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Ao longo dos séculos, foram propostos mais de 100 esquemas diferentes para dividir
ou temperar a oitava. Desses, não mais de 20 terão sido realmente usados com mais
generalidade. Os vários sistemas ecoam os vários estilos e gostos musicais das suas
épocas. E estes, por sua vez, também influenciaram os tipos de afinações (ou
temperamentos) adoptados. Os principais temperamentos históricos são:
No século XV, começou a surgir o gosto por terceiras naturais e os músicos começaram
a experimentar usar formas modificadas da afinação pitagórica para obter terceiras
mais perto do seu valor natural. O grande teórico da Renascença, Gioseffo Zarlino
(1517-1590), defendia uma sistema de entoação justa baseado nas terceiras, e não
nas quintas, como no sistema pitagórico, já que as terceiras passaram a ser usados
como pontos de resolução e as terceiras pitagóricas já não assentavam bem no
contexto musical. O sistema que preconizava era o que se chama hoje o sistema
ptolomaico, um dos sistemas propostos por Ptolomeu, no século II D.C.
Os vários sistemas de afinação natural que foram desenvolvidos ao longo dos tempos
ecoam os vários estilos e gostos musicais. Mas estes também, por sua vez,
influenciaram os tipos de afinações (ou temperamentos) adoptados.
No século XV, começou a surgir o gosto por terceiras naturais e os músicos começaram
a experimentar usar formas modificadas da afinação pitagórica para obter terceiras
mais perto do seu valor natural. O grande teórico da Renascença, Gioseffo Zarlino
(1517-1590), defendia uma sistema de entoação justa baseado nas terceiras, e não
nas quintas, como no sistema pitagórico, já que as terceiras passaram a ser usados
como pontos de resolução e as terceiras pitagóricas já não assentavam bem no
contexto musical. O sistema que preconizava era o que se chama hoje o sistema
ptolomaico, um dos sistemas propostos por Ptolomeu, no século II D.C.
A escala pitagórica
Foi a escala mais usada na Europa nos séculos XIII e XIV e ainda estava em uso no
século XVI. Era construída com base numa série de quintas perfeitas, que garantia
também quartas perfeitas. Todos os valores dos inteiros cujas razões definiam os seus
intervalos eram potências de 3 ou 2, já que todos eles são derivados de quintas (3/2)
ou oitavas (2/1). Como o maior número primo presente é 3, diz-se que é um sistema
de afinação natural «de limite 3». Os intervalos podem ser obtidos combinando oitavas
(2/1) e quintas (3/2): um tom corresponde a 2 quintas - 1 oitava [(32)/(23) = 9/8];
uma 3ª maior, a 4 quintas - 2 oitavas, 81/64; um semitom (diatónico) a 3 oitavas - 5
quintas, 256/243.
O ciclo de quintas define os intervalos seguintes, que não cabem numa oitava
(obtemos um B# que não é C'=1200 cents).
o ciclo de quintas
razão cents
..................
8192/6561 (Fb) 384,36
4096/2187 (Cb) 1086,315
1024/729 (Gb) 588,27
256/243 (Db) 90,225
128/81 (Ab) 792,18
32/27 (Eb) 294,135
16/9 (Bb) 996
4/3 (F) 498
1/1 (C) 0
3/2 (G) 701,9
9/8 (D) 203,9
27/16 (A) 905,9
81/64 (E) 407,8
243/128 (B) 1109,8
729/512 (F#) 611,7
2187/2048 (C#) 113,68
6561/4096 (G#) 815,64
19683/16384 (D#) 317,595
59049/32768 (A#) 905,9
177147/131072 (E#) 521,505
531441/262144 (B#) 1223,46
Na escala pitagórica, o ajuste do ciclo de quintas, para fazer com que os intervalos
caibam numa oitava, é feito usando um ciclo de 11 quintas perfeitas: Eb Bb F C G D A
E B F# C# G#. De G# para D#, ou de Ab para Eb, teríamos uma 5ª perfeita. Mas a
12ª quinta que se usa é G#-Eb, que «absorve» toda a coma ditónica e fica dissonante,
«uivando» como um lobo (o desvio em relação ao intervalo perfeito é a coma ditónica
(ou pitagórica) de -23,46 cents, isto é, ela tem 678,485 em vez de 701,9 cents).
