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INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
Niterói, RJ /2017
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-graduação
em Geografia da Universidade
Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção
do grau de Mestre em
Geografia. Área de
concentração: Ordenamento
Territorial e Ambiental.
Niterói, RJ/2017
DOS “TERRITÓRIOS EM LOUCURA” AOS “TERRITÓRIOS DA LOUCURA”:
DESAFIOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS, PRÁTICOS E POLÍTICOS PARA
A ABORDAGEM TERRITORIAL NA SAÚDE MENTAL.
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-graduação
em Geografia da Universidade
Federal Fluminense, como
requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre
em Geografia. Área de
concentração: Ordenamento
Territorial e Ambiental.
COMISSÃO EXAMINADORA
___________________________________________________
Prof. Dr. Ruy Moreira (orientador)
UFF – Universidade Federal Fluminense
___________________________________________________
Prof. Dr. Ivaldo Lima
UFF – Universidade Federal Fluminense
___________________________________________________
Drª. Ana Paula Guljor
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca – ENSP/FIOCRUZ
___________________________________________________
Prof. Dr. José Carlos Milléo
UFF – Universidade Federal Fluminense
AGRADECIMENTOS
Ao sagaz e ousado dono da palavra, Senhor dos Caminhos, dos meus intentos.
The present work it inserts of the Geography and Public Policies interface, with
the objective of analyzing the new legal frameworks, institutional practices and
actions foreseen and guided by the Mental Health Assistance Model, based on
Federal Law 10.216 / 2001 and subsequent legislation and norms, from the
problematic of the territory. It implies the elucidation of two specific objectives:
a) to analyze the elements, contexts and trajectories that allow a gradual
emergence of the spatial problem in the field of Mental Health; b) analyze the
elements, contexts and trajectories that justify a territorial approach without
discourse of mental health policies, as of the enactment of Federal Law 10.216 /
2001 ("Psychiatric Reform Law"). We started with a genealogic approach, to
understand how various "inputs" and senses attributed to the concept of
territory, which came to be consistent in mental health policies and reorient the
spatial arrangement and as spatial practices of services. Next, an analytical
effort to introduce potential theoretical-methodological, practical and political
challenges concerned the adoption of the territorial approach as the foundation
of the organization, planning and execution of practices in Mental Health.
CONCLUSÃO 204
***
13
O tema substantivo deste livro pretende ser uma contribuição não
sistemática sobre a noção contemporânea de território. O autor
expõe O TERRITÓRIO DA CONSCIÊNCIA [parte um], A
CONSCIÊNCIA DO TERRITÓRIO [parte dois] e pergunta-se: O
ESPAÇO NO LUGAR [parte final]? Em livro anterior (O espaço fora
do lugar, HUCITEC, 1978) punha-se o problema da consciência da
fragmentação da cultura e do conhecimento; a questão da unidade
do objeto geográfico. (...) A solução apresentada neste livro avança o
entendimento da questão. Por quê? Por que o autor procura
enfrentar todos os seus fantasmas. Isto é, mente dividida é resultado
do mundo dividido. Pensar e fazer é, por isso, reproduzir e montar.
(SILVA., p. 9) [caixa alta adicionado].
1
Fazendo um balanço do meu próprio texto enquanto escrevo este prelúdio acabo refletindo sobre a
seguinte questão: frente ao vigor intelectual desta alçada de Armando Corrêa da Silva, uma
investigação acerca dos desafios de uma abordagem territorial para a Saúde Mental a partir das
políticas públicas me parece bem pouco ousado... Talvez ―Simplesmente Armando‖ pensasse: ―é
preciso ir além, meu rapaz...‖ (((DEVANEIOS)))
14
Humana. Chegou a Professor Titular, na década de 90. Nesta mesma época,
trabalhou como convidado no Programa de Pós-graduação em Geografia da
Faculdade de Ciências e Tecnologia, UNESP, em Presidente Prudente, onde, enfim,
escreveu sua ―segunda‖ tese de livre docência, sendo esta aprovada.
Posto que,
Frente a isto,
2
Fala proferida em entrevista para o documentário ―Prof. Armando, seu piano e sua Geografia‖.
17
presentes. Como já se disse: ―o espaço é uma acumulação de
tempos‖. Essa acumulação é diversa é múltipla. Cabe captar sua
lógica, ou seja, seu sentido. Esse trabalho é um procedimento
mental. Cabe por isso, compreender, ou melhor, apreender a
consciência da forma e os usos que dela faz a população. Esta,
valoriza-a diferentemente. Essa valorização do espaço tem relação
com o espaço vivido enquanto memória da forma. É assim que a
geografia é também uma ciência da sociedade, enquanto
consciência do espaço. (ibid., p. 22)
3
Acerca da diferença de linguagem entre as gerações, Armando, no documentário supracitado,
afirma: ―A linguagem atual dos jovens é outra coisa, em que os jovens falam ―eu sou mais eu‖, ―a
política é o fim‖, ―conforto sim‖, ―dinheiro só se necessário‖, uma série de frases assim que mostram
uma juventude no mundo inteiro raciocinando igual, pensando igual. (...) O rave, o punk, o funk, a
questão dos clubers, a questão drag queen, todas essas manifestações, inclusive no brasil, o mangue
beat, na Bahia, essas ―tribos‖, vamos falar assim, são para mim uma curiosidade, coisas que eu estou
aprendendo a conhecer‖.
4
No documentário ―Prof. Armando, seu piano e sua Geografia‖.
5
Importante problematizar a dificuldade de acesso aos textos políticos de Armando Corrêa da Silva.
Muito de sua militância envolveu a produção de textos e escritos em revistas de sindicatos (pouca
18
Segundo, dado a seus debates serem muito pouco lineares - o que significa
na prática que certos temas são retomados ou interrompidos ao longo de sua
produção, esboçando quase que um ―quebra-cabeças‖ – alguns temas, por exemplo,
são problematizados em alguns escritos, mas só são retomados a fundo anos
depois; e, outros, são abandonados e não revisitados, deixando muitas questões em
aberto.
Por fim, sua linguagem é bem pouco convidativa, posto que envolve toda uma
complexidade imersa em uma erudição e discussões teórico-metodológicas a partir
do linguajar de campos científicos tradicionalmente pouco próximos da Geografia –
como na filosofia, com a ontologia ou no caso da fenomenologia.
circulação e quase sem registro) e falas em assembléias e reuniões do Partido Comunista Brasileito –
talvez um dos únicos de relativo acesso seja o texto ―Estrutura e mobilidade social do proletariado
urbano em São Paulo‖, na Revista Civilização Brasileira, em 1967. Dada a esta dificuldade,
constumamos exaltar o caráter militante de sua pessoa, sem, contudo, conseguir uma caracterização
mais concreta de sua ação política.
6
Imagem que é confirmada no documentário já citado com a fala expressa por um entrevistado: ―O
Armando, em minha opinião, é ótimo. Ele é um cara genial. Bem [com muita ênfase] louco...‖
7
―Considerando algumas explanações de estudantes da época da graduação (em especial na
década de 1990), há comentários de ex-alunos que confirmam exposições do eminente professor
Armando executando, vez ou outra, uma peça de música erudita no pátio do departamento de
Geografia em pleno horário de aula.‖ (SOUZA, 2014).
19
lado, cabe desconsiderar muito de seus pensamentos, visto representar um
intelectual ilógico, inconstante e irregular, gênio-louco – valendo a retomada a um ou
outro texto, de um ou outro momento mais marcante, mas específico e pontual de
seu legado; por outro, assistimos a hipervalorização de sua obra como que
buscando uma verdade escondida e reveladora, a frente de seu tempo, que o louco-
gênio pudesse expressar, sobrecodificando8 seus escritos (soma-se o deslumbre
sobre como uma leitura de ordem mais cronológica de suas obras permitiria
perceber seus momentum (s) e, por tanto, a possibilidade de separação e
mapeamento da evolução entre os momentos mais sãos e àqueles mais afetados
pela loucura).
8
No vocabulário conceitual de Deleuze e Guatarri, o conceito de código/sobrecodificação assumem
forma ampliada, podendo fazer referência desde sistemas semióticos à fluxos de energia. Contudo, a
sobrecodificação trata-se, para os autores, de uma codificação de segunda ordem. Ou seja, de forma
externa e estranha aos sistemas de codificação que concernem a certo conjunto de relações. Em,
Deleuze e Guattari (1976), os autores nos trazem como exemplo as sociedades agrárias primitivas
que ao mesmo tempo em que operam segundo seus proprios sistemas e mecanismos de codificação
territorializados, são sobrecodificadas por estruturas relativamente desterritorializadas que lhes impõe
uma ―hegemonia militar, religiosa, fiscal, etc.‖.
9
Próprio da cultura grega trata-se de um poema lírico, destinado ao canto, sempre de tom alegre e
enstusiástico. C.f. NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia; São Paulo: Companhia das
Letras, 1992.
20
tentativa de encontrar a racionalidade de Armando em meio a sua loucura (e vice
versa) , a tarefa é bem mais árdua: trata-se de reapresentar seus deslimites através
de suas próprias palavras, registradas em alguns pequenos contos, relatos e
poesias, presentes no livro Saudades do Futuro (1993) – reproduzidos fiel e
integralmente ao longo do texto10.
10
No documentário supracitado ―Prof. Armando, seu piano e sua Geografia‖, Armando afirma: ―Passei
um pouco da minha preocupação com o barzinho, com a mulher, com a música para o papel e acabei
sem ter pensado nisso escrevendo um livro que se chama saudades do futuro‖; e, mais além, explica
que ―Saudades do futuro não é uma metáfora. É uma maneira de eu exprimir o meu antes e o meu
depois. Por que sou da geração de 50 (meu antes) e vivi a década de 60 muito intensamente, a de 70
com muita dificuldade, a de 80 e agora já estamos numa geração de 90. E saudades do futuro
representou pra mim uma forma de exprimir a minha experiência de vida.‖
11
Eu, inventor, ou seu alter-ego? (((DEVANEIOS)))
21
Atenção às nuanças, pois são elas que nos fazem ouvir por todos os nossos
poros. Para ouvir a loucura é preciso se afetar em todos os níveis [como se de fato
fosse possível o contrário (sic) (((DEVANEIOS)))]. Tomemos posição. É preciso que
nos impliquemos! Que sejamos simplesmente Armando por alguns momentos, para
que Armando Corrêa da Silva deixe de ser uma fotografia... o refaçamos por
rabiscos... De próprio punho... É preciso transduzir 12 o gênio-louco e o louco-gênio,
em simplesmente Armando, cheio de complexidades.
Quem seríamos nós para ousar qualquer resposta. Lhe convidamos leitor,
para que, implicado em nosso trabalho, se aproprie e faça seu este hiato em forma
de pergunta, preenchendo-o ou não – como achar melhor. Aqui, a pergunta está
entreaberta. Deixa-la entreaberta permite desencarcerar o gênio louco e o louco
gênio, mantendo simplesmente Armando vivo, sendo parte e preocupação
recorrente para nós.
[―Uma coisa curiosa a meu respeito é que dizem que eu tenho uma postura
séria que se reflete no rosto, mas isso decorre da necessidade de eu me concentrar
para falar, mas eu sei sorrir também...‖ – disse Armando em sua última fala no
documentário ―Prof. Armando, Seu piano e sua Geografia‖, dirigido por Olindo
Estevam, o Tchê, antes de sorrir...]
12
Do substantivo ―transdução‖, que se trata na Física, da transformação de uma energia em uma
energia de natureza diferente.
22
INTRODUÇÃO
Acabamento
Que sustenta
A concepção igual do visual.
Falta a comunicação
Na forma do aparente:
Colorida de estímulos
Completando a ilusão
Na forma do real:
Laterais, acabamento.‖
Afirma-ação: prepotente quem ousa dar voz a loucura. A questão primeira consiste
em como ouvi-la... Importante: às vezes é preciso marcar neologismos para o
aprofundamento do significado das palavras. Segundo o verbete do dicionário
Michaellis, originária do latim affirmare (consolidar, tornar firme, confirmar), a palavra
afirmação trata-se do ato de tornar forte, de sustentar certa Verdade. Verdade, que
só se sustenta conforme constante processo de estabelecer-se – é preciso não parar
de afirmar a afirmação, sob a pena de extingui-la... Ou melhor: uma afirmação que
não age, que não produz, não se sustenta! É preciso que a afirmação produza! Que
seja desterrada dos consensos de jazigos dos jargões intelectuais e ascenda à vida.
É preciso encarna-la com letras de poeta, e não cessar de repeti-la a cada instante.
Pronunciá-la como rugido... Afirma-ação: prepotente quem ousa dar voz a loucura! A
questão primeira consiste em como ouvi-la!
23
Ao longo do processo de distensão política e redemocratização atravessada
pelo Brasil nas décadas de 70 e 80, diversas experiências, ações, propostas e
projetos orientados em diferentes frentes (institucionais, acadêmicas e políticas)
criaram regimes de tensão com o modelo assistencial até então instituído, pautando
diferentes formas de cuidado13 aos usuários dos serviços de saúde mental na busca
da ampla democratização e humanização das práticas assistenciais. Em parte, este
conjunto de propostas foi absorvido no bojo dos processos de Reformas, tanto
Sanitária, quanto Psiquiátrica, que marcam o final da Ditadura Militar, refletindo nas
políticas de saúde – criação do Sistema Único de Saúde (entre outros) – e saúde
mental consequentes.
13
Neste trabalho, tomamos tal qual Moreira (2012), o cuidado como considera Ayres (2004), ―um
constructo filosófico, uma categoria com a qual se quer designar simultaneamente, uma compreensão
filosófica e uma atividade prática frente ao sentido que as ações de saúde adquirem nas diversas
situações entre dois ou mais sujeitos‖. Consideramos, também, as reflexões de Boff (1999) que,
inspirado na filosofia heiddegueriana, nos aponta o cuidado como uma dimensão ontológica da
existência humana. Desta forma, o cuidado trata-se de uma atitude inerente aos seres humanos, mas
que demanda uma reorientação no campo da ética para que produza os efeitos necessários para
uma sociabilidade mais adequada à sociedade. Cuidado como valor humano. Ética como dimensão
privilegiada de reflexão e intervenção. Título do livro: ―Saber Cuidar (...)‖.
24
São questões: se, segundo as orientações nacionais das políticas públicas de
saúde mental pós-―Lei da Reforma Psiquiátrica‖, a abordagem territorial deve ser
adotada como base ao ordenamento institucional e ao cuidado ao louco, então quais
as possibilidades e limitações desta proposta, em vistas à garantia de realização dos
pressupostos do projeto de Reforma? Até que ponto a aposta no território realmente
inova e aponta progressos? E, que território é este?
25
cuidado, em vistas à integralidade14 e da capacidade de produção de saúde aos e
com os usuários.
Por esta passagem, fica para nós claro que o termo ―território‖ possui
múltiplas acepções.
27
dessa simplificação de consumo. Esse parece ser o caso do que vem
ocorrendo, nos últimos anos, com o conceito de território.
