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Língua Portuguesa

Semiótica
Clebson Luiz de Brito
Letícia de Souza Peixe
Clebson Luiz de Brito
Letícia de Souza Peixe

Língua Portuguesa
Semiótica

Montes Claros/MG - 2012


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2012
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Maristela Cardoso Freitas Maria Narduce da Silva

Chefe do Departamento de Ciências Biológicas


Guilherme Victor Nippes Pereira
Autores
Clebson Luiz de Brito
É graduado em Letras / Licenciatura em Língua Portuguesa e mestre em
Linguística do Texto e do Discurso pela UFMG. Tem experiência no ensino de
Língua Portuguesa e tem conhecimento de Semiótica francesa, que utilizou em
sua dissertação de mestrado e em textos publicados em revistas acadêmicas,
e em Análise do Discurso de linha francesa. Atualmente é doutorando em
Linguística do Texto e do Discurso pela UFMG.

Letícia de Souza Peixe


Mestre em Linguística do Texto e do Discurso, pela Universidade Federal de
Minas Gerais, tendo atuado principalmente nas áreas de Semiótica Greimasiana
e Análise do Discurso de linha francesa. É professora do ensino fundamental e
médio de Belo Horizonte/MG.
Sumário
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Unidade 1
Primeiras noções e nível fundamental

1.1 introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1.2 O lugar da semiótica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1.3 O percurso gerativo de sentido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12

1.4 Noções gerais e implicações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

1.5 Nível fundamental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

Unidade 2
Nível narrativo

2.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

2.2 Conversão das estruturas fundamentais em estruturas narrativas . . . . . . . . . . . . . . . . 21

2.3 Sintaxe narrativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22

2.4 Semântica narrativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

Unidade 3
Nível discursivo, a realização do sentido

3.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

3.2 Sintaxe discursiva: as projeções da enunciação no enunciado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

3.3 Sintaxe discursiva: o trato da argumentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40

3.4 Semântica discursiva: os temas, as figuras e as isotopias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44

3.5 Para além do percurso gerativo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55

Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

Referências básicas, complementares e suplementares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59

Atividades de aprendizagem - AA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

Apresentação
Prezado acadêmico, nesta disciplina você as coisas vão se encaixando. É assim que as
terá contato com a Semiótica, uma teoria ex- coisas acontecem mesmo!
tremamente produtiva no que diz respeito à Nas unidades deste caderno, você estu-
abordagem do texto e à análise do discurso dará as diferentes categorias de análise dessa
que este contém. Como você notará, trata-se teoria, de modo que possa conhecê-la satis-
de estudar não aspectos da língua, mas do sen- fatoriamente e aplicá-la na interpretação de
tido produzido textualmente. Com efeito, você diferentes textos, elegendo, como analista, as
verá que a produção dos textos/discursos obe- mais apropriadas para cada análise específi-
dece a determinadas regras e envolve determi- ca. Para chegar a esse ponto, porém, é preciso
nados mecanismos geradores do sentido. Esse que você tenha sempre em mente o todo pro-
sentido, por isso, pode ser apreendido pelo posto pela teoria, que é o percurso gerativo de
estudo desses mecanismos que o constituem. sentido, noção fundamental na Semiótica.
Há uma crença comum segundo a qual Para adiantar-lhe essa proposta geral,
entender um texto, interpretá-lo requer sen- nesta disciplina você verá que o sentido parte
sibilidade ou perseverança – seria preciso lê- de uma forma mais simples e abstrata e vai se
-lo várias vezes. Embora essa ideia não seja enriquecendo até atingir o grau de complexi-
de todo equivocada, é preciso considerar ou- dade e concretude com o qual o leitor se con-
tros elementos envolvidos nesse processo, e fronta quando está diante de uma produção
você, nesta disciplina, é convidado a fazer jus- textual efetiva. Veja, a ideia é de um percurso
tamente isso. Você verá que, para se chegar mesmo, uma trajetória, um caminho que o
ao(s) sentido(s) de um texto, para se atingir o sentido perfaz até encontrar-se em estado, por
seu discurso, é preciso lançar mão de estra- assim dizer, comunicável.
tégias mais ou menos objetivas. Na disciplina Para cada nível desse processo de com-
de Semiótica, você terá a oportunidade de co- plexificação ou enriquecimento ou para cada
nhecer justamente categorias de análise que nível/patamar do percurso gerativo do sen-
tornam possível, por assim dizer, um roteiro tido, a Semiótica propõe categorias que per-
de abordagem do texto e de apreensão do(s) mitem apreender o sentido tal como ele se
sentido(s), o que certamente potencializa o apresenta ali. São essas diferentes ferramentas
processo interpretativo. Essas categorias, in- que permitem o exame de diferentes níveis de
clusive, não se restringem aos textos verbais, apresentação do sentido que você, prezado
mas permitem também o estudo e a inter- acadêmico, conhecerá nesta disciplina.
pretação de textos ditos não verbais (visuais, Inicialmente você terá algumas informa-
sonoros, gustativos etc.) e sincréticos, ou seja, ções gerais sobre o lugar da teoria Semiótica
textos que utilizam mais de uma linguagem em relação a outras teorias. Além disso, terá
na produção do seu sentido. E você já notou acesso a uma visão geral do percurso gerativo
como essa habilidade é cada vez mais exigida de sentido para poder relacioná-lo às partes
na vida contemporânea? Os textos que circulam que você estudará à frente em maiores deta-
na sociedade atualmente, não raro, exploram lhes. Com isso, poderá compreender como
diferentes linguagens na produção do senti- cada nível e suas categorias se articulam nessa
do ou apelam à linguagem visual, fazendo jus à proposta geral de descrever a geração do sen-
máxima de que “uma imagem vale mais que mil tido. Nesse momento inicial, você conhecerá
palavras”. Conhecer e utilizar as categorias pro- ainda algumas noções chaves para a compre-
postas pela Semiótica, portanto, pode ser útil ensão da teoria, como o que é texto, discurso,
no desenvolvimento de habilidades de leitura textualização, linguagem etc.
e interpretação de diferentes gêneros textuais Nas demais seções você poderá conhe-
com os quais se confronta atualmente. cer mais detalhadamente cada patamar do
A Semiótica não é uma teoria fácil, sobre- percurso gerativo de sentido: os níveis fun-
tudo porque, para entender as partes dela, damental, narrativo e discursivo, observan-
é preciso entender o seu todo, a sua propos- do as diferentes categorias e sua aplicação
ta geral; ao mesmo tempo, esse todo ou essa a diferentes textos. Por fim, você conhecerá
proposta geral apenas se torna evidente quan- as possibilidades de aplicação da Semiótica
do se tem acesso às partes de forma orientada a diferentes objetos, alguns desdobramentos
e paciente. Não se desanime com as dificulda- recentes dessa teoria e sua relação com outras
des iniciais! Tenha paciência, que aos poucos disciplinas e áreas.

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UAB/Unimontes - 8º Período

Dito isso, espera-se que, ao final, você conheça os conceitos fundamentais e categorias de
análise da Semiótica, consiga aplicar essas categorias na análise de textos verbais, não verbais e
sincréticos, dominando os mecanismos que constroem textualmente o (s) sentido (s). Mais que
isso, deseja-se que o seu percurso nesta disciplina, prezado acadêmico, seja produtivo e que o
conhecimento de Semiótica seja significativamente proveitoso na sua formação.

Os autores

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Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

Unidade 1
Primeiras noções e nível
fundamental Clebson Luiz de Brito

1.1 introdução
Prezado acadêmico, começa aqui, efetivamente, a sua caminhada pelo terreno da Semiótica.
Você terá nesta unidade acesso a uma visão geral da teoria, indispensável para a compreensão
das partes que a compõem, partes essas abordadas no transcorrer do curso.
Essa visão geral, como já lhe foi adiantado na apresentação deste material, relaciona-se à
compreensão do chamado percurso gerativo, simulacro teórico-metodológico da teoria para
descrever a geração do sentido. Compreender essa proposta geral leva a uma melhor compre-
ensão dos diferentes níveis do percurso gerativo, pois, em cada nível, o sentido se apresenta sob
uma forma, uma configuração suscetível de ser descrita pelas categorias propostas pela teoria
para aquele nível.
Uma vez conhecida a visão geral da teoria, você começará a conhecer de perto os diferentes
trechos do percurso gerativo. Você começará conhecendo e examinado o nível fundamental: pa-
tamar que apresenta o sentido sob sua forma mais elementar e abstrata.
Antes de mais nada, porém, você precisa saber de que teoria semiótica este caderno trata e
em que ela se diferencia de outras. Por isso, inicialmente você terá acesso a informações que aju-
darão a contextualizar a teoria, seus conceitos fundamentais e suas propostas.

1.2 O lugar da semiótica


O termo “semiótica” (do grego semeioti- como Semiótica Discursiva (doravante, nesta
ké) relaciona-se de modo geral a signo, signi- disciplina apenas Semiótica).
ficação, sentido. Por essa razão, várias teorias Trata-se de uma teoria que dialoga com
e abordagens que se interessam por esses ele- a Filosofia – sobretudo a Fenomenologia, de
mentos são chamadas – ou pelo menos são Husserl e Merleau-Ponty – e a Antropologia
passíveis de sê-lo – de semiótica. É preciso em Cultural – Lévi-Strauss e Marcel Mauss, entre
geral acrescentar a esse termo, como você vê, outros. Ela, porém, é antes de tudo linguís-
um adjetivo que possa particularizar a teoria tica, herdeira do estruturalismo de Saussure
em jogo. Qual adjetivo/ quais adjetivos que e do linguista dinamarquês Hjelmslev, conti-
cabe/cabem à Semiótica que você vai conhe- nuador das ideias do mestre genebrino (BER-
cer nesta disciplina? TRAND, 2003).
Fiorin (1995), talvez o maior semioticista A Semiótica, prezado acadêmico, privi-
brasileiro, fala de pelo menos três grandes te- legia o texto, sobretudo, como um objeto de
orias Semióticas. Veja os adjetivos que ele usa: significação, passível de uma análise imanen-
1) a americana, que se constitui em torno da te, que, tomando-o como uma máscara, bus-
obra de Charles Sanders Peirce; 2) a russa, que ca explicitar as leis que regem os discursos
se desenvolve a partir da obra de Iuri Lotman; (BARROS, 2001) ou ainda “os procedimentos
e 3) a francesa, que se constrói a partir da obra de composição discursiva, que se manifestam
do lituano, radicado na França, Algirdas Julien textualmente” (FIORIN, 2008, p. 125). O obje-
Greimas. A que você, prezado acadêmico, es- tivo da Semiótica discursiva, como você pode
tudará nesta disciplina é esta última, também ver, é não apenas examinar o sentido dos tex-
conhecida, em razão do seu fundador, como tos/discursos, mas principalmente explicitar
Semiótica Greimasiana e mais recentemente seus mecanismos de constituição do sentido.

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UAB/Unimontes - 8º Período

Por essa razão, no âmbito geral dos estudos do discurso, a Semiótica difere das teorias que
tomam o texto primordialmente como objeto histórico e que se preocupam, sobretudo, com a
formação ideológica de que o texto é expressão, com as relações polêmicas que, numa socieda-
de dividida em classes, estão na base da constituição das diferentes formações discursivas. Vale
lembrar-lhe, porém, que a Semiótica não ignora essa dimensão do texto. Com efeito, ela procura
apenas contemplá-lo, primordialmente, como um todo de sentido dotado de uma organização
específica, privilegiando, em seu escopo, o exame dos procedimentos e mecanismos que o estru-
turam, que o tecem como uma totalidade de sentido (FIORIN, 1995).

1.3 O percurso gerativo de sentido


A Semiótica postula, na abordagem do Outro nível do percurso gerativo de sentido
sentido que se constitui textualmente, um é o narrativo, patamar mais bem desenvolvido
processo de enriquecimento do sentido. O na teoria. Não pense que esse nível é exclusivi-
que isso quer dizer? Retenha de momento que dade de textos narrativos! Em Semiótica, todos
a ideia é a de que o sentido se apresenta ini- os textos apresentam narratividade, entendida
cialmente sob uma forma mais simples e abs- como uma sucessão de diferentes estados.
trata e vai passando progressivamente a uma Veja que um texto dissertativo-argumen-
mais complexa e concreta à medida que se tativo, por exemplo, apresenta um nível nar-
aproxima da superfície textual. Esse processo rativo, uma vez que progride de um estado
de enriquecimento do sentido, noção funda- de tese não fundamentada (corresponde à
mental na teoria, é chamado de percurso ge- explicitação da tese) a um estado de tese fun-
rativo, suscetível de uma descrição em diferen- damentada, após a apresentação dos argu-
tes níveis de abstração (FIORIN, 2006, p. 20). mentos que a sustentam. Não é dessa transfor-
Você estudará em detalhes cada patamar do mação de estados que depende o sucesso do
percurso gerativo ao longo da disciplina. De ime- texto dissertativo-argumentativo? Sem validar
diato, observe como é o seu funcionamento geral. a tese, pode-se atingir minimamente o obje-
O percurso da geração do sentido com- tivo de sustentar uma perspectiva num dado
preende um nível elementar, em que o senti- debate? Evidentemente que não.
do se apresenta sob uma forma extremamen- No nível narrativo, o sentido se constitui,
te simples e abstrata. Essa forma é apreendida dessa forma, a partir de uma organização nar-
como uma oposição semântica, por exemplo: rativa abstrata que simula as transformações
/vida/ versus /morte/, /natureza/ versus /civi- promovidas e/ou sofridas pelo homem, além
lização/, /liberdade/ versus /opressão/ etc. Os de explicar por que tais transformações ocor-
termos da oposição, por sua vez, são inseridos rem e quais os seus desdobramentos.
em um quadro de valores, de maneira que, O percurso gerativo do sentido apresenta
grosso modo, um seja, em dado texto, consi- ainda o nível discursivo do percurso gerativo
derado positivo e o outro, negativo. de sentido. Trata-se, resumidamente, da apro-
Tome como exemplo o discurso ecológi- priação das estruturas abstratas dos níveis an-
co. Como ele se constrói em geral? Se você ob- teriores pelo sujeito da enunciação, que, não
servar, é a partir da oposição /natureza/ versus necessariamente consciente, as converte em
/civilização/ e, ao mesmo tempo, pela adoção algo comunicável, por assim dizer.
de /natureza/ como termo positivo em relação Observe que, com a oposição fundamen-
à /civilização/, termo tomado como negativo. tal /vida/ versus /morte/ e a organização narra-
Um discurso desenvolvimentista, por outro tiva: <<sujeito A leva sujeito B à disjunção com
lado, pode usar a mesma oposição semântica, o objeto de valor vida>>, por exemplo, um
diferenciando-se do ecológico por considerar enunciador jornalista pode noticiar um assas-
como positivo o termo /civilização/ e negativo sinato ou um suicídio (neste caso, se A e B es-
o termo /natureza/. tiverem sincretizados em um mesmo ator dis-
A forma elementar do sentido compreen- cursivo). É possível dizer mais. Como o sujeito
de algumas operações elementares que per- A fez o que fez com B, infere-se que ele tinha
mitem dar conta da sucessividade do texto, um /poder/ e um /saber/ fazer isso, elementos
podendo tudo ser representado de forma ló- abstratos do nível narrativo. Isso pode, no ní-
gica e abstrata no chamado quadrado semióti- vel discursivo, ganhar a forma de uma arma de
co. São operações simples, lógicas e abstratas, fogo, no caso do assassinato, ou de uma corda,
que você conhecerá à frente. no caso de suicídio por enforcamento. O nível

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Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

discursivo, como você pode notar, é aquele discursiva, isto é, termos capazes de criar um Glossário
em que se preenchem, quando da enunciação, simulacro do mundo natural, como é o caso Enunciação: o ato de
estruturas narrativas abstratas e regulares com do gênero romance, gerando efeito de sentido produção do enun-
elementos mais concretos que constroem o de realidade (ou de irrealidade, se for o caso); ou ciado. Em semiótica,
discurso propriamente dito. se limitar a produzir o discurso com temas, se o esse processo implica a
Isso não é tudo. Como o discurso (enun- objetivo é discutir, explicar de forma abstrata o conversão das estru-
turas abstratas dos
ciado) é o produto de uma enunciação, você mundo, como é o caso dos discursos filosóficos. níveis fundamental e
deve levar em consideração que esta dei- Há até mesmo uma série de outras esco- narrativo em estruturas
xa marcas no enunciado que geram efeitos lhas que, assim como as anteriores, são por- discursivas.
de sentido. A instância da enunciação pode tadoras de sentido; por isso, como você pode
projetar, no discurso, a terceira pessoa (ele), ver, longe de aleatórias (pelo menos para al- Sincrético: tem a
ver com sincretismo,
criando um efeito de sentido de objetividade, guém proficiente em relação ao discurso), são que é uma junção de
uma das características do discurso jornalísti- operações destinadas, em última instância, a elementos distintos. Em
co, por exemplo; ou a primeira pessoa (eu), o levar o enunciatário a aceitar como verdadeiro semiótica, sua aplica-
que gera efeito de sentido de subjetividade. o discurso produzido. Você examinará ao lon- ção ao texto designa a
Ele pode, ainda, disseminar figuras pela cadeia go do curso essas possibilidades. existência de mais de
um plano de expressão
veiculando o sentido.

1.4 Noções gerais e implicações


A Semiótica, prezado acadêmico, toma o do de um dado discurso se organiza indepen-
discurso como a parte mais superficial e con- dentemente do plano de expressão a que ele
creta do plano de conteúdo, resultado, como se ligue e do texto em que ele se manifeste.
você viu, da enunciação. O plano do conteúdo, Quais são as implicações disso? Como você
por sua vez, constitui o texto quando se liga a já viu na apresentação deste caderno, ape-
um dado plano de expressão, seja ele verbal, sar de sua ligação com a Linguística, a apli-
não verbal (sonoro, gustativo, visual etc.) ou cação da Semiótica não se restringe ao texto
sincrético, como é o caso do cinema, das histó- verbal, abarcando qualquer produção textu-
rias em quadrinhos, entre outros. A textualiza- al/discursiva.
ção, como você pode ver, é a junção do plano Essas considerações sobre os planos de
de expressão com o plano de conteúdo. conteúdo e de expressão permitem que você
Para entender os conceitos de plano de apreenda alguns conceitos básicos que foram
expressão e plano de conteúdo, você pode empregados até aqui. Eles são importantes e,
relacioná-los às noções de significante e signi- por isso, você os verá repetidas vezes ao longo
ficado de Saussure, que você já deve ter estu- deste trabalho. Não se preocupe se a princípio
dado. Isso porque aqueles se originaram des- parecerem de difícil assimilação: a repetição
tes. Juntos o significante e o significado não é a mãe da retenção, já diz o ditado. Retenha
formam o signo linguístico? O texto pode ser inicialmente que, em Semiótica, “texto” é uma
entendido, da mesma forma, como um signo unidade que se dirige para a manifestação,
complexo formado por um plano de expres- distinguindo-se, portanto, do “discurso”; este,
são e um plano de conteúdo. Este é o plano por sua vez, faz parte do plano de conteúdo,
do sentido e aquele é a(s) linguagem(ns) que que se junta a um dado plano de expressão,
permite(m) a veiculação de tal sentido. constituindo o texto, no processo chamado de
A Semiótica busca primeiramente anali- textualização (FIORIN, 2007a, p. 79).
sar o plano de conteúdo dos textos a partir do Outra informação importante: conhecen-
percurso gerativo de sentido; procura, num do as categorias disponibilizadas pela teoria,
segundo momento, analisar também o plano você não precisa trabalhar com todas; é preci-
de expressão dos textos, quando essa análise so eleger aquelas que sejam mais apropriadas
é pertinente e produtiva. Quando isso ocorre? para cada análise específica. Como se adquire
Quando o texto apresenta uma função estéti- essa proficiência em relação à escolha das ca-
ca (o poema, o ballet, a pintura etc.), ou seja, tegorias pertinentes em cada caso? Deriva da
quando o plano de expressão não apenas vei- própria prática analítica, que pode permitir
cula o plano do conteúdo, mas lhe agrega sen- uma potencialização da leitura, da interpre-
tido (BARROS, 2003). tação e mesmo da produção textual, já que
Como você já deve ter notado, a Semió- revela que, no discurso, nada é gratuito e que
tica apresenta-se como um arcabouço teórico suas operações pelo enunciador são sempre
que busca explicitar a maneira como o senti- geradoras de sentido.

13
UAB/Unimontes - 8º Período

Glossário Dito isso, é hora de você, prezado acadêmico, conhecer de perto os diferentes níveis do
chamado percurso gerativo de sentido e o seu funcionamento. Lembre-se de que, em cada um
Sintáxico: é em- desses níveis, há um componente sintáxico e um componente semântico: respectivamente, um
pregado para tratar
de mecanismos conjunto de mecanismos que ordenam os conteúdos e os conteúdos que se investem nos arran-
que operam com jos sintáxicos (FIORIN, 2006). Há, portanto, sintaxe e semântica fundamentais, narrativas e discur-
arranjos. É equiva- sivas. Nesta unidade, você passa agora ao estudo do nível fundamental, o mais abstrato e sim-
lente a sintático, que ples do percurso gerativo.
também é usado em
Semiótica, mas que
foi preterido aqui,
a exemplo de Tatit
(2002), para evitar
confusão com a
1.5 Nível fundamental
acepção de sintaxe
da gramática norma-
tiva. A Semiótica postula a existência de uma forma elementar e abstrata como o ponto de par-
tida na geração do sentido e como base do discurso. Essa configuração do sentido é examinada
no chamado nível fundamental, que você passa agora a conhecer.
No componente semântico desse primeiro patamar, você vai observar que, subjacentes a
todo discurso, há determinadas estruturas elementares da significação (Fiorin, 2006). Já no
componente sintáxico, vai conhecer as operações abstratas que permitem apreender o discurso
na sua sucessividade.

Dicas
Nem sempre é fácil
1.5.1 Semântica fundamental: o sentido nas oposições
determinar a oposi-
ção que dá sentido No nível fundamental, a forma elementar do sentido se apresenta como uma oposição se-
ao texto, organi-
zando-o semanti- mântica: um discurso fala de /vida/ versus /morte/, /liberdade/ versus /opressão/, /identidade/
camente. Por isso, versus /alteridade/, /totalidade/ versus /parcialidade/ e assim por diante. Para examinar um texto
não fique aflito caso por esse primeiro nível do percurso gerativo, você deve, portanto, realizar um processo de abs-
pareça difícil precisar tração que permita identificar uma forma elementar do seu sentido geral.
a categoria semân- A título de exemplo, observe algumas palavras do célebre discurso sobre “A origem da desi-
tica de base numa
dada análise. Caso gualdade entre os homens”, de Rousseau:
haja dificuldade em
examinar o nível fun- A extrema desigualdade na maneira de viver, o excesso de ociosidade de al-
damental, pode ser guns, o excesso de trabalho de outros, [...] os alimentos muito requintados dos
que, para a análise ricos [...], a má alimentação do pobre [...], aí estão os funestos fiadores de que
do texto em questão, a maior parte dos nossos males são nossa própria obra e de que poderíamos
esse nível não seja evitá-los quase todos, conservando a maneira de viver simples, uniforme e soli-
tão produtivo quanto tária que nos foi prescrita pela natureza.
os demais. Aos pou- [...] Cremos que se faria com facilidade a história das doenças humanas seguin-
cos você aprenderá a do a história das sociedades civis.[...] Com tão poucas fontes de males, o ho-
eleger as categorias mem no estado natural não tem, pois, necessidade de remédios, menos ainda
mais apropriadas de médicos.
para cada caso. O primeiro que, cercando um terreno, se lembrou de dizer: “isto é meu” e en-
controu pessoas bastante simples para acreditar, foi o verdadeiro fundador da
sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassinatos, misérias e horrores não
teriam sido poupados ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas
ou tapando o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: não escutem esse im-
postor! Vocês estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e a
que a terra não é de ninguém (ROUSSEAU, s.d, p. 35).