Fb-Cb-Gb-Db-Ab-Eb-Bb-F-C-G-D-A-E-B-F#-C#-G#-D#-A#-E#-B#
\ /
\ /
---------(-23,46)----
Altura: C C# D Eb E F F# G G# A Bb B C
Razões:1/1 2187/20489/8 32/27 81/644/3 729/5123/2 6561/409627/1616/9 243/1282/1
cent: 0 113,68 203,9294,1 407,8498 611,7 701,9 815,64 905,9996,1 1109,8 1200
1/2-tom 113,6890,2 90,2 113,6890,2 113,6890,2 113,6890,2 90,2 113,6890,2
A escala de dó maior tinha as 7 notas que tem a escala que usamos hoje com 5 tons
de 9/8 (113,68+90,22=203,91 cents) e 2 semitons (E-F e B-C) de 256/243 (90,225
cents).
dó ré mi fá sol lá si dó
1/1 (3/2)2*1/2 (3/2)4*1/22 4/3 3/2 (3/2)3*1/2 (3/2)5*1/22 2/1
1/1 9/8 81/64 4/3 3/2 27/16 243/128 2/1
Um tom era definido como a diferença entre uma quinta e uma quarta perfeitas (3/2 :
4/3 = 9/8 =1,125 ou 203,91 cents), ou seja, como uma 2ª maior natural. Cada tom de
9/8 é dividido em dois meios tons diferentes: um de 2187/2048 (113,68 cents) e outro
de 256/243 (90,225 cents). Note que 256/243*2187/2048=9/8.
Obtém-se uma nota sustenida multiplicando o valor da nota por 2187/2048 (ou
somando 113,68 cents) e uma nota bemol dividindo pelo mesmo valor (ou subtraindo
113,68 cents). As notas enarmónicas distam de um coma ditónico.
C-------------Db-----C#--------------D
<-23,46->
<-------113,68--------><----90,22---->
<----90,22----><-------113,68-------->
<---------------203,9---------------->
Na figura seguinte, visualiza-se melhor a relação das notas que se obtêm com as da
escala de temperamento igual em uso actualmente no ocidente (em que todos os
meios tons são de 100 cents).
Era uma escala apropriada para música da época em que não se usavam modulações e
que era escrita usando os modos antigos que precederam as escala maior e menor. Os
graus da gama diatónica são justos para a dominante e a sub-dominante em dó maior
(sól e fá ), mas os outros graus não são justos. Não resulta mal para a tonalidade de
dó maior mas, para notas estranhas a essa tonalidade, ocorre sempre algum desvio.
Os intervalos correspondentes às escalas maiores (e menores) eram bastante
diferentes para alguns tons menos usados, como C#, F# e G#.
O intervalo de 5/4 (386 cents - a 3ª maior justa) tem um efeito muito mais suave e
exerceu uma sedução considerável sobre os cantores desde a Idade Média que
provavelmente o utilizaram, mesmo sem terem a consciência disso. Note que a 3ª
pitagórica tem um batimento a que já estamos habituados porque é muito parecido
com o da 3ª da escala de temperamento igual. Mas 5/4 era um intervalo proibido no
sistema pitagórico que exclui todos os factores primos superiores a 3. A diferença entre
os dois intervalos é o intervalo 81/80(=81/64:5/4=81/64:80/64), que é ligeiramente
mais pequeno que o coma pitagórico e a que se chama o coma sintónico (ou
ptolomaico). Mas estas terceiras e sextas mais amplas eram mais «activas» e tinham
um grande poder expressivo.
