece impossível reconciliar o fato de que a sensorialidade pertence à natureza
com a idéia de que a espontaneidade poderia permear nossa própria experiência perceptiva
e o funcionamento de nossa sensibilidade. Como poderiam as operações feitas por uma
mera porção da natureza serem estruturadas pela espontaneidade, a liberdade que nos dá
poderes para estar no comando de nosso pensamento ativo? Se não admitimos a
possibilidade de isto acontecer, somos forçados a supor que as intuições devem se constituir
independentemente do entendimento, com os sentidos respondendo de modo natural aos
impactos do mundo sobre eles. E estaremos, então, no espaço de opções em que Davidson e
Evans se colocaram.

3. O que está sendo mobilizado, aqui, é uma concepção de natureza que pode parecer puro
senso comum, embora nem sempre tenha sido. A concepção que tenho em vista só foi
disponibilizada por uma realização duramente alcançada pelo pensamento humano numa
época determinada – a época do nascimento da ciência moderna. A ciência moderna
entende seu objeto de um modo que ameaça, pelo menos, deixá-lo desencantado, para usar
aqui a imagem de Weber que passou para o senso comum. Esta imagem marca o contraste
entre dois tipos de inteligibilidade: o tipo que é buscado pela ciência natural (tal como nós a
chamamos), e o tipo de inteligibilidade que encontramos em algo quando o relacionamos a
outros ocupantes do "espaço lógico das razões", para repetir aqui a sugestiva frase de
Wilfrid Sellars.70 Se identificarmos a natureza com aquilo que a ciência natural procura
tornar compreensível, nós a estaremos ameaçando, no mínimo, de um esvaziamento de
sentido. A título de compensação, digamos assim, nós a vemos como a sede de um
suprimento possivelmente inexaurível de inteligibilidade do outro tipo – do tipo que
encontramos num fenômeno quando o vemos como algo governado por leis naturais. 71 Foi
70
Cf. Primeira Conferência, §2. É claro que representações da natureza estão conectadas por relações
de justificação. O ponto, porém, é que tais conexões não existem naquilo que é representado.
71
O contraste crucial, aqui, é entre a organização interna do espaço das razões e a organização
interna da natureza, numa concepção que a moderna ciência natural nos leva a aceitar. Ouvimos aqui o eco do
contraste kantiano entre o reino da liberdade e o reino da natureza. Este contraste organiza a agenda de
questões de grande parte da filosofia pós-kantiana, e é central no pensamento de Sellars.
No texto, evito uma certa interpretação que alguns seguidores de Sellars fazem daquilo que estaria
oposto ao espaço das razões. Rorty, por exemplo, fala em nome de Sellars ao fazer a distinção entre o espaço
lógico das razões e o espaço lógico das "relações causais com os objetos" (Philosophy and the Mirror of
Nature [Princeton University Press, Princeton, 1979], p. 157). Penso que isto reflete uma imagem discutível
de qual é a mais fundamental forma de organização que a moderna ciência natural dá a seu objeto de estudo.
Trata-se daquela forma de organização contra a qual Russell protestou em seu ensaio "On the Notion of
Cause", in Bertrand Russell, Mysticism and Logic (George Allen and Unwin, Londres, 1917), pp. 132–51, na
edição em brochura de 1963. Russell sugeria que a idéia de causalidade fosse substituída, no papel de
princípio básico de organização do mundo tal como este é visto pela ciência natural, por algo semelhante à
idéia de processos governados por leis. Sendo assim, o contraste adequado para o espaço das razões não é o
espaço das causas, mas, como digo no texto, o reino da lei. (Isto deixa intocado o fato, que explorei em minha
explicação sellarsiana da razão pela qual o Mito do Dado é um mito [Primeira Conferência, §3], de que uma
relação meramente causal não pode fazer justiça a uma relação justificadora.]
Não se trata apenas de esta leitura do contraste estar errada a respeito da ciência; ela também é
questionável por implicar que a idéia de conexão causal está restrita ao pensamento que não é estruturado
pelo espaço das razões. Segundo minha leitura, o contraste deixa aberta a possibilidade de que uma região do
RAZÃO E NATUREZA 68
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uma conquista do pensamento moderno distinguir claramente o segundo tipo de


inteligibilidade do primeiro. Segundo um ponto de vista corrente na Idade Média, aquilo
que vemos hoje como um objeto de estudo da ciência natural era concebido como algo
repleto de significações, como se toda a natureza fosse um livro de lições aberto para nós. É
uma evidência de progresso intelectual o fato de, agora, as pessoas instruídas já não
poderem levar essa idéia a sério, exceto, talvez, se atribuirmos a ela algum papel
simbólico.72
Ora, se concebermos o natural como o reino da lei, demarcando-o por meio do
contraste entre seu modo próprio de inteligibilidade e a inteligibilidade que pertence aos
habitantes do espaço das razões, pomos em risco a própria idéia de que a espontaneidade
poderia caracterizar o funcionamento de nossa sensibilidade enquanto tal. A faculdade da
espontaneidade é o entendimento, nossa capacidade de reconhecer e de produzir o tipo de
inteligibilidade própria do significado. Nós desvelamos este tipo de inteligibilidade
colocando as coisas num espaço lógico que é sui generis, se comparado ao reino da lei. Mas
a sensibilidade, como eu disse, é parte de nossa natureza, parte daquilo que compartilhamos
com os outros animais. Se isto significa que suas operações são aquilo que são em virtude
de suas posições no reino da lei, pode parecer incoerente supor que elas pudessem ser
modeladas por conceitos. Isto implicaria que elas são aquilo que são também em virtude da
posição que ocupam no espaço lógico contrastante.
Além disso, seria melhor não querer pôr o encantamento perdido de volta no mundo
meramente natural. Segundo a imagem que venho recomendando, nossa sensibilidade
produz estados e ocorrências dotados de conteúdo conceitual. Isto nos habilita a ver um
sujeito da experiência aberto aos fatos. A esfera conceitual não exclui o mundo que
experienciamos. Falando de outro modo, aquilo que experienciamos não é externo ao reino
do tipo de inteligibilidade própria do sentido. (Cf. Segunda Conferência.) Mas, na medida
em que aquilo que experienciamos inclui fatos meramente naturais, isto pode soar como um
convite a um regresso à superstição pré-científica, uma tentativa tresloucadamente
nostálgica de reencantar o mundo natural.
Gostaria de enfatizar que a questão, aqui, não pode ficar confinada a nosso
entendimento mútuo, a algo que tenha que envolver a inteligibilidade própria do "espaço
das razões". Se aquiescemos ao desencantamento da natureza, se permitimos que o
significado seja expelido daquilo que venho chamando de "o meramente natural",
certamente teremos que dispender energia para trazer o significado de volta à imagem,
quando passarmos a considerar as interações humanas. Mas não é apenas em nossa
compreensão da linguagem, ou na atribuição mútua de sentido associada à linguagem que
as capacidades conceituais estão operantes. Afirmei que as capacidades conceituais,
capacidades para o tipo de compreensão cujo correlato é o tipo de inteligibilidade próprio
do significado, estão operantes também em nossa percepção do mundo exterior à esfera dos
seres humanos. A questão é como podemos assumir esta posição sem nos oferecermos para
reintroduzir a idéia de que o movimento dos planetas, ou a queda de um pardal estarão
sendo corretamente abordados se os abordarmos do mesmo modo que um texto, um
proferimento, ou algum outro tipo de ação.

discurso esteja no espaço lógico das relações causais com os objetos, sem estar por isso excluída do espaço
lógico das razões. Contrariamente àquilo que o contraste de Rorty deixa implícito, razões poderiam ser
causas.
72
Cf. Charles Taylor, Hegel (Cambridge University Press, Cambridge, 1975), cap. 1.
RAZÃO E NATUREZA 69
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4. Como já observei (§1), nem Evans nem Davidson sentem-se atraídos por aquilo que
chamei de "um naturalismo nu e cru": um modo de pensar que simplesmente eliminaria o
exame detalhado que fiz da espontaneidade. Com efeito, eles sustentam que não somos
capazes de compreender naturalisticamente a idéia de espontaneidade, se a palavra
"naturalisticamente" for usada em acordo com a concepção de natureza que descrevi.
Esta concepção obviamente levanta questões a respeito do estatuto da
espontaneidade, e irei distinguir três tipos de resposta.
Em primeiro lugar, temos o naturalismo nu e cru, cujo objetivo é domesticar as
capacidades conceituais no interior da natureza concebida como o reino da lei. Esta
abordagem não tem necessidade de negar que as capacidades conceituais pertençam a uma
faculdade da espontaneidade, uma faculdade que nos capacita a assumir o comando de
nossas vidas. Mas a idéia é que, se houver qualquer verdade nesse discurso a respeito da
espontaneidade, ela deve ser capturável em termos cujo papel fundamental seja o de exibir
a posição das coisas numa natureza assim concebida. Talvez devêssemos garantir que as
relações que constituem a estrutura do espaço das razões, relações de justificação e
assemelhadas, não estivessem visivelmente ali, enquanto tais, na natureza, tal como as
ciências naturais paradigmáticas a representam. Mas, segundo esta abordagem, podemos
reconstruir a estrutura do espaço das razões a partir de materiais conceituais que já tinham
seu lugar numa representação científico-natural da natureza. Aí, então, modos de pensar
que colocam seu objeto de estudo no espaço das razões – por exemplo, uma reflexão que se
debruce sobre a espontaneidade enquanto tal – também podem ser considerados, apesar de
tudo, científico-naturais. Sem dúvida, eles não são paradigmaticamente científico-naturais,
mas apenas porque dá trabalho mostrar de que modo seus conceitos característicos podem
ser usados para inserir as coisas na natureza.
Na versão mais direta possível desta abordagem, a tarefa que se coloca é a de
reduzir a estrutura do espaço das razões a algo que, na concepção relevante, já seja natural
de maneira não-problemática. Mas não quero fazer com que a abordagem fique limitada a
este reducionismo. A única coisa que interessa é que as idéias cujo lugar preferencial é o
espaço das razões sejam representadas como idéias que, apesar de tudo, podem ser usadas
para colocar as coisas na natureza, no sentido relevante. Pensando nestes termos, podemos
equacionar a natureza com o reino da lei, mas negar que a natureza, assim concebida, seja
totalmente desencantada. O que estou afirmando é que, mesmo sendo concebida deste
modo, a naturalidade não exclui a inteligibilidade própria do significado.
Opositores deste tipo de naturalismo afirmam que o contraste que cria nossas
dificuldades, o contraste entre espaços lógicos, é genuíno. A estrutura do espaço das razões
resiste teimosamente contra sua apropriação por um naturalismo que concebe a natureza
como o reino da lei. Portanto, se, para ser natural, uma coisa tem que estar inserida no reino
da lei, aquilo que é natural só pode ser, enquanto tal, desencantado. Pretendo distinguir dois
modos de elaborar esta idéia: o segundo e o terceiro dos três estilos de resposta à questão a
respeito do estatuto da espontaneidade.
Um desses estilos é o modo de pensar que recomendei. Muito embora o espaço
lógico em que reside a idéia de espontaneidade não possa associar-se ao espaço lógico em
que residem as idéias daquilo que é natural no sentido relevante, os poderes conceituais
estão, mesmo assim, operantes, enquanto tais, nas atividades de nossa sensibilidade, em
realizações de nossa natureza animal. Conforme eu já reconheci, isto pode parecer a
expressão de uma nostalgia pela visão de mundo pré-científica, um apelo ao
reencantamento da natureza. E, certamente, isto exige que oponhamos resistência a uma
RAZÃO E NATUREZA 70
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concepção caracteristicamente moderna, segundo a qual, para ser natural, algo deve estar
posicionado no reino da lei.
A terceira abordagem diverge exatamente quanto a isto. Tenho em vista, aqui, um
modo de pensar que é quase explícito na filosofia de Davidson.
Davidson se opõe a uma desmistificação nua e cruamente naturalista daquela que é,
na verdade, a idéia da espontaneidade. Ele afirma que os conceitos das "atitudes
proposicionais" só fazem sentido se forem governados por um "ideal constitutivo da
racionalidade".73 Nos termos que venho utilizando, a alegação seria a seguinte: a função
fundamental destes conceitos é fornecer instrumentos para o tipo de inteligibilidade própria
dos significados, isto é, o tipo de inteligibilidade que encontramos em algo quando o
colocamos no espaço das razões.74 Com base nisto, Davidson tenta mostrar que não
podemos reduzir aqueles conceitos a conceitos governados por um outro "ideal
constitutivo", ou, para falar em termos sellarsianos, conceitos que moram num outro espaço
lógico. Falando especificamente e, mais uma vez, nos termos que venho utilizando: o papel
intelectual desempenhado pelos conceitos relacionados à espontaneidade não pode ser
duplicado em termos de conceitos cuja função fundamental é colocar as coisas no reino da
lei.
Até aqui, o que temos é algo como o solo compartilhado por todos aqueles que se
opõem ao naturalismo nu e cru. O que é característico da abordagem davidsoniana é uma
alegação ontológica: aquelas mesmas coisas que satisfazem os conceitos sui generis, os
conceitos cuja aplicabilidade sinaliza a presença da espontaneidade, já estão em princípio
disponíveis para uma investigação cujo interesse seja o reino da lei. O foco constitutivo
posto sobre os dois tipos de inteligibilidade divide o equipamento conceitual em dois lotes,
sem dividir aquilo a que eles se aplicam. Davidson faz esta alegação ontológica
especificamente a respeito de eventos: todo evento, mesmo aqueles subsumidos pelos
conceitos que fornecem instrumental para a inteligibilidade do "espaço das razões", podem
em princípio ganhar inteligibilidade em termos das operações das leis naturais.
O objetivo de Davidson, neste ponto, é possibilitar a afirmação de que as coisas que
satisfazem os conceitos sui generis mantêm relações causais, tanto entre si quanto com
outras coisas, sem ameaçar a tese de que as relações causais se dão apenas entre ocupantes
do reino da lei. Dada esta tese, as coisas que satisfazem os conceitos sui generis podem ser
ligadas causalmente somente se forem, além disso, ocupantes do reino da lei. E Davidson
diz que elas o são, muito embora elas não se revelem enquanto tais por satisfazerem os
conceitos sui generis.75 Mas estaremos mais próximos de minhas preocupações se
considerarmos um objetivo análogo, no qual a tese de que as relações causais se dão entre
ocupantes do reino da lei é substituída pela tese de que ser natural é ocupar uma posição no
reino da lei. Neste contexto, o objetivo da alegação ontológica seria possibilitar a afirmação
de que as coisas que satisfazem os conceitos sui generis são itens da natureza, muito

73
Cf. "Mental Events", in Essays on Actions and Events (Clarendon Press, Oxford, 1980), pp. 207–
225, especialmente pp. 221–3.
74
Estou supondo que o pensamento de Davidson esteja voltado para aquilo que chamei, em termos
kantianos, de "a espontaneidade do entendimento". Baseio-me, para tanto, na óbvia convergência entre a
invocação feita por Davidson do "ideal constitutivo da racionalidade" para explicar aquilo que é específico no
aparato conceitual do qual ele se ocupa, e a imagem sellarsiana do espaço das razões, que explorei na
tentativa de glosar a idéia kantiana de espontaneidade.
75
Portanto, uma razão pode ser uma causa, muito embora ela não mantenha relações causais em
virtude de suas relações racionais.
RAZÃO E NATUREZA 71
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embora o fato de satisfazerem os conceitos sui generis não revele as posições que eles
ocupam no reino da lei.
Não desejo (aqui, pelo menos) questionar a verdade da alegação ontológica. Quero
apenas notar que esta abordagem é excludente da concepção de experiência que
recomendei. Enquanto não questionarmos se a naturalidade específica de uma coisa é
mesmo o local que ela ocupa no reino da lei, o fato de a sensibilidade ser natural irá
colaborar com o fato de o conceito de espontaneidade funcionar no espaço das razões,
excluindo a possibilidade de que a espontaneidade possa permear as operações da
sensibilidade enquanto tal – pelo menos se nos opusermos a uma integração nua e
cruamente naturalista do espaço das razões com o reino da lei. De acordo com a tese
ontológica, os itens que instanciam os conceitos sui generis relacionados à espontaneidade
têm uma localização no reino da lei. Mas os conceitos são sui generis exatamente porque
não é em virtude de sua localização no reino da lei que as coisas instanciam aqueles
conceitos. Assim, se continuarmos a igualar o lugar de uma coisa na natureza com sua
localização no reino da lei, estaremos impedidos de sustentar que uma experiência possui
seu conteúdo conceitual precisamente enquanto fenômeno natural como outro qualquer que
ela é.
Todos admitem que as impressões do sentido são manifestações da vida sensorial,
sendo, portanto, fenômenos naturais. A estratégia que estou considerando garante que não
pode ser enquanto fenômenos naturais, que elas de fato são, que as impressões são
caracterizáveis em termos de espontaneidade. Seu lugar na natureza é sua localização nessa
estrutura completamente diferente que é o reino da lei. Assim, realizações de uma
capacidade natural de sentir, consideradas em si mesmas, só podem ser intuições numa
concepção dualista: produtos da natureza desencantada operando independentemente da
espontaneidade. E isto nos deixaria trancados no quadro de possibilidades em que Davidson
e Evans se movem. Procurei mostrar que isto é intolerável.

5. Distingui três concepções a respeito de como a espontaneidade está relacionada à


natureza. Se uma é intolerável, resta examinar as outras duas.
Uma alternativa seria voltar ao naturalismo nu e cru. A esta altura, deve estar
ficando claro o quanto isto pode ser atrativo, não apenas porque está de acordo com um
cientificismo que modela boa parte do pensamento contemporâneo, mas também porque
oferece aquilo que parece ser a única saída de um impasse filosófico. Eu explorei aquilo
que parecia ser uma escolha forçada entre o Mito do Dado e um coerentismo que renuncia
aos constrangimentos externos sobre o pensamento. Um diagnóstico tentador a respeito
desta dificuldade filosófica irá remetê-la à idéia de que não podemos inserir o pensamento
em nossa concepção, a menos que asseguremos uma aplicação para noções sui generis de
justificação racional e outras semelhantes: noções que funcionam em seu próprio espaço
lógico, que é alheio à estrutura do reino da lei. Se pudermos descartar esta idéia, todo este
oceano de filosofia poderá se acalmar. O naturalismo nu e cru nos diz para não continarmos
a ser importunados por estas ansiedades. Ao invés disso, deveríamos começar a salvar o que
valer a pena em nossa concepção de nós mesmos, reconstruindo-a em termos de um
equipamento conceitual que já será, de modo não-problemático, naturalista.
A única outra opção é procurar um modo de aceitar aquilo em que venho insistindo:
que um conceito sui generis de espontaneidade (sui generis de um modo que ameace
recolocar o problema que acabamos de mencionar) pode, apesar disso, entrar na
caracterização de estados e ocorrências da sensibilidade tomados em si mesmos, enquanto
RAZÃO E NATUREZA 72
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realizações de nossa natureza que eles são. O naturalismo nu e cru põe a culpa pelas
dificuldades na idéia de que a espontaneidade é sui generis, mas ele não é o único alvo
possível de nossas suspeitas. Há também o naturalismo que iguala a natureza ao reino da
lei. É necessário este pano de fundo para que tenhamos a impressão de que só podemos
reconhecer o caráter sui generis da espontaneidade se nos posicionarmos no quadro de
possibilidades em que Davidson e Evans se movimentam.
Seria uma trapaça, uma manobra meramente verbal, objetar que o naturalismo a
respeito da natureza não pode ser posto em questão. Se pudermos repensar nossa concepção
de natureza abrindo espaço à espontaneidade, muito embora negando que a espontaneidade
possa ser capturada com os recursos de um naturalismo nu e cru, estaremos, ao mesmo
tempo, repensando nossa concepção daquilo que é necessário a uma posição para que ela
mereça ser chamada de "naturalista".

6. Esse repensar exige uma outra concepção das realizações de nossa natureza. Precisamos
trazer a responsividade ao significado de volta às operações de nossas capacidades
sensórias naturais consideradas em si mesmas, insistindo, ao mesmo tempo, no fato de que
a responsividade ao significado não pode ser capturada em termos naturalistas, caso a
palavra "naturalista" for interpretada em termos do reino da lei.
Pode-se facilmente ter a impressão de que não há espaço para movimento aqui.
Dando as costas ao naturalismo nu e cru, comprometemo-nos com a afirmação de que a
idéia de saber transitar pelo espaço das razões, a idéia de responsividade a relações
racionais não pode ser reconstruída a partir de materiais que são naturalistas no sentido que
estamos tentando superar. Isto parece nos comprometer com um platonismo desenfreado. 76
Pode parecer que nós devemos retratar o espaço das razões como uma estrutura autônoma –
autônoma no sentido de ter-se constituído independentemente de qualquer coisa
especificamente humana, já que tudo que é especificamente humano é certamente natural (a
idéia do humano é a idéia de algo pertencente a uma certa espécie de animais), e nós
estamos nos recusando a naturalizar as exigências da razão. Mas as mentes humanas
devem, de algum modo, ser capazes de aderir a esta estrutura inumana. Tudo se passa,
portanto, como se estivéssemos retratando os seres humanos parcialmente dentro e
parcialmente fora da natureza. Precisávamos de um naturalismo que deixasse espaço para o
significado, mas isto não é de maneira alguma um tipo de naturalismo.77
Mas existe uma saída. Ficaremos expostos à ameaça deste supernaturalismo se
interpretarmos a afirmação de que o espaço das razões é sui generis como a recusa de uma
naturalização das exigências da razão. Mas o que a era da moderna revolução científica nos
legou foi uma compreensão precisa do reino da lei, e podemos nos recusar a equiparar essa
compreensão a uma clareza inaudita a respeito da natureza. Isto nos deixa espaço para
insistirmos no caráter sui generis da espontaneidade, se comparada ao reino da lei, sem
cairmos com isso no supernaturalismo do platonismo desenfreado.
76
Uso iniciais minúsculas para enfatizar que tomo o rótulo "platonismo" mais ou menos no sentido
que ele tem na filosofia da matemática. Não estou insinuando nenhuma conexão com Platão, para além da
semelhança geral na imagística subjacente ao uso do termo no contexto da matemática. Direi algo contra a
associação desta posição com a de Platão na Sexta Conferência (§1).
77
O monismo davidsoniano não nos ajuda neste ponto. Não é reconfortante pensar que todas as
coisas a respeito das quais nós falamos fazem parte da natureza, se ainda estivermos presos a verdades a
respeito de algumas delas que parecem ser sobrenaturais. O problema posto pelo contraste entre o espaço das
razões e o reino da lei, no contexto de um naturalismo que concebe a natureza como o reino da lei, não é
ontológico, mas ideológico.
RAZÃO E NATUREZA 73
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Para ficarmos seguros de que nossa responsividade a razões não é sobrenatural,


deveríamos sempre pensar que nossas vidas é que são modeladas pela espontaneidade,
padronizadas de maneiras que só ficam patentes numa investigação pautada por aquilo que
Davidson chama de "o ideal constitutivo da racionalidade". Os exercícios da
espontaneidade pertencem a nosso modo de viver. Como nosso modo de viver é nosso
modo de realizar nossas potencialidades animais, podemos reformular esse pensamento da
seguinte forma: os exercícios da espontaneidade pertencem ao nosso modo de realizar
nossas potencialidades animais. Isto elimina qualquer necessidade de tentarmos ver a nós
mesmos como seres curiosamente bifurcados, com um pé no reino animal, e um
envolvimento separado e misterioso com um mundo extranatural de conexões racionais.
Isto não exige que borremos o contraste entre o espaço das razões e o reino da lei.
Para considerarmos naturais os exercícios da espontaneidade, não precisamos integrar
conceitos relativos à espontaneidade à estrutura do reino da lei; precisamos apenas
sublinhar o papel desempenhado por eles na captura de padrões realizada no âmbito de um
modo de viver. Naturalmente, não haveria contraste nenhum neste ponto, caso a idéia de
vidas e de suas configurações pertencesse exclusivamente ou principalmente ao espaço
lógico do reino da lei. Não há razão nenhuma, porém, para supormos que seja assim.

7. Refletir sobre a ética aristotélica é a melhor maneira que conheço de nos aprofundarmos
nesta concepção diferente daquilo que é natural.
Para Aristóteles, a virtude de caráter, no sentido estrito, é diferente de uma
propensão meramente habitual a agir de um modo que corresponda àquilo que a virtude
requer.78 A virtude de caráter propriamente dita inclui um estado especificamente modelado
do intelecto prático: a "sabedoria prática" (practical wisdom), tal como a palavra é
habitualmente traduzida.79 Ela consiste numa responsividade a algumas demandas da razão
(muito embora não seja este o modo de Aristóteles se expressar). O quadro resultante
mostra que a ética envolve exigências da razão que estão aí, quer saibamos disso, quer não,
e que nossos olhos se abrem a essas exigências pela aquisição da "sabedoria prática". A
"sabedoria prática", portanto, é o tipo da coisa adequada a servir como modelo para o
entendimento, a faculdade que nos habilita a reconhecer e a criar o tipo de inteligibilidade
que depende de uma inserção no espaço das razões.
Leitores modernos freqüentemente atribuem a Aristóteles o objetivo de construir as
exigências da ética a partir de fatos independentes ligados à natureza humana.80 Isto
significa atribuir a Aristóteles o esquema para uma fundamentação naturalista da ética, na
qual a natureza desempenha uma versão arcaica do papel desempenhado pela natureza
desencantada na moderna ética naturalista. Dada a prevalência de leituras deste tipo, fica
difícil exibir a concepção aristotélica da maneira que eu quero – como um modelo para
repensarmos radicalmente a noção de natureza. Lida da maneira usual, a concepção
aristotélica do entendimento ético seria, antes, um tipo peculiar de naturalismo nu e cru.

78
Ética a Nicômaco, 6.13.
79
Cf., p. ex., a tradução de Sir David Ross, The Nicomachean Ethics of Aristotle (Oxford University
Press, Londres, 1954). A tradução de Terence Irwin (Hackett, Indianapolis, 1985) opta por "intelligence". A
palavra usada por Aristóteles é "phronesis". [Em português, a tradução habitual é "prudência". Usarei, apesar
disso, a expressão mais próxima da escolhida por McDowell. N.doT.]
80
Para uma leitura deste tipo, cf. Bernard Williams, Ethics and the Limits of Philosophy (Harvard
University Press, Cambridge, Mass., 1985), cap. 3. Algo semelhante pode ser encontrado em Alasdair
MacIntyre, After Virtue (Duckworth, Londres, 1981), cap. 9.
RAZÃO E NATUREZA 74
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Mas eu acho que este tipo de leitura é uma monstruosidade histórica. Este papel
reconfortante atribuído à natureza só pode dar a impressão de que faz sentido se for tomado
como resposta a um tipo de angústia a respeito do estatuto das razões – no caso, razões
éticas – que é completamente estranha a Aristóteles. O que está por trás da angústia é
precisamente a concepção de natureza que apresentei como sendo caracteristicamente
moderna. Quando o tipo de inteligibilidade pertencente ao reino da lei é claramente
demarcado, o outro lado da moeda é a constatação de que a estrutura do espaço das razões é
comparativamente especial. E há uma tendência compreensível de se tomar o estudo da
natureza como o verdadeiro modelo daquilo que é investigar o modo como as coisas são.
Assim, quando a natureza ameaça expulsar o espaço das razões, surgem preocupações
filosóficas a respeito do estatuto das conexões racionais enquanto algo a respeito de que
podemos estar certos ou errados. Uma resposta a estas preocupações é resistir à expulsão
imitando o naturalismo nu e cru, isto é, deixando a concepção de natureza inquestionada,
mas insistindo em que, no final das contas, as supostas exigências racionais que queremos
defender podem estar fundamentadas em (ou podem ser contruídas a partir de) fatos
independentes da natureza. Se estou certo a respeito da gênese dessas preocupações, é
necessariamente um anacronismo querer enxergar algo deste tipo em Aristóteles.81
Se uma pessoa concebe sua situação prática em termos que lhe são fornecidos por
uma perspectiva ética específica, ela se verá diante de aparentes razões para agir. Com base
numa compreensão melhorada da concepção de Aristóteles, o único ponto de vista do qual
essa pessoa pode se perguntar se tais razões são genuínas é o ponto de vista que ela assume
exatamente por possuir uma perspectiva ética específica. Esta é uma perspectiva na qual
aquelas aparentes exigências podem ser encaradas enquanto tais, e não uma perspectiva
fundacionista, na qual a pessoa poderia tentar reconstruir a partir do zero a
reivindicabilidade daquelas exigências a partir de materiais fornecidos por uma descrição
independente da natureza.
Aristóteles mal chega a considerar que pudessem surgir dúvidas a respeito da
perspectiva ética específica que ele pressupõe. 82 Segundo o ponto de vista que estou
atacando, isto seria uma demonstração de confiança em sua capacidade de validar aquela
perspectiva ética fazendo apelo à natureza. Penso, porém, que isto mostra que ele é imune a

81
Compare as preocupações da epistemologia tal como a conhecemos – preocupações amplamente
reconhecidas como inconfundivelmente modernas. No fundo, a questão é a mesma. Sellars remontou as
angústias da epistemologia moderna ao fato de que a idéia de conhecimento é a idéia de uma inserção numa
rede de justificações. Foi neste contexto que ele mencionou o espaço das razões. A angústia com respeito ao
conhecimento (do tipo moderno, que nos é familiar) ocorre quando esse fato é justaposto à ameaça de vermos
o espaço das razões expulso da natureza. Não que essa concepção do conhecimento como uma posição no
espaço das razões fosse nova, como se apenas por volta do século XVII as pessoas tivessem se dado conta
dessa idéia que se mostrou tão fecunda na epistemologia moderna – a idéia de o conhecimento ser um status
normativo. Antes da era moderna, porém, a idéia de o conhecimento ser um status normativo não era
percebida como algo que se mantivesse em tensão, digamos, com a idéia de que o conhecimento pudesse ser o
resultado do exercício de potências naturais. Um naturalismo que responde a esta tensão procurando, no final
das contas, fundamentar as conexões normativas constitutivas do espaço das razões numa natureza (concebida
exatamente do modo que ameaça gerar tensões) é muito diferente de um naturalismo como o de Aristóteles,
que jamais sente nenhum tipo de tensão neste ponto, nem tem qualquer necessidade da imagística dos
fundamentos. Discuto isto mais detalhadamente em "Two Sorts of Naturalism", in Rosalind Hursthouse e
Gavin Lawrence (eds.), Virtues and Reasons. Philippa Foot on Moral Theory. Essays in Honour of Philippa
Foot (Clarendon Press, Oxford, 1995).
82
Ele não mostra interesse em ocupar-se dessas dúvidas, e estipula que só está se dirigindo a pessoas
em quem aquela perspectiva ética foi inculcada (Nicomachean Ethics, 1.4, 1095b4–6).
RAZÃO E NATUREZA 75
_______________________________________________________

nossas angústias metafísicas; ele simplesmente não é vulnerável ao tipo de preocupação de


que se ocuparia uma concepção assim. Mostra também algo menos interessante: uma
tendência à arrogância, que facilmente podemos corrigir.
Como qualquer outro tipo de pensamento, o pensamento ético tem a obrigação
permanente de refletir sobre (e criticar) os padrões pelos quais, numa determinada época,
ele se deixa governar. (Para uma aplicação desta idéia ao pensamento empírico, cf. Primeira
Conferência, §5; Segunda Conferência, §6.) Aristóteles pode estar sendo menos sensível a
esta obrigação do que deveria no caso da ética, mas ela está implícita na própria idéia de
uma modelagem do intelecto, e a "sabedoria prática" é exatamente isso. Ora, é fundamental
entender que, para essa crítica reflexiva, a imagem apropriada é a de Neurath, do navegante
que conserta sua embarcação enquanto está navegando. Isto não significa que essa reflexão
não possa ser radical. Alguém pode se sentir na obrigação de jogar fora partes de seu modo
herdado de pensar; além disso, embora seja mais difícil ajustar isto à imagem de Neurath,
as fraquezas que a reflexão revela nos modos herdados de pensar podem determinar a
formação de novos conceitos e concepções. O essencial, porém, é que só podemos refletir
inseridos no modo de pensar a respeito do qual estamos refletindo. Portanto, ao
imaginarmos que a incidência de nossa perspectiva ética sobre uma situação chama nossa
atenção para exigências que são reais, não precisamos postular qualquer tipo de validação
que não seja a neurathiana. A idéia é que esta aplicação de nossa perspectiva ética resistiria
a um auto-escrutínio reflexivo feito de nossa própria perspectiva.
Sem dúvida, o auto-escrutínio de uma perspectiva ética é capaz de tomar nota de
fatos independentes a respeito do reino da lei, caso eles sejam relevantes. Mas isto não
significa que possamos reconstruir, a partir de materiais que são naturalistas no sentido
examinado há pouco, a idéia de exigências éticas genuínas feitas a nós mesmos. A idéia de
estarmos corretos em nossos pensamentos éticos possui uma certa autonomia. Não
precisamos concebê-la como algo que aponta para fora da esfera do próprio pensamento
ético.
Naturalmente, o fato de uma idéia ter, até aqui, passado pelos testes que um modo
de pensar, num exame reflexivo, faz a partir de dentro, não garante que ela seja aceitável. O
modo de pensar, aí incluídos seus padrões implícitos de auto-escrutínio, pode ter defeitos
até aqui despercebidos, tais como o paroquialismo ou a confiança no mau preconceito. 83 Só
podemos, entretanto, fazer um esforço sincero para eliminar os tipos de defeito que nosso
pensamento corre o risco de ter, e talvez expandir nossa concepção a respeito dos modos de
as coisas darem errado, de modo a nos prevenirmos contra outras fontes potenciais de erro.
O melhor que podemos fazer é sempre, em alguma medida, provisório e inconcluso, mas
isto não é uma razão para nos entregarmos à fantasia de uma validação externa.
Enriquecida, de modo a dar espaço à reflexividade, a concepção aristotélica pode ser
traduzida do seguinte modo. O ético é um domínio de exigências racionais que estão aí,
haja o que houver, quer sejamos ou não responsivos a elas. Somos despertados para estas
demandas pela aquisição das capacidades conceituais apropriadas. Quando uma criação
decorosa nos inicia no modo relevante de pensar, nossos olhos se abrem para a existência
desse terreno no espaço das razões. Daí para a frente, nossa familiaridade com a
conformação detalhada desse terreno estará sujeita a um refinamento indefinidamente
maior pelo escrutínio reflexivo de nosso pensamento ético. Não podemos sequer entender,
83
"Mau preconceito" não é um pleonasmo. Para a idéia de que o preconceito, longe de ser
necessariamente uma coisa má, é uma condição para o entendimento, cf. Gadamer, Truth and Method,
pp. 277–85.
RAZÃO E NATUREZA 76
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quanto mais justificar, a idéia de que a razão nos faz estas exigências apenas de um ponto
de vista localizado no interior de um sistema de conceitos e concepções que nos capacita a
pensar a respeito dessas mesmas exigências, isto é, apenas de um ponto de vista a partir do
qual essas exigências parecem ganhar visibilidade.
Em minha segunda conferência (§4), falei a respeito de uma concepção lateralizada
do entendimento e do mundo, concepção que coloca a realidade fora das fronteiras que
delimitam o conceitual. Um naturalismo cientificista encoraja uma variante desta
concepção na qual aquilo que está fora dessas fronteiras é o reino da lei. Se conceber a
realidade como o reino da lei a deixa desencantada, aquilo que está para lá da fronteira não
pode conter exigências da razão, ou coisas do gênero. Portanto, a própria idéia de uma
sensibilidade às verdadeiras demandas da razão parecerá fantasmagórica, a menos que
possamos reconstruí-la a partir de materiais que sejam naturalistas no sentido relevante.
Esta concepção tenta atribuir ao reino da lei uma versão naturalizada do papel que
Kant atribui ao supra-sensível. Mas não é assim que se corrige aquilo que é insatisfatório no
modo kantiano de pensar a respeito do supra-sensível: mantendo o formato básico, e apenas
naturalizando aquilo que é exterior à esfera conceitual. Agindo assim, perdemos o insight
que Kant acabou corrompendo, ao inseri-lo no quadro geral de seu discurso a respeito do
supra-sensível; perdemos aquilo que, em Kant, discernimos por entre os obstáculos: um
modo de dar sentido a um pensamento empírico racionalmente responsável perante uma
realidade à qual ele pretende se referir. Se isto se perde, perde-se a própria possibilidade de
um pensamento empírico. Este tipo de naturalismo tende a se ver como um senso comum
ilustrado, mas ele não passa, na verdade, de uma metafísica primitiva. A maneira de corrigir
aquilo que é insatisfatório no pensamento de Kant a respeito do supra-sensível é, pelo
contrário, adotar a concepção hegeliana, na qual o conceitual não tem limites externos.
Insisti (Segunda Conferência, §8) em dizer que é exatamente assim que não ameaçaremos o
senso comum e sua convicção de que o mundo é independente de nosso pensamento.
De qualquer modo, este naturalismo pseudokantiano nada tem a ver com Aristóteles.
Ele responde a uma angústia filosófica cujas fontes estão dois milênios à frente de
Aristóteles. Do ponto de vista aristotélico, a idéia de que as exigências da ética sejam reais
não é uma projeção, ou uma construção feita a partir de fatos que poderiam ser vistos por
alguém independentemente da participação desse alguém na vida e no pensamento éticos,
como se tais fatos estivessem disponíveis para uma investigação lateralizada do modo como
a vida e o pensamento éticos estão relacionados ao contexto natural no qual ocorrem. 84 O
fato de as exigências nos dizerem respeito não se reduz a nada diferente dele mesmo. É
algo que só ganha visibilidade no interior do tipo de pensamento que concebe as situações
práticas em termos desse tipo de exigência.
Ao atribuir este caráter auto-sustentável às exigências éticas e aos pensamento que
dizem respeito a elas, a perspectiva que estou atribuindo a Aristóteles fica parecendo um
tipo de platonismo. Mas não se trata daquilo que chamei de "platonismo desenfreado" (§6).
Caímos no platonismo desenfreado quando supomos que a estrutura do espaço das razões
seja sui generis, mas deixamos intocada a igualação da natureza ao reino da lei. Isto faz
com que nossa capacidade de responder a razões se pareça a um poder oculto, algo que se
acrescenta ao fato de sermos os animais que somos, isto é, à nossa situação na natureza. Na
84
Segundo o tipo de leitura que estou contestando, Aristóteles atribuiria este estatuto fundacionista a
fatos referentes àquilo que tornaria uma vida humana satisfatória. Mas a noção de vida satisfatória aparece em
Aristóteles de um modo que já é completamente ético. As motivações relevantes adquirem forma a partir de
preocupações que são éticas desde o começo. (Cf. Nicomachean Ethics 1.7, 1098a16–17.)
RAZÃO E NATUREZA 77
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concepção aristotélica, porém, as exigências racionais da ética não são estranhas às


contingências de nossa vida enquanto seres humanos. Muito embora não se suponha que
pudéssemos explicar a idéia relevante de exigibilidade em termos de fatos
independentemente inteligíveis a respeito dos seres humanos, ainda assim, a educação
ordinária que recebemos é capaz de modelar as ações e pensamentos dos seres humanos de
tal modo que aquelas exigências tornam-se visíveis.
Para focalizar o modo pelo qual esta concepção pode servir de modelo para nós,
considere a noção de segunda natureza. A noção é quase explícita na explicação que
Aristóteles nos dá a respeito da formação do caráter ético. 85 Como o caráter ético inclui
disposições do intelecto prático, parte daquilo que acontece quando o caráter se forma
consiste no fato de que o intelecto prático adquire uma determinada forma. Sendo assim, a
sabedoria prática torna-se uma segunda natureza para quem a possui. Venho insistindo em
que, para Aristóteles, as exigências racionais da ética são autônomas. Não nos devemos
sentir compelidos a validá-las a partir de um ponto exterior a um modo de pensar que já
seja ético. Esta autonomia, entretanto, não distancia aquelas exigências de nada que seja
especificamente humano, como ocorre no platonismo desenfreado. Elas estão essecialmente
ao alcance dos seres humanos. Não podemos atribuir uma apreciação dessas exigências à
natureza humana apresentada por um naturalismo da natureza desencantada, pois a natureza
desencantada não abarca o espaço das razões. Mas os seres humanos são
compreensivelmente iniciados nesta faixa do espaço das razões através da educação ética,
que é capaz de instilar em suas vidas a forma apropriada. Os hábitos de pensamento e de
ação resultantes são uma segunda natureza.
Isto deveria neutralizar o medo do sobrenaturalismo. A segunda natureza não é algo
que possa flutuar solta, desligada das potencialidades que pertencem a um organismo
humano normal. Isto dá à natureza humana uma sustentação no reino da lei suficiente para
satisfazer todo e qualquer respeito devido à moderna ciência natural.
O ponto claramente não se restringe à ética. Moldar o caráter ético – o que inclui a
imposição de uma forma específica ao intelecto prático – é um caso particular de um
fenômeno mais geral: a iniciação nas capacidades conceituais, que inclui responsividade a
outras exigências racionais, além das exigências éticas. Tal iniciação normalmente faz parte
daquilo que está envolvido no amadurecimento de um ser humano, e é por isso que, embora
a estrutura do espaço das razões seja estranha à disposição da natureza concebida como o
reino da lei, isto não nos leva para os lugares distantes do universo humano que estão na
mira do platonismo desenfreado. Se generalizarmos o modo como Aristóteles concebe a
modelagem do caráter ético, chegaremos à noção de possuir olhos abertos às razões em
geral por meio da aquisição de uma segunda natureza. Não me ocorre nenhuma expressão
curta da língua inglesa para traduzir esta idéia, mas é ela que está envolvida no sentido da
palavra alemã Bildung.