Portanto,
29
narrativa do momento exato de enunciação do problema. Também, de admitir as
diferentes capacidades instituintes das forças que entram em cena e seus
entrelaçamentos, buscando no ―cinza‖ aquilo que foi ofuscado por aqueles
conhecimentos que se impuseram como únicos e definitivos. Ou seja, importa mais a
trama e menos os atores, submetendo-os ao exame dos momentos de seus
surgimentos e as condições de possibilidade de suas ações.
Importante argumentar que, aquele que tomamos por louco, neste trabalho,
corresponde ao sujeito - ou grupo - que, em condições de sofrimento psíquico, se
insere (ou é inserido) na rede de serviços de saúde ofertados e/ou sustentados pelo
poder público.
30
Cabe ressaltar a sensibilidade de diferenciar que a anomalia em saúde
mental, considerada como uma irregularidade ou conduta de risco, só se configura
como patologia quando implica no sofrimento. Conforme Caponi (2009, p. 75), ―se a
anomalia se vincula a sofrimento individual, a ‗sentimento de impotência e de vida
contrariada‘, então, e só então, poderá ser considerada uma patologia‖.
Apesar do objetivo principal deste trabalho não ser uma reflexão sistemática
acerca do estatuto da loucura, algumas ressalvas e esclarecimentos devem ser
sanados a priori. De forma geral, de acordo com a compreensão basagliana, a
noção de loucura comporta duas dimensões distintas que precisam ser destacas: a
―doença do corpo‖ e o adoecimento produzido pelo regime institucional.
31
Ora, as ―consequências da loucura‖ diferem de acordo com as diferentes
formas de aproximação com ela. Para o autor, estas ―consequências‖ não podem ser
atribuídas à evolução da doença, ―mas devem ser atribuídas ao tipo de relação que
o psiquiatra e, portanto, a sociedade que este representa, estabelecem com o
doente‖ (Id. Ibidem, p. 13).
32
sofreu a perda de sua identidade, a instituição e os parâmetros
psiquiátricos lhe confeccionaram outra a partir do tipo de relação
objetivante que estabeleceram com ele e dos estereótipos culturais
com os quais o rodearam. Assim, pois, pode-se dizer que o doente
mental (...) se vê tendente a fazer desta instituição seu próprio corpo,
assimilando a imagem de si mesmo que esta lhe impõe... O doente,
que já sofre uma perda de liberdade que pode ser considerada como
característica da doença, se vê obrigado a aderir a este novo corpo,
negando qualquer ideia, qualquer ato, qualquer aspiração autônoma
que possa permitir-lhe sentir-se sempre vivo, sempre ele mesmo.
Converte-se num corpo vivido na instituição e por ela, até o ponto de
ser assimilado pela mesma instituição, como parte de suas próprias
estruturas físicas. (BASAGLIA, s/d, p. 31-32)
34
potencialização dos modos de andar a vida (CANGÜILHEM, 1978).
Para o autor, ―o meio é sempre infiel‖ posto que nunca se repete de um dia
para o outro. As circunstâncias mudam, obrigando os sujeitos à criação de novas
normas – formas de (agir, se comportar, portar etc.) –, de modo a gerir essa
infidelidade fazendo uso de seus recursos, escolhas, valores, capacidades e
competências, para dar conta da complexidade do novo momento. Cria-se
cotidianamente e a todo momento um hiato que desestabiliza as normas
antecedentes, visto que não são mais suficientes para dar conta da nova realidade
imposta pelo meio.
Isso não quer dizer que o conjunto das normas antecedentes não sejam
fundamentais para a instituições de novas. Tal qual todo ambiente social, carregam
sempre um mundo de normas antecedentes, que orientam o que e como se vai fazer
ou se pode fazer certa ação. É a esta tentativa de recriação parcial das normas que
o autor qualifica como ―a realização do recentramento do meio ao organismo‖ – o ato
de recentrar o ―meio infiel‖ a partir de suas próprias normas, mas também atribuindo
a si mesmo outras normas para dar conta daquilo que falta. Desta forma, ao mesmo
tempo em que ―recentra o meio‖, é por ele produzido, qualificando uma relação de
sobredeterminação entre ser humano e meio. O que este campo de tensão
constante acaba por permitir ou frear implica diretamente na maneira pela qual
preferimos ou excluímos determinadas normas de conduta (comportamentos), que
são formas de Ser, de agir e de pensar, remobilizando todo o sistema de valoração
dos indivíduos acerca das ―coisas do mundo‖.
Concordamos que:
Como ato criador, a vida não objetiva se conservar, mas, antes, expandir-se,
apropriar-se, como maneira de impor novas formas, sentidos, funções e direções.
Segundo Dias (2011), para Nietzsche, indo na contramão dos teóricos que
afirmaram a vida a partir da conservação, como Charles Darwin e Herbert Spencer,
o processo de adaptação não define o sentido da vida, que é, antes, apenas uma
das direções que a luta pela ―vontade de potência‖ desencadeia – uma limitação ao
verdadeiro impulso fundamental da vida, que é a expansão e intensificação da
potência.
37
atividade propriamente dita. A atividade propriamente dita deriva da vontade de
intensificar a potência do ser, e não da ―vontade de conservação‖. As forças
espontâneas, agressivas, expansivas, criadoras de novas formas, interpretações e
direções de ―uma vida que quer mais vida‖ se sobrepõem às forças de adaptação. A
existência orientada pela sobrevivência não seria a regra, mas a exceção.
Tomar a vida como vontade de potência, como aquilo à ser produzido como
obra de arte, implica em construir nossas singularidades ao longo do processo de
descoberta e invenção de novas formas de vida, de forma presentificada, aqui e
agora, contra um ―eu‖ constituído:
38
Todo acontecimento, toda mudança é uma luta não pela vida
[sobrevivência], mas pela potência. A afirmação de que não há luta
pela vida, mas pela potência, pode, entretanto levar ao erro de ver a
potência como um fim, como algo que a vontade almeja. Sem
sombra de dúvida, podemos afirmar que a vontade não é orientada
em direções a um fim: ‗A própria vida não é nem um meio para
alguma coisa: ela é apenas uma forma de crescimento da potência‘.
(...) A potência, o desejo de expandir, o poder de criar, de crescer, de
vencer as resistências é que impulsiona o movimento da vida. É o
valor mesmo desse movimento. (DIAS, 2011, p. 37-38)
Esculpir a sua existência como uma obra de arte. A vida deve ser
pensada, querida e desejada tal como um artista deseja e cria sua
obra, ao empregar toda a sua energia para produzir um único objeto
(DIAS, 2011, p. 13).
40
necessariamente idênticos, são semelhantes, posto que expressões de uma mesma
natureza: a relação espaço-saber-poder-loucura.
Ainda é preciso esclarecer que três vozes dialogarão com o leitor ao longo do
texto: 1) a voz do narrador, com tom adequado a primeira pessoa do plural (―nós‖);
2) a voz que chamamos de ―eu profano‖ – aquela que dá vasão à minha loucura
pessoal, simplesmente na primeira pessoa do singular. Eu (sem aspas). Despida do
rigor e desconsiderando os rituais e formalidades acadêmicas, é ela quem desloca o
leitor do plano do texto e dialoga como que em um espaço em suspensão, onírico,
como a voz que fala nos sonhos e em nossa imaginação – a voz que devaneia; e, 3)
42
a voz daqueles que falarão pelas bocas de nossas personas, compondo a terceira
pessoa do plural (―eles‖).
43
(((DEVANEIOS))).
Para a psicologia analítica de Carl Jung, persona diz respeito a um dos três
instintos primordiais (sendo a anima e o animus, os demais) através do qual os
arquétipos se expressão. Enquanto aspecto consciente da personalidade a persona
trata-se da máscara social que o sujeito faz mostrar ao mundo, buscando ao mesmo
tempo constituir uma impressão definitiva aos outros e dissimular sua natureza
individual. Ao longo da vida estamos constantemente construindo e reconstruindo,
ativando e desativando, combinando personas como forma de nos expressarmos e
viabilizarmos nossa adaptação ao mundo que aí está e, por tanto, de nos
reconhecermos (uma profissão, um status social, uma fase do desenvolvimento –
criança, adulto, velho). As personas sempre se traduzem a partir da semelhança,
como modelos de ser, estar, agir, pensar, viver, adequados às ambiências que o
mundo demanda.
Por analogia, as personas não devem ser tratadas como uma completa
identificação com a realidade de desafios empiricamente vivenciados e
comprováveis, mas como um recurso de encarnação de trajetórias pretensamente
comuns, problemas comuns, questões comuns ao trato com o território em Saúde
Mental... Comuns por que semelhantes. Típicas. Arquetípicas. Assim buscamos dar
conta e corpo aos caminhos, afetos e intensidades que atravessaram nossa reflexão
ao longo do processo de pesquisa.
44
Destaco: propositalmente nenhuma das nossas personas será apresentada a
partir de suas Histórias oficiais. Aliás, sequer serão apresentadas. O que menos
importa é quem foram e/ou são esses personagens, mas sim a capacidade desses
nomes de produzir efeitos e desacomodar. Alguns serão ―desconhecidos ilustres‖ da
grande maioria; outros, ilustres desconhecidos. Entre um e outro, cada personagem
pro-voca, e-voca e com-voca (BOFF, 1999) o leitor a um processo empático.
Por fim, cabe destacar que este trabalho não objetiva uma análise do que
deve ou não ser realizado, de acordo com as políticas de saúde mental, nos
Municípios. Ou seja, não pretendemos avaliar o que seria mais adequado para o
cuidado aos sujeitos em condição de sofrimento psíquico. Tampouco promover uma
avaliação ou questionamento da qualidade ou legitimidade de uma abordagem
territorial para a Saúde Mental. Não espere qualquer consenso entre os diferentes
significados atribuídos ao conceito e ao sentido de uma abordagem territorial para a
Saúde Mental que apresentaremos. Muito menos o acomodamento ou solução dos
desafios frente às possibilidades e limitações da abordagem. Pelo contrário, nossa
proposta busca explorar criticamente a hipótese sustentada pela Lei da Reforma
Psiquiátrica (e políticas de saúde mental consequentes) da abordagem territorial
como supostamente integradora para as políticas públicas e instrumento terapêutico
privilegiado para produção de saúde. Não há boas respostas, sem, antes,
descobrirmos quais são as boas perguntas. A resolução dos problemas, dos
desafios e entraves, depende fundamentalmente da capacidade de ampliarmos
nossos horizontes de questionamento. Desta forma esperamos contribuir...
46
ENXERTOS Nº 1: “PEQUENOS CONTOS AUTOBIOGRÁFICOS –PEQUENA
HISTÓRIA DA INCRÍVEL LUTA DE LUCAS CONTRA SEUS FANTASMAS OU A
TERAPIA INTENSIVA DA LIBERAÇÃO PELO CAOS.”
(Saudades do Futuro, Armando Corrêa da Silva, 1993)
O terapeuta dissera-lhe que seu caso não era grave. Mas, como o portador de
diabetes, tinha que tomar aquelas pílulas, indefinidamente. Ele falava sério, mas
depois sorria, positivamente. Era uma das coisas que o irritava no médico no qual,
não obstante, depositava confiança. Já, daí um conflito, pois não se satisfazia com o
tratamento.
A ruptura inicial
O apartamento fora montado ―com amor‖, como lhe disse a irmã, quando de
uma breve visita com o cunhado. De fato, tinha bom gosto, quer dizer, no seu
consenso distribuía o moderno e o clássico com equilíbrio. Pois talvez fosse isso,
muito equilíbrio para tanta inquietação mental. Não fosse também um intelectual de
incompetência relativa lúcida.
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O apartamento, elogiado pelos amigos, com cada coisa no seu lugar, sem
nada de supérfluo, refletia não obstante uma contradição: o desejo de paz que não
tinha.
A primeira liberdade
Talvez tenha sido isso que lhe fez calcular quantas pílulas de medicamentos
ainda possuía. Tinha uma bateria para três meses. O suficiente para tranquilizar-se a
curto prazo. Depois, era vencer a dependência dos remédios.
Ouvia o com da madrugada, pois fora sempre muito ligado em música – fora
pianista profissional – e às vezes saída pela noite, por aí, para resolver o problema
da solidão no amor fácil da prostituta, às vezes compreensiva, às vezes formal.
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Tudo andou tão rápido que, quando se acabaram os medicamentos, foi um
prolongamento apenas do que já vinha fazendo.
Não que tivesse sido fácil. Não. É que fazia parte de um projeto, que não
sabia ele próprio o que era.
A euforia
Por isso, por volta de agosto de 1982, começou a ser possuído de uma
agradável sensação permanente de euforia.
Todas as coisas andavam bem. ―Tudo bem‖, como dizia, e estava realmente
se sentindo bem.
O parto
Lucas não sabe por que cismou com a frase: ―não se deve jogar a água suja
do banho fora, junto com a criança‖.
Perguntei a ele por que fizera essa referência, mas não sabe explicar. Disse-
me que acha que havia começado a delirar, mas que estivera lúcido todo o tempo.
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Com muita dificuldade, admitiu dúvidas a respeito de sua sexualidade. Daí a
questão da criança.
Afirma que em certo dia de outubro pegou uma bacia de plástico, que usava
para lavar suas cuecas e meias, e a levou para o banheiro.
Disse que falara desse assunto com sua irmã e esta, entrando um pouco no
seu jogo subjetivo, disse-lhe que às vezes o resultado era insignificante.
Diz que durante todo o tempo sua atenção era duplicada: sabia o que estava
fazendo, mas interpretava magicamente o significado.
Lembra-se que nessa ocasião saía todas as noites, de madrugada, para ter
relações sexuais. Diz que fez amizade com duas prostitutas de nomes Ângela e
Adriana.
A raiva
Parece que foi num dia de novembro que achei que podia pôr em prática o
projeto.
―Eu sei que vocês estão todos aí, por que fui eu que montei esse
apartamento‖.
Mas, tinha em mente alguma coisa, porque sua destruição era planejada e
seletiva.
Cada objeto tinha o nome de uma mulher ou de um homem. Toda sua vida
era repassada nesse ato de procura. Mas, faltava muito. Foi para o banheiro, mas
achou que depois precisaria dele. Não destruiu muito.
Agora, a sala.
Jogou a TV, nova, no chão. Mas olhando-a bem, achou que era um desafio.
Pegou uma garrafa de vinho ainda fechada e estourou o vídeo. Depois, foi o som
que foi para o chão. Assim, também os móveis. Só poupou o piano.
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Arrancou o telefone da parede.
Dizia, rindo, para si mesmo: ―Não está sendo uma boa briga! ‖
Conseguiu abrir um caminho pelo corredor até pôr o tênis comanche para não
pisar nos vidros quebrados.
Mas, o zelador, falou: ―A polícia pra quê? O senhor não fez nada!‖
Ângela
Era que também outra Ângela fora quem lhe apresentara Cláudia, sua
segunda mulher e que lhe tornara a vida um inferno.