Altura: C C# D Eb E F F# G Ab A Bb B C
Razões: 1/1 16/15 9/8 6/5 5/4 4/3 45/32 3/2 8/5 5/3 9/5 15/8 2/1
cent: 0 111,73 203,9 315,64 386,32 498 590,2 701,95 813,68 884,3587 1017,59 1088,27 1200
1/2-tom 111,73 92,178 111,73 70,67 111,73 92,178 111,73 111,73 70,67 133,2376 70,67 111,73
A quinta D-A (de 680,45 cents em vez de 701,955) introduz o intervalo 40/27,
demasiado pequeno em comparação com a quinta de 3/2 (a diferença é o coma
sintónico); é uma quinta «do lobo»; soa mal, com batimento, e só pode eventualmente
ser utilizada como ponto de passagem rápida, mas não como um ponto de
estabilidade. Isto torna os acordes de 3 tons (tríades) afinados, exceptuando o acorde
D-F-A, bastante inutilizável. Ou seja, num teclado afinado assim, poderemos tocar os
acordes maiores C, F e G mas se quisermos passar a um acorde de D teremos
problemas. E se quisermos ir para tons mais distantes como Ab, E e F# será ainda
pior.
O facto de existirem dois tamanhos para os tons (9/8 e 10/9) (e 4 semi tons
diferentes: 25/24 (70,67 cents), 135/128 (92,178),16/15 (111,73), 27/25 (133,23))
não é muito satisfatório para música puramente melódica. Quando C e E estavam
afinados como uma 3ª maior perfeita (5/4), D devia ser afinado em (9/8) para a
tonalidade de C, mas como 10/9 para a tonalidade de D. Por isso se pensou em criar
apenas um tom que tivesse um valor médio entre o maior e o menor. D passou a estar
exactamente a meio, entre o C e o E, e daí o nome de tom mediano e de
temperamento mesotónico.
Altura C D E F G A B C
1 9/8 5/4 4/3 3/2 5/3 15/8 2
Intervalo 9/8 10/9 16/15 9/8 10/9 9/8 16/15
cents 203,9 182,4 111,73 203,9 182,4 203,9 111,73
O temperamento mesotónico
Surgiram então os sistemas de entoação justa em que havia um tom maior (9/8) e um
tom menor (10/9). Quando C e E estavam afinados como uma 3ª maior perfeita (5/4),
D devia ser afinado em (9/8) para a tonalidade de C, mas como 10/9 para a tonalidade
de D. Por isso se pensou em criar apenas um tom que tivesse um valor médio entre o
maior e o menor. D passou a estar exactamente a meio, entre o C e o E, e daí o nome
de tom mediano (ou médio) e de temperamento mesotónico.
Altura C D E F G A B C
Razões 1/1 51/2/2 5/4 5-1/4*2 51/4 53/4/2 55/4/4 2/1
Intervalo 51/2/2 51/2/2 (8/5)*5 -1/4 51/2/2 51/2/2 51/2/2 (8/5)*5 -1/4
cents 193,1 193,1 117,1 193,1 193,1 193,1 117,1
(++) O coma sintónico corresponde a 80/81 ou 21,5 cents. 1/4 de coma corresponde,
por isso, à raiz 4ª deste valor, ou seja, a (80/81)1/4=0,996899 ou - (21,5)/4 cents =-
5,37657 cents. Cada uma das onze 5ªs temperadas mesotónicas fica a valer 3/2 *
(80/81)1/4 =(81/16)1/4* (80/81)1/4= 51/4=~ 1,4953 ou seja 696,575 cents. Fica um
excesso de 11*5,375=59,1423 cents no ciclo de quintas que, depois de absorvido o
coma pitagórico (de 23,46 cents), será de 59,1423- 23,46 =35,6823 cents. A 12ª
quinta é então um lobo com uma amplidão catastrófica então com
35,6823+701,95=737,632 - um lobo! (Note que 11 quintas descendentes seguidas de
7 oitavas crescentes: 27 / 511/4= ~ 1,5312 --- 737,6373).