O discurso de Rousseau se constrói tendo, por base, a categoria /natureza/ versus /civiliza-
ção/, que o resume como um todo. A tese defendida pelo filósofo suíço é a de que as desigual-
dades entre os homens derivam do próprio processo civilizatório que afastou o homem de sua
condição natural de igualdade. Você pode notar que Rousseau defende que a organização do
homem em sociedade, sobretudo pela instituição da sociedade civil, é o que o levou a uma série
de mazelas, uma vez que altera o modo de ser natural do homem.
A categoria semântica do nível fundamental, como você pode ver, apresenta uma contrarie-
dade tal, que os termos se pressupõem de forma recíproca. O sentido de /liberdade/, por exem-
plo, poderia existir sem a noção de /opressão/ ou o contrário? Lógico que não! O mesmo se dá
com oposições como /vida/ e /morte/, /liberdade/ e /opressão/, /sacralidade/ e /profanidade/, /
totalidade/ e /parcialidade/, entre outras. Ambos os termos se constituem, portanto, na relação

14
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

de contrariedade que mantêm entre si. Ao mesmo tempo, essa relação de contrariedade pressu-
põe um nexo entre os termos. Faz sentido opor /sensibilidade/ a /horizontalidade/? Não, porque
nada há em comum entre esses termos. /Masculinidade/, porém, se opõe a /feminilidade/, por-
que ambos pertencem ao domínio da sexualidade (FIORIN, 2006, p. 22).

1.5.2 Semântica fundamental: o sistema abstrato de valores

No componente semântico do nível fun- (2011), que observou que era regular, na base
damental, além de apreender a categoria se- dos discursos analisados, a mesma categoria
mântica que está na base do discurso em aná- semântica observada no discurso de Rousse-
lise, é preciso que você observe o sistema de au: /natureza/ versus /civilização/. Neles, po-
valores em que ela se inscreve. Em todos os rém, o traço eufórico repousa sobre o termo /
discursos, um dos termos da oposição é mar- civilização/, que remete à coletividade, à nor-
cado, grosso modo, com um traço de positivi- malidade, às coerções morais que garantem a
dade e o outro, com um traço de negativida- vida dos grupos, em oposição à /natureza/, to-
de. O traço de positividade recebe o nome de mada como um negativo domínio do individu-
euforia, e o termo por ele marcado é definido alismo, da singularidade, do que é estranho e
como eufórico; o traço de negatividade, por nocivo ao “eu-tribo” (BRITO, 2011, p. 107).
sua vez, recebe o nome de disforia, e o termo Outro lembrete importante: o sistema de
por ele marcado é definido como disfórico valores estabelecido graças às marcas euforia/
(GREIMAS; COURTÉS, 2008). disforia sobre a oposição semântica de base
No fragmento do discurso de Rousseau, não pode ser confundido com a manifestação
você consegue perceber qual dos termos é da ideologia. Esta, como visão de mundo, tem
positivo e qual é negativo na categoria semân- seu espaço de manifestação privilegiado no
tica de base do texto: /natureza/ versus /civili- nível discursivo, sobretudo no seu componen-
zação/? Não é difícil ver que o primeiro termo, te semântico, pois é ali que se apreendem os
/natureza/, é tomado como eufórico (positivo) temas e as figuras que o sujeito da enunciação
e o segundo, /civilização/, como disfórico (ne- utiliza para concretizar, no seu discurso, os ele-
gativo). Como você viu, o filósofo defende que mentos abstratos do nível fundamental (FIO-
as mazelas sociais aumentam à proporção que RIN, 2006).
o homem se afasta do seu estado natural e /Liberdade/ e /dominação (opressão ou
avança no processo civilizatório. Nesse trágico coerção)/, por exemplo, podem ser concre-
progresso, a instituição da sociedade civil é um tizados pelo tema do consumo, em que o
marco negativo cujo reflexo são crimes, guerras, primeiro termo seria positivo e implicaria a
assassinatos, misérias e horrores. Ao estado de propriedade sobre um carro potente, capaz
natureza, por sua vez, o autor relaciona saúde, de levar o proprietário a todos os lugares aos
liberdade, simplicidade e igualdade. quais desejasse ir; ou podem ser concretizados
Atividades
Acerca das marcas de positividade (eufo- ainda, respectivamente, como governo demo-
ria) e negatividade (disforia), lembre-se de que crático e governo totalitário. A /liberdade/, por Exercite agora sua ca-
elas não são dadas a priori, mas se inscrevem outro lado, em discursos que valorizam a ação pacidade de abstração
e apreensão das opo-
nos discursos individuais, sob pena de erro de de governos conservadores, pode remeter à sições semânticas que
avaliação. Não se deve, por exemplo, supor bagunça, desordem, confusão, em oposição organizam os textos.
que /vida/ seja sempre um termo eufórico, po- a uma /dominação/ positiva (eufórica), enten- Segue uma sugestão:
sitivo. Como explica Fiorin (2006, p. 23), /mor- dida como ordem, regra, como explica Barros você já assistiu ao filme
te/, em um discurso que prega o valor do mar- (2003, p. 190). “Narradores de Javé”,
dirigido por Eliane Ca-
tírio – como o de muitos fundamentalistas –, A organização do nível elementar, por- ffé? Assista a esse filme
receberá o traço positivo e /vida/, o negativo. tanto, apresenta um sistema abstrato de valo- (ou veja-o de novo se
Em muitos discursos que valorizam o res; a ideologia se manifesta no nível mais su- for o caso) e procure
progresso humano, diferentemente do que perficial e concreto do percurso gerativo, pois identificar as oposições
ocorre com o discurso de Rousseau, analisa- é ali que o sujeito da enunciação concretiza os semânticas fundamen-
tais que estão na base
do anteriormente, é o termo /natureza/ que é níveis mais abstratos com temas e figuras que da história, bem como
disfórico, associado, não raro, à barbárie. Ou- expressam uma dada visão de mundo. Você o que permite identifi-
tro exemplo pode ser visto no exame de nar- verá isso na unidade 3, que tratará do nível cá-las no filme.
rativas míticas indígenas elaborado por Brito discursivo.

15
UAB/Unimontes - 8º Período

1.5.3 Sintaxe fundamental: as operações de asserção e de negação

Você viu, anteriormente, o componen- civilização→não civilização→natureza. Isso


te semântico do nível fundamental. É preciso porque alguns dos animais apresentavam tra-
agora abordar as operações que permitem ços de humanidade e estavam, antes de o per-
dar conta da sucessividade do texto. A sintaxe derem para os homens, de posse do fogo, que
fundamental analisa justamente essas opera- se liga ao estado de /civilização/. A perda do
ções básicas que estão na base dos discursos. fogo para os homens expressa a negação da /
São duas as operações elementares: a asserção civilização/ e a consequente afirmação da /na-
(afirmação) e a negação (FIORIN, 2006, p. 23). tureza/ para os animais, que perdem os traços
Trata-se de operações que permitem que, dada humanos e passam a apresentar apenas seus
uma determinada categoria semântica, possa aspectos naturais (BRITO, 2011, p. 65).
haver uma transição de um termo a outro e, por- Veja ainda o caso da letra da canção “O
tanto, um percurso fundamental que dê conta pulso”, do grupo Titãs. Ali há uma lista de di-
do que se mostra na sucessividade do texto. ferentes tipos de doenças e paixões (“Peste
O fragmento do discurso de Rousseau, já dis- bubônica, câncer, pneumonia, raiva, rubeula,
cutido, permite que você observe o funciona- tuberculose e anemia, rancor, caxumba, difite-
mento das operações fundamentais de nega- ria...”) e o seguinte refrão: “e o pulso ainda pul-
ção e afirmação. Ali, quando o homem ainda sa”. Nesta letra, a oposição que está na base
se mantinha em estado selvagem, tinha-se a do texto é /vida/ versus /morte/. O acúmulo
afirmação inicial da /natureza/; com a progres- de doenças faz parecer certa a morte, que,
siva civilização do homem, porém, ocorre a no entanto, não vem, já que a pulsação ainda
operação elementar de negação da /nature- existe. Nesse caso há uma espécie de percurso
za/. Depois, há a operação de afirmação da / fundamental esperado, próximo ou iminente,
civilização/, com, sobretudo, a instituição das que seria: vida → não vida → morte. Observe,
sociedades civis. Trata-se de um percurso dis- porém, que esse percurso não se realiza, pois
forizante, isto é, em direção ao termo disfórico, mantém-se a afirmação da /vida/, que teima em
marcado, portanto, por um final “negativo”, já resistir às diferentes e acumuladas doenças.
que, como você viu, no discurso de Rousse- Por fim, nos exemplos destacados,você
au, a natureza é o termo eufórico. São essas pode observar algo que é importante frisar:
operações elementares que estão na base do as operações sintáxicas fundamentais obede-
discurso do filósofo, cuja tese é a de que a pas- cem a uma lógica, em que a afirmação de um
sagem da igualdade à desigualdade entre os termo da oposição apenas ocorre após uma
homens, acompanhada do surgimento de inú- necessária negação do termo oposto. Não
meras mazelas sociais e morais, deu-se com a se passa de maneira direta da afirmação de
organização do homem em sociedade. um termo à afirmação do seu oposto; é pre-
Os percursos fundamentais, possíveis ciso sempre postular a negação de um termo
graças às operações sintáxicas de asserção como transição para a afirmação do oposto.
e negação, podem apresentar movimentos Em alguns textos, isso pode ficar mais eviden-
diferentes do visto em Rousseau? Sim. Brito te; a negação da /vida/ pode, por exemplo, ser
(2011), já citado, observou, por exemplo, que explorada de forma mais prolongada em um
as transformações míticas dos diferentes dis- texto, sob a forma do coma. Porém, ainda que
cursos sobre a aquisição do fogo pelo homem não seja tão evidente, não se esqueça de que
(índio) implicavam para os animais, de for- há sempre a negação de um termo antes da
ma geral, o seguinte percurso fundamental: afirmação do termo oposto.

1.5.4 O quadrado semiótico: uma representação abstrata e lógica do


sentido geral do discurso

Você verá agora que toda a organização fundamental dos discursos é suscetível de uma re-
presentação lógica e abstrata no chamado quadrado semiótico. O quadrado semiótico, por isso,
é uma forma econômica, lógica e abstrata de representação do sentido.
Veja o caso do discurso de Rousseau, que apresenta a oposição semântica /natureza/ versus
/civilização/, como você já viu. Cada um desses termos pode projetar, por meio de uma operação
de negação, um outro termo que lhe é contraditório (BARROS, 2001). Isso faz com que, de /natu-
reza/, se chegue à /não natureza/ e de /civilização/ se chegue à /não civilização/, o que leva a um
total de quatro termos. Além disso, você observou que, na sucessividade do discurso de Rousse-
16 au, há uma transição de um termo a outro.
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

Em outras palavras, há as operações da sintaxe fundamental: o discurso aponta que ha-


via uma afirmação inicial da /natureza/, estágio em que se via igualdade entre os homens; esse
termo, porém, é negado (chega-se à /não natureza/) no processo civilizatório, vindo depois a afir-
mação da /civilização/, sobretudo pela instituição da sociedade civil e das desigualdades que ela
implica. Veja como tudo isso pode ser representado no quadrado semiótico:

◄ Figura 1: Esquema
de representação do
quadrado semiótico do
discurso de Rousseau
Fonte: Elaboração própria

Veja outro exemplo da organização fundamental do sentido e de sua representação no qua-


drado semiótico na letra da canção da banda Legião Urbana.

Soldados
Nossas meninas estão longe daqui
Não temos com quem chorar e nem pra onde ir
Se lembra quando era só brincadeira
Fingir de ser soldado a tarde inteira?
Mas agora a coragem que temos no coração
Parece medo da morte mas não era então.
Tenho medo de lhe dizer o que eu quero tanto
Tenho medo e eu sei por quê:
Estamos esperando
Quem é o inimigo?
Quem é você?
Nos defendemos tanto tanto sem saber
Por que lutar
Nossas meninas estão longe daqui
E de repente eu vi você cair
Não sei armar o que eu senti
Não sei dizer que vi você ali
Quem vai saber o que você sentiu?
Quem vai saber o que você pensou?
Quem vai dizer agora o que eu não fiz
Como explicar pra você o que eu quis
Somos soldados
Pedimos esmola
E a gente não queria lutar
E a gente não queria lutar
E a gente não queria lutar
E a gente não queria lutar
(Legião Urbana, 1985)

17
UAB/Unimontes - 8º Período

Na letra da banda de Brasília, pode-se observar a oposição /liberdade/ versus /opressão (co-
erção ou dominação)/. O primeiro termo da categoria semântica é que recebe a marca da eufo-
ria, ao passo que o segundo recebe a da disforia. Observe que a /opressão/ se revela a partir do
contexto de combate, de guerra, em que os soldados lutam sem saber por que e são submetidos
a uma realidade cruel em que a morte está constantemente presente; revela-se, porém, de forma
mais explícita na reiteração de que não se queria lutar (“E a gente não queria lutar”). Em oposição
a essa dolorosa opressão, a /liberdade/, termo eufórico, se manifesta, sobretudo, pelo que falta
aos soldados: as meninas (que estão longe), que remetem ao prazer do namoro/sexo.
Quanto às operações elementares da sintaxe fundamental, pode-se observar, novamente,
um percurso disforizante. Veja que há uma anterior e pressuposta afirmação da /liberdade/, pois,
no texto, há uma referência a um tempo em que ser soldado era só brincadeira, um agradável
fingimento de criança. Com a imposição dos soldados aos horrores de uma guerra de que eles
não queriam participar, há a negação da /liberdade/ e a afirmação da /opressão/. Representando
tudo isso no quadrado semiótico, veja como ficaria:

Figura 2: Esquema ►
de representação do
quadrado semiótico da
letra de Soldados
Fonte: Elaboração própria.

Para saber mais 1.5.5 O nível fundamental em


Há um livro que pode
ajudá-lo a desenvol-
textos não verbais
ver a habilidade de
interpretação especifi-
camente de textos visu- Fechando a descrição do funcionamento
ais. Chama-se “Semióti- do nível fundamental, veja agora a importân-
ca Visual: os percursos cia da apreensão da organização elementar do
do olhar”, de Antônio sentido na análise de textos não verbais. Ob-
Vicente Pietroforte.
Esse livro, que aparece
serve a figura de Obama a seguir, uma criação,
como sugestão de a princípio, espontânea de um artista ameri-
leitura nas referências cano que quis contribuir com a campanha do
suplementares deste democrata na corrida à Casa Branca, em 2008.
material, é bastante A força do discurso contido nesta figura, que
didático e mostra como
podemos guiar nosso
apresenta algumas variações na linguagem
olhar em busca do sen- verbal, foi tão grande, que ela foi incorporada
tido nos textos visuais. à campanha oficial de Obama. Veja!
Vale a pena lê-lo!
◄ Figura 3: Pôster de Obama. Criação de Shepard
Fairey.
Fonte: Disponível em < http://en.wikipedia.org/wiki/
Barack_Obama_%22Hope%22_poster>.
Acesso em 01 set. 2011.

18
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

O discurso expresso, nesse texto, por um plano de expressão predominantemente visual se Atividades
organiza a partir da categoria semântica de base: /identidade/ versus /alteridade/. O texto, em Para praticar o exame
que as cores são determinantes para o sentido, expressa o termo /alteridade/, sobretudo, como do nível fundamental,
diferenças raciais. Esse termo é, por isso, o termo disfórico, pois o discurso apela ao sentimento vá ao endereço eletrô-
de unidade nacional, tomando, como positivo, o termo /identidade/. nico: <http://www.se-
Como se observa isso? Inicialmente, considere que a questão racial poderia levar muitos nado.gov.br/atividade/
pronunciamento/Deta-
americanos, de maioria branca, a não se verem representados pelo então candidato democra- lhes.asp?d=388285> e
ta, um homem negro. Você pode pressupor, por isso, uma afirmação da /alteridade/, entendida leia o texto disponível.
como diferenças raciais. Aí entra a força do texto em questão. O discurso contido na figura nega Trata-se de um discurso
(no sentido da operação sintáxica de negação, apenas) a /alteridade/ e promove a posterior afir- do Senador pelo
mação da /identidade/ quando pinta o negro Obama com as cores da bandeira norte-americana. Espírito Santo, Magno
Malta. Após ler o texto,
Veja que Obama é, assim, legitimado como representante da sociedade norte-americana como procure responder: O
um todo, pois as diferenças raciais são, no discurso analisado, suplantadas pela identidade na- que ele tem de comum
cional. Essa é a organização fundamental que está na base desse poderoso e persuasivo discurso e diferente com a
em favor do sentimento de unidade americana em torno de Obama. imagem de Obama?
Explore o máximo de
elementos observado
nesta unidade.

Referências
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. 3. ed. São Paulo:
Humanitas; FFLCH/USP, 2001.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Estudos do discurso. In: FIORIN, José Luiz (Org.). Introdução à Lin-
güística – II. Princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2003, p. 187-219.

BERTRAND, Denis. Caminhos da Semiótica literária. Trad. Grupo Casa. Bauru: EDUSC, 2003.

BRITO, Clebson Luiz de. Outras harmonias insuspeitas: um estudo da (in)variabilidade discursi-
va em mitos indígenas à luz da Semiótica francesa. 2011. 116f. Dissertação (Mestrado em Linguís-
tica do Texto e do Discurso) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras, Belo
Horizonte, 2011.

FAIREY, Shepard. Pôster de Obama. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Barack_


Obama_%22Hope%22_poster> Acesso em 01 set. 2011.

FIORIN, José Luiz. A noção de texto em Semiótica. Organon, Porto Alegre, v. 9, n. 23, p. 163-173,
1995.

FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2006.

FIORIN, José Luiz. Enunciação e Semiótica. Santa Maria: Letras (Santa Maria), v. 33, 2007a, p. 69-
97. Disponível em <http://w3.ufsm.br/revistaletras/artigos_r33/revista33_6.pdf> Acesso em 20
ago. 2011.

FIORIN, José Luiz. A Semiótica Discursiva. In: LARA, Glaucia M. P.; MACHADO, Ida Lucia; EMEDIA-
TO, Wander (orgs.). Análises do Discurso Hoje. v. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008, p. 121-
144.

GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Contexto,
2008.

LEGIÃO URBANA. Soldados. In: Idem. Legião urbana. Rio de Janeiro: EMI Music do Brasil, 1985.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. A origem da desigualdade entre os homens. São Paulo: Escala, s. d.

TATIT, Luiz. A abordagem do texto. In: FIORIN, José Luiz (org.). Introdução à Linguística I: Obje-
tos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002. p. 187-209.

TITÃS. Comida. In: Idem. Jesus não tem dentes no país dos banguelas. Rio de Janeiro: WEA,
1987.

19
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

Unidade 2
Nível narrativo Letícia de Souza Peixe

2.1 Introdução
Você começa agora a estudar o nível narrativo do percurso gerativo de sentido, o qual,
como vale lembrar, consiste em uma sucessão de níveis, que vão do mais simples e abstrato ao
mais complexo e concreto, passando-se por um “processo de enriquecimento semântico” (FIO-
RIN, 1995, p. 164), no qual o primeiro nível é concretizado pelo segundo, que, por sua vez, é con-
cretizado pelo terceiro e último.
No nível narrativo, ocorre a concretização das categorias semânticas do nível fundamental,
que você estudou na Unidade 1. Ou seja, os valores abstratos e virtuais desse nível são atuali-
zados, assumidos por um sujeito na sua relação com um dado objeto (que se torna, assim, um
objeto-valor ou Ov). Constrói-se, dessa forma, um simulacro da ação do homem no mundo.
Nessa passagem, as operações lógicas fundamentais convertem-se em transformações nar-
rativas operadas por um sujeito; as categorias semânticas de base tornam-se valores do sujeito
inscritos nos objetos com os quais ele se relaciona; e as determinações do sistema abstrato de valores
do nível fundamental (traços de euforia e disforia) convertem-se em modalizações que modificam as
ações e os modos de existência do sujeito e suas relações com os valores (BARROS, 2003).

2.2 Conversão das estruturas


fundamentais em estruturas
narrativas
Para observar como a conversão das estruturas fundamentais em estruturas narrativas ocor- Dicas
re, retome a passagem de “A origem da desigualdade entre os homens”, de Rousseau, exemplo
Retorne à Unidade 1
analisado anteriormente. e relembre o estudo
Nele, você observou, quanto ao nível fundamental, a oposição /natureza/ versus /civiliza- das estruturas funda-
ção/, em que a /natureza/ é eufórica e a /civilização/ é disfórica. Como esses valores se transfor- mentais, uma vez que
mam em estruturas narrativas no texto? Veja que, quando se analisa a mesma passagem, pelo ele será imprescindível
viés do nível narrativo, os valores abstratos daquele nível são investidos na relação de um sujeito para a compreensão
das estruturas narrati-
com um objeto. vas, nas quais aquelas
são convertidas.
A extrema desigualdade na maneira de viver, o excesso de ociosidade de al-
guns, o excesso de trabalho de outros, [...] os alimentos muito requintados dos
ricos [...], a má alimentação do pobre [...], aí estão os funestos fiadores de que
a maior parte dos nossos males são nossa própria obra e de que poderíamos
evitá-los quase todos, conservando a maneira de viver simples, uniforme e soli-
tária que nos foi prescrita pela natureza.
[...] Cremos que se faria com facilidade a história das doenças humanas seguin-
do a história das sociedades civis.[...] Com tão poucas fontes de males, o ho-
mem no estado natural não tem, pois, necessidade de remédios, menos ainda
de médicos.
O primeiro que, cercando um terreno, se lembrou de dizer: “isto é meu” e encontrou
pessoas bastante simples para acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade ci-
vil. Quantos crimes, guerras, assassinatos, misérias e horrores não teriam sido pou-
pados ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando o fosso,
tivesse gritado a seus semelhantes: não escutem esse impostor! Vocês estarão per-

21
didos se esquecerem que os frutos são de todos e a que a terra não é de ninguém
(ROUSSEAU, s. d, p. 35, grifo nosso).
UAB/Unimontes - 8º Período

Como exemplo, observe a parte final do discurso. Nela, o sujeito “homem”, especificamente
o primeiro a se autointitular dono de um terreno, obteve o objeto “propriedade”, enquanto as
demais pessoas, que também desempenham papel subjetivo, passam, simultaneamente, a não
dispor do objeto “propriedade”.
Perceba, prezado acadêmico, que os termos /natureza/ e /civilização/ são, assim, atualiza-
dos: o primeiro, na relação das demais pessoas que não possuem propriedades, estado, segundo
Rousseau, natural do ser humano; o segundo, na relação do “verdadeiro fundador da sociedade
civil”, que se apossou de uma propriedade, dando início à civilização.
Como cada nível é composto por uma semântica e uma sintaxe, em que a semântica é en-
tendida como os conteúdos investidos nos arranjos sintáxicos, e a sintaxe, como um conjunto de
mecanismos que ordena os conteúdos, você passa agora ao estudo da semântica narrativa e da
sintaxe narrativa, como fez no exame do nível fundamental.

2.3 Sintaxe narrativa


2.3.1 Os enunciados elementares e as relações de junção

No âmbito da sintaxe narrativa, há dois tipos de enunciados elementares: os enunciados de


estado e os enunciados de fazer. O que os distingue? Os primeiros são determinados pela relação
de junção – conjunção ou disjunção – do sujeito com o objeto, podendo, portanto, ser conside-
rados estáticos. Já os enunciados de fazer são dinâmicos, pois englobam as transformações de
um estado para outro.
Se você retornar ao exemplo do texto de Rousseau, pode perceber, inicialmente, que o su-
jeito de estado “homem” – “verdadeiro fundador da sociedade civil” – estava em disjunção com o
objeto “propriedade”, enunciado de estado que pode ser, desta forma, representado:

S¹ (homem) U Ov (propriedade)

U = disjunção

Da mesma maneira os demais sujeitos, as outras pessoas, estavam também em disjunção


com o objeto “propriedade”:

S¹ (demais pessoas) U Ov (propriedade)

O sujeito “homem”, entretanto, transforma seu estado, operando ele mesmo a transforma-
ção ao, cercando um terreno, se lembrar de dizer: “isto é meu”. Note que, com isso, ele passa a
atuar como sujeito de fazer, alterando a junção do sujeito de estado, ele próprio, com os valores
expressos pelo objeto, por meio da apropriação:

PN = F (apropriação)
[S¹ (homem) → (S² (homem) ∩ Ov (propriedade))]

F = função
→ = transformação
∩ = conjunção

Glossário É importante salientar que só com a transformação operada pelo S¹ (homem) é que efeti-
vamente constitui-se o objeto “propriedade”. Note que, de acordo com Rousseau, foi a partir do
Programa narrativo
(PN): sintagma elemen- momento em que o “verdadeiro fundador da sociedade civil” apropriou-se de um terreno e afir-
tar da sintaxe narrativa mou ser ele seu que se estabeleceu a propriedade, até então inexistente, pela oposição do direi-
que ocorre quando to de um frente ao dever dos outros de não o afrontar.
um enunciado de fazer No exemplo dado, tem-se um programa narrativo – ou PN –já que, nesse caso, o enuncia-
rege um enunciado de do de fazer é um enunciado modal, aquele que rege ou “modaliza” um enunciado descritivo, que,
estado.
em um programa narrativo, é o enunciado de estado.