Só que agora namorava Adriana, mas ficava com Ângela. O contrário da outra
vez.
A Casa de Saúde
Sônia lhe dissera que ouvira os médicos comentarem achar um absurdo que
ele, Lucas, estivesse ali sem que responsáveis viessem visita-lo.
Mas ele nada achava errado, pois sua euforia persistia e nunca se sentira tão
bem.
Os dez dias que passou na terapia foram agradáveis e logo o médico, aquele
de quem tinha desconfiança e em quem, ao mesmo tempo, confiava, veio tirá-lo dali.
Reiniciava, assim a terapia, mas agora era o médico que já não tinha
confiança nele.
53
Para ele estava tudo bem?
Um ano depois
Lucas não sabe explicar por que comprou um terreno longe de São Paulo.
Disseram-lhe que fez uma viagem meio doida pela Dutra e, de passagem por
uma cidade pequena, comprou o terreno.
O novo médico de Lucas diz-lhe que teve um segundo surto psicótico e que
isso é uma coisa comum.
54
CAPITULO 1 – DESCOBRINDO O ESPAÇO, ENCONTRANDO O TERRITÓRIO:
AS REVOLUÇÕES E REFORMAS NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL.
Para Foucault (1978), foi na Era Moderna que se conferiu aos loucos o lugar
que, durante a Idade Média, foi reservado aos leprosos. Finda – ou ao menos
reduzida – a ameaça representada por estes últimos, restaram vazios os espaços
físicos, sociais e ideológicos que ocupavam que vieram a ser direcionados aos
loucos, aos quais se impunha a necessidade de separação do corpo social. A rígida
racionalidade burguesa se afirmou então ao preço da segregação das sensibilidades
desviantes, e a loucura perde qualquer capacidade de revelação (GABBAY, 2008, p.
10).
55
incapaz de enquadrar-se na ordem da burguesa que se afirmava; do trabalho
produtivo, da submissão à norma, da disciplina, da moral.
O discurso da razão acaba por efetuar e definir uma radical cisão do corpo
social, tomando a ―racionalidade‖ como critério de qualificação do que é ser indivíduo
– fato que, inclusive vem a justificar os modos de exclusão e práticas de violência
aos loucos.
Deste ponto de vista, a loucura pode ser entendida como a antítese da ―Era
das Luzes‖, agonística do sujeito cartesiano e antagônica à ideologia burguesa sob o
reinado do ―mundo iluminado‖: a racionalidade convertida em essencialidade.
Destarte, o discurso da normalidade operou nos ―seres de desrazão‖ a perda de sua
condição enquanto sujeito. O louco (―alienado‖), desviante em relação à norma, tais
quais os inválidos, os miseráveis, órfãos, ―em resumo todos aqueles que, em relação
à ordem da razão, da moral e da sociedade, dão mostras de ‗alteração‘‖
(FOUCAULT, 1968, p. 78), gradualmente torna-se um objeto de estudo e do
Conhecimento, em vistas ―a recuperação de suas faculdades racionais‖.
15
O lugar ideal para o ―exercício do tratamento moral, da reeducação pedagógica, da vigilância e da
disciplina‖ (AMARANTE, 2009, p. 2).
56
Nascia a Psiquiatria, cujo modelo do tratamento moral e dos espaços
asilaresseriam disseminados e debatidos, promovendo importantes avanços no
campo recém-formado. Institui-se a relação médico-paciente (os alienistas e os
alienados) e o paradigma psiquiátrico avança no que Robert Castel (1978) alcunhou
de ―A Era de Ouro do Alienismo‖ 16.
16
―O projeto de um hospício de alienados não é de modo algum, uma coisa indiferente e que pode
confiar apenas aos arquitetos, o objetivo de um hospital ordinário é tornar mais fáceis e mais
econômicos os cuidados dedicados aos indigentes doentes. O hospital de alienados é um
instrumento de cura‖. (Esquirol, 1838, apud Pessotti, 1996, p. 168)[grifo adicionado]
57
Num segundo momento, com o desenvolvimento do modelo biomédico e os
estudos em anatomia e técnicas cirúrgicas, que ressignificavam o corpo como
máquina (e, consequentemente, a doença como uma falha na máquina a ser
corrigida), aqueles passaram a serem os centros por excelência de pesquisa e
ensino médico, rompendo com o discurso religioso e adquirindo autonomia e função
especificamente terapêutica no início do século XIX (GUIMARÃES; PICKERNHAYN;
LIMA, 2014).
59
terapêutica se dava de forma individual. O resultado foi a redução dos índices de
melhoria e a degradação tendencial dos espaços, transformados em ―depósitos de
corpos‖. Gradualmente, inserido num contexto de nascimento e consolidação da
hegemonia da ideologia e sociedade burguesa e do nascimento do Estado-nação
moderno e capitalismo na Europa (que viriam a servir de referência para mundo) o
espaço asilar, enquanto dispositivo psiquiátrico viria a (re)reproduzir em seu interior
os mesmos mecanismos opressores que a sociedade impunha ao alienado no
ambiente externo.
60
Figura 4 – Muros: Sergio Affonso. Fotografia por Lucas Honorato (2017)
61
Concomitante à requalificação dos Hospitais, ao surgimento da Medicina e
consolidação do paradigma psiquiátrico fundamentado no espaço asilar, na
Alemanha, Friedrich Ratzel apresenta sua ―Antropogeografia‖, em 1882, sendo um
dos fundadores da Geografia Moderna e da Geopolítica. Ratzel desenvolve suas
ideias enquanto vivencia o período bismarkeano de unificação alemã, a guerra
franco-prussiana (1871) e as corridas imperialistas. Fortemente influenciado pelo
pensamento positivista e o organicismo darwiniano, busca compreender o
fundamento da formação dos Estados-nação e construir uma Lei Geral do
Desenvolvimento dos Estados e suas tipologias.
Para isso, parte da relação ―orgânica‖ entre o Estado, o solo (boden; base
material) e o povo – que através do desenvolvimento do sentido de espaço17
fundaria o Estado. Para o autor, o surgimento do Estado é visto como um processo
natural da organização do povo18, mas é o solo quem dá coerência material ao
Estado. Desta forma, Ratzel permite fundar no campo da Geografia as discussões
sobre o território, marcadamente compreendido como base material: o rio, o morro, a
campina – vide as noções de estoque de recursos e espaço vital19. Este cenário
permite o surgimento da noção de território essencialmente associado à soberania
nacional20. Território como ―aquilo que se possui‖ (o tal ―território ‗coisificado‘‖,
tornado ente, ―coisa‖)21.
17
Trata-se de uma dupla capacidade de conhecimento do espaço: capacidade de lucidez sobre os
limites e possibilidades, ―recursos‖ e ―entraves‖, que o espaço oferece, no sentido de acelerar ou frear
o desenvolvimento do Estado; certa lucidez acerca de sua ―condição geográfica‖, a nível de
potencialidades e limitações do meio.
18
No pensamento de Ratzel, Política é compreendida como a capacidade de mobilização dos
Estados, ou seja, as relações do Estado com o povo, no tocante a capacidade do povo de fazer-se
coeso para facilitar ou frear o Estado.
19
O espaço vital seria a porção do espaço necessária para a reprodução de uma dada comunidade,
que concentra seu estoque de recursos (condições tecnológicas, naturais e demográficas). Assim, a
expansão territorial seria natural dos Estados, visto que havendo o progresso, haveria a exaustão do
meio pelo uso intensificado e pressão demográfica. Contudo, apesar de natural, esta expansão não é
determinada, já que apesar dos processos e demandas que levam a expansão/mobilidade, há uma
tensão constante com as forças e processos que levam ao ―enraizamento‖ (iconografias,
simbolismos, representações e discursos sobre a nação, por exemplo).
20
Importante firmar que, segundo SOUZA (2013, p. 94), ―ele [Ratzel] não explorou e desenvolveu
propriamente um conceito de território plenamente individualizado. Por quê? (...) Dadas as restrições
de seu contexto histórico e de sua situação político-ideológica, a preocupação ratzeliana com a
dimensão de apropriação, de conquista e de dominação do espaço geográfico não chegou a leva-lo a
‗emancipar‘ a categoria de território.‖
21
Segundo SOUZA (2013, p. 90), ―confundir, menos ou mais conscientemente, território e substrato
espacial material equivale a ‗coisificar‘ o território, fazendo com que não se perceba que, na
62
Essa noção de território (de domínio exclusivo do Estado) seguirá
hegemônica ao longo do século XX, atravessando a Primeira Guerra Mundial (1914-
1918) e Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e vindo a servir de fundamento para
a Geopolítica nos anos 50, compreendendo todo o período da Guerra Fria (1945-
1991) até hoje22.
64
No cotidiano, atravessando a cidade, vê-se operar uma série de mecanismos
e procedimentos de controle e vigilância, num exercício de poder que se concretiza
65
As instituições, os mecanismos e instrumentos de administração, controle e
vigilância e o conjunto de saberes produtores/produzidos (e as devidas
representações consequentes) detêm papel fundamental na constituição de todo um
aparato manicomial que ultrapassa o ambiente hospitalar.
66
novo estatuto ontológico, político e ético para o louco implicou em profundos
questionamentos das noções de cuidado e cura.
Para Michel Foucault, o poder não é um objeto ou coisa, nem está localizado
em uma instituição, não sendo, portanto algo que se cede, mas uma relação, ―e que
essa relação, ainda que desigual, não tem um ‗centro‘ unitário de onde emana o
23
Política, com ―P‖ para referenciar a política ―formal‖, do Estado e suas instâncias.
67
poder (como o Estado em algumas posições marxistas mais ortodoxas)‖
(HAESBAERT, 2004, p. 83)24.
24
―A pergunta é: ‗como as coisas acontecem no momento mesmo, no nível, na altura do
procedimento de sujeição, ou nesses processos contínuos e ininterruptos que sujeitam os corpos,
dirigem os gestos, regem os comportamentos‘‖ (SANTOS, 2011, p. 29)
68
Para se exercer, o poder, por princípio, ―circula‖ sem ser exclusivo de
ninguém. Funciona em cadeia. Todos são ao mesmo tempo ativos e passivos
imersos nas relações de poder. Potencialmente detentores e destinatários do poder.
Portanto, para o autor, o poder pode até produzir efeitos repressivos, mas,
principalmente, produz efeitos de saber e institui verdades 25 – tanto pelo discurso
que é obrigado a construir quanto pelos movimentos daqueles vitimados pela
organização do poder que impele:
25
―A produtividade do poder afasta a hipótese repressiva: a noção de produtividade, imanente ao
conceito de poder foucaultiano, torna a noção de repressão algo inadequado. Além do que, ideia de
repressão implica diretamente em uma percepção negativa do poder; (...) Acrescente-se a isso o fato
de que a ideia de repressão também se associa a uma abordagem jurídica do poder. Quando
encarado pelo ângulo da repressão, o poder é compreendido como uma espécie de lei e, mais do que
isso, como uma norma proibitiva, ou seja, que diz não. (...) ‗Temos que deixar de descrever sempre os
efeitos de poder em termos negativos‘, proclama definitivamente‖ (FOUCAULT, 2008b, p. 161; apud
SANTOS, 2011, p. 41)
69
status daqueles que estão encarregados de dizer o que conta como
verdadeiro. (FOUCAULT, 1979, p. 12)
Assim, para Foucault (1999, p. 28-29) apud Santos (2011, p. 26), a Verdade
sempre está ligada ao poder:
70
O que se passa entre esses dois conceitos, o de poder e o de
verdade, só pode ser entendido sob uma perspectiva relacional:
‘somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos
exercer o poder mediante a produção da verdade‘ (FOUCAULT,
1999, p. 28). (...) O que se passa é que Foucault torna a verdade
dependente do poder – invertendo uma relação que, no âmbito da
filosofia do sujeito, supostamente se exerceria no sentido contrário. O
poder, portanto, institucionaliza a verdade. Ou, ao menos, ele
institucionaliza a busca da verdade ao institucionalizar seus
mecanismos de confissão e inquirição. A verdade se profissionaliza,
pois, afinal, no seio daquela relação triangular [poder, direito e
verdade], a verdade nada mais é que a norma. Nesse sentido
(verdade = norma), são os discursos verdadeiros que julgam,
condenam, classificam, obrigam, coagem... trazendo sempre consigo
efeitos específicos de poder. (SANTOS, 2011, p. 38)
73
Quadro 1 – Sintese dos três blocos
- Transformação da
instituição psiquiátrica, a
partir da requalificação dos
ambientes hospitalares
França Hospital Atuação noHospital, com a
(ateliês, espaços de lazer e
Psicoterapia (Déc. 40), Psiquiátrico de abertura deste à
etc.), buscando a superação
Institucional com Fraçois Saint-Alban comunidade e vizinhança
das relações verticais e da
Tosquelles (Lozère) (―socialização dos asilos‖)
autoridade do poder médico
(liberdade de circulação e
contratos revisáveis de
entrada e saída)
74
Movimento Origem Experiência Principais Propostas Dinâmica Espacial
- Substitui o objeto da
psiquiatria da doença
mental para a saúde
mental, assumindo a
possibilidade de - Criação de Centros de Saúde
intervenção sobre as Mental Comunitários de caráter
EUA (Déc. Plano Nacional causas e evolução das preventivo cujos objetivos eram:
Psiquiatria 60), com de Saúde Mental, doenças e, com isto, promover a Saúde Mental;
Preventiva Gerald governo Kennedy produzindo intervenções prevenir a doença mental;
Caplan (1963) para a promoção da diagnosticar e tratar
saúde mental à toda a precocemente; reabilitação e
comunidade, através de reintegração social.
uma atuação intersetorial
(articulação com outros
setores da sociedade) e
multiprofissional
- Desospitalização e
- Desospitalização e negação do objeto,
negação de todo e
teorias e métodos da Psiquiatria, já que
qualquer aparato
Inglaterra compreendiam que as concepções
psiquiátrico. Porém,
(Déc. 60), científicas da loucura eram violentas e
inspirados pelas
com David "Pavilhão 21" desumanas e estavam à serviço
Comunidades
Cooper, do Hospital exclusivamente da alienação política,
Antipsiquiatria Terapêuticas,
Ronald Shelly econômica e cultura da socieQdade
procuravam
Laing e (Londres) moderna. Propunham eliminar a própria
acompanhar e auxiliar
Aaron ideia de doença mental, compreendida
o louco no processo
Esterson como fato político e social desdobrada de
de reinserção e
relações familiares – lócus de reprodução
relacionamento
das contradições da sociedade.
familiar.