Altura: C C# D Eb E F F# G G# A Bb B C
Razões: 1/157/4/1651/2/2 5-3/4*4 5/4 5-1/4*2 53/2/8 51/4 52/16 53/4/2 5-1/2*4 55/4/4 2/1
Cêntim.:0 76,05 193,16310,26386,31503,42579,47696,58772,63889,741006,841082,891200
1/2-tom 76 117,1 117,1 76 117,1 76 117,1 76 117,1 117,1 76 117,1
dif. TI 0 -24 -7 +10 -14 +3 -21 -3 -27 -10 +7 -17 0
51/4 51/4 51/4 51/4 51/4 51/4 51/4 51/4 51/4 51/4 51/4 51/4 51/4 51/4 51/4 51/4 51/4 51/4 51/4
Fb--Cb--Gb--Db--Ab--Eb--Bb--F--C--G--D--A--E--B--F#--C#--G#--D#--A#-
-E#--B#
\ /
\ /
------------(5-11/4*128)----------
A quinta do lobo
Na escala pitagórica, havia 11 quintas puras, ficando uma uma quinta «do lobo»
catastroficamente curta (G#-Eb (ou Ab-Eb), um intervalo raramente utilizado) que
tinha que absorver todo o coma pitagórico de 23,46 cents e ficava com 678 cents em
vez de 701,96. No caso do temperamento mesotónico, o objectivo de obter 3ªs
maiores puras (de 5/4 ou 386,31 cents) requer que se encurtem de 5,375 cents cada
quinta, o que é aceitável. O limiar de distinção do ouvido humano é de cerca de 2 ou 3
cents. As sextas maiores também só distam de 5 cents das justas.
Este temperamento já pode ser considerado «regular», porque nas tonalidades com
menos de 4 acidentes as notas da escala maior estão na mesma posição relativa, com
a 3ªs todas puras. As 5ªs ficam um pouco curtas mas não se nota muito a diferença
desde que elas sejam usadas em acordes que tenham também as 3ªs maiores
perfeitas. E daí surgiu a prática, na música europeia, de não usar quintas perfeitas sem
que elas fossem completadas por uma terceira. Uma 3ª maior e uma 5ª perfeita na
mesma tonalidade fazem uma tríade maior, o acorde mais comum na música europeia
de 1500 a 1900 - a era mesotónica. Há basicamente 8 tríades maiores «usáveis», nas
tonalidades de C, D, Eb, E, F, G, A e Bb, e 8 tríades menores nas tonalidades relativas
menores «correspondentes» de A, B, C, C#, D, E, F# e G. A música da Renascença e
dos primeiros tempos do Barroco tendia a ser num pequeno grupo de tonalidades
(próximos de C no ciclo de quintas): C, F, G, D, Bb ou A. As tonalidades de C, F e G
têm 4ªs e 5ªs «boas» que lhes dão uma qualidade pacífica e estável. O carácter do
som torna-se mais vivo há medida que mais alterações (# e b) são adicionadas,
tornando aparente a «irregularidade» da escala cromática.
Pondo de lado o «Cravo bem temperado», a música de Bach está centrada na tradição
mesotónica e nas muitas possibilidades de coloração tonal que ela oferece embora
estivesse sempre a explorar as suas capacidades até os seus limites. Bach usa a
modulação como um meio de expressão e ousa usar as tonalidades mais remotas para
obter períodos de tensão. A mudança de tonalidade no meio de uma peça era um
acontecimento «audível», uma mudança que se notava, e Bach evocava
deliberadamente os efeitos de coloração que se podiam obter de um temperamento
desigual quando saía da tonalidade de base e entrava em secções mais dissonantes
apimentadas por suspensões e intervalos menos consonantes. Conta-se que Bach um
dia tocou num órgão construído por Gottfried Silbermannn (1/6 de coma) nessas
tonalidades mais dissonantes de tal modo que, a certa altura, o construtor se teve de
retirar, com «o seu próprio lobo» a uivar-lhe nos ouvidos.