22
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

2.3.2 Articulação de PNs e percursos na formação do esquema


narrativo canônico

Uma sequência de PNs, por sua vez, caracteriza o percurso narrativo. Os actantes sintáxi-
cos, sujeito de estado, sujeito de fazer e objeto, presentes no PN, são redefinidos como papéis
actanciais no âmbito do percurso narrativo, transformando-se, no último nível da hierarquia das
unidades sintáxicas – o esquema narrativo –, em actantes funcionais, como você pode observar
no quadro abaixo:
QUADRO 1
Esquema Narrativo

Unidades sintáticas Actantes

Esquema narrativo Actante funcional (sujeito, objeto, destinador,


destinatário)
Percurso narrativo Papel actancial (Ex.: sujeito competente, sujei-
to do querer)
Programa narrativo (e enunciado elementar) Actante sintático (sujeito do estado, sujeito do
fazer, objeto)
Fonte: BARROS, 2001, p. 36

Note que uma narrativa centra-se, portanto, na transformação de estado entre sujeito e ob-
jeto, tendo, como unidade operatória básica, o PN (LARA, 2004). O esquema narrativo canônico
compreende quatro fases ou quatro PNs (organizados em três percursos – o da manipulação, o
da ação e o da sanção) que se encadeiam, podendo alguma(s) dessas fases estar pressuposta(s).
O que caracteriza cada um desses PNs apontados?
O primeiro PN é o de manipulação (o fazer-fazer). Nele, um sujeito leva outro a /querer/ e/
ou a /dever/ praticar uma ação, constituindo-se, dessa forma, no percurso do destinador-mani-
pulador. São quatro os tipos de manipulação mais recorrentes:

1) tentação, em que o destinador-manipulador oferece valores que ele crê que


o destinatário quer obter;
2) intimidação, em que o destinador apresenta valores que ele acredita que o
destinatário teme e, portanto, deve evitar;
3) provocação, em que o destinador apresenta uma imagem negativa do desti-
natário, devendo este reverter tal imagem;
4) sedução, em que o destinador apresenta uma imagem positiva do destinatá-
rio, que este quer manter (BARROS, 2003, p. 197-198).

Talvez um dos exemplos mais claros que ilustram os tipos de manipulação em língua por-
tuguesa e, provavelmente, o mais trabalhado é aquele que retrata uma mãe tentando fazer com
que seu filho coma, empregando, para tanto, as diversas formas de manipulação:

Tentação – “Se você comer, ganha um refrigerante”;


Intimidação – “Se você não comer, não vai assistir televisão’;
Sedução – “Pus essa comida no seu prato, porque você é grande e é capaz de
comer tudo”;
Provocação – “Pus essa comida no seu prato, mas eu sei que, como você é pe-
queno, não consegue comer o que está aí”.
(FIORIN, 2006, p. 30)

A fase seguinte, a competência (o ser-fazer), é entendida como a capacitação do sujeito por


meio de um /poder/ e um /saber/ realizar a ação. É, dessa forma, um PN pressuposto da perfor-
mance (pressuponente), que, por sua vez, é o PN no qual ocorre a transformação central da nar-
rativa, ou seja, a realização da ação propriamente dita (o fazer-ser). Os PNs de competência e de
performance juntos constituem o percurso da ação ou do sujeito.
Observe a narrativa de Millôr Fernandes:

23
UAB/Unimontes - 8º Período

Fábulas fabulosas – O Rato que tinha medo (A maneira dos … Marroquinos)?


(Millôr Fernandes)
Um Rato tinha medo de Gato. Nisso não era diferente dos outros ratos. Pavor,
tremor, ânsia, vida incerta. Mas igual a todos outros de sua espécie, o nosso
Rato teve, no entanto, um fato diferente em sua vida – encontrou-se com um
Mágico(1).
Conversa vai, conversa vem, ele explicou ao Mágico a sua sina e o seu pavor. O
Mágico, então, transformou-o exatamente naquilo que ele mais temia e achava
mais poderoso sobre a terra – um Gato. O Rato daí em diante, passou a perse-
guir os outros ratos, mas adquiriu imediatamente um medo horrível de cães. E
nisso também, não sendo diferente de todos os outros gatos.
A única diferença foi que tornou a se encontrar com o Mágico. Falou-lhe então
do seu novo medo e foi transformado outra vez na coisa que mais temia – um
Cão, que pôs-se logo a perseguir os gatos. Mas passou a temer animais maio-
res: como Leão, Tigre, Onça, Boi, Cavalo, tudo. O Mágico surgiu mais uma vez e
resolveu transformá-lo então, num Leão, o mais poderoso dos animais(2). Mas
o nosso ratinho, guindado assim a letra O da classe animal, passou, porém, a
recear quando ouvia passos de Caçador.
Então o Mágico chegou, transformou-o de novo num Rato e disse, alto e bom
som:
Moral: Meu filho, quem tem coração de rato, não adianta ser leão.

Ainda há alguma magia.


Será?
(FERNANDES, 2011, s/p)

Nela, você pode notar que o Rato está inicialmente em conjunção como o objeto-valor
“medo”, do qual quer se ver em disjunção. Tem-se, portanto, um enunciado de estado que pode
ser assim representado:

S¹ (Rato) ∩ Ov (medo)

Todavia, um Mágico que o Rato conhece oferece-se para ajudá-lo, realizando, para tanto,
um PN de competência, em que dota o Rato de um valor modal /poder/, quando “transformou-o
exatamente naquilo que ele mais temia e achava mais poderoso sobre a terra – um Gato”, para
que o mesmo entre em disjunção com o objeto-valor “medo”.

PN (competência) = F (transformar o Rato em Gato)


S¹ (Mágico) S² (Rato) ∩ Ov (medo)

Ov = Objeto-valor

Note que ocorre, desse modo, uma doação, em que um sujeito de fazer (S¹) confere, a um
sujeito de estado (S²), um objeto-valor; transformação essa realizada por atores diferentes, no
caso, o Mágico e o Rato.
Além da doação, o programa de aquisição pode se dar também por meio de renúncia, na
qual o sujeito de fazer (S¹) possibilita que o sujeito de estado (S²) entre em disjunção com um
objeto-valor, sendo o sujeito de fazer e o sujeito de estado realizados pelo mesmo ator.

PN (competência) = F (transformar o Rato em barata)


S¹ (Rato) S² (Rato) U Ov (medo)

A espoliação, por sua vez, ocorre quando o sujeito de fazer (S¹), realizado por ator diferente do
sujeito de estado, faz com que o sujeito de estado (S²) entre em disjunção com um objeto-valor.

PN (competência) = F (transformar o Rato em barata)


S¹ (Mágico) S² (Rato) U Ov (medo)

Na apropriação, o sujeito de fazer (S¹), representado pelo mesmo ator do sujeito de estado
(S²), torna possível sua conjunção com o objeto-valor.

PN (competência) = F (transformar o Rato em Gato)


S¹ (Rato) S² (Rato) ∩ Ov (medo)

24
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

Quanto à fábula de Millôr Fernandes, perceba que, apesar de o Rato ter entrado em con-
junção com o valor modal /poder-fazer/, por meio da transformação perpetrada pelo Mágico, o
mesmo não aconteceu com o valor modal /saber-fazer/. Mesmo transformando o Rato nos ani-
mais que mais temia, o Mágico não lhe forneceu um /saber-fazer/ que o possibilitasse empregar
o objeto-valor modal que lhe foi doado, /poder-fazer/, com o objetivo de entrar em disjunção
com o objeto-valor “medo”.
A descrição que você observou é a de um programa narrativo complexo, formado por um
programa narrativo de base, a transformação do estado inicial do Rato de conjunção com o
objeto-valor “medo” para o estado de disjunção; e por um programa de uso, pressuposto ne-
cessário para que isso ocorra, na fábula, o auxílio do Mágico, que transformaria o Rato em um
animal temível.
Já a última fase do esquema narrativo consiste no PN de sanção (o ser-ser), em que se tem o
percurso do destinador-julgador. A sanção implica duas operações: uma cognitiva e outra prag-
mática. O que as diferencia e como elas funcionam?
A primeira operação, a cognitiva, é a constatação da ocorrência (ou não) da ação, conforme
o acordo estabelecido com o destinador-manipulador, culminando, portanto, no reconhecimen-
to do “herói” ou no desmascaramento do “vilão”.
Nela, “o destinador interpreta os estados resultantes do fazer do sujeito, definindo-os como
verdadeiros (que parecem e são), falsos (que não parecem e não são), mentirosos (que parecem
e não são) ou secretos (que não parecem e são)” (BARROS, 2001, p. 40). Para entender melhor,
releia apenas este fragmento do mesmo texto de Millôr Fernandes e observe a análise posterior:

Mas o nosso ratinho, guindado assim a letra O da classe animal, passou, porém,
a recear quando ouvia passos de Caçador. Então o Mágico chegou, transfor-
mou-o de novo num Rato e disse, alto e bom som:
Moral: Meu filho, quem tem coração de rato, não adianta ser leão.

Na história, o sujeito Rato sofre sanção cognitiva, já que o Mágico constata que a verdadei-
ra transformação, o programa de base no qual o Rato entraria em disjunção com o objeto-valor
“medo”, não ocorreu. Interpreta, portanto, o estado a que o sujeito Rato chegou, a conjunção
com o objeto-valor modal /poder-fazer/ e a disjunção com o /saber-fazer/, e o define como men-
tiroso, pois, apesar de parecer, o Rato não é um leão, o qual não teme ninguém.
A segunda forma de sanção, a pragmática, implica a retribuição; seja ela positiva, a premia-
ção, ou negativa, o castigo.
Voltando ao texto usado como exemplo, você pode perceber que o Rato é também sancio-
nado de forma pragmática pelo Mágico ao ser transformado novamente em Rato, função inter-
pretada de maneira negativa de acordo com a ideologia veiculada pela narrativa, a qual depende
do sentido do percurso narrativo realizado (BARROS, 2005). Você verá melhor essa questão da
ideologia no nível discursivo, na Unidade 3.
No quadro a seguir, você visualizará sinteticamente o esquema narrativo canônico descrito,
constituído dos três percursos – o da manipulação, o da ação e o da sanção – e dos PNs que os
constituem:
QUADRO 2
Esquema narrativo canônico

Fonte: BARROS, 2005, p. 37

25
UAB/Unimontes - 8º Período

Cabe lembrar-se, prezado acadêmico, que muitas fases podem ficar ocultas e devem ser,
portanto, pressupostas em uma narrativa. Além disso, muitas delas não se realizam completa-
mente, enquanto outras podem, ainda, relatar, preferencialmente, somente uma das fases (FIO-
RIN, 2006).

2.4 Semântica narrativa


2.4.1 As modalizações

A sintaxe, que você estudou anteriormente, é mais autônoma do que a semântica, já que a
relação sintáxica pode receber diversos investimentos semânticos.
O componente semântico do nível narrativo, dessa maneira, ocupa-se da modalização, que
pode ser de dois tipos: a modalização pelo /ser/ e a modalização pelo /fazer/, que se referem,
respectivamente, ao sujeito de estado (na sua relação com o objeto-valor) e ao sujeito de fazer
(conforme viu-se acima, na descrição dos PNs). Observe o quadro 3:

QUADRO 3
Modalizações de /ser/ e /fazer/

Fonte: BARROS, 2001, p. 50

Assim, o sujeito manipulado, ou seja, aquele que detém um /querer/ e/ou um /dever-fazer/
é um sujeito virtual (ou virtualizado); o que adquire um /saber/ e um /poder-fazer/, referentes à
competência, é um sujeito atualizado. Porém, apenas depois de realizada a performance, é que o
sujeito se torna realizado. Você pode visualizar isso no quadro 4.

26
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

QUADRO 4
Modalizações do sujeito

Fonte: BARROS, 2001, p. 52

A modalização pelo /ser/ engloba dois tipos: a modalização veridictória e a modalização


pelo /querer/, /dever/, /poder/ e /saber/ ser. Como se caracteriza cada uma delas e como elas
atuam? Você já vai saber, começando pela primeira.
A modalização veridictória abarca a oposição /ser/ versus /parecer/; o primeiro termo do par
relacionado à imanência (ser e não-ser) e o segundo, à manifestação (parecer e não-parecer). Ob-
serve que essa modalização permite determinar o tipo de relação existente entre o sujeito e o
objeto, classificando-a como verdadeira, falsa, mentirosa ou secreta.
A verdade é um estado que articula o /ser/ e o /parecer/; a falsidade, um estado que conju-
ga o /não-parecer/ com o /não-ser/; a mentira, o /parecer/ e o /não-ser/; e o segredo, o /ser/ e o
/não-parecer/, conforme você pode ver na figura semiótica que segue:

◄ Figura 4: Modalizações
veridictórias
Fonte: BARROS, 2001, p. 55
Para compreender melhor a modalização veridictória, tome como exemplo o livro “Harry
Potter e a pedra filosofal”, de J.K. Rowling. Nele, o menino Harry Potter, então com onze anos,
descobre-se bruxo ao ser informado disso por Hagrid, um meio-gigante que trabalha na esco-
la de bruxaria de Hogwarts, na qual Harry é convidado a ingressar. A seguinte passagem ilustra
uma fala de Hagrid ao ser confrontado com a descrença do menino frente à revelação. Veja:

27
UAB/Unimontes - 8º Período

- Não é bruxo, hein? Nunca fez nada acontecer quando estava apavorado ou
zangado?
Harry olhou para o fogo. Pensando bem... cada coisa estranha que deixara os
seus tios furiosos tinha acontecido quando ele, Harry estava perturbado ou
com raiva... perseguido pela turma de Duda, pusera-se de repente fora do seu
alcance, receoso de ir para a escola com aquele corte ridículo, conseguira fazer
os cabelos crescerem de novo, e da última vez que Duda batera nele, não fora à
forra sem perceber que estava fazendo isto? Não mandara uma cobra atacá-lo?
Harry olhou para Hagrid, sorrindo, e viu que ele ria abertamente para ele (RO-
WLING, 2000, p. 54).

Analisando esse trecho pelo viés da modalização veridictória, você pode perceber que Har-
ry, por não se saber bruxo, passa do segredo (pois é, mas não parece bruxo) à verdade (é e pa-
rece bruxo), a partir do momento em que se descobre como tal. É essa busca pela verdade que
dá o tom a toda a primeira parte da narrativa, pois nela Harry Potter mostra-se desconfortável
e deslocado no mundo onde vive. Descobre-se posteriormente que a razão dessa inadequação
é justamente o segredo que os tios de Harry, com os quais o garoto, por ser órfão, mora, escon-
dem: sua origem mágica. Com essa revelação, o menino pode, enfim, reconhecer-se como bruxo
(manifestação/parecer), algo que, na verdade, sempre fez parte da sua natureza (imanência/ser)
(PEIXE, 2009, p. 44).
Sobredeterminando a modalização pelo /ser/ e pelo /parecer/, tem-se a modalidade do /
crer/. Assim sendo, o enunciado de estado é certamente verdadeiro quando se articulam /crer-
-ser/ e /parecer/; é provavelmente verdadeiro quando conjuga /não-crer-não-ser/ e /não-crer-
-não-parecer/; certamente falso quando coordena /crer-não-ser/ e /não-parecer/, bem como o
falso incerto conjuga /não-crer-ser/ e /crer-não-parecer/ (BARROS, 2001, p. 57). Você pode ver as
relações de certeza, impossibilidade/exclusão, probabilidade e incerteza representadas a seguir:

Figura 5: Modalidades ►
do /crer/
Fonte: BARROS, 2001, p. 57

Para exemplificar o exame das modalidades descritas no quadro, considere o exemplo da


narrativa do primeiro livro da série que tem, como personagem principal, o jovem bruxo Harry
Potter, “Harry Potter e a pedra filosofal”. No trem que levará os alunos a Hogwarts, Harry, que di-
vide uma cabine com seu novo amigo Rony Weasley, rejeita o fazer persuasivo de Draco Malfoy, tam-
bém aluno novato de Hogwarts, que, na condição de destinador-manipulador, oferece a Harry sua
amizade, que, segundo ele, é de grande valia, dada a importância de sua família (manipulação
por tentação, ou seja, oferecimento de Ov(s) positivo(s), que – se imagina – o sujeito quer obter).

Virou-se para Harry.


- Você não vai demorar a descobrir que algumas famílias de bruxos são bem
melhores do que outras, Harry. Você não vai querer fazer amizade com as ruins.
E eu posso ajudá-lo nisso.
Ele estendeu a mão para apertar a de Harry, mas Harry não a apertou.
- Acho que sei dizer qual é o tipo ruim sozinho, obrigado - disse com frieza (RO-
WLING, 2000, p. 96).

28
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

Você deve ter imaginado, nesse caso, que a amizade de alguém que se diz importante se-
ria um valor desejável para o protagonista da história, já que todo novo aluno quer ser aceito,
no meio escolar, por seus semelhantes. O que explica, então, sua negativa? Harry, no seu fazer
interpretativo, toma Malfoy como certamente falso (/crer-não-ser/ e /não-parecer/) ou como pro-
vavelmente falso (/não-crer-não-ser/ e /não-parecer/), não se deixando manipular e, consequen-
temente, renegando o contrato de amizade proposto. Não realiza, assim, a performance que Mal-
foy dele espera: apertar sua mão (o que indicaria aceitá-lo como amigo), pois Harry não apenas /
quer/, mas /sabe/ e /pode/ (competência) decidir por si só quem é ou não confiável e, portanto,
digno de amizade (o que ele fará durante sua estadia em Hogwarts).

2.4.2 Modalizações e estados passionais

Já a modalização pelo /querer/, /dever/, /poder/ e /saber/ ser “incide especificamente sobre
os valores investidos nos objetos” (LARA, 2004, p. 72), tornando-os desejáveis, proibidos, necessá-
rios etc e gerando, dessa forma, efeitos passionais no/sobre o sujeito (de estado).
Note que uma espada é necessária ou desejável, por exemplo, para um príncipe de um con-
to de fadas, já que modalizada pelo /poder/ matar o dragão e, com isso, resgatar a princesa. O
mesmo ocorre em uma caça ao tesouro, na qual o mapa representa a modalização do /saber/,
tornando-se, assim, necessário à descoberta do tesouro.
O que o estudo dessa modalização significou? A partir da modalização do ser surgiu a Se-
miótica das Paixões, segundo a qual as paixões são “efeitos de sentido de qualificações modais,
que, na narrativa, modificam a relação do sujeito com os valores” (BARROS, 2005, p. 88).
As paixões simples ou paixões de objeto resultam de um arranjo modal da relação sujei-
to-objeto, na qual o sujeito está em conjunção ou disjunção com o objeto, resultando da modali-
zação pelo /querer-ser/. Veja alguns exemplos de paixões simples:

QUADRO 6
Paixões simples

Fonte: BARROS, 2001, p. 63

Nas paixões complexas, “várias organizações de modalidades constituem, na instância do


discurso, uma configuração patêmica e desenvolvem percursos” (BARROS, 2001, p. 62).
Tome como exemplo novamente a história escrita por J.K. Rowling. Na sequência da narra-
tiva de “Harry Potter e a pedra filosofal”, o garoto vem a enfrentar seu inimigo Lord Voldermort,
que planejava obter a Pedra Filosofal, com cuja força poderia fortalecer-se para colocar em prá-
tica seu plano de segregação dos bruxos sangues-puros dos mestiços, filhos de bruxos e trouxas
(não bruxos).
Quanto às paixões, você vai notar que há, pelo menos, duas maiores que “modulam” a narra-
tiva (ambas paixões simples, decorrentes da modalização pelo querer-ser).
A seguinte passagem ilustra a busca de Harry e seus amigos para descobrir quem é Nicolau
Flamel, o bruxo a quem pertence a Pedra Filosofal, a partir da qual se pode produzir o Elixir da
Vida, que torna imortal aquele que o bebe (ROWLING, 2000); razão pela qual Lord Voldemort,
ainda enfraquecido, almeja obtê-la.

29
UAB/Unimontes - 8º Período

- Só queremos saber quem é Nicolau Flamel, só isso - falou Hermione.


- A não ser que você queira nos dizer e nos poupar o trabalho?
- acrescentou Harry. - Já devemos ter consultado uns cem livros e não o encon-
tramos em lugar nenhum. Que tal nos dar uma pista?
Sei que já li o nome dele em algum lugar.
- Não digo uma palavra - respondeu Hagrid decidido.
- Então vamos ter que descobrir sozinhos - disse Rony, e saíram depressa para a
biblioteca, deixando Hagrid desapontado.
Andavam realmente procurando o nome de Flamel nos livros desde que Ha-
grid deixara escapá-lo, porque de que outra maneira iam descobrir o que
Snape estava tentando roubar? O problema é que era muito difícil saber por
onde começar, sem saber o que Flamel poderia ter feito para aparecer em um
livro. Não se encontrava em Grandes sábios do século, nem em Nomes notá-
veis da mágica do nosso tempo, não era encontrável tampouco em Importan-
tes descobertas modernas da mata nem em Um estudo aos avanços recentes
na magia. E, é claro, havia também o tamanho da biblioteca em si, dezenas de
milhares de livros, milhares de prateleiras, centenas de corredores estreitos
(ROWLING, 2000, p. 170-171).

Observe que, nessa passagem, está retratada a primeira paixão simples da narrativa, a curio-
sidade (querer-saber), sem a qual os sujeitos não teriam obtido as informações necessárias para
descobrir o mistério que envolvia a Pedra Filosofal e salvá-la do mal. Essa é uma característica
marcante das crianças, recorrente em muitos contos de fadas, cujos protagonistas são jovens,
por exemplo, em “João e Maria”, em que duas crianças, por curiosidade, embrenham-se na flores-
ta e ficam perdidas:

Era uma vez um menino chamado João e sua irmã Maria, que moravam em
uma casa perto da floresta.
Um dia, sua mãe pediu que fossem buscar galhos secos para acender o fogo.
Não precisavam trazer muitos, apenas o bastante para acender a lareira.
- Não vão muito longe. Os galhos que temos aqui perto já servem, não vão se
perder por aí...
- Pode deixar, mamãe, vamos voltar logo!
E lá se foram os dois procurar gravetos secos por ali, entre várias brincadeiras.
Não queriam ir longe, mas estavam tão curiosos com a floresta que resolveram
arriscar só um pouquinho.
Maria teve uma idéia genial: foi marcando todo o caminho, para saber por
onde voltar: assim não iriam se perder. E brincaram à vontade.
Já estava querendo escurecer quando resolveram voltar. Maria foi logo procu-
rando os pedacinhos de pão que deviam estar marcando o caminho, mas...
Os passarinhos que moravam ali estavam achando ótimo aquele lanchinho, e
não deixaram nem um miolinho de pão sobrar. Não havia como achar o cami-
nho de volta para casa. A idéia de marcar o caminho tinha sido ótima, mas não
com pedacinhos de pão.
Fonte: <http://feijo.com/~flavia/joaoemaria.html>. Acesso em 23 set. 2011.

Outra paixão que você pode observar na trama é a ambição ou cobiça, que move Lord Vol-
demort na busca, incansável e desmedida, pela Pedra Filosofal. Enquanto, em “Harry Potter e a
Pedra Filosofal”, a curiosidade recebe uma conotação positiva (nem sempre é assim nos contos
de fadas, como é o caso de “João e Maria”), a ambição ou cobiça é desvalorizada.
Veja a seguir uma conversa entre Harry Potter e o centauro Firenze, criatura mágica que vive
na floresta próxima a Hogwarts; nela se esclarecem as intenções de Lord Voldemort, e, conse-
quentemente, a paixão que perpassa seu percurso, a ambição, também chamada de cobiça:

- Harry Potter, você sabe para que se usa o sangue de unicórnio?