75
Movimento Origem Experiência Principais Propostas Dinâmica Espacial
- Criação de Centros
de Saúde Mental
articulados à outros
- "Desinstitucionalização", com base na dispositivos
substituição do aparato manicomial, institucionais
propunha não só a extinção do modelo (cooperativas de
hospitalocêntrico, mas o desmonte de todos trabalho - "economia
Hospital os mecanismos psiquiátricos de exclusão e solidária"; casas
Itália
Psiquiátrico controle, e criação de uma rede territorial protegidas ou
psiquiatria (Déc. 60),
de Gorízia e substitutiva de serviços, em busca da autônomas - "grupos-
Democrática com
Hospital reapropriação da "vida" pelo doente. apartamento"; e,
Italiana Franco
Psiquiátrico Envolve "colocar a doença entre associações de
Basaglia
de Trieste parênteses" na mobilização, como atores do usuários, familiares,
processo, dos sujeitos sociais e a técnicos e
transformação das relações de poder entre voluntários) de
os pacientes e as instituições, defendendo o inserção social;
direito à liberdade e autodeterminação. consolidando uma
rede territorial de
serviços de saúde
mental
76
François Tosquelles, psiquiatra catalão, militante marxista, escapa à
perseguição do regime de Franco e emigra para a França. Depois de não conseguir
ingressar no exército francês, no contexto da tomada de Paris por Hitler, emprega-se
num campo de concentração nazista implantado em território francês. Seu trabalho
consistia num duplo processo: como psiquiatra, cuidar dos casos de suicídio e do
acompanhamento dos prisioneiros; como militante, facilitar as fugas (PASSOS,
2009).
78
transformados cotidianamente. O espaço que é rugosidade, sendo marcado por
continuidades e descontinuidades. Através desta noção, Milton Santos nos leva a
admitir que o processo de produção do espaço é ao mesmo tempo construção e
destruição das formas e funções sociais do mesmo, re-montando uma dialética
forma-conteúdo. Sob esta ótica, precisamos assumir que de fato esses movimentos
que vieram a priorizar as críticas à estrutura asilar, reorganizando e requalificando
estes espaços, produziram um ―novo‖ espaço asilar. Contudo, a contradição está em
articular este conjunto de transformações (novas práticas e ações de cuidado e
relações sociais que se objetivam horizontalizantes) com os princípios básicos do
dispositivo psiquiátrico (a saber: a reclusão, a tutela médica e a condição
patológica). O que há de mais moderno, com o que há de mais antigo, numa
situação onde a dialética do próprio espaço, tende à: primeiro, apaziguar as
contradições estruturais do dispositivo psiquiátrico; e, num segundo momento,
reorientar estas contradições sob as novas condições.
79
Segundo esta linha, a psiquiatria não poderia desenvolver suas práticas de maneira
eficaz em uma estrutura como o espaço asilar. Propunham uma reorganização da
dinâmica espacial do processo de tratamento, via descentralização do processo,
reorientando as práticas psiquiátricas ao louco em sua comunidade. Manter o
paciente em seu meio social seria um dos fatores fundamentais para o sucesso do
tratamento, tendo o Hospital como complementar ao processo.
Sob outro viés, a Psiquiatria Preventiva de Gerald Caplan, nos EUA, vai
propor uma igual descentralização do tratamento, mas com base na criação de
Centros de Saúde Mental Comunitária. A proposta surge buscando identificar as
pessoas que seriam mais suscetíveis às doenças mentais via questionários e
entrevistas, buscando identificar possíveis antecedentes com vistas à intervenção.
80
Estados a considerar a saúde como um dos objetos do campo político
(GUIMARÃES, PICKERNHAYN; LIMA, 2014).
81
Enfim, conclui que estas novas instituições acabam ―que, por meio da
prevenção, produzir uma nova categoria de doentes (os emotional patients)‖
(AMARANTE, 1994, p. 74).
26
A partir da década de 60, as experiências e projetos de modelos de seguridade social se
multiplicam, numa conjuntura onde a luta pela garantia dos direitos sociais pelos Estados
gradativamente é acirrada, implicando em tensões acerca do papel do Estado; a pressão e lobby do
capital, via complexo industrial da saúde; e a preocupação dos gestores e administradores com os
custos embutidos.
82
pensar, atuar e organizar a vida em sociedade. Ao mesmo tempo motor e
consequência do processo, dá-se o agravamento do medo e estigmatização da
loucura, visto que a situação de sofrimento psíquico se torna cada vez mais
encarada como uma negligência individual, um erro pessoal.
27
Desadjetivação é subjetivação! (((DEVANEIOS))).
28
―Tais níveis [o da ciência e da política] estão referidos às duas faces da realidade da doença e do
estar doente, isto é, uma problemática psicopatológica (dialética e não ideológica) e uma
problemática de exclusão, de estigmatização social.‖ (AMARANTE, 1994, p. 71)
84
de redução e restrição de si que não é sempre reversível
(AMARANTE, 1996, p. 85). (HEIDRICH, 2007, p. 63)
Neste sentido,
85
No filme ―Bicho de Sete Cabeças‖ (2000), de Laís Bodanzky, uma adaptação
do livro autobiográfico de Austrogésilo Carrano, ―Canto dos Malditos‖, uma canção
original de Arnaldo Antunes ilustra bem a paisagem do adoecimento decorrente da
violência institucional e da potência do poder institucional:
86
crise e onde são geralmente realizados os tratamentos sanitários
obrigatórios.
E ainda conclui:
87
princípio, encontra-se em estado de violentação e exploração. Inevitavelmente a
demanda revolucionária dos trabalhadores perpassa os manicômios.
29
Na redação original constam ―hospitais psiquiátricos‖, a saber: ―É absolutamente proibido construir
novos hospitais psiquiátricos, utilizar os já existentes como divisões psiquiátricas especializadas de
hospitais gerais, instituir nos hospitais gerais seções psiquiátricas e utilizar como tais seções
neurológicas ou neuropsiquiátricas‖ (Lei 180/1978, Art. 7, §7)
30
―As intervenções de prevenção, tratamento e reabilitação relativas às doenças mentais são
realizadas normalmente pelos serviços psiquiátricos extra-hospitalares‖ (Lei 180/1978, Art. 6, §1)
88
ENXERTOS Nª 2: “PEQUENOS CONTOS AUTOBIOGRÁFICOS – O PARTIDO OU
A DESCOBERTA DA POLÍTICA”
(Saudades do Futuro, Armando Corrêa da Silva, 1993)
A viagem
Era um jovem radical. Talvez um democrata, sem saber. Isso foi lá pelos
tempos dos anos 50 e era bastante jovem para não ter medo de nada.
Amava a vida e a saúde perfeita ajudava. Embora tivesse a cuca fresca, tinha
algumas tendências para as artes e a literatura, mas não havia ainda definido sua
vida.
De noite, o bar, de dia, o jardim da infância, essa era a rotina que vivia,
surpreendendo-se sempre com o inusitado que achava nas coisas e nas pessoas.
Enfim, da geração que havia lutado desde cedo contra a ditadura do Estado
Novo e o fascismo.
89
Foi por isso que quase se engaja na campanha que Carlos Lacerda movia
contra Getúlio Vargas. Sua mulher foi que o advertiu, dizendo-lhe que Lacerda não
era um homem a ser levado a sério.
Chegara do serviço à noite, bem tarde. Deveriam ser seis horas da manhã.
Irritou-se, porque não fizera barulho e foi para a sala ampla do apartamento
de Pinheiros.
Trocou a roupa, vestiu uma calça jeans e uma camisa esporte, deixou o
dinheiro que possuía no bolso da calça que tirara, separando apenas um pouco para
si.
Era um tempo em que uma pessoa podia fazer essas coisas sem chamar a
atenção.
Em Campinas, almoçou.
90
Estava um pouco deslumbrado com o Brasil que ia descobrindo.
Estava num outro Brasil, numa época em que a construção de Brasília ainda
não se iniciara e o centro-oeste era parcialmente ignorado pelo eixo Rio-São Paulo.
Goiânia
Goiânia, capital do Estado de Goiás, era uma cidade pequena, bem arejada,
com avenidas amplas e bem agradável. Podia-se andar à noite, nas duas avenidas
principais que se cruzavam ao centro – quase ausentes de trânsito – passeando, e
em pouco tempo percorria-se todo o trajeto.
É verdade que havia duas cidades: a dos ricos e a dos pobres. Mas, os
antagonismos não eram muito fortes, porque não era uma cidade industrial, mas
administrativa.
Dormiu numa pensão precária e no dia seguinte acordou cedo e foi para o
centro da cidade. Comprou um jornal local para procurar emprego, mas não havia
nenhum anúncio oferecendo colocação.
91
Foi até o jornal, mas o jornalista que o recebeu disse-lhe que não havia
emprego na cidade. O que você sabe fazer? Perguntou. Sei tocar piano, disse.
Então, o jornalista deu-lhe o endereço de um músico.
Durante um ano curtiu fossa. Bebia muito, mas não continuadamente. Aos
poucos o tempo foi consertando as coisas e começou a interessar-se pela vida local.
Foi uma revelação! O que lia coincidia com sua vida! Era como se nunca
tivesse pensado de outra maneira!
O cursinho e a Faculdade
92
Havia se identificado com a luta dos comunistas e vinha a São Paulo à
procura do partido.
Como sua luta era sempre pela via intelectual não se sentia à vontade na
organização, que era muito pequena e limitada.
No PCB descobriu uma vida partidária intensa, num tempo em que esse
partido vinha de uma cisão interna por motivo da morte de Stalin. Parte dele tinha se
organizado como Partido Comunista do Brasil, o PC do B.
93
Em 1963 foi Secretário da Base da Filosofia (Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras da Universidade de São Paulo) e teve uma intensa atuação política na luta
pelas reformas de base.
Em 1966, por motivo de uma crise de saúde mental, teve que abandonar a
luta política.
A política
Antes de tudo, o revolucionário não deve ter pressa. Essa é uma luta de
milhões de pessoas e o partido, como vanguarda, é apenas uma orientação a ser
seguida, através do debate o mais aberto possível.
96
Nesta possibilidade de olhar,
31
Os IAPs surgem no contexto do centralismo do Governo Vargas, na década de 30, de tomada dos
sindicatos, sendo substitutivos das Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs) anteriormente
organizadas pelas empresas. Com o surgimento dos IAPs, as contribuições viriam a se reportar a
autarquia em nível nacional, centralizadas no governo federal, e sendo organizadas conforme as
diferentes categorias profissionais, não mais por empresas.
97
Para Amarante (1996), no âmbito da Saúde Mental, este período nos remonta
às denúncias dos trabalhadores da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM)
das condições desumanas dos Hospitais Psiquiátricos do país, questionando
publicamente a política e o projeto de Saúde Mental até então empreitado pelo
Estado. A partir destas denúncias, articula-se o Movimento dos Trabalhadores em
Saúde Mental (MTSM), vindo a se consolidar como espaço privilegiado de denúncia,
luta e debate da transformação do modelo de assistência psiquiátrica, envolvendo
diversos atores do setor (entidades de classe, profissionais de saúde mental e
movimentos sociais comprometidos com esta causa). Conjuntamente, no âmbito
mais geral, nasce o Movimento de Reforma Sanitária, que segue neste período
avançando articulação de pautas e nas críticas e do modelo de saúde privatizante e
pauperizado implementado (SARACENO, 1999).
98
(PIASS), em 1976. Em 1980, foi criado o Programa Nacional de
Serviços Básicos de Saúde (PREV -SAÚDE) – que, na realidade,
nunca saiu do papel –, logo seguido pelo plano do Conselho
Nacional de Administração da Saúde Previdenciária (CONASP), em
1982, a partir do qual foi implementada a política de Ações
Integradas de Saúde (AIS), em 1983. Estas constituíram uma
estratégia de extrema importância para o processo de
descentralização da saúde.
Ainda:
100
Assim, ―o território usado, visto como uma totalidade é um campo privilegiado
para a análise, na medida em que, de um lado, nos revela a estrutura global da
sociedade e, de outro lado, a própria complexidade do seu uso.‖ (ibid., p. 120).
Sob este viés, um olhar sobre o território deveria clarificar não só as ações
presentes operantes (em suas multiplas dimensões e escalas), mas também por
revelar as ações passadas, ―marcadas‖ nos objetos espaciais – a rugosidade dos
espaços (SANTOS, 1996), permitindo inclusive estabelecer as relações entre
territórios em diferentes escalas:
33
Sobre a relação entre ―territórios-zona‖ e ―territórios-rede‖, C.f. HAESBAERT, Rogério. O mito da
desterritorialização: do ―fim dos território‖ à multiterritorialidade. Ed. Bertrand Brasil, Rio de Janeiro,
2004.
34
―Esta distinção, algo problemático, deve ser relativizadana medida em que ele afirma também que
‗são os mesmos lugares que formam redes e que formam o espaço banal. Sâo os mesmos lugares,
os mesmos pontos, mas contendo simultaneamente funcionalizações diferentes, quiçá divergentes ou
opostas (SANTOS, 1994, p. 16)‖ (HAESBAERT, 2004, p. 60)
102
estranhamento, que é, também, desculturização‖ (SANTOS, 1996, p. 272 apud
HAESBAERT, 2004, p. 29). Porém, alerta para que a des-re-territorialização nunca
seja entendida exclusivamente na sua dimensão político-cultural, posto que é
indissosiavel dos processos econômicos, ―especialmente a dinâmica capitalista do
‗meio técnico-científico-informacional35‘‖ (HAESBAERT, 2004, p. 61).
36
Para um maior aprofundamento acerca do tema da promoção da saúde e seus pressupostos,
conferir a publicação das cartas de Alma-Ata (WHO, 1978) e de Otawa (WHO, 1986).
105
de 1988 e que absorve a pauta da ―saúde enquanto direito do cidadão e um dever
do Estado‖. O pressuposto será absorvido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que
será instituído pela Constituição de 1988 e instrumentalizado, posteriormente, pela
Lei Federal 8.808/90, dando base à suas duas principais diretrizes: a universalidade
do acesso e integralidade das ações 37.
37
C.f ESCOREL, Sarah. Reviravolta na saúde: origem e articulação do movimento sanitário. Ed.
Fiocruz, Rio de Janeiro, 1998.
38
― § 2º No nível municipal, o SUS, poderá organizar-se em distritos de forma a integrar e articular
recursos, técnicas e práticas voltadas para a cobertura total das ações de saúde.‖
106
nas condições de saúde e de vida da população concernentes àquele recorte
espacial.
107
Importante clarificar que as experiências de reorganização dos serviços de
saúde mental ocorreram antes mesmo de sua sustentação legal no âmbito juríco.
108
Quadro 2 – Quadro das Conferências Nacionais de Saúde Mental:debates e
deliberações
109
Questão Tímida. Construir Importância da
cultural Propõe que os serviços diversificação das intersetorialidade.
comunitários sejam referências
considerados espaços de conceituais e
promoção de saúde operacionais, indo
mental. além das fronteiras
delimitadas pelas
profissões clássicas
em saúde mental.
Articulação de
recursos
comunitários para a
inserção do usuários
nos serviços de
saúde.
Valorização e
incentivo à atenção
informal à saúde
mental (grupos de
auto-ajuda, religiosos
etc.).
110
Questão Preocupação com a Substituir a Acessibilidade - ao
jurídico- cidadania do louco. terminologia na tratamento e a
política Periculosidade. legislação. informação sobre o
Recomendações aos A legislação deve mesmo.
constituintes - alterações levar em conta a Divulgação a respeito
na legislação sobre subjetividade. dos direitos e deveres
questões psiquiátricas. Extinguir todos os dos cidadãos no SUS e
dispositivos legais com relação à reforma
que atribuem psiquiátrica - cartilha,
periculosidade ao internet, imprensa,
doente mental. cartaz.
Criar comissões de Garantia do exercício da
divulgação dos cidadania plena aos
direitos dos doentes portadores de transtorno
mentais nos mental no lugar de
municípios. iniciativas tutelares.
Debate e revisão dos
artigos do código civil e
penal, no sentido de:
suprimir a expressão
"loucos de todo o
gênero", questionar a
interdição dos direitos
civis do portador de
transtorno mental, rever
os critérios de interdição.
Lutar pela retomada dos
princípios originais do
Projeto de Lei Paulo
Delgado, espacialmente
no que se refere à
extinção dos
manicômios.
Concepção Não define nem se refere a Não define, mas Refere-se à
de ela refere-se à desospitalização e
desinstitucion necessidade política de redução de
alização imperativa de leitos em hospitais
desinstitucionalizar psiquiátricos
todas as instâncias
com características
manicomiais.
Necessidade de
desinstitucionalizar
os trabalhadores de
saúde mental.
111
Concepção Não define nem se refere a Não define reforma Transformação de
de reforma ela psiquiátrica; apenas saberes, práticas,
psiquiátrica se refere à valores sociais e
necessidade de criar culturais.
Comissões de Marcada por tensões,
Reforma Psiquiátrica inscreve-se nas
nos Conselhos de possibilidades e limites
Saúde. das políticas públicas e
da implementação de
projetos comprometidos
com a afirmação de
direitos de cidadania,
com a luta contra as
desigualdades sociais e
os mecanismos de
exclusão social.
Fonte: quadro elaborado por HEIDRICH (2007) com base nos anais da I, II e III Conferência Nacional
de Saúde Mental.
Salientam que
40 ―Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com
necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de
115
serviço substitutivo responsável pelo atendimento integral às demandas dos sujeitos
em condição de sofrimento nos ―territórios em que se localizam‖; e como serviço
estratégico e primário de elaboração e organização das redes de atenção à saúde
mental (AMARANTE; TORRES, 2001), através de sua articulação de duas frentes:
41
Instituído pela Lei 10.708/2003 (BRASIL, 2015), ―disponibiliza bolsas de auxílio-reabilitação
psicossocial para a assistência, acompanhamento e integração social, fora da unidade hospitalar, de
pessoas acometidas de transtornos mentais, com história de longa internação psiquiátrica (com dois
anos ou mais de internação)‖.
118
Para os gestores, o ―território‖ enquanto dimensão espacial privilegiada para
ação estatal emerge como a unidade privilegiada de planejamento, gestão,
execução das políticas públicas de saúde.
42
―O PDR fundamenta-se na conformação de sistemas funcionais e resolutivos de assistência à
saúde, por meio da organização dos territórios estaduais em regiões/microrregiões e módulos
assistenciais; da conformação de redes hierarquizadas de serviços; do estabelecimento de
mecanismos e fluxos de referência e contra-referência intermunicipais, objetivando garantir a
integralidade da assistência e o acesso da população aos serviços e ações de saúde de acordo com
suas necessidades.― (NOAS-SUS 01/2001, Capitulo I, Inciso I, BRASIL, 2015).
119
territorialidade, na identificação de prioridades de intervenção e de
conformação de sistemas funcionais de saúde, não necessariamente
restritos à abrangência municipal, mas respeitando seus limites como
unidade indivisível, de forma a garantir o acesso dos cidadãos a
todas as ações e serviços necessários para a resolução de seus
problemas de saúde, otimizando os recursos disponíveis. (NOAS-
SUS 01/2001, BRASIL, 2015, Capitulo I, Inciso I)
43
―Região de Saúde - base territorial de planejamento da atenção à saúde, não necessariamente
coincidente com a divisão administrativa do estado, a ser definida pela Secretaria Estadual de Saúde,
de acordo com as especificidades e estratégias de regionalização da saúde em cada estado,
considerando as características demográficas, socioeconômicas, geográficas, sanitárias,
epidemiológicas, oferta de serviços, relações entre municípios, entre outras. Dependendo do modelo
de regionalização adotado, um estado pode se dividir em macrorregiões, regiões e/ou microrregiões
de saúde. Por sua vez, a menor base territorial de planejamento regionalizado, seja uma região ou
uma microrregião de saúde, pode compreender um ou mais módulos assistenciais.‖ (Capitulo 1,
Inciso 5, Item ―a‖)
44
De acordo com a legislação citada, o módulo assistencial consiste num recorte territorial com
resolubilidade correspondente à um conjunto mínimo de procedimentos de média complexidade
(atividades ambulatoriais de apoio diagnóstico e terapêutico e de internação hospitalar) como primeiro
nível de referência intermunicipal, com acesso garantido a toda a população no âmbito
microrregional, ofertados em um ou mais módulos assistenciais, constituído por um ou mais
municípios, com área de abrangência mínima a ser estabelecida para cada Unidade da Federação,
em regulamentação específica, e com as seguintes características: a) conjunto de municípios, entre
os quais há um município-sede com capacidade de ofertar a totalidade dos serviços citados e com
suficiência, para sua população e para a população de outros municípios a ele adscritos; ou, b)
município com capacidade de ofertar com suficiência a totalidade dos serviços citados para sua
própria população, quando não necessitar desempenhar o papel de referência para outros
municípios.
120
deve ser considerada como balizamento definitivo, mas pode ser
utilizada como um ponto de partida e ajustada de acordo com as
necessidades. (ALMEIDA; CASTRO; VIEIRA, 1998, p. 21)
45
É fundamental a distinção entre a territorialidade e as areas de influência dos serviços. A área de
influência, trata-se de ―um conceito operacional que define os serviços de saúde do município ou
região considerados como de referência para as populações das áreas de abrangência dos serviços
básicos de saúde. Essas referências dizem respeito à necessidade de realização de procedimentos
para o diagnóstico e/ou terapia e/ou reabilitação, que a maioria dos serviços básicos das áreas de
abrangência não realizam. Esses procedimentos podem ser feitos nos hospitais (gerais ou
especializados), nos ambulatórios de especialidades, nos serviços de apoio diagnóstico ou
terapêutico de média complexidade ou nos chamados procedimentos de alto custo (SIPAC).‖
(ALMEIDA, CASTRO e VIEIRA, 1998, p. 24)
121
crack, álcool e outras drogas 46, como o marco regulatório atual mais significativo no
processo de territorialização das políticas de saúde mental.
Paradigma Psicossocial
Territorialização (―cuidado territorial‖)
Saúde Coletiva de Políticas Públicas
(território usado) (anos 2000)
46
A Rede prevê como componentes: atenção básica em saúde (Unidade Básica de Saúde, Núcleo de
Apoio a Saúde da Família e Consultório de Rua); Atenção Psicossocial Estratégica (Centro de
Atenção Psicossocial, nas suas diferentes modalidades); Atenção de Urgência e Emergência (SAMU
192, Sala de Estabilização, UPA 24 horas e Unidades Básicas de Saúde); Atenção Residencial de
Caráter Transitório (Unidade de Acolhimento e Serviço de Atenção em Regime Residencial); Atenção
Hospitalar (Enfermaria especializada em Hospital Geral e Serviço Hospitalar de Referência para
Atenção às pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de
crack, álcool e outras drogas); Estratégias de Desinstitucionalização (Serviços de Residenciais
Terapêuticos e Programa ―De Volta para Casa‖); Estratégias de Reabilitação Psicossocial (Iniciativas
de Geração de Trabalho e Renda, Empreendimentos Solidários e Cooperativas Sociais).
122
Neste sentido, e para além da dimensão de gestão e planejamento e
execução das políticas de saúde mental,
123
ENXERTOS Nº 3: “PEQUENOS CONTOS AUTOBIOGRÁFICOS – A
BUROCRACIA”
(Saudades do Futuro, Armando Corrêa da Silva, 1993)
Caixa de Escritório
Funcionário da CEESP
Professor da USP
Uma Avaliação
Acha que apesar do pai ter sido funcionário público, quase todo o tempo, até
os 50 anos, não deve a ele nenhuma tendência burocrática.
126
Ficou-lhe, isso sim, uma capacidade de organização funcional boa.
Por isso, deu-se bem com as estruturas burocráticas que encontrou pela
frente, não se deixando envolver.
Mas, não gosta de papéis inoperantes e de reuniões que não decidem nada.
Sua preocupação é com a liberdade de movimentos e com a mudança social.
Não vai fazer carreira funcional!
127
CAPÍTULO 3 – TERRITÓRIOS DA LOUCURA – ENCRUZILHADAS EM REDE,
TERRITÓRIOS EM EVIDÊNCIA.
Segundo BRASIL (2004a, p. 11), o território deve ser entendido nas políticas
de saúde mental como
128
Quadro 3- Dimensões de práticas territoriais orientadoras das práticas Institucionais
DIMENSÕES ORIENTADORAS DE
Saúde Coletiva
PRÁTICAS INSTITUCIONAIS
Para os gestores, o
Para o campo da saúde, Paradigma Psicossocial
“território” é adotado
em geral, o “território”
como conceito Para o campo militante e
(território usado, de
supostamente integrador profissional, o
Milton Santos) impactou
para as políticas públicas. “territórrio” é adotado
na emergência da
preocupação de como orientador [e até
entender o processo agente!] do processo
saúde-doença como um terapêutico, via “cuidado
processo territorial”,
eminentemente social, possibilitando o cuidado
espacial e aos indivíduos em seu
temporalmente cotidiano – em sua
determinado, obrigando “sociabilidade no
à análise das condições território”.
de ocorrência das
mesmas – as
“determinações sociais
da doença”.
PROTAGONISMO
MODELO PERSPECTIVA ORGANIZAÇÃO
ORIGEM HISTÓRICA NOÇÕES ESTRUTURANTES OBJETIVO DO PROCESSO DE
ASSISTENCIAL ESTRUTURANTE ESPACIAL
CUIDADO
Controle e
Revolução Francesa anulação da
Hospitalocêntrico- Diagnóstico-intervenção-
PARADIGMA PSIQUIÁTRICO (Séc. XVIII), Philippe Psiquiátrico diferença Equipe médica Espaços asilares
medicalizador cura
Pinel ("subjetividade
serializada")
Compartilhamento de
Rede de
responsabilidades
Atenção de
Atenção Produção de
PARADIGMA PSICOSSOCIAL Heterogênese (Séc. XX) Desinstitucionalização Usuário base
Psicossocial Saúde
Remissão da liberdade e comunitária e
direito à diferença territorial
Re-construção de vínculos
Cuidado territorial
130
cotidiana dos usuários deverá conectar organizações, formas e relações de poder,
sensibilidades, regimes e enunciações de saber.
131
Por isso, a trajetória na Rede pode ser rompida, quebrada e retomada em
qualquer uma de suas partes, posto que se por um lado é organizada, distribuída,
estratificada; por outro, em si comporta os desvios, linhas de fuga, aberturas,
reacomodando e se rearranjando de forma contingente. As linhas de fuga fazem
parte da ―Rede rizomática‖ e se remetem umas às outras.
132
Para Souza (1995, p. 97), o território é fundamentalmente
133
Se o espaço social aparece de maneira difusa por toda a sociedade
e pde, assim, ser trabalhado de forma mais ampla, (...) o território e
as dinâmicas de des-territorialização (sempre em mão dupla) devem
ser distinguidos através dos sujeitos que efetivamente exercem o
poder, que de fato controlam esse(s) espaço(s) e,
consequentemente, os processos sociais que o(s) compõe(m).
Assim, o ponto crucial a ser enfatizado é aquele que se refere às
relações sociais enquanto relações de poder – e como todas elas
são, de algum modo, numa perspectiva foucaultiana, relações de
poder, este deve ser qualificado, pois, dependendo da perspectiva
teórica, pode compreender desde o ‗antipoder‘ da violência48 até as
formas mais sutir de poder simbólico.
Sob este viés, é plauzível que o entendimento das relações que instauram
situações comuns ao ponto de permitirem a particularização dos espaços
(―territorialização dos serviços‖, regionalização da área adscrita aos processos
terapêuticos), deve partir primeiramente da análise dos jogos de poder em cena e
linhas de força que configuram e permitem a categorização estes espaços desta
maneira.
48
Nota do autor: ―Enquanto autores como Castoriadis propõem uma noção muito ampla de poder,
envolvendo toda instituição da sociedade, distinguindo-o da ‗política‘ enquanto ‗questionamento
expl~icito da instituição estabelecida da sociedade‘ (1992:135), outros, como Hannah Arendt,
restringem o poder ao poder ‗legitimo‘, socialmente reconhecido, o que exclui a violência – é
justamente ‗a perda de poder‘, diz ela, que ‗traz a tentação de substituí-lo pela violência‘ (Arendt,
2004:131)‖ (HAESBAERT, 2014, p. 59)
49
―Pense-se no caso extremo de uma cidade-fantasma, testemunho de uma antiga civilização,
outrora fervilhante de vida e mesmo esplendorosa, e hoje reduzida a ruínas esquecidas e cobertas
pela selva; essa cidade hipotética, abandonada, não retrocedeu, lógico, à condição de objeto natural,
mas ao mesmo tempo ‗morreu‘ em termos de dinâmica social, não sendo mais diretamente território
de quem quer que seja. (...) Uma outra situação, oposta à da cidade-fantasma do exemplo hipotético
134
Tal assertiva não quer dizer que o substrato espacial não deva ser
considerado (o que seria na prática impossível), mas que a materialidade do espaço
opera mais como um ―trunfo‖ (RAFFESTIN, 1993) para as relações de poder, sendo
sempre condicionante e condicionado das relações:
Este ponto de vista nos auxilia visto que permite a associação com os
debates de Haesbaert (2004) acerca das lógicas de formação dos territórios: a lógica
Segundo o autor, as redes não se opõem aos territórios, tal qual numa
oposição entre ―fluidez e fixação‖. Ao contrário, na verdade, ao longo da história da
civilização humana os dois componentes estiveram presentes em todos os
processos de construção de territórios, ―intimamente associadas‖ de acordo com
diferentes níveis de intensidade.
136
não tão precisas – composto por uma ―complexa imbricação entre redes e áreas ou
zonas‖.
Mais ainda,
137
Concepção mais ampla de território, que o engloba (a todo território
corresponderia uma territorialidade, mas nem toda territorialidade
teria, necessariamente, um território – materialmente construído),
territorialidade tanto como uma propriedade de territórios
efetivamente construídos como ‗condição‘ (teórica ou simbólica) para
a sua efetivação. (HAESBAERT, 2014, p. 65)
138
definidos por Agamben como ‗campos‘ (tendo no seu extremo os campos de
concentração);
b. Territorializações mais fechadas, quase ‗uniterritoriais‘ no sentido de imporem
a correspondência entre poder político e identidade cultural, ligadas ao
fenômeno do territorialismo, (...) não admitindo uma pluralidade territorial de
poderes e identidades;
c. Territorialização político-funcionais mais tradicionais, como a do Estado-
nação, que, (...) mesmo admitindo certa pluralidade cultural, (...) não admite a
pluralidade de poderes;
d. Territorializações mais flexíveis, que admitem a sobreposição territorial, seja
de forma sucessiva (como nos territórios temporários ou espaços
multifuncionais na área central das grandes cidades) ou simultânea (como na
sobreposição ‗encaixada‘ de territorialidades político-administrativas
relativamente autônomas);
e. Territorializações efetivamente múltiplas – uma multiterritorialidade em sentido
estrito, construída por grupos que se territorializam na conexão flexível de
territórios-rede multifuncionais, multigestionários e multi-identitários, como no
caso de alguns grupos pertencentes a diásporas de migrantes.
51
Para SACK (2011) o grande fundamento da territorialidade está na intenção, ou seja, na posição
deliberada e estratégica de acionar recursos espaciais para influenciar outros – uma positividade. No
nosso caso, porém podem-se observar relações onde a classificação, delimitação e controle de área
se faz a partir de uma negatividade, ou seja, sem que necessariamente o louco objetive afirmar sua
territorialidade. Uma territorialidade instituída ao qual o mesmo não necessariamente se sente
componente, ator, ou sequer concorda. Outro problema consiste na padronização e leitura
homogeneizadora da abordagem, onde os grupos populacionais são analisados uniformemente,
posto que dominados pelo mesmo controle.
141
E é por isso, que podemos afirmar que, a moradia de uma família (a casa)
pode ser ―colonizada‖ e requalificada por toda uma territorialidade institucional de
conteúdo manicomial, configurando uma extensão do Hospital.
52
Um exemplo clássico consiste na analogia acerca da quadra poliesportiva proposta por SOUZA
(1995)
142
Em Haesbaert (2014), os múltiplos territórios se manifestam quando diversos
atores se encontram em regime de disputa pela instituição de um modo particular de
exercer legitimamente o domínio. Aparece assim uma série de ―jurisdições‖ num
mesmo espaço, refletindo o jogo de poder em cena.
A partir daí, a ―multiplicidade territorial‖ pode ser vista através dos ―múltiplos
territórios‖, manifestos, no geral, pelo menos de duas formas: como ―conjunto
justaposto [sucessão] de diversos territórios compreendidos em seu interior‖ – como
no exemplo, citado em nota, da quadra poliesportiva; e, como ―conjunto superposto
[simultaneidade] de vários territórios (ou territorialidades) cuja abrangência pode ir
bem além de seus limites físicos‖ (ibid., p. 75)54.
53
C.f. ZAMBRANO, C. Territorios plurales, cambio sociopolítico y governabilidad cultural. Boletim
Goiano de Geografia, vol. 21, n. 1, 2001.
54 Vale ressaltar, que para o autor, os territórios-rede são sempre territórios múltiplos, ―na medida em
que podem conjugar territórios-zona (manifestados numa escala espacialmente mais restrita) através
de redes de conexão (numa escala mais ampla)‖ (HAESBAERT, 2014, p. 83).
143
institucional, a casa se configuraria também como ambiente do habitar – se trataria
mais de uma justaposição de territórios; por outro, caso a disputa pela
territorialização tendesse à construção de uma cena onde os jogos de poder fossem
relativamente mais equilibrados (embora nunca estável), a multiplicidade territorial se
explicitaria na condição de simultaneidade entre as territorialidades institucional e do
usuário em seu habitar – o que implica diretamente no poder contratual do usuário
em relação à intervenção terapêutica.
Por outro lado, a inserção das cidades na globalização tem permitido uma
ampliação das relações possíveis, radicalizando as relações e contradições entre ―a
ordem próxima e a ordem distante‖ (no vocabulário conceitual de Henri Lefebvre), ou
das ―verticalidades e horizontalidades‖ (no vocabulário conceitual de Milton Santos).
Esta realidade tende a produzir cotidianamente em lugares marcados pela
desigualdade sócio-espacial, a convivência paradoxal de uma realidade
―cosmopolita‖ e certa urbanidade de ordem mais proximal. E, mesmo que
consideremos que a maior parte dos usuários em Saúde Mental não estão inseridos
ou não conseguem se apropriar dos menores níveis das redes que envolve uma
multiterritorialidade no contexto da globalização, ainda assim, estão cotidianamente
imersas em um conjunto de relações e influências desse ethos ―pós-moderno‖ – seja
no contato diário com seus médicos (classe que carrega todo um capital econômico,
social e cultural privilegiado) ou no dia a dia nas viagens de ônibus etc.
144
Não é exatamente uma novidade, pelo simples fato de que se o
processo de territorialização parte do nível individual ou de pequenos
grupos, toda relação social implica numa interação territorial, num
entrecruzamento de diferentes territórios. Em certo sentido, teríamos
vivido sempre uma ‗multiterritorialidade‘. (HAESBAERT, 2004, p.
344)
145
A multiterritorialidade no sentido estrito se efetiva, portanto, em duas
possibilidades: como ―multiterritorialidade sucessiva‖, se mais definida de acordo
com a mobilidade física extremamente facilitada; e, como ―multiterritorialidade
simultânea‖, se mais definida de acordo com a sua ―mobilidade virtual‖.
Trata-se de
55
―Partindo do pressuposto de que todo poder social é um poder sobre o espaço, os sociólogos
Pinçon e Pinçon-Charlot (2000) afirmam que a burguesia contemporânea (reconhecida a polêmica do
conceito) se reproduz ao mesmo tempo pela proximidade residencial (em bairros e/ou condomínios
seguros e plenos de amenidades) – territórios-zona no seu sentido mais tradicional – e pela
multiterritorialidade, ou seja, pelo usufruto de múltiplos territórios, reveladores de uma dupla inserção
social, tanto no sentido de uma profunda memória familiar quanto de uma intensa vida mundana.
Essa multiterritorialidade também seria visível através do caráter de ‗classes internacional‘, tanto no
sentido da internacionalização da vida profissional ou de negócios quanto de lazer, via turismo
internacional.‖ (HAESBAERT, 2014, p. 81)
147
lógica predominantemente da proximidade e vizinhança, cada vez mais demanda o
entendimento das relações de interdependência com outros territórios e espaços
direta e instantaneamente conectados à longa distância – o que abre espaço
também para o ―potencial de possibilidades políticas inovadoras que eles exigem ou
implicam‖ (HAESBAERT, 2014, p. 85).
Em suma,
148
relações afetivas que devem ser reconstruídas em um novo lugar, posto a mudança
de endereço.
149
como aquilo que da coerência ao ―território usado‖; a territorialização como
instituição da norma – da ―territorialização político-funcional‖.
É fundamental, antecipadamente afirmar que uma redese define tanto por seu
arranjo quanto por seus fluxos, de forma que não pode ser definida apenas pelos
seus equipamentos (que seriam mais seus nós), mas pela sua conexidade, pela sua
capacidade de conectar – ou seja, de fazer circular e comunicar. Assim, a existência
e distribuição dos equipamentos de saúde não constitui em si uma rede, que só
começa a operar como tal a partir do momento em que há circulação e comunicação
entre os mesmos. Mas, mesmo que os equipamentos sejam postos em
comunicação, o que qualifica uma rede sempre é primeiramente o conteúdo que
veicula. Estas afirmações incutem uma série de discussões, como, por exemplo, se
há de fato uma rede, a partir do momento que um equipamento que fora concebido
para funcionar em rede acaba por, em suas práticas institucionais, fechar-se em
suas próprias demandas internas, tomando para si e isoladamente as demandas dos
usuários e competências dos demais serviços e, desta forma, não comunicando e
inviabilizando a circulação.
150
Assim, do ponto de vista da abstração gráfica, poderíamos representar essas
diferentes relações entre a rede e território e territorialidade, tomando como base a
delimitação de três diferentes regiões de saúde (―A‖, ―B‖ e ―C‖), com seus devidos e
diversos equipamentos – consideramos aqui, que diferentes regiões de saúde
respondem por diferentes quantidades e lógicas de distribuição dos equipamentos.
151
Contudo, do ponto de vista da rede rizomática, possivelmente obteríamos
outra representação, mais adequada a um perfil de circulação de trocas potenciais:
152
O caso ainda poderia ser inverso, como no caso de mudança de residência
por parte do usuário – o que implica na adscrição em outra territorialidade
institucional – que, contudo, por motivos de continuidade de seu projeto terapêutico,
insiste em ser atendido em seus antigos equipamentos.
153
Como se trata de um esforço de abstração, representamos aqui alguns
possíveis casos.
154
Nota-se, portanto, que a questão da adoção (ou construção) de uma escala
envolve fundamentalmente uma intencionalidade. Ou seja, que a problemática da
escala está situada primariamente na constituição da consciência do real e, por fim,
opera sobre esta mesma consciência do real, re-significando percepções,
sensibilidades e sentidos atribuídos aos fenômenos. Trata-se, em suma, de um
instrumento deliberado de apreensão e tomada consciência – um recorte a partir do
qual o real ganha sentido. Invertendo a afirmação: a produção de sentido sobre o
real envolve fundamentalmente uma questão de escala. Ao mesmo tempo em que
uma dada conotação política é assumida a partir de sua instrumentalizada. Ou seja,
a valorização de uma determinada escala da organização, planejamento,
intervenção e/ou reflexão confere maior visibilidade a determinados temas e
questões, o que produz uma série de efeitos de poder – daí o caráter
eminentemente político. Desta forma, a mudança de escala representa uma
mudança no próprio nível de conceituação (LACOSTE, 1988).
Daí resulta muitas das contradições entre discurso (normas, programas etc.) e
práticas:
Por fim, como quarto e último ponto, a relação entre sociedade e loucura, que
se expressa na forma como a população em geral lida com o doente – já que a
lógica de (re)produção da sociedade tem impulsionado cada vez mais caráteres
(individualismo e competitividade, efetividade e eficácia nas relações) dispares a
sujeitos em condições de fragilidade e, muitas vezes, absolutamente marcados pela
violência institucional.
156
Ou seja, apesar das práticas institucionais aparentemente manifestarem-se
como produto de relações mais imediatas, elas se inserem no conjunto das relações
sociais mais amplas – o que obriga a considerar uma leitura de cunho mais
estrutural (macroescalar) das linhas de determinação que influenciam os sentidos
daquelas.
Frente a este quadro, imprescindível firmar que entre a demanda dos usuários
à procura dos serviços de saúde e os trabalhadores, há uma série de mediações
―cada vez mais preenchida por procedimentos controlados pelo chamado ‗complexo
médico-industrial‘‖ (GUIMARÃES; PICKERNHAYN; LIMA, 2014) 56, onde a
assistência e a saúde confundem-se com a produção de consultas e exames e o
desenvolvimento de novas tecnologias e saberes impulsionadores do patamar de
ganho de capital das corporações e dos interesses privados – o que produz e ao
mesmo tempo se expande com o consumo de medicamentos, equipamentos e
serviços (medicalização da sociedade). Falamos aqui, da extensa cadeia produtiva e
rede de corporações atuantes no setor de oferta de assistência e atenção médica,
bem como os serviços de apoio e diagnóstico.
56
O conceito citado trata-se do exercício de visibilização da dimensão política do exercício
profissional, sendo utilizado para visibilisar as múltiplas e complexas inter-relações estabelecidas
entre diversos atores do setor saúde e destes com os demais setores da economia (assistência
médica, redes de formação profissional, indústria farmacêutica e indústria produtora de equipamentos
médicos e de instrumentos de diagnóstico). Segundo VIANNA (2002, p. 376), o ―Complexo Médico-
Industrial (CMI) é um produto histórico e particular da evolução do sistema de saúde. É um estágio
onde, devido à necessidade de reprodução dos capitais investidos, as práticas capitalistas privadas
tornaram-se hegemônicas e determinantes das funções, papeis e relações de cada ator no interior do
próprio sistema‖. Aqui, a inovação tecnológica (reafirmada e demandada pelo saber médico) é o
grande motor. C.f. DONNANGELO, Cecilia e PEREIRA, Luiz. Saúde e sociedade. 2ª
Edição, São Paulo: Duas Cidades, 1979.
157
la do ponto de vista da lógica da reprodução das condições de produção (restituição
e adequação da mão de obra), do mercado (enquanto todo um complexo industrial)
e do lucro (do ponto de vista da mercantilização da saúde – planos de saúde,
medicamentos, serviços de diagnósticos etc.)57.
57
O tema foi bastante discutido em textos tomados como clássicos, como em Illich (1975), Arouca
(1975), Donnangelo (1975) e Berlinguer (1978).
158
exigência da boa atenção médica. Ao se centrar a atenção na
assistência médica, recria-se a sua necessidade em planos de
complexidade tecnológica mais sofisticada. Esta tendência responde
aos avanços do conhecimento médico com suas repercussões
imediatas nos meios de diagnóstico e terapêutica e gera uma
expectativa de acesso a essa tecnologia na população.
159
doente, e o que lhe confere o aspecto que tem reside na relação com
o médico, que a codifica, e a sociedade, que a nega.
Por sua vez, a lógica dos planos e seguros de saúde operam de forma
significativa a ideologia do usuário como consumidor de serviços. Usuário que,
muitas das vezes está alheio de qualquer entendimento acerca do sistema de
preços ou dos custos distributivos de cada serviço ou atendimento 58.
58
―Mais do que uma valorização da informação resultante de equipamentos de diagnósticos
sofisticados, os honorários por procedimentos tecnológicos refletem uma alta valoração da tecnologia
em si‖ (GUIMARÃES, PICKERNHAYN e LIMA, 2014, p. 88)
160
peculiaridade das relações entre medicina e classes sociais pelo
ângulo do qual tende-se mais facilmente a negá-la. Por outro lado,
através desse aspecto, as formas atuais de organização da prática
médica aparecem não apenas como o produto da ação das classes
hegemônicas, mas revelam mais diretamente a participação, no
processo político, das demais classes sociais. (...) No que se designa
aqui por extensão da prática médica há que destacar pelo menos
dois sentidos que devem merecer atenção: em primeiro lugar, a
ampliação quantitativa dos serviços e a incorporação crescente das
populações ao cuidado médico e, como segundo aspecto, a
extensão do campo da normatividade da medicina por referência às
representações ou concepções de saúde e dos meios para se obtê-
la, bem como às condições gerais de vida. (...) [Por fim,] a extensão
da prática médica não correspondeu a um fenômeno simples e linear
de aumento de um consumo específico, e sim que ela se deu através
de uma complexa dinâmica econômica e política na qual se
expressaram os interesses e o poder de diferentes classes sociais.