Foi um temperamento que serviu bem para a música até à época de J.S. Bach,
sobretudo para o cravo - um instrumento em que se podia alterar a afinação das teclas
rapidamente. Como os meios tons diatónicos (117) ficam maiores do que os
cromáticos (76): os enarmónicos não são equivalentes. Assim, por exemplo, ou se
afina uma tecla do cravo em G# (772,6) ou em Ab (813,6864= (Eb)310,2684-
696,5784+1200), podendo ser necessário reafinar o instrumento entre duas peças em
tonalidades diferentes. Quanto ao alaúde, esse pedia um temperamento igual por
causa dos seus trastos.
Altura C D E F G A B C
Razões 1/1 25/31 210/31 213/31 218/31 223/31 228/31 2/1
387,0968 1083,871
cents 0 193,5484 503,2258 696,7742 890,3226
1200
dif EM 0 +0,4 +0,78 -0,2 +0,2 +0,5 +0,9 0
218/31 218/31 218/31 218/31 218/31 218/31 218/31 218/31 218/31 218/31 218/31 218/31
18/31
2
Fb--Cb--Gb--Db--Ab--Eb--Bb--F--C--G--D--A--E--B--F#--C#--G#--D#--A#-
-E#--B#
\ /
\ /
---------seria-(219/31)----------
Huygens afirmava que o teclado móvel tinha sido de facto construído em Paris com
sucesso e consistia de um teclado de 12 teclas que se podia fixar em diversas posições
por cima de um subteclado com 31 barras. Um deslizamento da largura de uma barra
realizava uma passagem enarmónica do tipo sol#-láb.
A busca do Graal
O temperamento igual está já tão estabelecido na nossa cultura que já não nos
apercebemos que as terceiras e as sextas são demasiado amplas («sustenidas») e
ásperas (as 3ªs maiores ficam com 400 cents em vez de 386; as 5ªs, com 700 cents,
ficam muito perto dos 702 das 5ªs perfeitas). Habituámo-nos ao seu som mas elas
realmente têm um som bzzzz à mistura - um batimento - que se ouve muito bem se,
por exemplo, tocarmos duas notas graves no piano distanciadas de uma oitava mais
uma 3ª maior ou uma 6ª maior. Os afinadores de piano contam até os batimentos por
segundo nesses intervalos quando o «afinam correctamente». Talvez o bzzz acabe por
dar uma certa excitação e intensidade harmónicas (uma cafeína sonora) que acabam
por nos fazer hoje achar que falta qualquer coisa aos acordes naturais, que são mais
calmos e passivos e próprios para meditação e fazem com que a nossa atenção se vire
para dentro em vez de para fora.... talvez isso tenha qualquer coisa que ver com a
nossa cultura psicológica do progresso e acção.
Não parece haver nada de objectivo que confirme que é apenas por uma questão de
hábito que hoje não apreciamos certas interpretações em que há algumas derivas do
diapasão por se usarem extensivamente intervalos justos. Aparentemente há mesmo
um espécie de referencial diatónico nos seres humanos. Como aconselhava Zarlino e
Ptolomeu, podemos construir um modelo racional mas devemos depois pô-lo à prova,
usando o ouvido!
Os bons temperamentos
Werckmeister (1691) repartiu o coma pitagórico entre cinco das 12 quintas: dó-sol,
sol-ré, ré-lá, lá-mi e si-fá#. As outras quintas ficam puras ou quase puras. A quinta do
«lobo» é assim eliminada e todas as quintas são agora usáveis. As 5ªs envolvendo as
notas diatónicas (ex:. C-G, D-A) podem ser temperadas por 1/4 de coma pitagórica
(5.87 cents) enquanto outras (ex: F#-C#, Eb-Bb) são deixadas perfeitas. As 3ªs
maiores próximas da tonalidade de dó maior (dó-mi, fá-lá, sol-si,...) são pouco maiores
que as justas mas as mais afastadas são pitagóricas (réb-fá, fá#-lá#,...). As
tonalidades mais frequentes são «boas», as menos frequentes «menos boas». O
resultado é que tríades como C-E-G ou G-B-D ficam com 3ªs puras ou quase puras,
como no temperamento mesotónico, e tríades como F#-A#-C# ficam com 3ªs mais
activas e tensas, como no temperamento pitagórico. Em pontos intermédios, o grau de
tensão tem valores intermédios resultando num espectro graduado de «cor tonal».