- Não - disse Harry surpreendido pela estranha pergunta. - Só usamos o chifre e
a cauda na aula de Poções.
- Porque é uma coisa monstruosa matar um unicórnio. Só alguém que não tem
nada a perder e tudo a ganhar cometeria um crime desses. O sangue do uni-
córnio mantém a pessoa viva, mesmo quando ela está à beira da morte, mas a
um preço terrível.
Ela matou algo puro e indefeso para se salvar e só terá uma semivida, uma vida
amaldiçoada, do momento que o sangue lhe tocar os lábios.
Harry ficou olhando para a nuca de Firenze, que estava prateada de luar.
- Mas quem estaria tão desesperado? - pensou em voz alta. - Se a pessoa vai ser
amaldiçoada para sempre, é preferível morrer, não é?

30
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

- É - concordou Firenze -, a não ser que ela precise se manter viva o tempo sufi- Para saber mais
ciente para beber outra coisa, algo que vai lhe devolver a força e o poder totais,
algo que significa que jamais poderá morrer. Sr. Potter, o senhor sabe o que é Você pode aprofundar
que está escondido na sua escola neste momento? na análise das mo-
- A Pedra Filosofal! É claro, o elixir da vida! Mas não percebo quem... dalizações e estados
- Não consegue pensar em ninguém que tenha esperado muitos anos para re- passionais por meio de
tomar o poder, que se apegou à vida, esperando uma chance? uma obra importantís-
Foi como se uma mão de ferro de repente apertasse o coração de Harry. Aci- sima: “Semiótica das
ma do farfalhar das árvores, ele parecia ouvir mais uma vez o que Hagrid lhe paixões”, de Algirdas
contara na noite que se conheceram: “Uns dizem que ele morreu. Bobagem, Julien Greimais e
na minha opinião. Não sei se ele ainda teria bastante humanidade para morrer” Jacques Fontanille. O
(ROWLING, 2000, p. 222-223). estudioso da área não
pode deixar de lê-la.
Você viu, nos exemplos anteriores, casos de paixões simples ou paixões de objeto. O ou-
tro grupo de paixões apontado anteriormente, como você deve lembrar, caracteriza-se por
envolver um percurso.
O estado inicial das paixões complexas é a espera, que pode ser simples ou fiduciária. Na Atividades
espera simples, o sujeito deseja estar em conjunção ou em disjunção com um objeto-valor, mas não Utilizando o que você
quer ser o sujeito de fazer responsável pela transformação. A espera fiduciária, por sua vez, baseia-se aprendeu nesta uni-
na confiança, já que “o sujeito do estado pensa poder contar o sujeito do fazer para realizar suas espe- dade, analise o poema
“O pato”, de Vinícius de
ranças ou direitos, ou seja, atribui ao sujeito do fazer um /dever-fazer/” (BARROS, 2001, p. 64). Moraes, disponível em
Uma vez que você conheceu o nível narrativo, bastante complexo e cheio de categorias, <http://www.vagalume.
lembre-se, prezado acadêmico, do que lhe foi dito anteriormente: ao estudar um texto, você não com.br/vinicius-de-
precisa se ater a todos os níveis e componentes do percurso gerativo de sentido com igual in- -moraes/o-pato-pateta.
teresse e profundidade; deve, ao contrário, aprofundar-se no nível e/ou no componente que se html>, e descreva os
percursos narrativos
mostra mais proeminente, de acordo com a particularidade desse texto específico. nele contemplados. Em
seguida, elabore um
esquema e envie-o para

Referências
seu tutor.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. 3. ed. São Paulo:
Humanitas; FFLCH/USP, 2001.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Estudos do discurso. In: FIORIN, José Luiz (Org.). Introdução à Lin-
güística – II. Princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2003, p. 187-219.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do texto. 4. ed. São Paulo: Ática, 2005.

FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas – O Rato que tinha medo (A maneira dos … Marroqui-
nos)? Disponível em: <http://umaraposanaestrada.blogspot.com/2011/08/fabulas-fabulosas.
html> Acesso em 23 set. 2011.

FIORIN, José Luiz. A noção de texto em Semiótica. Organon, Porto Alegre, v. 9, n. 23, p. 163-173,
1995.

FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2006.

JOÃO E MARIA. Disponível em: <http://feijo.com/~flavia/joaoemaria.html> Acesso em 23 set.


2011.

LARA, Glaucia M. P. O que dizem da língua os que ensinam a língua: uma análise Semiótica do
discurso do professor de português. Campo Grande: Ed. UFMS, 2004.

PEIXE, Letícia de Souza. Harry Potter e a pedra da narrativa. 2009. Dissertação (Mestrado em
Linguística do Texto e do Discurso) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras,
Belo Horizonte, 2009.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. A origem da desigualdade entre os homens. São Paulo: Escala, s. d.

ROWLING, J. K. Harry Potter e a pedra filosofal. Tradução Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

31
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

Unidade 3
Nível discursivo, a realização do
sentido
Clebson Luiz de Brito

3.1 Introdução
O nível discursivo do percurso gerativo de sentido é o patamar que abriga as estruturas mais
próximas da superfície do texto. Estas nada mais são do que o resultado da conversão, em discur-
so, das estruturas Semióticas mais abstratas, como você já sabe. Você se lembra de que o sentido
parte de uma forma elementar e mais abstrata no nível fundamental e em seguida configura-
-se como uma organização narrativa abstrata no nível das estruturas narrativas. Esses dois níveis
você já estudou. Agora você estudará o nível em que o sentido apresenta sua face mais concreta
e complexa.
Como nos níveis anteriores do percurso gerativo, o nível das estruturas discursivas apresen-
ta uma gramática autônoma por meio da qual se pode apreender o sentido, agora em sua feição
mais concreta, superficial e complexa. Há, assim, vale lembrar, tanto uma sintaxe quanto uma se-
mântica discursiva, a exemplo dos patamares já estudados. Primeiro você estudará o componen-
te sintáxico do discurso e, em seguida, o componente semântico.

3.2 Sintaxe discursiva: as projeções


da enunciação no enunciado
Falar do nível discursivo é falar da enunciação, isto é, do ato de produzir o discurso-enun- Glossário
ciado. Esse processo se dá tanto pela seleção das categorias disponíveis nos níveis fundamental
e narrativo, quanto pela conversão dessas estruturas no discurso enquanto acontecimento, sin- Debreagem / em-
breagem: são nomes
gularidade. É preciso que você tome a enunciação, por isso, como uma instância sempre pressu- técnicos dados à insta-
posta pela existência do produto que ela gera: o discurso-enunciado. Em outras palavras, adote a lação de coordenadas
máxima de que, se há enunciado (materialidade discursiva), há ou houve a enunciação. espacio-temporais
Que implicações isso traz? O enunciado como produto carrega as marcas da enunciação e (aqui ou lá/ agora ou
então) e a instalação
das operações que o constituem (BARROS, 2001). Essas marcas são geradoras de sentido e não
de pessoas (eu ou ele)
podem ser negligenciadas na análise. No estudo da sintaxe discursiva, você aprenderá, entre ou- que particularizam as
tras coisas, a recuperar o ato da enunciação e a examinar suas marcas no enunciado. organizações abstra-
A enunciação, como diz Fiorin (2006, p. 56-57), é “a instância que povoa o enunciado de pes- tas e gerais do nível
soas, de tempos e espaços”, o que você vai entender a seguir. Esse processo se dá pela debrea- narrativo.
gem e a embreagem de pessoa (actancial), de tempo e de espaço. São esses recursos que dão
uma feição específica, singular e concreta ao que antes era geral e abstrato.
Para examinar os procedimentos de ancoragem do texto-enunciado nas categorias aponta-
das anteriormente (de pessoa (actancial), de tempo e de espaço) e seus efeitos de sentido, lem-
bre-se de que a enunciação, desde Benveniste (1976), define-se como o lugar do eu/aqui/agora
da linguagem. O que isso quer dizer? Veja que “eu” é todo aquele que, ao produzir o seu discurso,
diz “eu”, convertendo-se em enunciador e instaurando um “tu” como enunciatário. A produção
do discurso, ao mesmo tempo, se dá sempre em um tempo e espaço; “aqui” é o espaço do “eu”,
a partir do qual se ordenam os outros espaços enunciativos (lá, aí etc.); e “agora” é o instante de
tomada de palavra pelo “eu” (FIORIN, 2006, p. 56). Como você pode notar, todo e qualquer discur-
so-enunciado pressupõe um “eu” responsável pela enunciação, além de um “aqui” e um “agora”
próprios da construção do discurso. 33
UAB/Unimontes - 8º Período

É importante você ter isso em mente porque alguns efeitos de sentido derivam das relações
de aproximação/distanciamento do enunciado com a instância da enunciação, o que se obtém
pelos mecanismos de debreagem e embreagem.
As debreagens enunciativas de pessoa, espaço e tempo são aquelas que projetam, no enun-
ciado, o eu/aqui/agora da enunciação. Com elas o enunciado simula a enunciação propriamente
dita, que você viu que é sempre pressuposta em relação ao enunciado. Que efeitos isso gera?
Sobretudo, efeitos de sentido de subjetividade. Trata-se do que, em Semiótica, chama-se enun-
ciação-enunciada. A esta se opõe o que se denomina enunciado-enunciado, que se obtém pela
projeção no discurso de um ele/lá/então. Essa projeção é resultado da debreagem enunciva de
pessoa, espaço e tempo. Veja que, nesse caso, cria-se um distanciamento da enunciação que
gera efeitos de sentido de objetividade.
Veja agora, prezado acadêmico, um exemplo de análise das projeções da enunciação no
fragmento de um discurso do Senador Magno Malta, do PR do Espírito Santo.

[...] As razões que me trazem a esta tribuna são algumas conside-


rações absolutamente importantes para o Brasil. Penso que o homem
é a sua crença, o homem é aquilo que acredita, o homem é aquilo
que ele decide ser. Todos nós temos uma missão para cumprir. Eu re-
cebi do meu Estado, aliás, da minha própria consciência, uma missão
para cumprir com o Brasil. Ao longo da minha vida, tenho lutado pela
causa dos menores. [...] Agora, presidindo a Frente Parlamentar da Fa-
mília, penso que vivemos um momento absolutamente sofrido, por-
que uma minoria barulhenta tenta se sobrepor a uma maioria abso-
luta deste País, uma maioria de famílias que acreditam em princípios
de família como Deus assim a constituiu, macho e fêmea, homem
e mulher, pai e mãe, aliás, viemos do útero de uma mulher, não há
qualquer anomalia que possa trazer alguém à luz fora disso. [...] Eu es-
tou olhando para o Brasil para afirmar o seguinte, Senador Ivo Cassol:
esse kit homossexual nas escolas fará das escolas do Brasil verdadei-
ras academias de homossexuais (MALTA, 2011, s/p).

Note que esse fragmento é um exemplo de unidade discursiva criada com o mecanismo da
debreagem enunciativa. Trata-se de um discurso em que o parlamentar, como enunciador, colo-
ca-se contra algumas estratégias e materiais que seriam empregados nas escolas brasileiras com
o objetivo de promover a tolerância em relação à diversidade sexual. Ele projeta um eu/aqui/
agora da enunciação no enunciado que leva a um efeito de sentido de subjetividade. É com esse
recurso que o parlamentar procura convencer o auditório a aceitar o seu discurso como fruto de
uma avaliação pessoal e crítica.
Perceba, prezado acadêmico, que a enunciação-enunciada é um recurso do enunciador na
sua intenção de persuadir o outro, o enunciatário. A subjetividade, por isso, é um efeito de senti-
do das debreagens enunciativas, em vez de um fato propriamente dito.
Lara (2004) oferece um exemplo didático a esse respeito, que vale a pena você conhecer. A
autora analisou, por meio de um questionário, o discurso dos professores de português sobre o
ensino de Língua Portuguesa e sobre a própria língua. Ela observou, em perguntas que pediam
uma visão pessoal e crítica acerca do assunto, a predominância da enunciação-enunciada, que
gera, como você já viu, efeito de sentido de subjetividade. Essa subjetividade, entretanto, encon-
trava-se apenas no nível da aparência, já que, de maneira geral, o conteúdo básico dos textos
era praticamente o mesmo. Isso porque a autora percebeu que o discurso dos professores estava
impregnado de um discurso tradicionalista, que toma a língua a partir, predominantemente, da
questão da correção (/certo/ versus /errado/), e do discurso do senso comum, que, por exemplo,
toma a Língua Portuguesa como difícil, complexa (LARA, 2004).
Depois de ver um caso de enunciação-enunciada, veja agora um texto que representa um
caso de enunciado-enunciado, resultado de debreagens enuncivas.

Jogador é condenado a indenizar árbitro após ofensas racistas no RS


A Justiça gaúcha condenou o Vasco da Gama, de Farroupilha (a 108 km de Por-
to Alegre), e seu jogador Vanderlei Fogolari a pagarem uma indenização no
valor de R$ 9.000 a um juiz de futebol alvo de xingamentos de cunho racista
feitos pelo atleta. Em setembro de 2006, depois de receber um cartão amarelo
em partida do campeonato municipal de futebol amador, Fogolari chamou o
árbitro de “macaco de merda”, “negro filho da puta” e disse “o teu lugar é no

34
zoológico”.
Folha.com 01/06/2010
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

No texto apresentado, a instância da enunciação projeta no enunciado um ele/lá/então: Jus-


tiça gaúcha/jogador, Farroupilha, setembro de 2006. O efeito de afastamento da enunciação leva
a um efeito de sentido de objetividade, que, como você já viu na introdução deste trabalho, é um
dos traços do discurso jornalístico.

3.2.1 Categoria de pessoa: os diferentes níveis enunciativos

Acerca da categoria de pessoa, fique enunciatário, por que o enunciador veicula-


atento, prezado acadêmico, aos diferentes ní- ria uma notícia sobre um acontecimento tão
veis enunciativos compreendidos no discur- restrito, passado no interior do Rio Grande do
so. A enunciação, sempre pressuposta pela Sul? Como você pode notar, além de como se
existência do enunciado, implica, do mesmo noticia, o que se noticia é uma das formas de
modo, um “eu” pressuposto, implícito, que se um veículo de comunicação transmitir uma
denomina enunciador. Trata-se da imagem de imagem de si e do seu público alvo.
autor produzida no texto, e não o autor/pro- Além de enunciador e enunciatário, que
dutor real, que não interessa à teoria. Essa ficam implícitos no texto, você deve se ater a
imagem do “eu” inscrita no texto pode ou outra instância enunciativa, que é aquela cria-
não corresponder efetivamente à visão de da pela debreagem actancial. Nesse proces-
mundo do autor. so, instalam-se narrador e narratário, pessoas
No fragmento do discurso do Senador projetadas nos enunciados. Vale lembrar: elas
Magno Malta, interessa, ao analista que utiliza não podem ser confundidas com enunciador e
a Semiótica, a imagem do parlamentar inscri- enunciatário.
to no seu texto. Se você voltar ao texto verá Você pode ver nitidamente a diferencia-
que este passa a ideia de enunciador religioso, ção desses dois níveis enunciativos em uma
conservador, moralista. O Senador propria- importante obra da literatura nacional. Em
mente dito pode ser assim ou não. A corres- “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, o enun-
pondência entre a imagem do enunciador e ciador é Machado de Assis, não o autor de
a efetiva visão de mundo do autor empírico carne e osso, mas a imagem que o discurso
não interessa ao analista do discurso, pois transmite dele. Enunciatário é aquele a quem
análise não é investigação policial, conforme o discurso contido no romance se dirige. Em
lembra Fiorin (2007b). alguns momentos na narrativa, porém, se lê
Continuando a tratar do primeiro nível “leitor amigo” e se veem outras marcas de in-
enunciativo, convém que você observe que terlocução com o leitor. Trata-se agora da voz
a todo “eu” corresponde um “tu”. As teorias do narrador dirigindo-se ao seu “tu” corres-
enunciativas consolidaram essa visão, já há pondente: o narratário.
muito observada em análise literária. Por isso, Mesmo em casos que não sejam tão evi-
ao enunciador, figura implícita responsável dentes quanto no caso citado, não deixe de con-
pelo discurso, corresponde um leitor igual- siderar a existência do narratário como um cor-
mente implícito, pressuposto, denominado respondente necessário (um “tu”) ao narrador.
enunciatário. Trata-se, igualmente, de uma Uma vez instalados narrador e narratá-
imagem de leitor/ouvinte inscrita no texto rio, há ainda a possibilidade de o primeiro
(FIORIN, 2006), o que corresponde ao que dar voz a atores do discurso. Esse processo
outras abordagens denominam leitor mode- é denominado debreagem interna (ou de
lo ou leitor implícito. segundo grau). Por meio dele, gera-se outra
Por que isso é relevante? A imagem do instância enunciativa pela instalação de in-
enunciatário representa uma das coerções do terlocutores: interlocutor e interlocutário, re-
discurso, pois ela interfere na sua elaboração. sultando na unidade discursiva denominada
Repare que você sempre adapta seu discurso discurso direto.
àquele(s) a quem se dirige. Como explica Fiorin Por que se ater a esse último nível enun-
(2006), não se produzem discursos iguais quan- ciativo? Porque essa construção gera efeito de
do se dirige a um especialista em uma dada área sentido de realidade pela ilusão de se ouvirem
e a um leigo; a uma criança e a um adulto. as vozes dos atores discursivos (FIORIN, 2006
Veja o caso da notícia do Jornal Folha. p. 67). No caso da notícia da Folha.com, que
com sobre a decisão judicial do caso do joga- você teve a oportunidade de ver anteriormen-
dor racista, lido há pouco. A imagem de enun- te, o narrador em questão dá voz, em discur-
ciatário, isto é, do destinatário do discurso, é so direto, ao jogador condenado ([...] e disse
a de alguém minimamente preocupado com “o teu lugar é no zoológico”). Com isso parece
mazelas sociais, como o preconceito racial, e que se pode ouvir o jogador xingando o juiz,
alguém capaz de se indignar com manifesta-
ções racistas. Se não tivesse essa imagem do
criando um efeito de realidade que leva o lei-
tor a indignar-se com o ato racista. 35
UAB/Unimontes - 8º Período

Veja agora na representação a seguir a hierarquização desses diferentes níveis enuncia-


tivos:

Figura 6: Níveis ►
enunciativos
Fonte: BARROS, 2001, p. 75

Barros (2001) utiliza o termo desembreagem em lugar de debreagem, como você pode ver
no esquema apresentado. O conceito, no entanto, é o mesmo. Você continuará a ver, neste traba-
lho, o uso de debreagem, pelo fato de ser o termo mais usual na literatura semiótica.
Por fim, vale ressaltar que, no discurso indireto, não ocorre a debreagem interna, pois a fala
dos atores é incorporada à do narrador. Em relação a essa unidade discursiva, Fiorin (2006, p. 67 e
68) propõe que se distingam duas possibilidades: uma em que se procura enfatizar o conteúdo, o
dito, de forma “objetiva”, chamada variante analisadora do conteúdo, e outra em que se ressaltam
elementos da expressão de modo a caracterizar o autor do discurso que se recria, chamada va-
riante analisadora da expressão.

3.2.2 Categoria de tempo: as coordenadas temporais do discurso

Iniciando o estudo do tempo linguístico, considere, prezado acadêmico, algumas informa-


ções preliminares que podem evitar equívocos. Primeiramente, não confunda com o tempo físico
e, tampouco, com o tempo cronológico: aquele se manifesta, por exemplo, pelo movimento dos
astros, que permite a distinção de dias, anos etc; este, por sua vez, é o resultado de como o ho-
mem se organiza em relação ao primeiro, estabelecendo marcações em relação a acontecimen-
tos e criando calendários.
O tempo linguístico, de outra ordem, é a expressão de um acontecimento situado de acor-
do com coordenadas ancoradas na enunciação ou no enunciado. Essas coordenadas, como você
vai ver em detalhes, são possíveis graças à relação estabelecida entre três momentos: 1) ME =
momento da enunciação; 2) MR = momento de referência (presente, passado e futuro) e 3) MA =
momento do acontecimento, que pode ser concomitante ou não concomitante (anterior e pos-
terior) com o MR (FIORIN, 2006, p. 59-60).
O tempo linguístico apresenta três sistemas temporais. O primeiro desses sistemas é o do
presente, considerado sistema enunciativo em virtude de sua ancoragem no “agora” da enuncia-
ção (o MR é concomitante com o ME). Os outros dois são o do passado e o do futuro, estes consi-
derados enuncivos pelo fato de se ancorarem em marcos temporais pretéritos ou futuros inscri-
tos no enunciado (os MRs são não concomitantes com o ME).
Comece conhecendo o primeiro sistema, composto pelos tempos que têm o presente da
fala como MR, isto é, os chamados tempos enunciativos. São eles: o presente do indicativo, que
indica concomitância em relação ao MR; o pretérito perfeito 1, que é a indicação de anteriorida-
de em relação ao MR; e o futuro do presente, que indica posterioridade em relação ao MR (FIO-
RIN, 2006, p. 59). Veja tais tempos nos exemplos a seguir:

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Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

1. “Estudo Filosofia e Linguística”.


O presente do indicativo expressa que o ato de estudar é concomitante ao MR, que
é concomitante com o ME.
2. “Você fez um bolo saboroso”.
O pretérito perfeito 1 expressa /anterioridade/ (não concomitância) em relação ao
MR, que é concomitante com o ME.
3. “Partirás cedo para o exterior”.
O futuro do presente expressa /posterioridade/ (não concomitância) em relação ao
MR, que é concomitante com o ME.

Você deve considerar ainda a questão aspectual, que envolve os tempos verbais e que torna
o seu sentido ainda mais rico conforme o contexto. Note que o presente do indicativo pode re-
vestir-se de um valor aspectual de pontualidade, quando o acontecimento expresso pelo verbo
não se prolonga, como em “um raio risca o céu”. Esse tempo pode, do mesmo modo, indicar tam-
bém um acontecimento que se prolonga, isto é, um acontecimento marcado pela duratividade,
como o enunciado 1. Ele pode expressar ainda uma iteratividade (repetição), como em “vou ao
cinema aos domingos”, quando o acontecimento se repete ou é habitual. O mesmo presente do
indicativo pode indicar ainda atemporalidade – sendo chamado presente gnômico ou omnitem-
poral –, quando ajuda a expressar uma ideia que se quer ter como verdade, independentemente
do tempo e do lugar; esse é o caso do presente nos provérbios e nas máximas científicas. Repare:
“a terra gira em torno do sol”; “quem tudo quer nada tem”.
Já os tempos enuncivos ancorados em marcos referenciais do passado são quatro. Os que
expressam concomitância em relação ao MR são o pretérito perfeito 2 e o pretérito imperfeito.
Repare, nos exemplos 4 e 5, que ambos se distinguem apenas pelo valor aspectual: pontual, aca-
bado, no caso do primeiro; durativo, inacabado, no caso do segundo. A anterioridade em relação
ao MR é marcada, por sua vez, pelo mais-que-perfeito: tanto na sua forma simples, hoje mais li-
terária, quanto na forma composta. Veja isso no exemplo 6. Por fim, a posterioridade em relação
ao MR é marcada pelo futuro do pretérito simples e composto, conforme você pode observar no
exemplo 7 (FIORIN, 2006, p. 61).

4. “Em 2002, o Brasil conquistou o penta campeonato de futebol”.


5. “Em 2002, o Brasil conquistava o penta campeonato de futebol”.
Esses tempos expressam uma concomitância em relação ao MR passado inscrito no enun-
ciado (em 2002), que, por sua vez, é não concomitante (é anterior) com o ME.
6. “Quando você chegou, ela já saíra” (ou “tinha saído”).
Esse tempo expressa uma não concomitância (anterioridade) em relação ao MR passado ins-
crito no enunciado (“quando você chegou”), que, por sua vez, é não concomitante (é anterior)
com o ME: o ato de sair é anterior ao da chegada do “você”, que ocorre no passado.
7. “Depois daquele dia, voltaríamos diversas vezes a nos encontrar”.
Esse tempo expressa uma não concomitância (posterioridade) em relação ao MR passado
inscrito no enunciado (“depois daquele dia”), que, por sua vez, é não concomitante (é anterior)
com o ME.

O que esse sistema apresenta de especial? Observe que o sistema do pretérito, descrito nas
linhas anteriores, é, por excelência, o conjunto de tempos da narração, pois a história, via de re-
gra, precede o ato de narrar, como explica Fiorin (2006). O autor lembra que o narrador pode
até simular a concomitância da história com o ato de narrar. Esse é o caso de, por exemplo, uma
narração de futebol (“Vágner Love vai levando a bola, passa por um, passa por dois [...]”). Isso,
porém, tem a ver com a embreagem, recurso que, como você verá à frente, neutraliza as diferen-
ças entre os tempos, pessoas e espaços enunciativos e enuncivos. Há ainda o caso das narrativas
proféticas, em que os acontecimentos narrados são vistos como posteriores à narração ( FIORIN,
2006, p. 63-64). Como você pode notar, são casos especiais, pois o sistema do pretérito é o con-
junto de tempos condizentes com a narração.
Outra questão que merece ser realçada é que, como você pode observar nas explicações e
exemplos apresentados, o tempo classificado pelas gramáticas tradicionais como pretérito per-
feito é, na verdade, uma forma que compreende dois tempos, um enunciativo e um enuncivo.
Você deve ter reparado o uso de números para distingui-los, o mesmo que faz Fiorin (2006, p. 61-
62). Observe bem a diferença: o pretérito perfeito 1 é aquele que indica uma anterioridade (não
concomitância) em relação ao MR, que coincide com o próprio presente da enunciação (ME). Se

37
UAB/Unimontes - 8º Período

você afirma: “estudei como um louco”, dá a entender que o ato de estudar ocorre em algum pon-
to anterior ao momento da enunciação. Por isso, esse tempo é enunciativo. Se por outro lado
você comenta: “em 2002, o Brasil conquistou o penta campeonato de futebol”, você usa um MR
inscrito no enunciado: 2002, e a conquista da seleção é concomitante com esse marco tempo-
ral ou com esse MR. Nesse caso, você deve considerar a forma verbal “conquistou”, no enunciado
apresentado, como um caso de tempo enuncivo, um exemplo do pretérito perfeito 2.
Você sabia que no francês, por exemplo, isso é diferente? Essa língua dispõe de formas dis-
tintas para expressar esses dois tempos: o tempo enunciativo é expresso pelo passé composé, en-
quanto o enuncivo, pelo passé simple.
Considere agora os tempos enuncivos do sistema do futuro, isto é, os tempos que usam
um MR futuro. Esse sistema é mais complicado de apreender a princípio porque não apresenta,
no português, formas específicas, precisando ser distinguidos no contexto. Como os nomes dos
tempos não apresentam correspondências com a gramática tradicional, observe atentamente as
relações explicadas a seguir para compreendê-las.
O presente do futuro, que você pode observar no exemplo 8, é o tempo da concomitância
do fato em relação ao MR; a realização da reunião ocorre no dia usado como marco de referência
futuro, 30 de março. Futuro do futuro e o futuro anterior são os nomes dados aos tempos da não
concomitância. O primeiro expressa uma posterioridade em relação ao MR; veja que, no exemplo
9, o ato de enviar é posterior ao recebimento, que serve como marco temporal futuro. O segun-
do, por sua vez, expressa uma anterioridade em relação ao MR; note que, no exemplo 10, o termi-
no do trabalho é futuro, mas ele ocorre antes do termino do ano, marco temporal futuro usado
como referência.

8. “No dia 30 de março, faremos uma reunião”.


A feitura da reunião é concomitante com o MR, 30 de março, queé não concomitante com o
ME.
9. “Depois de receber os documentos, eu os enviarei a você”
O envio é posterior ao MR, que é o recebimento dos documentos. Esse MR é não concomi-
tante com o ME.
10. “No final do ano eu terei terminado todo o trabalho”.
O término do trabalho é anterior ao MR, que é o final do ano. Esse MR é não concomitante com o
ME.

Como você deve ter notado, Todos esses tempos são expressos pela forma denominada, nas
gramáticas tradicionais, como futuro do presente simples, sendo o futuro anterior expresso pela
forma composta.
Encerrando o exame da categoria de tempo, o que se pode falar dos advérbios temporais?
Estes também indicam relações de aproximação/afastamento com a enunciação, sendo, portan-
to, enunciativos ou enuncivos.
Veja que, no caso dos enunciativos, enquadram-se advérbios e locuções adverbiais como
“hoje”, “amanhã”, “ontem”, “há duas semanas”, “daqui a três meses”. É possível compreendê-los
sem confrontá-los com o próprio instante da enunciação? Você pode notar que não. “Amanhã”
é sempre o dia seguinte ao momento da enunciação. Não é possível dizer, no caso do exemplo
11, quando as lojas estarão fechadas a não ser tomando-se o dia da enunciação como referência.
“Daqui a três semanas” é sempre daqui a três semanas do instante da enunciação. O retorno, no
caso do exemplo 12, só pode ser determinado considerando-se três semanas a partir do dia da
enunciação. E assim por diante.

11. “Amanhã as lojas estarão fechadas”.


12. “Daqui a três semanas ele volta de viagem”.

Compare agora os casos acima com os advérbios e locuções adverbiais enuncivos. Neles,
enquadram-se, por exemplo: “então” e “nesse dia”, indicando concomitância em relação a marcos
temporais inscritos no enunciado; “no dia anterior” e “na véspera”, indicando não concomitância (an-
terioridade); “no dia/mês/ano seguinte”, indicando não concomitância (posterioridade), entre outros.
Observe que “a véspera” é sempre o dia anterior a um dia especificado no enunciado; no
exemplo 13, trata-se do dia anterior ao 11 de setembro. “Nesse dia” é sempre a indicação de con-
comitância em relação a um marco temporal já enunciado; no exemplo 14, nesse dia refere-se ao
próprio dia 11 de setembro, apresentado no período anterior.

38
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

13. “No dia 11 de setembro os Estados Unidos sofreram o pior ataque terrorista já visto. Atividades
Até a véspera ninguém poderia suporum ataque tão considerável”. Exercite o que você
A véspera é entendida como o dia anterior a 11 de setembro, que é um marco temporal ins- acabou de estudar,
crito no enunciado. examinando os tempos
14. “O 11 de setembro ficou marcado na história. Nesse dia os Estados Unidos sofreram o empregados na notícia
pior ataque terrorista já visto”. da Folha.com sobre
a condenação de um
Esse dia é entendido como 11 de setembro, marco temporal inscrito no enunciado. jogador por ato racista.
Volte ao texto, releia-o
e procure explicar quais
3.2.3 Categoria de espaço: as coordenadas espaciais do discurso as diferenças entre
o emprego de “con-
denou”, no primeiro
período, e “chamou”,
Você observou, na seção anterior, que o tempo linguístico organiza-se em torno do “agora” no segundo e último
da enunciação. Da mesma forma, o espaço linguístico organiza-se a partir do lugar do “eu” da período. Procure exerci-
enunciação: o “aqui”. Atente-se inicialmente, no que diz respeito à categoria de espaço, para o tar inclusive o uso dos
uso dos pronomes demonstrativos e em seguida para o dos advérbios. termos da semiótica na
No discurso, os pronomes demonstrativos podem, em função dêitica, organizar os espaços sua análise.
enunciativos. Como se dá isso? Veja que “este” indica tudo o que está no espaço do “eu” que pro-
duz o discurso: este livro, esta escola e este país, por exemplo, são respectivamente o livro próxi-
mo do “eu”, a escola e o país em que o “eu” está. Já “esse” indica tudo o que está no espaço do “tu”
a quem o “eu” se dirige, e “aquele”, tudo o que está no espaço do “ele” de quem se fala.
Os demonstrativos podem também, em função anafórica, recuperar elementos anteriores.
Você provavelmente já estudou sobre esses recursos que funcionam como mecanismo de co-
esão textual. “Esse” e “aquele” fazem remissão, respectivamente, a um elemento mais imediato,
mais recente na cadeia discursiva e a um elemento mais afastado, dito mais atrás no discurso
(anáforas). “Este”, por sua vez, aponta para o que se dirá à frente (catáfora).
Do mesmo modo que você viu a atuação dos advérbios temporais na organização do tem-
po linguístico, os advérbios de lugar também demarcam o espaço linguístico. O par “aqui/cá” e o
“aí” organizam a cena enunciativa, demarcando, respectivamente o lugar do “eu” e do “tu”. O “lá”
e o “ali”, por outro lado, apontam para um espaço fora da cena enunciativa, o primeiro indicando
um distanciamento maior que o segundo. Há ainda a possibilidade de se referir a um outro espa-
ço fora da cena da enunciação com o “acolá”.
Como exemplo de exploração dessa organização espacial pelos advérbios, lembre-se da
célebre “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias. Nela, o narrador compara dois espaços definidos
apenas em relação ao espaço do enunciador: um “aqui” e um “lá”. O “aqui” é o país estrangeiro,
de onde o narrador fala, ao passo que o “lá”, fora da cena enunciativa, refere-se à terra natal, local
de onde o narrador está afastado. O confronto feito no poema, que revela a saudade do país de
origem e de sua superior beleza, se dá sem que seja necessário explicitar e definir os lugares, pois
os advérbios de lugar observados ordenam o espaço linguístico-discursivo a partir daquele que
constrói o seu discurso.

3.2.4 Embreagem: novos efeitos de sentido

Explicadas as possibilidades de instauração de pessoa, tempo e espaço pelo recurso da


debreagem, você passa agora a estudar outro mecanismo da enunciação: a embreagem. Você
observou que a debreagem pode ser enunciva, caso projete um ele/lá/então no enunciado, ou
enunciativa, no caso de projetar um eu/aqui/agora semelhante ao da enunciação. A embreagem,
por sua vez, é um recurso capaz de neutralizar as oposições entre as pessoas, os tempos e os es-
paços. É por essa razão que ela se define como uma negação do enunciado e um retorno à enun-
ciação pela suspensão das oposições entre as formas enuncivas e as enunciativas (BARROS, 2001,
p. 77). Veja os exemplos a seguir que você entenderá o que foi dito.
Uma mãe que se dirige ao filho dizendo “a mamãe amarra o sapato para você” é um exem-
plo, como mostra Barros (2001, p. 77), de uma suspensão da oposição entre as pessoas “eu” e
“ele(a)” em uma embreagem enunciva de pessoa – enunciva porque o termo substituinte é o
que simula afastamento da enunciação. O enunciador Pelé, ao dizer “o Pelé é diferente do Edson”,
como frequentemente o faz, realiza a mesma embreagem enunciva de pessoa pelo uso da tercei-
ra pessoa em lugar da primeira.

39
UAB/Unimontes - 8º Período

Para saber mais Você, provavelmente, conhece o chamado presente histórico. Esse é um exemplo de embre-
Os conceitos que você agem enunciativa de tempo – enunciativa porque o tempo substituinte é o presente, do sistema
viu aqui podem ser enunciativo. Quando um enunciador afirma que “em 2002, o Brasil conquista o penta campeona-
mais bem examinados to”, deixando de usar o pretérito perfeito 2, do sistema enuncivo, em favor do presente do indica-
e estudados em um im- tivo (do sistema enunciativo), promove uma suspensão das oposições entre as formas de tempo
portante livro de José
Luiz Fiorin: “As astúcias enunciativas e as enuncivas.
da enunciação”. Nele, o Já a embreagem de espaço, mais rara, pode se dar, por exemplo, se alguém diz ao outro:
autor demonstra como “Você, lá, explique o que está fazendo no meu quintal”. O “aí”, espaço do “tu/você”, é preterido
os procedimentos em favor do “lá”, espaço do “ele”. Mais uma vez, a enunciação promove uma suspensão da oposi-
ligados à instância da ção entre os espaços do “tu/você” e do “ele”.
enunciação geram efei-
tos de sentido diversos Por que observar o uso da embreagem é importante para a análise? Em todos os casos apre-
tanto pelo recurso da sentados, você pode perceber que a embreagem dá relevo aos elementos projetados no discur-
debreagem quanto da so por promover efeitos de sentido, seja de distanciamento (nos exemplo de Pelé e do invasor do
embreagem. quintal), seja de aproximação (no caso do presente histórico) em relação à enunciação.

3.3 Sintaxe discursiva: o trato da


argumentação
Depois de ter estudado os procedimen- faz isso? Projetando um narrador em tercei-
tos de instalação de tempos, espaços e pes- ra pessoa que se refere a espaços do mundo
soas no discurso pela instância da enunciação real (Farroupilha e Porto Alegre) e, além disso,
descritos anteriormente, agora você vai estu- criando a unidade discursiva chamada de dis-
dar outros elementos examinados no com- curso direto, que leva o enunciatário a “ouvir”
ponente sintáxico do nível discursivo. Você do jogador os xingamentos de cunho racista
conhecerá as relações estabelecidas entre o contra o juiz de futebol. Perceba que tudo isso
enunciador e o enunciatário, entendidos como serve, em última instância, para que o leitor,
desdobramentos do sujeito da enunciação em sua interpretação do discurso, julgue-o
que desempenham os papéis actanciais de como sendo verdadeiro e aceite o contrato ve-
destinador e destinatário do objeto discurso ridictório proposto (BARROS, 2001, p. 94).
(BARROS, 2001, p. 92). Trata-se, em outras pa- Observe ainda que o fazer persuasivo dos
lavras, da abordagem da argumentação, que discursos não se prende à verdade propria-
compreende todo e qualquer procedimen- mente dita, visto que não há discursos neces-
to que o enunciador utiliza para persuadir o sariamente verdadeiros ou falsos. A verdade
enunciatário a aceitar o seu discurso. ou a falsidade dos discursos são efeitos de
Veja que, entendida desse modo, a argu- sentido produzidos por escolhas do enuncia-
mentação não é algo próprio de alguns discur- dor com o objetivo de levar o enunciatário
sos, mas de todos eles. Você pode observar a crer e a aceitar o discurso produzido. Essa
que alguns discursos, como os da publicidade, perspectiva é ressaltada, em Semiótica, pelo
buscam explicitamente persuadir o enuncia- uso da expressão “dizer-verdadeiro”, que
tário; já outros se mostram mais informativos, afasta a ideia de verdade discursiva (BARROS,
como os discursos científicos. Porém, como 2001, p. 94).
explica Fiorin (2006, p. 75), “o ato de comuni- Tome como exemplo o episódio em que
cação é um complexo jogo de manipulação o então candidato do PSDB à Presidência, José
com vistas a fazer o enunciatário crer naquilo Serra, durante caminhada no Rio de Janei-
que se transmite. Por isso, ele é sempre persua- ro, em 2010, foi atingido na cabeça por uma
são”. Tome como máxima, por isso, que comu- bolinha de papel que teria sido lançada por
nicar é sempre argumentar, e leve em conside- militantes petistas. Você se lembra do caso?
ração que, toda vez que se comunica, lança-se Apesar de setores da mídia insistirem em dar
mão de recursos que legitimem o discurso que relevo ao fato, buscando convencer o enun-
se produz e levem à sua aceitação pelo outro. ciatário a respeito da seriedade da “agressão”,
Observe novamente o texto da Folha. a interpretação, de modo geral, não foi nesse
com, já utilizado. Nele o enunciador procu- sentido. Esse dizer-verdadeiro foi tido como
ra convencer o enunciatário a aceitar como falso, haja vista que a situação virou caso de
verdadeiro o discurso produzido. Como ele chacota para o político em questão.

40
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

Você pode ver outro exemplo no texto a seguir. Ele demonstra que, não fosse a constatação de
que não existem discursos necessariamente verdadeiros ou falsos, seria preciso aceitar como verda-
deiro todo discurso que criasse efeito de sentido de realidade e de verdade pelo uso de expedien-
tes típicos das matérias jornalísticas (como os que você viu na notícia da Folha.com). Isso incluiria até
mesmo aqueles que se valem disso para brincar, noticiando fatos absurdos. A notícia a seguir, que é
encontrada em um site que apresenta ainda uma mulher branca segurando uma criança negra, é um
caso que evidencia que os discursos se valem de efeitos de sentido de verdade ou falsidade.

Um casal branco americano teve um bebê negro e a mulher diz que engravi-
dou assistindo a um filme pornô 3D. O pai da criança, o soldado Erick Jhonson,
estava há um ano servindo numa base militar no Iraque e, quando voltou para
casa encontrou um bebê negro. Sua mulher, Jennifer Stweart, de 38 anos, disse
a ele que a criança foi concebida enquanto ela assistia a um filme pornô em
três dimensões.
“Não vejo por que desconfiar dela. Os filmes em 3D são muito reais. Com a tec-
nologia de hoje tudo é possível”, disse Erick, que registrou a criança.
Jennifer afirmou que foi a um cinema pornô com as amigas em Nova York. Ela
conta que não costuma assistir a filmes pornôs e que só foi dessa vez para ver
como ficavam os efeitos em 3D. A criança, segundo ela, se parece com o ator
negro do filme. “Um mês depois de ver o filme eu comecei a sentir enjôos e o
resultado está aí. Vou processar o cinema e os produtores. Ainda bem que meu
marido acreditou em mim. Meu casamento podia estar em risco. Mas ele sabe
que eu sou fiel”, disse.
Disponível em:
http://www.uhull.com.br/05/05/mulher-engravida-vendo-filme-porno-em-3d/.
Acesso em 19 ago. 2011.

A argumentação é um terreno extremamente complexo, não podendo ser estudada de for-


ma exaustiva nos limites deste trabalho. Por isso você vai estudar aqui, de forma breve, apenas
alguns procedimentos argumentativos destacados por Fiorin (2006) e Abreu (2008), além de al-
guns aplicados no estudo de Lara (2004).
Entre esses recursos estão as chamadas figuras retóricas, que você estudará aqui observan-
do-se a distinção feita por Fiorin (2006). O autor as separa entre aquelas que estão ligadas ao
componente sintáxico do nível discursivo e aquelas que estão ligadas ao componente semântico
desse patamar. Qual é a diferença entre elas?
As primeiras, que você estudará de imediato, estão na dependência de relações estabele-
cidas entre a enunciação e o enunciado, o que se examina na sintaxe discursiva. As outras – en-
tre elas, a metáfora, a metonímia, a antítese e o oximoro – têm a ver com os diferentes modos
de operar no discurso com temas e figuras, elementos da semântica discursiva. Por esse motivo,
apesar de ligadas à argumentação, você as estudará mais à frente, no exame do componente se-
mântico do nível discursivo.

3.3.1 Operações da enunciação e alguns recursos argumentativos

Entre as figuras retóricas que podem ser examinadas pela sintaxe discursiva como dispositi-
vos argumentativos, destacam-se a ironia, a lítotes, a preterição, a reticência, o eufemismo e a hi-
pérbole. O funcionamento dessas figuras retóricas é explicado por Fiorin (2006), de forma extre-
mamente didática, a partir de diferentes relações de oposição estabelecidas entre enunciado e
enunciação. Você não terá dificuldade de entendê-las. As quatro primeiras expressam oposições
categóricas, em que há afirmação e negação propriamente ditas, enquanto as duas últimas apre-
sentam oposições graduais, em que entram em jogo operações de atenuação e intensificação.
A ironia é definida geralmente como o ato de dizer o contrário do que se pensa. Veja
que, relacionando essa definição às relações de oposição entre enunciado e enunciação,
você pode notar que ela ocorre “quando se afirma no enunciado e se nega na enunciação”
(FIORIN, 2006, p. 79). Essa definição parece mais precisa pelo fato de ampliar as possibili-
dades de ocorrência da ironia, pois não é verdade que ela pode ser gerada a despeito do que
pensa o produtor do discurso?
Como exemplo de ironia, observe o texto de Drummond a seguir. No nível do enunciado,
você pode notar uma apreciação positiva em relação à cidade de Montes Claros, o que, no entan-
to, é negado pela enunciação. A oposição entre o enunciado e a enunciação se dá pelo fato de o
narrador, ao reconhecer o desenvolvimento industrial e urbano da cidade, apontar as consequ-
ências sociais negativas do processo: na ocasião, cinco favelas.
41
UAB/Unimontes - 8º Período

Que beleza, Montes Claros.


Como cresceu Montes Claros.
Quanta indústria em Montes Claros.
Montes Claros cresceu tanto,
ficou urbe tão notória,
prima-rica do Rio de Janeiro,
que já tem cinco favelas
por enquanto, e mais promete.
(ANDRADE, 1985, p. 127))

A preterição, por sua vez, expressa a mesma relação de oposição entre enunciado e enun-
ciação observada na ironia. Qual é diferença entre elas? Nesta (na ironia) a negação do enuncia-
do pela enunciação é feita de forma implícita, enquanto naquela isso ocorre de forma explícita.
Na preterição, o “enunciador afirma textualmente que não pretende dizer o que disse, simula não
querer dizer o que, contudo, disse claramente” (FIORIN, 2006, p. 82).
Outras figuras retóricas que expressam oposições categóricas entre enunciado e enunciação são
a lítotes e a reticência. A primeira ocorre quando se nega no enunciado e se afirma na enunciação
para se obter, como efeito, a atenuação de uma dada ideia (Fiorin, 2006). Você, provavelmente, já
viu alguém dizer de outro que este “não é nada bobo” em lugar de “é esperto”; que ele “não é nada
modesto” em vez de “que é presunçoso”. Estes são casos de lítotes. A segunda, de sua parte, expressa
a suspensão do enunciado em favor da enunciação, que diz o que se omitiu textualmente.
Há ainda o caso das figuras que derivam de oposições entre o enunciado e a enunciação no
que diz respeito a um jogo entre atenuação e intensificação: o eufemismo e a hipérbole. Observe
que aquele ocorre quando se atenua no enunciado e se intensifica na enunciação; esta, quan-
do se intensifica no enunciado e se atenua na enunciação. Tome como exemplo de eufemismo
a definição de Quintana (2003, p. 88) para canibalismo: “maneira exagerada de apreciar o seu se-
melhante”. Veja que, no nível do enunciado, a ideia é mais atenuada, por assim dizer, em relação
àquilo que, na prática, a enunciação afirma.

3.3.2 O recurso argumentativo da ilustração

Além das figuras retóricas abordadas, há o recurso da ilustração, que consiste em dar
exemplo(s) que valide(m) uma afirmação geral (FIORIN, 2006, p. 75). Você pode observar um
exemplo singular do uso desse artifício no “Sermão da Primeira Dominga da Quaresma ou o Ser-
mão das Tentações”, de Padre Vieira. Nesse sermão, o jesuíta barroco busca, pela reflexão em tor-
no das tentações de Cristo, convencer os colonos do Maranhão a aceitar, para não perder a alma,
a libertação dos índios cativos determinada por Portugal e a buscarem, respeitando tal determi-
nação, uma forma de manter os índios ainda como mão de obra local. Para mostrar que os colo-
nos não deviam perder a alma por um preço tão baixo – a manutenção da servidão dos índios
– Vieira recorre ao exemplo do demônio, que ofereceu a Cristo todos os reinos do mundo por um
ato de adoração. Veja como o Padre explora de forma persuasiva o inusitado exemplo:

[...] o demônio, como é espírito, e a nossa alma também espírito, conhece mui-
to bem o que ela é; e como a conhece, estima-a, e estima-a tanto, que do pri-
meiro lanço oferece por uma alma o mundo todo; porque vale mais uma alma,
que todo o mundo. Vede se tentações do demônio que nos servem de ruína,
podem nos servir de exemplo. Aprendamos sequer do demônio a avaliar e a
estimar nossas almas. Fique-nos, cristãos, que vale mais uma alma que todo o
mundo. É tão manifesta verdade esta, que até o demônio, inimigo capital das
almas, a não pôde negar (VIEIRA, 2007, p. 27).

O recurso da ilustração é usado por Vieira ainda outras vezes no mesmo sermão. Mais à fren-
te no discurso, o Padre Jesuíta, para mostrar o risco de se recusar a libertar os índios escravizados
por apego aos privilégios e mordomias que eles proporcionam, apresenta vários exemplos que
sustentam a ideia de que o contrário é que é correto aos olhos de Deus. Observe:

A samaritana ia com um cântaro buscar água à fonte, e foi tão santa como sa-
bemos. Jesabel era mulher de el-rei Achab, rainha de Israel, e foi comida de
cães, e sepultada no inferno, porque tomou a Nabot uma vinha, que não lhe
chegou a tomar a liberdade. [...] Melhor que nós era Adão. E tinha ofendido a
Deus com menos pecados, e devia ao trabalho de suas mãos o bocado de pão
que metia na boca. Filho de Deus era Cristo, e ganhava com um instrumento

42 mecânico, o com que sustentava a vida, que depois havia de dar por nós (VIEI-
RA, 2007, p. 36).
3.3.3 Outros recursos argumentativos

Outro recurso argumentativo que você Vieira, no sermão reproduzido anterior-


deve considerar é o emprego das pergun- mente, também se mostra na obrigação de
tas retóricas ou as afirmações disfarçadas de denunciar o pecado dos colonos do Maranhão
questões. Lara (2004), em sua investigação com relação ao escravismo indígena que pro-
acerca do discurso dos professores de portu- moviam contra as ordens de Portugal. Você
guês sobre a língua portuguesa e sobre o seu pode perceber isso um pouco antes de usar as
ensino, observou o uso desse recurso argu- perguntas retóricas observadas anteriormen-
mentativo: “um trabalho [o ensino de portu- te, quando ele afirma: “houve pessoas, a que
guês] mais voltado para a reflexão e a pesqui- não pude perder o respeito, que me obriga-
sa que se sobreponha ao ensino exaustivo da ram a que quisesse pregar na cidade esta Qua-
gramática. Mas, e o vestibular?” (LARA, 2004, p. resma” (VIEIRA, 2007, p. 32).
93). Veja que, ao final da sua fala, o professor Há entre os recursos argumentativos
ou a professora, sob a forma de uma pergunta, também as chamadas definições argumenta-
apresenta um típico argumento em favor do tivas ou expressivas. Elas são assim chamadas
ensino de língua conservador, tradicional. porque dependem do posicionamento adota-
No sermão de Vieira que você viu há do. Muito apropriadamente um dos textos de
pouco, também são exploradas, em diversas Quintana (2003), autor que abusou das defini-
passagens, as perguntas retóricas. Observe ções expressivas, afirma que “uma definição
que após dar os exemplos da samaritana e de apenas define os definidores” (QUINTANA,
Jesabel, vistos na passagem destacada ante- 2003,p. 98). “A esperança é um urubu pintado
riormente, o orador pergunta à plateia: “qual de verde” (QUINTANA, 2003,p. 15) e “o pro-
é melhor, levar o cântaro à fonte, e ir ao céu gresso é a insidiosa substituição da harmonia
como a samaritana; ou ser senhora, servida e pela cacofonia” (QUINTANA, 2003,p. 2) são al-
rainha, e ir ao inferno como Jesabel?” (VIEIRA, gumas das definições expressivas que revelam
2007, p. 36). Claro está que não é preciso res- pontos de vista de Quintana como enuncia-
ponder à pergunta do orador; ela, na verdade, dor. Outro exemplo interessante de definição
valida a ideia de que os colonos do Maranhão expressiva pode ser encontrado em Abreu
não deveriam, por apego a certas mordomias, (2008, p. 56-57); ali, a família, em função da fal-
se recusar a libertar os índios escravizados. ta de comunicação de seus membros, é defini-
Em outra passagem do sermão, o Padre, para da como “um conjunto de pessoas que têm a
mostrar que não poderia deixar de apontar os chave de uma mesma casa”.
pecados dos colonos do Maranhão, que es- Ainda um outro recurso argumentativo
cravizavam indígenas, pergunta (argumenta): que pode ser utilizado pelo enunciador no seu
“qual é melhor amigo: aquele que vos avisa do projeto de persuadir o enunciatário é o argu-
perigo ou aquele que por vos não dar pena, vos mento de autoridade. Em que ele consiste? Na
deixa perecer nele? Qual o médico mais cristão: apresentação de frases e expressões atribuídas
aquele que vos avisa da morte ou aquele que a experts, a escritores, a pensadores, pelo recurso
por vos não magoar, vos deixa morrer sem Sa- da debreagem interna ou de segundo grau, de
cramentos?” (VIEIRA, 2007, p. 32). que já se falou aqui (LARA, 2004, p. 92).
Outra forma de promover a defesa das Tome novamente como exemplo Vieira
ideias e persuadir o enunciatário é o que se e seu “Sermão da Primeira Dominga da Qua-
pode chamar de provas centradas na no- resma”, também chamado de “Sermão das
ção do dever, recurso que, como explica Lara Tentações”. Ali você pode observar que Viei-
(2004, p. 87), dispensa a elaboração de provas ra defende, em certo trecho, a ideia de que
específicas. A autora também identificou esse se vendem baratas as almas ao demônio. Diz
procedimento argumentativo no discurso dos ele: “não é necessário oferecer mundos. Basta
professores de português, como na seguinte acenar o diabo com um tujupar de pindoba, e
fala: “preciso e me sinto na obrigação de ter dois tapuias; e logo está adorando com ambos
sempre um português correto diante das nor- os joelhos” (VIEIRA, 2007, p. 32). Como ele em-
mas que eu ensino tanto na linguagem oral prega o argumento de autoridade? Citando as
como escrita” (LARA, 2004, p. 87). seguintes palavras de Sêneca para defender a
O mesmo se percebe no discurso do Se- ideia acima: “não há coisa para conosco mais
nador Magno Malta, que você viu anterior- vil que nós mesmos” (VIEIRA, 2007, p. 32). Em
mente neste trabalho. Você notou como ele outra passagem, insistindo que o apego às
se coloca no dever de combater, atacar o ma- mordomias e privilégios que o escravismo in-
terial educativo do MEC contra a homofobia? dígena propiciava aos colonos do Maranhão
“Eu recebi do meu Estado, aliás, da minha não deveria impedir a libertação dos cativos,
própria consciência, uma missão para cumprir
com o Brasil”, diz ele.
conforme ordem de Portugal, Vieira usa no-
vamente o argumento de autoridade: “não há 43
Para saber mais mais cruel tirano que a pobreza e a necessi- nas relações entre enunciador e enunciatário
Você pode aprofundar dade; e padecer às mãos deste tirano, por não passíveis de exame na sintaxe discursiva, cuja
o seu conhecimento ofender a Deus, também é ser mártir, diz Santo descrição se encerra aqui. Você ainda estudará
sobre a argumenta- Agostinho” (VIEIRA, 2007, p. 41). outros recursos argumentativos nesta discipli-
ção pela leitura de “A A argumentação, como você já viu, é um na. Trata-se daqueles que, por mobilizarem re-
nova retórica. Tratado campo extremamente complexo e não pode cursos semânticos, serão abordados de forma
da argumentação”,
de Chaïm Perelman e ser estudada de forma exaustiva no âmbito indireta pelo exame dos elementos relativos
Lucie Olbrechts-Tyteca. deste trabalho. Os procedimentos argumen- ao componente semântico do nível discursivo
Esse livro, que foi tativos que foram apresentados a você ante- do percurso gerativo de sentido. É esse com-
inserido nas referências riormente representam, por isso, apenas algu- ponente que você começa a estudar na seção
suplementares deste mas das estratégias de persuasão observadas seguinte.
caderno, é talvez o mais
representativo sobre
o tema e, portanto,

3.4 Semântica discursiva: os temas,


indispensável para
quem quiser se apro-
fundar no universo da

as figuras e as isotopias
argumentação. Trata-se
de uma obra densa,
difícil e extensa, mas o
esforço de estudá-lo a
fundo certamente vale
a pena. No componente semântico do nível discursivo, “examinam-se os temas, as figuras e as iso-
topias, elementos que concretizam as estruturas do nível anterior (o narrativo)” (LARA; MATTE,
2009, p. 69). O que quer dizer cada um desses conceitos? As isotopias serão examinadas mais à
frente. Com os dois primeiros termos você já deve estar familiarizado.
Temas são investimentos semânticos que não remetem ao mundo natural, mas auxiliam, em
razão de sua natureza puramente conceptual, na interpretação da realidade; figuras, por outro
lado, remetem a elementos do mundo natural – ou de um mundo construído como tal (FIORIN,
2006, p. 91).
Levando em consideração os recursos dos temas e das figuras, você pode inferir que há, no
nível discursivo, duas possibilidades de concretização do sentido: a tematização e a figurativi-
Glossário zação. Elas se ligam, por sua vez, a dois diferentes tipos de textos que refletem duas formas de
Isotopia: é um termo abordar/construir a realidade: 1) os temáticos, que procuram explicar, justificar a realidade; e 2)
emprestado da Física os figurativos, que criam um simulacro do mundo, produzindo, dessa forma, efeitos de realidade
que designa em semi- ou de referência, como explica Fiorin (2006, p. 91).
ótica a recorrência de Veja os exemplos a seguir, nos quais você pode observar sentidos comuns, apesar das dife-
certos traços de sentido
que garantem a coe-
renças evidentes entre os textos. Eles podem ajudá-lo a entender a particularidade de cada uma
rência semântica de um dessas duas formas de construir o texto.
texto ou de parte dele.
A isotopia é aquilo, por O bicho
isso, que assegura um Vi ontem um bicho
plano de leitura para os Na imundície do pátio
textos. Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
(BANDEIRA, 1993, p. 201-202)

A pobreza pode ser entendida em vários sentidos, principalmente:


• Carência material tipicamente envolvendo as necessidades da vida cotidiana
como alimentação, vestuário, alojamento e cuidados de saúde. Pobreza neste
sentido pode ser entendida como a carência de bens e serviços essenciais.

Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Pobreza. Acesso em 20 ago. 2011.

Observe que a “dimensão figurativa da significação [...] é a do imediato acesso ao sentido”;


aquela que dá ao leitor ou espectador “o mundo a ver, a sentir, a experimentar” (Bertrand,
2003, p. 29). Isso é possível porque as figuras discursivas são “determinadas por traços ‘sensoriais’,
que concretizam e particularizam os discursos abstratos” (BARROS, 2001, p. 117). No poema “O
bicho”, que traços sensoriais são “acionados” em toda a cadeia discursiva? A visão, com termos

44
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

como “vi”, “gato”, “cão”, “rato”; o tato; com “catando comida”; o paladar, com “engolia”; o olfato, com
“cheirava”. Note que esses recursos fazem com que elementos do mundo natural sejam reconhe-
cidos, dando uma impressão de realidade ou, ainda, criando um simulacro do real.
O poema de Bandeira, portanto, ao abordar a questão da pobreza, o faz de forma predo-
minantemente figurativa. Usando da impressão de realidade que as figuras discursivas criam, o
enunciador toma a pobreza como algo que leva o homem a uma condição de animalidade, con-
dição esta em que o instinto e a necessidade mais elementar se sobrepõem à razão e a preocu-
pações com a higiene e manutenção da saúde.
Enquanto o poema põe o leitor diante de um quadro de pobreza, o que ocorre no segundo
texto? Ideias similares são apresentadas, mas note que a abordagem da questão é feita de forma
abstrata, sendo o texto, por isso, predominantemente temático. Nele, se explica um conceito abs-
trato com recursos conceituais; a pobreza é compreendida, sobretudo, como carência de bens,
de serviços, de cuidados. Como você vê, tudo o que é explicado pelo texto da enciclopédia é “vis-
to” na cena descrita pelo narrador de “O bicho”.

3.4.1 A relação entre figuras e temas

Em Semiótica, a categorização concreto/abstrato, que permite a definição de temas e figu-


ras, não se aplica apenas a substantivos, como o fazem as gramáticas escolares. Fiorin (2006, p.
91) explica que concreto e abstrato não são termos polares, mas termos que permitem a cons-
tituição de uma gradação. É essa noção de gradação envolvendo a oposição concreto/abstrato
que permite aplicá-la a todas as palavras lexicais. Por essa razão, na explicação sobre o poema de
Bandeira, você viu termos como “engolia”, “vi”, “cheirava”, todos eles verbos, tratados como figuras
discursivas.
Você já pode notar, ainda, pela explicação do texto “O bicho”, que não há textos apenas fi-
gurativos, pois as figuras necessariamente remetem a temas; todos os discursos contêm uma te-
matização de estruturas narrativas, quer haja o posterior processo de figurativização ou não. É
importante que você atente para isso, porque a compreensão dos textos predominantemente
figurativos, como os romances, os contos, os mitos etc., depende da apreensão dos temas que
subjazem à figurativização (Bertrand, 2003, p. 213).
Para que você tenha uma melhor compreensão das relações explicitadas no parágrafo ante-
rior, veja a seguir a letra da canção “Passional”, de Vander Lee.

Passional
O samba rolava solto pelas tantas da manhã,
Eu posava de passista, e ela minha cortesã.
Eis que chega o sambista de uma escola campeã,
Ela me deixou na pista pra bancar a anfitriã.
Rolavam Noel, Cartola, Paulinho da Viola e coisa e tal,
Mas ela pôs um balde de água fria no meu carnaval.
Girando feito donzela, nos passos do meu rival,
Eu que não sou de balela, fiz um samba passional.
Olha a folga dessa nega; o que ela faz comigo
Pra sorte dela sou de paz, não crio caso, não brigo
Senão eu rodava a baiana
Punha ponto final
E um de nós dois ia parar no hospital
Ô, nega
Isso não se faz, ô Nega,
Também sou sambista de valor.
Mas agora, pra mim chega
Juro por Deus, Nosso Senhor.
Na Avenida da Paixão
Meu peito não desfila mais,
Tu serás porta-bandeira
Que eu vou pra Minas Gerais.
(Vander Lee, 1999, s/p).

A letra de “Passional” destaca dois percursos narrativos: o da performance e o da sanção. O


percurso da manipulação acha-se pressuposto em razão da implicação que rege a organização
do esquema narrativo canônico. Você estudou a organização narrativa na unidade 2, que pode
ser relida em caso de dificuldade. Veja que, no percurso da performance, o sujeito de fazer é a

45
UAB/Unimontes - 8º Período

“nega”, sujeito esse que realiza um fazer contrário aos interesses do destinador-manipulador, que
coincide com o narrador. Por isso, ela é julgada de forma negativa na etapa posterior: a sanção.
No nível discursivo, como você pode ver, o percurso da performance é tematizado como trai-
ção amorosa, o que justifica e explica figuras como “me deixou na pista”/“bancar a anfitriã”/“pôs
um balde de água fria no meu carnaval”/“Girando feito donzela, nos passos do meu rival”. Já o
percurso da sanção é tematizado como o rompimento, tema esse que é expresso, sobretudo,
pela figura “vou pra Minas Gerais”. Note que os percursos narrativos se convertem em percursos
temáticos, que podem ser convertidos ainda em percursos figurativos, processos observados na
letra estudada.
Veja agora outro caso, o texto “Noturno”, de Mário Quintana.

Apenas, aqui e ali, uma janelinha de arranha-céu ... Perdida ... Enquanto, do
fundo do único terreno baldio, um grilo insiste em transmitir, na sua frágil Mor-
se de vidro, não se sabe que misteriosa mensagem às estrelas ausentes (QUIN-
TANA, 2003, p. 9).

Você notou como no texto duas figuras destoam da paisagem urbana construída em torno
da figura do arranha-céu? Essas figuras destoantes são o único terreno baldio e o insistente grilo.
Nesse cenário, há ainda figuras como estrelas ausentes e as esparsas janelas nos arranha-céus
que dão a ideia de isolamento, além de figuras que remetem à ausência de comunicação/diá-
logo: transmitir misteriosa mensagem/Morse. A que remetem todas essas figuras? Elas concreti-
zam, na forma de um percurso temático-figurativo, a solidão nas metrópoles. Entendeu, prezado
acadêmico, a necessidade de depreender, em textos figurativos, os temas subjacentes aos per-
cursos criados pelas figuras? É por isso que Fiorin (2006, p. 97 ) diz que “ler um percurso figurati-
vo é descobrir o tema que subjaz a ele”.
Observe ainda que o relevante não são as figuras isoladas, mas as relações que elas apresen-
tam, o encadeamento delas em percursos figurativos. As figuras arroladas nas análises anteriores
apenas passam a ter sentido quando relacionadas ao tema que elas concretizam: a traição e o
rompimento, na letra de Vander Lee, a solidão nas metrópoles, no texto de Quintana.
Neste momento do trabalho, é oportuno lembrar-lhe, prezado acadêmico, o que se disse
anteriormente acerca da ideologia. Como lhe foi adiantado na unidade 1, esta se manifesta de
forma privilegiada no nível dos temas e figuras (na semântica do discurso), investimentos semân-
ticos que concretizam as estruturas Semióticas mais abstratas (FIORIN, 2006, p. 106-107). Agora
que você entende os conceitos de tema e figura, fica mais fácil entender o que foi dito naquela
unidade.
Quantas diferentes visões de mundo ou ideologias podem ser veiculadas por, por exemplo,
uma oposição como /liberdade/ versus /dominação (opressão ou coerção)/? Essa categoria do ní-
vel fundamental pode ser concretizada pelo tema do consumo, construído por figuras que deem
a ver a propriedade sobre um carro potente, capaz de levar o proprietário a todos os lugares aos
quais desejasse ir. Pode ser concretizada como amplos direitos civis e políticos em um governo
democrático, em oposição a governos autoritários. Pode ainda referir-se à questão econômica;
a liberdade no discurso burguês representa a não interferência (/dominação/) do Estado, a livre-
-iniciativa, a liberdade para produzir, comprar, vender.
Note, por fim, que a ideologia de uma determinada classe ou de um determinado tempo,
portanto, determina, em grande medida, os temas e as figuras que concretizam, em um dado
discurso, as estruturas Semióticas mais abstratas.

3.4.2 A isotopia

Abordados os temas e as figuras, você passa agora a conhecer a isotopia, nome dado à reite-
ração, redundância, repetição, recorrência de traços semânticos que garantem a coerência de um
texto (BARROS, 2001, p. 124).
Considere novamente o poema de Bandeira, “O bicho”, apresentado anteriormente. Ali há
uma recorrência de traços sêmicos da animalidade, como “bicho”, “gato”, “cão”, “rato”, “engolia com
voracidade” (esta por remeter à forma como os animais se alimentam). Note que a figura “ho-
mem”, da isotopia da humanidade, inclusive destoa da isotopia predominante (a da animalida-
de), o que gera sentido por levar o leitor a perceber o ponto de vista do narrador, segundo o qual
a pobreza animaliza os homens que dela padecem.

46
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

Você pode tirar duas conclusões do exemplo acima: a coerência semântica é estabelecida Glossário
pela isotopia; por outro lado, uma dada isotopia pode ser quebrada ou a ela pode(m) opor-se ou Traços sêmicos: de-
aliar-se outra(s) de modo que se produzam efeitos de sentido diversos: de crítica, de humor, de signam elementos com-
estranhamento etc. posicionais do sentido.
Observe isso no exemplo a seguir. Quando alguém diz que “a Igreja vem perdendo seus fi- Os traços sêmicos de
éis”, seu discurso apresenta uma reiteração de traços sêmicos da isotopia religiosa: “Igreja” e “fi- homem, por exemplo, é
/animado humano/; de
éis”, o que dá a esse enunciado uma coerência semântica. “Quebrar” a isotopia religiosa nesse animal /animado não
caso representa quebrar a coerência semântica, o que pode resultar em algo incoerente ou gerar humano/; de objeto
determinados efeitos de sentido. O que aconteceria se alguém dissesse: “a Igreja vem perdendo /não animado não
seus clientes”, como anotado em coleções das chamadas pérolas do vestibular? Note que haveria humano/ e assim por
a introdução de um termo da isotopia econômica, o que pode ser interpretado como uma crítica diante.
ao interesse da Igreja por dinheiro (quer tenha sido esta a intenção do produtor do texto ou não).
A noção de isotopia ajuda muito a entender o funcionamento de gêneros humorísticos,
como as piadas, já que elas operam com efeitos de sentido relacionados, em geral, à existência
de duas isotopias concorrentes. Veja, por exemplo, a piada a seguir.

A moça, no avião, vomita sem parar. Um passageiro pergunta:


– Foi comida?
Ao que a mãe prontamente responde:
– Foi, mas já vai casar.

Nessa piada, observa-se uma reiteração de traços sêmicos que remetem à isotopia alimen- Atividades
tar: “vomita” e “comida”. Essa isotopia leva a uma leitura inicial que é interrompida pela fala da
mãe, que inicia um outro plano de leitura construído por outra isotopia, a sexual. Essa isotopia é Volte ao texto “Passio-
nal”, de Vander Lee, que
observada a partir da figura “casar”, mas já estava prevista na figura “foi comida”, que permite tan- você leu anteriormente
to uma interpretação do ponto de vista alimentar (trata-se comida/alimento que fez mal), como nesta Unidade. Você
pelo viés sexual, por poder indicar a prática de relação sexual. deve ter notado que
Além das piadas, o discurso publicitário costuma explorar bastante a articulação de mais de o texto é marcado por
uma isotopia. Tome como exemplo o slogan do Shopping Oiapoque, um centro de vendas popu- um efeito de sentido de
humor. Sua tarefa agora
lar criado para abrigar antigos vendedores ambulantes de Belo Horizonte: “Shopping Oiapoque, é explicar a geração
cada vez mais legal”. Note a ambiguidade do termo “legal”. Esse vocábulo se permite ler, em be- desse efeito de sentido
nefício do discurso construído, em duas isotopias diferentes: pode qualificar o shopping como de humor a partir da
bom, ótimo, sem alterar a isotopia inicial – a econômica (a figura do shopping contém traços sê- noção de isotopia.
micos dessa isotopia) –, e/ou pode legitimá-lo em uma isotopia da legalidade. O slogan, graças à
articulação dos dois planos isotópicos, apresenta o shopping como um espaço legítimo, dentro
da lei, onde se podem comprar os desejados produtos de consumo.

3.4.3 Conectores e desencadeadores de isotopias

Você já viu em exemplos anteriores, com os termos “comida” e “legal”, que um elemento se-
mântico pode figurar em mais de uma isotopia em um dado discurso. O nome que esses termos
recebem em semiótica é o de conector de isotopias. Como explica Fiorin (2006, p. 115), trata-se
de um termo polissêmico, que possui dois ou mais significados e permite a pluri-isotopia ou os
diferentes planos de leitura. À frente, você retomará essa noção, quando for estudar algumas fi-
guras retóricas que podem ser compreendidas a partir da semântica discursiva.
Além do conector de isotopias, há outro recurso semântico que permite diferentes leituras
de um dado texto: o desencadeador de isotopia. Qual é a particularidade desse dispositivo? Ele é
observado quando, numa dada leitura, observa-se uma quebra isotópica que nos obriga a reler o
que já tinha sido lido, adotando-se um novo plano isotópico (BARROS, 2001, p. 126). Você se lem-
bra dos exemplos dados anteriormente a esse respeito, certamente. Além daqueles enunciados,
veja o poema a seguir e como ele explora os desencadeadores de isotopia.

Desejo
Carne maturada.
Espete-a em sua lança,
Asse-a com o braseiro
Do inferno de sua existência.

47
UAB/Unimontes - 8º Período

Seja satisfeito seu desejo.


Deleite-se pelo que você é.
Esqueça a jugular
De seu inimigo.

Deguste a carne,
Sorva o néctar,
Mamilos de sua amada.

Aplaque o furor
Dos touros
Do seu ímpeto.

Eleve a taça
À altura de seus olhos.
Beba o vinho
Ele não é o seu sangue.

Acautele-se:

Seu vinho é o seu desejo


Sua taça é o seu poço dos desejos.

Ouça a moeda de prata cair...

Quem a jogou?

Você é monge budista.


Ouça seu coração...
Coma a carne.

O gozo
Não é o nascer das galáxias,
É o nascer do primeiro suspiro,
E o apagar da última estrela.
(SILVA, 2011)

Você deve ter notado que o poema apresenta uma estrutura que se assemelha à do gêne-
ro receita. Há, por exemplo, a predominância da tipologia textual injuntiva, com marcas de in-
terlocução e uso de formas do modo imperativo. Além disso, observam-se figuras como “carne
maturada”/“asse-a”/“deguste a carne”/ “eleve a taça”/“beba o vinho”. Que isotopia ou plano de
leitura esses elementos indicam à primeira vista? Uma resposta coerente seria: a isotopia alimen-
Atividades tar. Observe, porém, que nesse plano de leitura mais aparente não fazem sentido alguns termos,
como: “mamilos” e “gozo”. Esses termos são considerados desencadeadores de isotopia porque
Pratique o que você
aprendeu. Procure o obrigam o leitor a reler o poema a partir de uma nova isotopia, a isotopia sexual. Eles levam o
poema “O ferrageiro leitor a ressignificar todo o texto a partir da nova leitura (isotopia) apresentada, fazendo emergir
de Carmona”, do Poeta um forte erotismo no poema.
João Cabral de Melo
Neto. Esse poema é
metalinguístico, pois
fala do próprio fazer 3.4.4 As figuras retóricas e os elementos da semântica discursiva
poético, o que não é
muito evidente à pri-
meira vista. Após lê-lo, No estudo da sintaxe discursiva, você estudou os procedimentos de argumentação e conhe-
procure explicar como ceu ou reviu algumas das chamadas figuras retóricas que, como bem observou Fiorin (2006), es-
as noções que você tão na dependência de relações estabelecidas entre a enunciação e o enunciado. Outras, embora
aprendeu anteriormen-
te explicitam a metalin-
sejam recursos argumentativos, têm a ver com os diferentes modos de operar no discurso com
guagem no poema. temas, figuras e isotopias, elementos da semântica discursiva.
Agora que você se apropriou conceitualmente desses dispositivos, é hora de estudar essas
figuras retóricas que ficaram guardadas para este momento, por se ligarem ao componente se-
mântico do discurso.

48
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

3.4.5 Metáfora e metonímia

A metáfora e a metonímia são geralmen- causa do traço semântico /pureza/, pode ser
te definidas, respectivamente, como uma homologada à brancura da página ainda livre
comparação abreviada e como o uso da parte dos “abusos” da escrita.
pelo todo (ABREU, 2008, p. 112). Em que elas O mesmo Quintana oferece outro exem-
diferem? No primeiro caso, há uma troca de plo de metáfora que explora a polissemia de
palavras regida por uma relação de similarida- uma figura da isotopia sexual. Veja: “O suspen-
de, enquanto, no segundo caso, há uma troca se requer suspensão do tempo, emoção em
regida por uma relação de contiguidade. câmera lenta. O suspense é o striptease do hor-
Fiorin (2006, p. 118), no entanto, observa ror.” (QUINTANA, 2003, p. 1). O termo striptease
que essas explicações são insuficientes para pertence à isotopia sexual, mas é usado como
dar conta da metáfora e da metonímia; para o conector de isotopias por ser lida numa isoto-
autor essas duas figuras retóricas são procedi- pia cinematográfica.
mentos discursivos em que “o narrador rompe, Se você consultar o dicionário Aurélio,
de maneira calculada, as regras de combina- verá que a definição de striptease é “ato de se
tória das figuras, criando uma impertinência despir lentamente em público, em espetácu-
semântica, que produz novos sentidos” (FIO- lo, ao som de música e com dança e/ou mo-
RIN, 2006, p. 118). Veja que o autor afirma vimentos eróticos”. Note que a intersecção
que essas figuras retóricas são conectores entre as isotopias no texto de Quintana (2003)
de isotopias, pois são recursos discursivos é possível graças ao traço semântico /exposi-
que exploram a polissemia, promovendo ção gradativa/, que integra tanto o sentido do
uma transição de uma isotopia a uma outra termo suspense, quanto o do termo striptea-
num texto pluri-isotópico. se. O suspense não se baseia numa exposição
Tome como exemplo um texto de Quinta- das informações em determinadas doses, de
na (2003, p. 41) para entender melhor a relação modo que cria expectativa e prende a atenção
entre isotopias que a metáfora cria. Trata-se de do espectador? Os filmes que recorrem a esse
“Branca de neve e os tarados” (título já suges- recurso não recebem a classificação de gêne-
tivo), que diz: “Uma página em branco é a vir- ro com o mesmo nome? Já o striptease é uma
gindade mais desamparada que existe. Só por exposição gradativa do corpo, já que as peças
isso é que abusam tanto dela, que fazem tudo do vestuário são retiradas uma a uma, como
com ela...”. Observe que, no texto de Quintana, explica a definição do dicionário.
há uma impertinência semântica pela inclu- Veja outro exemplo, uma pérola de Quin-
são de figuras que não correspondem à iso- tana, agora para que você examine o recurso
topia inicial. As figuras da “Branca de neve e da metonímia: “O mais feroz dos animais do-
página em branco” pertencem à isotopia da mésticos é o relógio de parede: conheço um
linguagem. Figuras como “tarados”, “virgin- que já devorou três gerações da minha famí-
dade” e “abusar”, por sua vez, pertencem à lia” (QUINTANA, 2003, p. 174). Esse pequeno
isotopia sexual. texto apresenta uma notável riqueza de recur-
O poeta pode fazer essas relações da for- sos expressivos, entre os quais a metonímia,
ma que quiser? Não. Note que o uso da pala- que é o que você deve observar aqui. Note
vra “virgindade” no texto de Quintana não é que o relógio de parede é tomado como aqui-
gratuito, mas se baseia numa relação de simi- lo que ele marca: a passagem do tempo, que
laridade. O que permite a comparação entre a metaforicamente devora geração após gera-
figura da página em branco e a virgindade é o ção. Lembra-se da relação de contiguidade
traço sêmico /pureza/. Como você pode ver, há que marca a metonímia? O relógio de parede,
uma espécie de cruzamento entre duas isoto- portanto, é um conector de isotopia, que, per-
pias a partir de um termo polissêmico ou um tencente à isotopia objetal (relativa a objetos),
conector de isotopias, a “virgindade”, que, por é incluído na isotopia da temporalidade.

3.4.6 Outros recursos retóricos

Você pode também compreender agora a analogia a partir da noção de isotopia. Observe
basicamente que, nesse recurso argumentativo, uma dada isotopia é convocada para que se pos-
sa entender/validar uma situação relativa a uma outra.
Lembra-se do sermão em que Vieira explica sua obrigação de expor o estado de pecado em
que os colonos do Maranhão viviam por fazer dos índios escravos contra a decisão de Portugal?

49
UAB/Unimontes - 8º Período

Ali o Padre Jesuíta usa da analogia nas perguntas retóricas já vistas por você por ocasião do es-
tudo da sintaxe discursiva: “qual é melhor amigo: aquele que vos avisa do perigo ou aquele que
por vos não dar pena, vos deixa perecer nele? Qual o médico mais cristão: aquele que vos avisa
da morte ou aquele que por vos não magoar, vos deixa morrer sem Sacramentos?” (VIEIRA, 2007,
p. 32). Nesse exemplo, a isotopia das relações interpessoais e a isotopia médica são convocadas
para sustentar algo relativo à isotopia religiosa: de que o orador tem a obrigação de expor os
pecados da plateia.
Há ainda outros recursos retóricos resultantes da combinação, em um elemento, de traços
opostos àqueles que são típicos de suas qualificações ou funções.
Tome novamente o texto “Relógio”, abordado anteriormente. Observe que há uma animali-
zação do relógio de parede e, consequentemente, do tempo, que é quem efetivamente “devora”
uma geração após a outra. Isso se dá pelo fato de a figura “relógio de parede”, pertencente à iso-
topia objetal, ganhar um traço semântico que não possui: /animado/.
Você pode ver outro exemplo retornando ao poema “O bicho”, de Manuel Bandeira, apre-
Atividades sentado anteriormente. Nele, o traço /humano/ é retirado do homem que procura alimento no
Para praticar o que lixo, o que se percebe nos versos: “Quando achava alguma coisa”/“Não examinava nem cheirava”.
você acaba de estudar, Os traços /animado não humano/ são combinados no indivíduo, animalizando-o, como se vê no
volte ao texto de Millôr verso: “engolia com voracidade”. Como você viu anteriormente, o poema denuncia, de forma fi-
Fernandes “O Rato que
tinha medo (A maneira
gurativa, a condição de animalidade a que a pobreza e a exclusão podem levar o homem.
dos … Marroquinos?)”, A prosopopeia (ou personificação) se baseia no mesmo processo, como você pode notar em
na Unidade 2. Procure “antes de escrever, eu olho, assustado, para a página branca de susto” (quintana, 2003, p. 159).
identificar na narrativa Ora, uma página pode empalidecer de susto? Pode pela combinação, na figura “página”, de tra-
o recurso semântico ços opostos àqueles que lhe são típicos. Como pertence à isotopia objetal, ela apresenta o traço
que caracteriza o texto
como fábula e explicá-
/não animado não humano/, mas o narrador a dota de um traço /humano/, já que, assim como
-lo a partir das noções ele próprio, ela pode se assustar.
aprendidas aqui. Outra figura retórica cuja operação você pode examinar por meio dos elementos relativos à
semântica discursiva é a antítese, que se instaura no texto por meio de oposições figurativas ou
temáticas (FIORIN, 2006, p. 120). Veja, a título de exemplo, um fragmento de “Navio negreiro”, de
Castro Alves.

Ontem a Serra Leoa, 


A guerra, a caça ao leão, 
O sono dormido à toa 
Sob as tendas d’amplidão! 
Hoje... o porão negro, fundo, 
Infecto, apertado, imundo, 
Tendo a peste por jaguar... 
E o sono sempre cortado 
Pelo arranco de um finado, 
E o baque de um corpo ao mar... 
(ALVES, 2004, p. 106)

Dicas Observe que, no fragmento, há uma oposição entre um ontem de liberdade e um agora de
cativeiro para os negros, oposição essa que geram outras antíteses. Estas, de tão comoventes,
Leia (ou releia se for o tornam forte o apelo abolicionista do poeta dos escravos, por mostrar a que estes ficaram sujei-
caso) a obra de Castro
Alves, que é rica nas tos e o que lhes foi tirado. Observe com atenção.
antíteses que revelam Note que, do ponto de vista de uma isotopia espacial, a oposição figurativa se dá entre o
duas realidades: uma espaço extenso (“A Serra Leoa”/“as tendas d’ amplidão”) e o espaço concentrado (“porão negro,
marcada pela liberdade fundo,  apertado”), respectivamente o espaço da liberdade e o espaço da servidão. Além disso,
e outra, pela servidão. note que o ontem de liberdade apresenta-se, tematicamente, como robusteza física e saúde, que
Esse recurso de explici-
tação de contraste aju- se concretizam com figuras como guerra e caça aos leões; em contrapartida, o hoje da servidão
da a revelar a crueldade é, tematicamente, o tempo da debilidade e da insalubridade, o que se percebe pelas figuras:
da escravidão. É uma “porão infecto, imundo” e “ter a peste por jaguar”. Observe ainda uma oposição, de certa forma
boa forma de observar ligada à saúde, quanto ao estado psicológico dos negros cativos: enquanto antes se tinha a tran-
a operação com recur- quilidade para dormir à toa, o agora é marcado pelo “sono sempre cortado”/“Pelo arranco de um
sos semânticos.
finado”/“E o baque de um corpo ao mar...”.
A última figura retórica que você vai examinar aqui sob o ponto de vista dos elementos da
semântica discursiva é o oximoro (paradoxo). Essa figura retórica opera igualmente com oposi-
ções entre elementos semânticos contrários ou contraditórios, com a diferença de que ela reúne
tais elementos numa unidade de sentido, que se define, por isso, como uma unidade contraditó-
ria em si (FIORIN, 2006, p. 122).

50
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

Veja como exemplo mais uma das muitas definições expressivas de Quintana: “decifrar pa- Dicas
lavras cruzadas é uma forma tranquila de desespero” (QUINTANA, 2003, p. 13). A figura “decifrar Vale a pena conhecer
palavras cruzadas” é definida de forma contraditória, por incluir elementos que são contrários um duas revistas que se
ao outro. dedicam exclusivamen-
Tomara que o estudo dos elementos do nível discursivo tenha ajudado você a entender me- te à teoria que você
lhor o funcionamento de recursos que, mobilizados no discurso, são geradores de sentido! estudou em linhas
gerais aqui: a “Estudos
Semióticos” e “Casa,
Caderno de Semiótica

3.5 Para além do percurso


Aplicada”. Trata-se de
publicações que se pro-
põem a divulgar artigos

gerativo
que reflitam teorica-
mente sobre a Semióti-
ca ou que a utilizem em
aplicações e análises.
Você pode acessá-las,
Letícia de Souza Peixe respectivamente, pelos
Até aqui você conheceu a proposta da Semiótica para o exame do plano de conteúdo dos links: www.seer.fclar.
unesp.br/casa e www.
textos. Teve a oportunidade de examinar, na perspectiva gerativa, os diferentes níveis de apre- fflch.usp.br/dl/semio-
ensão do sentido e os mecanismos intradiscursivos de produção desse sentido. Você conhecerá tica/es.
agora, finalizando este caderno, o que está para além do percurso gerativo de sentido.
Você não poderia deixar de conhecer a proposta de apreensão do sentido na articulação en-
tre categorias do plano de expressão com categorias do plano de conteúdo, o que em Semiótica
denomina-se semissimbolismo. Você verá que se trata de uma alternativa extremamente produ-
tiva para o exame de textos com finalidade estética, isto é, textos em que o plano de expressão
concorre para a significação ou enriquece as possibilidades significativas do texto. Além disso,
você se familiarizará com alguns desdobramentos mais recentes da Semiótica e as relações pro-
dutivas dessa teoria com diferentes disciplinas.

3.5.1 Semissimbolismo

Neste caderno, você já viu que a teoria Semiótica compreende o texto, sobretudo, como um
objeto de significação, que ressalta, em seu estudo, os mecanismos intradiscursivos que o com- Glossário
põem. Lembre-se de que você estudou, nas seções anteriores desta disciplina, que a Semiótica Semissimbolismo:
toma o texto como a junção de um plano de conteúdo e um plano de expressão, sendo que o relação entre expres-
plano de conteúdo é o lugar dos conceitos e o de expressão, o da exteriorização desses concei- são e conteúdo que
tos (DANTAS; PEIXE, 2006, p. 20). não é convencional ou
imotivada, uma vez
Note que, sendo o texto tomado primordialmente como um objeto de significação, é exa- que a concretização
tamente a significação, o sentido, que é o objeto da Semiótica, cuja principal preocupação é “ex- dos temas abstratos
plicitar, sob a forma de uma construção conceitual, as condições da apreensão e da produção estabelece uma “nova
do sentido” (BERTRAND, 2003, p. 16). Para a análise da significação textual, a Semiótica dispõe de perspectiva de visão e
um “modelo” que procura apreender a significação e suas estruturas. Você estudou este modelo: de entendimento do
mundo” (BARROS, 2005,
trata-se do percurso gerativo de sentido, que consiste em uma sucessão de níveis, que vão do p. 89).
mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto. Nessa sucessão, ocorre um “processo de
enriquecimento semântico” (FIORIN, 1995, p. 164), em que o primeiro nível é concretizado pelo
segundo, que, por sua vez, é concretizado pelo terceiro e último.
Não é difícil perceber, prezado acadêmico, que a Semiótica, dessa forma, a princípio, man-
teve-se mais preocupada com o percurso gerativo de sentido, não se ocupando do estudo do
plano de expressão (BARROS, 2005, p. 41). Note, entretanto, que há textos cuja expressão “pro-
duz” sentido, o que levou a Semiótica num segundo momento a examiná-lo. Que textos são es-
ses? São aqueles em que o plano de expressão não só expressa o conteúdo, mas também com-
põe as chamadas organizações secundárias da expressão, “figuras da expressão” que investem
e concretizam percursos temáticos abstratos, manifestando-se por meio de traços reiterados da
expressão (BARROS, 2001, p. 153).
Uma categoria da expressão, e não apenas um elemento, se correlaciona com uma catego-
ria do conteúdo, estabelecendo-se, assim, uma relação semissimbólica.
Se você observar bem, verá que, na poesia, e especialmente na poesia concreta, o semissim-
bolismo é continuamente empregado, como você pode notar no seguinte poema de Ronaldo
Azeredo:

51
UAB/Unimontes - 8º Período

Fonte: <http://brazlitchris.blogspot.com/2011/03/velocidade-ronaldo-azeredo-nos-anos.html>. Acesso em 22 set. 2011.

Veja que, nele, não só o plano de conteúdo contribui para a produção de sentido, mas tam-
bém, e com igual importância, o plano da expressão. Note que se reproduz a ideia de velocidade
com a repetição da consoante “v”, como se tentássemos acompanhar a palavra “velocidade” cuja
totalidade, primeiramente, por passar tão rapidamente por nós, não conseguíssemos apreender,
observando, inicialmente, somente sua primeira letra.
Tome como exemplo agora a Figura 3 usada na Unidade 1: o pôster de Barack Obama (volte
no texto caso não lembre muito bem). Esse texto, que retrata o então candidato a Presidente dos
Estados Unidos da América, permite que você observe a força do semissimbolismo na produção
de sentido de alguns textos. Lembre-se de que, no plano da expressão, o texto é predominante-
mente não verbal, apresentando somente a palavra “hope”, “esperança”, em inglês, como compo-
nente verbal.
A oposição semântica /identidade/ versus /alteridade/, presente no plano do conteúdo, ex-
terioriza-se pela representação do presidente negro, cujas características típicas da raça são re-
tratadas pela cor preta, tais como cabelo crespo e lábios proeminentes, em oposição ao tom mais
claro que perpassa seu rosto, reafirmando a diferença de raças, /alteridade/, superada, entretan-
to, pela unidade nacional, retratada pelas cores da bandeira americana, azul, vermelho e branco,
que revestem a figura, /identidade/.
Ora, o discurso enunciado pela criação de Shepard Fairey prega a esperança (“hope”) de
uma nação governada por um presidente que se elegeu com a promessa de mudanças. Inicial-
mente, Barack Obama, por ser negro, poderia ser tomado como o representante de uma mino-

52
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

ria, mas, assim como sua campanha procurava pregar, propunha-se como representante de toda
uma nação, estando nela inclusas não só as minorias, mas todos os norte-americanos.
Note que a produção de sentido se valeu de organizações secundárias, os traços, no caso,
as cores representativas do país e os tons claro e escuro, para concretizar o percurso temático
abstrato, a oposição semântica /identidade/ versus /alteridade/.
Sendo assim, você pode perceber que, para a análise da significação desse texto, assim
como em diversos textos, a Semiótica não poderia se furtar à apreciação da relação semissimbó-
lica estabelecida entre plano da expressão e plano do conteúdo, essencial para a apreensão de
sua maneira de produção de sentido.

3.5.2 A Semiótica e a literatura: suas relações com a pintura, a música,


o cinema e outros sistemas semióticos

Já lhe foi dito que o conceito de texto para a teoria Semiótica é muito importante e mais
amplo do que o proposto por grande parte das teorias do discurso existentes. Você deve lembrar
que ele (o texto) consiste na junção de um plano de conteúdo e um plano de expressão, sendo
que o plano de conteúdo é o lugar dos conceitos e o plano de expressão, o lugar da exterioriza-
ção desses conceitos (DANTAS; PEIXE, 2006, p. 20).
É por meio do percurso gerativo de sentido, você já sabe, que a Semiótica analisa o texto
minuciosamente em busca da compreensão não só do que ele diz, mas também de como ele
diz o que diz. Sendo assim, como afirma Dennis Bertrand (2003, p. 11), o discurso literário é um
dos campos de exercício privilegiado da Semiótica, ponto de vista corroborado pelo professor da
Universidade de São Paulo (USP), José Luiz Fiorin, para quem “dizer que a narratologia formulada
pela Semiótica é uma ‘camisa de força’ ou que não se aplica a textos da literatura mais moderna é
desconhecer os princípios dessa teoria narrativa” (FIORIN, 1995, p. 169).
Mas a aplicabilidade da Semiótica, prezado acadêmico, vai além da literatura. Sua análise
tem alcançado os mais diversos textos. Desenvolvida por Luiz Tatit, também professor da USP, a
Semiótica da Canção trata da

compatibilidade entre os componentes linguísticos e melódicos, não obstante


já haver um movimento apontando na direção da contribuição do arranjo e da
harmonia para essa compatibilidade, da estrutura rítmica e intervalos, dentre
algumas outras possibilidades (COELHO, 2005, p. 13).

Abarca, portanto, como você pode notar, não só a letra, componente linguístico, muitas ve-
zes narrativo, analisado em vários exemplos nesta disciplina, mas também sua junção com a me-
Para saber mais
lodia musical e seus consequentes efeitos. Luiz Tatit possui uma
As artes plásticas, por sua vez, são também muito favorecidas pelo emprego da teoria Semi- bibliografia extensa
acerca da Semiótica da
ótica como método de análise, utilizando, para tanto, inclusive, o conceito de semissimbolismo, Canção. Caso queira
que você conheceu anteriormente, já que, reiteradamente, valem-se de relações entre categorias conhecer melhor sua
do plano do conteúdo e do plano da expressão na produção de sentido. proposta, você pode
Já o cinema, por ser “uma linguagem sincrética muito abrangente: imagens, palavras, vozes, consultar os livros
roupas, cenários, música, movimento, principalmente são as linguagens que concorrem para a “Semiótica da Canção:
Melodia e Letra” e “Aná-
construção do sentido final” (MATTE, 2005, p. 78), é um prato cheio para a Semiótica. lise semiótica através
Nos níveis narrativo e discursivo do percurso gerativo de sentido, levando em consideração, das letras”.
principalmente, a construção imagética do texto, e, consequentemente, suas possibilidades se-
missimbólicas, os filmes, enquanto linguagem, são objetos semióticos de primeira ordem.
Não apenas esses, mas, inclusive, outros sistemas semióticos menos óbvios são passíveis de
abordagem. A dança é um deles, com seu sincretismo de canção e coreografia, em que se percebe,

por meio da relação canção-dança, que o sincretismo semiótico não é a mera


soma de pedaços, nem de cargas emocionais sensoriais e racionais das partes
para formar depois um “todo de sentido”. No desenvolvimento da coreografia
verificamos como dança e música vão se influenciando mutuamente (HERNAN-
DES; TROTTA, 2005, p. 124).

Veja que dança precisaria, assim, de uma fundamentação teórico-metodológica flexível, que
possibilitasse abarcar sua complexa coordenação de elementos para a produção de sentidos,
possível com a teoria Semiótica.

53
UAB/Unimontes - 8º Período

Ainda mais um texto passível de aprofundamento, o futebol, seja observado pelo viés da
Para saber mais
locução esportiva (CARMO JÚNIOR, 2005) ou pelo da análise de jogadas isoladas, é também um
Diversos objetos inu- sistema semiótico a ser observado. Quer ver?
sitados são analisados
Tome como exemplo o “gol” que marcou história (DANTAS; PEIXE, 2006), ocorrido na Copa
em pequenos artigos
reunidos na obra do Mundo de Futebol de 1970, no México, durante o jogo entre Brasil e Uruguai. Nessa jogada,
“Semiótica: objetos e Pelé, recebe, próximo ao gol, o passe de um companheiro e, sem tocar na bola, faz com que o
práticas”, organizada goleiro Mazurkiewicz se confunda e saia da jogada, para posteriormente chutar e errar o chute. A
por Ivã Carlos Lopes e seguinte imagem retrata o momento do drible:
Nilton Hernandes. Se
quiser saber mais sobre
as possíveis aplicações
da teoria, vale a pena
conferir.

Figura 7: Drible ►
Disponível em: <http://
futarte50.blogspot.
com/2010/11/craques.
html>. Acesso em 22
set. 2011.

Apesar de tal frustração, esse lance foi considerado um dos mais belos da Copa e é lembra-
do até hoje. Entretanto, o reconhecimento desse “não gol” só pode ser entendido a partir do ima-
ginário cultural brasileiro.
Veja que o nível fundamental constitui-se da oposição semântica de base, /sucesso/ versus /
fracasso/. Nesse caso, o /sucesso/ é um termo eufórico, enquanto o /fracasso/ é disfórico, já que o
objetivo final de todo jogo é a conjunção com a vitória (que “concretiza” o sucesso).
No nível narrativo, observe que há dois tipos de programa, o de base e o de uso. O primeiro,
no caso analisado, é a vitória da seleção brasileira, enquanto o segundo, que são as pequenas
ações com vistas ao cumprimento do programa de base, é a realização do gol, dos passes, dos
dribles, entre outros. Um sujeito está sempre em busca de sua conjunção com um objeto-valor:
o gol e, mais amplamente, a vitória.
O que impulsiona o sujeito é a manipulação, que o dota de um /querer/ ou /dever/ fazer.
Pelé é o destinatário da manipulação dele mesmo, que deseja glória, dinheiro e fama; e da socie-
dade, que deseja a vitória. Esses tipos de manipulação se configuram como sedução, já que Pelé
almeja manter sua imagem de craque; e como tentação, pois, se o destinatário cumprir o contra-
to, terá acesso aos objetos-valor /dinheiro/ e /fama/, dentre outros.
O sujeito Pelé utiliza a bola, objeto modal, como um instrumento da realização da ação a
que foi manipulado a fazer, o gol. Mazurkiewicz, o goleiro da seleção uruguaia, é o antissujeito
dessa ação, pois seu objetivo é impedir que a bola entre no gol. Os defensores uruguaios atuam
como antiadjuvantes ao ajudarem o antissujeito a evitar a ação de Pelé. Ao receber o passe de
um companheiro (um adjuvante, nos termos semióticos) na entrada da grande área, o jogador
brasileiro não domina a bola, porém, ao mantê-la ao alcance de seu controle, sua relação com
este objeto passa de uma disjunção – quando este estava com outro jogador – para uma não-
-conjunção. Este movimento deixa tanto o goleiro perdido, sem saber para onde foi a bola, como

54
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

o público, que se surpreende com a quebra do que seria o procedimento mais óbvio de um joga-
dor, o de dominar – entrar em conjunção - plenamente a bola para chutar.
Um jogador normalmente é sancionado positivamente ao realizar sua função previamente
estabelecida; os sujeitos actanciais que desempenham o papel de atacante, por exemplo, devem
fazer gols. No lance de Pelé, a finalização, por não se efetivar, é sancionada negativamente por
uma plateia, que, apesar de reconhecer a genialidade do drible, frustra-se com o não gol. A joga-
da, entretanto, é sancionada positivamente pelos espectadores, impressionados com a inteligên-
cia e técnica do craque, sendo reconhecida até hoje pela sua singularidade.
Normalmente, o futebol se apresenta como um sistema simbólico, em que há conformida-
de plena entre os planos de expressão e de conteúdo; “bola na rede”, por exemplo, significa um
programa narrativo realizado. No lance entre Pelé e Mazurkiewicz, no entanto, há uma relação
semissimbólica, na qual os planos não estão em conformidade. No plano da expressão, quando
Pelé deixa que a bola passe por ele sem dominá-la, movimento que significaria, no plano de con-
teúdo, entrar em disjunção com o objeto-valor, significa, no entanto, conjunção.
Espera-se que você tenha podido perceber como o conceito de texto na teoria Semiótica é
amplo e como seu arcabouço metodológico pode ser consistente para os pesquisadores, forne-
cendo, a quem quer estudá-la, fundamentos e materiais para analisar a infinita multiplicidade de
textos que se desdobram à nossa frente no mundo contemporâneo.
Chegado o fim deste caderno, espera-se que esta disciplina tenha atingido o seu propósito:
tornar você não só conhecedor dos conceitos fundamentais e das categorias de análise da Semi-
ótica, mas, principalmente, analista capaz de aplicar essas categorias na análise de textos os mais
diversos. Sobretudo, espera-se que, ao final, você, prezado acadêmico, tenha se sensibilizado no
que diz respeito ao desafio de investigar o sentido constituído textualmente e que a teoria estu-
dada ao longo da disciplina possa ter enriquecido a sua formação.

Referências
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fragmento Eu te amo do espetáculo De repente, não mais que de repente, do balé Cidade de São
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56
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

Resumo
Unidade 1: Primeiras noções e nível fundamental

Você aprendeu que:


1. A noção de texto, em Semiótica, é ampla, compreendendo qualquer produção em que
haja a junção entre um plano de conteúdo e um plano de expressão.
2. A(s) linguagem(ns) que veicula(m) o sentido pertence(m) ao plano de expressão, ao passo
que o sentido pertence ao plano de conteúdo.
3. A semiótica analisa qualquer texto, examinando os mecanismos que articulam o seu sen-
tido.
4. A proposta geral da teoria é a de que o sentido é gerado e pode ser examinado em um
percurso em que sua forma parte de uma apresentação simples e abstrata, passando a
uma mais complexa e concreta.
5. Os níveis que formam o percurso gerativo de sentido são três: o fundamental, o narrativo
e o discursivo.
6. Os níveis apresentam tanto um componente sintáxico, que envolve os arranjos em que se
organizam os conteúdos, quanto um semântico, que tem a ver com os conteúdos propria-
mente ditos.
7. Na semântica fundamental, o sentido do texto é apreendido como uma oposição ou uma
categoria semântica.
8. Os termos da categoria semântica de base são considerados atraentes e positivos (eufóri-
cos) ou repulsivos e negativos (disfóricos).
9. Na sintaxe fundamental, os termos da oposição são negados ou afirmados, o que permite
a passagem de um termo a outro e a análise da sucessividade do texto.
10. Tanto a oposição quanto as operações de negação e afirmação podem ser representa-
das por meio de um modelo lógico: o quadrado semiótico.

Unidade 2: nível narrativo

Você aprendeu que:


1. No nível narrativo, ocorre a concretização das categorias semânticas do nível fundamen-
tal, ou seja, os valores abstratos e virtuais desse nível são atualizados, convertendo-se as
operações lógicas fundamentais em transformações narrativas operadas por um sujeito.
2. Na sintaxe narrativa, a análise norteia-se pelo programa narrativo (PN), sintagma elemen-
tar composto por dois tipos de enunciados elementares: os enunciados de estado e os de
fazer.
3. O enunciado de fazer é um enunciado modal, aquele que rege ou “modaliza” um enuncia-
do descritivo, que, em um programa narrativo, é o enunciado de estado.
4. Uma sequência de PNs caracteriza o percurso narrativo.
5. O esquema narrativo, último nível da hierarquia das unidades sintáxicas, compreende
quatro fases ou quatro PNs (organizados em três percursos – o da manipulação, o da ação
e o da sanção).
6. Na semântica narrativa, enfoca-se a modalização, que pode ser de dois tipos: a modaliza-
ção pelo /ser/ e a modalização pelo /fazer/, que se referem, respectivamente, ao sujeito de
estado (na sua relação com o objeto-valor) e ao sujeito de fazer.
7. A modalização pelo /ser/ engloba dois tipos: a modalização veridictória e a modalização
pelo /querer/, /dever/, /poder/ e /saber/ ser.
8. A modalização veridictória abarca a oposição /ser/ versus /parecer/, determinando a rela-
ção existente entre o sujeito e o objeto como verdadeira, falsa, mentirosa ou secreta.
9. A modalização pelo /querer/, /dever/, /poder/ e /saber/  refere-se às paixões, que podem
ser simples ou complexas.

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UAB/Unimontes - 8º Período

Unidade 3: nível discursivo, a realização do sentido

Você aprendeu que:


1. O discurso, como enunciado, é o resultado ou produto da enunciação.
2. A existência do discurso-enunciado pressupõe a enunciação que o produziu e que se ca-
racteriza por um eu/aqui/agora.
3. A enunciação deixa marcas no enunciado, gerando efeitos de sentido.
4. O nível discursivo envolve o fenômeno da argumentação, pois o destinador do discurso se
vale de diversos meios para que o destinatário desse discurso o aceite como verdadeiro.
5. O destinador e o destinatário do objeto discurso são chamados enunciador e enunciatá-
rio, imagens criadas no e pelo discurso.
6. As projeções da enunciação e as relações entre enunciador e enunciatário são examinadas
na sintaxe discursiva.
7. As projeções da enunciação no enunciado tem ver com as formas de se construir o enun-
ciado.
8. A instância da enunciação pode projetar um eu/aqui/agora que simula a própria enuncia-
ção e cria efeitos de sentido de subjetividade.
9. A instância da enunciação pode projetar um ele/lá/então que, simulando afastamento da
enunciação, cria efeitos de sentido sobretudo de objetividade.
10. Há, além do enunciador/enunciatário, outras instâncias enunciativas: narrador/narra-
tário e interlocutor e interlocutário.
11. Narrador e narratário são pessoas projetadas no enunciado pela instância da enuncia-
ção graças aos recursos da debreagem: enunciva, se de terceira pessoa, e enunciativa, se
de primeira pessoa.
12. Interlocutor e interlocutário são criados quando o narrador dá voz aos atores, criando
a unidade conhecida como discurso direto, que gera efeitos de sentido de realidade.
13. A instância da enunciação, além de projetar as categorias de pessoa (narrador/narra-
tário) no discurso, projeta as categorias de tempo e de espaço, por meio das debreagens
enunciativas ou enuncivas.
14. A embreagem é um recurso que neutraliza as oposições observadas nas categorias de
pessoa, tempo e espaço, gerando efeitos de sentido diversos.
15. Vários recursos argumentativos decorrem de relações de oposição entre enunciação e
enunciado, como a ironia, lítotes, hipérbole e eufemismo.
16. Na semântica discursiva, analisam-se os temas, as figuras e as isotopias.
17. Os temas, de natureza conceitual, são disseminados pelo discurso na forma de percur-
sos que recobrem, por sua vez, os percursos narrativos abstratos, concretizando-os, por-
tanto.
18. As figuras, de natureza sensorial, podem ser usadas para concretizar ainda mais os es-
quemas narrativos abstratos, remetendo, necessariamente, aos temas.
19. As isotopias são recorrências de traços sêmicos ao longo da cadeia discursiva, o que
leva a um plano de leitura coerente semanticamente; sua quebra, intencional ou não, gera
efeitos de sentido diversos.
20. Conectores de isotopias são termos polissêmicos que permitem uma leitura em dife-
rentes isotopias; seu uso tem a ver com a metáfora.
21. Desencadeadores de isotopias são termos que, não pertencendo à isotopia mais evi-
dente inicialmente, obrigam o leitor a propor um novo plano isotópico que dê coerência
semântica ao texto.
22. A forma de combinar temas, figuras, isotopias e traços sêmicos está na base de diver-
sos recursos expressivos, como a antítese, o paradoxo, a prosopopéia, entre outros.
23. A relação entre plano de expressão e plano de conteúdos em textos com função esté-
tica gera relações semissimbólicas que são passíveis de exame pela Semiótica.

58
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

Referências
Básicas

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Complementares

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Tatit e Waldir Beividas. São Paulo: Discurso Editorial; Humanitas; FFLCH/USP, 2001.

FONTANILLE, Jacques. Semiótica do discurso. Trad. Jean Cristtus Portela. São Paulo: Contexto, 2007.

GREIMAS, Algirdas Julien. Da Imperfeição. Trad. Ana Claudia de Oliveira. São Paulo: Hacker Edi-
tores, 2002.

GREIMAS, A. J.; FONTANILLE, J. Semiótica das paixões. São Paulo: Ática, 1993.

LOPES, Ivã Carlos; HERNANDES, Nilton (Org.) Semiótica: objetos e práticas. São Paulo: Contexto, 2005.

PERELMAN, Chaïm, OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação. A Nova retórica.


São Paulo: Martins Fontes, 2000.

PIETROFORTE, Antônio Vicente. Semiótica Visual. Os percursos do olhar. São Paulo: Contexto, 2004.

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ZILBERBERG, Claude. Razão e poética do sentido. Trad. Ivã Carlos Lopes, Luiz Tatit e Waldir Bei-
vidas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

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UAB/Unimontes - 8º Período

62
Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

Atividades de
aprendizagem - AA
1) Como você já viu, a concepção de texto em Semiótica é ampla, significando a junção de uma
plano de expressão e um plano de conteúdo. Por isso, responda:

a. No texto a seguir, que plano de expressão veicula o plano de conteúdo?


b. Em um nível mais superficial, pode-se observar no texto a seguir uma oposição entre /
vitória/ e /derrota/. Que oposição fundamental pode ser apreendida subjacente a isso e
como fica a organização abstrata dos valores?

◄ Figura 8
Fonte: http://reocities.
com/SunsetStrip/pal-
ms/6237/1994.html. Acesso
em 30 set. 2011.

2) Observe parte da canção Comida, do grupo Titãs, para fazer os


exercícios abaixo. Veja que, na letra da canção, o narrador expressa o que quer e o que não quer.
O que ele não quer é que lhe seja possível só o básico (comida/comer), mas que lhe seja acessível
igualmente uma série de bens. Além disso, o narrador emprega palavras como só (apenas), intei-
ro e metade para expressar o que ele tem e o que quer ter. Por isso responda:

a. Que oposição fundamental pode ser apreendida subjacente a esse texto?


b. Qual dos termos é eufórico e qual deles é disfórico?

Comida
A gente não quer só comida,
A gente quer comida, diversão e arte
A gente não quer só comida,
A gente quer saída para qualquer parte
A gente não quer só comida,
A gente quer bebida, diversão, balé
A gente não quer só comida,
A gente quer a vida como a vida quer
(...)
A gente não quer só comer,
A gente quer comer e quer fazer amor
A gente não quer só comer,
A gente quer prazer pra aliviar a dor
A gente não quer só dinheiro,
A gente quer dinheiro e felicidade
A gente não quer só dinheiro,
A gente quer inteiro e não pela metade
(TITÃS, 1987)

3) O texto a seguir, “Apólogo dos dois escudos”, é superficialmente bastante diferente da letra
da canção “Comida”, dos Titãs, vista no exercício anterior. Leia o texto e, pensando no que você
estudou sobre o nível fundamental, procure explicar o que ambos têm em comum?

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UAB/Unimontes - 8º Período

Apólogo dos dois escudos


Conhecem o apólogo do escudo de ouro e de prata? Eu lho conto.
No tempo da cavalaria andante, dois cavaleiros armados de ponto em branco
(= com cuidado, com esmero, completamente), tendo vindo de partes opostas,
encontraram-se numa encruzilhada em cujo vértice se via erecta uma estátua
da Vitória, a qual empunhava numa das mãos uma lança, enquanto a outra se-
gurava um escudo. Como tivessem estacado, cada um de seu lado, exclamaram
ao mesmo tempo:
- Que rico escudo de ouro!
- Que rico escudo de prata!
- Como de prata? Não vê que é de ouro?
- Como de ouro? Não vê que é de prata?
- O cavaleiro é cego.
- O cavaleiro é que não tem olhos.
Palavra puxa palavra, ei-los que arremetem um contra o outro, em combate
singular, até caírem gravemente feridos. Nisto passa um dervis, que depois de
os pensar com toda a caridade, inquire deles o motivo da contenda.
-É que o cavaleiro afirma que aquele escudo é de ouro.
- É que o cavaleiro afirma que aquele escudo é de prata.
- Pois, meus irmãos, observou o daroês, ambos tendes razão e nenhum a ten-
des. Todo esse sangue se teria poupado, se cada um de vós se tivesse dado a
incômodo de passar um momento ao lado oposto. De ora em diante nunca
mais entreis em pendência sem haverdes considerado todas as faces da ques-
tão.
(Ramos apud FIORIN, 2006, p.17-18)

4) Leio o discurso do Senador Magno Malta, do PR do Espírito Santo:

[...] As razões que me trazem a esta tribuna são algumas considerações ab-
solutamente importantes para o Brasil. Penso que o homem é a sua crença,
o homem é aquilo que acredita, o homem é aquilo que ele decide ser. Todos
nós temos uma missão para cumprir. Eu recebi do meu Estado, aliás, da minha
própria consciência, uma missão para cumprir com o Brasil. Ao longo da minha
vida, tenho lutado pela causa dos menores. [...] Agora, presidindo a Frente Par-
lamentar da Família, penso que vivemos um momento absolutamente sofrido,
porque uma minoria barulhenta tenta se sobrepor a uma maioria absoluta des-
te País, uma maioria de famílias que acreditam em princípios de família como
Deus assim a constituiu, macho e fêmea, homem e mulher, pai e mãe, aliás,
viemos do útero de uma mulher, não há qualquer anomalia que possa trazer
alguém à luz fora disso. [...] Eu estou olhando para o Brasil para afirmar o se-
guinte, Senador Ivo Cassol: esse kit homossexual nas escolas fará das escolas
do Brasil verdadeiras academias de homossexuais (MALTA, 2001, s/p).

a. Qual o percurso narrativo retratado de forma privilegiada no texto acima, o da manipula-


ção, o da ação ou o da sanção? Explique.
b. O senador Magno Malta acredita-se competente para falar da tribuna acerca do tema dos
“kits homossexuais”? Qual tipo de capacitação o senador acredita deter como pressuposto
para sua performance?

5) Leia o texto a seguir e procure identificar alguns elementos do nível narrativo.

Indisciplina no condomínio pode gerar multas


Atraso no pagamento da taxa de condomínio, perturbação do sossego e dis-
puta por vagas na garagem são comportamentos mal vistos em coletividade
e, por isso, quando condôminos extrapolam, o síndico deve tomar medidas de
modo a coibir os excessos. Quando advertências não são suficientes, ele pode
aplicar multas.
Foi o que fez a síndica de um Condomínio localizado no centro de Belo Ho-
rizonte. Ela conta que começou a aplicar multas no ano passado quando, no
início de sua gestão, os condôminos aprovaram a adequação do regimento in-
terno ao Novo Código Civil. A partir de então, sempre que há reclamações, ela,
primeiro, adverte o condômino escrita e verbalmente. Caso este artifício não
dê certo, aplica a multa.
Em quase um ano de mandato, a síndica já aplicou 12 multas. As faltas mais
freqüentemente observadas pela síndica são o barulho excessivo e problemas
com o lixo, que alguns moradores preferem atirar pela janela ou acumular nos

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Letras/Português - Língua portuguesa Semiótica

corredores ao invés de utilizarem a lixeira. Em virtude da rigidez no comando


do condomínio, muitos moradores resolveram se mudar para fugir das regras.
“Quem não gostou, mudou”, afirma a síndica (MIRANDA, 2009).

a) Quais os actantes que são percebidos no texto e que atores discursivos os concretizam?
b) Quais os PNs são destacados na notícia e como isso é determinante para o sentido da
notícia?

6) Leia o texto abaixo e procure examiná-lo a partir das modalidades veridictórias, que você
estudou na semântica narrativa. Explique como essas modalidades contribuem com as reviravol-
tas observadas no texto.

A Verdade
Uma donzela estava um dia sentada à beira de um riacho, deixando a água do
riacho passar por entre os seus dedos muito brancos, quando sentiu o seu anel
de diamante ser levado pelas águas. Temendo o castigo do pai, a donzela con-
tou em casa que fora assaltada por um homem no bosque e que ele arrancara
o anel de diamante do seu dedo e a deixara desfalecida sobre um canteiro de
margarida. O pai e os irmãos da donzela foram atrás do assaltante e encontra-
ram um homem dormindo no bosque, e o mataram, mas não encontraram o
anel de diamante. E a donzela disse:
- Agora me lembro, não era um homem, eram dois.
E o pai e os irmãos da donzela saíram atrás do segundo homem, e o encontra-
ram, e o mataram, mas ele também não tinha o anel. E a donzela disse:
- Então está com o terceiro!
Pois se lembrara que havia um terceiro assaltante. E o pai e os irmãos da don-
zela saíram no encalço do terceiro assaltante, e o encontraram no bosque. Mas
não o mataram, pois estavam fartos de sangue. E trouxeram o homem para a
aldeia, e o revistaram, e encontraram no seu bolso o anel de diamante da don-
zela, para espanto dela.
- Foi ele que assaltou a donzela, e arrancou o anel de seu dedo, e a deixou des-
falecida - gritaram os aldeões. - Matem-no!
- Esperem! - gritou o homem, no momento em que passavam a corda da forca
pelo seu pescoço. - Eu não roubei o anel. Foi ela quem me deu!
E apontou para a donzela, diante do escândalo de todos.
O homem contou que estava sentado à beira do riacho, pescando, quando a
donzela se aproximou dele e pediu um beijo. Ele deu o beijo. Depois a donzela
tirara a roupa e pedira que ele a possuísse, pois queria saber o que era o amor.
Mas como era um homem honrado, ele resistira, e dissera que a donzela devia
ter paciência, pois conheceria o amor do marido no seu leito de núpcias. Então
a donzela lhe oferecera o anel, dizendo “Já que meus encantos não o seduzem,
este anel comprará o seu amor”. E ele sucumbira, pois era pobre, e a necessida-
de é o algoz da honra.
Todos se viraram contra a donzela e gritaram: “Rameira! Impura! Diaba!” e exigiram
seu sacrifício. E o próprio pai da donzela passou a forca para o seu pescoço.
Antes de morrer, a donzela disse para o pescador:
-A sua mentira era maior que a minha. Eles mataram pela minha mentira e vão
matar pela sua. Onde está, afinal, a verdade?
O pescador deu de ombros e disse:
- A verdade é que eu achei o anel na barriga de um peixe. Mas quem acreditaria
nisso? O pessoal quer violência e sexo, não histórias de pescador (VERÍSSIMO, 2000).

7) Observe os textos a seguir e explique:

a. Que recurso argumentativo eles têm em comum?


b. Como esse recurso argumentativo expõe a diferença de visões que se percebe ao confron-
tar o texto?

Texto 1
Faltando um pedaço (fragmento)
O amor é um grande laço
um passo pr’uma armadilha,
um lobo correndo em círculo
pra alimentar a matilha.
(...)
O amor é como um raio
galopando em desafio
abre fendas, cobre vales
revolta as águas dos rios (...).
(DJAVAN, 1999)
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UAB/Unimontes - 8º Período

Texto 2
Definição do amor (Fragmento)
O amor é finalmente
um embaraço de pernas,
uma união de barrigas,
um breve tremor de artérias.
Uma confusão de bocas,
uma batalha de veias,
um reboliço de ancas,
quem diz outra coisa, é besta.
(MATOS, 1997, p. 106-107)
8) Leia o texto a seguir e explique:

a. O que se pode falar sobre os diferentes níveis enuniciativos no texto?


b. O que se pode pode falar sobre as projeções da enunciação no enunciado e dos efeitos de
sentido que elas geram?
c. O que se pode falar sobre a categoria de tempo projetada no texto?

É preciso considerar o seguinte: sou professor de Português. Dei aula durante


muitos anos, inclusive em escola pública, e acho que o professor de Português
precisa aprender gramática. Você pode até perguntar: “Mas, se o professor de
Português não ensina gramática para os alunos, para que ele vai estudar gra-
mática?”. Dou a resposta com um exemplo: um dermatologista precisa estudar
muito para se tornar um especialista em doenças e tratamento da pele. Mesmo
que, em algumas consultas, ele apenas receite um creme ou sugira ao paciente
que não se exponha excessivamente ao sol ou tome cuidado com a alimenta-
ção. Até para prescrever soluções simples, ele precisa ter ido fundo ao assunto.
O mesmo raciocínio vale para o professor de Português. (ROCHA, 2002)

9) Leia o texto a seguir para resolver os seguintes exercícios:

a. Explique como o texto explora recursos discursivos que mobilizam elementos semânticos.
b. Explique como a noção de isotopia e de conector de isotopias pode ajudar a entender o
texto.

O vírus que salva


A liberdade é o vírus do momento. Um ser invisível, que contagia de forma rá-
pida e ultrapassa fronteiras numa saudável pandemia. Na costa árabe do Medi-
terrâneo, parece incontrolável. Quando ele ataca, provoca febres de esperança,
ânsias de democracia, histeria coletiva por direitos. Países inteiros tremem, re-
gimes se debilitam e, em casos extremos, morrem. Que assim seja. Pois o passo
seguinte do óbito das ditaduras é o renascimento das nações. Se bem cuidadas
e fortalecidas em  sua nova gestação, podem crescer alimentando-se do  res-
peito aos desígnios de seus cidadãos e da alternância no poder. Abandonadas
e maltratadas, ficam à mercê de parasitas oportunistas, forças opressoras que
assumem o comando em nome de um único grupo ou de uma doutrina funda-
mentalista (SÁ, 2011).

10) Examine o texto a seguir levando em consideração a noção de semissimbolismo, que, como
você estudou, ocorre quando, num dado texto, uma categoria da expressão pode ser homologa-
da a uma categoria do conteúdo.

◄ Figura 8
Fonte: http://reocities.
com/SunsetStrip/pal-
ms/6237/1994.html. Acesso
em 30 set. 2011.

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