8. Nestas conferências, até aqui, tomei a experiência perceptiva como objeto de estudo,
com a finalidade de descrever um tipo de enrascada em que costumamos cair quando
pensamos a respeito de certos aspectos da condição humana. Prometi que tentaria
desencavar uma influência muito enraizada, mas, conforme podemos perceber, não
compulsória sobre nosso pensamento, influência esta que explica a enrascada a que me
85
Cf. Nicomachean Ethics, Livro II. Para uma excelente discussão, cf. M.F. Burnyeat, "Aristotle on
Learning to Be Good", in Amélie Oksenberg Rorty, ed., Essays on Aristotle's Ethics (University of California
Press, Berkeley, 1980), pp. 69–92.
RAZÃO E NATUREZA 78
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referi. Acabo de apresentar meu candidato a desempenhar esse papel: o naturalismo que
deixa a natureza desencantada. Tendemos a deixar esquecida a idéia de segunda natureza.
Estou sugerindo que, se pudermos recapturar essa idéia, seremos capazes de deixar a
natureza, por assim dizer, parcialmente encantada, mas sem recair na superstição
pré-científica ou no platonismo desenfreado. Isto abre espaço para uma concepção de
experiência que é imune às armadilhas filosóficas que descrevi.
Precisamos recapturar a idéia aristotélica de que um ser humano normal na
maturidade é um animal racional, mas sem perder a idéia kantiana de que a racionalidade
opera livremente em sua própria esfera. A idéia kantiana é refletida no contraste entre a
organização do espaço das razões e a estrutura do reino da lei natural. O naturalismo
moderno deixa a segunda natureza esquecida. Se tentarmos preservar o pensamento
kantiano de que a razão é autônoma nos quadros daquele tipo de naturalismo,
desconectaremos nossa racionalidade de nossa animalidade, que nos dá nosso ponto de
apoio na natureza. O resultado é uma tentação de eliminar o pensamento kantiano e
naturalizar a racionalidade nos moldes do naturalismo nu e cru. Descrevi isto como a opção
de abandonar esta região da filosofia. Se quisermos evitar os problemas sem deixar de
reconhecer que eles existem, precisamos nos ver como animais cujo ser natural está
permeado de racionalidade, embora esta racionalidade só possa ser concebida de maneira
apropriada em termos kantianos.
Aquilo que estou sugerindo poderia ser expresso na forma de uma tarefa para a
filosofia – a tarefa de efetuar uma reconciliação. Pode parecer que eu esteja insistindo numa
concepção de filosofia que Richard Rorty tentou retratar como fora de moda. 86 Mas não me
sinto ameaçado pelas objeções de Rorty, e isto por dois motivos. Em primeiro lugar, a
necessidade de conciliação que tenho em vista surge num período particular da história das
idéias, um período em que nosso pensamento tende compreensivelmente a ser dominado
por um naturalismo que constringe a idéia de natureza. Minha sugestão não envolve uma
idéia que Rorty ataca de modo persuasivo – a idéia de que existe um conjunto atemporal de
obrigações para a filosofia. Em segundo lugar, a tarefa que tenho em vista não é a mesma
que Rorty desconstrói – a tarefa de reconciliar o sujeito com o objeto, o pensamento com o
mundo. Minha proposta é que devemos tentar reconciliar a razão com a natureza, e o
sentido de se fazer isso é atingir um objetivo a que o próprio Rorty aspira – uma disposição
de espírito na qual não parecemos mais estar diante de problemas que vão bater à porta da
filosofia, para que ela faça sujeito e objeto ficarem juntos novamente. Se conseguíssemos
nos estabilizar num naturalismo da segunda natureza, firmando-nos de tal modo que não
fôssemos abalados pela tentação de recair nas preocupações filosóficas ordinárias a respeito
de como inserir nossas mentes no mundo, isto não teria produzido a menor quantidade do
tipo de filosofia que Rorty procura superar. Para usar a frase tocante de Wittgenstein,
teríamos obtido "a descoberta que leva a filosofia ao repouso ".87

86
Cf. Philosophy and the Mirror of Nature.
87
Philosophical Investigations, §133.
AÇÃO, SIGNIFICADO E O EU 79
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QUINTA CONFERÊNCIA
AÇÃO, SIGNIFICADO E O EU

1. Venho discutindo como acomodar o sentido geral da observação de Kant – "Pensamentos


sem intuições são vazios; intuições sem conceitos são cegas". Segundo o ponto de vista que
recomendei, as capacidades conceituais são, num certo sentido, não-naturais: não podemos
capturar o que é possuir e empregar o entendimento, uma faculdade de espontaneidade, em
termos de conceitos que colocam as coisas no reino da lei. Mas a espontaneidade está
inextricavelmente envolvida na receptividade, e nossa capacidade de receptividade, nossos
sentidos, são parte de nossa natureza. Num outro sentido, portanto, as capacidades
conceituais precisam ser naturais. De outro modo, se admitirmos que a idéia de
espontaneidade funciona num quadro conceitual sui generis, nós nos comprometemos a
representar as entregas da sensibilidade como intuições sem conceitos. Isto nos deixa
oscilando entre, de um lado, um coerentismo que não consegue dizer de que maneira os
pensamentos poderiam deixar de ser vazios, e, de outro lado, um vão apelo a meras
presenças. Esta estranha escolha parece ser a única alternativa a um naturalismo nu e cru,
um modo de pensar que não permitiria que estas dificuldades sequer se colocassem.
Pode ser difícil encontrar outra saída, a não ser negar que a idéia de espontaneidade
funciona num quadro conceitual sui generis. A sensibilidade é uma de nossas potências
naturais. Como pode a espontaneidade ser não-natural, em qualquer sentido, se ela está
inextricavelmente envolvida em nossas capacidades sensórias, quando estas são ativadas?
Em minha última conferência, porém, sugeri que a dificuldade é ilusória. Nossa
natureza é, em grande parte, uma segunda natureza, e nossa segunda natureza é do jeito que
é, não apenas em função das potencialidades com que nascemos, mas também em função
de nossa formação, de nossa Bildung. Dada a noção de segunda natureza, podemos dizer
que nossas vidas são modeladas pela razão de um modo natural, ao mesmo tempo que
negamos que a estrutura do espaço das razões possa ser integrada na esquematização geral
do reino da lei. Eis aí o reencantamento parcial da natureza de que eu havia falado.
Isto não significa cair num platonismo desenfreado. No platonismo desenfreado, a
estrutura do espaço das razões, a estrutura na qual inserimos as coisas quando
reconhecemos sentido nelas, é simplesmente extranatural. Nossa capacidade de fazer
ressonância àquela estrutura terá que ser misteriosa. É como se tivéssemos um ponto de
apoio para pisarmos fora do reino animal, num explêndido reino inumano de idealidades.
Graças, porém, à noção de segunda natureza, não há nenhum vestígio disso por aqui. Nossa
Bildung realiza algumas das potencialidades com que nascemos. Não temos que supor que
ela introduza um ingrediente não-animal em nossa constituição. E, embora a estrutura do
espaço das razões não possa ser reconstruída a partir de fatos a respeito de nossa inserção
no reino da lei, ela pode ser o arcabouço no interior do qual os significados só ganham
visibilidade porque a Bildung tem a capacidade de abrir nossos olhos para eles – Bildung
que é um elemento no processo normal de chegada à maturidade do tipo de animais que
somos. O significado não é um presente misterioso que nos vem de fora da natureza.
Estas considerações deveriam diminuir um dos atrativos daquilo que chamei de
"naturalismo nu e cru". Se nos recusarmos a naturalizar a espontaneidade no interior do
reino da lei, pode parecer que ficaríamos presos ao impasse filosófico de que eu parti – a
escolha forçada entre o coerentismo e o Mito do Dado. Mas a recusa de uma naturalização
da espontaneidade não gera, por si só, o impasse. Há também o naturalismo, que iguala a
revelação de como uma coisa se ajusta à natureza com a inserção dessa coisa no reino da
AÇÃO, SIGNIFICADO E O EU 80
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lei. Deixando de lado o naturalismo, não teríamos por que concluir que, como as operações
da sensibilidade, enquanto tais, são eventos da natureza, se forem consideradas em si
mesmas elas só podem ser intuições sem conceitos. Portanto, a partir do momento em que a
segunda natureza entra em cena, o impasse não precisa mais parecer a recomendação de um
naturalismo nu e cru. Podemos afirmar que a noção de espontaneidade funciona num
quadro conceitual que nada tem a ver com a estrutura do reino da lei, e também que ela é
necessária na descrição de realizações de potencialidades naturais. Se identificássemos a
natureza ao reino da lei, essa combinação seria incoerente. Se admitirmos, porém, que as
potencialidades naturais incluam potencialidades da segunda natureza, a ameaça de
incoerência desaparece.88

2. Para apresentar os atrativos de um naturalismo atenuado, explorei as dificuldades


filosóficas ligadas à experiência perceptiva. Este enfoque, porém, não é obrigatório. As
dificuldades apenas exemplificam um certo tipo.
Enfatizei que a experiência é passiva (Primeira Conferência, §5). A este respeito, a
posição que venho recomendando coincide com o Mito do Dado. A passividade da
experiência nos permite reconhecer a existência de um controle externo sobre nosso
pensamento empírico, caso a passividade seja coerente com um envolvimento da
espontaneidade. Mas é difícil ver como é possível haver esta combinação. Minha última
conferência procurou revelar a origem da dificuldade.
Ora, a dificuldade não diz respeito à passividade da experiência enquanto tal, mas à
sua inserção na natureza. O problema é que as operações da sensibilidade são realizações
de uma potencialidade que é parte de nossa natureza. Quando supomos que ter sensações é
um modo de ser afetado pelo mundo, estamos concebendo isto como um fenômeno natural,
e, então, fica difícil perceber como uma espontaneidade sui generis poderia ter com esse
fenômeno uma relação que não fosse externa. A passividade, porém, não está contida na
idéia mesma de realização de uma potencialidade natural. Deveríamos ser capazes, então,
de construir uma linha de raciocínio a respeito da realização de potências naturais ativas,
duplicando as dificuldades que explorei no caso das potências naturais passivas.
Considere, por exemplo, a capacidade de movermos um de nossos membros, tal
como esta capacidade aparece no quadro conceitual de um naturalismo que deixa a natureza
desencantada. Venho discutindo o modo como um naturalismo deste tipo distancia uma
espontaneidade sui generis da fruição da sensibilidade por parte de um sujeito, dado que a
sensibilidade é uma capacidade natural. De modo análogo, ele distancia uma
espontaneidade sui generis dos exercícios da potência de mover os nossos membros, dado
que tal potência é natural. O resultado é uma dificuldade similar quando nos pomos a
refletir a respeito da ação corporal.
Kant diz – "Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são
cegas". De modo semelhante, intenções sem uma atividade manifesta são vãs, e
88
Talvez "naturalismo nu e cru" não seja um bom rótulo para uma posição adotada pelas razões que
estou considerando aqui. Alguém que pensasse desta maneira poderia ter consciência dos argumentos em
favor da tese de que a estrutura do espaço das razões é sui generis, não tendo nada a ver com estrutura do
espaço da lei, mas, apesar disso, achar que as coisas não podem ser assim, sob pena de chegarmos a um
impasse filosófico. O naturalismo, aqui, é motivado por uma recusa refletida de uma filosofia inaproveitável.
O rótulo "naturalismo nu e cru" ajusta-se melhor a um cientificismo irrefletido: não uma recusa fundamentada
de uma filosofia inaproveitável, mas um modo de pensar que não considera explicitamente tudo aquilo que
ameaça nos levar àquela filosofia. É possível que pessoas que pensam desta maneira devam receber nossas
felicitações por sua imunidade, mas é importante não confundir esta imunidade com um feito intelectual.
AÇÃO, SIGNIFICADO E O EU 81
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movimentos de membros sem conceitos são meros eventos, não expressões de uma agência.
Tentei mostrar que podemos acomodar o sentido geral da observação de Kant se aceitarmos
esta afirmação: experiências são realizações de nossa natureza sensorial nas quais as
capacidades conceituais estão inextricavelmente envolvidas. A situação paralela seria a
seguinte: ações corporais intencionais são realizações de nossa natureza ativa nas quais as
capacidades conceituais estão inextricavelmente envolvidas.
Mas, do mesmo modo que um naturalismo que desencanta a natureza exlui o
entendimento das realizações de potencialidades de nossa natureza sensória enquanto tal,
neste caso ele exclui nossa competência conceitual daquilo que deveria poder ser
reconhecido como realizações de pontencialidades de nossa natureza ativa enquanto tal:
ocorrências nas quais coisas naturais, como nossos membros, fazem coisas naturais. E esta
exclusão apresenta conseqüências características quando refletimos a respeito da ação.
Excluída do reino dos acontecimentos constituídos por movimentos feitos por coisas
ordinárias da natureza, a espontaneidade da agência tenta, de modo típico, montar
residência num reino interior especialmente concebido para esses fins. A realocação da
espontaneidade pode ser vista como uma renúncia ao naturalismo, ou, então, o reino
interior pode ser concebido como uma região especial do mundo natural. 89 Seja como for,
esse estilo de pensamento só dá à espontaneidade um papel na ação corporal sob a forma de
elementos internos, representados como algo que dá início aos acontecimentos corporais a
partir de dentro, podendo, por isso, ser reconhecidos como intenções ou volições. Os
acontecimentos corporais, por sua vez, são eventos na natureza; no contexto de um
naturalismo desencantador, combinado à convicção de que o conceitual é sui generis, isto
significa que esses acontecimentos não podem estar imbuídos de intencionalidade. 90 Eles
são realizações de potências naturais, e por esta razão só podem figurar neste estilo de
pensamento enquanto meros acontecimentos. (Sem dúvida, eles podem ser destacados do
conjunto dos acontecimentos tomado como um todo, mas apenas na medida em que são
efeitos daquelas operações interiores da espontaneidade.)
Ao vermos a agência removida da natureza – pelo menos da natureza ordinária, na
qual ocorrem os movimentos de nosso corpo – sentimos abalar-se nossa convicção de que
as potências naturais que são realizadas nos movimentos de nossos corpos sejam potências
que nos pertencem enquanto agentes. Nossas potências enquanto agentes retiram-se para o
interior, e nossos corpos, com as potências neles sediadas – potências que parecem ser
89
A segunda opção, sempre acompanhada de uma reflexão filosófica a respeito de outros aspectos do
mental, ajusta-se bem à filosofia cartesiana da mente – aquela, pelo menos, que nos é fornecida por uma
leitura bastante conhecida, posta em circulação por Gilbert Ryle em The Concept of Mind (Hutchinson,
Londres, 1949). Podemos entender a filosofia cartesiana da mente, naquela leitura, como o reflexo de uma
consciência incipiente daquilo que só mais tarde será visto como o caráter sui generis do espaço das razões. É
compreensível que, num estágio primitivo da gênese da idéia de lugar ocupado por algo na natureza – idéia
comparada à qual o espaço das razões é sui generis, e que, ao ganhar foco, passa a ser vista como algo que
exclui aquilo que é feito pelos conceitos que funcionam no espaço das razões – deva existir uma inclinação
para se supor que aquilo que é especial a respeito desses conceitos é o fato de eles posicionarem os elementos
que os satisfazem num terreno especial da natureza, com a natureza sendo entendida segundo uma forma
rudimentar da própria idéia que instala a tensão.
90
Como tudo mais, esses acontecimentos podem conformar-se a uma especificação que poderia
fornecer o conteúdo de uma intenção. Segundo este ponto de vista, no entanto, a intenção não pode estar mais
intimamente envolvida nos movimentos dos membros de um agente do que, digamos, na queda de uma
árvore. Em ambos os casos, podemos ter um evento que se conforma a uma especificação concebida por um
agente, e que ocorre em conseqüência de a especificação ter sido concebida. A intenção tem uma relação
meramente externa com o próprio evento.
AÇÃO, SIGNIFICADO E O EU 82
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diferentes, já que suas realizações não são coisas que fizemos, mas, na melhor das
hipóteses, efeitos de coisas que fizemos – assumem o aspecto de objetos estrangeiros a nós
mesmos. Acaba parecendo que o que fazemos, mesmo naquelas ações que consideramos
corporais, é, quando muito, direcionar nossas vontades (de longe, por assim dizer) para
ocasionar mudanças de estado naqueles objetos estrangeiros.91 Isto certamente não é uma
imagem satisfatória de nossa relação ativa com nossos corpos. Assim como, ao excluir a
espontaneidade da natureza sensorial, acabamos por apagar qualquer coisa que pudéssemos
reconhecer como um conteúdo empírico, ao retirarmos a espontaneidade da natureza ativa,
eliminamos qualquer entendimento autêntico da agência corporal.
Também aqui, podemos recuperar a sanidade se recapturarmos a idéia aristotélica de
que um ser humano maduro normal é um animal racional, sendo que a racionalidade é parte
integrante de seu ser animal e, portanto, natural, e não um misterioso ponto de apoio que
lhe permite pôr os pés num outro reino. Para tanto, devemos perceber que nossa natureza é,
em grande medida, uma segunda natureza.92

3. Em minha última conferência (§7), afirmei que a ética de Aristóteles incorpora um


modelo de naturalismo que não obstrui uma concepção satisfatória da experiência (e, posso
agora acrescentar, da ação). Trata-se de um naturalismo da segunda natureza, e sugeri que
também podemos vê-lo como um platonismo naturalizado. A idéia é que, de um modo ou
de outro, os ditames da razão estão aí, quer tenhamos ou não nossos olhos abertos para eles.
É isso que acontece quando um indivíduo recebe uma formação adequada. Precisamos
tentar compreender a idéia de que os ditames da razão são objetos de uma consciência
iluminada apenas a partir do interior do modo de pensar em que uma formação adequada
desse tipo nos inicia: um modo de pensar que constitui uma perspectiva a partir da qual
aqueles ditames já ganharam visibilidade.
Este platonismo naturalizado é completamente distinto do platonismo desenfreado.
No platonismo desenfreado, a estrutura racional dentro da qual o significado ganha
visibilidade é independente de qualquer coisa meramente humana, de modo que a
capacidade que nossas mentes possuem de fazer ressonância a ela adquire uma aparência
oculta, ou mágica. O platonismo naturalizado é platônico porque a estrutura do espaço das
razões tem uma certa autonomia. Ela não é derivada de verdades a respeito dos seres
humanos que possam ser capturadas independentemente de termos aquela estrutura em
vista, nem é um reflexo de verdades desse tipo. Mas este platonismo não é desenfreado: a
estrutura do espaço das razões não é constituída em isolamente esplêndido de qualquer
fator meramente humano. As demandas da razão são por sua própria essência de tal tipo
que uma criação humana é capaz de abrir os olhos humanos para elas.
Ora, nos últimos escritos de Wittgenstein a respeito do significado e da
compreensão, o platonismo desenfreado aparece como uma armadilha a ser evitada. 93 E eu

91
Digo "quando muito", pois esta é uma imagem instável. As supostas vontades estão apartadas de
qualquer ocorrência na natureza ordinária e, no final das contas, acabam enfranquecendo a própria idéia de
vontade.
92
Meu objetivo ao fazer estar observações a respeito da agência é apenas deixar claro que as
angústias filosóficas que venho explorando têm um caráter geral: a aplicação à experiência é apenas um caso.
Muito mais poderia ser dito de sua aplicação à ação. Em particular, penso que o modo como certos
acontecimentos corporais são nossa espontaneidade em ação (e não meros efeitos dessa espontaneidade) é
crucial para que tenhamos um entendimento adequado do eu como uma presença corporal no mundo. Isto é
algo que ficará claro mais à frente nesta conferência (§5). Mas não me estenderei muito a esse respeito.
AÇÃO, SIGNIFICADO E O EU 83
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penso que o platonismo naturalizado é um bom modo de entender aquilo que Wittgenstein
tinha em vista ali.
Gostaria de enfatizar o quanto isto é diferente de muitas intepretações da obra de
Wittgenstein. Muitos leitores atribuem implicitamente a Wittgenstein uma posição
filosófica que foi descrita em minha última conferência (§7): uma posição que nos leva a
encontrar fantasmagorias na própria idéia de que as exigências da razão estão aí para que os
sujeitos tenham seus olhos abertos para elas, caso não consigamos reconstruir essa idéia a
partir de fatos independentes. Isto nos põe diante de uma tarefa filosófica, e a idéia é que
Wittgenstein nos indica um modo de executar essa tarefa fazendo apelo a interações sociais,
descrevendo-as de modo a não pressupor o material a ser reconstruído.94
Se, neste estilo comunitário ou "pragmático social", estivermos tentando construir
algo que possa ser reconhecido como a posse de um significado (inteligibilidade
tipicamente constituída pela inserção no espaço das razões), não poderemos tomar o
significado como algo autônomo. Na verdade, é este o sentido geral deste tipo de leitura: a
sensação de fantasmagoria reflete a convicção de que qualquer platonismo a respeito do
significado, qualquer posição que atribua autonomia ao significado, é necessariamente um
platonismo desenfreado, com suas incursões características no oculto. Quando, com base
nisto, renunciamos à autonomia do significado, isto coloca em questão uma aparente
concepção de senso comum a respeito da objetividade do mundo, da realidade a respeito da
qual nosso domínio do significado nos permite falar e pensar. Se não há nada a se
considerar na estrutura normativa na qual o significado ganha visibilidade, exceto, digamos,
aceitações e rejeições de fragmentos comportamentais por parte da comunidade em geral,
então a maneira como as coisas são – a maneira como podemos dizer que as coisas são,
com um grau de correção que deve em parte consistir em termos sido fiéis aos significados
que utilizaríamos se disséssemos que elas são deste ou daquele modo – não pode ser
independente do fato de a comunidade ratificar o juízo segundo o qual as coisas são deste
ou daquele modo. Os mais perspicazes proponentes deste tipo de leitura aceitam
explicitamente esta conseqüência em nome de Wittgenstein.95
Penso que a conseqüência é intolerável, mas não me darei ao trabalho de justificar
esta avaliação. O que desejo, agora, é ressaltar um ponto a respeito da orientação filosófica
deste tipo de abordagem: ela está fora de sintonia com algo que é central para a concepção
93
O platonismo desenfreado está claramente envolvido na idéia de um "fato superlativo"
(Philosophical Investigations, §192), que Wittgenstein registra como uma idéia que podemos nos sentir
tentados a ter quando refletimos sobre "como significar [algo] pode determinar os passos de antemão" (§190).
Na apresentação que Wittgenstein faz dessa síndrome, o suposto "fato superlativo" tende a ser retratado na
forma de um supermecanismo, semelhante a um mecanismo ordinário, mas com a diferença de que ele seria
feito de um material incrivelmente rígido (cf. §97).
94
Cf. Saul Kripke, Wittgenstein on Rules and Private Language (Basil Blackwell, Oxford, 1982).
Crispin Wright faz uma leitura semelhante, mas independente. O ponto de partida de ambos é a rejeição por
Wittgenstein da mitologia associada ao platonismo desenfreado. O Wittgenstein de Kripke conclui que não há
nada que constitua nossa capacidade de perceber as exigências que o significado nos faz. Devemos entender o
papel que aquela idéia desempenha em nossas vidas em termos de nossa participação numa comunidade.
Wright lê nos mesmos textos um gesto indicando uma abordagem positiva daquilo que constitui nossa
apreensão do significado. (Mas apenas um gesto: a renúncia "oficial" de Witgenstein a toda teoria filosófica
positiva, o seu "quietismo", o impederia de reconhecer que está envolvido na formulação de uma filosofia
construtiva.) Cf. Crispin Wright, "Critical Notice of Colin McGinn, Wittgenstein on Meaning", Mind 98
(1989), 289–305.
95
Cf. a discussão feita por Wright da "transcendência à ratificação" no cap. 11 de Wittgenstein on the
Foundations of Mathematics (Duckworth, Londres, 1980).
AÇÃO, SIGNIFICADO E O EU 84
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wittgensteiniana daquilo que deve ser feito na filosofia, a saber, seu "quietismo", sua
rejeição de quaisquer ambições construtivas ou doutrinais. 96 Creio que isto seja suficiente
para nos assegurar de que este tipo de abordagem é incapaz de captar o núcleo daquilo que
Wittgenstein estava querendo dizer.
A filosofia moderna acreditou que estivesse sendo chamada a construir pontes sobre
os abismos dualistas envolvendo sujeito e objeto, pensamento e mundo. Este estilo de
abordagem do significado se propõe a construir uma ponte sobre o abismo dualista
envolvendo norma e natureza. Poder-se-ia alegar que este é um dualismo mais profundo,
que está na origem dos dualismos costumeiros da filosofia moderna. Até aí, tudo certo. Isto
se ajusta bem à imagem em que venho insistindo. O que está em discussão, porém, é que
resposta devemos dar a este dualismo mais profundo.
A filosofia moderna ordinária trata seus dualismos derivados de um modo
característico. Ela se posiciona de um dos lados do abismo sobre o qual ela quer construir
uma ponte, aceitando sem questionar o modo como o dualismo que ela elege como alvo
concebe o lado que ela escolheu. Aí, então, ela constrói algo tão próximo quanto possível
da concepção do outro lado que aparece nos problemas, utilizando materiais que estão
disponíveis de forma não problemática ali no ponto em que ela se posicionou.
Naturalmente, não parece mais haver abismo algum, mas o resultado está condenado a
parecer mais ou menos revisionista. (O quão revisionista, é algo que dependerá do quão
urgente eram os problemas aparentes originais: o quão firmemente entricheirado estava o
modo de pensar que deu a aparência de ser uma fenda intransponível.) O fenomenalismo é
um bom exemplo de uma construção filosófica que possui este formato tradicional. Ele tem
por objetivo preencher uma lacuna entre a experiência e o mundo construindo o mundo a
partir da experiência, concebendo esta última exatamente do modo que deu origem à
angústia.
Este estilo supostamente wittgensteiniano de abordagem do significado enfrenta
aquele dualismo mais profundo exatamente desse modo. O ímpeto que conduz a esta
abordagem é a fantasmagoria que identificamos nas normas, quando estas são concebidas
platonicamente. Isto reflete um olhar sobre as normas que, no dualismo da norma e da
natureza, está do lado da natureza. A natureza é identificada ao reino da lei, e isto nos
coloca diante da ameaça costumeira do desencantamento. Ora, qualquer variante do
platonismo fará com que as normas fiquem do outro lado de um enorme abismo, e isto é
suficiente para criar uma tarefa filosófica de aspecto familiar: construir um símile tão
próximo quanto possível daquilo que ameaça parecer fora de nosso alcance mediante a
utilização exclusiva de materiais reconfortantemente disponíveis do lado de cá do abismo.
O objetivo é fazer o abismo desaparecer. Se nossa construção não tiver características que
aquilo que pôs o problema parecia possuir, não terá ocorrido nada além do revisionismo
que era de se esperar.
Este será apenas mais um espasmo da filosofia moderna ordinária, gabando-se de
ser o último, e não aquilo a que Wittgenstein aspira, isto é, que não nos deixemos iludir pela
aparente necessidade de uma filosofia ordinária. E isto não é apenas uma peculiaridade da
concepção que Wittgenstein tinha de si mesmo, que deva ser deixada de lado para que
continuemos a lê-lo como se ele fosse mais um filósofo ordinário. A aspiração não é
fantasiosa. O naturalismo da segunda natureza que venho descrevendo é precisamente uma
forma de pensar que faria com que até mesmo este último dualismo não desse a impressão

96
Wright tem plena consciência disto. Sua resposta é deplorar a postura "quietista" de Wittgenstein.
AÇÃO, SIGNIFICADO E O EU 85
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de estar reclamando uma filosofia construtiva. A simples idéia de uma Bildung nos assegura
que a autonomia do significado não é inumana, e isto deveria eliminar a tendência que
temos de fugir de normas e exigências racionais como se estivéssemos diante de fantasmas.
Isto não nos deixa nenhuma questão genuína a respeito das normas, a não ser aquelas que
fazemos quando refletimos a respeito de normas específicas, numa atividade que não é
particularmente filosófica. Do ponto de vista de um naturalismo que desencanta a natureza,
não há necessidade de uma filosofia construtiva, que se dirige à própria idéia de normas da
razão, ou à estrutura no interior da qual os significados ganham visibilidade. Deste ponto de
vista, não é necessário que tentemos dotar os significados de visibilidade.
Naturalmente, a categoria do social é importante. Se não fosse assim, a Bildung não
poderia ter seu lugar nesta concepção. O que importa, porém, não é o fato de o social
fornecer o arcabouço para uma construção da própria idéia de significado: algo que tornaria
essa idéia segura o suficiente para ser usada por um naturalismo restritivo, desses que
ameaçam desencantar a natureza. Como diz Wittgenstein, "Ordenar, perguntar, narrar,
papear fazem parte de nossa história natural tanto quanto andar, comer, beber, jogar". 97 Por
"nossa história natural", ele deve querer dizer a história natural das criaturas cuja natureza
é, em grande medida, uma segunda natureza. A vida humana, nossa maneira natural de ser,
está desde o começo conformada pelo significado. A conexão desta história natural à
natureza entendida como o reino da lei não precisa ir além da simples afirmação de nosso
direito à noção de segunda natureza.
Estou atribuindo um "ismo" a Wittgenstein – platonismo naturalizado. Estarei com
isto menosprezando sua insistência em dizer que não está interessado em oferecer uma
doutrina filosófica? Não. Lembre-se daquilo que eu disse no final da última conferência
(§8) a respeito de Rorty e da "descoberta que leva a filosofia ao repouso". "Platonismo
naturalizado" não é o rótulo para uma peça de filosofia construtiva. A expressão serve
apenas para abreviar um "lembrete": é uma tentativa de fazer com que nosso pensamento
pare de rodar sobre sulcos que nos levam a pensar que uma filosofia construtiva seja uma
necessidade.98

4. No fim da minha segunda conferência (§8), eu fisse que, se tomarmos a noção kantiana
de experiência fora dos quadros em que ele a põe – uma história a respeito da afecção
transcendental da receptividade por uma realidade supra-sensível – ela se torna exatamente
aquilo de que precisamos. Fora daqueles quadros, a noção kantiana é um modo satisfatório
de evitar nosso dilema, que nos põe diante da escolha aparentemente forçada entre o Mito
do Dado e um coerentismo que renuncia a constrangimentos externos sobre nosso
pensamento. A moldura kantiana, no entanto, estraga todo o insight, já que a radical
independência que o supra-sensível possui em relação à mente parece nos dar um exemplo
daquilo que toda genuína independência da mente deveria ser. Assim, quando Kant procura
atribuir ao mundo empírico ordinário, tal como ele o concebe, uma independência em
relação à mente, ele parece simplesmente não estar sendo sincero. Deixei pairando no ar a
questão sobre por que Kant posiciona neste contexto insatisfatório sua tentativa de chegar
ao insight necessário.
Ora, existem características bastante conhecidas do pensamento kantiano que
podem nos ajudar a explicar por que ele se sentiu atraído pela idéia de uma realidade
supra-sensível incognoscível, numa aparente violação de seus próprios padrões daquilo que
97
Philosophical Investigations, §25.
98
Cf. Philosophical Investigations, §127.
AÇÃO, SIGNIFICADO E O EU 86
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faz sentido dizer. O arcabouço transcendental dá a impressão de explicar como pode haver
conhecimento das características necessárias da experiência, e Kant acha que o
reconhecimento do supra-sensível é um modo de proteger os interesses da religião e da
moralidade. Este último ponto, aliás, está diretamente relacionado à minha questão.
Existem pressões no interior do pensamento ético que tendem a distorcer a ética até
transformá-la naquilo que Bernard Williams chama de "o sistema da moralidade". 99 Uma
das características do "sistema da moralidade" é a aparência de que só poderíamos ser
genuinamente responsáveis pelos exercícios de uma liberdade completamente
incondicionada. Isto ajuda a entender por que Kant tende a supor que a espontaneidade
genuína teria que estar completamente livre de constrangimentos. O máximo que
poderíamos ter numa experiência empiricamente concebida seria uma espontaneidade
naturalmente constrangida. Isto estaria condenado a parecer um artigo de segunda linha, se
comparado à liberdade incondicionada que a responsabilidade moral supostamente requer.
Nenhuma destas explicações, porém, opera no interior do pensamento kantiano a
respeito da própria experiência. Considerações exteriores, que dizem respeito aos interesses
da própria filosofia, da religião e da moralidade, podem nos aproximar de uma
compreensão das razões pelas quais a concepção da experiência que Kant nos apresenta
acaba distorcendo algumas de suas melhores idéias; considerações deste tipo, no entanto,
não podem fornecer uma explicação completa.
Podemos construir uma explicação interna em termos das pressões exercidas pelo
naturalismo moderno. Sem dúvida, a noção de Bildung está à disposição de Kant, mas não
como o pano de fundo para um emprego sério da idéia de segunda natureza. Para Kant, a
idéia de natureza é a idéia do reino da lei, a idéia que ganhou o primeiro plano com o
surgimento da ciência moderna. Considere, por exemplo, a resposta de Kant a Hume. Hume
havia reagido com excessivo entusiasmo ao efeito desencantador do naturalismo moderno.
Ele pensava que deveríamos negar à natureza, não apenas a inteligibilidade do sentido, mas
também a inteligibilidade da lei. Contra Hume, Kant tenta resgatar, para a natureza, a
inteligibilidade da lei, mas não a inteligibilidade do sentido. Para Kant, a natureza é o reino
da lei e, por isso mesmo, é destituída de sentido. Dada esta concepção da natureza, a
espontaneidade genuína não pode figurar em descrições de realizações de potências
naturais consideradas em si mesmas.
Este ponto envolve questões delicadas. Para Kant, o mundo empírico ordinário, que
inclui a natureza com o reino da lei, não é externo à esfera conceitual. Tendo-se em vista a
conexão entre a esfera conceitual e o tipo de inteligibilidade que convém ao sentido, sugeri
que uma defesa de Kant requer um reencantamento parcial da natureza. (Cf. Quarta
Conferência, §§3 e 4.) Mas essa defesa não exige que reabilitemos a idéia de que existe
sentido na queda de um pardal, ou no movimento dos planetas, do mesmo modo que há
sentido num texto. A modernidade nos ensinou que o reino da lei, considerado em si
mesmo, é carente de sentido. Seus elementos constituintes não estão ligados uns aos outros
pelas relações que constituem o espaço das razões. No entanto, se nosso pensamento a
respeito daquilo que é natural parar por aí, não teremos como compreender adequadamente
a capacidade exibida pela experiência de assimilar as ocorrências destituídas de sentido que
constituem o reino da lei. Não termos como enlaçar satisfatoriamente a espontaneidade e a
receptividade em nossa concepção de experiência, o que significa que não poderemos
explorar a idéia kantiana de que o reino da lei, a exemplo do reino das ações significativas,

99
Cf. Ethics and the Limits of Philosophy, cap. 10.
AÇÃO, SIGNIFICADO E O EU 87
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não é exterior à esfera conceitual. O entendimento – essa mesma capacidade que aplicamos
aos textos – tem que estar envolvida em nossa assimilação de meros eventos destituídos de
sentido.100
A falta de uma noção convincente de segunda natureza explica por que não há uma
base estável no pensamento de Kant para a concepção correta de experiência. Mas não
explica de que maneira, mesmo com tudo isto, ele chegou tão próximo da concepção
correta. Neste ponto, penso que devemos simplesmente ficar maravilhados diante de seu
insight, especialmente se levarmos em conta que o aparato transcendental impede que esse
insight assuma a forma apropriada. Não se trata de dizer que o aparato transcendental seja
um pensamento adventício e gratuito. Na ausência de uma noção convincente de segunda
natureza, o insight só pode mesmo aparecer nesta forma distorcida.
Se concebermos as intuições como produtos de uma natureza desencantada, e a
espontaneidade como não-natural, o mais perto que conseguiremos chegar da concepção de
que precisamos é a posição davidsoniana, discutida em minha última conferência (§4): a
espontaneidade caracteriza aquilo que são, na verdade, operações da natureza sensorial,
mas não as caracteriza enquanto tais. Isto nos deixa nas mãos de nosso conhecido dilema:
ou bem devemos achar um modo de supor que, mesmo assim, as operações da natureza
sensorial são capazes de manter relações racionais com o pensamento (o Mito do Dado), ou
devemos aceitar que a sensibilidade não possui qualquer relevância epistêmica (um
coerentismo radical). Na verdade, Kant percebe que esta escolha é inaceitável. Sendo
assim, a espontaneidade deve estruturar as operações de nossa sensibilidade considerada
enquanto tal. Como não considera a possibilidade de um naturalismo da segunda natureza,
e como não vê atrativos no naturalismo nu e cru, Kant não é capaz de encontrar um lugar na
natureza para a necessária conexão real entre conceitos e intuições. Vendo-se nesta
dificuldade, ele não tem outra opção, a não ser colocar a conexão fora da natureza, no plano
transcendental.
Neste ponto, Kant é particularmente brilhante. Muito embora não tenha nenhum
modo inteligível de lidar com esta situação, ele consegue manter-se fiel ao insight de que
uma conexão puramente nocional entre conceitos e intuições não iria funcionar. Isto forçou-
o a uma saída que era ininteligível de seu próprio ponto de vista. A conexão real deve
consistir no fato de a espontaneidade estar envolvida na afecção transcendental da
receptividade pelo supra-sensível. E, agora, a idéia correta de que nossa sensibilidade se
abre para uma realidade que não é externa ao conceitual pode aparecer apenas de um modo
distorcido, como se o mundo empírico ordinário fosse constituído por aparências de uma
realidade que está além dele.
Ao lado desta tensão a que o pensamento kantiano está sujeito quando tenta
encontrar um lugar para esse insight essencial a respeito da experiência no ambiente
mortífero de um naturalismo sem segunda natureza, deveríamos notar, ainda, uma outra
influência histórica: a ascenção do individualismo protestante. Ela traz consigo o fim, ou
pelo menos o enfraquecimento da idéia de que imergir numa tradição pudesse ser um modo
respeitável de se ter acesso à realidade. Pelo contrário, parece caber a cada pensador
individual conferir tudo por conta própria. Quando tradições particulares parecem estar
calcificadas ou definhando, isso parece encorajar a fantasia de que deveríamos deixar de
lado a confiança na tradição como um todo, quando, na verdade, a reação correta seria
insistir em que uma tradição respeitável deve incluir uma responsividade à crítica reflexiva.