A ideia de estabelecer um temperamento igual não foi a opção tomada porque isso
eliminaria as diferentes «cores» de cada tom. Os sistemas de bom temperamento
foram os que mais agradaram aos músicos do século XVIII porque são sistemas que
permitem utilizar todos os tons e tirar partido do facto de cada tom ter as suas
características e sua «cor». Do ponto de vista artístico, o bom temperamento dá ao
compositor uma paleta tonal de contrastes que funciona como uma dimensão
expressiva adicional. A «dissonância» das 3ªs nas tonalidades mais remotas tornou-se
uma parte da linguagem musical do século XVIII, reflectindo-se nas teorias do
«carácter tonal». As terceiras quase-pitagóricas só apareciam nas transposições mais
remotas. Nas posições mais proeminentes estavam 3ªs puras e repousantes que
ofereciam uma resolução contrastante às dissonâncias «microtonais» das 3ªs e tríades
mais tensas nas transposições mais remotas.
Discute-se ainda hoje se Johann Sebastian Bach escreveu a sua colecção de prelúdios
e fugas «O cravo bem temperado» em todos os 24 tons maiores e menores
exactamente para mostrar toda a gama de cores disponíveis nestes sistemas ou se
apenas para demonstrar a capacidade de transposição (também existente no
temperamento igual). Bach usou um dos temperamentos desenvolvidos por Johann
Philipp Kirnberger (1721-1783). A escala de um deles, o sistema Kirnberger III, era a
seguinte:
Altura C C# D Eb E F F# G G# A A# B C
razões 1/1 256/243 51/2/2 32/27 5/4 4/3 1024/729 51/4 128/81 53/4/2 16/9 15/8 2/1
cent 0 90,2 193,1 294,2 386,3 498,0 588,2 696,6 792,2 889,7 996,0 1088,3 1200
1/2 90,2 102,9 101,1 92,1 111,7 90,2 108,4 95,6 97,5 106,3 92,3 111,7
tom
dif TI 0 -9,8 -7 -5,8 -14 -2 -11,8 -3 -7,8 -10 -4 -11,7 0
O que faz com que se possam usar todos os 12 (ou 24) tons é o facto de nenhuma 5ª
ser menor do que 696 cents ou maior do que 702. A única 3ª maior pura é C - E
(5/4=>386,31 cents) mas G-B e F-A valem 392 cents e são ainda mais doces que no
temperamento igual. A-C# e Eb-G são quase iguais às do temperamento igual (com
uma qualidade mais neutra) e as outras têm valores crescentes até à 3ª pitagórica
(81/64=>407,8 cents), e são mais activas e tensas. A 3ª menor C - Eb é (32/27=>
294,1 cents) e as outras têm valores crescentes aproximando-se da 3ª menor pura
(6/5=>315,64 cents).
Todos os tons e acordes podem ser usados e, exceptuando os tons «mais remotos»,
soam geralmente mais consonantes dos que os do temperamento igual. Não existem
intervalos muito dissonantes (não há «lobos»). Cada tom tem a sua cor: C, F e G são
muito pacíficos e serenos e bons para pastorais. Os tons com muitos sustenidos são
brilhantes e alegres e os com muitos bemóis mais sombrios e escuros. Alguns
temperamentos têm 3 ou 4 grupos de tons com cores semelhantes e noutros a
mudança de cor é gradual à medida que mais sustenidos ou bemóis são adicionados.