[grifo adicionado]
162
ser terapêutica deve levar em conta esta dupla realidade – a doença
e a estigmatização – para poder reconstruir pouco a pouco a face do
doente, tal qual devia ser antes que a sociedade, com seus
numerosos atos de exclusão e a instituição que inventou, atuasse
sobre ele com toda a sua potência negativa. (BASAGLIA, s/d, p. 35-
36)
59
Segundo Schraiber e Mota (2005, p; 1470), o conceito de medicalização da sociedade
desenvolvido por Donnangelo, aparece em dois momentos: primeiro como forma de produzir e
consumir a assistência médica e subprodutos; em segundo momento, vista enquanto construção
sociocultural que funciona como referência para o pensamento e ações da sociedade, portanto, uma
forma de educação capaz de organizar a vida, material e simbólica, conformando a todos numa única
forma de conceber e lidar com a saúde – como consumo da medicina e seus sobprodutos: ―cada vez
mais a medicina expande seus domínios normativos na sociedade, como uma medicalização do
social no mundo, ao mesmo tempo em que apela para recursos de manipulação instrumental do seu
aspecto social, reduzindo a complexidade do mundo a comportamentos medicalizáveis pela
intervenção médica‖.
163
psiquiátrico está pronto para partir ao assalto, armado com uma nova
solução, que só poderia ser um novo rótulo que vem superpor-se às
velhas estruturas psicológicas. A linguagem é facilmente aprendida e
consumida, sem que as palavras estejam necessariamente de
acordo com os atos. Crise psiquiátrica ou crise institucional? Uma e
outra parecem estar tão estreitamente unidas que não se pode
distinguir qual das duas é consequência da outra. Uma e outra
apresentam um denominador comum: a forma de relação objetivada
que se estabelece com o doente. A ciência, ao considera-lo como um
objeto de estudo suscetível de ser suprimido de acordo com um
número infinito de classificações ou de modalidades; a instituição, ao
considera-lo (em nome da eficácia da organização ou do rótulo que
confirma a ciência) como um objeto da estrutura hospitalar com a
qual está obrigada a identificar-se... Não será necessário destruir o
que se fez para evitar ficar imóvel em algo que ainda guarda o germe
(o vírus psicopatológico) desta ciência, cujo resultado paradoxal foi
inventar um doente à imagem dos parâmetros utilizados para defini-
lo? (...) No momento atual, o perigo reside em querer resolver o
problema do doente mental por meio de aperfeiçoamentos técnicos...
Em tal caso, o psiquiatra só perpetuaria, com suas organizações
ultramodernas e perfeitamente equipadas, ou com teorias
perfeitamente lógicas, numa relação que eu qualificaria metálica,
relação de instrumento para instrumento, onde a reciprocidade
continuaria sendo negada sistematicamente (BASAGLIA, s/d, p. 38-
39).
164
Segundo o autor, a história do desenvolvimento técnico em Saúde é marcada
pelo movimento hegemonico de desenvolvimento das tecnologias duras e leve-
duras, desconsiderando o papel das relações no trato com o cuidado.
166
de cuidado, saúde (para além da dimensão da doença), de construção de
diagnósticos etc.
167
Contudo, a maioria dos profissionais de saúde tem seus territórios existenciais
que se colocam como uma barreira para uma atuação mais criativa e autônoma, na
maioria das vezes estruturados a partir de sua formação em modelos prescritivos
que objetifivam o sujeito em sofrimento – ―Cuidar é mais que prescrever, recitar,
diagnosticar, é não perder a dimensão do outro como igual, sujeito na relação que
estabelece consigo na vida, nos serviços de saúde‖ (MOREIRA, 2012, p. 72).
Para o autor, tal questão traz a relevância da análise empenhada por Foucault
(2006), sobre o ―cuidado de si‖ e o ―cuidado dos outros‖, que na Antiguidade, se
baseavam em uma série de pressupostos.
Um dos mais fundamentais era a escuta, que envolve ―certa arte‖ constituída
por alguns aspectos como o silêncio, a atitude física a ser assumida durante a
escuta, relação do sujeito de abertura do próprio corpo e da própria alma60, para
escutar corretamente, posto que
171
À luz dos debates aqui desenvolvidos, torna-se cada vez mais claro que o
reconhecimento do conjunto de forças que influenciam a forma com que a
abordagem territorial pautada pelas normativas de saude mental, concreta e
cotidianamente operam nos serviços de saude mental, implica em dificuldades
(inclusive ao intendimento) e considerações inevitavelmente multiescalares e
multidimensionais. Os desafios postos a abordagem territorial (longe de ser uma
questão local ou de localização) devem jogar luz aos jogos dos macro e
micropoderes – que se determinam e se contrariam e se reforçam e se negam, num
entrelaçado particular e contingente a cada nova demanda...
172
traçou, com sua própria essência, para o começo de todas as coisas,
para determinar o espaço e organizar a criação. (...) [é a] A primeira
divindade invocada em cerimônias de vodu (Legba ou Atiban Legba
para os Fon do Daomé, no Haiti, Esu Elegbara, ou apenas Esu, entre
os iorubás da Nigéria ou no Brasil) é o mensageiro intermediário
entre homens e outras as divindades. Ele é chamado "o
homem das encruzilhadas" no Brasil, porque ali onde se cruzam
as ruas está Exu; se diz que Exu foi quem revelou a arte da
adivinhação aos homens. (...) 3. O cruzamento é o encontro com o
destino. Ele está em uma encruzilhada onde Édipo encontra e mata
seu pai, Laio, e sua tragédia começa. No final de uma longa viagem
que tinha começado apenas para escapar de seu destino é quando
precisamente numa encruzilhada, que o destino lhe é imposto. Cada
ser é em si uma encruzilhada, onde se cruzam e combatem os vários
aspectos da sua persona. (...) 4. Na mitologia grega, Hécate, uma
divindade muito mal definida, de origem incerta, com capacidade de
ação ilimitada, identificada com Ártemis, Deméter, Apolo e outros
deuses e deusas, se chama Deusa das Encruzilhadas. Este nome
veio sem dúvida por lhe terem como deusa dos três mundos: o céu, a
terra e os infernos. Seu corpo é o triplo, triplo é seu resto e triplo é
seu papel como distribuidora de todos os presentes para os mortais,
fonte de toda glória, mais sábia entre todos na arte mágica dos
encantamentos. Favorece o nascimento, conserva os dias e dá-lhes
um fim. (...)Deusa da noite e das sombras, porque também reina no
inferno (...) os gregos lhe atribuiam uma ação particular sobre a
imaginação, criadora de espectros, fantasmas e alucinações. (...)
Benevolente e aterrorizante, a deusa dos três rostos condensa todo o
desconhecido que representa a encruzilhada, imagem do destino,
que uma escolha selará inexoravelmente. Na encruzinhada,
igualmente, é onde se levanta a estátua de Hermes, o ―guiador das
almas‖ [psicopompo] (...) simbolizando, segundo Jung, o papel
mediador de Deus entre os diferentes universos; lhe corresponde
guiar as almas através das rotas subterrâneas do mundo escuro dos
infernos; Jung também vê na encruzilhada um símbolo da Mãe: a
união dos opostos, um resumo de toda a União; Daí o caráter
ambivalente de aparência benéfica ou maléfica. (...) A encruzilhada
pode ter um aspecto benéfico, com efeito, é o lugar onde se encontra
a luz, onde os bons gênios também aparecem, as fadas benfazejas,
a Virgem ou os santos. (...) 5. Por último, em toda civilização
"encruzilhada" que dizer chegar ante ao desconhecido e como, frente
ao desconhecido, as reações humanas mais fundamentais é o medo,
o primeiro aspecto do símbolo é a inquietude [ou angústia]. Nos
sonhos, ela revela o desejo de uma reunião importante, solene, de
certa forma sagrada; ela também pode revelar o sentimento de que
um se encontra em um cruzamento de caminhos e que uma
orientação nova, decisiva, deve tomar-se. (...) De acordo com o
ensinamento simbólico de todas as tradições, deter-se em uma
encruzilhada é como uma pausa de reflexão, de recolhimento
sagrado, é falar do sacrifício que fora necessário para o
prosseguimento do caminho escolhido. A encruzilhada é também o
lugar onde se encontram os Outros, tanto exteriores [estrangeiros]
como interiores [nativos]. O lugar privilegiado das emboscadas: exige
atenção e vigilância. Se é nas encruzilhadas onde está a tripla
Hécate e Hérmes o "guiador de almas", é por que devemos escolher,
173
para nós e em nós, entre o céu, a terra e os infernos. Na verdadeira
aventura humana, a descoberta interior, um não encontra na
encruzilhada nada mais do que a sí mesmo: se estava esperando
uma resposta definitiva, não haverá mais do que novos caminhos,
novas evidências, novas andanças que se abrem. A encruzilhada
não é um fim, é uma subida, um convite para ir além. Alguém não
para ali se não é por querer atuar sobre os outros, seja para o bem
ou para o mal, ou se descobre incapaz de escolher por si mesmo: é
então lugar de meditação, de espera, de não ação. Porém, é também
o lugar da esperança: a rota seguida até ali não está fechada; uma
nova encruzilhada oferece uma nova oportunidade de escolher uma
boa via. No entanto, as escolhas são irreversíveis. Para demonstrar
toda a força desse símbolo há contos nos quais a encruzilhada
mesmo se apagada, com a passagem do herói: os problemas da
escolha foram resolvidos. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1986, p.
448-450)
Mas o que isto significa? Significa conceber a encruzilhada, mais do que ser
―um lugar de parada‖, um momento de decisão entre as escolhas colocadas. Aceitar
também, que, apesar de apresentadas as possibilidades, ou seja, por mais
estruturado que pareça ser o ―caminho‖ que levou à elas; por mais estruturado que
pareçam as saídas delas. Não há receita possível. A qualquer sorte do destino, a
escolha, até então considerada como a ―melhor saída‖, pode, simplesmente não
proceder da mesma forma que a primeira vez. A dinâmica do mundo (Senhor Exu)
tende à rearrumar a problemática de forma que a escolha do mesmo caminho se
torna improvável de êxito.
61
Inicialmente, a escolha do termo foi de certa forma intuitiva. Contudo, entre as pausas na escrita,
acabei por procurar algo para comer nas ruas do Centro de Niterói. Morador do bairro vizinho, a
Ponta da Areia, logo me direcionei à barraca que vende janta para os taxistas ao lado da Rodoviária
Municipal – a cada dia um prato diferente, nunca repetido. Lembro de pedir um feijão e, sentado
numa cadeira de plástico, me notar na encruzilhada. Uma encruzilhada movimentada, com um
intenso fluxo dos ônibus que chegam, dos táxis que saem, do ―boteco da esquina‖. Vendo o
movimento refleti que, embora tenha o costume de comer lá, todas as vezes que estive presentes
naquela encruzilhada, esta sempre foi absolutamente outra. Era como se aquela encruzilhada
guardasse a capacidade de ser sempre absoluta e radicalmente outra. Todos os dias, radicalmente
outra. Ai lembrei que nem sempre esboçava a mesma trajetória, mas sempre me deparava com
aquela encruzilhada e aquela barraca. Mesmo sem fome, muitas vezes ―errando‖ pelas ruas, quando
me dava conta, estava lá. Contraditoriamente, não adiantava refazer a trajetória para buscar o
mesmo ―sabor‖. Sempre era outro. Afinal, não eram as possibilidades que me levavam àquela
encruzilhada, mas aquela encruzilhada que me ofertava as possibilidades... (((DEVANEIOS)))
175
Figura 11 e 12 - Muros: Convocação para reunião dos usuários. Fotografia por Lucas
Honorato (2017)
176
ENXERTOS Nº 4: “GUARDANAPOS DE PAPEL – HOJE”
(Saudades do Futuro, Armando Corrêa da Silva, 1993)
Hoje eu quero um bar, um bom garçom, uma boa música e uma mulher confiável.
Hoje eu quero um bom cigarro, a roupa que eu gosto, o espelho que me diz: você
está bem.
Ontem já foi; amanhã, não sei; hoje é agora e agora eu quero estar aqui.
***
***
177
CAPÍTULO 4 – LOUCURA NOS TERRITÓRIOS – OS DESAFIOS TEÓRICO-
METODOLÓGICOS, PRÁTICOS E POLÍTICOS PARA A ABORDAGEM
TERRITORIAL NA SAÚDE MENTAL.
62
―A grande obsessão do século XIX foi, sabe-se, a história: temas do desenvolvimento e da
estagnação, temas da crise e do ciclo, da acumulação do passado, do grande excesso de mortos, do
resfriamento ameaçador do mundo. Foi no segundo princípio da termodinâmica que o século XIX
encontrou a essência de seus recursos mitológicos. A época atual seria talvez, sobretudo a época do
espaço. Estamos na época da simultaneidade, estamos na época da justaposição, na época do
próximo e do distante, do lado a lado, do disperso. (...) Talvez seja possível afirmar que alguns dos
conflitos ideológicos que animam as polêmicas de hoje em dia se desenrolam entre os devotos
descendentes do tempo e os aferrados habitantes do espaço‖ (FOUCAULT, 2013).
178
multiplicidade; sem multiplicidade não há espaço. Se o espaço é
indiscutivelmente produto de inter-relações, então isto deve implicar
na existência da pluralidade: multiplicidade e espaço são co-
constitutivos. (MASSEY, 2004)
63
―Quanto às políticas estatais de base territorial, são vários os exemplos no baso brasileiro, com
destaque para a Política Nacional de Ordenamento Territorial (PNOT), do Ministério da Integração
Nacional, de 2004, o Programa dos Territórios da Cidadania, do Ministério do Desenvolvimento
Agrário, de 2008, e o de Educação Escolar Indígena, que define Territórios Etnoeducacionais, do
Ministério da Educação, de 2009.ª (HAESBAERT, 2014, p. 56)
180
enquanto categoria normativa (como instrumento jurídico-político de Estado, por
exemplo, nas ações de gestão, planejamento e execução de políticas públicas) 64;
enquanto categoria da prática (nos discursos, práticas e experiências dos
movimentos sociais, e acionados por esses como estratégia de luta, garantia e/ou
reafirmação de direitos)65; e, por fim, enquanto categoria analítica (mais próxima da
academia, no processo de reflexão e análise da realidade) – ―distinção que esta que
se dá, sobretudo, a partir dos distintos sujeitos que estão envolvidos na questão‖
(HAESBAERT, 2014, p. 54).