100
Estou respondendo aqui a comentários de Robert Brandon e Michael Lockwood.
AÇÃO, SIGNIFICADO E O EU 88
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O resultado desta desvalorização da tradição é um ponto de vista no qual a razão


individual é soberana. E é difícil combinar isto com a idéia de que a razão deveria estar
operante em estados ou ocorrências de passividade pura e simples, que a deixariam em
dívida com o mundo. Portanto, aquilo que no começo parecia ser o fim da idéia de que a
razão possa dever sua existência ao fato de estar inserida numa tradição, acaba se
mostrando uma tensão exercida sobre a idéia de que razão possa dever o que quer que seja
a impactos vindos do mundo. Direi mais algumas coisas a respeito da relevância da tradição
em minha última conferência.

5. Se pudéssemos equipar Kant com a idéia de segunda natureza, isto não apenas iria livrar
sua idéia de experiência do efeito distorcivo que o arcabouço em que ele tenta expressá-la
acaba tendo sobre ela; isto também permitiria que a conexão entre a autoconsciência e a
consciência do mundo (que aparece em seu pensamento de um modo equívoco) assumisse
um aspecto satisfatório.
Na Dedução Transcendental, Kant parece defender uma tese do seguinte tipo: a
possibilidade de entendermos as experiências ("a partir de dentro") como vislumbres de
uma realidade objetiva tem uma relação de interdependência com a capacidade de o sujeito
atribuir experiências a si mesmo – com o fato, portanto, de o sujeito ser autoconsciente.101
Tudo estaria muito bem, caso o eu em questão fosse, ao menos no final das contas, o
eu ordinário. Mas é difícil conciliar isto com aquilo que Kant realmente diz. Quando
introduz essa autoconsciência que, segundo ele, seria correlata à consciência de uma
realidade objetiva, ele fala num "eu penso" que deve ser capaz de "acompanhar todas as
minhas representações".102 Nos Paralogismos da Razão Pura, ele afirma que, se atribuímos
a este "eu" uma referência invariável, a idéia relevante de identidade ao longo do tempo é
apenas formal. Nada tem a ver com a identidade substancial de um sujeito que persiste
enquanto presença real no mundo que ele percebe.103 A continuidade temporal subjetiva,
que é uma contraparte da relação da experiência com a realidade objetiva, encolhe até se
transformar na continuidade de um mero ponto de vista, e não, aparentemente, de algo
substancial, que continua.104
Kant tem uma razão para sustentar a tese dos Paralogismos, segundo a qual somente
uma idéia formal de persistência ao longo do tempo está disponível para o "eu" nesse "eu
penso" que é capaz de "acompanhar todas as minhas representações". Ele pensa que
qualquer outra coisa o comprometeria com uma concepção cartesiana do eu.
Considere a abordagem que Locke faz daquilo que é uma pessoa: "um ser
inteligente e pensante, que possui razão e reflexão, e é capaz de considerar ele mesmo
como ele mesmo (itself as itself), a mesma coisa pensante, em diferentes tempos e
lugares".105 Locke está falando sobre o que ele chama de "consciência"; nós poderíamos
chamá-la de "autoconsciência". A "consciência" é capaz de juntar, num único exame,
101
Com relação a esta leitura da Dedução Transcendental, cf. Strawson, The Bounds of Sense, pp. 72–
117.
102
Cf. Critique of Pure Reason, B131.
103
A363: "A identidade da consciência de mim mesmo em tempos diferentes … é apenas uma
condição formal de meu pensamento e de sua articulação, mas não prova de maneira alguma a identidade
numérica de meu sujeito."
104
Cf. Quassim Cassam, "Kant and Reductionism", Review of Metaphysics 43 (1989), pp. 72–106,
especialmente pp. 87–8.
105
An Essay Concerning Human Understanding, ed. por P.H. Nidditch (Clarendon Press, Oxford,
1975), 3.27.9.
AÇÃO, SIGNIFICADO E O EU 89
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estados e ocorrências temporalmente separados entre si. Eles serão pensados como
elementos pertencentes à carreira de uma coisa pensante, que persiste no tempo. Falando
em termos kantianos: no "eu penso" que é capaz de "acompanhar todas as minhas
representações", a referência deste "eu" é pensada como algo que se estende para o passado
e para o futuro. Mas o que Kant está dizendo, nos Paralogismos, é que o fluxo daquilo que
Locke chama de "consciência" não envolve a aplicação de um critério de identidade, nem a
garantia de conformidade com um tal critério. 106 Na continuidade da "consciência" ao longo
do tempo, existe algo que se parece ao conhecimento de uma identidade, a persistência de
um mesmo objeto durante um certo intervalo. Parte do conteúdo do fluxo da "consciência"
é a idéia de uma referência persistente para o "eu" desse "eu penso" capaz de "acompanhar
todas as minhas representações". No entanto, quando um sujeito faz esta aplicação da idéia
de persistência, ele não precisa fazer força para garantir que sua atenção permaneça fixa na
mesma coisa. Para efeito de contraste, considere a manutenção do pensamento focalizado
num objeto ordinário da percepção durante um certo intervalo de tempo. Isto requer a
capacidade de se manter informado a respeito de algo, habilidade que podemos conceber
como um substituto prático para a aplicação explícita de um critério de identidade. A
continuidade da "consciência" não envolve nada análogo a isto; não precisamos nos manter
informados a respeito da persistência de um eu que, no entanto, parece fazer parte do
conteúdo daquela continuidade.107
Suponha agora que estejamos assumindo que, ao providenciar o que for necessário
para o conteúdo deste pensamento de um eu persistente, devemos ficar confinados ao fluxo
da própria "consciência". Se o tema do pensamento for uma substância que persiste, aquilo
que constitui sua existência continuada deve ser peculiarmente simples. A noção de
persistência aplica-se, neste caso, sem nenhum esforço: não há nada nela que não seja o
próprio fluxo da "consciência". Isto parece uma receita para chegarmos à concepção, ou
suposta concepção da referência daquele "eu" que aparece em Descartes.
Esta é, em sua essência, a explicação kantiana para o surgimento da concepção
cartesiana do ego. E pode facilmente parecer que seria melhor chegarmos à conclusão
kantiana: a idéia da persistência que figura no fluxo da "consciência" deveria ser apenas
formal. Se admitíssemos que ela é a idéia de uma persistência substancial – o continuar a
existir de algo objetivo – estaríamos comprometidos com uma compreensão da
autoconsciência que a toma como o estar-consciente de um ego cartesiano.
Como enfatizei, porém, isto depende de assumirmos que, quando providenciamos o
que é necessário para o conteúdo desta idéia de persistência, devemos nos restringir ao
âmbito do fluxo da "consciência". E esta assunção não é sacrossanta. Na verdade, ela é
profundamente suspeita. Penso que ela é a verdadeira raiz da concepção cartesiana. Se a
106
É esta a leitura que Strawson faz dos Paralogismos: The Bounds of Sense, pp.162–170.
107
Para um maior desenvolvimento desta tese que Strawson encontra em Kant, cf. Evans, The
Varieties of Reference, p. 237. Evans (ou, mais provavelmente, seu editor) parece enganar-se quando afirma
que a idéia pode ser apreendida em termos do conceito de "imunidade a erro devido a uma falha de
identificação", conceito que ele explora em outro ponto (pp. 179–91), associado ao pensamento demonstrativo
baseado na percepção. Temos "imunidade a erro devido a uma falha de identificação" quando a predicação
não é anexada ao sujeito por meio de um juízo de identidade. No entanto, como ressalta Evans na p. 236, a
"dispensa de identificação", nesse sentido, é compatível com o fato de um juízo depender de nos mantermos
informados a respeito de seu objeto – exatamente aquilo que Evans nega no caso da autoconsciência.
Mantermo-nos informados é algo que faz as vezes, por assim dizer, de um "componente de identificação"
naquilo que está subjacente ao pensamento demonstrativo continuado a respeito dos objetos da percepção. A
tese a respeito do eu é uma forma particularmente forte da "dispensa de identificação".
AÇÃO, SIGNIFICADO E O EU 90
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descartamos, abrimos espaço para a suposição de que a continuidade do "eu penso" envolve
uma persistência substancial, sem que devamos nos comprometer com o fato de que o
continuante em questão seja um ego cartesiano. Podemos dizer que a continuidade da
"consciência" só é inteligível enquanto apropriação subjetiva de algo em que estão
envolvidas mais coisas do que aquelas que a própria "consciência" contém: apropriação da
carreira de um continuante objetivo com o qual o sujeito de uma "consciência" contínua é
capaz de se identificar. É bem verdade que a continuidade no interior da apropriação
subjetiva não exige que nos mantenhamos informados a respeito de uma coisa que persiste,
mas esta ausência de esforço não exige que demos razão a Kant quando ele diz que a
identidade, neste caso, é apenas formal. Mesmo "vista de dentro", a apropriação subjetiva é
inserida por nós num contexto mais amplo e, deste modo, pode haver mais coisas no
conteúdo da idéia de persistência que essa apropriação incorpora. O contexto mais amplo
torna possível entender que a primeira pessoa, a referência contínua do "eu" nesse "eu
penso" que é capaz de "acompanhar todas as minhas representações", é também uma
terceira pessoa, algo cuja carreira é uma continuidade substancial no mundo objetivo: algo
tal que outros modos de pensamento continuado a seu respeito exigiriam que nos
mantivéssemos informados sobre ele. Este é um modo de expressar o ponto central do
brilhante tratamento que Gareth Evans dá ao problema da auto-indentificação, que se valeu,
por sua vez, da brilhante leitura feita por P.F. Strawson dos Paralogismos.108
Eu acho que alguma coisa deste tipo seria o enquadramento correto para a idéia
kantiana de que existe uma interdependência entre a autoconsciência e a consciência do
mundo. E é possível que haja insinuações neste sentido na obra de Kant.109 Mas não vejo
como poderíamos afirmar que seja esta sua doutrina oficial. Situando a autoconsciência
num contexto mais amplo, podemos evitar o ego cartesiano, sem precisar dizer que a idéia
de um eu persistente incorporado à continuidade da "consciência" é meramente formal.
Mas é exatamente isso que Kant acredita que deve dizer. Tudo se passa como se Kant
deixasse intocado o duvidoso pressuposto de que, ao providenciarmos o necessário para o
conteúdo da idéia de um eu que persiste, seja possível não extravasar do fluxo da
"consciência". Só assim poderíamos ter a impressão de que, para evitar o ego cartesiano,
Kant precisaria submeter o conteúdo da idéia de persistência a um ajuste. Se estou certo a
respeito do pressuposto, o diagnóstico kantiano do pensamento de Descartes não chega à
raiz do problema.
O resultado do lance kantiano é que a continuidade subjetiva a que ele faz apelo
enquanto parte daquilo que significa, para a experiência, relacionar-se com a realidade não
pode ser igualada à vida contínua de um animal dotado de percepção. Ela se encolhe, como
eu já disse, até resumir-se à continuidade de um mero ponto de vista: algo que não precisa
ter nada a ver com um corpo, no que diz respeito à alegação de interdependência.
Isto é completamente insatisfatório. Se começamos com a noção auto-sustentada de
uma rota experiencial através da realidade objetiva (um ponto de vista temporalmente
estendido que, no que diz respeito à conexão entre objetividade e subjetividade, poderia
muito bem ser incorpóreo) não parece haver nenhuma perspectiva de construirmos, a partir
dali, a noção de uma presença substancial no mundo. Se algo se concebe desde o início
108
The Varieties of Reference, cap. 7. O pensamento de Evans, neste ponto, pode ser visto como um
desenvolvimento de uma observação feita por Strawson, em sua leitura dos Paralogismos ( The Bounds of
Sense, p. 165): "A palavra 'eu' pode ser usada sem critérios de identidade do sujeito, e no entanto referir-se a
um sujeito porque, mesmo quando é usada assim, as conexões com aqueles critérios não se romperam."
109
É isto que Strawson encontra, ao menos de forma embrionária, nos Paralogismos.
AÇÃO, SIGNIFICADO E O EU 91
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como a referência meramente formal da palavra "eu" (que já expressa uma noção peculiar),
como poderá apropriar-se de um corpo, de modo a poder identificar-se com uma coisa
vivente em particular? Talvez possamos fingir que entendemos a idéia de que um tal sujeito
seria capaz de registrar o papel especial desempenhado por um corpo específico na
determinação do curso de suas experiências. Mas isto não lhe daria elementos para
conceber a si mesmo, o sujeito de suas experiências, como um elemento corporal numa
realidade objetiva – como uma presença corporal no mundo.
Se a conexão feita por Kant entre a autoconsciência e a consciência do mundo deve
nos deixar a possibilidade de recuperar a idéia de que os sujeitos de nossa experiência são
nossos eus ordinários, então a persistência meramente formal do "eu" no "eu penso" que é
capaz de "acompanhar todas as minhas representações" deveria ser apenas uma abstração
da persistência substancial ordinária do sujeito vivo da experiência.110 Seria melhor que essa
persistência não fosse algo auto-sustentado, que tivéssemos a esperança de utilizar quando
reconstruíssemos a persistência do eu ordinário. Isto, no entanto, não parece ajustar-se à
concepção que Kant tinha daquilo que estava fazendo. O próprio Kant acredita estar
revelando uma conexão necessária que pode ser conhecida a priori.111 E seria difícil
conciliar a idéia de uma abstração feita a partida persistência do eu ordinário com as
conotações temporais que ele dá ao a priori, como quando ele sugere que a autoconsciência
transcendental "precede todos os dados das intuições" (A107).
Não é surpreendente que Kant não consiga pôr seu pensamento sob uma luz
adequada. Por que não pode haver uma idéia auto-sustentada de continuidade subjetiva
formal? A resposta é a seguinte: a idéia de uma série subjetivamente contínua de estados ou
ocorrências na qual as capacidades conceituais estejam implícitas na sensibilidade – ou, de
modo mais geral, a idéia de uma série subjetivamente contínua de exercícios de
capacidades conceituais de qualquer tipo, isto é, a idéia de uma série subjetivamente
contínua de "representações", como diria Kant – não passa da idéia de um trecho da vida
considerado isoladamente. A idéia de uma série subjetivamente contínua de
"representações" não pode se sustentar sozinha, separada da idéia de uma coisa viva em
cuja vida tais eventos ocorrem, no mesmo sentido em que a idéia de uma série de eventos
digestivos, com seu tipo apropriado de continuidade, também não poderia. Mas, não
havendo uma noção séria de segunda natureza, esta exploração do conceito de vida (um
fenômeno natural por excelência) com a finalidade de dar sentido a uma unidade no
domínio da espontaneidade (que, na filosofia kantiana, tem que ser inatural) não está
disponível para Kant.
O objetivo de Kant é exorcizar as tentações cartesianas a respeito do eu, e ele
consegue ficar a meio passo do sucesso. Ele pretende reconhecer as peculiaridades da
autoconsciência que encorajam a filosofia cartesiana, sem permitir que elas pareçam
mostrar que o objeto da autoconsciência é um ego cartesiano. Ele pensa, porém, que a única
alternativa é uma autoconsciência transcendental, algo que não possui nenhum objeto
substancialmente presente no mundo. Se insistimos em dotar esta autoconsciência de um
objeto, só podemos posicionar esse objeto no mundo geometricamente, na forma de um
ponto de vista. Com isto evitamos os problemas cartesianos costumeiros envolvendo a
relação entre uma substância peculiar e o resto da realidade. Mas somos deixados com
110
Cf. o apelo feito por Strawson à noção de abstração em The Bounds of Sense, pp. 103–4.
111
Cf., p. ex., Critique of Pure Reason, A116: "Temos consciência a priori da completa identidade do
eu com respeito a todas as representações que poderiam pertencer ao nosso conhecimento como uma condição
necessária da possibilidade de todas as representações."
AÇÃO, SIGNIFICADO E O EU 92
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aqueles que parecem ser os descendentes daqueles problemas. Se partimos de um sentido


do eu segundo o qual ele estaria, na melhor das hipóteses, geometricamente posto no
mundo, como conseguiremos construir, a partir daí, o sentido do eu que realmente temos –
uma presença corpórea no mundo? (Quando digo que a auto-consciência é isso, não estou
querendo dizer que sempre levamos conosco, de modo autoconsciente, essa presença
corpórea no mundo.)112 O insight kantiano só seria capaz de assumir um formato
satisfatório se fosse capaz de acomodar o fato de que um sujeito que pensa e tem intenções
é um animal vivo. No entanto, dada sua firme convicção de que as capacidades conceituais
não são naturais, no sentido em que a natureza é igualada ao reino da lei, e dada sua
carência de uma noção seriamente explorável de segunda natureza, ele fica impedido de
acomodar aquele fato.

6. Kant às vezes associa a idéia do conceitual sobretudo com a generalidade. 113 Isto pode
sugerir que deveríamos explicar a relação dos conceitos com as intuições em termos da
relação dos predicados com os sujeitos.114
Poderia parecer que isto revele contornos kantianos numa certa tendência das
reflexões mais recentes a respeito da referência singular. Houve um tempo em que a
abordagem-padrão da referência inspirava-se na teoria das descrições de Russell. A idéia
era que, sempre que um pensamento se dirige a um objeto em particular, parte de seu
conteúdo é dado por uma especificação do objeto em termos gerais: termos conceituais,
como a equação que estou considerando nos levaria a dizer. A tendência, agora, é recuar
desta posição.115 Há no pensamento tipos de direcionamento aos objetos que não se ajustam
facilmente a esse molde. Por exemplo, um pensamento perceptual demonstrativo dirige-se a
seu objeto, não por conter uma especificação geral, com o objeto figurando no pensamento
como aquilo que se ajusta à especificação, mas sim em virtude do modo pelo qual este tipo
de pensamento explora a presença perceptível do próprio objeto. Se igualamos o conceitual
ao predicativo, esta resistência à aplicação geral da teoria das descrições transforma-se na
afirmação de que, nos casos que avalizam a resistência, a referência singular é (ou pelo
menos se baseia em) uma relação extraconceitual entre seres pensantes e coisas. 116 O

112
Há casos de privação sensorial que mostram que o ser corpóreo de uma pessoa nem sempre
precisa estar impresso nela. Em "The First Person" (in Samuel Guttenplan, ed., Mind and Language
[Clarendon Press, Oxford, 1975], pp. 45–65), G.E.M. Anscombe explora esse fato para tentar mostrar que "o
uso de 'eu' como sujeito" (na medida em que este é distinguido por Wittgenstein do "uso como objeto"; The
Blue and Brown Books, pp. 66–7) funciona independentemente do sentimento de nossa presença corpórea no
mundo. Anscombe conclui que não deveríamos tomar "o uso de 'eu' como sujeito" como se ele se referisse a
algo, sob pena de nos condenarmos a uma concepção cartesiana daquilo a que ele se refere. O argumento,
entretanto, é falho exatamente no mesmo sentido em que é falho o argumento dos Paralogismos.
113
Cf., p. ex., A320/B377.
114
Esta idéia está no centro da leitura que Strawson faz da Crítica. Cf. The Bounds of Sense, pp. 20,
72.
115
Entre os primeiros proponentes desta tendência, estão Saul Kripke, "Naming and Necessity", in
Donald Davidson e Gilbert Harman, Semantics of Natural Language (Reidel, Dordrecht, 1972), pp. 253–355,
763–9, relançado posteriormente como monografia pela Basil Blackwell, Oxford, 1980; Keith S. Donnellan,
"Proper Names and Identifying Descriptions", ibid., pp. 356–79. Antecipando essa tendência, Ruth Barcan
Marcus, "Modalities and Intensional Languages", Synthese 27 (1962), 303–22.
116
Para uma surpreendente exposição de uma posição deste tipo, antecedendo de longa data as obras
geralmente citadas como inauguradoras dessa tendência contemporânea, cf. Geach, Mental Acts, §15. Para
uma exposição mais recente da idéia de que a relação entre o pensamento e as coisas individuais é, nos casos
relevantes, extraconceitual, cf. Tyler Burge, "Belief De Re", Journal of Philosophy 74 (1977), 338–62.
AÇÃO, SIGNIFICADO E O EU 93
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quadro resultante nos mostra o reino conceitual dotado de um exterior povoado por objetos
particulares. A partir de seu posto no interior do reino conceitual, o pensamento estabelece
contato com os objetos explorando relações que, como a percepção, seriam capazes de
perfurar os limites externos do conceitual.
Este quadro ajusta-se a uma visão contemporânea da referência singular que talvez
mereça ser considerada uma ortodoxia. Como eu já disse, ela pode parecer kantiana. Na
verdade, porém, não é kantiana coisa nenhuma. Em Kant, o reino conceitual não tem lado
externo – não, ao menos, enquanto não passamos a considerar a história transcendental (e
ninguém pensa que os objetos a que, digamos, os pensamentos demonstrativos se dirigem
são de natureza numênica). Seja como for, o quadro é inconsistente, a menos que o termo
"conceitual" esteja sendo tomado como um mero sinônimo de "predicativo". A
circunscrição do reino conceitual só pode dar a impressão de fazer um sentido que tenha
algum interesse caso o reino circunscrito seja isolado como o reino do pensamento. Esta
imagem põe as predicações no reino conceitual, mas, de acordo com aquilo que estamos
pressupondo, o pensamento teria que romper os limites do conceitual para entrar em
contato com os objetos dos quais as predicações são feitas. E isto não deixa espaço para
uma concepção coerente do modo como uma predicação, localizada no interior de um reino
conceitual circunscrito, poderia ser posta em contato com um objeto.
Dada esta concepção da revolução anti-russelliana, fica fácil simpatizar com os
combatentes anti-revolucionários da teoria generalizada das descrições, como John
Searle.117 Se esta imagem for a única opção para alguém que deseja ser capaz de conceber a
referência do pensamento aos particulares sem recorrer a especificações, o melhor talvez
fosse abrir mão desse desejo, e voltar à tarefa de tentar esmiuçar especificações abstrusas
por meio das quais, no final das contas, aqueles tipos de pensamento que desencadearam o
recuo deverão fazer contato com seus objetos.
Em minha terceira conferência, ataquei a tese de Gareth Evans de que o conteúdo da
experiência perceptiva é não-conceitual. Eu tinha em vista algo que está muito distante da
preocupação fundamental de Evans, que diz respeito à referência singular. Na verdade, não
creio que o apelo feito por Evans a um conteúdo não-conceitual para a percepção seja
crucial para aquilo que ele pensa a respeito da referência singular. É fácil reformular as
principais teses de Evans (mesmo as que dizem respeito ao pensamento perceptual
demonstrativo) sem fazer menção a conteúdos não-conceituais.
A idéia central de Evans é que a noção fregiana de sentido, que Frege introduz em
termos de modos de apresentação, é capaz de acomodar os tipos de conexão entre sujeitos
pensantes e objetos particulares que foram acusados de causar problemas para a teoria
generalizada das descrições.118 Nos meandros de sua obra, Evans vai tratando disto caso a
caso. Ele explica as diversas maneiras pelas quais os pensamentos põem em foco objetos
particulares, sempre colocando o ato de pensar em seu contexto apropriado – a presença

117
Cf. Intentionality (Cambridge University Press, Cambridge, 1983), cap. 8. Discuto as opiniões de
Searle a respeito do pensamento singular em "Intentionality De Re", in Ernest LePore e Robert Van Gulick,
eds., John Searle and His Critics (Basil Blackwell, Oxford, 1991), pp. 215–25. Cf. também meu artigo
"Singular Thought and the Extent of Inner Space", in Philip Pettit e John McDowell, eds., Subject, Thought,
and Context (Clarendon Press, Oxford, 1986), pp. 137–68, onde considero em maiores detalhes os temas
envolvidos nesta discussão.
118
É completamente errado, portanto, pôr Frege e Russell juntos para transformá-los em alvos dessa
recusa da teoria generalizada das descrições.
AÇÃO, SIGNIFICADO E O EU 94
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autoconsciente e competente do sujeito pensante no mundo. 119 Se queremos identificar o


reino do conceitual com o reino do pensamento, o modo correto de glosar "conceitual" não
é "predicativo", mas "pertencente ao reino fregiano do sentido". (A estúpida idéia de que
estas duas coisas coincidem infelizmente ainda é largamente aceita.) Evans conseguiu
mostrar de que modo podemos evitar uma escolha aparentemente forçada entre, de um
lado, as implausibilidades da teoria generalizada das descrições (cada vez mais palpáveis, a
despeito dos esforços de retaguarda de filósofos como Searle) e, de outro, a incoerência da
imagem pseudokantiana, na qual o pensamento tem que irromper no exterior de sua própria
esfera para fazer contato com particulares sem lançar mão de especificações. Invocando
Frege, Evans deixa claro de que modo relações não-especificadoras entre seres pensantes e
objetos (nas quais os proponentes da segunda concepção insistem com toda razão) não
precisam ser concebidas como algo que carregaria o pensamento para o lado de fora de uma
fronteira externa do reino conceitual.
Acho que este modo de descrever o pensamento de Evans revela que, no fundo, ele
está certo, ao menos em termos gerais. É comum encontrar filósofos que pensam poder
atacar a posição de Evans sem prestar atenção ao contexto mais amplo em que o coloquei,
simplesmente por acharem que suas conseqüências são contra-intuitivas. Isto apenas revela,
de maneira deprimente, até que ponto sua obra revolucionária foi mal entendida. Que uma
obra como a sua seja tão pouco apreciada é um sinal de decadência de nossa cultura
filosófica.

119
Enfatizo este ponto para mostrar o quanto o Kant de Strawson é importante para as principais
argumentações desenvolvidas por Evans em The Varieties of Reference. A influência de Strawson é muito
mais profunda do que parece.
ANIMAIS RACIONAIS E OUTROS ANIMAIS 95
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SEXTA CONFERÊNCIA
ANIMAIS RACIONAIS E OUTROS ANIMAIS

1. Venho considerando a tendência que temos de oscilar entre duas posições impalatáveis:
um coerentismo que põe a perder qualquer relação do pensamento empírico com a
realidade, e o recuo para um vão apelo ao Mito do Dado. Propus um diagnóstico desta
tendência: ela reflete uma distorção compreensível sofrida pela idéia aristotélica de que
seres humanos maduros e normais são animais racionais. Considerados em si mesmos, os
animais são seres naturais, e uma concepção moderna de natureza que se tornou corriqueira
tende a excluir a racionalidade da natureza. Em conseqüência disto, a razão se vê separada
de nossa natureza animal, como se o fato de sermos racionais nos colacasse parcialmente
para fora do reino animal. Especificamente, o entendimento é separado da sensibilidade. E
esta é a origem de nosso impasse filosófico. Para escapar dele, precisamos reunir
entendimento e sensibilidade, razão e natureza.
Um modo de evitar o dilema é não questionar a concepção de natureza que ameaça
excluir a razão da natureza, e repensar a razão em termos naturalistas, elaborando uma
concepção correspondente daquilo que faz com que um termo seja considerado naturalista.
Esta é a posição que venho chamando de "naturalismo nu e cru". Ela nos permite conceber
a nós mesmos como animais racionais, embora eu ache que a concepção não seja
aristotélica. É ponto pacífico, porém, que o naturalismo nu e cru se assemelha ao
pensamento aristotélico pelo fato de que não se ocupa das angústias filosóficas que venho
considerando, mas simplesmente se recusa a senti-las.
A ameaça, neste ponto, é que um animal dotado de razão seja metafisicamente
cindido, com conseqüências desastrosas para nossas reflexões a respeito do pensamento
empírico e da ação. Afirmei que é possível evitar essa ameaça e, ao mesmo tempo, manter
(contrariamente ao que diz o naturalismo nu e cru) que o espaço das razões é sui generis,
quando comparado à organização do reino da lei. A espontaneidade do entendimento não
pode ser capturada em termos que, segundo esta concepção, são apropriados para descrever
a natureza, mas, mesmo assim, essa espontaneidade seria capaz de permear as realizações
de nossa natureza animal. Se for possível encontrar um modo de aceitar isto, poderemos
evitar certas dificuldades filosóficas, e ao mesmo tempo apreciar em toda a sua inteireza
aquilo que as torna tão absorventes.
Segundo a concepção aristotélica dos seres humanos, a racionalidade é
integralmente constitutiva de sua natureza animal. Esta concepção não é naturalista, na
acepção moderna do termo (não tem nenhum vestígio redutivista ou fundacionista), nem
está repleta de angústias filosóficas. Isto é possível porque Aristóteles está livre da idéia de
que a natureza é o reino da lei e que, portanto, não é a morada do sentido. Essa concepção
da natureza foi trabalhosamente criada na época da moderna revolução científica.
Não estou propondo que tentemos retornar à ingenuidade aristotélica. Seria uma
loucura lamentarmos a idéia de que a ciência natural revela um tipo específico de
inteligibilidade, que deve ser distinguido do tipo que é próprio do significado. Jogar fora
essa parte de nossa herança intelectual seria retornar às superstições da Idade Média. É
correto termos em alta conta o tipo de inteligibilidade que descobrimos numa coisa quando
a inserimos no reino da lei, e distinguir nitidamente essa inteligibilidade daquela que
descobrimos numa coisa quando a inserimos no espaço das razões.
Mas, ao invés de tentar inserir a inteligibilidade do significado no reino da lei,
podemos almejar um correspondente pós-edênico e ilustrado da ingenuidade aristotélica.
ANIMAIS RACIONAIS E OUTROS ANIMAIS 96
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Podemos reconhecer o grande avanço feito pelo entendimento humano quando nossos
ancestrais forjaram a idéia de um domínio de inteligibilidade – o reino da lei natural – que é
destituído de significado, e ao mesmo tempo nos recusarmos a identificar esse domínio de
inteligibilidade com toda a natureza, para não dizer com tudo que é real.
A noção de segunda natureza não carece de nenhuma ênfase particular no contexto
da ingenuidade aristotélica, mas ela assume uma significação especial nesta tentativa de
encontrarmos sua contraparte ilustrada. Estamos atrás de uma concepção de nossa natureza
que inclua uma capacidade de ressonância à estrutura do espaço das razões. Como estamos
virando a rosto ao naturalismo nu e cru, devemos expandir a natureza para além daquilo
que é tolerado por um naturalismo do reino da lei. Mas a expansão é limitada pela primeira
natureza, digamos assim, dos animais humanos, bem como pelos fatos referentes àquilo que
acontece aos animais humanos ao longo de sua formação. Não estamos desvinculando
irresponsavelmente o conceito de natureza do reino da lei, como seria o caso, se
pretendêssemos que a capacidade postulada pelo platonismo desenfreado (uma capacidade
de fazer ressonância a estruturas da razão constituídas num completo isolamento de
qualquer coisa humana) pudesse contar-se entre as capacidades naturais das mentes
humanas.
O platonismo desenfreado tem a inteligibilidade que tem enquanto tentativa
desesperada de preservar o significado concebido como algo capaz de ganhar visibilidade
apenas no interior de um espaço lógico sui generis, e ao mesmo tempo aquiescer ao
desencantamento da natureza. É quase ininteligível que um pensador antecedente à Queda
pudesse sentir essa tentação. Minha versão naturalizada do platonismo normalmente não
faz parte do quadro, e aquilo que estou chamando de "platonismo desenfreado"
normalmente é chamado apenas de "platonismo". Se estou correto, porém, a respeito de seu
contexto histórico, estaremos sendo injustos com Platão se usarmos seu nome para rotular
uma posição desse tipo.

2. Uma típica forma de filosofia moderna vê-se frente a uma enrascada que nos é familiar.
Ela acha que foi convocada a explicar como é que, partindo de dados independentemente
disponíveis da consciência, acabamos desenvolvendo uma confiança justificada na
existência de um mundo objetivo. Num certo ponto de seu pensamento, que discuti em
minha última conferência (§5), Kant almeja substituir essa concepção da tarefa da filosofia
por uma outra. Ele tentar tornar plausível a afirmação de uma interdependência entre a
própria idéia dos dados de consciência e a idéia de que pelo menos alguns estados e
ocorrências da consciência constituem vislumbres de um mundo objetivo. Neste caso, não
faz sentido pensar que deveríamos começar com os conteúdos da mente, para ir erigindo a
realidade objetiva. Kant não teve a oportunidade de considerar a forma invertida da
filosofia tradicional que mencionei em minha última conferência (§3), ao falar de certas
leituras de Wittgenstein: uma filosofia na qual o projeto é partir do mundo natural e
procurar um lugar, ali, para a mente e seus contéudos. Penso, porém, que ele também seria
desdenhoso em relação a isto.
Sugeri que o insight kantiano só poderia assumir uma forma satisfatória no contexto
de um naturalismo da segunda natureza, concepção à qual o próprio Kant não chegou. Kant
deseja que os sujeitos da experiência e da ação intencional já estejam, enquanto tais, em
posse da realidade objetiva. Ele quer que os exercícios das capacidades conceituais sejam
inteligíveis apenas na medida em que são efetuados por sujeitos que não precisam da
filosofia para reconquistar o mundo para si. Como, porém, falta-lhe uma noção convincente
ANIMAIS RACIONAIS E OUTROS ANIMAIS 97
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de segunda natureza, e ele não se mostra inclinado a naturalizar a espontaneidade no


interior do reino da lei, o máximo que ele pode oferecer a título de um sujeito que tem
experiências e que age é a referência meramente formal da palavra "eu" no "eu penso" que
deve poder "acompanhar todas as minhas representações". Um tal sujeito não poderia ser
algo substancialmente presente no mundo. Na melhor das hipóteses, ele é um ponto de
vista. Isto significa, eu sugeri, que Kant não pode ser bem sucedido em seu objetivo
admirável de superar a filosofia tradicional. O pensamento cartesiano enfrenta dificuldades
bem conhecidas no momento de relacionar uma substância subjetiva a uma realidade
objetiva, e a concepção kantiana é acometida por algo que parece ser uma série de
descendentes daquelas dificuldades. Se partimos de uma referência para o "eu" que está
apenas geometricamente inserida no mundo, parace impossível construir a partir daí uma
presença substancial, um agente e percipiente corporificado.
As coisas parecem mudar de figura quando equipamos Kant com uma noção
seriamente manuseável de segunda natureza. Agora, podemos dar uma forma satisfatória ao
insight que ele persegue. Podemos conceber exercícios de capacidades que pertencem à
espontaneidade como elementos no curso de uma vida. Um sujeito que tem experiências e
que age é uma coisa viva, dotada de potências corporais ativas e passivas genuinamente
suas. Ele próprio está corporificado, substancialmente presente no mundo que ele
experiencia e sobre o qual ele age. Este é um quadro geral para reflexão que tem chances
reais de tornar a filosofia tradicional obsoleta.
Ao recapitular algo que foi dito em minha última conferência, descrevi um projeto
filosófico: subir nos ombros de um gigante, Kant, e tentar encontrar um modo de superar a
filosofia tradicional – algo que Kant quase conseguiu realizar, mas não de todo. O filósofo
cuja obra melhor se ajusta a esta descrição é alguém que é praticamente ignorado na
tradição filosófica em que fui criado, muito embora eu já o tenha mencionado duas ou três
vezes. Estou falando de Hegel.120

3. Afirmei que a experiência pode ser concebida em termos de abertura para o mundo
(Primeira e Terceira Conferência). Prometi retornar ao fato de que a experiência pode nos
enganar (Primeira Conferência, §4; Segunda Conferência, §2). As pessoas tendem a
concluir que, mesmo uma experiência que não seja enganadora, não pode ser um caso
genuíno de abertura para o mundo. Se é assim, não podemos explorar a imagem de uma
abertura do modo que sugeri, passando ao largo das angústias da epistemologia tradicional.
A objeção poderia ser feita do seguinte modo. "Você admite que a experiência pode ser
enganadora. Isto significa admitir que aquilo que você gosta de chamar de 'vislumbres do
mundo' pode ser subjetivamente indistinguível de estados ou ocorrências que não podem
ser vislumbres do mundo, já que eles desencaminhariam quem os tomasse pelo seu valor de
face. É certo, portanto, que os problemas da epistemologia tradicional continuam tão
prementes quanto sempre foram. Na sua terminologia, eles surgem assim: como pode
alguém saber que aquilo que está experimentando num dado momento é um vislumbre
genuíno do mundo, e não algo que apenas parece ser isso?"