Temperamento igual
desvio da 12ª
quinta de 3/2 -23,46 -1,95 +35,665
(lobo) (lobo)
desvio da 3ª
maior de 5/4 +21,5 +13,69 0
No temperamento igual, a 3ªmaior fica cerca de 7.82 cents menor do que a pitagórica e cerca
de 13,69 cents maior do que a 3ª pura do temperamento mesotónico de 1/4 de coma
sintónico. O temperamento igual é um compromisso entre as 3ªs activas pitagóricas e
as 3ªs mais repousantes da Renascença. Mas é um compromisso que se inclina mais
para o som pitagórico, com as suas 4ªs e 5ªs quase puras, as suas 3ªs e 6ªs bastante
activas e os seus meios tons diatónicos relativamente pequenos. De facto, o
temperamento igual pode ser visto como uma «variante» da afinação pitagórica que
era usada nos instrumentos com trastos, como o alaúde, desde o século XVI. Para
esses instrumentos, o temperamento igual era mais uma questão de necessidade do
que de escolha. Não deixa de ser curioso que o temperamento actualmente usado
tenha uma afinidade tão grande com o mais antigo. Mas, se pretendermos poder usar
todas as 12 quintas, não há dúvida que o temperamento igual é um modo expedito de
o conseguir de um modo conceptualmente simples e num teclado normal sem ser
demasiado «brutal» do ponto de vista musical.
A oitava é dividida em 12 meios tons iguais, cada um com 21/12 (ou 100 cents,
ligeiramente menos do que 18/17). (É claro que, de facto, os intervalos entre cada
duas notas são apenas «logaritmicamente iguais» o que faz com que, devido à
fisiologia do sistema auditivo, soem como iguais em quase toda a gama audível.) As
notas enarmónicas têm a mesma frequência (C# e Db são a mesma nota).
Altura: C C# D D# E F F# G G# A A# B C
1/12 1/6 3/12 1/3 5/12 1/2 7/12 2/3 9/12 5/6 11/12
Razões: 1/1 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2 2/1
cents: 0 100 200 300 400 500 600 700 800 900 1000 1100 1200
1/2-tom 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100
Um intervalo com n meios tons tem o valor 2n/12. Por exemplo, uma 2ª maior (com 2
meios tons) corresponde a 22/12= 21/6.Para calcular a frequência da nota sol na oitava
de um dó com 130,81 Hz, podemos usar a fórmula f=130,81 * 27/12=195,99 Hz, já que
há um intervalo correspondente a 7 meios tons entre o dó e o sol. O ciclo de quintas
pode ser representado assim:
27/12 27/12 27/12 27/12 27/12 27/12 27/12 27/12 27/12 27/12 27/12
C----G----D----A----E----B----F#----C#----G#----D#----A#----F
\ /
\ /
-------------------------- 27/12 ----------------------
Como todos os meios tons valem 100 cents, as oitavas são os únicos intervalos
perfeitamente afinados. Contudo, as 5ªs são excelentes (700 em vez de 702 cents). A
3ª maior é «má» (400 cents), mais próxima da pitagórica (408) que da justa (386). A
3ªs menor (e a 6ª maior) são também bastante «más» (15,6 cents de desvio). O
maior defeito do temperamento igual é a falta de terças e sextas maiores mais justas,
embora o seu batimento não desagrade demasiado na audição. A grande vantagem é
que todas as tonalidades se podem usar sem medo ou preferência porque cada
tonalidade está tão «afinada» ou desafinada como qualquer outra e a modulação total
enarmónica é possível. Permitia uma muito maior facilidade nas transposições e
modulação já que é um temperamento «isocromático» - o tamanho dos intervalos e a
«cor tonal» são consistentes, independentemente da localização no sistema tonal A
diferença entre as tonalidades, que os compositores da época assumiam quando
escreviam música para teclado, desapareceu por completo - e, por essa razão - o
temperamento igual não era considerado «bem temperado». Não foi adoptado por se
entender que soava melhor mas porque permitiu aos compositores dos séculos XVIII e
XIX explorarem harmonias e modulações mais complexas.