64
―Como categoria da norma, ou seja, respondendo não tanto ao que o território é, mas ao que o
território deve ser, a partir de determinados interesses político-econômicos, temos tanto empresas
privadas, que defendem a valorização de produtos a partir de uma determinada ‗base territorial‘ (ou
‗regional‘), quanto o Estado, em suas inúmeras políticas de ordenamento territorial.‖ (HAESBAERT,
2014, p. 55)
65
―Enquanto categoria da prática, o território é de uso frequente, especialmente entre os movimentos
sociais de grupos subalternos, como o movimento dos agricultores sem-terra e sem-teto e dos povos
tradicionais (indígenas e quilombolas, sobretudo). Isso fica muito evidente em manifestações políticas
como a ‗Marcha Indígena pelo Território e a Dignidade‘, realizada na Bolívia, em 1990, ou a mais
recente ‗Marcha pela Soberania Popular, o Território e os Recursos Naturais‘, também na Bolívia, em
2002.‖ (HAESBAERT, 2014, p. 55)
181
Estigmatizados, para muitos usuários o próprio ato de sobreviver em si já
aparece como ato político e em conflito com os lugares que perpassa – produzidos a
partir e para a negação de sua existência, mesmo que em algumas vezes isto lhe
seja inconsciente. Existir é um ato de resistência. Desta forma, a dimensão
geográfica das ações dos sujeitos em seus espaços cotidianos irremediavelmente já
se trata de conquista e da luta (antimanicomial, no sentido lato, por excelência). Não
se trata de uma escolha e, às vezes nem de uma consciência estratégica.
Se, como vimos, segundo Souza (2013), o território é ―uma das facetas do
espaço social‖, sendo a projeção/expressão das relações de poder no espaço66 que
opera um ―campo de forças‖, e, portanto, ―um espaço definido e delimitado por e a
partir de relações de poder‖ (SOUZA, 1995, p. 97) – território como ―uma teia ou
rede de relações sociais que, a partir de sua complexidade interna, define ao mesmo
tempo um limite, uma alteridade...‖ (SOUZA, 1995, p. 86); a dimensão do território
como a base ontológico-existencial dos usuários é marcada pelo território como
afirmação da vida. Delimitado a partir da sua presença no mundo. Um pressuposto
básico da existência. O ato de estar que carrega toda a dimensão política das
disputas de poder para existir. Por isso, território que figura como potência de vida
por conta das disputas e lutas cotidianas que a própria existência daqueles sujeitos
no mundo obriga, e que são eminentemente espaciais:
66
―O fato de se admitir que o território, na qualidade de uma projeção espacial de relações de poder,
não deve ser confundido com o substrato não quer dizer, de jeito nenhum, que seja possível
compreender e, mais ainda, investigar territórios concretos (sua origem e causas de suas
transformações ao longo do tempo) sem que o substrato espacial material do espaço social seja
devidamente considerado.‖ (SOUZA, 2013, p. 89)
182
instrumentalização e a alteração do território (e também do substrato
espacial material, da paisagem e das imagens de lugar, em vários
casos). (SOUZA, 2013, p. 87-88)
183
Figura 13 – Muros: Denilson. Fotografia por Lucas Honorato (2017).
184
I - A MORTE DA GENTILEZA DO PROFETA GENTILEZA – A „ENTIFICAÇÃO‟
DO CONCEITO E A DESPOTENCIALIZAÇÃO DA ABORDAGEM
Este primeiro desafio consiste na tendência de ―entificação‖ do conceito.
Trata-se da operação de transfiguração do conceito em um Ser. Dota-lo de
concretude existêncial econdição de ação per si.
Porém, cabe salientar que o conceito não tem existência propria. Trata-se de
um instrumento da cognição para desvelamento da realidade.
185
O ―encontro com o território‖, tão quisto ao projeto de desintitucionalização
incorre obrigatoriamente na compreensão das relações de poder e conflitividade dos
espaços. Se o conceito diz respeito à espacialidade humana e, por isso sendo de
interesse de diferentes campos de conhecimento, consequentemente polissêmico e
hetegenético, ao mesmo tempo, a espacialidade humana é forjada no âmago de
relações sociais concretas.
186
Ora, outro desafio posto à ―ideologia do território‖ consiste no exercício disto
que Lévinas chama de uma ―ética da alteridade radical‖. Aqui, o outro não é passivel
de conceituação, visto que extrapola a lógica estritamente racional. Por tanto, a
abordagem exige a vida dos sentidos, dos afetos, da sensibilidade. Um movimento
de ―evasão de si em favor do outro‖, de ―permitir ser afetado, ser desalojado e de
acolher o outro em sua exigência por respeito e cuidado‖ (CARVALHO; FREIRE;
BOSI, 2009). É um choque, um trauma desestabilizador. Um permitir-se ser
confrontado. Assim, os regimes de verdade e tematização sobre o outro não são
compativeis. ―A dimensão ética para Lévinas se traduz, conforme já aludido, na
responsabilidade de ser por, pelo e para o outro. Estar, portanto, a serviço do outro é
a própria moralidade para Lévinas, a qual começa com o acolhimento‖. É o exercício
de aprender com o usuário. Adentrar em seu mundo de sentido, mais do que
importar néxos e léxicos e/ou sobrecodificar as demandas de acordo exclusivamente
com o entendimento ténico e ético-político do profissional – por mais ―progressista‖
ou ―humanista‖ que seja.
Acontece que, conforme Franco & Merhy (2005) demonstram, toda demanda
de saúde é real e ao mesmo tempo imaginária – vide o debate sobre o ―complexo
médico-industrial‖.
188
reorganização dos vínculos de forma desumana e absolutamente pauperizada.
Desta forma, é coerente entender que o retorno do usuário ao espaço que até então
foi o lugar (no sentido mais genuino do termo, como e de alguma forma ―espaço do
pertencimento‖) da radical opressão seja produto da própria institucionalização – por
tanto um desafio a ser superado. Porém, da mesma forma que todo poder produz
contra-poder, todo processo de desterritorialização envolve um processo de re-
territorialização, mesmo que em base absolutamente pauperizadas (HAESBAERT,
2004).
189
Vejamos o caso da Portaria do Ministério da Saúde Nº 3.088, de 23 de
Dezembro de 2011, adequada às diretrizes da Lei Federal Nº 10.216/2001 (―Lei da
Reforma Psiquiátrica‖, que redireciona o modelo de assistencial em Saúde Mental),
que ―Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou
transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras
drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)‖.
67
São equipamentos e serviços previstos (Art. 5): Unidade Básica de Saúde; Núcleo de Apoio a
Saúde da Família; Consultório de Rua; Apoio aos Serviços do componente Atenção Residencial de
Caráter Transitório; Centros de Convivência e Cultura; Centros de Atenção Psicossocial nas suas
diferentes modalidades; SAMU 192; Sala de Estabilização; UPA 24 horas e portas hospitalares de
atenção à urgência /pronto socorro, Unidades Básicas de Saúde; Unidade de Acolhimento; Serviço de
Atenção em Regime Residencial; Enfermaria especializada em hospital geral; Serviço Hospitalar de
Referência (SHR) para Atenção às pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com
necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas; Serviços Residenciais
Terapêuticos (SRT); Programa de Volta para Casa (PVC); Iniciativas de Geração de Trabalho e
Renda; Empreendimentos Solidários e Cooperativas Sociais.
68
Art. 2, incisos VII e IX
69
Art. 3, inciso III
70
Art. 6 § 3º; Art.7, § 1º; Art.10, § 4º; Art.12, § 2º; e, Art.14, incisos I, II e III.
190
A primeira é a mais frequente ao longo do texto, sem, porém apresentar
definições claras. É que o texto considera e incorpora todo o conjunto de outras
normativas e Leis precedentes, transpondo seus conceitos e abordagens.
Por fim, no que diz respeito aos componentes da Rede, aparece 2 vezes:
191
pressuposto da desinstitucionalização de Franco Baságlia – não necessariamente
concordantes.
Por fim, podemos citar três momentos em que o conceito é acionado de forma
idêntica, no que se refere ao Art. 14 (Competências para a operacionalização da
Rede de Atenção Psicossocial). Em ambos os casos, o conceito é acionado na
concepção histórica dos juristas da relação Estado: da distribuição de competências
entre união, federação, estado e município – território como espaço de político-
administrativo da soberania do Estado (STEINBERGUER, 2013).
192
como um obstaculo para a realização das exigências da Lei. E, consequentemente,
ao avanço, no âmbito institucional ao projeto da Reforma.
193
A compreensão do espaço geográfico como sinônimo de espaço
banal obriga-nos a levar em conta todos os elementos e a perceber a
inter-relação entre os fenômenos. Uma perspectiva do território
usado conduz à idéia de espaço banal, O espaço de todos, todo o
espaço. Trata-se do espaço de todos os homens, não importa suas
diferenças; o espa- ço de todas as instituições, não importa a sua
força; o espaço de todas as empresas, não importa o seu poder.
Esse é o espaço de todas as dimensões do acontecer, de todas as
determinações da totalidade social. É uma visão que incorpora o
movimento do todo (...). (SANTOS, 2000, p. 104).
71
Segundo Thomas Marshall, os direitos de cidadania, compreendem os direitos civis, sociais e
políticos: ―Os direitos civis incluem ‗os direitos necessários à liberdade individual — liberdade da
pessoa, liberdade de expressão, pensamento e fé, o direito de possuir propriedade e estabelecer
contratos válidos e o direito a justiça imparcial‘. Os direitos políticos incluem ‗o direito de participar no
exercício do poder político‘ e, finalmente, os direitos sociais envolvem ‗todo um conjunto de direitos,
194
relação ao projeto da Reforma Psiquiátrica, posto que: se por um lado trata-se da
garantia do ―direito à vida‖; por outro, cabe ainda nos questionarmos de que ―vida‖
estamos falando.
desde o direito a um mínimo de bem-estar e segurança económica até ao direito a partilhar em pleno
na herança social e a viver a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões prevalecentes na
sociedade‘. (...) As instituições que lhes corresponderam foram os tribunais (direitos civis), o
parlamento e os órgãos de governo local (direitos políticos) e o sistema de educação pública, bem
como os serviços sociais (direitos sociais)‖ (MARSHALL, 1992, p. 8 apud OLIVEIRA, 1999, p. 133)
72
―Recursos‖ deve ser visto de forma ampla, abarcando a qualidade e a quantidade dos recursos
humanos, financeiros e estruturais.
195
liberdade, (4) o nível de garantia de um conjunto de direitos, (5) o grau de
acessibilidade a bens, serviços e equipamentos sociais.
196
O progresso técnico, portanto,
197
qualidades como uma das estratégias fundamentais de ampliação do capital. Aqui,
mais do que condição ou meio de produção, a produção do espaço ganha a
importância ―em si‖, para a reprodução ampliada do capital. Ou seja, a ―cidade como
mercadoria‖. Este ângulo apresenta como contradição fundamental o conflito entre
as diferentes lógicas de produção do espaço que se tensionam na disputa entre os
―rumos‖ do arranjo espacial da cidade e seus usos: de forma mais evidente, a lógica
do capital (da ―ordem distante‖ cativa) e a lógica dos moradores (da ―ordem próxima‖
dos nativos).
200
No momento histórico atual em que vivemos de intensificação dos fluxos
(tanto globais e locais), uma proposta de entendimento e intervenção integral em
relação aos sujeitos esbarra em pelo menos uma questão em particular:
202
ENXERTOS Nº 5: “GUARDANAPOS DE PAPEL – ELEIÇÕES”
(Saudades do Futuro, Armando Corrêa da Silva, 1993)
Problemas do atraso
Problemas do progresso
O moderno não sabe bem o que quer, embora saiba com precisão o que não
quer.
O moderno aponta para o futuro, para o sonho, a fantasia, mesmo que com
apenas a função de restabelecer o equilíbrio.
Contradição
203
CONCLUSÃO
Figura 14 – Muros: João Rodrigues II. Fotografia por Lucas Honorato (2017).
205
dos conhecimentos que essa sociedade produz (‗ciência‘) em relação
a todos os outros conhecimentos. (LANDER, 2005, p. 13)
206
Os estudos focados em personagens e experiências absolutamente
relevantes para a formação do pensamento psiquiátrico brasileiro – o estudo de
Portocarrero (2002) descortinando as influências no pensamento de Juliano Moreira
é um bom exemplo.
207
b) Não existe modelo assistencial autoaplicável: apesar de partirem dos
paradigmas (psiquiátrico e de atenção psicossocial) de cuidado a base
ético-política e epistemico-metodológica que buscam dar sentido âs
práticas espaciais e ao papel do saber técnico nas práticas profissionais, o
arranjo institucional e a distribuição espacial dos serviços (embora
fundamentais) por si não garante que os mesmos serão operados. Ou
seja, a re-estruturação de um modelo assistencial por si não garante a
eficiência de seus objetivos, visto que, apesar da previsão formal, os
modelos assistenciais em saúde acontecem na prática no exercício
profissional, que comporta, na relação de encontro demandado-
demandante (em si micropolítica), uma série de determinações (domínio
exclusivo do saber e da autoridade médica,cobranças profissionais,
promessa de bonificação etc.) e mediações (interesses diversos,
preconceitos, valores religiosos, constrangimentos e experiências
pessoais etc.) que extrapolam o controle imediato dos sujeitos, e ao
ordenamento espacial instituído;
Assim, não seria possível falar ―da Reforma Psiquiátrica Brasileira‖, mas de
―REFORMAS‖. Ou seja, do ponto de vista teórico-metodológico, é preciso assumir as
linhas de continuidade e descontinuidade, concordância e divergência, aproximação
e distanciamento, entre as dimensões, visto que carregam determinações
diferenciadas. Portanto, a Reforma aparece como uma abstração e/ou conceito que
demanda qualificação.
209
Do processo de disputa no campo político, com suas negociações, lobbys e
entraves institucionais, avanços e retrocessos, enfrentados e orientados de acordo
com interesses plurais?
Importante reafirmar: nossa análise não objetiva uma resposta única acerca
do que é o território e como deve operar uma abordagem territorial. Existem
diferentes formas de abordar e conceituar o território a partir de diferentes trajetórias
e posições e posturas teóricas, políticas e éticas – não necessariamente
210
concordantes. Justamente por sermos obrigados a movimentar abordagens tão
múltiplas e polissêmicas que os riscos e desafios se põem.
211
Cabe questionar: quais são os limites do profissional, dos projetos
terapeuticos e das práticas de cuidado?
Proposto no campo da Análise Institucional por René Lourau nos anos 1990
ao problematizar a institucionalização das práticas, o conceito diz respeito
212
Para as autoras, dois quadros tem contribuido para sua
produção/fortalecimento: o acúmulo de tarefas e a produção de urgências.
213
Tais proposições levariam a um ativismo, onde o ativista passa a perceber-se
como estando mais capacitado e avançado do que os outros, em uma posição
privilegiada:
214
Abordagens com potencial de desvelamento e intervenção das e nas relações
de poder inscritas nos multiplicidade de territórios do usuário – lugar privilegiado da
dissidência e emancipação.
215
“FINIS OPERAE – FIM DE PAPO”
(Saudades do Futuro, Armando Corrêa da Silva, 1993)
216
Figura 15 – O que Armando Corrêa da Silva pensaria? Fonte: Domínio Público.
217
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
218
BARROS, Denise Dias. Jardins de Abel: Desconstrução do Manicômio de
Trieste. Editora da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1994.
BOFF, Leonardo. Saber Cuidar: Ética do humano - compaixão pela terra. Rio de
Janeiro: Ed. Vozes, 1999.
219
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