120
Tendo-se em vista o modo como utilizei em minha última conferência a leitura que Strawson fez
de Kant, esta observação implica que o Kant de Strawson é mais Hegel do que Kant. Para uma leitura de
Hegel que leva muito a sério a idéia do próprio Hegel de que sua filosofia vem completar um projeto
kantiano, cf. Robert B. Pippin, Hegel's Idealism: The Satisfaction of Self-Consciousness (Cambridge
University Press, Cambridge, 1989).
ANIMAIS RACIONAIS E OUTROS ANIMAIS 98
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Isto, porém, não toca no centro da questão. Uma objeção nestes termos seria
apropriada se meu objetivo fosse dar uma resposta a questões céticas tradicionais, enfrentar
a dificuldade da filosofia tradicional – a dificuldade diante da qual o que se espera é que
partamos de dados de consciência que estariam disponíveis de um modo ou de outro, e
vamos evoluindo até nos certificarmos de que, de fato, tais dados nos fornecem
conhecimentos a respeito do mundo objetivo. Naturalmente, se esta for a nossa dificuldade,
precisaremos responder às questões céticas tradicionais antes de podermos falar numa
abertura para o mundo. Mas, ao falar sobre essa abertura, estou rejeitando a dificuldade
tradicional, e não tentando dar uma resposta a ela.
A epistemologia tradicional atribui uma significação profunda ao fato de que a
percepção é falível. Espera-se que isto mostre algo do seguinte tipo: por mais favorável que
possa ser a situação cognitiva de um percipiente, não faz sentido pensarmos em situações
subjetivas nos quais um sujeito permite que a estrutura geral do mundo objetivo lhe seja
revelada. Como insiste em dizer o contraditor, algo que não é um vislumbre da realidade, já
que o sujeito seria enganado se o tomasse pelo valor de face, pode ser subjetivamente
indiscernível (naquele momento, pelo menos) de experiências que são verídicas. Espera-se
mostrar com isto que os eventos genuinamente subjetivos envolvidos na percepção jamais
podem ir além daquilo que está em poder do percipiente nos casos enganadores.
Isto enfraquece a própria noção que temos de um vislumbre da realidade. Se
estamos limitados a estes materiais quando construímos uma concepção da melhor situação
cognitiva que a percepção seria capaz de fornecer, então o máximo a que podemos aspirar é
algo do seguinte tipo: um pressentimento (cuja veracidade podemos explicar) de um fato a
respeito da estrutura geral de nosso meio ambiente. 121 Não é possível que o próprio fato
venha se imprimir sobre o percipiente. Ao menos do ponto de vista fenomenológico, isto
parece ser inadequado, e podemos opor-lhe resistência desde que possamos compreender a
idéia de uma apreensão direta dos fatos – o tipo de posição que a imagem de uma abertura
para o mundo carrega consigo. É bem verdade que não poderíamos estabelecer que estamos
abertos aos fatos em qualquer caso particular – não, pelo menos, de um modo capaz de
satisfazer a um cético pertinaz, que sempre pode insistir na exploração da falibilidade para
dar mais eficiência à questão de como sabemos que o caso presente não é um daqueles
casos enganosos. Mas isto não importa. Importaria, se mostrasse que a própria idéia de
abertura para os fatos é ininteligível, e isto não foi mostrado. Para meus propósitos, neste
momento, a mera inteligibilidade da idéia é suficiente. Se a idéia é inteligível, as questões
céticas carecem do tipo de urgência que é essencial para que elas nos incomodem, urgência
que depende de essas idéias aparentemente estarem apontando para um fato debilitante: não
importa o quão boa seja a posição cognitiva do sujeito, ela não pode consistir na
manifestação direta de um estado de coisas para esse sujeito. Tal fato não existe. Nosso
objetivo, aqui, não é responder a questões céticas, mas começar a perceber de que modo
poderia ser uma posição intelectualmente respeitável desprezar essas questões, tratá-las
como irreais, do modo como o senso comum sempre quis fazer.
Insitir na imagem da abertura é um modo de dar uma expressão vívida a este ponto:
não existe um bom argumento baseado na falibilidade para estabelecer aquilo que eu chamo
de "concepção do máximo denominador comum" de nossa posição subjetiva – a idéia de
que, mesmo quando as coisas vão bem, cognitivamente falando, nossa posição subjetiva só
121
Na verdade, não podemos ter nem mesmo isto. O conteúdo empírico enquanto tal (mesmo aquele
possuído pelos meros pressentimentos) só é inteligível num contexto que nos permite atribuir sentido a um
constrangimento racional direto exercido sobre as mentes a partir do próprio mundo.
ANIMAIS RACIONAIS E OUTROS ANIMAIS 99
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pode ser algo comum a estes casos e outros casos, em que as coisas não vão bem. Este é um
modo de expor a imagem tradicional de nossa dificuldade epistêmica. Ela não é
compulsória, e o fato da falibilidade não pode fazer com que ela o seja. A epistemologia
tradicional não pode ser defendida pela mera possibilidade de perguntarmos, "Como você
sabe que aquilo que você está experimentando é um vislumbre genuíno do mundo?", tal
como foi sugerido pela objeção que está no início desta seção. Se alguém insistir em
perguntar isto, numa ocasião particular, uma resposta apropriada poderia começar da
seguinte forma: "Eu sei por que você pensa que essa questão é particularmente urgente.
Mas ela não é." Se a questão ainda se mantiver, nada que seja particularmente filosófico
será exigido para respondê-la.122

4. Podemos formular a tese kantiana que discuti em minha última conferência e que
mencionei novamente há pouco (§2) do seguinte modo: o mundo objetivo está presente
apenas para um sujeito autoconsciente, um sujeito capaz de atribuir experiências a si
mesmo. É apenas no contexto da capacidade possuída por um sujeito de atribuir
experiências a si mesmo que as experiências podem constituir uma consciência do mundo.
Ora, isto nos leva de volta a uma restrição para a qual chamei a atenção em minha terceira
conferência (§3). É a espontaneidade do entendimento, o poder do pensamento conceitual,
que dá visibilidade tanto ao mundo quanto ao eu. Criaturas sem capacidades conceituais
carecem de autoconsciência e – isto é parte do mesmo pacote – de experiência da realidade
objetiva.
Reconheço que esta restrição levanta uma questão sobre as capacidade perceptivas
dos mero animais. Meros animais não estão no escopo da tese kantiana, já que eles não
possuem a espontaneidade do entendimento. Não podemos entendê-los como seres que
estão reformulando constantemente uma visão de mundo em resposta às entregas da
experiência – não, pelo menos, se a idéia de resposta racional requerer sujeitos que estão no
comando de seu pensamento, permanecendo a postos para reavaliar o que é razão para quê,
e a mudar suas propensões responsivas de modo correspondente. Segue-se daí que meros
animais não podem passar por uma "experiência externa", ao menos se concebermos essa
"experiência externa" do modo que recomendei. E isto pode dar a impressão de que estou
me comprometendo com a tese de que os animais brutos são autômatos.
A idéia que está em jogo, aqui, é uma variante de outra que encontrei na obra de
Evans (Terceira Conferência, §7). É uma trivialidade o fato de que compartilhamos a
percepção com os meros animais. Em parte com base nisso, Evans sugere que, quando
fazemos juízos a respeito do mundo perceptível, devemos estar convertendo conteúdos
experienciais de um tipo que compartilhamos com meros animais (conteúdos que devem
ser, por isso, não-conceituais) para a forma conceitual. Quando discuti isto em minha
terceira conferência, eu lancei mão de parte do arcabouço kantiano para desautorizar as
conclusões de Evans. Minha alegação era que, quando Evans tenta mostrar que juízos de
experiência estão baseados em conteúdos não-conceituais, ele está caindo numa das versões
do Mito do Dado, que é exatamente um dos lados da oscilação da qual Kant tenta nos
resgatar. Agora, podemos ver a partir de um outro ângulo por que a conclusão de Evans não
se ajusta ao esquema kantiano – por que esse esquema nos impede de supor que a
122
Discuto a "concepção do máximo denominador comum" em "Criteria, Defeasability, and
Knowledge", Proceedings of the British Academy 68 (1982), pp. 455–79, e em "Singular Thought and the
Extent of Inner Space", in P. Pettit e J. McDowell (eds.), Subject, Thought, and Context (Clarendon Press,
Oxford, 1986), pp. 137–68.
ANIMAIS RACIONAIS E OUTROS ANIMAIS 100
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sensibilidade, por si só, forneça um conteúdo que não chega a ser conceitual, embora já
envolva um mundo. Na ausência da espontaneidade, nenhum eu poderia ganhar
visibilidade; pela mesma razão, um mundo também não poderia.
Que dizer do medo de que isto implique uma óbvia falsidade, a saber, que os meros
animais não são genuinamente sensivos? Para lidar com isto, gostaria de tomar emprestada
a notável descrição feita por Hans-Georg Gadamer da diferença que existe entre um modo
meramente animal de vida, inserido num meio ambiente, e o modo humano de vida,
inserido no mundo.123 Para meus propósitos, o essencial nesta descrição é que ela mostra
em detalhes como podemos reconhecer a existência de coisas comuns aos homens e aos
meros animais, e ao mesmo tempo preservar a diferença que a tese kantiana nos impõe.
Nos meros animais, a sensorialidade está a serviço de um modo de vida estruturado
exclusivamente em função de imperativos biológicos imediatos. Não queremos dizer com
isso que a vida desses animais esteja restrita a uma luta para a preservação do indivíduo e
da espécie. Pode haver imperativos biológicos imediatos que estejam conectados de um
modo quando muito indireto à sobrevivência e à reprodução: a tendência a brincar, por
exemplo, que encontramos em muitos animais.124 No entanto, mesmo sem impor restrições
deste tipo, é possível reconhecer que uma vida meramente animal é moldada por objetivos
cujo controle exercido sobre o comportamento do animal num dado momento é um produto
imediato das forças biológicas que estão em jogo. Um mero animal não sopesa razões para
decidir o que irá fazer. A tese de Gadamer é a seguinte: uma vida estruturada apenas deste
modo não é vivida num mundo, mas apenas num meio ambiente. Para uma criatura cuja
vida tem apenas esse tipo de aspecto, o meio em que ela vive só pode ser uma sucessão de
problemas e oportunidades constituídas enquanto tais por aqueles imperativos biológicos.
Quando adquirimos potências conceituais, nossa vida começa a abarcar não apenas
a capacidade de lidar com problemas e explorar oportunidades (problemas e oportunidades
constituídas enquanto tais por imperativos biológicos imediatos), mas também de exercitar
a espontaneidade, de decidir o que pensar e o que fazer. Um naturalismo da segunda
natureza nos permite expressar as coisas deste modo. Podemos enfrentar sem sobressaltos
algo que é problemático no contexto de um outro tipo de naturalismo – que os exercícios da
liberdade são elementos de nossas vidas, de nossas carreiras como seres vivos e, portanto,
como seres naturais. Naturalmente, seria aconselhável que o fato de estarmos no comando
de nossas vidas não marcasse uma transcendência em relação à biologia. Isto se parece a
uma versão da fantasia do platonismo desenfreado. Mas não estaremos caindo no
platonismo desenfreado se dissermos que a forma de nossas vidas não é mais determinada
por forças biológicas imediatas. Adquirir a espontaneidade do entendimento é tornar-se
capaz, como diz Gadamer, de "ficar acima das pressões daquilo que incide sobre nós a
partir do mundo" (Truth and Method, p. 444) – aquela sucessão de problemas e
oportunidades constituídas como tais por imperativos biológicos – assumindo uma
"orientação livre e distanciada" (p. 445). E o fato de a orientação ser livre, isto é, de estar
acima das pressões das necessidades biológicas, faz com que ela seja uma orientação para o
mundo. Para um percipiente dotado de capacidades de espontaneidade, o meio ambiente é
mais do que uma sucessão de problemas e oportunidades. É uma porção da realidade

123
Cf. Truth and Method, pp. 438–56, especialmente pp. 443–5.
124
Digo "de um modo quando muito indireto", e não é claro que haja sempre uma conexão, mesmo
que indireta. Isto depende de decidirmos se brincar é algo que pode ser completamente explicado em termos,
por exemplo, do aperfeiçoamente de habilidades normalmente necessárias para a sobrevivência.
ANIMAIS RACIONAIS E OUTROS ANIMAIS 101
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objetiva que se encontra ao alcance de sua percepção e de sua prática. O meio ambiente é
isso para ele porque ele é capaz de concebê-lo de maneiras que o exibem como tal.125
Quando digo que, para uma criatura com uma vida meramente animal, o meio no
qual ela vive pode não ser mais do que uma sucessão de problemas e oportunidades, não
estou dizendo que ela conceba o ambiente nesses termos. Isto seria tentar atribuir a meros
animais uma subjetividade plena envolvendo uma orientação conceitualmente mediada, que
deveria, enquanto tal, ser considerada uma orientação para o mundo, muito embora nós
tenhamos restringido os conceitos em questão a conceitos que as coisas satisfazem em
função do modo como estão relacionadas a imperativos biológicos, o que significa
reconhecer que tal orientação carece da liberdade e da distância que seriam necessárias para
que tivéssemos aqui uma orientação qualquer para o mundo. A razão de ser dessa distinção
entre viver num mero meio ambiente e viver no mundo é não precisarmos atribuir aos
meros animais uma subjetividade plena, uma orientação para o mundo, ainda que seja uma
orientação restrita do modo que acabamos de examinar. Não se está dizendo com isto que
as características do meio ambiente não sejam coisa alguma para um animal percipiente.
Pelo contrário, elas podem ser problemas e oportunidades que se apresentam a ele, como eu
já disse. A questão é justamente que devemos distinguir entre dizer isso e dizer que os
animais concebem essa características como problemas ou oportunidades.
Nesta conversa a respeito daquilo que as características do meio ambiente são para
um animal demos expressão a algo análogo à noção de subjetividade – uma noção
suficientemente próxima desta última para assegurar que nossa imagem não incorpora
nenhum automatismo de tipo cartesiano. E não incorpora mesmo: precisamos apelar à
sensitividade que o animal possui a características de seu meio ambiente para
compreendermos seu modo alerta e semovente de vida, seu modo preciso de enfrentar com
competência os desafios de seu meio ambiente. No entanto, ao inserirmos a idéia de
sensitividade a isto ou aquilo no contexto da idéia de habitar um meio ambiente, temos a
garantia de que não precisaremos tentar atribuir a um mero animal uma orientação para o
mundo, ainda que fosse um mundo conceitualizado em termos puramente comportamentais.
Para deixar bem claro o quanto estamos longe da estrutura kantiana, poderíamos dizer que
o que está em questão aqui é uma proto-subjetividade, e não uma subjetividade.
Num modo meramente animal de vida, viver não é mais do que responder a uma
sucessão de necessidades biológicas. Quando Gadamer descreve o contraste como uma
"orientação livre e distanciada", a nota referente à emancipação da necessidade de produzir
comportamentos pode sugerir a idéia do teórico. E certamente uma das coisas que está
ausente de qualquer concepção sensata do modo de vida meramente animal é uma atitude
desinteressadamente contemplativa que se dirige ao mundo em geral, ou a algo em
particular dentro dele. O importante, porém, não é apenas reconhecer que com a
espontaneidade as atividades da vida acabam incluindo tanto a teorização quanto a ação. A
falta de liberdade que é característica da vida meramente animal não significa uma servidão
à prática entendida por oposição à teoria, mas sim uma servidão aos imperativos biológicos
imediatos. A emancipação própria da "orientação livre e distanciada" faz entrar em cena,
não apenas a atividade teórica, como também a ação corpórea intencional. A imagem de
125
Na passagem que estou explorando, o tema de Gadamer é o papel da linguagem na revelação do
mundo para nós. Ele afirma que é a linguagem que torna possível a "orientação distanciada e livre". Deixarei
a discussão sobre as relações entre linguagem e espontaneidade do entendimento para as observações
esquemáticas que faço ao final desta conferência. Até lá, irei adaptando as observações de Gadamer aos meus
propósitos.
ANIMAIS RACIONAIS E OUTROS ANIMAIS 102
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uma subjetividade plena que está em jogo aqui não é a imagem daquele tipo duvidosamente
inteligível de coisa – um ser observador e pensante que não age no mundo que ele observa
e sobre o qual ele pensa.
A abordagem gadameriana de como uma vida meramente animal, vivida num meio
ambiente, difere de uma vida propriamente humana, vivida num mundo, coincide de modo
surpreendente com aquilo que Marx diz em seu manuscrito de 1844 a respeito do trabalho
alienado.126 (Gadamer não se dá conta do paralelo.) Esta convergência deveria ajudar a
exorcizar a idéia do observador passivo.127 Para Marx, naturalmente, uma vida
propriamente humana não é nada se não for ativa: ela envolve a remodelação produtiva da
"natureza, ou mundo exterior sensível" (p. 135). Se a atividade produtiva for propriamente
humana, ela pode em princípio estender-se livremente pelo mundo. Isto contrasta com a
vida meramente animal. Como na descrição de Gadamer, a vida meramente animal é uma
questão de lidar com uma série de problemas e oportunidades que o meio ambiente vai
apresentando, e que só são problemas e oportunidades em função de necessidades e
impulsos biologicamente dados. Marx lamenta de modo memorável a desumanização da
humanidade na escravidão assalariada. A parte da vida humana que deveria ser mais
expressiva da humanidade, a saber, a atividade produtiva, é reduzida à condição de vida
meramente animal, à satisfação de necessidades meramente biológicas. E, embora seja a
liberdade que dá à vida humana seu caráter distintivamente humano, a escravidão
assalariada restringe a liberdade a aspectos meramente animais daquelas que se tornam,
nessas condições, vidas incidentalmente humanas. "O homem (o trabalhador) irá sentir-se
livremente ativo somente em suas funções animais de comer, beber e procriar, quem sabe
também ao morar e se vestir, sentindo-se assim um animal em suas funções humanas"
(pp. 137–8).
Marx resume sua visão daquilo que seria uma vida propriamente humana recorrendo
a uma imagem surpreendente: sem alienação, "toda a natureza" é "o corpo inorgânico do
homem" (p. 139).128 Podemos indicar a convergência com Gadamer glosando essa imagem
do seguinte modo: o mundo é o lugar onde vive um ser humano, é a sua morada. Confronte
isto com a relação existente entre o meio ambiente e uma vida animal. Um meio ambiente é
essencialmente alheio à criatura que nele vive. Ele é a fonte da "pressão daquilo que incide
sobre [o animal] vindo do mundo". Não que uma vida meramente animal seja uma luta
constante, enquanto uma vida caracteristicamente humana é particularmente tranqüila.
Tanto em Marx quanto em Gadamer, o ponto não é que uma vida propriamente humana seja
fácil. Ela é, isto sim, caracteristicamente livre. E isto significa dizer que ela é vivida no
mundo, por oposição a consistir no enfrentamento de um meio ambiente.
Naturalmente, não devemos entender o contraste entre possuir o mundo e
meramente habitar um meio ambiente em termos da noção absoluta segundo a qual, quando
finalmente possuímos o mundo, deixamos de ter um meio ambiente – como se o fato de
sermos humanos nos dispensasse de termos que estar num local determinado. Além disso, é
claro que já está aberta a um mero animal a possibilidade de deixar o meio ambiente em

126
Farei as citações a partir da tradução de David McLellan em Karl Marx: Early Texts (Basil
Blackwell, Oxford, 1972), pp. 133–45.
127
A convergência certamente não é uma coincidência. Ela reflete uma influência hegeliana em
ambos os textos.
128
Ele acrescenta: "na medida em que ela mesma não é um corpo humano", Naturalmente, meu corpo
(orgânico) ordinário é parte da natureza. A idéia surpreendente é que o resto da natureza também seja, de um
outro modo, meu corpo.
ANIMAIS RACIONAIS E OUTROS ANIMAIS 103
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que está agora, no sentido muito imediato de ir para outro lugar. Esta é uma resposta às
pressões exercidas sobre o animal pelo seu atual meio ambiente: pouca comida, ausência de
parceiros sexuais, ameaças de vários tipos. Chegar a possuir um mundo significa, em parte,
adquirir a capacidade de conceitualizar os fatos subjacentes a esta possibilidade
comportamental presente desde logo, de modo a conceber o meio ambiente atual como a
região do mundo que está atualmente ao nosso alcance em termos práticos e sensoriais: o
lugar em que aconteceu de estarmos, em contraste com outros lugares em que poderíamos
estar.
E, é claro, há muitas outras coisas envolvidas na idéia de chegar a possuir um
mundo. A posse do mundo também se mostra, por exemplo, no irrelevante detalhe
cognoscível que nosso meio ambiente atual põe emblematicamente à nossa disposição.
Considere a riqueza do campo visual de um ser humano adulto normal, ultrapassando de
longe qualquer coisa que pudesse ser relevante para a capacidade de fazer frente a
necessidades meramente animais. Marx afirma que o homem é o único que produz
"segundo as leis da beleza" (p. 140), e o que ele quer mostrar com essa observação é algo
que também surge aqui, neste aspecto distintivo de nossa consciência. Nossa própria
experiência, naquele aspecto de sua natureza que a constitui enquanto experiência do
mundo, possui uma das condições mais prominentes da arte: ela está livre da necessidade
de ser útil.

5. Como eu disse em minha terceira conferência (§3), a dificuldade potencial que venho
discutindo não se interrompe com a negação de que meros animais tenham "experiência
externa". Eles tampouco podem ter "experiência interna", se adotarmos a concepção de
"experiência interna" que recomendei. Isto acaba gerando uma preocupação paralela – a de
que eu esteja suprimindo sua sensividade. Mas, se as considerações que podem ser
resumidas pelo rótulo "proto-subjetividade" são capazes de desarmar essa preocupação tal
como ela surge no caso da "experiência externa", elas não deveriam ser menos capazes de
desarmá-la tal como ela surge no caso da "experiência interna".
Tal como Gadamer descreve as vidas meramente animais, elas são constituídas por
enfrentamentos de "pressões" impostas sobre elas pelo meio ambiente. Venho insistindo em
que, mesmo nos recusando a encontrar uma orientação para o mundo nesse tipo de vida,
não nos obrigamos a negar que ela inclua uma sensorialidade perceptual proto-subjetiva
voltada para características do meio ambiente. E nesse tipo de vida também há lugar para,
digamos, a dor e o medo. Essa sensorialidade perceptual ao meio ambiente não precisa ser
equivalente a uma consciência do mundo externo. Venho defendendo a afirmação segundo
a qual a consciência do mundo externo só pode estar em ordem se for concomitante a uma
subjetividade plena. De modo um pouco semelhante, os sentimentos de dor ou medo não
precisam ser equivalentes à consciência de um mundo interno. Podemos afirmar, portanto,
que um animal não possui mundo interno, sem representá-lo como um ser privado de
sensações ou de afetos.
Sensações, estados emocionais e coisas desse tipo estão disponíveis para nossa
subjetividade num mundo interno. Falar nestes termos é empregar a idéia de objetos da
experiência, objetos presentes numa região da realidade. Em minha segunda conferência
(§5), sugeri que deveríamos entender esta aplicação da idéia de objetos da experiência com
sendo um caso-limite, porque aqui os objetos de que estamos conscientes não existem
independentemente de estarmos conscientes. Sendo assim, a idéia de um mundo interno é
um caso-limite da idéia de uma região da realidade. Nestas realizações de nossa
ANIMAIS RACIONAIS E OUTROS ANIMAIS 104
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sensibilidade, como em outras, as capacidades conceituais são passivamente postas em


operação, neste caso num modo da primeira pessoa do presente. Mas só podemos
reconhecer que as capacidades conceituais relevantes estão operantes aqui porque estas
suas operações incorporam um entendimento de que elas não estão restritas ao modo da
primeira pessoa do presente: exatamente as mesmas circunstâncias das quais estes
movimentos de nossas potências conceituais nos tornam conscientes também são pensáveis
de um modo que não seja a primeira pessoa do presente. É isto que nos autoriza a aplicar a
estrutura consciência-e-objeto: como as circunstâncias são entendidas de tal modo que, por
sua própria essência, elas se deixam enxergar daquele ângulo alternativo, podemos
conceber o ângulo da primeira pessoa como um caso de consciência de algo, muito embora
o objeto desta consciência não seja, na realidade, nada além da própria consciência.
Ora, seria absurdo tentar ajustar esta complexidade de estrutura, exigida para dar
sustentação à idéia de que o mundo interno é uma região da realidade, a uma descrição de
um modo meramente animal de viver. E de nada adiantaria tentar dizer que sensações e
estados emocionais estão presentes diante da proto-subjetividade de um mero animal. Seria
impossível afirmar que sensações e estados emocionais estão aí para um animal da mesma
forma que os problemas e oportunidades apresentadas pelo meio ambiente. Isto seria
sugerir que, quando nos recusamos a reconhecer que os animais possuem um mundo
interno, poderíamos compensar isto reconhecendo que eles possuem uma outra coisa
interna qualquer (dificilmente poderíamos dizer "meio ambiente interno"), algo semelhante
ao meio ambiente externo de que eles estão conscientes daquele modo que é essencial para
sua proto-subjetividade. "Meio ambiente interno" não faz sentido, e não parece plausível
que pudéssemos impor um sentido à sugestão por meio da escolha cuidadosa de um outro
nome. Seja como for, porém, nada do que eu disse sobre o mundo interno nos impediria de
reconhecer que meros animais podem sentir dor e medo.
É só para uma subjetividade plena que a sensação de dor ou medo pode equivaler a
uma consciência limítrofe de um estado de coisas interno degeneradamente substancial. O
caso-limite da estrutura consciência-e-objeto só se dá em função do modo como a
consciência é estruturada pelo entendimento. Mas não há nada nos conceitos de dor e de
medo implicando que eles só possam se fixar onde haja entendimento e, portanto,
subjetividade plena. Não há razão para supormos que eles só possam ser aplicados de um
modo que não seja na primeira pessoa, se estiverem sendo aplicados a algo capaz de
aplicá-los a si mesmo na primeira pessoa.

6. Neste ponto, gostaria de ressaltar algo que eu disse em minha terceira conferência (§4).
Estou rejetando uma determinada imagem da sensorialidade perceptiva de um mero animal
a seu meio ambiente: uma imagem na qual os sentidos fornecem um conteúdo que está
aquém do conceitual, mas que já é capaz de representar o mundo. O que estou rejeitando é
uma imagem daquilo que estados e ocorrências perceptivas seriam para um animal. Eu
nada disse sobre como as coisas parecem ser para quem está lidando com questões
científicas a respeito do modo como funciona o mecanismo perceptivo de um animal.
Ademais, é difícil perceber como estas questões poderiam ser tratadas sem a exploração da
idéia de um conteúdo que representa o mundo, mas não pode ser conceitual no sentido
exigente em que venho empregando essa palavra, já que nenhum mecanismo perceptivo
animal (nem mesmo o nosso) possui a espontaneidade do entendimento. Não pretendo estar
fazendo nenhum tipo de objeção à ciência cognitiva.
ANIMAIS RACIONAIS E OUTROS ANIMAIS 105
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Eu pretendo, na verdade, estar fazendo objeções a uma certa perspectiva filosófica,


que poderia ser expressa do seguinte modo, caso seus proponentes se dispusessem a utilizar
os termos que utilizo: traçar os contornos de uma subjetividade e traçar os contornos de
uma proto-subjetividade são duas tarefas do mesmo tipo. Elas só diferem entre si por
envolverem dois modos diferentes de orientação em direção ao mundo, e portanto dois
tipos diferentes de conteúdo. De acordo com esta perspectiva, ambas as tarefas exigem que
digamos de que modo o mundo tem impacto sobre aquele que percebe. (Entre outras coisas:
precisaríamos caracterizar também outros aspectos da subjetividade, ou
proto-subjetividade, tais como sensações e emoções.) Ocorre apenas que, num tipo de caso,
o conteúdo envolvido no tipo específico de impacto do mundo sobre o percipiente é um
conteúdo não-conceitual.
Para um exemplo nítido deste tipo de perspectiva, considere a importância que
Thomas Nagel atribui à questão "Como nos sentiríamos na pele de um morcego?". 129 Pense
primeiro numa outra questão: como nos sentiríamos se tivéssemos a capacidade sensorial
de ecolocalização? Esta questão desafia nossa imaginação de um modo surpreendente.
Temos que projetar nossa imaginação num mundo possível alternativo no qual a
constituição de nossa subjetividade seria parcialmente diversa, e a questão é desafiadora
porque não possuímos base sensorial para fazer esta extrapolação. Agora, compare isto com
a questão feita por Nagel: como se sente um morcego quando está ecolocalizando? A idéia
de Nagel é que isto coloca exatamente o mesmo tipo de desafio à imaginação, só que, desta
vez, numa forma que faz com que incapacidade de enfrentá-lo não seja a incapacidade de
conceitualizar uma simples possibilidade, mas sim a incapacidade de fazer com que nossas
mentes se desloquem para as cercanias de uma parte da configuração do mundo real. Em
meus termos, isto seria tratar aquilo que é apenas uma proto-subjetividade como se ela
fosse uma subjetividade plena. A imagem traçada por Nagel faz com que os morcegos
tenham uma subjetividade plena cuja forma está fora do alcance de nossos conceitos.
Não acredito que a questão de como nos sentiríamos na pele de um morcego deva
parecer mais inabordável que a questão de como nos sentiríamos na pele de um cachorro ou
de um gato, que não possuem sentidos que não sejam também possuídos por nós. Para
responder a questões deste tipo, precisamos de uma descrição dos imperativos biológicos
que estruturam as vidas das criaturas em questão, bem como de uma descrição das
capacidades sensoriais que as tornam capazes de responder a seu meio ambiente de
maneiras que são apropriadas quando se tem em vista aqueles imperativos biológicos. Dizer
que os morcegos podem localizar uma presa ou as paredes de uma caverna com um sonar
pode ser parte de uma tal resposta no caso dos morcegos, do mesmo modo que dizer que a
visão dos gatos é sensível ao verde e ao azul, mas não ao vermelho pode ser parte da
resposta no caso dos gatos. É bem verdade que, quando a questão é "como nos sentiríamos
na pele" de um morcego ou de um gato, a resposta deve tentar fornecer uma caracterização
do ponto de vista destas criaturas. Mas as descrições que tenho em vista fazem exatamente
isso, até o ponto em que tem sentido fazer algo assim, sem avalizar a idéia de que, ao
menos no caso dos morcegos, há fatos que escapam à nossa compreensão. Estas descrições
captam o caráter da proto-subjetividade das criaturas em questão, as diferentes formas que
elas têm de manter uma interação vital com seu meio ambiente.
Temos familiaridade "interna" com aquilo que alguém sente quando enxerga cores.
É tentador pensar que isto nos deixe equipados para compreender um fato completamente
129
"What Is It Like to Be a Bat?", in Thomas Nagel, Mortal Questions (Cambridge University Press,
Cambridge, 1979), pp. 165–80.
ANIMAIS RACIONAIS E OUTROS ANIMAIS 106
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subjetivo a respeito daquilo sente um gato quando enxerga cores, fato que relatamos ao
dizer que eles podem enxergar o verde e o azul, mas não o vermelho. Deve haver, portanto,
fatos completamente subjetivos análogos a respeito da ecolocalização dos morcegos, mas
tais fatos estariam além de nossa compreensão. Isto, porém, é apenas mais uma
manifestação do Mito do Dado. A idéia é que meros animais já têm uma experiência
perceptiva na qual o mundo os afeta mostrando-se deste ou daquele modo, e a única
diferença que o entendimento introduz no caso humano é permitir que imponhamos uma
forma conceitual a um conteúdo ainda não conceitual, mas já capaz de representar o
mundo, que nós, como eles, recebemos na experiência. Aí, então, o problema com os
morcegos passa a ser que nossa imaginação não é capaz ir tão longe a ponto de antever
como se daria a conversão à forma conceitual no caso dos conteúdos fornecidos pela
capacidade de ecolocalização. A imagem resultante, portanto, é que os meros animais
apenas recebem o Dado, ao passo que nós, além de recebê-lo, somos também capazes de
pô-lo na forma conceitual. Ao falarmos desse modo, estamos nos atrelando a uma
conhecida moenda filosófica, e começando a girar.130

7. Como aconteceu de haver animais que possuem a espontaneidade do entendimento? Esta


é uma questão que está perfeitamente em ordem. Houve um tempo em que não havia
animais racionais. Suponha que tenhamos uma explicação plausível a respeito de como as
forças que estão inteligivelmente operantes na natureza poderiam ter levado à evolução de
animais com potencialidades conceituais. Isto definitivamente afastaria uma forma de
platonismo desenfreado: a idéia de que nossa espécia adquiriu aquilo que a torna especial, a
capacidade de fazer ressonância a significados, como um presente vindo de fora da
natureza. Se levarmos isto a sério, teríamos que supor que, quando sucessivas gerações são
iniciadas na responsividade ao sentido, o que acontece é que a formação realiza um
potencial para o desenvolvimento de um ingrediente extranatural, potencial este implantado
na espécie por ocasião daquele evento evolucionário extranatural.
No entanto, a demanda de uma história evolucionista não precisa parecer assim tão
premente. A especulação evolucionista não é um contexto no qual o platonismo
desenfreado seja uma opção particularmente tentadora. A reflexão a respeito da Bildung dos
seres humanos individuais deveria bastar para distinguir o platonismo naturalizado que
recomendei do platonismo desenfreado. Nesta reflexão, podemos encarar a cultura na qual
um ser humano é iniciado como algo que já está em marcha. Não há nenhuma razão
particular que nos obrigue a descobrir ou especular a respeito da história dessa cultura, para
não falar da origem da cultura enquanto tal. Bebês humanos são meros animais que se
distinguem apenas por seu potencial, e não há nada de oculto ocorrendo a um ser humano
em seu processo normal de formação. Se inserimos uma certa variante do platonismo no
contexto de uma explicação de nossa Bildung que insista nestes fatos, garantimos, com isto,
que esse platonismo não é desenfreado. A mera ignorância sobre como a cultura humana
poderia ter entrado em cena pela primeira vez dificilmente seria um ponto de partida

130
Nagel poderia ter estabelecido muitas das coisas que ele queria estabelecer, sem deixar o domínio
da subjetividade propriamente dita (tal como eu a vejo). É possível que os marcianos tenham uma capacidade
de ecolocalização que figure na base racional de sua visão de mundo, do mesmo modo que nossos sentidos
figuram na base da nossa. Não preciso negar que pudesse haver conceitos ancorados em capacidades
sensoriais tão longínquas das nossas que tais conceitos seriam incompreensíveis para nós. Minha objeção diz
respeito apenas à maneira de enfocar o assunto no caso dos morcegos, quando se faz menção a um suposto
conteúdo não-conceitual que seríamos incapazes de converter à forma conceitual.
ANIMAIS RACIONAIS E OUTROS ANIMAIS 107
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plausível para um argumento tentando mostrar que a iniciação na cultura é necessariamente


a realização de uma potência extranatural nos seres humanos.131
Em todo caso, se estivermos especulando a respeito de como certos animais
poderiam ter evoluído até chegar a um modo de vida que inclui a iniciação de seus filhos
numa cultura, devemos ter clareza de que é exatamente isso que estamos fazendo. Uma
coisa seria dar uma explicação evolucionista para o fato de o amadurecimento normal de
um ser humano incluir a aquisição de uma segunda natureza, na qual a responsividade ao
significado está envolvida; outra, muito diferente, seria dar uma explicação constitutiva do
que vem a ser essa responsividade ao significado. Admito que é razoável sair em busca de
uma história evolucionista. Isto não significa fazer concessões a explicações filosóficas
construtivas do significado do tipo que discuti em minha última conferência (§3): algo cuja
idéia central fosse fazer com que o tipo relevante de inteligibilidade não oferecesse riscos a
um naturalismo desprovido de segunda natureza. Esta é uma idéia bastarda, que não
encontrará nenhum consolo por aqui.

8. Michael Dummett afirmou que o princípio fundamental da filosofia analítica é que as


questões filosóficas a respeito do pensamento devem ser abordadas através da linguagem. 132
Nesta conferências, eu me ocupei do pensamento. Tentei descrever um modo de conceber
como o pensamento se relaciona com o mundo que fosse imune a algumas angústias
filosóficas bem conhecidas. E, até agora, mal mencionei a linguagem. Deveria parecer,
portanto, que me alistei entre os oponentes da filosofia analítica no sentido de Dummett.
Qualquer impressão deste tipo seria absolutamente superficial.
Segui os passos de Kant ao tomar o pensamento como um exercício do
entendimento: "o poder que tem a mente de ela mesma produzir representações, a
espontaneidade do conhecimento".133 O poder da espontaneidade compreende uma rede de
capacidades conceituais ligadas por conexões supostamente racionais, estando tais
conexões essencialmente sujeitas à reflexão crítica. Afirmei que a experiência deve manter
relações racionais com o juízo, se quisermos mesmo entender a simples possibilidade do
conteúdo empírico.; afirmei, ainda, que só podemos atribuir sentido às relações racionais
entre experiência e juízo no contexto de uma equação entre o espaço dos conceitos e o
espaço das razões. O pensamento só pode relacionar-se à realidade empírica porque ser um
ser pensante é sentir-se em casa no espaço das razões. E sentir-se em casa no espaço das
razões não é algo que envolva apenas uma coleção de propensões a mudar a própria postura
psicológica em resposta a isto ou aquilo, mas também a capacidade constante de assumir
uma postura reflexiva na qual surge a questão de saber se se deve considerar isto ou aquilo
persuasivo.
Ora, não é nem mesmo claramente inteligível a suposição de que uma criatura
pudesse, desde o nascimento, já sentir-se em casa no espaço das razões. Certamente não é
este o caso dos seres humanos. Quando nascem, eles são meros animais, que são
transformados em seres pensantes e agentes dotados de intenção à medida em que se

131
É verdade, no entanto, que as boas questões que podemos levantar no contexto evolucionista se
aproximam, tanto quanto uma boa questão pode fazê-lo, das questões que eu pretendo exorcizar.
132
Cf. "Can Analytical Philosophy Be Systematic, and Ought It to Be?", em Truth and Other
Enigmas (Duckworth, Londres, 1978), pp. 437–58. Na p. 442, Dummett escreve: "Para Frege, como para
todos os filósofos analíticos subseqüentes, a filosofia da linguagem é o fundamento de qualquer outra
filosofia, pois é apenas através da análise da linguagem que podemos analisar o pensamento."
133
Critique of Pure Reason, A51/B75.
ANIMAIS RACIONAIS E OUTROS ANIMAIS 108
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aproximam da maturidade. Esta transformação corre o risco de parecer misteriosa. Mas


podemos compreendê-la facilmente se, em nossa concepção dessa Bildung que é o
elemento central no amadurecimento normal de um ser humano, dermos um lugar de honra
ao aprendizado da linguagem. Ao ser inciado na linguagem, o ser humano é introduzido,
antes mesmo de entrar em cena, em algo que já incorpora conexões supostamente racionais
entre conceitos, conexões estas supostamente constitutivas da configuração do espaço das
razões. Isto nos dá uma imagem da iniciação no espaço das razões como um bonde que se
pega andando. Não há problema no modo como algo descritível naqueles termos poderia
emancipar um indivíduo humano de um modo meramente animal de viver, transformando-o
num sujeito pleno, aberto para o mundo. Um mero animal, movido apenas pelos tipos de
coisas que movem meros animais, e explorando apenas os tipos de artifícios à disposição de
meros animais, não seria capaz de se emancipar sozinho, chegando à posse do
entendimento. Seres humanos amadurecem à medida que se sentem em casa no espaço das
razões, ou, o que dá no mesmo, à medida que vivem suas vidas no mundo. Podemos
atribuir sentido a isto notando que a linguagem em que um ser humano é iniciado pela
primeira vez se coloca diante dele como a primeira corporificação do mental, isto é, da
possibilidade de uma orientação na direção do mundo.
Esta maneira de recepcionar o princípio básico da filosofia analítica está a uma certa
distância de qualquer uma das que Dummett examina. Dummett focaliza duas "funções
principais" da linguagem: ser "instrumento de comunicação" e ser "veículo do
pensamento". Sua conclusão é que não deveríamos considerar nenhuma das duas como
primária.134 Mas isto porque ele pensa que aquelas duas funções da linguagem são
fundamentais. Na imagem que estou sugerindo, elas são secundárias. A característica da
linguagem que realmente importa é a seguinte: a linguagem natural, a linguagem na qual
um ser humano é iniciado pela primeira vez, é um repositório da tradição, um depósito de
sabedoria historicamente acumulada a respeito daquilo que é razão para o quê. Trata-se de
uma tradição sujeita a modificações refletidas feitas pelas gerações que a vão herdando. Na
verdade, parte desta herança consiste na obrigação permanente de nos engajarmos na
reflexão crítica. (Cf. Primeira Conferência, §5; Segunda Conferência, §7.) Mas, para que
um ser humano individual perceba seu potencial para tomar parte nesta sucessão – ou, dito
de outro modo, para adquirir uma mente, isto é, a capacidade de pensar e de agir de modo
intencional – a primeira coisa que deve acontecer a ele é ser iniciado numa tradição tal
como ela está.135

134
Cf. "Language and Communication", in Alexander George, ed., Reflexions on Chomsky (Basil
Blackwell, Oxford, 1989), pp. 192–212. Quando dei esta conferência, atribuí erradamente a Dummett a
opinião de que a função da linguagem enquanto instrumento de comunicação seria primária. Minha intenção
era simplesmente me encaminhar para a apresentação da linguagem como repositório da tradição, e por isso
tomei a liberdade de reformular aquilo que eu disse para chegar ao mesmo ponto sem falsificar a posição de
Dummett. Agradeço a Charles Peacocke por ter me corrigido.
135
O conceito de tradição é central para as idéias de Gadamer acerca do entendimento. Cf. Truth and
Method, passim.
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 109
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POSFÁCIO
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 110
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PRIMEIRA PARTE
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO

1. Nas conferências, utilizei o coerentismo de Davidson apenas como um contraste para


realçar a concepção de experiência que eu recomendo. Aqui, desejo inserir a contribuição
de Davidson para a epistemologia do pensamento empírico num contexto histórico
constituído por uma das linhas mestras no desenvolvimento recente da tradição pragmatista
norte-americana. Espero que isto traga à luz algo que está obscurecido nas leituras: a
enorme medida em que me é possível ver em Davidson um aliado, e não um oponente.

2. Os dois dogmas do empirismo que Quine atacou no célebre artigo que leva esse título
eram, em primeiro lugar, a existência de uma "clivagem fundamental" (p. 20) entre o
analítico, no sentido de enunciados verdadeiros apenas em função de seu significado, e o
sintético, no sentido de enunciados cuja verdade depende não apenas do significado, mas
também do mundo; e, em segundo lugar, a possibilidade de isolar o "significado empírico"
enunciado a enunciado em meio ao corpo de enunciados que expressam nossa visão de
mundo.
Segundo Quine, o que deveríamos dizer, ao invés do segundo dogma, é o seguinte:
"A unidade de significação empírica é a totalidade da ciência" (p. 42: esta é a fonte para
meu modo de formular o segundo dogma). Uma formulação alternativa seria a seguinte:
"Nossos enunciados sobre o mundo exterior não enfrentam o tribunal da experiência
individualmente, mas como um corpo coeso" (p. 41). Se estas são duas formulações do
mesmo pensamento, Quine está implicitamente glosando a significação empírica em termos
de sujeição ao tribunal da experiência. É como se a concepção quiniana de "significação
empírica" correspondesse à concepção kantiana de conteúdo empírico, ou de relação com o
mundo empírico que defendo nas conferências. De acordo com essa concepção, o fato de
algo (uma crença, por exemplo, ou, para ficarmos mais próximos ao espírito do texto
quiniano, a totalidade de uma visão de mundo) dizer respeito ao mundo, no sentido de
constituir uma tomada de posição sobre o modo como as coisas são, depende de esse algo
ser vulnerável ao mundo no que diz respeito a um veredito sobre sua aceitabilidade. Este
veredito, por sua vez, só pode ser dado através da experiência.
O primeiro dogma rejeitado afirma que a verdade de um enunciado sintético
depende de dois fatores: do significado e do mundo; um enunciado analítico seria aquele
para o qual o fator "mundo" é nulo. Ora, a imagem positiva traçada por Quine retém esta
dualidade de fatores da qual a verdade depende. Ele diz (p. 36): "É óbvio que a verdade em
geral depende tanto da linguagem quanto de um fato extralingüístico." Quine não está
dizendo que estes dois fatores não existam. O que ele afirma é que não podemos separá-los
enunciado a enunciado. No contexto de um empirismo aparentemente indisputado, o fator
"mundo" é constituído apenas pela responsividade à experiência que resumimos na fórmula
"significação empírica". Deste modo, Quine pode reformular a dependência óbvia da
verdade com relação tanto à linguagem quanto a fatos extralingüísticos expressando do
seguinte modo a tese que rejeita o segundo dogma (p. 41): "Tomada coletivamente, a
ciência tem esta dupla dependência em relação à linguagem e à experiência; esta dualidade,
porém, não pode ser rastreada de modo significativo até os enunciados da ciência tomados
um a um."
Isto confirma uma impressão que já nos é transmitida pela própria estrutura do
artigo de Quine: a rejeição do segundo dogma é o ponto fundamental. O pensamento
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 111
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afirmativo de Quine está contido na tese de que a unidade da significação empírica é a


totalidade da ciência. Se retivermos a dualidade de fatores, o primeiro dogma figura no
artigo como algo que só pode ser correto caso o segundo dogma também for, de tal modo
que a rejeição do segundo já é suficiente para que rejeitemos os dois. O primeiro dogma é a
tese de que há enunciados verdadeiros que são analíticos no sentido de que para eles o fator
"mundo" – o fator de dependência da experiência, de "significação empírica" – é nulo. Se a
"significação empírica" não pode ser repartida entre os enunciados individualmente
considerados, a própria idéia de um enunciado que não tenha "significação empírica" acaba
sendo solapada. "Nenhuma significação empírica isolada" só poderia ser um caso especial
de "alguma significação empírica isolada". Se não faz sentido supor que um enunciado em
particular tenha sua própria quantidade positiva de "significação empírica", entendida como
uma porção determinada da significação empírica da visão completa de mundo em cuja
expressão o enunciado figura, também não faz sentido supor que possa haver enunciados
para os quais essa quantidade é zero.136

3. Como eu já disse, o quadro afirmativo traçado por Quine, seu "empirismo sem dogmas"
(p. 42), conserva um correlato daquela dualidade que figura na explicação que damos para a
idéia de analiticidade. A verdade – que agora deve ser pensada como sendo primitivamente
possuída por toda uma visão de mundo – depende em parte da "linguagem", em parte da
"experiência". "Linguagem", aqui, rotula um fator endógeno na moldagem do sistema de
crenças empíricas, distinguível – ainda que apenas para sistemas tomados como
totalidades – do fator exógeno indicado por "experiência". Quando reconhecemos este fator
exógeno, indicamos que a crença é vulnerável, por intermédio do "tribunal da experiência",
ao mundo a respeito do qual ela pretende ser uma crença verdadeira. Sendo assim,
"linguagem" figura, no contexto holístico de Quine, como um correlato de "significado", tal
como "significado" figurava no agora destronado contraste entre "verdadeiro em virtude
apenas do significado" (verdadeiro de um modo que não envolve vulnerabilidade em
relação ao mundo) e "verdadeiro em virtude tanto do significado quanto do modo como o
mundo é".
"Significação empírica" indica o fator exógeno neste contraste, a responsividade a
algo exterior ao sistema. No pensamento afirmativo de Quine, a coisa mais próxima que
encontramos da antiga noção de significado é "linguagem", que, como fator endógeno,
permanece do outro lado da dualidade preservada. A "significação empírica" não é o
significado, tal como este figurava na idéia de que deve haver enunciados verdadeiros
apenas em função de seus significados; nem é uma descendente funcional do significado
concebido nesse novo meio ambiente criado pelo holismo quiniano. Ela é uma descendente
funcional exatamente daquilo que contrastava com o significado na antiga versão da
dualidade.
O fato de a "significação empírica" de Quine ser um dos extremos de um correlato
holístico da antiga versão da dualidade significa que, apesar da convergência entre aquilo
que Quine diz a respeito de enfrentar o tribunal da experiência e aquilo que eu digo a
respeito da vulnerabilidade racional às intuições, não podemos glosar a "significação
empírica" quiniana em termos de referência ao mundo empírico no sentido em que uso esta
expressão: a posição que assumimos sobre como estão as coisas no mundo quando
adotamos uma crença ou uma visão de mundo. Para Quine, os dois fatores são
136
A idéia estruturalmente paralela de enunciados para os quais o fator "significado" seria nulo é
claramente autodestrutiva.
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 112
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distinguíveis, embora apenas para os sistemas como um todo, e isto quer dizer que a
"significação empírica" de uma visão de mundo não pode ser equivalente a seu conteúdo
empírico, no sentido de como, ao adotar essa visão de mundo, alguém supõe que estejam as
coisas no mundo empírico. A "significação empírica" também requer o fator endógeno.
Até aqui, isto poderia ser apenas uma excentricidade terminológica no uso que
Quine faz da expressão "significação empírica". O próprio Quine reconhece que
"significação empírica" não é o mesmo que conteúdo, no sentido da posição que alguém
assume com relação ao modo como estão as coisas no mundo empírico. Na tese de que a
tradução é indeterminada, que pretende levar adiante os ensinamentos dos "Dois Dogmas",
seu objetivo é enfatizar "até onde vai a soberania conceitual do homem" na formação das
visões de mundo:137 isto é – para expressar-me de um modo que porá Quine em contato
direto com Kant – até que ponto o conteúdo das visões de mundo é um produto de uma
espontaneidade que opera livremente, sem ser controlada pelas entregas da receptividade.
Do ponto de vista de Quine, é um mérito da noção de "significação empírica" que, para ser
uma descendente da velha noção de significado, ela esteja do lado errado da dualidade
descendente. Quine não tem nenhuma simpatia pela velha noção de significado, e a noção
descendente, a noção de "linguagem" enquanto fator endógeno, ligada como está à
"soberania conceitual do homem", retém, no pensamento de Quine, algo da dubiedade
intelectual de sua antepassada. Em oposição a ela, "significação empírica" é uma noção
intelectualmente respeitável, pois pode ser inteiramente explicada em termos das operações
da receptividade, que são governadas por leis e não são maculadas pela liberdade da
espontaneidade. Dizendo isso de um modo mais quiniano, a "significação empírica" pode
ser investigada cientificamente. "A extensão da soberania conceitual do homem", a medida
em que o conteúdo de uma visão de mundo ultrapassa sua "significação empírica" é
exatamente a medida em que uma tal noção de contéudo fica fora do alcance da ciência –
fora do alcance, portanto, de esforços intelectuais de primeira classe.
A afirmação de que a "significação empírica" está posta do lado errado da dualidade
para que seja uma descendente da noção de significado não é uma simples questão verbal.
Devemos descontar a retórica que, à primeira vista, faz com que tudo se passe como se a
noção de Quine correspondesse à noção kantiana de contéudo empírico. Quine fala em
enfrentar o tribunal da experiência, o que parece implicar uma vulnerabilidade à crítica
racional fundamentada na experiência. Mas ele concebe a experiência como "a estimulação
de … receptores sensíveis".138 Uma tal concepção da experiência não deixa espaço para que
a experiência mantenha relações racionais com crenças ou visões de mundo. Em última
instância, quando fala em enfrentar o tribunal da experiência, ele só pode querer dizer que
diferentes irritações das terminações nervosas sensíveis exibem uma disposição a ter
impactos diferentes sobre o sistema de enunciados aceitos por um sujeito, e não que
diferentes cursos de experiência tenham diferentes implicações racionais com respeito a
qual sistema de enunciados um sujeito deveria aceitar. A despeito da retórica jurídica,
Quine concebe a experiência de tal modo, que ela não pode figurar na ordem da
justificação, oposta à ordem dos eventos governados por leis. Isto é absolutamente
consistente com a idéia de que a "significação empírica" é assunto para a ciência natural.

137
Word and Object (MIT Press, Cambridge, Mass., 1960), p. 5. Para a tese da indeterminação, cf.
cap. 2 da mesma obra.
138
Isto vem da p. 75 de "Epistemology Naturalized", in Ontological Relativity and Other Essays
(Columbia University Press, New York, 1969).
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 113
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A uma certa altura, em "Dois Dogmas" (p. 43), Quine escreve: "Certos enunciados
… parecem possuir uma afinidade especial com a experiência empírica – e de um modo
seletivo: alguns enunciados, com algumas experiências; outros, com outras. … Mas, nesta
relação de 'afinidade', não tenho em vista nada além de uma associação frouxa que reflete a
relativa probabilidade de, na prática, virmos a escolher um enunciado ao invés de outro
para revisão, no caso de experiências recalcitrantes." A única conexão que ele aceita entre a
experiência e a aceitação de enunciados é um vínculo causal bruto a que os sujeitos foram
condicionados quando aprenderam a linguagem. Não é que seja certo revisar o próprio
sistema de crenças deste ou daquele modo em vista desta ou daquela experiência; ocorre
apenas que aquela é a revisão que irá provavelmente acontecer, caso nossa experiência
tome aquele rumo.139 Quine concebe a experiência de tal forma que ela só pode estar fora
do espaço das razões, fora da ordem das justificações.
Ainda assim, pode parecer que Quine esteja sujeito no máximo a uma crítica de sua
retórica. Mas, quando fala em enfrentar o tribunal da experiência, ele não está
simplesmente cometendo um pequeno engano que poderia ser removido com facilidade.
Esse modo de falar tem raízes profundas no pensamento de Quine. Não podemos
simplesmente dizer que a "significação empírica" não é genuinamente um tipo de
significação caso a experiência não pertença à ordem das justificações, e, apesar disso,
dexarmos o pensamento de Quine intacto.
Se a experiência não pertence à ordem das justificações, ela não pode ser algo que
as visões de mundo transcendem ou ultrapassam. No entanto, Quine precisa exatamente
disso quando fala na "extensão da soberania conceitual do homem". Aquilo que uma visão
de mundo poderia transcender, de tal modo que sua adoção pudesse ser um exercício da
espontaneidade ou da "soberania conceitual", é uma evidência que depõe de modo muito
pouco conclusivo em favor da experiência. Mas, se a experiência desempenha um papel
meramente causal na formação de uma visão de mundo, e não um papel justificatório, então
ela não serve como evidência de modo algum.
E se a experiência não está para as visões de mundo como a evidência está para as
teorias, fica posta em questão a capacidade que teria a imagem de Quine de acomodar
visões de mundo, quaiquer que elas fossem. É bem verdade que Quine deseja que a visão
de mundo seja denunciada como uma idéia que, do ponto de vista intelectual, é de segunda
classe. No entanto, ele não deseja abandoná-la completamente. Isto significaria abandonar a
tese que ele quer estabelecer quando fala na "extensão da soberania conceitual do homem".
Não haveria nada a que a tese da indeterminação das traduções pudesse dizer respeito, se,
ao invés de falarmos em alcançar esta ou aquela visão de mundo, tivéssemos que falar
apenas sobre a aquisição de tendências a nos sentirmos confortáveis diante de certas
vocalizações. Ora, a idéia de uma interação entre espontaneidade – "soberania conceitual" –
e receptividade, que tomada em si mesma é kantiana, só pode parecer estar dando lugar à
idéia da adoção de uma visão de mundo se, na ordem da justificação, as entregas da

139
Isto deve ser aplicado ao conceito de experiência recalcitrante, que é central na famosa imagem
quiniana de uma "trama feita pelo homem que se aplica à experiência apenas ao longo das bordas" (p. 42).
Temos vontade de trocar isso em miúdos dizendo o seguinte: uma experiência é recalcitrante caso não
possamos racionalmente tomá-la por seu valor de face e, ao mesmo tempo, continuarmos acreditando em tudo
aquilo que acreditamos. Racionalmente, é nosso dever, ou reformular nossa visão de mundo (e o ponto de
vista duhemiano do qual Quine parte afirma que haverá sempre mais de um modo de fazer isto), ou então
desqualificar a experiência. Para Quine, porém, o fato de uma experiência ser recalcitrante só pode significar
que um sujeito que tenha essa experiência provavelmente irá alterar suas crenças.
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 114
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receptividade forem entendidas como solidárias da visão de mundo que estiver sendo
adotada. Se tentarmos supor que os exercícios da "soberania conceitual" são causalmente
afetados pelo curso da experiência, e não racionalmente responsáveis perante ela, já não
restará mais nada da idéia de que a "soberania conceitual" produz algo que é a respeito do
mundo empírico, um ponto de vista correta ou incorretamente adotado, conforme as coisas
se passem deste ou daquele modo no mundo empírico. E, se isto for perdido, já não restará
mais nada da idéia de que a "soberania conceitual" é o elemento operante. A noção de uma
visão de mundo formada no exercício da "soberania conceitual" não se limita à noção de
uma perturbação produzida conjuntamente pelos impactos que vêm do mundo e por uma
força operando a partir do interior do sujeito de um modo que é parcialmente (mas apenas
parcialmente) determinada por aqueles impactos.140
Se limpamos as formulações de Quine, eliminando a retórica jurídica, nós o
despojamos da própria idéia de "soberania conceitual", e o efeito é pôr em risco a idéia de
que tenhamos qualquer contato com o mundo empírico. Não se trata de dizer que esta
leitura faz Quine sugerir que podemos estar completamente errados a respeito do mundo,
como se ele fosse um cético à moda antiga. Mas, sem a retórica do "tribunal" e a idéia de
"soberania conceitual" que a acompanha, idéia que pareceria estritamente ilícita do ponto
de vista do próprio Quine, ele põe em xeque a própria idéia de que temos um mundo em
vista, que qualquer coisa que façamos constitui uma tomada de posição, seja ela certa,
errada, ou mesmo tremendamente errada, sobre como as coisas se passam no mundo.141

4. A posição embaraçosa que a experiência ocupa no pensamento de Quine tem implicações


para uma leitura bastante sedutora daquilo que ele estaria fazendo ao rejeitar o primeiro dos
dois dogmas. Nas conferências, eu derivo de Sellars, e reporto a Kant, a rejeição da idéia de
que algo seja Dado na experiência exteriormente à atividade de visões de mundo
modeladoras. Segundo a leitura sedutora, Quine estaria defendendo uma tese contrastante,
rejeitando a idéia de que algo seja Dado no interior da própria estrutura do entendimento.142
Diz Sellars: "o conhecimento empírico, do mesmo modo que sua extensão
sofisticada, a ciência, é racional, não porque tenha um fundamento, mas porque é um
empreendimento autocorretivo capaz de ameaçar qualquer reivindicação, embora não todas
ao mesmo tempo."143 Devemos pensar na racionalidade empírica de maneira dinâmica, em
termos de um ajuste contínuo ao impacto da experiência.

140
Compreensivelmente, a linguagem de Quine freqüentemente tenta reter as duas coisas. Eis uma
passagem característica (p. 75 de "Epistemology Naturalized"): "A estimulação de nossos receptores sensíveis
é, em última instância, toda a evidência em que tivemos que nos basear quando estávamos a caminho de nossa
imagem do mundo." Esta sentença tem início com uma formulação que só se ajustaria a algo exterior à ordem
das justificações, mas prossegue ("em que tivemos que nos basear quando estávamos a caminho de nossa
imagem do mundo") de um modo que só faria sentido a respeito de algo que estivesse no interior da ordem
das justificações. Aquilo em que nos baseamos quando estamos a caminho de nossa imagem do mundo não é
a estimulação de nossos receptores sensíveis – a experiência, tal como Quine oficialmente a concebe – mas o
modo como as coisas nos aparecem, que diz respeito a uma concepção muito diferente da experiência.
141
Para uma discussão muito mais completa do pensamento de Quine sob esse ponto de vista, cf.
cap. 6 de Barry Stroud, The Significance of Philosophical Scepticism (Clarendon Press, Oxford, 1984), ao
qual eu devo muito.
142
É assim que Rorty lê Quine no cap. 4 de Philosophy and the Mirror of Nature. (Como sempre,
escrevo "Dado" com inicial maiúscula para contrastar a concepção problemática com aquela que é inócua; cf.
Primeira Conferência, §4.)
143
"Empiricism and the Philosophy of Mind", p. 300.
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 115
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Rejeitar a idéia de um Dado exógeno é seguir parcialmente esta prescrição. É


recusar-se a conceber as exigências que a experiência faz a um sistema de crenças como
imposições exteriores à atividade de ajustar o sistema, feitas por algo que se consitituiu
independentemente do atual estado de evolução do sistema, ou de um estado para o qual o
sistema poderia evoluir. Os ajustes necessários ao sistema dependem daquilo que
consideramos que a experiência nos revela, e isso é algo que só apreendemos em termos
dos conceitos e concepções que figuram no sistema em evolução. Aquilo que consideramos
que a experiência nos diz já faz parte do sistema; não é uma coerção externa exercida sobre
ele.
Noutros termos, nada é Dado a partir de fora do sistema evolutivo das crenças. A
tese contrastante – de que nada é Dado a partir do interior do entendimento, entendido
como a capacidade intelectual operante na atividade contínua de modelar o sistema –
também pode ser encontrada em Sellars. Ela está implícita na observação sobre a
racionalidade da ciência que acabei de citar. É bem verdade que, quando Sellars mostra em
detalhes a falsidade do Mito do Dado, ele põe o foco num suposto constrangimento externo.
Mas, ele principia "Empiricism and the Philosophy of Mind" dizendo (pp. 253–4) que a
idéia de algo Dado na experiência é uma aplicação específica de uma concepção muito
mais geral. Pode facilmente parecer que a rejeição de um Dado endógeno nos obrigue a
dizer aquilo que Sellars diz na observação citada: que qualquer uma de nossas crenças, aí
incluídas as crenças que devem ser instanciadas em sistemas de crenças intelectualmente
respeitáveis – aquelas crenças que implícita ou explicitamente governam os ajustes feitos
no sistema das crenças em resposta à experiência – estão abertas à revisão. E isto tem um
sabor inconfundivelmente quiniano.
Mas há algo de errado quando lemos Quine deste modo, como se ele estivesse
alegando que nada nos é Dado, também, a partir do interior do sistema em evolução. O erro
está na palavra "também". Não podemos, sem maiores qualificações, supor que Quine
esteja completando o ataque ao Dado com uma contraparte ao foco posto por Sellars na
idéia de algo que nos é Dado a partir de fora. O problema encontrado por esta leitura vem
do caráter instável da retórica jurídica de Quine. De um certo ponto de vista, Quine deixa o
Dado externo no seu lugar. Segundo sua concepção oficial, a experiência não deveria
manter a suposta relação racional com a crença que é característica do Mito do Dado, mas a
retórica do "tribunal", que não tem função meramente decorativa, implica uma relação
racional entre experiência e crença. Desta forma, o pensamento de Quine ganha a aparência
de uma combinação estranha: ele tenta rejeitar um Dado endógeno, sem rejeitar
definitivamente um Dado exógeno. No quadro oferecido por Quine, a "soberania intelectual
do homem" não conhece limites impostos à sua liberdade de atuar que tenham sido gerados
internamente, mas opera dentro de limites que foram estabelecidos fora de seu domínio.

5. A recomendação do coerentismo, feita por Davidson, que usei como um alvo de minhas
críticas nestas conferências, é uma resposta a um insight importante e genuíno, que
podemos identificar àquilo que eu disse sobre Quine: o jogo de Quine com (aquilo que, na
verdade, é) a espontaneidade e a receptividade tenta fazer duas coisas simultaneamente
incompatíveis – explorar a idéia da experiência como um tribunal que põe nossas crenças
em julgamento, e ao mesmo tempo conceber a experiência de um modo que a mantém fora
da ordem das justificações. Davidson também se mostra (a meu ver, admiravelmente) hostil
a qualquer filosofia que gere problemas a respeito do modo como podemos entrar em
contato com o mundo empírico, conforme afirmei que Quine faz.
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 116
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Davidson tenta mostrar que a dualidade dos fatores endógenos e exógenos, tal como
ela persiste no "empirismo sem dogmas" de Quine, é "ele mesmo um dogma do empirismo,
o terceiro dogma".144 Ele ataca este dualismo persistente, "o dualismo do esquema
conceitual [a "linguagem" de Quine] e do conteúdo empírico [a "significação empírica" de
Quine],145 em ambas as frentes.
Em "On the Very Idea of a Conceptual Scheme", o ataque é feito a partir do fator
endógeno. Uma expressão cristalina da idéia quiniana de "soberania conceitual", uma
liberdade constrangida apenas parcialmente pelo fator exógeno, é a tese de que deveria
haver visões de mundo mutuamente ininteligíveis – a tese de que diferentes exercícios da
"soberania conceitual" poderiam divergir a esse ponto. No entanto, Davidson tenta mostrar
que a idéia de visões de mundo mutuamente ininteligíveis não faz sentido.
Em "A Coherence Theory of Truth and Knowledge", o ataque é feito a partir do
outro lado. Nesse texto, Davidson tenta mostrar que a experiência não pode constituir "uma
base para o conhecimento exterior ao âmbito de nossas crenças" (p. 310). É um argumento
reminiscente de Sellars. Usando meus próprios termos, a tese de Davidson é que a
experiência não pode estar tanto dentro do espaço das razões, como ela precisaria estar, se
ela devesse constituir "uma base para o conhecimento", quanto fora desse espaço, como
Davidson afirma que ela precisaria estar, se ela devesse ficar "fora do âmbito de nossas
crenças".
Nestes escritos tematicamente conexos, o objetivo de Davidson é exorcizar um
estilo de pensamento cujo efeito – mesmo não sendo esta a intenção – é transformar a
relação do pensamento com o mundo empírico num mistério. Eis como ele encerra o artigo
"On the Very Idea of a Conceptual Scheme" (p. 198): "Ao abrirmos mão do dualismo do
esquema e do mundo [isto é: do mundo concebido como a fonte de exigências impostas ao
nosso pensamento, exteriormente a ele, na experiência], não estamos abrindo mão do
mundo, mas restabelecendo o contato imediato com os objetos familiares cujos trejeitos
tornam nossas sentenças ou opiniões verdadeiras ou falsas." Pondo o foco sobre esta
observação, podemos perceber que a imagem que recomendo nestas leituras, na qual o
pensamento não é limitado, deve ter uma completa conformidade com o espírito da
filosofia de Davidson. A imagem rejeitada, com um limite que circunscreve o pensamento,
apartando-o do mundo, daria expressão pictórica à idéia de que existem problemas
filosóficos dizendo respeito à relação entre o pensamento enquanto tal e seus objetos.
Rejeitar esta imagem é não deixar que nosso "contato imediato" com o mundo familiar seja
ameaçado por um conjunto de pressupostos filosóficos que dão apenas a impressão ilusória
de serem obrigatórios. Deste ponto de vista, a resposta de Davidson ao persistente dualismo
do esquema e do conteúdo encontrado na obra de Quine parece ser algo que deveria ser um
modelo para mim.146
E, de fato, até certo ponto, não deixa de ser assim. Reconheço com satisfação que
Davidson está certo naquilo que é essencial – não devemos permitir que a filosofia
transforme num mistério o modo de o pensamento relacionar-se com seus objetos. E ele
está certo ao dizer que Quine não pode ter as duas coisas ao mesmo tempo: a experiência,
tal como Quine a concebe, não pode ser um tribunal. Uma coisa, porém, é aspirar à
144
"On the Very Idea of a Conceptual Scheme", p. 189. Eis como Davidson prossegue: "O terceiro, e
talvez o último, pois, se desistirmos dele, não é claro que ainda restará algo distintivo que possa ser chamado
de empirismo."
145
"On the Very Idea of a Conceptual Scheme", p. 189.
146
Christopher Hookway e, de um modo diferente, Aryeh Frankfurter alertaram-me disto.
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 117
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eliminação do mistério; outra é eliminá-lo. A meu ver, Davidson resolve a tensão que ele
detecta em Quine indo na direção errada, e o resultado é deixar-nos exatamente com os
mesmos problemas que ele pretendia eliminar.
Davidson percebe que, mantendo a coerência, Quine não teria efetivamente o que
fazer com a idéia de que sistemas de crença empírica resultam da cooperação entre
espontaneidade e receptividade. Ele se perde, a meu ver, ao concluir que não há nada a ser
feito com essa idéia, que ela só reflete um dualismo impraticável. Como eu já disse (§3), a
idéia de uma interação entre espontaneidade e receptividade só parece tornar inteligível o
fato de o resultado dessa interação ser uma crença ou um sistema de crenças sobre o mundo
empírico – algo correta ou incorretamente adotado, conforme se passem as coisas no
mundo empírico – caso as construções da espontaneidade forem racionalmente vulneráveis
às entregas da espontaneidade. A posição oficial de Quine a respeito da experiência
inviabiliza as tentativas feitas por Quine de chegar a uma versão daquela imagem. E aquela
visão da experiência é compartilhada por Davidson: para Davidson, a receptividade só pode
incidir sobre o espaço das razões se vier de fora, o que quer dizer que nada pode ser
racionalmente vulnerável a suas entregas.147 Davidson só difere de Quine por ser explícito a
esse respeito, e por extrair com muito discernimento a conseqüência disso tudo: não
podemos dar sentido à referência do pensamento ao mundo em termos de uma interação
entre esponaneidade e receptividade. Se continuarmos a usar a terminologia kantiana,
devemos dizer que as operações da espontaneidade estão, elas próprias, livres de qualquer
constrangimento externo. Este é, na verdade, um modo de formular o coerentismo
davidsoniano.
Naturalmente, o pensamento de Davidson não abole todas as formas que pode
assumir a idéia de que o pensamento empírico é racionalmente vulnerável ao curso da
experiência. "O curso da experiência" poderia ser interpretado de forma a significar a
sucessão das circunstâncias que, para uma certa pessoa, constituem a aparência de que as
coisas se passam de tal e tal modo, aparência esta que exerce uma influência racional sobre
a atividade de dar forma à visão de mundo dessa pessoa. Isto é algo que podemos dizer sem
fazer nenhuma confusão, segundo Davidson, pois a aparência para alguém de que as coisas
se passam de tal e tal modo já está, enquanto tal, no interior do espaço dos conceitos,
qualificando-se, por isso, para manter relações racionais com outros habitantes desse
espaço. Segundo Davidson, o que não podemos dizer sem fazer alguma confusão é que as
impressões sensoriais, os impactos do mundo sobre nossos sentidos, impõem exigências
racionais ao nosso pensamento empírico. Ou, se podemos dizer isso, é apenas por meio da
inserção de certas complexidades no verbo "impor". Talvez uma impressão sensorial faça
com que pareça a um sujeito que as coisas se passam de tal e tal modo, e esse parecer talvez
tenha implicações para aquilo que o sujeito deve pensar. Mas as próprias impressões
sensoriais, como Davidson as concebe, não podem manter relações racionais com aquilo
que um sujeito deve pensar.148
147
Isto não depende da concepção quiniana da experiência como estimulação das terminações
sensoriais. Pode haver concepções resolutamente antimentalistas da experiência que, no entanto, estão de
acordo com as concepções de Quine num nível mais abstrato, ao conceberem as experiências como entregas
feitas pela recptividade. O pensamento de Davidson, em suas linhas mais gerais, é que, se a experiência for
entendida como aquilo que nos é fornecido pela receptividade, então, sejam quais forem os detalhes da
concepção em pauta, a experiência estará sendo eo ipso entendida de um modo que a retira do espaço das
razões.
148
Pelo menos em "A Coherence Theory of Truth and Knowledge", Davidson parece reservar a
palavra "experiência" para impressões sensoriais enquanto algo distinto das aparências. Veja, por exemplo, o
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 118
_______________________________________________________

Não coloquei este pensamento nos termos do próprio Davidson. Davidson não fala a
respeito de aparências, e escreve como se apenas as crenças pudessem desempenhar o papel
que sugeri que as aparências podem desempenhar – por exemplo, quando expressa seu
coerentismo por meio da observação que cito nas conferências: "nada pode contar como
razão para termos uma crença, a não ser uma outra crença" (p. 310).149 Se Davidson deseja
reconhecer um papel fundante para as aparências, este foco posto sobre as crenças parece
ser uma escolha infeliz, pelo menos no que diz respeito à terminologia. Não é uma
obviedade que o fato de as coisas aparecerem para mim como sendo deste ou daquele modo
deva ser igualado à minha crença em algo. Certamente não deve ser igualado à minha
crença de que as coisas são deste ou daquele modo. Sem dúvida, quando me parece que as
coisas são deste ou daquele modo, usualmente (pelo menos) eu acredito que as coisas me
parecem ser deste ou daquele modo, mas não é óbvio que a aparência seja a crença. E,
sendo ou não sendo, podemos, sem causar malefício algum, atribuir à própria aparência
implicações racionais sobre aquilo que eu devo pensar. Para meus propósitos imediatos,
porém, nada disso envolve qualquer questão substancial. A terminologia de Davidson
ajusta-se ao que parece ser uma formulação excessivamente simples escolhida por ele para
sua posição coerentista. Ele poderia ter estabelecido substancialmente a mesma tese
dizendo: nada pode contar como razão para termos uma crença, a não ser uma outra coisa
que também esteja no espaço dos conceitos – por exemplo, uma circunstância consistindo
na aparência para um sujeito de que as coisas são deste ou daquele modo. (Há um problema
mais substancial envolvendo a formulação de Davidson, ao qual voltarei no devido tempo.)
Podem-se ouvir aqui os ecos de Sellars, a que já fiz referência. 150 Sellars dedica
parte de "Empiricism and the Philosophy of Mind" à defesa da noção de impressão
sensorial.151 O objetivo da defesa é distinguir impressões de pedaços do Dado, e Sellars faz
isto recusando-se cuidadosamente a atribuir qualquer significância epistemológica direta às
impressões. Elas possuem uma significância epistemológica indireta, já que sem elas não
poderia haver circunstâncias diretamente significantes, tais como ver que as coisas são
deste ou daquele modo, ou fazer com que as coisas apareçam para alguém como se elas
fossem deste ou daquele modo. No entanto, é apenas desse modo indireto que as
impressões integram a responsividade racional do pensamento empírico ao curso da
experiência. Podemos ter uma interpretação ingênua da idéia de que o pensamento empírico
é racionalmente responsivo ao curso da experiência, mas só se entendermos "o curso da
experiência" como significando a sucessão das aparências, e não a sucessão das impressões.
Impressões são (poderíamos dizer – por definição) receptividade operante. Portanto,
a representação que é comum a Davidson e a Sellars é a seguinte. A receptividade faz parte
do pano de fundo explicativo dado pelas circunstâncias que acompanham visões de mundo
em desenvolvimento na ordem da justificação. A própria receptividade, porém, não é capaz

que ele diz na p. 313, ao formular do seguinte modo uma visão à qual ele se opõe: "Seja lá o que possa ser
dito a respeito do significado, deve-se de algum modo reportá-lo à experiência, ao dado, aos padrões de
estimulação sensorial, algo intermediário entre a crença e os objetos usuais a que nossas crenças dizem
respeito." ("Crença" funciona aqui como um código para se referir a "coisas no espaço dos conceitos"; veja o
próximo parágrafo do meu texto.) Mas como deveríamos usar a palavra "experiência" não é o que está em
questão aqui.
149
Veja "A Coherence Theory of Truth and Knowledge", p. 311: "O problema em que viemos nos
envolvendo é que a justificação parece depender da consciência, que não passa de uma outra crença."
150
Na verdade, formulei algo que é inócuo do ponto de vista de Davidson em termos que são mais
sellarsianos do que davidsonianos.
151
A defesa ocupa a maior parte da última parte do ensaio, a partir do §45.
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 119
_______________________________________________________

de interagir com a espontaneidade do modo insinuado pela retórica de Quine, muito embora
sua concepção oficial de receptividade impeça esse tipo de interação.
Contra isto, eu alegaria que, embora a tentativa irresoluta feita por Quine de
representar as visões de mundo como produtos de uma interação racional entre
espontaneidade e receptividade seja inaceitável, como Davidson percebeu, isto não é razão
para descartarmos a própria idéia de uma interação deste tipo. O problema não está na idéia
tomada em si mesma, mas em sua irresolução – no fato de que, se, por um lado, sua retórica
retrata a interação como sendo racional, Quine concebe a receptividade de tal modo que ela
se torna incapaz de incidir racionalmente sobre o que quer que seja. Podemos obter uma
versão resoluta da mesma idéia caso encontremos um modo de dizer que as impressões do
mundo sobre nossos sentidos, as entregas feitas por nossa receptividade, são – enquanto
tais –as aparências (ou, pelo menos, algumas daquelas aparências) que, como concordam
Davidson e Sellars, podem ser ingenuamente encaradas como integrantes de nossas visões
de mundo no espaço das razões, dado que elas estão desde sempre no espaço dos conceitos.
Deste modo, podemos nos firmar naquele pensamento sedutor que Quine só encampa
irresolutamente. Nós realmente temos a perspectiva de enxergar de forma não-misteriosa o
conteúdo empírico que os exercícios da espontaneidade possuem, caso formos capazes de
pensar nele em termos que não nos são franqueados por Davidson e por Sellars, e que
Quine está oficialmente comprometido a não franquear. Não devemos ter problemas quanto
ao modo pelo qual um exercício da "soberania conceitual" é capaz de referir-se ao mundo –
ao modo pelo qual esse exercício é capaz de constituir uma tomada de posição sobre como
as coisas são, uma postura correta ou incorretamente adotada segundo o modo como o
mundo estiver arranjado – caso a "soberania conceitual" seja responsável pelo modo como
o próprio mundo se imprime sobre o sujeito na experiência.
Não basta dizer, pedindo licença a Sellars e a Davidson, que o exercício da
"soberania conceitual" na modelagem das visões de mundo é racionalmente responsável
pela sucessão daquilo que aparece para o sujeito. Nâo que isto seja errado. Mas, se
seguirmos Sellars e Davidson, distanciando as aparências das impressões, dizer aquilo que
eles nos permitem dizer não nos dará o direito de não vermos mais nenhum mistério
filosófico na referência do pensamento ao mundo.152
Segundo Davidson e Sellars, só podemos colocar as aparências no espaço dos
conceitos, de modo a que possamos coerentemente considerar que elas mantêm relações
racionais com as crenças, se as distinguirmos dos impactos que o mundo exerce sobre
nossos sentidos. Aparências não passam de outras tantas coisas pertencentes ao mesmo tipo
de coisa a que nossas crenças pertencem: coisas possuidoras de conteúdo empírico, que se
referem ao mundo. E agora não podemos mais fazer com que a questão "Como podem as
crenças (digamos) ter conteúdo empírico?" pareça menos urgente mencionando uma
interação racional entre aparências e crenças. A questão, na verdade, é – "Como pode uma
coisa qualquer ter conteúdo empírico?" – e agora já não temos como nos servir do fato de
que as aparências têm tal conteúdo.

152
"Dar-nos o direito" é algo que importa muito neste contexto. Rorty (sobre quem falaremos em
breve) sabe muito bem como desarmar as jogadas que ficam disponíveis quando supomos que subsistem
problemas desse tipo para a filosofia. A inutilidade dessas jogadas talvez indique a partir de fora, digamos
assim, que esta concepção da tarefa da filosofia deve ser errônea. Esta abordagem externa, no entanto, pode
facilmente deixar a impressão de que as questões filosóficas devem ser boas, e o resultado disto é a
permanência do desconforto filosófico, e não o exorcismo da filosofia. O exorcismo requer um tipo diferente
de jogada, que Rorty já não sabe fazer tão bem.
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 120
_______________________________________________________

Compare isto àquilo que acontece caso consigamos conceber a responsabilidade


racional das crenças perante as aparências como uma responsabilidade racional perante a
própria receptividade. Já não poderemos ser acusados estar apenas deslocando o mistério
do conteúdo empírico das crenças para as aparências. Agora, já não existe mais mistério. Se
a responsabilidade racional se dá perante a própria receptividade, e não perante algo ligado
à receptividade pelo fato de a receptividade fazer parte de seu pano de fundo explicativo,
então, ao serem submetidos ao tribunal da experiência, os exercícios de "soberania
conceitual" são racionalmente responsáveis perante o próprio mundo. (Recorde-se da
imagem da experiência como uma abertura para o mundo.) Não pode haver problema
algum envolvendo a idéia de uma tomada de posição com respeito ao modo como as coisas
são – posição correta ou incorretamente adotada segundo a disposição geral do mundo –
caso a modelagem de uma visão de mundo for racionalmente responsável, por intermédio
da abertura experiencial, perante o próprio mundo.
Esta concepção de experiência contrasta com a concepção que representa as
experiências como se fossem emissários do mundo. Davidson observa ("A Coherence
Theory", p. 312) que, se representarmos as experiências como emissários que supostamente
nos informam a respeito do mundo, teremos o problema de que "elas podem estar
mentindo" e "não temos como garantir que os intermediários sejam verazes". No entanto, o
verdadeiro problema de concebermos as experiências como intermediários é que não
podemos dar sentido à pretenção das experiências, assim concebidas, de estarem nos
dizendo algo, de forma veraz ou não. Quando fazemos a própria recetividade incidir
racionalmente sobre a crença, damos a nós mesmos os instrumentos necessários para
entender a experiência como uma abertura para o mundo. E, agora, tanto o problema de
tornar inteligível o fato de a experiência ser dotada de lapsos de conteúdo, quanto a questão
da veracidade assumem um outro aspecto. Adquirimos o direito intelectual de dar de
ombros às questões céticas, se elas forem feitas no espírito filosófico habitual, isto é,
apontando para o suposto problema de saber se nosso pensamento está em contato com seus
supostos objetos. Naturalmente, somos falíveis no nível da experiência, e quando a
experiência nos engana há um sentido no qual ela se interpõe entre nós e o mundo. No
entanto, é um erro crucial deixar que isso nos prive da própria idéia de uma abertura – uma
abertura falível – para o mundo, como se tivéssemos que substituir aquela idéia pela idéia
de emissários que ora dizem a verdade, ora estão mentindo. É apenas porque podemos
entender as aparências como manifestações para nós do próprio mundo que podemos dar
sentido à noção de conteúdo empírico, de referência ao mundo, contida na idéia de
aparência enganadora. Quando não somos enganados pelas aparências, estamos sendo
confrontados diretamente por um estado de coisas pertencente ao mundo, e não atendidos
por um intermediário que, naquela ocasião, está dizendo a verdade.153
Vendo as coisas deste ângulo, podemos observar que existe mais do que um excesso
de simplicidade na formulação de Davidson – "nada pode contar como razão para termos
uma crença, a não ser uma outra crença". Sugeri a seguinte emenda: nada pode contar como
razão para termos uma crença, a não ser uma outra coisa que também esteja no espaço dos
conceitos. De fato, a formulação emendada me parece em perfeita ordem. Não preciso dar
expressão àquilo que, nas conferências, chamei de "coerentismo desenfreado", a tese de que
não existem coerções racionais externas impostas aos exercícios da espontaneidade. A
formulação emendada permite que os exercícios da espontaneidade possam ser

153
Cf. Sexta Conferência, §3.
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 121
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racionalmente constrangidos pelos fatos, quando estes fatos se fazem manifestos na


experiência. Esta é uma coerção vinda do exterior dos exercícios da espontaneidade – vinda
do exterior da atividade de pensar, conforme afirmei nas conferências, mas não do exterior
daquilo que é pensável e, portanto, não do exterior do espaço dos conceitos (Segunda
Conferência, §3). No entanto, esta idéia de coerção externa só está genuinamente
disponível se pudermos arquitetar um engajamento racional com a espontaneidade da parte
da própria receptividade, coisa que Davidson considera impossível. Deste modo, quando
Davidson afirma que apenas as crenças podem manter relações racionais com as crenças, o
que está em jogo não é apenas uma terminologia canhestra que eu já havia desconsiderado,
a saber, a implicação facilmente descartável de que uma aparência é uma crença. A
formulação de Davidson reflete algo mais profundo: ele não é capaz de sustentar os
requisitos racionais externos exigidos dos exercícios da espontaneidade e, sendo assim, seu
coerentismo é genuinamente desenfreado. Mesmo se não levarmos a palavra "crença"
muito a sério, o fato de ele restringir-se às crenças insinua algo do seguinte tipo: apenas
coisas subjetivas se coadunam, no espaço das razões, com visões de mundo em constante
desenvolvimento. Eu alego que isto é desastroso: isto nos assegura de que não podemos nos
recusar a reconhecer um mistério na referência de uma crença, ou de qualquer outra coisa
(uma aparência, por exemplo), ao mundo empírico.
A concepção das impressões compartilhada por Sellars e Davidson não remove
completamente as impressões do domínio da epistemologia, mesmo se desconsiderarmos
sua relação indireta com aquilo em que alguém deve acreditar. O modo de as impressões
fazerem a mediação causal entre o mundo e as crenças é, ela mesma, um tema potencial
para as crenças – crenças que podem manter relações de fundamentação com outras
crenças. Considere uma crença que atribui uma propriedade observável a um objeto. No
contexto de uma teoria racionalmente sustentada a respeito de como as impressões figuram
em interações causais entre o sujeito e o mundo, essa crença poderia estar racionalmente
fundamentada numa crença sobre uma impressão. Uma pessoa poderia estar justificada em
acreditar que o objeto possui a propriedade pelo fato de essa pessoa ter uma impressão de
um tipo que é, segundo sua bem fundamentada teoria, causada em circunstâncias
apropriadas (iluminação adequada, por exemplo) por um objeto que possui aquela
propriedade.154
Mas isto é muito diferente de dizer (tal como minha representação permite, e a que é
compartilhada por Sellars e Davidson, não) que a crença no fato de um objeto ter uma
propriedade observável pode ser fundamentada numa impressão tomada em si mesma, ou
seja, na marca deixada pelo próprio fato sobre o sujeito. Em minha representação as
impressões são, por assim dizer, transparentes. Na representação comum a Sellars e a
Davidson, elas são opacas: se uma pessoa souber coisas suficientes a respeito de suas
conexões causais com o mundo, ela pode, a partir dessas conexões, construir argumentos
que a levem a conclusões sobre o mundo. As próprias impressões, no entanto, não desvelam
o mundo para ninguém. Elas têm um significado epistemológico semelhante ao das

154
Compare isto com a discussão feita por Sellars sobre a autoridade da observação, "Empiricism and
the Philosophy of Mind", pp. 266-8. Esta passagem é anterior à tentativa feita por Sellars de reabilitar a noção
de impressão. Ela faz com que a autoridade de um juízo de observação afirmando que algo é verde dependa
de o sujeito saber que seu próprio relato – "Isto é verde" – está confiavelmente correlacionado, em condições
adequadas, ao fato de algo ser verde. No entanto, assim que a impressão do verde estiver sendo vista, ela
poderá figurar numa fundamentação paralela, ocupando uma posição correspondente à do relato, no tipo de
fundamentação que Sellars tem em mente.
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 122
_______________________________________________________

sensações corporais no diagnóstico de moléstias orgânicas. Minha alegação é que isto é


incompatível com a meta davidsoniana de eliminar o mistério. Se não podemos conceber as
impressões como sendo transparentes, deixamos o mundo a uma distância de nossas vidas
perceptivas que é grande demais para que o mistério permaneça apartado da idéia de que
nossas vidas conceituais –aparências, inclusive – envolvem conteúdo empírico.
No estilo de pensamento a que venho dando combate, não é necessário que as
impressões estejam separadas das aparências como as causas estão separadas de seus
efeitos. Uma outra versão da mesma imagem poderia fazer concessões a uma das formas de
afirmar que as aparências (ou pelo menos algumas delas) são impressões. O que faria com
que esta ainda fosse uma versão da imagem que estou atacando seria uma insistência em
afirmar que o fato de uma coisa ser uma aparência precisa estar conceitualmente afastado
do fato de uma coisa (a mesma coisa, talvez, nesta versão daquela imagem) ser uma
impressão. A identificação de uma só e a mesma coisa como sendo uma impressão e uma
aparência desrespeitaria as fronteiras entre dois modos radicalmente distintos de
conceitualização. Teríamos que insistir em dizer que não é por ser a impressão que é que
algo é a aparência que é. Esta versão daquela imagem é possivelmente mais fiel ao espírito
de Davidson do que a versão com a qual eu vinha trabalhando, segundo a qual as
impressões devem ser inseridas no pano de fundo explicativo das aparências. Sellars parece
ter pensado nessa direção.
Como está implícito no fato de eu contá-la como uma versão da mesma imagem,
não creio que identificar aparências e impressões desta forma faça qualquer diferença no
que diz respeito ao ponto central. Ainda será verdade, no contexto da identificação
entendida deste modo, que as impressões enquanto tais são opacas. Se atribuo conteúdo
empírico a um item que é uma impressão porque dizemos que esse item também é uma
aparência, então não deve ser em virtude de ser uma impressão que esse item possui aquele
conteúdo. Isto é apenas um outro modo de nos recusarmos a sustentar uma articulação
racional entre a espontaneidade e a receptividade enquanto tal, e penso que isto ainda nos
deixa longe de conquistarmos o direito de encarar o conteúdo empírico como algo
destituído de mistério.155 Isto requer que encontremos um modo de aceitar que uma
impressão enquanto tal pode ser uma aparência, uma circunstância constituída pelo fato de
o mundo fazer sua aparição para um sujeito.
Na representação que recomendo, embora o mundo não seja exterior ao espaço dos
conceitos, ele é exterior aos exercícios da espontaneidade. Muito embora estejamos a ponto
de eliminar a fronteira que simbolizava um abismo entre o pensamento e o mundo, a
imagem que recomendo ainda conserva uma dimensão dentro-fora. Articulações entre o que
está mais para dentro e o que está mais para fora fazem as vezes da disponibilidade de
fundamentos racionais, e o mundo –tão para fora quanto possível – é a última instância na
ordem das justificações. Apenas tenho insistido, contra Sellars e Davidson, que devemos
encontrar um lugar para as impressões – para as entregas da receptividade – ao longo desta
dimensão dentro-fora. Elas têm que fazer parte da ordem das justificações. É claro que
existem outras dimensões ao longo das quais poderíamos fazer conexões entre itens mentais
e o mundo, e podemos interpretar expressões como "o impacto do mundo sobre os
sentidos" de modo a aplicá-las a itens interpostos entre as mentes e o mundo apenas ao
longo de uma dessas outras dimensões. Mas não devemos supor, com Sellars e Davidson,
que aquele seja o único sentido que podemos dar à idéia de entregas da receptividade.

155
Este ponto é consistente com algo que sugiro na Quarta Conferência, §4.
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 123
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6. Um alvo ainda mais claro de minhas críticas do que o próprio Davidson seria a leitura
que Rorty faz de Davidson em "Pragmatism, Davidson, and Truth". Nesse texto, Rorty
destaca, para elogiá-los, exatamente aqueles aspectos do pensamento de Davidson a que eu
fiz objeções. Ao exagerar sua importância, Rorty nos oferece uma leitura que não deixa
espaço para outros aspectos do pensamento de Davidson. O resultado é um exemplo prático
de como não nos livrarmos das ilusórias obrigações intelectuais da filosofia tradicional.
Supondo que seja este seu objetivo, admito que Rorty está certo ao não dar
importância "ao fato de que Davidson … não se apresenta como alguém que irá repudiar a
questão do cético, mas sim respondê-la" (p. 342).156 Admito também que as angústias
filosóficas a respeito da possibilidade do conhecimento expressam, no fundo, a mesma
ansiedade presente nas angústias filosóficas sobre como o conteúdo é possível – uma
ansiedade associada ao sentimento de uma distância entre a mente e o mundo. Usualmente,
Davidson e Rorty põem seu foco sobre angústias do primeiro tipo, ao passo que eu ponho o
meu sobre angústias do segundo tipo. Creio que a idéia subjacente é a mesma: ao invés de
tentar reduzir essa distância, devemos tentar exorcizar o sentimento de que ela existe.
Rorty está firmemente convencido de que as supostas obrigações da filosofia
tradicional são ilusórias, e tenho a maior simpatia por essa sua convicção. Minha objeção a
Davidson não é que ele não responde à questão de como algo pode possuir conteúdo
empírico; minha objeção é que, mesmo querendo, ele não nos dá a certeza de que essa
questão carece de urgência. A maneira pela qual Rorty expressa sua convicção acaba
estragando seu argumento. O que ele elogia nas recomendações feitas por Davidson é um
modo de pensar no interior do qual, bem vistas as coisas, não é possível compreender como
o conteúdo empírico poderia ser algo diferente de um mistério. É bem verdade que Rorty
resiste ao discurso sedutor da filosofia tradicional, mas o arcabouço assumido por ele é tal
que ele só consegue resistir porque tapa seus ouvidos, como Odisseu velejando diante das
sereias.
Eis como Rorty expressa o coerentismo de Davidson, que ele aliás endossa.
Devemos manter separadas as crenças "vistas de fora, tal como o lingüista de campo as vê
(como interações causais com o meio ambiente)" das crenças "vistas de dentro, tal como
um nativo pré-epistemológico as vê (como regras para a ação)" (p. 345). Devemos "abjurar
a possibilidade de um terceiro modo de vê-las – um modo que combine a visão externa com
a interna, a atitude descritiva com a normativa" (p. 345).157 A visão externa, a visão do
lingüista de campo, é descritiva. Ela associa crenças com objetos e circunstâncias presentes
no meio ambiente daquele que crê, numa estrutura cujas relações constitutivas são causais.
(Na visão externa, as crenças são "vistas … como interações causais com o meio
ambiente".) A visão interna é normativa: é "o … ponto de vista daquele que busca
sinceramente a verdade" (p. 347), um ponto de vista no qual as crenças estão ligadas àquilo
que lhes fornece credenciais racionais – um ponto de vista no qual elas estão localizadas no
espaço das razões.

156
Em "Afterthoughts, 1987" (in Alan Malachowski, ed., Reading Rorty [Blackwell, Oxford, 1990],
Davidson atribui a Rorty a alegação de que "eu não deveria fingir que estou respondendo ao cético, quando,
na verdade, estou lhe dizendo para dar o fora", e arremata – "concordo plenamente com ele".
157
O terceiro modo, que foi abjurado, é o que Rorty descreve como "uma tentativa confusa de estar
dentro e fora do jogo de linguagem ao mesmo tempo" (p. 342). Compare isto à crítica feita a Putnam por sua
necessidade de "uma visão sinótica que … irá reunir de algum modo os pontos de vista interno e externo"
(p. 347).
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 124
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Rorty pensa que diferentes usos da noção de verdade podem ser compartilhados por
estes pontos de vista. Ele elogia Davidson por uma "contribuição para o pragmatismo" que
"consiste em mostrar que ['verdadeiro'] tem um uso descitacional 158, além dos usos
normativos a que James se apegou" (p. 342). O contraste com "normativo", que, como já
vimos, Rorty associa ao ponto de vista interno, nos permite ler isto como uma atribuição do
uso descitacional de "verdadeiro" à visão descritiva, ao ponto de vista externo.
Isto de qualquer modo se ajusta ao fato de que Rorty identifica a visão externa com
a visão do lingüista de campo. O lingüista de campo davidsoniano procura construir teorias
da verdade para esta ou aquela linguagem à maneira de Tarski, e teorias desse tipo usam
"verdadeiro" descitacionalmente, num sentido estendido da palavra. No sentido estrito, a
descitação é encontrada nos teoremas de uma teoria tarskiana da verdade formulada numa
extensão mínima da linguagem de que ela é uma teoria: trata-se daquilo que Davidson
chama de "trivialidades neutras ligadas à neve"159, numa reminiscência do notório exemplo
" 'A neve é branca é verdadeira' (em português) se e somente se a neve é branca". Aqui,
descitar é exatamente aquilo que alguém precisa fazer para passar do lado esquerdo de um
teorema para aquilo que deve constar do lado direito. A idéia, no entanto, pode facilmente
ser generalizada, transformando-se na idéia de cancelamento da ascensão semântica. Não é
necessário que isso seja feito por meio de um lance na linguagem da qual se partiu para a
ascensão, a exemplo do que ocorre com a descitação no sentido estrito. 160 O lingüista de
campo de Davidson tem por objetivo teorias da verdade cujos teoremas são descitacionais
no sentido generalizado: esses teoremas são contrapartes interlingüísticas daquilo que, no
caso intralingüístico, aparece na forma de "trivialidades neutras ligadas à neve". A idéia de
Rorty é que tais teorias são construídas e entendidas do ponto de vista externo, o ponto de
vista cujas preocupações são de caráter descritivo, por oposição às preocupações
normativas "daquele que busca sinceramente a verdade".
Manter separados estes dois pontos de vista é algo completamente insatisfatório,
seja em si mesmo, seja enquanto leitura da obra de Davidson.
Podemos avaliar o quanto isto é em si mesmo insatisfatório examinando um lance
de Rorty contra Hilary Putnam. Fazendo objeções a uma posição semelhante àquela que
Rorty encontra e aplaude na filosofia de Davidson, Putnam certa vez escreveu:
Se a descrição em termos de causa e efeito [de nosso comportamento lingüístico
enquanto produção de ruídos] está completa tanto do ponto de vista filosófico
quanto do ponto de vista científico-comportamental; se tudo que temos a dizer a
respeito da linguagem é que ela consiste na produção de ruídos (e subvocalizações)
segundo determinados padrões causais; se a história causal não deve nem precisa
ser suplementada por uma história normativa … então não há como os ruídos que
emitimos … serem mais do que meras "expressões de nossa subjetividade".161
Rorty responde da seguinte maneira, numa passagem da qual já extraí citações:
A linha que grifei sugere que os teóricos descitacionais da verdade pensam que só
há uma históriaa ser contada a respeito das pessoas: a história comportamental. Mas

158
No original, "disquotational". [N.T.]
159
Cf. "True to the Facts", p. 51, em Inquiries into Truth and Interpretation, pp. 37–54; citado por
Rorty, p. 343.
160
No que diz respeito à generalização, cf. Quine, Philosophy of Logic (Prentice-Hall, Englewood
Cliffs, N.J., 1970), pp. 10–13.
161
"On Truth", in Leigh S. Cauman et al., eds., How Many Questions? (Hackett, Indianapolis, 1983),
p. 44. citado por Rorty, p. 347. (A interpolação e os grifos são de Rorty.)
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 125
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por que, afinal de contas, esses teóricos não deveriam permitir, ou até mesmo
insistir para que essas histórias sejam suplementadas por uma "história normativa"?
Por que devemos tomar a existência do ponto de vista externo do lingüista de campo
como uma recomendação para que nunca assumamos o ponto de vista interno
daquele que busca sinceramente a verdade? Acho que Putnam ainda encara uma
"abordagem filosófica de X" como uma visão sinótica que irá, de algum modo,
sintetizar todas as outras possíveis visões, e reunir os pontos de vista interno e
externo.
Até a última sentença, isto me dá a impressão de ser uma recusa em dar ouvidos às
preocupações de Putnam. Como se sabe, essas preocupações não estão muito bem
expressas na passagem explorada por Rorty. Basta, porém, um mínimo de caridade para
perceber aonde Putnam está querendo chegar. Putnam não parte do pressuposto de que a
vontade de contar uma história a respeito das relações causais existentes entre as
vocalizações humanas e o meio ambiente seja, por si só, suficiente para impedir que alguém
tenha uma história para contar que represente os vocalizadores expressando pensamentos,
fazendo asserções, tentando apreender corretamente as coisas.162 Aquilo a que ele se opõe,
como a última sentença que citei de Rorty no final das contas reconhece, é precisamente a
tese que Rorty identifica e aplaude em Davidson, de que devemos manter as duas histórias
separadas. O reconhecimento, porém, chega tarde demais. Pondo nas costas de Putnam um
alvo diferente para suas queixas, Rorty dá um jeito de fazer com que pareça legítimo coroar
uma série de censuras supostamente justas à filosofia de Putnam, mostrando que uma
história não exclui a outra (ponto que, na verdade, é irrelevante), com uma reafirmação não
sustentada argumentativamente da tese que Putnam realmente deseja questionar, segundo a
qual as duas histórias devem ser mantidas separadas.
Não é possível calar a preocupação de Putnam simplesmente insistindo em que
ambas as histórias estão aí para ser contadas. Sua preocupação diz respeito justamente à
tese de que elas não podem ser contadas ao mesmo tempo. Isto implica que se assumirmos
um ponto de vista a partir do qual pudermos visualizar nossas crenças lado a lado com seus
objetos e com nossos envolvimentos causais com esses objetos, então não poderemos, desse
mesmo ponto de vista, submeter as crenças às normas da investigação. E a preocupação de
Putnam a este respeito é justificada: o resultado disso tudo é a impossibilidade de
compreendermos como essas coisas a respeito das quais falamos podem ser crenças, isto é,
posições que assumimos com respeito ao modo como as coisas são no mundo. Não adianta
nada insistir, como faz Rorty, em que existe um outro ponto de vista a partir do qual as
crenças são vistas como estando sujeitas às normas da investigação. Se o panorama aberto
por este segundo ponto de vista não puder abarcar as interações causais entre as pessoas
que crêem e os objetos de suas crenças – na medida em que essas interações são o apanágio
da visão externa, que deve ser mantida separada – então se torna misterioso como podemos
ter o direito de conceber aquilo que organiza o tema do segundo ponto de vista como sendo
as normas da investigação.
Este ponto se destaca com muita nitidez no modo como Rorty lida com a descitação.
Há uma conexão óbvia entre a descitação, seja no sentido estrito ou no sentido lato, e uma
certa noção imediata do que vem a ser uma apreensão correta das coisas. É justamente
porque "La neige est blache" é verdadeira em francês se, e somente se, a neve é branca,
que, dado que a neve é realmente branca, eu estarei apreendendo corretamente as coisas

162
Cf. a passagem que Rorty cita de Realism and Reason nas pp. 345–6.
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 126
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caso expresse uma crença em francês dizendo "La neige est blanche". As observações de
Rorty sobre a descitação dão ao lingüista de campo, que ocupa o ponto de vista externo,
responsabilidade no que diz respeito à questão sobre se as crenças conseguem ser
verdadeiras no sentido da descitabilidade. Saber se uma crença adquire ou não
descitabilidade é uma questão descritiva, por oposição a uma questão normativa, e a
imagem sugerida por Rorty mantém essa questão separada de qualquer questão que
façamos na posição de quem "busca sinceramente a verdade" – na posição de quem se
esforça por ser responsivo àquilo que gostaria de pensar como sendo as normas da
investigação. Isto, porém, aparta aquilo que queremos pensar como sendo uma
responsividade às normas da investigação de qualquer conexão com aquela noção
não-problemática de apreender corretamente as coisas. O efeito é tornar ininteligível como
é possível que o que está em questão sejam normas de investigação. Normas de
investigação têm um papel normativo no processo de investigação exatamente porque a
descitabilidade é a norma para seus resultados.
Por incrível que pareça, Rorty parece pensar que é mera questão de rotina separar,
de um lado, aquilo que queremos considerar como normas de investigação, e de outro a
noção simples e direta de apreensão correta das coisas que está associada à noção de
descitabilidade. Na p. 336, ele diz sem a menor cerimônia que "parece paradoxal" sugerir
que "As pedras existem" é implicada por "No fim ideal das investigações, estaremos
justificados em afirmar que as pedras existem" porque "parece não haver uma razão óbvia
pela qual o progresso do jogo de linguagem que estamos jogando devesse ter qualquer coisa
a ver com o modo como o resto do mundo é". Mas dizer isso é algo de extraordinário. O
ponto central contido na idéia de normas de investigação é justamente que essas regras
deveriam aumentar nossas chances de estar certos a respeito "do modo como o resto do
mundo é". Se, ao seguirmos aquilo que é considerado uma norma de investigação, não
aumentamos nossas chances de estarmos certos sobre o mundo, fica evidente que devemos
mudar nossa concepção dessas normas. Rorty insinua que dizer esse tipo de coisa é
sucumbir às tentações da filosofia tradicional. Mas o mundo, tal como o invoco aqui, ao
expressar o pensamento de que a separação de pontos de vista operada por Rorty é
intolerável, não é aquele mundo que deixamos para trás, como Rorty bem vê, quando
acompanhamos Davidson em sua rejeição do "dualismo do esquema e do mundo".163 Trata-
se daquele mundo perfeitamente ordinário, no qual as pedras existem, a neve é branca, e
assim por diante: aquele mundo povoado pelos "objetos familiares, cujos trejeitos tornam
nossas sentenças e opiniões verdadeiras ou falsas", para repetir as palavras de Davidson.
Trata-se daquele mundo ordinário, ao qual nosso pensamento se refere de um modo que a
separação de pontos de vista operada por Rorty deixa com uma aparência misteriosa
precisamente porque, com isso, a referência ao mundo fica apartada dos contornos
normativos necessários para dar sentido à idéia de uma referência – uma referência
racional – a uma coisa qualquer. É com a perda daquele mundo ordinário que Rorty nos
ameaça, quando ele segrega as normas de investigação da descitacionabilidade.
A partir do momento em que adotamos um estilo de pensamento que tenha tais
efeitos, será tarde demais para nos recusarmos a dar ouvidos a expressões de desconforto
filosófico. Deveríamos, é verdade, querer que os problemas filosóficos a respeito de como o
163
Faço eco, neste ponto, ao sugestivo título do ensaio de Rorty "The World Well Lost", em
Consequences of Pragmatism (University of Minnesota Press, Minneapolis, 1982), pp. 3–18. Esse ensaio está
para "On the Very Idea of a Conceptual Scheme" de Davidson, assim como "Pragmatismo, Davidson, and
Truth" está para "A Coherence Theory of Truth and Knowledge".
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 127
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pensamento pode entrar em contato com o mundo se revelassem ilusórios, mas Rorty retira
de si mesmo o direito de tomar essa atitude. Seu próprio pensamento torna tais problemas
urgentes, de modo que sua recusa em abordá-los só pode ser um ato de vontade, como
quem tapa deliberadamente os ouvidos. Num certo sentido, a recusa é completamente
justificada, pois Rorty sabe apreciar muito bem até que ponto entramos num beco sem saída
quando tentamos abordar essas questões. Num outro sentido, porém, a recusa é arbitrária, já
que o próprio pensamento de Rorty, estando longe como está de possuir um formato que
impeça o surgimento dessas questões, exacerba decididamente a premência que tais
questões parecem possuir.
A atribuição da verdade enquanto descitabilidade ao ponto de vista externo também
é completamente insatisfatória enquanto leitura de Davidson.
É bem verdade que os dados disponíveis para um lingüista de campo davidsoniano
que começa a fazer sua interpretação radical de uma linguagem estão restritos ao
comportamento vocal, ou algum outro comportamento supostamente lingüístico, com suas
conexões causais com o meio ambiente. Até o momento em que a linguagem, caso se trate
de uma linguagem, não tiver sido interpretada, o lingüista não tem qualquer base para
decidir o que aqueles falantes contam – se é que contam algo – como razão para quê, muito
embora ele possa observar quais circunstâncias ambientais irão provavelmente despertar
esta ou aquela vocalização, ou outras ações supostamente lingüísticas. Enquanto o
intérprete estiver nesta posição, ele não estará diante de uma questão que diga respeito
definitivamente ao comportamento lingüístico. Para que isto aconteça, o comportamento
deve se tornar interpretável, isto é, capaz de ser colocado de maneira inteligível no espaço
das razões.
Isto é o que acontece, porém, apenas no início da interpretação radical. O objetivo
do lingüista de campo é não apenas codificar dados conectados causalmente, ou construir
uma teoria que postule outras conexões do mesmo tipo, de modo a tornar os dados
inteligíveis daquele modo que uma teoria das ciências naturais tem de tornar inteligíveis os
dados em que se baseia. Seu objetivo não é este, de modo algum. O lingüista de campo de
Davidson tem por objetivo produzir, como que a partir de dentro, uma apreciação das
normas que constituem a linguagem que ele investiga: aquele sentido específico que
permite saber quando é correto dizer o quê, segundo as regras que governam aquele jogo de
linguagem. É isto que ele tenta capturar numa teoria para aquela linguagem que seja
descitacional no sentido amplo. Ele começa como um ocupante do ponto de vista externo,
mas, se é bem sucedido, acaba estando preparada para dar expressão parcial, em seus
próprios termos, ao modo como as coisas se parecem do ponto de vista interno que foi
ocupada o tempo todo pelos sujeitos que ele estudou. Quando Rorty sugere que os
resultados dos esforços do lingüista de campo empregam uma noção de verdade
desconectada das normas, e, portanto, dado o suposto abismo existente entre os dois pontos
de vista, separada, por exemplo, de uma concepção na qual a verdade é vista como aquilo
em que devemos acreditar ("o uso normativo a que James se apegou"), ele aniquila o
significado da transição que nos leva da enrascada inicial até a interpretação acabada.
A perspectiva externa, tal como Rorty a concebe, é uma perspectiva lateralizada. (A
respeito desta imagem, cf. Segunda Conferência, §4.) O intérprete radical de Davidson
parte de uma perspectiva lateralizada a respeito da relação entre os sujeitos que ele irá
interpretar e o mundo. No final, porém, acaba obtendo uma teoria cujo traço característico
consiste exatamente no fato de ela não ser lateralizada: uma teoria que lhe permite captar
algumas das relações de seus sujeitos com o mundo do ponto de vista dos próprios sujeitos,
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 128
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ainda que em seus próprios termos, e não nos termos deles. A grande vantagem desta noção
de descitação no sentido amplo é justamente o fato de ela estar disponível para a captação
deste ponto de vista interno. Quando Rorty separa a descitação do ponto de vista dos
falantes da linguagem, vistos enquanto pessoas que "buscam sinceramente a verdade", ele
deixa escapar exatamente aquilo que faz com que a noção descitacional de verdade seja
adequada para resumir os resultados da interpretação.164

7. A insistência de Rorty em que os dois pontos de vista devem ser mantidos separados é
uma expressão do dualismo da natureza e da razão. Nesta versão do dualismo, a natureza
aparece como o tema da visão externa, e o espaço das razões aparece como a organização
normativa que as coisas possuem quando são vistas do ponto de vista interno. O dualismo
consiste em dizer que os dois modos de organização não podem ser combinados.
Nas conferências, identifico no dualismo da natureza e da razão a fonte das
dificuldades meramente aparentes com que a filosofia tradicional se confronta. Acho que o
dualismo está operante no pensamento de Davidson: é ele que explica sua atitude para com
a idéia de que a espontaneidade interage racionalmente com a receptividade. Minha
posição, portanto, não é a de quem discorda frontalmente da leitura que Rorty faz de
Davidson. Em minha leitura, porém, a vulnerabilidade de Davidson ao dualismo é um
defeito. Esse dualismo está em descompasso com as melhores coisas que ele pensou a
respeito da interpretação, e nos leva seguramente ao fracasso quando nosso objetivo é
exorcizar as ansiedades filosóficas tradicionais. Por oposição a isto, Rorty coloca o
dualismo no centro de sua leitura de Davidson, aplaudindo-o como sendo exatamente
aquilo que ele não é, ou seja, um modo de escapar das obsessões da filosofia tradicional.165
É irônico que eu possa colocar as coisas nestes termos. Rorty começa seu ensaio
"Pragmatismo, Davidson, and Truth" fazendo uma admirável descrição do pragmatismo, no
que ele deseja alistar Davidson, como "um movimento que se especializou em desmascarar
dualismos e dissolver os problemas tradicionais que tais dualismos criaram" (p. 333). O
pensamento do próprio Rorty, no entanto, é organizado em torno do dualismo da razão e da
natureza, e isto significa que, no sentido que ele dá ao termo, ele mesmo só consegue ser

164
Rorty não está sozinho ao supor que o caráter lateralizado da orientação que o intérprete radical
assume inicialmente – caráter este que faz com que essa interpretação seja radical – persista nos resultados da
interpretação radical. Cf. Charles Taylor, "Theories of Meaning", em Human Agency and Language:
Philosophical Papers, vol. 1 (Cambridge University Press, Cambridge, 1985), pp. 248–92, especialmente
pp. 273–82. Taylor julga que o pensamento de Davidson exclui a idéia de Gadamer de uma fusão de
horizontes. (Cf. Segunda Conferência, §4.) A exemplo de Rorty, Taylor pensa que a abordagem dada por
Davidson à interpretação está inextricavelmente comprometida com um ponto de vista externo. Cora
Diamond parece sugerir algo semelhante nas pp. 112–3 de "What Nonsense Might Be", em The Realistic
Spirit: Wittgenstein, Philosophy, and the Mind (MIT Press, Cambridge, Mass., 1991), pp. 95–114. Penso que
estas leituras deixam de lado a distância que existe entre Davidson e Quine. (Davidson pode ter uma parcela
de culpa por isto, em função do modo como ele sistematicamente subestima essa distância. Falo algo a este
respeito na p. 73 de "In Defense of Modesty", em Barry Taylor, ed., Michael Dummett: Contributions to
Philosophy [Martinus Nijhoff, Dordrecht, 1987], pp. 59–80.)
165
Não pretendo sugerir que seja fácil isolar o papel desempenhado pelo dualismo enquanto
motivação do coerentismo davidsoniano. O dualismo também está operante em outros pontos de seu
pensamento, com destaque para a tese de que pode haver relações causais entre dois ocupantes do espaço das
razões apenas porque eles podem ser identificados com elementos no domínio da lei. (Compare a tese
correspondente de Rorty: é apenas na visão interna que se dá o posicionamento de itens no espaço das razões,
e relações causais absolutamente não estão presentes nessa visão.) Esta tese davidsoniana é discutida na
Quarta Conferência, §4.
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 129
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um pragmatista até certo ponto. Não é à toa que sua tentativa de dissolver os problemas
tradicionais assume o aspecto de uma recusa a dar ouvido a questões que ainda teimam em
dar a impressão de que devem ser boas, ao invés de fornecer um modo de pensar no interior
do qual essas questões não possam ser genuinamente feitas.
Naturalmente, Rorty não apresenta sua visão da natureza e da razão como sendo um
dualismo. Ele fala, por exemplo, em "explicar pacientemente que normas são uma coisa, e
descrições, outra" (p. 347). Isto lembra o calmo estabelecimento de uma distinção, e não o
modo de expressão obsessivo característico de um filósofo insistindo a respeito de um
dualismo. Mas venho enfatizando que, se tentarmos pensar do modo como Rorty acha que
devemos pensar, ficaremos presos às ansiedades filosóficas que ele quer evitar. Cultivar um
tom de voz que não seja obsessivo não é suficiente para assegurar que as obsessões
filosóficas sejam afastadas.
Citei Rorty sugerindo que Putnam deseja "uma visão sinótica que irá, de algum
modo, sintetizar todas as outras possíveis visões, e reunir os pontos de vista interno e
externo". A intenção de Rorty é acusar Putnam de manter as aspirações desmesuradas da
filosofia tradicional, que ele pensa que deveríamos abandonar: o pensamento deve ser
alinhado com seus objetos, e as mentes, com a realidade. O que venho sugerindo é que a
reunião do pontos de vista interno e externo (não "de algum modo", pois isto insinuaria um
certo mistério) é exatamente o tipo de lance capaz de desmascarar dualismos e dissolver
problemas, e que é responsável pela admiração que o próprio Rorty tem pelo pragmatismo.
Deste modo, aquilo que recomendo nas conferências poderia ser representado como um
pragmatismo no sentido de Rorty, muito embora, ao tentar dar expressão a ele, eu tome
elementos emprestados de pensadores como Kant, que para Rorty seriam absolutamente
suspeitos.166 E estou afirmando que o pragmatismo de Rorty está um pouco cru, de acordo
com os padrões impostos pela concepção que ele mesmo tem a respeito daquilo que o
pragmatismo deve ser.

8. A objeção que Davidson faz ao terceiro dogma do empirismo é a seguinte: mesmo


quando tenta estabelecer que nossas impressões sensíveis são nossa via de acesso ao mundo
empírico, o empirismo concebe as impressões de tal maneira, que elas apenas poderiam nos
fechar as portas para o mundo, bloqueando nosso "contato não-mediado" com os objetos
ordinários. Rorty generaliza aquele pensamento na forma de uma rejeição e toda uma gama
de candidatos à intermediação entre nós e o mundo, com base no fato de que aceitá-los
significaria pôr sobre nossas costas o peso de ansiedades despropositadas a respeito de
nosso acesso ao mundo. Ele fala de "tertia tais como, nas palavras de Davidson, 'um
esquema conceitual, um modo de ver as coisas, uma perspectiva' (ou uma constituição
transcendental da consciência, ou uma linguagem, ou uma tradição cultural)" (p. 344).
Nas conferências, expliquei como a noção de impressão pode ser inócua. Podemos
supor que a espontaneidade seja racionalmente vulnerável à receptividade, sem o efeito
indesejado de ver a espontaneidade se interpor entre nós e o mundo, desde que rejeitemos o
arcabouço que é a verdadeira fonte dos problemas enfrentados pelo empirismo tradicional,
a saber, o dualismo da razão e da natureza. No contexto de um pragmatismo maduro, as
impressões podem se apresentar como uma das modalidades de abertura para o mundo.
166
Isto poderia nos fazer pensar melhor a respeito da atitude de Rorty para com esses pensadores.
Certos lances feitos na linguagem da filosofia tradicional podem ter por objetivo, não resolver os problemas
dessa filosofia, mas obter o direito de não se preocupar com eles. Penso que Rorty não está suficientemente
alerta para essa possibilidade.
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 130
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Algo semelhante vale para pelo menos alguns dos outros "tertia" de Rorty. Esquemas
conceituais e perspectivas não necessitam ser um dos lados do implodido dualismo do
esquema e do mundo. Concebidos assim, de modo ingênuo, esquemas e perspectivas
podem ser vistos como algo que foi incorporado às linguagens e tradições culturais. As
linguagens e tradições culturais não seriam, neste caso, "tertia" ameaçando tornar nosso
acesso ao mundo algo filosoficamente problemático; seriam apenas elementos constitutivos
de nossa abertura não-problemática para o mundo.167 (Esta concepção gadameriana da
tradição aparece no final da Sexta Conferência.) Rorty sugere (p. 344) que "noções
intencionalistas" fomentam, por si só, preocupações filosóficas insalubres ("ao inserirem
barreiras imaginárias entre você e o mundo"). No contexto de um pragmatismo menos cru
do que este elaborado por Rorty, tal sugestão poderia ser vista como um absurdo.

9. Penso que, se acompanharmos Davidson em sua rejeição do terceiro dogma do


empirismo, os alicerces da filosofia quiniana sofrerão efeitos devastadores. Neste ponto, é
claro, eu divirjo de Davidson. Com respeito à distinção entre o analítico e o sintético e à
indeterminação do sentido, ele se declara "um fiel aluno de Quine" ("A Coherence Theory
of Truth and Knowledge", pp. 312–3).
A tese de Quine de que a tradução é indeterminada expressa com toda a nitidez sua
noção de "soberania conceitual". Acredita-se que a indeterminação mostre o quanto os
produtos da "soberania conceitual" estão longe de ser determinados pelos fatos
cientificamente abordáveis envolvendo a "significação empírica". A tese que Quine está
pretendendo defender aqui está inextricavelmente ligada ao persistente dualismo dos fatores
endógenos e exógenos ("soberania conceitual" e "significação empírica"), que é exatamente
aquilo que Davidson irá rejeitar como o terceiro dogma. O ponto de Quine é exatamente
insistir sobre o quanto o fator exógeno está longe de determinar o significado no sentido
intuitivo, ou seja, enquanto referência ao mundo. Quando nos desfazemos do terceiro
dogma, desfazemo-nos do próprio arcabouço no interior do qual este ponto parece fazer o
tipo de sentido pretendido por Quine. Ora, não deveria causar nenhuma surpresa o fato de o
significado não ser determinado pela assim chamada "significação empírica". Isto apenas
reflete o fato de que a "significação empírica" não pode, na verdade, ser uma significação
de qualquer espécie, já que, se a concebemos dualisticamente contraposta à "soberania
conceitual", ela fica impedida de ter qualquer coisa a ver com a ordem da justificação.
A indeterminação do significado com respeito à "significação empírica" não tende a
mostrar – coisa que seria realmente interessante – que o significado é indeterminado, e
ponto final. Isto exigiria que tivéssemos uma liberdade ineliminável de movimentos ao
procurarmos um tipo de compreensão que nos leve para fora do âmbito da "significação
empírica": um tipo de compreensão que envolva a percepção do modo pelo qual os
fenômenos das vidas desses sujeitos que estudamos podem ser organizados na ordem da
justificação, no espaço das razões. Se o significado é ou não indeterminado neste sentido
interessante do termo não é algo que possamos aprender como pupilos de Quine.168
No que diz respeito à distinção entre o analítico e o sintético, creio que Quine
encontrou a pista de um bom insght. No entanto, assim que este insght é convenientemente
167
A idéia de uma constituição transcendental da consciência soa como algo cuja reabilitação seria
mais difícil, mas talvez nem mesmo isso seja impossível. Cf. a nota anterior.
168
Digo mais coisas a este respeito nas pp. 245–6 de "Anti-Realism and the Epistemology of
Understanding", in Herman Parret e Jacques Bouveresse, eds., Meaning and Understanding (De Gruyter,
Berlim, 1981), pp. 225–248.
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 131
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formulado, ele enfraquece o modo pelo qual Quine tenta lhe dar expressão. O insight em
questão é aquele que só será explicitado na correção que Davidson faz a Quine: a rejeição
do terceiro dogma, do "dualismo do esquema e do mundo". A noção suspeita de
analiticidade não passa da noção de verdades que só são verdades por serem constitutivas
de esquemas conceituais no sentido suspeito do termo, sentido no qual os esquemas são
concebidos numa contraposição dualista com o mundo. O mundo não desempenha nenhum
papel na explicação da verdade destes enunciados, muito embora se considere que ele ajuda
a dar conta da verdade de outros. Mas, tão logo nos livramos do dualismo dos fatores
endógenos e exógenos, isto já não parece ser uma boa interpretação para a idéia de
enunciados que são verdadeiros em virtude de seu significado. O significado não deve ser
identificado ao fator endógeno. Se adotamos a visão que recomendei em minhas
conferências, na qual o reino conceitual é exteriormente indelimitado, torna-se ininteligível
afirmar que o impacto do significado na determinação daquilo em que devemos acreditar é
endógeno, por oposição a algo exógeno. (Não que esse impacto seja exógeno, ou então
endógeno e exógeno ao mesmo tempo; a necessidade de fazermos esse tipo de
determinação simplesmente desaparece.) Isto quer dizer o seguinte: ao rejeitarmos o
dualismo do esquema e do mundo, não podemos tomar o significado como constitutivo do
material de que os os esquemas são feitos, segundo a concepção dualista dos esquemas.
Isto, porém, não nos priva da idéia mesma de significado. Se estou certo, portanto, ao
afirmar que o insight quiniano é, na verdade, um vislumbre da inaceitabilidade do
dualismo, talvez seja possível reabilitar a idéia de enunciados que são verdadeiros em
virtude de seus significados, sem estar com isso afrontando o verdadeiro insight.
Se, como sugeri (§8), a noção de esquema conceitual não precisa pertencer ao
dualismo, então o significado pode, num sentido ingênuo, constituir o material de que os
esquemas são feitos. Podemos rejeitar os dois fatores sem ameaçar com isso a idéia de que
existem limites para aquilo que faz sentido, de que nossa dimensão mental, como diz
Jonathan Lear,169 tem uma estrutura necessária. A idéia de uma estrutura que deve ser
encontrada em qualquer esquema conceitual inteligível não precisa envolver a
representação do esquema como um dos lados de um dualismo esquema-mundo. E
verdades analíticas (num sentido interessante, que não envolva apenas truísmos garantidos
definicionalmente, como "uma ovelha é uma fêmea de carneiro") poderiam ser exatamente
aquelas verdades que delineiam tal estrutura necessária.170
Não é necessário que isto envolva voltar atrás com relação àquilo que é correto no
pensamento sellarsiano que examinei mais acima, no §4. Sellars afirma que nada é Dado, e
dá argumentos detalhados contra a idéia de um Dado exógeno. Naquele ponto, eu
procurava fazer uma leitura do ataque feito por Quine à analiticidade, afirmando que
também não há nada de endogenamente Dado. Eu procurava mostrar a existência de um
problema com esse "também não": ele sugere, falsamente, que Quine estaria ao lado de
Sellars na rejeição firme de um Dado exógeno.
O pensamento sellarsiano é, sem mais nem menos, que nada nos é exógena ou
endogenamente Dado. Isto não precisa ser tomado como algo contrário à reabilitação da
idéia de analiticidade do modo que sugeri. Seria errado conceber aquilo que é necessário
em qualquer esquema conceitual inteligível enquanto algo fixo por estar exógena ou
169
Cf. "Leaving the World Alone", Journal of Philosophy 79 (1982), pp. 382–403.
170
Talvez seja esta a categoria na qual colocaríamos pelo menos algumas das "proposições
limítrofes" às quais Wittgenstein atribui uma significação especial em On Certainty (Basil Blackwell, Oxford,
1969).
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 132
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endogenamente Dado. A própria distinção desapareceu. Sellars afirma, num tom hegeliano,
que todas as formas do Dado devem ser superadas. Davidson rejeita o dualismo dos fatores
endógenos e exógenos. Talvez estas sejam apenas duas expressões diferentes para uma
mesma idéia. Neste caso, o pensamento de Sellars, mesmo sendo genérico ("todas as
formas do Dado"), não exige que ele afirme que absolutamente tudo que pensamos é
suscetível de revisão. Imunidade à revisão, aconteça o que acontecer, só é uma
característica do Dado caso o entendamos em termos daqueles dois fatores, e não
precisamos entendê-lo assim.
A idéia de que qualquer esquema conceitual inteligível tem uma estrutura necessária
exige cuidado. Se estamos inclinados a tomar idéia de que a estrutura é necessária como um
modo de ficarmos seguros de que nosso pensamento está no caminho certo, nesse caso eu
creio que nos perdemos ao caminhar no sentido de uma solução, e não de uma dissolução
dos problemas filosóficos tradicionais. Até onde consigo enxergar, essa segurança é o fulcro
do idealismo residualmente transcendental que Lear identifica no último Wittgenstein. 171
Um idealismo transcendental no sentido pleno da expressão nos reconforta ao afirmar,
falando cruamente, que não podemos estar fundamentalmente errados a respeito do mundo
sobre o qual pensamos, pois ele é constituído por nós. O idealismo transcendental residual
fornece uma versão do mesmo reconforto ao afirmar que o "nós" que está presente na idéia
de "nosso esquema conceitual" "desaparece"; o efeito é não poder existir uma preocupação
geral a respeito de como supomos que as coisas são, uma preocupação de que esta possa ser
apenas a nossa linha de pensamento (como se pudesse haver outra). Penso que há algo de
correto nessa idéia de um "nós" evanescente, mas (muito embora esta seja
reconhecidamente uma distinção sutil) a evanescência do "nós" não deveria assumir o
aspecto de um reconforto, mas deveria ser parte integrante da razão pela qual o reconforto
jamais deveria ter parecido necessário.
Um modo de descobrir os limites daquilo que faz sentido é exercitar uma atividade
característica do segundo Wittgenstein: avançar na direção desses limites por meio de
experimentos de pensamento, e notar em que medida vamos perdendo nossa capacidade de
pensar. Tomo a imagem de empréstimo a Bernard Williams, que usou-a num ensaio
intitulado "Wittgenstein and Idealism".172 Lear está seguindo Willians ao considerar que o
papel desempenhado na filosofia de Wittgenstein pela noção de "como prosseguimos"
revela que seu ponto de vista é uma forma de idealismo transcendental. Mas é difícil fazer
com que as peças se encaixem. A noção de "como prosseguimos" introduz sumariamente
aquilo que Lear chama de dimensão mental, e poderíamos começar tentando encontrar em
Witttgenstein um pensamento que vá na seguinte direção: o mundo e a mente, ou a
dimensão mental, são transcendentalmente feitos um para o outro. O que faz com que seja
apropriado chamar de "idealismo" a versão kantiana dessa idéia é, falando outra vez
cruamente, o fato de a constituição dessa harmonia entre o mundo e a mente ser
considerada uma operação transcendental da mente: não, é claro, da mente empírica, que se
acha numa harmonia constituída com o mundo, mas de uma mente transcendental atrás do
palco. Não encontramos nada disso em Wittgenstein. "Como prosseguimos" é exatamente
nossa dimensão mental, que mantém ex hipothesi uma harmonia constituída com nosso
mundo; ela não é algo que constitui essa harmonia, por assim dizer, de fora. E neste ponto
deveríamos nos surpreender ao pensar que não há nada no pensamento de Wittgenstein
171
Cf. "Leaving the World Alone" e a contribuição de Lear para o simpósio "The Disappearing 'We'",
Proceedings of the Aristotelian Society, vol. supl. 58 (1984), pp. 219–42.
172
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 133
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responsável pela constituição da harmonia. É difícil sustentar a existência, ali, de uma


filosofia residualmente transcendental.
No §2, apresentei a rejeição da analiticidade efetuada por Quine como um corolário
de sua tese de que a "significação empírica" não pode ser repartida entre os enunciados: se
não existe algo como a "significação empírica" de um enunciado individualmente
considerado, não faz sentido supor que certos enunciados podem ter uma "significação
empírica" nula. Mas, uma vez compreendida a peculiaridade da noção quiniana de
"significação empírica", é possível perceber a existência de uma fissura entre a premissa de
que a "significação empírica" não pode ser repartida entre os enunciados individualmente
considerados, e a conclusão de que não é possível atribuir sentido à noção de analiticidade.
Um enunciado analítico seria um enunciado completamente invulnerável à experiência, e é
fato que não podemos atribuir nenhum sentido a isso se não pudermos atribuir sentido à
idéia de que um enunciado individual possa ter uma vulnerabilidade à experiência que lhe
seja própria. Aqui, porém, devemos glosar "vulnerabilidade à experiência" em termos de
responsividade racional. Quando Quine fala em enfrentar o tribunal da experiência, isto soa
como se expressasse a idéia de responsividade racional. A retórica, porém, é oca, e este é o
ponto a que Davidson se aferra. Portanto, se "significação empírica", no sentido quiniano,
não é uma coisa que possa ser repartida entre os enunciados, isto não é suficiente para
mostrar que a responsividade racional à experiência não possa ser repartida entre os
enunciados.
E, de fato, a partir do momento em que entendemos a experiência de maneira a que
ela realmente possa ser um tribunal, nós nos comprometemos a concebê-la de tal modo que
a responsividade racional à experiência passa a poder ser repartida pelos enunciados.
Considere uma experiência cujo conteúdo seja parcialmente apreensível pela sentença
"Aqui está um cisne negro". Tal experiência traz um problema racional para a afirmação, ou
para a crença de que não existem cisnes negros. Entre a experiência e a crença existe uma
relação de relevância que não se restringe, como acontece no quadro oferecido por Quine, à
probabilidade de que a crença venha a ser abandonada.
O argumento quiniano para a indeterminação da tradução faz uso de um ponto
bastante conhecido da filosofia de Duhem, que pode ser expresso da seguinte maneira: a
vulnerabilidade à experiência não pode ser distribuída entre os enunciados de uma teoria.
Se a menção à vulnerabilidade não é simples retórica oca, mas aponta para uma relação
racional, a afirmação pode, de fato, figurar num argumento que tenta estabelecer a
indeterminação do significado. O argumento só pode funcionar caso a linguagem na qual
nós apreendemos a experiência puder ser mantida à parte da linguagem da teoria, de tal
modo que a experiência relevante não saia, digamos assim, falando desde o começo a
linguagem da teoria. Neste caso, podemos expressar a tese de Duhem dizendo que os
enunciados individuais da teoria têm um significado indeterminado com respeito aos
enunciados observacionais em que a teoria se baseia. Pode ser que, em alguns dos contextos
nos quais a teoria é pensada como algo que se baseia na experiência, possamos manter a
linguagem da teoria separada da linguagem de observação. Deste ponto de vista, podemos
argumentar que a significação observacional dos enunciados teóricos individuais é
indeterminada. Mas não é possível extrair destas considerações uma indeterminação geral
do significado. Poderíamos ter a esperança de fazer isso, mas apenas ao custo de nos
enredarmos nas confusões do terceiro dogma do empirismo. Fazendo isso, nós passamos a
abarcar, no nível geral, um caso-limite da separação das linguagens. Empurramos todo o
significado para a teoria, e deixamos a experiência incapaz de falar qualquer linguagem,
DAVIDSON CONTEXTUALIZADO 134
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nem mesmo metaforicamente. Isto, no entanto, destrói a esperança que tínhamos, pois
elimina a relação racional que figura no cogente argumento duhemiano em favor da
indeterminação. O argumento cogente pode, no máximo, ter atuação localizada. Portanto,
se soubermos encontrar um meio de ultrapassar o terceiro dogma, a tese de Duhem fica
reduzida a suas devidas proporções.
APÊNDICE À TERCEIRA CONFERÊNCIA 135
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SEGUNDA PARTE
APÊNDICE À TERCEIRA CONFERÊNCIA

1. Nas conferências, afirmo que é possível, sem cair em contradição, dizer que as
experiências mantêm relações racionais com o juízo e com a crença, mas, para isso,
devemos pressupor que a espontaneidade já está envolvida na receptividade; noutras
palavras, devemos pressupor que as experiências possuem conteúdo conceitual. Nesse
ponto, o pensamento de Evans cria um obstáculo. Ele se propõe a conceber as experiências
como uma base racional para os juízos, ao mesmo tempo que exclui as experiências da
esfera conceitual. Na Terceira Conferência (§4), tento mostrar que a posição de Evans é
inaceitável, pois é uma versão do Mito do Dado.
Isto pode parecer uma posição difícil de sustentar. A própria idéia de conteúdo
representacional traz consigo uma noção de correção e incorreção: algo que possui um
certo conteúdo é correto, no sentido relevante, apenas quando as coisas são tais como esse
algo as representa. Não consigo encontrar nenhuma boa razão para não chamar esta
correção de "verdade". Mas, mesmo se, por alguma razão, reservarmos esse título para a
correção (tomada no sentido relevante) quando ela for possuída por coisas dotadas de
conteúdo conceitual, parece trivial pensarmos que pode haver conexões racionais entre o
fato de o mundo ser tal como é representado por algo que possui um certo conteúdo e o
mundo ser tal como é representado por algo que possui um outro conteúdo,
independentemente de qual seja o tipo do conteúdo em questão.
Cristopher Peacocke tenta explorar esta trivialidade em A Study of Concepts, onde
sustenta uma posição semelhante à de Evans ao considerar que certos juízos e crenças estão
fundamentados racionalmente num conteúdo não-conceitual possuído pelas experiências.
Na p. 80, Peacocke defende a tese de que o conteúdo não-conceitual que ele atribui às
experiências é capaz de fornecer, "não apenas razões, mas boas razões" para nosos juízos e
crenças. Num caso típico, envolvendo a base experiencial necessária para julgarmos que
algo é quadrado, sua defesa é feita do seguinte modo: "Se os sistemas perceptivos daquele
que pensa estão funcionando de modo adequado, de modo que o conteúdo representacional
não-conceitual de sua experiência seja correto, então, quando tais experiências ocorrem, o
objeto pensado será realmente quadrado." Peacocke comenta: "Ao descrever por que as
conexões são conexões racionais, é essencial o uso que faço do fato de o conteúdo
não-conceitual empregado na condição de posse [a condição para um sujeito possuir o
conceito quadrado] possuir uma condição de correção que diz respeito ao mundo. A
abordagem do caráter racional desta conexão específica gira em torno do fato de que,
quando a condição de correção dos conteúdos não-conceituais relevantes é preenchida, o
objeto, de fato, é quadrado."
Mas isto está longe de estabelecer aquilo de que Peacocke necessita, ou seja, que o
conteúdo não-conceitual atribuível às experiências pode constituir, de modo inteligível, as
razões que o sujeito possui para acreditar em algo.
Há um estilo familiar de explicação para circunstâncias envolvendo um sujeito
(como a circunstância de alguém acreditar em algo): uma explicação do tipo a que estou me
referindo mostra como aquilo que está sendo explicado é tal como deve ser do ponto de
vista da racionalidade (verdadeira, por exemplo, quando estamos explicando uma crença).
Ora, isto não é, eo ipso, dar as razões que o sujeito possui para aquilo que a explicação está
explicando, seja lá o que for. O sujeito pode nem mesmo ter razões. Considere, por
exemplo, os ajustes corporais que um ciclista habilidoso faz numa curva. Uma explicação
APÊNDICE À TERCEIRA CONFERÊNCIA 136
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satisfatória poderia mostrar como os movimentos corporais são tais como devem ser do
ponto de vista da racionalidade, isto é, adequados à finalidade de preservar o equilíbrio, e
ao mesmo tempo avançar na direção desejada. Mas isto não significa dar as razões que o
ciclista possui para fazer aqueles movimentos. A conexão entre um movimento e o objetivo
é o tipo de coisa que poderia ser uma razão para fazer o movimento, mas um ciclista
habilidoso faz esses movimentos sem precisar de nenhuma razão para fazê-los. Por que não
deveria acontecer o mesmo no caso da experiência e do juízo, caso as experiências tivessem
o conteúdo não-conceitual que Peacocke diz que elas têm?
Esse pensamento associado a uma rotina mostra que as conexões entre a
experiência, concebida tal como Peacocke a concebe, e a crença são conexões racionais,
mas apenas no sentido em que são racionais as conexões existentes entre aquilo que é
necessário para manter alguém em equilíbrio e os ajustes que o ciclista vai fazendo. Com
isto, não fica estabelecido que algo dotado de conteúdo não-conceitual possa
inteligivelmente figurar na dimensão dentro-fora que mencionei mais acima neste Posfácio
(Primeira Parte, §5). Ou seja, o pensamento trivial que examinamos não dá a Evans o
direito de falar no juízo e na crença como coisas "que se baseiam" na experiência, nem dá a
Peacocke, em contrapartida, o direito de falar em crenças que se formam por razões
constituídas pela experiência ser tal como é.173
Como poderíamos ter certeza de que uma explicação como a de Peacocke mostrou a
experiência, não apenas como parte das razões pelas quais um sujeito forma suas crenças,
mas como algo que fornece razões para que ele as tenha?
Uma maneira de ter essa certeza seria supor que o sujeito aceita a explicação e a
utiliza ao decidir em que acreditar, ou, pelo menos, que ele estaria disposto a mencioná-la,
caso fosse posto à prova. Suponha que nos seja dito que uma pessoa chegou à conclusão de
que um objeto que ela está enxergando é quadrado, com base na premissa de que, ao
enxergar esse objeto, ela passa por uma experiência envolvendo um certo conteúdo
não-conceitual. O fato de a experiência conter esse conteúdo envolve uma condição de
correção racionalmente associada à crença de que o objeto seja quadrado do mesmo modo
que tal associação ocorre na exploração feita por Peacocke do problema da rotina. A
condição de correção é que o objeto seja realmente quadrado. Nesta versão, a explicação
está claramente representando alguém que forma uma crença dotada de conteúdo
conceitual, por uma razão que lhe é dada por uma experiência dotada de conteúdo
não-conceitual. Mas não é disto que Peacocke necessita. Este sujeito deveria exibir um
domínio do aparato conceitual mais ou menos abstruso invocado por Peacocke quando fala
a respeito do conteúdo não-conceitual: os conceitos de conteúdo de cenário, de conteúdo
protoproposicional, e assim por diante. No entanto, Peacocke deseja que o suposto
fundamento racional da experiência faça parte de uma explicação das capacidades
conceituais utilizadas por sujeitos absolutamente comuns ao fazerem seus juízos de
observação, e não apenas por um seleto grupo de especialistas em filosofia.174
173
Cf., p. ex., p. 7: "Aquele que pensa deve … estar disposto a formar a crença em razão de o objeto
apresentar-se desse modo." Neste caso, não é algo dotado de contéudo não-conceitual que afirmamos estar lá
fora, em minha dimensão dentro-fora. Mas quando, num contexto no qual o conteúdo não-conceitual está em
jogo, Peacocke escreve a respeito de "experiências perceptivas que dão boas razões para julgarmos que …
[deteminados] conteúdos são [conceituais]" (p. 66), ele deve estar querendo dizer que o juízo é feito por
aquelas razões, como na formulação da p. 7.
174
O mesmo vale para o uso da expressão "em razão de" na p. 7 [cf. nota anterior], onde não é o
conteúdo não-conceitual que devemos imaginar, em minha dimensão dentro-fora, num ponto mais afastado
que a crença. Uma defesa análoga, aqui, do uso da expressão "em razão de" exigiria que o sujeito possuísse o
APÊNDICE À TERCEIRA CONFERÊNCIA 137
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E parece correto não exigirmos qualquer domínio da teoria, até mesmo


independentemente do fato de a conexão racional com a experiência ter que figurar em
explicações daquilo que significa para qualquer pessoa possuir este ou aquele conceito
observacional. Se a teoria fosse necessária para mediar a conexão racional da experiência
com o juízo e a crença, isto faria com que não fizesse mais sentido colocar a experiência
entre a crença e o mundo, na dimensão dentro-fora. Se restringimos o papel da experiência
no pensamento empírico ao fato de ela ser algo a partir de que podemos tirar conclusões a
respeito do mundo, desde que conheçamos a teoria relevante, então não podemos conceber
a experiência como algo que constitui, por si só, um acesso ao mundo. Algo cujo papel é
fornecer premissas para argumentos a respeito do mundo só poderia ser opaco, conforme eu
digo, num contexto análogo, ao discutir a concepção das impressões partilhada por
Davidson e Sellars (neste Posfácio, Primeira Parte, §5).
A partir do momento em que temos clareza sobre o quanto o problema das rotinas
está distante daquilo que Peacocke necessita, podemos ver o quanto sua posição é
desinteressante. Na tradição de reflexão a que pertencemos, há uma venerável conexão
entre razão e discurso. Podemos remontá-la pelo menos a Platão. Se tentarmos traduzir
"razão" e "discurso" no grego de Platão, encontraremos uma única palavra, logos, para
ambas. Peacocke não tem como respeitar esta conexão. Ele é obrigado a romper o laço
entre as razões pelas quais uma pessoa pensa como pensa e as razões que ela pode dar para
pensar assim. As razões que um sujeito pode dar, na medida em que são articuláveis, devem
estar dentro do espaço dos conceitos.
Não tenho a intenção de sugerir qualquer grau específico de articulabilidade. Isto
seria tão pouco razoável quanto exigir domínio da teoria de Peacocke. Suponha, porém, que
alguém pergunta a um sujeito comum por que ele possui uma determinada crença
observacional, digamos, a crença de que um certo objeto no interior de seu campo visual é
quadrado. Uma resposta previsível seria – "porque ele parece ser assim". Facilmente
reconhecemos aqui o oferecimento de uma razão para se ter tal crença. Apenas em função
de a pessoa ter dado expressão a ela no discurso, podemos tomá-la, sem qualquer problema,
como uma razão para …, e não apenas como parte da razão pela qual … .
Neste, que é o mais simples dos casos, aquilo que o sujeito diz conta como o
oferecimento de uma razão para sua crença porque o modo como o objeto parecer ser
coincide com o modo como o sujeito acredita que ele é. Noutros casos, a conexão entre
razão e crença é menos simples. Uma resposta minimamente articulada ao pedido de uma
razão poderia ter sido menos específica, como, por exemplo, "por causa da aparência que
tem". Mas isto não faz diferença no que diz respeito ao essencial. Também aqui a razão é
articulável (mesmo se apenas na forma "ele parece ser assim"), e nessa medida não deve ser
menos conceitual do que aquilo para que ela é razão.
O ponto envolvendo estes casos rotineiros é simplesmente o seguinte: pode haver
relações racionais entre ser o caso que P, próprio de um, e ser o caso que Q, próprio de
outro (e, num caso-limite, aquilo que substitui "Q" pode ser simplesmente aquilo que
substitui "P"). Não se segue daí que algo cujo conteúdo é dado pelo fato de conter a
condição de correção que P possa eo ipso ser a razão de alguém para, digamos, julgar que
Q, independentemente de o conteúdo ser conceitual ou não. Só podemos exibir as relações
conceituais entre os conteúdos – o ser o caso que P, próprio de um, e ser o caso que Q,
conceito de propriedades sensoriais de regiões do espaço visual. Peacocke está esboçando uma explicação
alternativa do que seja a posse do conceito vermelho, e nem sequer sonha em sugerir que alguém que possua
esse conceito deva também possuir o conceito de propriedades sensoriais de regiões do espaço visual.
APÊNDICE À TERCEIRA CONFERÊNCIA 138
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próprio de outro – se compreendermos o conteúdo supostamente fundamentador em termos


conceituais, ainda que nossa teoria considere que o item que possui aquele conteúdo não
realiza sua representação de um modo conceitual. Uma teoria como a de Peacocke não
atribui a sujeitos ordinários esta visão compreensiva de ambos os conteúdos, e penso que
isto torna incompreensível de que modo um item com o conteúdo não-conceitual que Q
pode ser a razão de alguém para julgar que Q.175

2. Por que Peacocke está convencido de que a fundamentação racional da crença e do juízo
na experiência deve estabelecer ligações entre o reino conceitual e algo que é exterior a ele?
Sua convicção está em grande parte sustentada por uma exigência de
não-circularidade que ele impõe às abordagens daquilo que significa possuir este ou aquele
conceito. Evitar a circularidade, no caso relevante, não exige que o conteúdo em questão
não seja usado no interior da própria abordagem. Basta que ele não seja usado numa
especificação do conteúdo de um estado conceitual. Uma abordagem que viole este preceito
"não terá elucidado aquilo que se propõe a elucidar" (p. 9).
Se nos propomos a fazer uma abordagem daquilo que significa possuir um conceito
observacional, teremos que explorar a maneira pela qual juízos e crenças que empregam
conceitos desse tipo podem estar racionalmente fundamentados na experiência. 176 Deste
modo, se afirmarmos que o conteúdo das aparências experienciais relevantes já envolvem o
conceito em questão, não poderemos satisfazer a exigência de não-circularidade feita por
Peacocke. Quando nos propomos a dar uma explicação daquilo que significa possuir, por
exemplo, o conceito vermelho, surpreendemos-nos a dizer coisas do seguinte tipo: para
possuir o conceito vemelho, uma pessoa precisa estar disposta – supondo-se que as
condições de iluminação, etc. são do tipo adequado – a emitir juízos em cujo conteúdo o
conceito seja aplicado predicativamente a objetos que se apresentam a essa pessoa na
experiência visual, sempre que esses objetos pareçam vermelhos a essa pessoa, e por essa
razão.177 Mas, este uso de "parecer vermelho" pressupõe, na audiência a quem a explicação
poderia estar sendo dada, não apenas o conceito vermelho, que seria ingênuo, mas o
conceito de posse do conceito vermelho, que está implícito na idéia de ser capaz de fazer
com que as coisas pareçam vermelhas para alguém. E era exatamente isso que a explicação
pretendia explicar. É óbvio de que maneira isto motiva a idéia de que a experiência

175
Evans toma o verbo "parecer" como se ele fosse "nosso termo mais geral para as entregas do
sistema informacional", isto é, itens dotados de conteúdo não-conceitual (The Varieties of Reference, p. 154;
cf. também p. 180). É certamente fácil aceitar que aparências possam ser nossas razões para juízos e crenças.
Mas penso que isto só acontece porque entendemos o conteúdo das aparências como sendo conceitual. O uso
que Evans faz do verbo "parecer" apenas enfraquece sua inteligibilidade. No que diz respeito ao contéudo das
aparências (especificamente, das aparências visuais) ser conceitual, cf. Sellars, "Empiricism and the
Philosophy of Mind", pp. 267-277.
176
Naturalmente a aplicabilidade de um conceito observacional não se restringe a casos nos quais
temos experiências fundamentadoras. (Um sujeito tem que entender que algo pode ser vermelho ainda que
não lhe pareça vermelho.) Este ponto está implicitamente abrangido pela formulação do texto. Suponha que
alguém considere que uma predicação de "vermelho" esteja assegurada apenas se ele tiver uma experiência
semelhante àquelas que descrevemos dizendo que algo nos parece vermelho. Nem por isso essa pessoa estaria
demonstrando que possui o conceito de vermelho. Não é assim que juízos e conceitos que utilizam esse
conceito estão racionalmente fundamentados na experiência. (As coisas poderiam nem mesmo parecer
vermelhas para essa pessoa; é por isso que precisei utilizar a circunlocução "uma experiência semelhante
àquelas…".)
177
Compare isto à primeira cláusula do esquema proposto por Peacocke nas pp. 7–8.
APÊNDICE À TERCEIRA CONFERÊNCIA 139
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fundamentadora deve poder ser caracterizada em termos que não envolvam o conteúdo
conceitual.
Mas isto apenas substitui uma questão por outra. Por que deveríamos supor que é
sempre possível dar explicações a respeito daquilo que constitui a posse de conceitos
obedecendo à exigência de não-circularidade feita por Peacocke? Repare que o que está em
questão é uma explicação daquilo que constitui a posse de conceitos. A condição
neurofisiológica não estaria relacionada à questão de saber o que é que alguém pensa ao
pensar que algo é vermelho. E Peacocke deseja que sua explicação tenha relação com
questões deste tipo. É por isso que a explicação de um conceito observacional deve
posicionar os empregos do conceito no espaço das razões, muito embora a exigência de
não-circularidade obrigue Peacocke a afirmar que as experiências que constituem a base
racional para o emprego desses conceitos permaneçam fora do espaço dos conceitos.
O que está em questão, aqui, é a possibilidade de fazermos uma abordagem
lateralizada dos conceitos, no sentido em que uso esta expressão na Segunda Conferência,
§4, e em minha discussão das posições de Rorty feita mais acima neste Posfácio (Primeira
Parte, §6). A exigência de não-circularidade é, na verdade, uma insistência em abordagens
lateralizadas. Na Segunda Conferência, eu neguei de maneira geral a possibilidade abordar
os conceitos desta maneira. Não consigo enxergar nenhuma razão dada por Peacocke capaz
de convencer-me de que estou errado. Na verdade, creio que sua argumentação acaba se
voltando contra ele mesmo. No §1, afirmei ser difícil perceber como as experiências,
concebidas como Peacocke as concebe, poderiam ser razões para alguém acreditar em algo.
Isto sugere que eu estava certo ao negar que abordagens lateralizadas sejam possíveis. O
problema que se cria para o pensamento motivado tende a corroer as bases do pensamento
motivante.
Na verdade, as abordagens propostas por Peacocke nos são oferecidas como
abordagens daquilo que é possuir este ou aquele conceito. Fala-se ali a respeito de crenças
ou juízos, que figuram nessas abordagens enquanto detentores de conteúdos nos quais os
conceitos em questão são utilizados. Isto não significa, porém, que tais abordagens não
sejam lateralizadas, no sentido em que emprego a expressão. A verdade é que tais
abordagens pretendem explicitamente dizer respeito a sujeitos pensantes, usuários dos
conceitos em questão. No entanto, elas não dizem – e, no fundo, evitam cuidadosamente
dizer – o que pensam esses sujeitos pensantes quando utilizam os conceitos em questão.
Para evitar a circularidade, é necessário que as abordagens só se aproximem daquilo que
pensam esses sujeitos pensantes a partir de fora, identificando esse pensamento como
aquilo que se pensa quando …, complementando o "quando" com uma condição externa
para a posse do conceito. Tais abordagens incorporam a afirmação de que existe um ponto
de vista interno, mas elas não nos são oferecidas desse ponto de vista. Peacocke é sensível à
suspeita de que a externalidade ameaça o projeto de captar o conteúdo. Ele pensa que pode
fazer frente à ameaça associando a condição externa ao pensamento utilizando, não apenas
o "quando", mas também o "em razão de". No entanto, conforme procurei mostrar no §1
acima, a externalidade exigida, neste caso, acaba minando a própria inteligibilidade desse
"em razão de". Sendo assim, não vejo razão para renegar ou qualificar a afirmação que fiz
na Segunda Conferência. Não vejo razão alguma para supor – e vejo inúmeras razões para
não supor – que seja sempre possível abordar os conceitos em conformidade com a
exigência de não-circularidade.178
178
O que eu tentei fazer em meu artigo "In Defense of Modesty" foi justamente negar que a
perspectiva lateralizada seja capaz de capturar conceitos. Não consigo reconhecer minha posição no debate na
APÊNDICE À TERCEIRA CONFERÊNCIA 140
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Abordagens não-circulares poderiam ser disponibilizadas, no que diz respeito a


estas considerações, em casos nos quais aquilo que vem depois de "quando e em razão
de…" pode ser a menção de estados conceituais cujo conteúdo envolva conceitos diferentes
daquele dos quais estamos fazendo uma abordagem, isto é, em casos nos quais um conceito
pode ser apreendido em termos da maneira pela qual utilizações dele estariam
racionalmente fundamentadas em utilizações de outros conceitos. Mas, naturalmente, é
exatamente isso que não acontece com os conceitos observacionais. Estas abordagens
não-circulares não seriam dadas por uma orientação lateralizada visando a totalidade do
reino conceitual, mas apenas a partir do exterior das capacidades conceituais que elas
abordam. As abordagens propostas por Peacocke, pelo contrário, seriam dadas de fora do
reino conceitual.
Será que meu ceticismo a respeito de abordagens que fazem tudo aquilo que
Peacocke quer não seria uma forma de obscurantismo? Peacocke sugere algo desse tipo nas
pp. 35–6:
Na literatura especializada, vão surgindo teorias sobre o que significa possuir certos
conceitos específicos: a primeira pessoa, noções lógicas, e muitas outras coisas.
Embora haja muita coisa que ainda não entendemos, e nem tudo que foi dito até
agora seja correto, é difícil aceitar que o próprio objetivo de todo esse trabalho tenha
sido mal concebido. Muito pelo contrário, freqüentemente surgem fenômenos que
estão especificamente ligados ao conceito de que se está tratando e que são
explicados por estas abordagens. McDowell não nos deixaria dizer que estas
abordagens são teorias a respeito daquilo em que consiste possuir estes conceitos.
Mas não consigo imaginar a respeito de que outra coisa elas poderiam ser, e não
seria possível simplesmente descartá-las.
Muita coisa depende do que seja, de fato, "o objetivo de todo esse trabalho". Não
estamos restritos a apenas duas opções – ou bem aceitar que os pressupostos deste trabalho
indescartável são explicitados naquilo que Peacocke espera de uma teoria dos conceitos
(evitar circularidade, etc.); ou então recusarmo-nos a reconhecer que poderia haver algo a
ser dito a respeito, por exemplo, das conexões racionais específicas entre o pensamento em
primeira pessoa e a experiência.
Vale a pena examinar a situação um pouco mais em detalhe. Como Peacocke
observa, nós não individuamos o conceito de primeira pessoa dizendo que ele é "o conceito
m tal que juízos afirmando Fm exibem uma certa sensibilidade a experiências que
representam Fm como aquilo que ocorre". Mas, não teremos esse problema se
identificarmos os juízos relevantes, para um sujeito dado, como aqueles que exibem uma
certa sensibilidade a experiências que representam F(ele) como aquilo que ocorre. É claro
que isto viola a exigência de não-circularidade. Mas podemos perfeitamente deixar essa
violação como está, e termos ainda um terreno imenso para investigar o caráter dessa
"sensibilidade". Sem dúvida, a formulação corrigida é excessivamente simples. Mas, a
possibilidade de localizar a substância de sua promessa nessa "sensibilidade", deixando a

descrição feita por Peacocke nas pp. 33–6. Se eu pensasse do modo como Peacocke acredita que eu penso,
deveria ser possível satisfazer minhas exigências por meio de uma narrativa lateralizada, desde que tal
narrativa se anunciasse como algo que diz respeito a pensamentos. O que eu quis mostrar é justamente que
não podemos fixar de fora o que é um pensamento, identificando-o apenas a algo que alguém pensa
quando …; e não creio que seja muito útil acrescentar "em razão de…". (Na resposta que dá a mim, Dummett
enfatiza a afirmação de que as conexões são racionais. Cf. pp. 260–2 de "Reply to McDowell", in
B. Taylor, ed., Michael Dummett: Contributions to Philosophy, pp. 253–268.)
APÊNDICE À TERCEIRA CONFERÊNCIA 141
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circularidade como está, é bastante sugestiva. Peacocke está tentando, aqui, encampar a
discussão de Evans a respeito da primeira pessoa, apresentando-a como um exemplo de
trabalho voltado para uma abordagem semelhante à que ele, Peacocke, tem em mente.

3. Evans alega que não possuímos suficientes conceitos de cor, por exemplo, para que seja
possível que nossa experiência visual tenha um conteúdo conceitual. Na Terceira
Conferência, §5, eu afirmo, contrariamente a isso, que podemos expressar todos os
conceitos de que necessitamos, se quisermos captar o mais sutil detalhe cromático de nossa
experiência, dizendo "aquele matiz". Não possuímos todos esses conceitos dados de
antemão, mas temos qualquer um de que precisamos, no momento exato em que
precisamos.
O significado de um proferimento da expressão "aquele matiz" depende da
identidade de uma amostra daquele matiz. Poderíamos estabelecer a regra segundo a qual
consideraremos que algo possui aquele matiz caso seja cromaticamente indiscernível da
amostra escolhida. (É claro que só podemos dizer algo assim quando estamos na presença
da amostra.)
Neste ponto, porém, há uma armadilha bastante conhecida. Podemos ser tentados a
estabelecer também uma segunda regra: considerar que algo possui um certo matiz caso
seja indiscernível cromaticamente de alguma outra coisa que consideramos que possui
aquele matiz. Se dizemos isso, porém, ficamos prisioneiros de um paradoxo com a forma
de um sorites: enfraquecemos a idéia de que proferimentos da expressão "aquele matiz"
possam expressar um significado determinado, pois a indiscriminabilidade cromática não é
transitiva. Dada uma série ardilosamente montada de amostras, poderíamos partir de uma
amostra e, de passo em passo, chegar a uma outra que deveria ser considerada como
possuidora do matiz em questão, por aplicações repetidas da segunda regra, muito embora
pudesse ser cromaticamente discriminada da amostra original, contrariamente ao que diz a
primeira regra. As duas regras não se coadunam.
Deveríamos, por isso, nos restringir à primeira regra, resistindo à tentação de
endossar a segunda. Não é porque consideramos que algo possui um certo matiz que
devemos considerá-lo, por isso, uma amostra daquele matiz, capaz de incluir na extensão
desse matiz qualquer coisa que seja cromaticamente indiscernível da amostra – é este passo
que nos levaria ao paradoxo. A condição de amostra, determinante da extensão do conceito
expresso por "aquele matiz", deve ser reservado à amostra original, ou pelo menos a coisas
cujo alçamento àquela condição não contribuiria para introduzir uma falha na extensão do
conceito.179
Na conferência, admiti que, na duração do exercício dessa capacidade recognitiva
que constitui a posse de um conceito, pode-se dar expressão aberta ao conceito de um matiz
apenas num segundo momento, desde que a experiência forneça algo capaz de ancorar a
referência de um pronunciamento posterior do demonstrativo "aquele matiz". Tendo-se em
vista aquilo que acabei de dizer, é preciso tratar essa idéia com um certo cuidado. Se há
coisas que seriam cromaticamente indiscerníveis da nova âncora, mas teriam sido
cromaticamente discerníveis da amostra original, então, mesmo se alguém não estiver
errado em reconhecer a nova âncora como um exemplificador do matiz em questão (pois
seria indiscernível da amostra original), estaria errado em supor que ela poderia funcionar
como amostra do matiz original. E é difícil supor que, quando ancora a referência de um
179
Não vejo razão para o uso de todo o aparato introduzido por Peacocke nas pp. 83–4 para dar conta
da ameaça do sorites.
APÊNDICE À TERCEIRA CONFERÊNCIA 142
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proferimento de "aquele matiz", ela possa desempenhar qualquer papel que não seja o de
amostra do matiz em questão, seja ele qual for. Este caso revela a possibilidade de uma
capacidade conceitual supostamente fundamentada na recognição ver-se interrompida.
Alguém pode supor que está empregando uma certa capacidade de recognição, mas
enganar-se, em virtude de uma distorção nas propensões para chegar àquilo que ele próprio
toma como um caso recognição; e isso pode acontecer porque ele alçou um exemplo
inadequado à condição de amostra secundária. Neste caso, o proferimento subseqüente de
"aquele matiz" não expressa o conceito original de matiz. O sujeito terá perdido o conceito
original de matiz sem se dar conta do fato.

4. O que nos faz reconhecer a existência um conceito disponibilizado pela presença na


experiência da amostra original é uma capacidade de memória. É o que afirmo nas
conferências. Uma pessoa pode reter a capacidade de reconhecer que as coisas possuem
aquele matiz e, enquanto persistir esta capacidade recognitiva, possivelmente por um
período muito curto de tempo, o sujeito pode incorporar exatamente aquele matiz ao seu
pensamento. (Dado meu uso dos termos, seria redundante dizer "pensamento conceitual".)
Uma vez instalada, a mais direta manifestação de uma capacidade conceitual é um juízo no
qual a capacidade recognitiva que a constitui é diretamente empregada: julgar que algo
visto num momento posterior possui o matiz em questão. No entanto, esta capacidade, que
está fundamentada na memória, de incorporar exatamente um determinado matiz ao
pensamento, também pode ser exercido num pensamento que não esteja engrenado à
experiência presente. Considere, por exemplo, o caso de alguém que se recorda da cor de
uma rosa que não está sendo mais vista, e pensa – "Gostaria que as paredes do meu quarto
fossem pintadas com aquele matiz".
O tipo de pensamento que tenho em vista aqui deve ser distinguido de um outro que
poderia ser expresso por algo como – "Gostaria que as paredes do meu quarto fossem
pintadas com o matiz de rosa que vi em tal ocasião". Alguém poderia ter um pensamento
deste tipo sem trazer à lembrança (como naturalmente podemos dizer) o próprio matiz. É
possível que nos lembremos de que se tratava de um matiz de damasco, só que mais claro, e
que nos marcou por ser ideal para as paredes de nosso quarto. No caso que me interessa,
alguém traz o próprio matiz em mente (como naturalmente podemos dizer): o matiz não
figura em nosso pensamento apenas como algo que satisfaz uma certa especificação. Um
modo de capturarmos esta idéia é dizer que vemos aquele matiz com os olhos da mente.
Na presença da amostra original, um sujeito que possui o conceito de um matiz
mostra-se capaz, pela inspeção direta da coincidência cromática, de classificar itens,
conforme eles possuam o matiz relevante, ou não. Mesmo depois que a amostra original de
cor já não está mais diante de nossas vistas, podemos reter, ao menos por alguns instantes, a
capacidade de classificar itens como possuidores (ou não) do matiz relevante, de um modo
que corresponde aos vereditos que teríamos dado sob o impacto da inspeção direta da
coincidência (ou não) de cor. (Na verdade, esta capacidade de memória é utilizada mesmo
que a amostra original ainda esteja diante de nossas vistas, caso um candidato a receber a
atribuição do matiz não possa ser visualmente justaposto à amostra.) Podemos confiar de
forma bem fundamentada que os vereditos, ou potenciais vereditos dessa capacidade
associada à memória correspondem aos vereditos que teriam sido dados com base na
comparação direta, e é este fato que, pelo menos em parte, está por trás da naturalidade com
que dizemos coisas do tipo – "Eu vejo isso com os olhos da mente". É como se a amostra
APÊNDICE À TERCEIRA CONFERÊNCIA 143
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ainda estivesse disponível para comparação com quaisquer candidatos à atribuição daquele
matiz.
Essa frase é um modo legítimo de se fazer a distinção entre possuir o matiz em
mente e fazer o pensamento reportar-se a ele por meio de uma especificação. No entanto,
ela pode despertar um pensamento filosófico incerto e familiar, segundo o qual a evidente
correção da frase indica a existência de um mecanismo por meio do qual opera a
capacidade classificatória que foi retida. A idéia é que o sujeito atribui o matiz comparando
as coisas que ele vê à amostra internamente retida do matiz. Tudo se passaria como quando
inspecionamos uma coisa para verificar se sua cor corresponde, digamos, à de uma amostra
fornecida pelo fabricante. A única diferença estaria no fato de, neste caso, a amostra estar
diante dos olhos da mente. Wittgenstein nos alerta contra idéias deste tipo (cf., p. ex.,
Investigações Filosóficas, §604). "Eu vejo isso com os olhos da mente" é um modo muito
natural de afirmarmos nossa capacidade de incorporar o próprio matiz ao nosso
pensamento, capacidade que seria publicamente exibida, dadas as condições adequadas, em
vereditos dizendo se tal coisa exemplifica tal matiz. A frase não faz menção a nenhum
mecanismo psicológico que estaria operante na produção desses vereditos.180

5. O que produz as capacidades recognitivas que constituem nossa capacidade de


incorporar certos matizes em nosso pensamento? Nas conferências, considerei apenas
comparações com exemplificadores dos matizes em questão. Mas lembremo-nos da questão
de Hume a respeito da possibilidade de um sujeito formar, no pensamento puro, a idéia de
um matiz que faltava à sua experiência de cor.181 Com isto se introduz aquilo que talvez seja
uma outra possibilidade. Já me comprometi com a afirmação de que, potencialmente,
possuímos todos os conceitos do tipo relevante, apenas em virtude de termos o conceito de
um matiz. A questão de Hume, entretanto, diz respeito à posse atual desse conceito. O que
se sugere é que um sujeito poderia pôr-se em condições de ver o matiz que está faltando
com os olhos da mente, por um puro exercício de imaginação.
Talvez isto seja, de fato, possível. Nenhuma das teses que defendo seria ameaçada
por esta possibilidade do modo como ela parece ameaçar o empirismo de Hume com
relação aos conceitos. O único ponto sobre o qual devemos insistir é que, se isto for mesmo
possível, será apenas uma possibilidade a mais para a gênese do tipo de capacidade
recognitiva que algamos possuir quando dizemos "Eu vejo o matiz com os olhos da mente".
Não haverá nenhuma sustentação adicional, aqui, para a idéia de que exercícios da
capacidade recognitiva associada estejam baseados numa comparação com uma amostra
interna.182

180
"Eu vejo isso com os olhos da mente" incorpora uma certa imagem. A atitude mais apropriada
com relação a ela é aquela expressa por Wittgenstein nas Investigações Filosóficas, §427, com respeito à
imagem incorporada a frases como esta – "Enquanto eu falava com ele, eu não sabia o que estava
acontecendo em sua cabeça." Diz Wittgenstein: "Esta imagem deve ser levada a sério. Nós realmente
queríamos olhar o que se passa na cabeça da pessoa. Mas, com isso, só estamos querendo dizer aquilo que, em
outras ocasiões, nós expressamos da seguinte forma: nós gostaríamos de saber em que essa pessoa está
pensando. Entender literalmente esta imagem, e até mesmo supor que seja intelectualmente obrigatório
proceder assim é algo constrangedoramente comum na filosofia da mente contemporânea.
181
A Treatise of Human Nature, ed. L.A. Selby-Bigge e P.H. Nidditch (Clarendon Press, Oxford,
1978), 1.1.1.
182
Se essa possibilidade, de fato, existe, o resultado líquido será que a imaginação é capaz de
preencher os espaços vazios existentes num repertório de conceitos de matizes. A maior parte deste repertório,
porém, deve ser iniciado na experiência, do modo como descrevo na conferência. Conceitos de matizes, de
APÊNDICE À QUINTA CONFERÊNCIA 144
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TERCEIRA PARTE
APÊNDICE À QUINTA CONFERÊNCIA

1. Segundo Crispin Wright, Wittgenstein compromete-se com a elaboração de uma


determinada concepção de significado, muito embora seu "quietismo" o impeça de pôr seus
compromissos em prática. Na Quinta Conferência, §3, eu sugeri que as conseqüências que
o próprio Wright atribui àquela concepção são intoleráveis. Deixarei a sugestão como está,
e, ao invés de defendê-la, tentarei mostrar que nos condenamos a não compreender o
principal ponto do argumento de Wittgenstein, se nós o lermos de um modo que transforme
seu "quietismo" num fato embaraçoso envolvendo um conjunto de textos que teriam
realmente atribuído tarefas substantivas à filosofia, dando inclusive pistas a respeito de
como executá-las.
Não me parece que isto seja realmente uma lacuna. Se entendermos o "quietismo"
de Wittgenstein de maneira adequada, as doutrinas com as quais Wright acredita que ele
está comprometido talvez venham abaixo, derrubadas pelo próprio peso. É apenas sob
pressão da filosofia que alguém sonharia em pensar que haja algum problema na idéia de as
coisas, de todo jeito, serem deste ou daquele modo, independentemente de qualquer
ratificação comunitária.
Wright acha que Wittgenstein revela exatamente este tipo de compulsão filosófica.
Segundo Wright, Wittgenstein coloca uma questão genuinamente urgente a respeito de
como é possível o significado: uma daquelas questões que a filosofia costuma levantar,
num tipo de atividade cuja própria razão de ser está ligada à nossa incapacidade de excluir
de antemão a possibilidade de afrontar aquilo que é considerado como senso comum. E
Wright pensa que uma concepção de sentido só pode ser legitimada, face ao problema que
Wittgenstein supostamente elabora, caso estejamos dispostos a repensar aquilo que é aceito
como senso comum a respeito da idéia de as coisas, de todo jeito, serem deste ou daquele
modo. Sendo assim, o "quietismo" de Wittgenstein assume o aspecto de um embaraçoso
fracasso em reconhecer o caráter de suas próprias realizações filosóficas. É um erro, porém,
pensar que Wittgenstein esteja chamando nossa atenção para uma boa questão a respeito de
como é possível o significado.
O "quietismo", a fuga de qualquer filosofia substantiva – este é o ponto central.
Questões do tipo "Como é possível a filosofia?" expressam uma sensibilidade pelo que é
fantasmagórico, e Wittgenstein está tentando dizer que não devemos ser indulgentes com
esse tipo de sensibilidade. Devemos, pelo contrário, exorcizá-la. A questão parece ser
urgente da perspectiva de uma visão de mundo que seja inóspita para o significado: uma
perspectiva a partir da qual pareça que a filosofia tem a tarefa de enfiar à força no mundo
algo tão próximo quanto possível de nossa concepção prévia de significado. Mas a tarefa da
filosofia é, pelo contrário, desalojar os pressupostos que fazem com que pareça difícil
encontrar um lugar no mundo para o significado. Podemos, então, admitir sem nenhuma
dificuldade o papel que o significado desempenha na modelagem de nossas vidas, sem a
necessidade de legitimar construtivamente o lugar ocupado pelo significado na concepção
que temos de nós mesmos.
Wittgenstein pretende pôr sob suspeição a aura de mistério que certas idéias a
respeito do significado adquirem num ambiente inadequado. Trata-se de idéias do seguinte
modo geral, ainda devem ser constitutivamente dependentes das intuições, de um modo que, segundo a
especulação que faço na conferência, está subjacente ao fato de Evans nem mesmo considerá-los um campo
possível de conceitos.
APÊNDICE À QUINTA CONFERÊNCIA 145
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tipo: o significado, digamos, de uma instrução que especifica uma série aritmética (por
exemplo, a instrução "some 2") "determina os passos de antemão" (cf. Investigações
Filosóficas, §190) de tal modo que – para pôr a idéia em conexão direta com as
preocupações de Wright – o fato de tal movimento ser o movimento correto num
determinado ponto da expansão da série não depende de uma ratificação da comunidade
relevante, ou seja, aqueles que consideramos que entendem a instrução. Esta idéia pode
parecer estranha, como se ela estivesse atribuindo poderes mágicos ao significado. O erro
de Wright é pensar que Wittgenstein pretenda pôr sob suspeição essas idéias tomadas em si
mesmas. O alvo de Wittgenstein, porém, é a atmosfera de estranheza. A idéia, em si mesma,
está correta.183
O contraste entre o platonismo desenfreado e o naturalizado ajuda a pôr para fora
esta possibilidade. Os pensamentos relevantes são platônicos. Se só conseguimos ter em
mente um platonismo desenfreado, a aura de estranheza é inescapável. Nossa única
alternativa seria uma construção filosófica com qual pudéssemos rebaixar nossas
exigências, seja a respeito da objetividade, ou de qualquer outra coisa. Mas o problema não
está nos pensamentos platônicos considerados em si mesmos. No contexto de um
platonismo naturalizado eles não terão esse ar de estranheza. Um outro modo, portanto, de
expressar o erro de Wright é dizer que ele é cego à possibilidade de um platonismo
naturalizado.184

2. Na conferência, eu atribuo a Wittgenstein o desejo de desmascarar a aparente


necessidade da filosofia ordinária. Isto tem que ser lido com cuidado. Não pretendo sugerir
que Wittgenstein tem seriamente em vista um estado de coisas no qual a filosofia já não
tenha lugar. As raízes intelectuais das angústias tratadas pela filosofia ordinária são
profundas demais para isso. Este ponto fica dramaticamente exposto na multiplicidade de
vozes presentes nos escritos finais de Wittgenstein, em seu caráter dialogal. As vozes que
precisam ser acalmadas, chamadas à sobriedade, não são vozes alienígenas; elas dão
expressão a impulsos que ele encontra, ou pelo menos poderia se imaginar encontrando em
si mesmo. Quando ele escreve "A verdadeira descoberta é aquela que me torna capaz de
parar de fazer filosofia quando eu quiser" (Investigações Filosóficas, §133), não
deveríamos considerar que ele tem em vista uma cultura pós-filosófica (uma idéia central
no pensamento de Rorty). Ele nem mesmo está tendo em vista um futuro para si mesmo, no
qual estaria definitivamente curado de seus impulsos filosóficos. O impulso só se aquieta de
vez em quando, e por algum tempo.185

183
Cf. Investigações Filosóficas, §195. A voz de um interlocutor diz: "Mas eu não quero dizer que
aquilo que faço agora (ao captar o significado) determina causalmente, segundo a experiência, meu uso
futuro, mas que, de um modo estranho, o próprio uso já está de algum modo presente." A voz que responde
diz: "Mas é claro que está – 'em algum sentido'! Na verdade, a única coisa errada nisso que você disse é a
expressão 'de um modo estranho'. O resto está certo."
184
Faço uma leitura nesta mesma linha, mas bem mais elaborada, acrescentando referências mais
detalhadas a Wittgenstein do que me pareceu apropriado nestas conferências, em "Meaning and Intentionality
in Wittgenstein's Later Philosophy", in Peter A. French, Theodor E. Uehling Jr. e Howard K. Wettstein, eds.,
Midwest Studies in Philosophy, vol. 17: The Wittgenstein Legacy (University of Notre Dame Press, Notre
Dame, 1992), pp. 42–52. Para examinar idéias semelhantes, cf. Cora Diamond, The Realistic Spirit. Na p. 6,
ela descreve um de seus alvos nos seguintes termos: "A crítica de Wittgenstein da … mitologia ou fantasia –
em particular, sua crítica da mitologia associada à necessidade lógica – é lida como se fosse uma rejeição da
mitologia de uma falsa noção de como as coisas são."
185
Fui persuadido disto por James Conant e Lisa Van Alstyne.
APÊNDICE À QUINTA CONFERÊNCIA 146
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Mas não penso que siga-se daí que não possa haver um papel, num estilo de pensar
que é genuinamente wittgensteiniano em seu espírito, para o tipo de diagnóstico que
proponho nas conferências. O que eu sugiro é que nossas angústias filosóficas são devidas
ao compreensível poder que o moderno naturalismo exerce sobre nosso pensamento, e que
podemos fazer algo para diminuir esse poder. Um modo de tornar mais vívida esta sugestão
é retratar uma disposição de espírito na qual desprezamos definitivamente as influências
sobre nosso pensamento que conduzem às angústias filosóficas, ainda que não estejamos
supondo que poderíamos algum dia alcançar esta disposição de espírito na forma de uma
posse permanente e estável. Mesmo assim, esta identificação de uma origem de nossas
dificuldades aparentes pode ser um dos recursos que utilizamos para superar as recorrências
do impulso filosófico: recorrências que sabemos que virão.

3. Quando descrevo o platonismo tranqüilo que o naturalismo enquanto segunda natureza


tornou possível, digo coisas do seguinte tipo: a estrutura do espaço das razões não é
contruída num isolamento explêndido de qualquer coisa meramente humana. O "quietismo"
de Wittgenstein, adequadamente entendido, é um bom contexto para frisarmos que
observações como esta não deveriam dar ocasião à questão – "Mas, então, o que constitui a
estrutura do espaço das razões?" Se acharmos que estamos respondendo a esta questão, o
apelo que fiz à segunda natureza, tão incompleto e pouco sistemático, dará a impressão de
ser, no máximo, uma nota promissória na direção de uma resposta adequada. Isto, porém,
seria não entender o que eu quis dizer. Acho que a resposta a que deveríamos conquistar o
direito, quando nos fazem uma questão como "O que constitui a estrutura do espaço das
razões?", é algo semelhante a um encolher de ombros. Rorty expressou muito bem a idéia
de que questões como essa não deveriam ser consideradas em ordem sem maiores
explicações, exatamente porque o normal é que elas sejam feitas no contexto da filosofia
em que fomos educados. A mera condição tradicional que elas possuem não pode, por si só,
nos obrigar a levar essas questões a sério. Existe, isto sim, um pano de fundo presumido
que supostamente as tornaria urgentes. Ao invocar a segunda natureza, minha intenção é
expulsar o pano de fundo que faz com que tais questões pareçam prementes, isto é, o
dualismo da razão e da natureza. Não pretendo que isto seja um lance – que poderia ser, no
máximo, o primeiro lance – na construção de uma resposta àquela questão.

4. Na Quinta Conferência, §5, discuto a sugestão kantiana de que a continuidade da


autoconsciência incorpora apenas uma concepção formal de persistência. Vale a pena
comparar a sugestão feita por Wittgenstein numa passagem bastante conhecida (pp. 66–7
do Blue Book): que "o uso [do 'eu'] como sujeito" não tem referência. Podemos formular
aquilo que Wittgenstein sugere naquele ponto de um modo que ressalte as semelhanças com
o pensamento kantiano. Diríamos que a estrutura referência-mais-predicação em, digamos,
"Eu tenho dor de dente" é meramente formal. As considerações que induzem Wittgenstein a
fazer esta sugestão parecem bastante próximas daquelas que estão operantes nos
paralogismos. E nosso veredito seria o mesmo. A motivação para a sugestão – solapar as
bases da concepção cartesiana do eu – é louvável, mas tão logo entendemos o contexto
mais amplo no qual funciona o uso do "eu" como sujeito, a sugestão pode ser separada de
suas motivações. Não há obstáculos à suposição de que meu uso de "eu" como sujeito
refira-se ao ser humano que sou.186
186
Cf. a discussão feita por Evans dessa passagem de Wittgenstein em The Varieties of Reference",
pp. 217–20.
APÊNDICE À QUINTA CONFERÊNCIA 147
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5. Pode ser útil justapor minhas observações a respeito da referência a particulares, na


Quinta Conferência, §6, àquilo que eu disse na Segunda Conferência, especialmente no §3.
Na Segunda Conferência, eu exploro o "truísmo" de Wittgenstein para desencorajar
a idéia de que haveria um hiato entre o pensamento enquanto tal e o mundo. Um contraditor
poderia dizer algo do seguinte tipo: "Você pode fazer com que tudo se passe como se sua
orientação não fosse idealista, já que você considera o mundo simplesmente como algo
cujos elementos são coisas que acontecem. Nesse contexto, você pode explorar a alegação,
que não passa de um truísmo, de que, quando o pensamento de alguém é verdadeiro, aquilo
que ele pensa é aquilo que acontece. Mas, tão logo tentamos acomodar o sentido em que o
mundo é povoado por coisas, por objetos (e é melhor haver mesmo esse sentido), ficará
claro que sua imagem de um apagamento de uma fronteira externa ao redor do reino do
pensamento deve ter um caráter idealista, talvez num sentido ampliado do termo. Mesmo
admitindo que a imagem abre espaço para um tipo de contato direto entre mentes e fatos,
ela apaga uma possibilidade à qual não deveríamos querer renunciar – a possibilidade de
um contato direto entre mentes e objetos, que certamente deve ser externa ao reino do
pensamento. É esta possibilidade que chamou nossa a atenção quando recuávamos da teoria
generalizada das descrições."
Dada a identidade entre aquilo que alguém pensa (quando seus pensamentos são
verdadeiros) e aquilo que acontece, conceber o mundo como tudo que acontece (como no
Tractatus Logico- Philosophicus) equivale a incorporar o mundo àquilo que aparece na obra
de Frege como o reino do sentido. O reino do sentido (Sinn) contém pensamentos no
sentido daquilo que pode ser pensado (o pensável), por oposição a atos e episódios do
pensar. A identidade exibe fatos, coisas que acontecem, que são pensamentos nesse
sentido – pensáveis que acontecem. Os objetos, porém, pertencem ao reino da referência
(Bedeutung), e não ao reino do sentido. A objeção que se faz é que o "truísmo" de
Wittgenstein resulta num alinhamento das mentes com o reino do sentido, e não com o
reino da referência.
Na verdade, posso formular um dos principais pontos de minhas conferências em
termos da noção fregiana de sentido: é no contexto dessa noção que deveríamos refletir a
respeito das relações do pensamento com a realidade, de modo a nos imunizarmos contra as
angústias filosóficas costumeiras. Isto é somente um outro modo de formular o pensamento
que expresso na conferências em termos da imagem sellarsiana de um espaço lógico das
razões. A noção fregiana do sentido opera no espaço das razões: tudo aquilo que é essencial
à noção de sentido é capturado pelo princípio segundo o qual pensamentos, sentidos
potenciais de proferimentos completos, diferem entre si caso um único sujeito possa
assumir simultaneamente posturas conflitantes com relação a eles (qualquer par, digamos,
do trio aceitação, rejeição e neutralidade), sem receber, por isso, uma condenação por
irracionalidade. Se o fracasso em distinguir sentidos nos deixasse na obrigação de atribuir a
um sujeito racional e não-confuso, ao mesmo tempo, posturas racionalmente opostas
dotadas de um mesmo conteúdo, então seria necessário que distinguíssemos sentidos, de
modo a tornar possível uma descrição da posição total do sujeito que tem diferentes
conteúdos para as posturas, e portanto não questiona a racionalidade de sua posição.187
O contraditor que imaginei pensa que, se assumirmos o ponto de vista fregiano
segundo o qual pensamento e realidade encontram-se no reino do sentido, então só

187
Cf. Evans, The Varieties of Reference, pp. 18–19.
APÊNDICE À QUINTA CONFERÊNCIA 148
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podemos pretender acomodar a relação do pensamento com os objetos – uma relação entre
mentes e habitantes do reino da referência – adotando alguma versão da teoria generalizada
das descrições. Não teremos acesso às intuições daqueles que insistiram numa relação mais
direta entre mentes e objetos do que a relação que nos é franqueada por esse cenário.
O que digo ao final da Quinta Conferência pode ser visto como uma precaução
contra essas objeções. Dado um entendimento adequado do aparato de Frege, minha
exploração do "truísmo" wittgensteiniano na Segunda Conferência, que realmente pode ser
reformulada dizendo-se que pensamento e realidade encontram-se no reino do sentido, já dá
lugar àquilo que é correto no recuo em relação à teoria generalizada das descrições. Caso os
sentidos relevantes forem corretamente entendidos, o papel desempenhado pelo sentido,
num quadro que faz com que a relação do pensamento com o mundo permaneça
não-problemática, já assegura que não haja mistério a respeito de como é possível que
pensamentos relevantes relacionem-se com particulares relevantes, habitantes do reino da
referência, do modo não-especificante em que os proponentes do recuo insistem com razão.
APÊNDICE À SEXTA CONFERÊNCIA 149
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QUARTA PARTE
APÊNDICE À SEXTA CONFERÊNCIA

1. O que eu disse a respeito da ingenuidade aristotélica pode levantar algumas suspeitas.


Pode parecer que isso contradiz um fato óbvio: Aristóteles discute de modo explícito
posições que, sob determinados aspectos, estão impressionantemente próximas do
naturalismo moderno.
É bem verdade que os atomistas da Antigüidade (para tomar aquele que é talvez o
melhor caso para os que desejam fazer a objeção) já possuíam uma concepção de natureza
de aspecto moderno, desde que tomemos esta concepção de natureza no sentido daquilo que
é abrangido pela mais fundamental de todas as compreensões das coisas. Eles
consideravam que a natureza, tomada neste sentido, é vazia de significado e de valor. E não
é menos verdade que Aristóteles se atém a uma outra concepção de natureza, opondo-se
conscientemente a concepções como a dos atomistas. Mas, nessas antecipações antigas da
concepção desencantada da natureza, falta à tese de que a natureza é destituída de
significado e de valor um certo estatuto que ela possuirá no pensamento moderno. A tese
não figurava, na Antigüidade, como um outro modo de formular uma visão
justificadamente arraigada do tipo de compreensão visada por uma investigação
propriamente científica: uma visão que não está aberta à disputa, mas é parte daquilo que
deve ser pressuposto, caso queiramos que nos considerem pessoas instruídas.
Conforme eu insisto no texto, devemos reconhecer que, quando o reino da
compreensão propriamente científica finalmente foi visto por todos como um reino
desencantado, isto significou um avanço intelectual. É por isso que é tão difícil para nós
nos livrarmos das angústias filosóficas de que me ocupei. Facilmente podemos não
perceber que aquilo que consideramos correto conceber como desencantado não precisa ser
identificado à natureza. A ingenuidade aristotélica consiste em não estar sujeito a esta
pressão intelectual. Ele certamente está consciente de que é possível ver a natureza,
identificada como o tema da mais fundamental de todas as compreensões, de um modo que
a desencanta. Para ele, porém, isto reflete uma visão meramente opcional – e, do seu ponto
de vista intelectual, não muito bem fundamentado – da mais fundamental das
compreensões. Ele não tem que resistir à tentação de deixar que o rótulo "natureza" vá se
fixar em algo que, de qualquer modo, ele estaria intelectualmente comprometido a sustentar
como aquilo que é abrangido pela compreensão científica. Aristóteles não tem a menor
suspeita da existência de um pensamento perfeitamente correto que pudéssemos expressar
do seguinte modo: se identificarmos a natureza como o tema da compreensão científica,
então devemos vê-la como desencantada.188

2. Na Sexta Conferência, §4, recuso-me a atribuir orientações com relação ao mundo a


animais não-humanos. É compreensível que isto desperte raiva em algumas pessoas.
Pode ser de alguma ajuda salientar que aquilo que me comprometo a negar no caso
dos animais comuns é apenas e precisamente algo que corresponde à posse da
espontaneidade. No texto da conferência, ao repudiar uma concepção redutiva dos
imperativos biológicos, que dão forma à vida dos animais comuns, tento minimizar a
impressão de que eu estaria rebaixando a mentalidade animal. E, talvez, esta menção a
imperativos biológicos já esteja sugerindo uma linha argumentativa mais dura do que eu

188
Esta seção responde a uma questão feita por M.F. Burnyeat.
APÊNDICE À SEXTA CONFERÊNCIA 150
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preciso, mesmo na ausência da concepção redutiva, que eu repudio. O ponto resume-se ao


seguinte: animais brutos não possuem liberdade kantiana. Isto é perfeitamente compatível
com a admissão de que eles podem ser, a seu próprio modo, espertos, expeditos,
perquiridores, amigos, e assim por diante. Não quis sugerir que eles estejam, de algum
modo, "marginalizados". Na verdade, minha intenção foi, apropriando-me da noção
gadameriana de meio ambiente, disponibilizar meios lingüísticos para dizer exatamente o
oposto, mesmo negando que, na falta da espontaneidade, animais brutos possam possuir o
mundo. E é importante que a liberdade que eu afirmo que lhes falta seja precisamente a
espontaneidade kantiana, a liberdade que consiste na responsividade potencialmente
reflexiva a supostas normas da razão. Ninguém que não tenha lá suas razões filosóficas
pode olhar, suponhamos, um cachorro ou um gato brincando e considerar seriamente a idéia
de subsumir suas ações a algo semelhante ao automatismo. Mas é possível negar
espontaneidade kantiana e, mesmo assim, abrir um espaço largo à semovência, que é óbvia
para qualquer olhar sem preconceitos que se debruce sobre a cena.
Os riscos de cairmos na angústia filosófica com a qual me preocupo nas
conferências surgem relacionados a uma concepção de orientação em direção ao mundo
correlata da espontaneidade no sentido kantiano. Eles surgem precisamente em função
daquilo que é peculiar à espontaneidade no sentido kantiano, quando vista da perspectiva da
moderna concepção de natureza que nos é familiar, segundo a qual a natureza seria o reino
desencantado da lei.
Se alguém pretende desenvolver uma concepção de orientação em direção ao
mundo que esteja separada da espontaneidade no sentido kantiano, tendo em vista a
disponibilização do linguajar do direcionamento-ao-mundo para o discurso a respeito da
mentalidade dos brutos, isso está, até aí, perfeitamente bem, do meu ponto de vista. Fora
deste contexto, não tenho a menor vontade de falar qualquer coisa a respeito de animais
comuns, e certamente não pretendo minimizar os aspectos sob os quais a vida deles é
semelhante à nossa. O fato de também sermos animais, e não seres que teriam um ponto de
apoio fora do reino animal, é uma das coisas em que desejo insistir. Além disso, sob alguns
aspectos, a vida de seres humanos adultos simplesmente coincide com a vida de simples
animais. Seria absurdo supor que a Bildung efetua uma transfiguração, digamos assim, de
tudo que acontece numa vida humana.189
Aquilo a que realmente pretendo opor resistência é à idéia de que uma tal concepção
neutra da orientação em direção ao mundo irá funcionar sempre, quaisquer que sejam
nossos objetivos. Isto equivaleria a rejeitar toda e qualquer menção a uma espontaneidade
que fosse peculiar, tal como Kant entendia esta peculiaridade. Isto pode ser motivado pela
convicção de que, se deixarmos uma já admitida peculiaridade deste tipo levar a uma
eclosão de filosofia, nossa posição intelectual será insustentável, e deixei bem claro que
tenho simpatia por esta motivação. Nas conferências, porém, tento mostrar de que modo
podemos admitir que temos uma espontaneidade peculiar, no sentido kantiano, e que esse
fato é crucial para o modo especial que temos de estar em contato com o mundo, sem que
por isso tenhamos que aterrissar naquela enrascada filosófica. Não precisamos interromper
este tipo de filosofia antes de ela começar, recusando-nos a admitir que haja qualquer base
para todo o rebuliço que ela faz em torno da espontaneidade (ecoando, aqui, algo que digo
na Quarta Conferência, §4). Quando admitimos que a espontaneidade é peculiar,
189
Mesmo aqueles aspectos da vida humana madura cuja forma é dada pela Bildung exibem resíduos
não-assimilados de sua evolução a partir da mera natureza (primeira natureza). Esta é uma maneira de dar
expressão a uma idéia cental de Freud.
APÊNDICE À SEXTA CONFERÊNCIA 151
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deveríamos prestar atenção a como, fazendo isso, corremos o risco de ser vitimados por
uma angústia filosófica improfícua. Não é necessário, porém, que percebamos o risco.
Podemos entender e exorcizar o impulso filosófico, e não apenas reprimi-lo.
Podemos compreender como pode parecer que problemas filosóficos surjam a partir
de uma noção de orientação em direção ao mundo correlacionada à peculiaridade kantiana
da espontaneidade. As coisas parecem ser assim em virtude da pressão a que somos
submetidos para supor que a espontaneidade deveria ser não-natural. Tentei mostrar, no
entanto, de que maneira este aparecimento de uma tarefa filosófica pode ser exibido como
algo ilusório. Não há necessidade de um aparato filosófico elaborado e, fora do âmbito do
estudo, inacreditável, para responder a questão de como é possível ao pensamento
empírico, entendido como um exercício de "soberania conceitual", relacionar-se com o
mundo, ou, mais ainda, produzir conhecimento sobre o mundo. Esta é uma receita para um
exorcismo potencialmente satisfatório da angústia filosófica, porque ele admite plenamente
o pensamento que está na origem da angústia. E só podemos chegar a este ponto movidos
pelo impulso filosófico se traçarmos uma linha separando possuidores de não-possuidores
de espontaneidade, tal como fiz ao longo das conferências.

3. Quando apelo à tradição no final da Sexta Conferência, minha intenção era apenas abrir
as portas para o tópico, a respeito do qual, sem dúvida, há muitas coisas que ainda precisam
ser ditas. Não tentarei fazer aqui uma discussão propriamente dita. No entanto, a nota que
eu pretendo tocar pode ser clarificada com a ajuda de algumas observações sobre o modo
como minha postura coloca-me em oposição, não apenas a Dummett, como eu afirmo na
conferência, mas também a Davidson.
As conferências terminam com uma nota gadameriana, afirmando que a
compreensão é colocar aquilo que foi compreendido num horizonte constituído pela
tradição, e eu sugiro que a primeira coisa a ser dita a respeito da linguagem é que ela serve
de repositório para a tradição. Ser iniciado na linguagem é ser iniciado numa concepção
dinâmica da estrutura do espaço das razões. Isto promete dar inteligibilidade à maneira pela
qual os seres humanos, começando como animais comuns, amadurecem à medida que vão
sentindo-se à vontade no espaço das razões. Desta perspectiva, uma linguagem
compartilhada é o meio primário de compreensão. Ela observa os participantes da
comunicação que se dá por meio dela, guardando uma espécie de independência em relação
a cada um deles, que combina muito bem com o fato de ela merecer uma espécie de
respeito.190 Podemos entender a comunicação que atravessa fronteiras se passarmos deste

190
Não apenas o respeito devido a um instrumento efetivo, que é suficiente para explicar o rechaço
por ocasião do mau uso de palavras como "disinterested" [quando a palavra adequada seria "uninterested"] e
"careen" [quando a palavra adequada seria "career"]. O respeito a que me refiro é o respeito devido a algo a
que devemos nosso ser aquilo que somos. (Naturalmente, aquilo que fazemos com nossa linguagem pode
transformá-la. Por exemplo, aquilo que era mau uso pode deixar de sê-lo. Isto, porém, não anula o sentido no
qual a linguagem é independente de nós.)
["Disinterested" significa "não influenciado por sentimentos ou interesses pessoais". É traduzido em
português por "desinteressado(a)", em contextos como "opinião desinteressada". O adjetivo "uninterested"
aplica-se a uma pessoa que não tem interesse ou sentimento por alguém ou alguma coisa. Também é traduzido
no português pela palavra "desinteressado(a)", em contextos como "aluno desinteressado". O verbo "careen"
significa "tombar uma embarcação para efetuar limpeza ou conserto", e também "avançar adernando"
(referindo-se a barcos e navios). Em português, diríamos "virar de querena". No inglês, passou a assimilar
indevidamente o significado do verbo "career", "sair em disparada", em virtude da semelhança fonética, e
também do segundo sentido original, que envolve movimento. (N.doT.)]
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caso básico, no qual o horizonte é em grande parte dado (mas não Dado!) pela tradição
incorporada à linguagem, para o tipo de caso no qual é preciso haver uma fusão de
horizontes, o que pode dar bastante trabalho.
Davidson não dá este tipo de importância à idéia de uma linguagem compartilhada.
Pelo contrário, para Davidson a interação comunicativa não tem necessidade alguma de
desempenhar o papel de um meio, no sentido para o qual acenei. (É claro que, num outro
sentido, tem que haver um meio: a fala, sinais de fumaça, ou seja lá o que for.) Na
concepção de Davidson, os participantes da comunicação são indivíduos auto-sustentados.
Eles não precisam de uma linguagem – de um repositório específico de tradições relativas à
forma do espaço das razões – que os constitua enquanto participantes potenciais da
comunicação, ou, na verdade, de qualquer outra atividade que requeira capacidades
conceituais. Na opinião de Davidson, a idéia de uma linguagem compartilhada por
participantes da comunicação é, no máximo, uma abreviação para um grau explicável de
correspondência entre idioletos. Tal correspondência pode tornar mais fácil a obtenção de
hipóteses de interpretação para certos pares de pessoas, mas o entendimento mútuo entre
pessoas que acreditamos que compartilham uma linguagem não é, em princípio, diferente
da mais radical das interpretações. A "linguagem compartilhada" não passa de um auxiliar
de um desempenho cognitivo que poderia ocorrer sem ela. A capacidade de entendimento
mútuo não carece de um fundo filosófico interessante.191
Não posso argumentar aqui de maneira adequada contra este ponto de vista, mas me
permitirei fazer uma sugestão. Davidson concebe o tipo de compreensão de pessoas que
está em questão neste ponto exatamente como eu o faço nas conferências: em termos de um
posicionamento daquilo que elas pensam e fazem (incluindo aqui o que elas dizem) no
interior do espaço das razões. Aprendi a pensar desse modo tanto com Davidson quanto
com Sellars. Nos pontos em que uso a imagem sellarsiana do espaço das razões, Davidson
fala de um "ideal constitutivo de racionalidade". A idéia, porém, é claramente a mesma. (Eu
exploro esta correspondência na Quarta Conferência, §4.) Assim, os intérpretes mútuos de
Davidson têm que chegar à sua tarefa cognitiva já equipados com uma boa noção da
estrutura do espaço das razões, com uma concepção substantiva daquilo que "o ideal
constitutivo de racionalidade" requer. Mas, penso que devemos olhar com suspeição a idéia
de que podemos simplesmente atribuir este equipamento a indivíduos humanos, sem nos
valermos de qualquer coisa semelhante a meu apelo à iniciação numa linguagem
compartilhada e, portanto, numa tradição. Acho que a idéia de que esse equipamento
cognitivo não necessita desse pano de fundo não passa de mais um ressurgimento da idéia
do Dado. Se quisermos atacar o Mito do Dado endógeno, num contraponto ao ataque de
inspiração kantiana que Sellars faz ao Mito do Dado exógeno, encontraríamos aqui um alvo
muito melhor do que a idéia de analiticidade, ou de irrevisibilidade aconteça o que
acontecer (cf. Primeira Parte deste Posfácio, §§4, 9). Falando em termos hegelianos, a idéia
do Dado não é a irrevisibilidade enquanto tal, mas uma suposta irrevisibilidade que reflete
uma ausência de mediação para nossa imagem. Davidson renuncia à única mediação
disponível para a capacidade que os seres humanos têm de entender-se entre si.
Em trabalhos mais recentes, Davidson tenta construir o conceito de objetividade a
partir de uma "triangulação" entre estes sujeitos auto-sustentados, engajados aos pares no
191
Cf. "A Nice Derangement of Epitaphs", in LePore, ed., Truth and Interpretation: Perspectives on
the Philosophy of Donald Davidson, pp. 433–46. Em estado germinal, este pensamento já está presente na
alegação de Davidson segundo a qual "todo entendimento da fala do outro envolve uma interpretação
radical": p. 125 de "Radical Interpretation", in Inquiries into Truth and Intepretation, pp. 125–39.
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trabalho de interpretação mútua.192 Isto entra em conflito com a tese kantiana da


interdependência que discuto na Quinta Conferência, §5, e reconsidero na Sexta
Conferência, §4. Na minha opinião, se os sujeitos já estão a postos, é tarde demais para
começar a fazer provimentos visando a constituição do conceito de objetividade. Devemos
fazer a subjetividade e o conceito de objetividade emergirem juntos, a partir de uma
iniciação no espaço das razões.

4. Terminarei dizendo algo para evitar um risco que talvez seja irreal: o risco de que, ao
invocar a tradição, possa parecer que eu esteja me comprometendo com um
conservadorismo obtuso a respeito das possibilidades de inteligibilidade. No final das
conferências, eu repito algo que já havia enfatizado diversas vezes: que estar à vontade no
espaço das razões inclui uma obrigação constante de estar pronto a repensar as credenciais
dos supostos vínculos racionais que constituem o espaço das razões, tal como o
concebemos num momento qualquer. Isto deixa deixa tanto espaço para inovação quanto,
de fato, existe. Se um segmento, digamos, de comportamento vocal deve ser visto como
uma observação inédita, e não como um balbucio incompreensível, ele deve poder ser
compreendido por pessoas que não teriam pensado em dizer aquilo. Há um tipo de
originalidade que faz um apelo àqueles que a entendem para que alterem sua antiga
concepção da própria topografia da inteligibilidade. Uma observação dotada deste tipo de
originalidade não é apenas um lance até agora inimaginado, embora ainda no interior das
possibilidades tal como estas vinham sendo compreendidas, ao menos em termos gerais. (É
isso que ocorre até mesmo com a mais radical das inovações no xadrez.) Uma observação
daquele tipo, pelo contrário, altera a concepção que o ouvinte tem da estrutura que
determina as possibilidades de algo fazer sentido. Mas, mesmo neste tipo de caso, trata-se
apenas de torcer a antiga concepção da topografia da inteligibilidade. Um proferimento não
poderia, a partir do nada, forjar um posto para si mesma numa mente capaz de
compreensão, redesenhando no atacado a concepção que sua audiência tem das
possibilidades. Até mesmo um pensamento que transforma uma tradição deve estar
enraizado na tradição que ele transforma. A fala que o expressa deve ser capaz de ser
inteligível se dirigida a pessoas solidamente postadas na tradição tal como ela está.

192
Cf. "Meaning, Truth, and Evidence", in Robert B. Barrett e Roger F. Gibson, eds., Perspectives on
Quine (Basil Blackwell, Oxford, 1990), pp. 68–79. Davidson esboçou esta exploração da "triangulação" no
final de "Rational Animals", in Ernest LePore e Brian McLaughin, eds., Actions and Events: Perspectives on
the Philosophy of Donald Davidson (Basil Blackwell, Oxford, 1985), pp. 473–80.

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