Ao que parece, o temperamento igual já era conhecido na China no século V, AC. Mas
aparece na Europa no século XVI, usado para instrumentos com trastos (alaúde, viola).
Só se começou a impor para o cravo depois da época de Bach.
No entanto, por volta de 1373, surgiram em Inglaterra alguns órgãos com tubos na
proporção 18:17:16 dividindo um tom (9/8) a meio pela construção de um tubo para
produzir um meio tom cujo comprimento que era a média dos dois tubos produzindo
sons distanciados de um tom. O tom pitagórico de 203,9 cents ficava dividido num
meio tom mais grave de 98,95 e um mais agudo de 104,95 cents. Nessa época, havia
matemáticos a estudar a forma de dividir um intervalo de 9/8 em duas partes iguais
com base num sistema de expoentes racionais, já que se tinha já percebido que não
seria possível fazê-lo com base em proporções racionais. No entanto, só no início do
século XVI começaram a ser propostos temperamentos desse tipo.
Para as vozes, defendia-se o uso da entoação justa (ou natural) e para os teclados o
temperamento mesotónico. Mas havia já quem defendesse que o temperamento igual
devia ser estendido a estes casos, como Rosselli. Mas a sua realização prática
apresentava dificuldades. Os autores dos séculos XVI e XVII propuseram métodos
geométricos que consistiam em dividir um comprimento em 12 partes
geometricamente proporcionais umas às outras. Vincenzo Galilei, o pai de Galileu,
encontrou empiricamente a razão aproximada de 18/17, que foi tomada como
referência pelos construtores de alaúdes durante 2 séculos e meio. Mas, para afinar
instrumentos com teclado com temperamento igual, a única solução que se conhecia
era usar um instrumento com trastos como referência. Só muito mais tarde se
desenvolveu o método correcto de afinar um instrumento de teclado, com base nos
batimentos. E só em 1917 surgiu um método preciso de afinar com temperamento
igual um instrumento de teclado com toda a exactidão.
Para além dos problemas técnicos, e pesando mais do que eles, havia a recusa das
terceiras quase-pitagóricas que resultavam do temperamento igual, tão diferentes das
terceiras repousantes ao gosto da Renascença. E os amantes do «bom temperamento»
não gostavam das propriedades «isocromáticas» do temperamento igual: havia uma só
cor tonal para todas as tonalidades e nem sequer era a «cor» mais bonita que se podia
escolher entre as que o bom temperamento tinha. E todo o teclado ficava cheio de
terceiras quase-pitagóricas enquanto no bom temperamento elas só apareciam nas
transposições mais remotas. No bom temperamento, nas posições mais proeminentes
estavam 3ªs puras e repousantes que ofereciam uma resolução contrastante às
dissonâncias «microtonais» das 3ªs e tríades mais tensas nas transposições mais
remotas. Em 1879, William Pole escrevia que as 3ªs ásperas do temperamento igual
davam à música tocada por um órgão um efeito repulsivo e cacofónico. Já Giovanni
Maria Lanfranco, em 1533, dizia que se afinava de modo que «as 5ªs ficam tão
bemolizadas que o ouvido não fica contente com elas; e as 3ªs ficam tão amplas
quanto se consegue aguentar».
Foi só por volta de 1850, 27 anos depois da morte de Beethoven, e em conjunção com
a evolução do piano moderno e a introdução do cromatismo e impressionismo na
música romântica, que a utilização do temperamento igual começou a ser mais
generalizada (e no mundo inglês-falante, só uns 50 anos mais tarde). A música do
século XIX, especialmente a música altamente cromática de Chopin, Liszt ou Wagner,
não poderia ter «funcionado» se o temperamento igual não estivesse já estabelecido
como norma no seu tempo.
Referência: