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RUMO A UMA NOVA DEFINIÇÃO?

EDIÇÕES AFRONTAMENTO CIDADE EM Q U E S T Ã O / 9


Título: A Cidade: Rumo a Uma Nova Definição?
Autores: Jean Rémy e Liliane Voyé
Título original: La ville: vers une nouvelle définition?
© L'Harmattan, 1992
Tradução de José Domingues de Almeida, Instituto de Estudos Franceses
da Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Revisão científica e Prefácio de António Custódio Gonçalves,
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
© 1994, Edições Afrontamento
Edição: Edições Afrontamento / Rua Costa Cabral, 859/Porto
Colecção: Cidade em Questão / 9
N- de edição: 502
ISBN: 972-36-0331-4
Depósito Legal: 75180/94
Impressão: Litografia Ach. Brito
Acabamento: Rainho & Neves / Santa Maria da Feira
n r t n

Jean Rémy
Liliane Voyé

A CIDADE:
RUMO A UMA NOVA
DEFINIÇÃO?
y\

(I -T. J C j Z

Edições Afrontamento
ÍNDICE

PREFÁCIO 11

INTRODUÇÃO 13

PRIMEIRA PARTE
SITUAÇÕES NÁO URBANIZADAS

CAPÍTULO I: A ALDEIA NÃO URBANIZADA

1. Características espaciais e sociais 27


a. Organização espacial 27
b. Sistema social. Interacções e controlo 28
c. Sistema cultural 29
d. Sistema da personalidade 30
e. Predominância da ligação simbólica 31
2. Regime de trocas 31
a. Prioridade da identidade colectiva sobre a afirmação do indivíduo 32
b. Prioridade da harmonia na hierarquia 33
c. Economia e previdência 34
3. Do estrutural ao cultural 34
4. Dialéctica simbólico-imaginário 35

CAPÍTULO II: A CIDADE NÃO URBANIZADA

1. Características espaciais e sociais 39


a. Organização espacial 39
b. Sistema social: interacções e controlo 41
c. Sistema cultural 42
d. Sistema da personalidade 42
2. Regime de trocas 43
a. Prioridade da identidade colectiva 44
b. Prioridade da harmonia na hierarquia 45
c. Reprodução alargada 45
d. Do estrutural ao cultural 46
e. Dialéctica imaginário-simbólico 47
Conclusão 49
SEGUNDA PARTE
INDUSTRIALIZAÇÃO E RELAÇÃO COM O ESPAÇO

1. Situação de transição: região industrial. Configuração espacial e vida social 53


a. Sistema social 54
b. Sistema cultural 55
c. Sistema da personalidade 55
d. Rumo à decomposição do modelo de harmonia na hierarquia 56
2. Processo de industrialização e conjunção com a urbanização 57
a. Características materiais 58
b. Dinheiro e individualização 60
c. A urbanização como processo que dá à industrialização toda a sua lógica 61

TERCEIRA PARTE
SITUAÇÕES URBANIZADAS

SECÇÃO I: A CIDADE EM SITUAÇÃO URBANIZADA

CAPÍTULO I: Composição espacial e efeitos sociais 69

1. Lógica funcional 71
2. Lógica residencial 73
3. Exigência de mobilidade e integração na vida urbana 74

CAPÍTULO II: Lógicas da apropriação 77

1. Dinâmica de integração no modelo dominante 78


a. Sistema social 78
b. Sistema cultural 86
c. Sistema da personalidade 88
d. Urbanização e apropriação do espaço : 91
Conclusão 97
2. Modelos de distância e de ambiguidade 98
a. Bairros tradicionais 99
b. Bairros, comunidades de transição 101
c. Centros urbanos abandonados 105
d. Bairros de lata 106
e. Bairros suportes de um modo de vida alternativo 108
Conclusão: da contestação à alternativa 109

CAPÍTULO III: Contexto urbanizado e efeitos de estrutura social 113

1. Regime de trocas e formação de capitais 115


a. Formação do capital social 116
b. Utilização de uma legitimidade cultural: valorização do privado 120
2. Escassez dos bens e selecção das prioridades 122
3. Cidade e experiência do conflito 127
4. Interacções e regulação dos conflitos 131
a. A unidade de vizinhança 131
131
b. O bairro
c. O centro urbano 132
5. Da consciência de classe à emergência de uma sociedade de massa 134
a. Processo de individuação e vida social 134
b. Individuação e modalidades específicas de dinâmica social 137
Conclusão 143

SECÇÃO II: O RURAL EM VIAS DE URBANIZAÇÃO

1. Transformação da composição espacial 150


2. Modificação do sistema social 152
3. Autonomia da pessoa 153
4. Códigos culturais e regimes de trocas 154
5. Do rural abandonado ao rural cobiçado 157
6. Um campo especifico do rural: a agricultura 159
Conclusão 163

CONCLUSÃO 165
PREFÁCIO

A obra «La ville: vers une nouvelle définition?», de Jean Rémy e Liliane Voyé,
professores da Universidade Católica de Lovaina, reputados sociólogos e especialistas
de questões rurais e urbanas, insere-se no conjunto de uma vasta e sólida obra que
os autores têm dedicado ao ensino e à investigação dos fenómenos urbanos.

Esta obra de sociologia do espaço, muito bem estruturada, é equacionada em


função da questão central sobre a lógica social subjacente a várias modalidades de
apropriação do espaço, referentes a três tipos de situações que apresentam várias
características específicas, consideradas como pertinentes, simplificadas e contras-
tadas: de pré-urbanização, de transição ou de industrialização e de urbanização. A
urbanização é definida como o processo que integra a mobilidade, não apenas de
pessoas e de bens, mas também de mensagens e de ideias na vida quotidiana. A mobi-
lidade espacial e as trajectóriaas sociais resultam da interacção da vertente estrutu-
ral, ligada à lógica objectiva dos poderes públicos, promotores imobiliários e outros
agentes sociais e aos recursos do meio e às possibilidades técnicas, e da vertente
cultural associada à lógica intencional donde decorrem as percepções e as práticas
simbólicas e se constrói o sentido mobilizador. Nesta perspectiva, a mobilidade espa-
cial altera a lógica funcional e residencial dos estudos funcionalistas sobre a cidade.

A reflexão inovadora deste trabalho assenta em três grandes eixos de proble-


matização teórica — a organização do espaço, o sistema social e o sistema cultural
—> em torno dos quais se articulam os debates e os desenvolvimentos actuais sobre
a cidade e que configuram a ruptura epistemológica com velhos paradigmas funcio-
nalistas, economicistas e culturalistas e a sua substituição por novas e fecundas for-
mas de acumulação e de articulação de conhecimentos. No centro da abordagem está
a prioridade dada à lógica de apropriação dos espaços já constituídos, articulada
com a análise em termos de estrutura social.

11
Daqui resulta a importância do debate das seguintes questões: a análise da
cidade como uma entidade social e espacial específica, sujeita a mudanças constantes
na apropriação de espaços estratégicos e à procura de uma nova matriz de composi-
ção urbana, o confronto de modelos culturais que orientam tanto a tradição e a
continuidade como o conflito e a mudança, as continuidades ou descontinuidades e
rupturas do projecto e do controlo colectivo da comunidade consensual e do projecto
individual de uma sociedade fragmentada pelas estratificações sociais e orientada
pelo poder de opção e pela criatividade individual.

Nesta mesma perspectiva situam-se as obras dos mesmos autores La ville et


Turbanisation, publicada em 1974, cuja temática fundamental é agora reelaborada e
ampliada, e Ville, ordre et violence, datada de 1981, esta com maior ênfase na simbólica
e nas suas ligações com a territorialidade. A leitura da obra La ville: vers une nouvelle
définition? deve ser complementada com outras obras em que intervieram os mesmos
autores, privilegiando embora a perspectiva da lógica de produção do espaço e que
se interroga sobre a maneira como vários actores sociais são ou não capazes de
transformar o espaço: La ville, phénomène économique, datada de 1966, e Produire
ou reproduire? Une sociologie de la vie quotidienne, o primeiro volume publicado em
1978 e o segundo em 1980.

A presente edição portuguesa do livro La ville: vers une nouvelle définition?,


publicado em 1992 pelas Edições L'Harmattan, na Colecção «Villes et Entreprises»,
revela-se oportuna. Trata-se de um importante trabalho de síntese e de um guia
referencial de análise densa e de interpretação adequada de questões rurais e
urbanas, numa perspectiva integradora e interdisciplinar, procurando articular e
valorizar os contributos das diferentes escolas e das múltiplas perspectivas de
abordagem. Constitui uma referência fundamental para sociólogos, antropólogos,
geógrafos e urbanistas, para especialistas ou para estudantes que pretendem com-
preender os conceitos, os autores e as problemáticas, cuja abrangência não está
limitada por preferências paradigmáticas, metodológicas ou temáticas. Destina-se
igualmente a dar a conhecer a um público mais alargado perspectivas e problemáticas
que pela sua importância merecem ampla divulgação e discussão.

A. Custódio Gonçalves

12
INTRODUÇÃO

É a compreensão do estatuto do espaço e dos modos de agrupamento das popula-


ções e das actividades que é objecto desta obra. Partindo da oposição que, facilmente,
a linguagem corrente estabelece entre cidade e campo, o tema mostrará como a urba-
nização — entendida enquanto processo que integra a mobilidade espacial na vida
quotidiana — conduz a uma redefinição da incidência dos modos de territorialidade
nas formas sociais de troca e de estruturação das relações de força.
Embora de uso corrente, o termo cidade não deixa de ser um conceito ambíguo.
É, com efeito, simultaneamente, um conceito descritivo, que permite detectar uma
realidade material concreta, e um conceito interpretativo, na medida em que evoca um
conjunto de funções sociais várias que fazem da cidade algo bem diferente de uma
empresa ou de uma escola, por exemplo. A importância desta distinção é essencial
pois permite logo à partida a recusa de toda a tentação de ver uma ligação automática
entre ambos os níveis e evacuar a ideia segundo a qual um modo de composição espa-
cial, descrito no plano da sua materialidade, estaria ligado a um tipo único de inter-
dependência entre funções ou de modo de vida. Seria o caso, por exemplo, se se dei-
xasse entender que o simples facto de se ir habitar para a cidade induz, por si próprio,
um modo de vida específico, marcado nomeadamente pela multiplicação das redes
relacionais deslocalizadas. A observação do que se passa, de facto, na cidade vem
contradizer, com efeito, o carácter automático e unívoco de semelhante afirmação,
pois que se pode constatar que se efectivamente, para alguns, a cidade favorece este
tipo de desenvolvimento relacional, ela também é para outros um lugar de destaque de
anonimato, ao passo que outros ainda limitam nela as suas relações às que a vizinhança
lhes proporciona. As características da materialidade não podem, pois, ser traduzidas
automaticamente em termos de modos de vida, já que a confusão de umas e de outras
induz efeitos perversos mais ou menos graves. Não foi precisamente ela, por exemplo,
que levou, muitas vezes aos milhares, aos bairros de lata nas proximidades das
grandes cidades da América do Sul toda uma população que deixara as suas aldeias na
esperança de encontrar na cidade as condições de existência cuja imagem lhes tinha
chegado através dos rumores ou dos media! Não é, precisamente, essa mesma confusão

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que explica igualmente por que razão, inversamente, desde há um certo tempo, jovens
relativamente numerosos querem ir viver e trabalhar em aldeias, guiados que estão
pela ideia de que encontrarão aí uma convivência que a cidade lhes parece tornar
impossível?
É com vista a eliminar essa confusão frequente entre a materialidade e o efeito
social que convém clarificar o sentido de que se reveste o conceito em cada um de
ambos os níveis que acabamos de designar.
Encarado de forma descritiva, o conceito de cidade organiza-se à volta de vários
elementos. Evoca primeiramente uma certa densidade de habitat e uma dominância do
construído sobre o não-construído; ela é um espaço no qual a natureza se pode mais
ou menos inscrever, mas que, em todo o caso, ela não estrutura.
Além do mais, esse espaço essencialmente construído articula-se mediante vários
tipos de oposições: a oposição entre o interior e o exterior da cidade, particularmente
nítida quando era marcada pelas fortificações, pelas muralhas furadas de portas;
a oposição entre um centro, geralmente dotado de uma arquitectura relativamente
monumental, e bairros, de linhas e com construção mais ou menos distintas; a oposição
ainda entre espaços «privados», i.e. a acessibilidade limitada ou reservada, e espaços
públicos — praças, ruas, parques,... — abertos a todos e a cada um. Considerada nesta
perspectiva morfológica, a cidade tira a sua especificidade do facto de não ser o lugar
de exercício de uma função específica (como é o caso de uma casa, uma escola, um
hospital, uma empresa,...), já não o lugar onde se justapõem essas funções específicas
mas antes o lugar que põe essas várias funções em inter-relação, através da relação com
o espaço. Ao insistirmos nisto, distanciamo-nos logo à partida do funcionalismo que,
durante perto de três quartos de século, quis reduzir a cidade a uma soma de espa-
ços monofuncionais e, por exemplo, limitar a rua a não ser senão um eixo de circula-
ção, distinguindo, além do mais, a circulação dos peões das circulações mecânicas.
A cidade é para nós, pelo contrário, o lugar onde as inter-relações são decisivas e se
traduzem na própria morfologia. Outros — como Wirth — abordaram a cidade a par-
tir das suas características sócio-demográficas — volume, densidade, heterogenei-
dade —, mas trata-se, nesse caso, de um acesso à questão diferente do utilizado aqui,
o qual recusa logo à partida toda a ideia de ligação automática entre essas característi-
cas e seus efeitos.
Se quisermos, por outro lado, caracterizar a cidade como conceito interpretativo,
convirá então definir o laço existente entre um tipo de apropriação do espaço e uma
dinâmica colectiva. A cidade surge desde logo como sendo uma unidade social que,
por convergência de produtos e de informações, desempenha um papel privilegiado
nas trocas — materiais ou não —, em todas as actividades de direcção e de gestão e
no processo de inovação. É, por excelência, o lugar onde grupos vários, embora
permanecendo distintos uns dos outros, encontram entre si possibilidades múltiplas de
coexistência e de trocas mediante a partilha legítima de um mesmo território, o que
não somente facilita os contactos programados, mas principalmente multiplica as

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hipóteses de encontros aleatórios e favorece o jogo das estimulações recíprocas. Lugar
a partir do qual se estrutura o campo das actividades sociais, a cidade também confere
uma dimensão sistemática à cultura regional circundante; pode também, pelo contrário,
ser, em certos momentos, um lugar de ruptura e de inovação (1).
Outra abordagem interpretativa centra-se na dimensão sócio-afectiva, esforçando-
-se por perceber a ligação entre uma exploração das possibilidades e das potencialidades
proporcionadas pelas trocas imediatas. Estas duas perspectivas podem ser caracterizadas
por «efeitos de meio», entendidos no sentido em que Durkheim os define(2), i.e. enquanto
efeitos resultantes do encontro, numa determinada unidade espacial, de uma pluralidade
de elementos cuja composição vai desde logo modificar as reacções; este tipo de inter-
dependência, que funciona através do espaço, acaba por juntar-se, na abordagem
sociológica, à análise económica das externalidades. Por outro lado, a cidade estimula
a formação de redes relacionais a partir das trocas aleatórias que suscita.
Tal como a cidade, também o campo supõe uma dupla definição. Considerado na
sua morfologia, o campo surge como que oferecendo uma paisagem em que um habi-
tat e uma construção descontínuos se distribuem sobre um pano de fundo de natureza,
campos ou florestas; os povoados, as aldeias, constituem umas tantas unidades de
pequenas dimensões, com habitat compacto ou disperso, separadas espacialmente
umas das outras, e mais ou menos afastadas do pequeno centro que engloba algumas
funções mais específicas, destinadas ao uso do conjunto. Na sua significação funcional,
o campo surge, além do mais, como lugar a partir do qual se organiza a produção agrí-
cola, sem ser, contudo, mesmo neste domínio, um lugar totalmente autocéfalo, pois
está numa relação de dependência mais ou menos marcada em relação a uma entidade
exterior que o controla. Assim, existe uma dependência orgânica do campo para com
a cidade, a qual se distingue da única referência morfológica.
Esta dupla definição da cidade e do campo remete para um determinado modo de
territorialidade, i.e. um determinado modo de relação entre lugar de habitat e vida
social. E esse modo de relação que virá a modificar o processo de urbanização. Enten-
demos com isto um processo mediante o qual a mobilidade espacial vem estruturar a
vida quotidiana, por um lado porque várias inovações tecnológicas tornam esta pos-
sível e, por outro lado, porque o seu desenvolvimento se vê progressivamente conotado
positivamente, mesmo se tem um impacto diferente nos vários usos e representações
do espaço. Nesta perspectiva, analisaremos sucessivamente dois tipos de situação:
uma, dita não urbanizada, em que se dá quase sobreposição entre o aspecto morfoló-
gico e a estruturação da vida colectiva; outra, urbanizada, em que os laços se tornam
muito mais flexíveis e menos necessários.

(1) Jean REMY, Vilie, phénoméne économique, Bruxelles, Vie Ouvriére, 1966; ver principalmente o
capítulo III.
Jean RÉMY e Liliane VOYÉ, Ville, ordre et violence, Paris PUF, 1981; ver principalmente as pp. 28 a 32.
(2) Emile DURKHEIM, Les regles de la méthode sociologique.

15
O primeiro tipo corresponde a um estado prévio à urbanização, i.e. a uma situação
em que a vida quotidiana deve estruturar-se fora de qualquer possibilidade técnica de
deslocação: o caminhar do homem e o galopar do cavalo organizam o raio de acção
possível da vida quotidiana e a apreensão do mundo. Esta imposição técnica desdobra-
-se numa imposição moral que tende a desvalorizar a mobilidade na vida quotidiana,
embora deixando lugar a algumas aspirações a outros lugares longínquos que, em
circunstâncias particulares e em momentos excepcionais, podem então ver-se dotados
de uma valência positiva.
Esta sobreposição da morfologia e da estruturação da vida colectiva irá, em con-
trapartida, deslocar-se logo que a urbanização se desenvolver, i.e. à medida que forem
aparecendo meios cada vez mais variados e eficazes, não só de deslocar as pessoas e
os bens, mas também, e certamente sobretudo, de difundir à distância mensagens e
ideias. Já que a imposição espacial se vai enfraquecendo, a conjuntura radical entre a
morfologia e os efeitos sociais também se dilui, a ponto de os lugares que se tornam
estratégicos poderem doravante ser lugares periféricos, deslocando assim os desafios
e os investimentos, e destruindo, ao mesmo tempo que as muralhas, um número
importante de monopólios da cidade para os redistribuir segundo outras modalidades
espaciais.
Estes deslizes que se operam não provocam, no entanto — e é bom notá-lo — uma
ruptura total da ligação entre a morfologia e as funções sociais. Com efeito, a acessi-
bilidade quotidiana directa, ligada à proximidade espacial, continua determinante para
assegurar a possibilidade de trocas rápidas não programadas e a multiplicidade dos
encontros aleatórios, i.e. encontros a propósito dos quais não se pode dizer de antemão
nem quem se vai encontrar, nem o que será importante nos encontros realizados e nas
informações recolhidas assim ao acaso. A existência de tais encontros aleatórios
assenta na presença de lugares públicos e semipúblicos, os quais são os lugares pri-
vilegiados da sua emergência e os suportes mais seguros da vida colectiva. A
importância que atribuímos à existência de tais espaços afirma-se contra uma arqui-
tectura e um urbanismo «modernos», que, se é verdade que resolveram geralmente
bem os problemas de higiene e de salubridade e que, na maioria dos casos, responderam
bem às expectativas da ergonomia, negligenciaram no entanto espaços de vida colec-
tiva; estes não encontraram lugar na visão utopista e voluntarista que, ao fazer atribuir
um espaço específico a cada função, levou a uma «zonificação» que não tolera nenhu-
ma fracção de espaço, excepto aquela explicitamente designada e reservada. Ao recu-
sarmos semelhante concepção que tem amplamente guiado os ordenamentos do
espaço desde os anos trinta, e sobretudo cinquenta, queremos igualmente recusar as
tendências mais recentes, que, caindo num automatismo inverso, julgam que a
redescoberta ou a restituição dos traços urbanos do passado e do habitat irão gerar por
si só um regresso a um modo de vida «comunitário» (visto de modo idealizado: ausên-
cia de conflito, ausência de hierarquia,...) e devolverão a essa «comunidade local» o
poder de decisão sobre si própria e sobre o seu futuro. A esses dois pontos de vista

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extremos queremos opor uma situação no seio da qual se conjugam dois aspectos cuja
composição espacial pode dificultar ou favorecer a complementaridade: o reconheci-
mento do «valor» dos espaços públicos para o dinamismo da vida colectiva e o da im-
portância da mobilidade que, doravante, estrutura a vida quotidiana, quer dos indivíduos
quer dos actores colectivos que se constituem através dos espaços múltiplos (3) .
A urbanização assim definida afecta tanto a cidade como o campo e induz mudan-
ças análogas. Se, em situação não urbanizada, a associação entre a morfologia e a fun-
ção social é relativamente estrita, o mesmo não ocorre quando intervém o processo de
urbanização. A ligação entre ambos torna-se então mais flexível, de modo que habitar
o campo já não significa necessariamente trabalhar na agricultura e que pode haver
dissociação entre o futuro da aldeia e o dinamismo da agricultura; assim, sem que isso
anule radicalmente a ligação entre a aldeia e a simbólica agrícola, a qual permanece
um elemento integrador importante da percepção do campo enquanto quadro de vida,
o facto de se voltar a viver no campo está longe de implicar um retorno automático
à actividade agrícola, e os citadinos (como insistimos em designar os habitantes das
cidades) que, em dado momento, vão habitar para o campo, não se recrutam prioritaria-
mente entre os que não têm responsabilidades na cidade e/ou que delas não tiram um
máximo de vantagens.
É a partir do cruzamento destas duas duplas que a nossa abordagem se irá orga-
nizar. Analisaremos o processo de urbanização e a passagem de uma sociedade não
urbanizada a uma sociedade urbanizada, esforçando-nos por mostrar em que é que
essa mudança se mostra fundamental para compreendermos a relação da sociedade
com o espaço. Para cada uma destas duas situações evocaremos as especificidades
que, nelas, ganham quer a cidade quer o campo, sublinhando que a semelhança que
manifestam na estruturação de seu quotidiano em situação não urbanizada é maior que
a semelhança que pode existir entre uma cidade não urbanizada e um campo urbanizado.
Esta semelhança entre a cidade e o campo em situação não urbanizada permite ver
a proximidade que, apesar da diferença das suas funções, a estruturação dos espaços/
/tempos quotidianos respectivos de uma e de outra testemunha.
Noutra secção, estudaremos primeiro as transformações produzidas na cidade
pela urbanização, porque é aí que esta se manifestou primeiro e que conserva muitas
vezes os seus efeitos mais marcantes; veremos então quais são os efeitos dessa mesma
urbanização sobre o campo, ficando nós incessantemente zelosos em matizar as rela-
ções existentes entre a morfologia e a vida colectiva.

(3) Ver, nomeadamente, sobre o tema da mobilidade:


— Número temático da revista Espaces et Sociétés, n° 54-55, sobre a mobilidade, coordenado por Michel
BASSAND, Monique COORNAERT, Jean-Marie OFFNER e Pierre PELEGRINO, Paris, L'Harmattan,
1989.
— Alain TARRIUS, Anthropologic du Mouvement, Paradigme, Caen, Col. Transports et Communica-
tion, 27, 1989.

17
Entre essas duas secções, analisaremos uma situação de transição em que uma
mudança se produz sem que haja urbanização. A industrialização, que abordaremos
aqui, vem, com efeito, modificar as condições de produção, em particular ao provocar
a passagem do instrumento individualmente utilizável e apropriável para o instrumento
que supõe um accionamento colectivo com uma apropriação que, se também pode ser
colectiva, se mostra com efeito o mais das vezes concentrada nas mãos de alguns.
Insistiremos, nesse parágrafo, no facto de não haver necessariamente sobreposição
espacial entre urbanização e industrialização. Essa foi até uma das características do
início da era industrial: ver desenvolver-se as principais regiões industriais em zonas
então não urbanizadas — já que a sua localização depende essencialmente de lugares
de extracção das matérias-primas, carvão e minério de ferro. Certamente, aliás, há que
encontrar na «desordem» que marcou essas primeiras zonas industriais o referente
negativo que permitiu ao urbanismo «moderno» fundar a sua crítica da cidade e que
o levou a querer substituí-la por espaços estritamente ordenados e regulados; confun-
diam, assim, os dois processos que no entanto eram aí tão distintos um do outro como
ainda hoje o são, tanto nos países em vias de desenvolvimento, onde uma forte urba-
nização vai a par de uma débil industrialização, como nos países do Leste, onde o
desenvolvimento industrial acelerado está confrontado com uma sub-urbanização
patente (4).
As diferentes secções que acabam de ser enunciadas serão abordadas analiticamente.
Em cada uma delas, descrevemos primeiro sucintamente a composição espacial do
campo ou da aldeia, por um lado, e, por outro lado, a da cidade. Apegar-nos-emos
depois à explicação dos efeitos sociais desta última, com a preocupação de evidenciar
as interferências recíprocas(5). Insistiremos, além do mais, no facto de não existir rela-
ção automática e unívoca entre uma dada forma espacial e um efeito social particular,
mas que há entre eles toda uma gama possível de compatibilidades e de imposições.
Nessa perspectiva, perguntar-nos-emos em que é que o espaço, que é um modo de
composição de mobilidades e de temporalidades várias, investe no domínio dos
possíveis, partindo da hipótese segundo a qual a distância dificulta o contacto (pois há
sempre «coisas» que não se podem deslocar, mesmo pagando!) e a proximidade é
fonte de economias de aglomerações, i.e. vantagens que não podem ser produzidas
enquanto tais por ninguém porque resultam precisamente da proximidade que favorece
as complementaridades. Consideraremos além do mais o espaço como compondo o
«parecer» mediante o jogo complexo das visibilidades e das dissimulações. A esse
propósito, é interessante notar que o espaço tem sido considerado até há bem pouco
tempo como sendo o universo por excelência das significações e das representações
— e isso em contraste com outros aspectos do quotidiano que não tinham (ou tinham

(4) Ivan SZELENYI, Urban Inequalities under State Socialism.


(5) Amos RAPOPORT, Human Aspects of Urban Form. Towards a Man-Environment Approach to
Urban Form and Design, Oxford, Pergamon Press, 1977.

18
pouca) representação própria e deviam transitar pelo espaço para se representarem.
Era o que ocorria, em particular, com o tempo, o qual, as mais das vezes, não podia
dizer-se e manifestar-se a não ser em termos de espaço (desde o relógio solar até ao
de pulso...); mesmo se, às vezes, o inverso ocorria (quando se exprimiam, por exemplo,
as distâncias em termos de tempo, situando uma determinada cidade a x dias de outra,
tal como hoje Bruxelas fica, de avião, a 6 horas de Nova Iorque), parece evidente que
o espaço se tem visto durante muito tempo considerado como mais dominável que o
tempo e talvez principalmente como mais «legitimamente» dominável que um tempo
considerado como propriedade inalterável de Deus (6) .
Mais concreto, o espaço tem, pois, sido e continua a ser frequentemente utilizado
para representar o que parece não directamente apreensível — quer se trate do tempo,
já evocado, da «distância social» ou da mobilidade social.
Para analisarmos esses efeitos sociais não unívocos do espaço e das composições
espaciais, colocar-nos-emos sucessivamente em três pontos de vista, tendo presente o
facto de as posições sociais se constituírem em relações assimétricas. Este procedimento
levar-nos-á, pois, a acentuar o impacto do espaço no:

— Sistema social, i.e. as interacções estruturadas em função de alguns objectivos


e as modalidades de controle e de poder;
— Sistema cultural, i.e. a produção, a permanência ou a transformação dos esque-
mas operatórios que propõem soluções e respostas colectivamente produzidas, e como
tais colectivamente reconhecidas como legítimas, a todas as situações e a todos os
problemas que constituem a vida quotidiana;
— Sistema da personalidade, i.e. as modalidades através das quais o indivíduo se
implica afectivamente, mediante a afirmação da sua identidade e a elaboração do seu
projecto.

Ao considerarmos sucessivamente estes três sistemas perguntar-nos-emos se a


sua integração se efectua ou não através dos mesmos procedimentos; assim, veremos
que enquanto em situação não urbanizada é a relação interpessoal que estrutura e
legitima o sistema de interacções e seu controlo, os modelos culturais assim como a
identidade e o projecto, já em situação urbanizada os procedimentos que asseguram a
integração do sistema social, do sistema cultural e do sistema da personalidade tor-
nam-se parcialmente diferentes, de tal modo que se pode ver, por exemplo, coexistir
uma grande «eficácia» do controlo com uma grande carência ao nível da identidade.
Tendo assim efectuado uma primeira análise, retomaremos então o conjunto da
problemática, interessando-nos, desta feita, pela interferência existente entre os vários
elementos. Partindo do cultural, interrogar-nos-emos sobre os efeitos do regime de
trocas sobre o sistema social e sobre o sistema da personalidade. De igual modo,
baseando-nos na rede de interacções e nos recursos mobilizáveis, perguntar-nos-emos

(6) Georges BATA1LLE, La part maudite, Paris, Ed. de Minuit, 1967.

19
quais os efeitos produzidos por esse nível estrutural ao nível do sentido, i.e. no plano
cultural*. Por fim, afirmando logo de início a ambivalência do sistema da personalidade
no que tem simultaneamente de «actuada» pelas suas pertenças colectivas e «actuante»
nos seus distanciamentos destas últimas, insistiremos na oposição existente entre um
universo estruturado por uma simbólica afirmada e espaços-tempos alternativos
alimentados pelo imaginário.
Tendo, deste modo, passado da descrição da composição espacial à análise dos
efeitos sociais desta, finalizaremos interrogando-nos acerca da significação do espaço
encarado simultaneamente enquanto factor indutor e enquanto factor induzido — o
que nos permitirá explicitar melhor o sentido de que se reveste a relação com a
materialidade na constituição de uma dinâmica social.
Através deste pôr em situação recíproca de uma descrição espacial e de elementos
ligados à vida social, surgirá então a trivocidade dos laços que os une. Poderemos,
deste modo, reencontrar vários elementos da Escola de Chicago, embora nos distan-
ciando dela e do laço por demais automático que trabalhos entre a morfologia social
(volume, densidade, heterogeneidade) e os efeitos sociais de que dão conta supõem.
São estas, pois, as etapas do procedimento que iremos seguir e a finalidade que
lhes são subjacentes.
Antes de as abordarmos, parece-nos útil insistir em duas opções de método que
irão estruturar o conjunto do procedimento.
Quando falarmos do campo, da aldeia e da cidade, não visaremos apresentar o que
poderíamos designar por «tipos, meios», mas antes aproximar-nos do que o conceito
de ideal-tipo evoca. O que queremos, com efeito, é extrair aqui eixos heurísticos, ao
levarmo-los até ao limite do seu sentido com vista a compreendermos a lógica social
que faz a sua dinâmica. Para construirmos um ideal-tipo, referir-nos-emos por vezes
de forma explícita a uma situação concreta que esquematizaremos para dela extrairmos
os traços considerados pertinentes. A situação simplificada construída deste modo
servir-nos-á de base à elaboração de lógicas sociais. A concretizacão destas irá
repousar na proposta de exemplos cujo estatuto visará a compreensão, entendida no
sentido de Weber. Disporemos assim de uma matriz de questões que permitirão inter-
pretar situações concretas.
Queríamos igualmente chamar a atenção para o risco que haveria em cair na ilu-
são técnica, risco que uma análise que abordasse os problemas mediante materiali-
dade e técnicas poderia induzir. A escolha desta hipótese prévia não significa de modo
algum que vemos nestas os elementos indutores, as condições em si necessárias e
suficientes das transformações que intervêm nos efeitos sociais. Adoptar tal pers-
pectiva redondaria em considerar por exemplo que bastou que se descobrisse e
instalasse elevadores para que passássemos de uma situação em que os prédios de

* As palavras «structural» e «structural», utilizadas no original francês, foram traduzidas por estrutura
e cultural respectivamente (N. R.).

20
habitação abrigavam habitantes de níveis sociais diferentes consoante os pisos (os
ricos em baixo, os mais pobres nas partes superiores) para uma situação que tende a
uma homogeneidade social dos habitantes por prédio (ficando anulado o inconve-
niente que a subida dos pisos representava). A ilusão técnica que tal propósito tra-
duziria redundaria, com efeito, em ver no elevador o factor técnico que produziu a
mudança quando, na realidade, não fez senão tornar possível e materializável uma
mudança sócio-cultural que já se desenhava e que, porque as diferenças sociais come-
çavam a ser lidas em termos de injustiça, tornava cada vez menos tolerável a compene-
tração de meios sociais diferentes e desiguais. Assim, a técnica pode modificar o
campo dos possíveis, mas o uso que dela é feito e o sentido da mudança que ela ajuda
a introduzir dependem não dela, mas sim daquilo que, a um dado momento, parece ou
não legítimo.
No centro da nossa abordagem está, pois, o interesse concedido à lógica de apro-
priação de um espaço já constituído. Esse interesse vai a par com a hipótese de que,
face a um determinado contexto, cada posição social, cada actividade dispõe de possi-
bilidades diferentes. Assim, a referência prioritária feita nesta obra à lógica de apropria-
ção articula-se por uma análise em termos de estrutura social e visa evidenciar em que
medida os trunfos diferenciais das posições sociais e das actividades determinam efei-
tos diversificados, inclusive de sentido oposto quanto à capacidade de cada uma delas
em apropriar um determinado espaço e em retirar dele algumas vantagens. Podemos,
pois, dizer que o espaço é aqui visto como uma determinante social global, que
assume o seu significado num modelo complexo no seio do qual intervêm outras
determinantes.
Enquanto tal, este volume quer ser uma reelaboração de nossa obra anteriormente
publicada, La ville et /' urbanisationU) cujo esquema retoma em traços globais, desen-
volvendo simultaneamente de forma importante elementos que já lá estavam como
que em germe. Mas, tal como nessa obra, insistimos em alertar para os efeitos ideoló-
gicos que poderão ser introduzidos pelas ligações simples e directas estabelecidas
entre organização do espaço e vida social. Se definirmos a ideologia como conteúdo
mental a partir do qual é possível cada um justificar-se em sua existência e posição
social e, logo, aceitar compreender e, deste modo, estabilizar uma estrutura social, os
efeitos ideológicos remetem para essa aceitação de uma situação social por deslocação
do lugar da explicação e dissimulação indirecta das causas reais. É a um fenómeno
deste tipo que levam algumas maneiras de pôr o problema do meio ambiente, o qual,
por ser real, se arrisca por vezes a apagar a diversidade das percepções e das preocu-
pações, em nome de uma identidade de situação e de interesse.
Assim, quando se adopta uma perspectiva de análise em termos de lógica de apro-
priação, convém desconfiar de uma deslocação do lugar da explicação, deslocação
que tenderia a fazer do espaço a mediação global de todos os fenómenos registados.

(7) Duculot, Gembloux, 1974.

21
O risco é certamente tanto maior quanto, no plano da vida quotidiana, o espaço surge
como o lugar de convergência onde se detecta facilmente a presença de actores
diferentes.
Notemos ainda que a análise em termos de lógica de apropriação que propomos
aqui deve ser distinguida de outra análise que se ancorasse numa lógica de produção,
e em que se trataria, pois, de nos interrogarmos acerca da maneira como vários actores
são ou não capazes de transformar o quadro espacial. Era esse o sentido do tema ini-
ciado com Ville,phénomène économique{*\ Quanto ao volume Ville, ordre et violence{9),
se é verdade que se situa principalmente na linha da lógica de apropriação, coloca no
entanto a simbólica e as suas ligações com a territorialidade no centro da sua reflexão.

(8) Jean REMY, La Ville, phenomene economique, Bruxelles, Vie Ouvriere,1966; ver principalmente o
capitulo III.
(9) Jean REMY e Lilliane VOYE, Ville, ordre et violence, Paris, PUF.1981; ver principalmente as pp. 28
a 32.

22
PRIMEIRA PARTE

SITUAÇÕES NÃO URBANIZADAS


Ao definirmos as situações não urbanizadas segundo o método ideal-típico como
sendo aquele em que a vida quotidiana se organiza com débeis possibilidades de des-
locações e em que a mobilidade, sendo assim fortemente limitada, se vê além do mais
geralmente conotada de forma negativa, iremos sucessivamente descrever a aldeia e
a cidade tal como se apresentam em sua organização espacial e em seu modo de vida,
ficando este abordado no triplo ponto de vista do sistema social, do sistema cultural
e do sistema da personalidade. Num segundo tempo, retomaremos o problema partindo
do regime da troca e, logo, da relação social tal como se inscreve no modelo cultural.
Depois, reelaboraremos a problemática a partir do nível estrutural, i.e. a partir da acti-
vidade económica. E, por fim, terminaremos com uma breve reflexão acerca da dia-
léctica existente entre enraizamento e mobilidade social. Seguiremos a mesma sequência
para a análise da cidade e da aldeia, dando prioridade de apresentação a esta última a
fim de insistirmos nas semelhanças que, nessas situações não urbanizadas, existem
entre essas duas realidades.

25
CAPÍTULO I

A ALDEIA NÃO URBANIZADA

A mobilidade reduzida e a extensão das superfícies agrícolas necessárias para ali-


mentar o grupo e permitir as quotas destinadas aos notáveis — extensão cujos limites
são fixados pela combinação dessa mobilidade reduzida com a ausência de toda e
qualquer tecnologia que favoreça uma intensificação da produtividade — permitem
compreender a organização espacial dominante e o apoio que nela encontra um sis-
tema sócio-cultural também ele elaborado.

1. CARACTERÍSTICAS ESPACIAIS E SOCIAIS

a. Organização espacial

As aldeias e inclusive as fracções destas que constituem os povoados apresen-


tam-se como conjuntos de edifícios, eles próprios por sua vez mais ou menos disper-
sos, dissociados espacialmente uns dos outros. O trabalho agrícola, actividade econó-
mica dominante, supõe com efeito que as terras que se cultivam estejam na proximi-
dade imediata da habitação, pois que na ausência de toda a técnica de deslocação há
que minimizar o tempo necessário para ir e voltar e, logo, a distância concreta a per-
correr.
Essa mesma exigência impõe que os agrupamentos de população sejam sempre de
pequenas dimensões, pois quanto menos população agrupada houver, e portanto edifí-
cios a abrigá-la, mais o lugar de trabalho estará próximo e acessível.
A descontinuidade espacial das aldeias, conjugada com a sua fraca dimensão,
determina uma paisagem em que o construído surge mais ou menos disseminado
sobre o pano de fundo da natureza — campos e pradarias, florestas e silvados, os quais
ocupam a maior parte do espaço e dominam a percepção.

27
b. Sistema social. Interacções e controlo

Se se entender por interacções as interdependências que resultam de actividades


colectivas, o sistema social será a organização destas com referência a prioridades que
definem o lugar do poder e a sua capacidade de controlo.
Assim, na aldeia não urbanizada, a pequena dimensão do grupo e a similitude das
actividades provocam um interconhecimento. Este é tanto mais global quanto a vida
profissional, a vida familiar e os outros aspectos da vida social se desenrolam no
interior de um espaço restrito. Esta situação favorece o controlo ecológico, i.e. um
controlo baseado na visibilidade e na observação directa, e na capacidade de todos
conhecerem cada um em todas as actividades, ao multiplicarem sobre elas comentários
personalizados. Semelhante controlo — que, certamente, as pessoas hoje em dia ten-
dem a reler de forma negativa como exprimindo uma vontade de vigilância permanente
e de avaliação constante frequentemente dominada pela malevolência — reveste-se de
uma significação totalmente outra na aldeia não urbanizada, onde se vê nesse mesmo
controlo a expressão de uma solidariedade incondicional e de uma confiança recíproca
baseadas na qualidade da relação interpessoal.
Este tipo de controlo funciona, além do mais, tanto melhor quanto a aldeia asse-
gura a estabilidade temporal da população, facto que realiza nomeadamente mediante
o distanciamento do estranho. Geralmente acolhedora para com o estranho de passagem,
ela é, com efeito, mais ou menos hostil a tudo quanto, vindo de fora, parece querer ins-
talar-se na aldeia, pois o «bom» funcionamento do grupo — i.e. a reprodução dos seus
modos de vida, do seu sistema de valores... — supõe a não-intrusão de elementos
externos. Neste sentido também, as deslocações são conotadas negativamente e a
mobilidade é sinal e risco de desordem — como testemunham, por exemplo, a leitura
negativa dos vendedores ambulantes e a recusa de enterrar religiosamente os artistas
itinerantes.
A conjunção de ambos estes aspectos — interconhecimento global com controlo
ecológico, por um lado, e relativa hostilidade para com o exterior e o estranho, por
outro — faz da aldeia em situação não urbanizada um lugar de grande transparência
interna que quer preservar a sua opacidade para com o exterior e que, para tal, irá com
frequência esconder os seus problemas e os seus conflitos internos ao estranho, reser-
vando para si a resolução dos mesmos. Um dos exemplos conhecidos mais recentes
deste tipo de comportamento é indubitavelmente o «caso Dominici»: apesar de turistas
ingleses terem sido assassinados numa pequena aldeia francesa, a população desta,
embora profundamente dividida em vários pontos, fez bloco face aos investigadores,
aos quais opuseram um mutismo teimoso, deixando que as investigações marcassem
passo durante muito tempo, e continuando a alimentar a dúvida muito depois de um
culpado ter sido identificado...
Ao sublinhar a vontade de não-transparência que a aldeia opõe ao exterior, este
exemplo permite igualmente evocar outra das suas características importantes. Disse-

28
mos, com efeito, que na situação dramática que constituía o que se designou por «o
caso Dominici» a aldeia silenciara, face aos investigadores, as suas dissensões internas.
Esta lei do silêncio não assenta geralmente, com efeito, numa unanimidade da popula-
ção aldeã. Antes pelo contrário, na maior parte das vezes, esta fica dividida em grupos,
os quais — e aqui está o essencial — são clãs e não classes. Não se trata, pois, de agru-
pamentos da população por nível social, mas antes de um sistema de interacção ver-
tical em que pessoas de níveis sociais diferentes unem os seus interesses sem por isso
abolirem a distância social que as separa; o clã é, deste modo, transversal em relação
às classes: cada um tem a sua «gente» e cada um tem os seus notáveis, mas se real-
mente são estes últimos a abrir o baile da aldeia e se recebem os membros do seu clã
por ocasião de um casamento ou da festa local, contudo não se confundem com eles
a ponto de, por exemplo, promover um casamento transversal. A solidariedade trans-
versal do clã tem os seus tempos e as suas ligações privilegiadas de expressão; não é
a negação da distância social.
Assim dividida em clãs opostos — de que muitas vezes ainda hoje subsistem
sequelas, quanto mais não seja no folclore — a aldeia mostra-se relativamente frágil
no conflito na medida em que as interacções globais ficam perturbadas por essas opo-
sições internas que são por vezes mais difíceis de dominar e de ultrapassar do que o
seriam oposições para com o exterior; as características do sistema cultural explicam
esse fenómeno.

c. Sistema cultural

A noção de base é aqui a do código; supõe uma composição de associações e de


oposições, donde deriva a percepção do que é socialmente verosímil e socialmente
valorizado.
Em situação não urbanizada, o sistema cultural da aldeia organiza-se com efeito
em torno da oposição dos códigos interior/exterior, sendo o primeiro conotado positiva-
mente e o segundo negativamente. O exterior é, além do mais, diverso, e remete para
dois tipos de diferenças em relação ao interior da aldeia: as diferenças «que vão dar
ao mesmo», i.e. entre aldeias, com as quais se pode estar em oposição mais ou menos
vincada mas também com as quais se pode fazer aliança com vista a alcançar alguns
objectivos, e as diferenças «que vão do mesmo ao outro», i.e. em relação a dois tipos
de entidade: por um lado, a vila que, embora participando de um macro-espaço inte-
rior, é vista como próxima, mas, no entanto, como diferente e, por outro lado, a cidade
que, quanto a ela, pertence a um universo longínquo e completamente outro(1).
A relação da aldeia com a cidade é, no entanto, essencialmente ambígua, pois a

(1) Jean-Pierre HIERNAUX, Culture et maitrise du devenir en milieu rural, Louvain-la-Neuve: Centre
de Sociologie Urbaine et Rurale, 1972.

29
cidade é simultaneamente o lugar do perigo moral e o lugar do poder. Trata-se, desde
logo, de manter com ela várias relações, relativamente regulares, o que não deixa de
ser problemático na aldeia, que, já o sublinhámos, tem uma leitura prioritariamente
negativa da cidade. Esta dificuldade será resolvida pela intervenção da elite dos notá-
veis; é ela, com efeito, que irá servir de intermediário entre a aldeia e a cidade, já que
a mobilidade não está, para ela, conotada negativamente como o está para a população
não notável. Essa elite irá, pois, de algum modo desempenhar um papel de agente
duplo, mas na confiança recíproca: estando a aldeia convencida de que os seus notá-
veis não a trairão na cidade, mas antes lhe trarão uma força adicional, e os notáveis
enraizando e confortando o seu poder nesse monopólio que detêm nas trocas com a
cidade.
Só eles são, pois, supostos, não ameaçar com os seus contactos com o exterior a
homogeneidade cultural interna da aldeia, uma das suas características fundamentais.
Todos os habitantes da aldeia partilham, com efeito, a mesma cultura: aí está o critério
próprio de sua pertença à aldeia; alterar tal situação redundaria na exclusão desses
mesmos habitantes. Essa importância da adesão a uma mesma cultura interna permite
simultaneamente assegurar a identidade do grupo e distingui-lo dos outros. A aldeia
revela-se assim como sendo um lugar de autoprodução cultural, que tem o seu próprio
falar, os seus trajes e os seus pratos específicos, as suas festas e as suas tradições. Tudo
isto funciona como um mecanismo de fechamento cultural que, longe de ser vivido
como uma limitação, é pelo contrário visto como sendo a base da autonomia de exis-
tência do grupo; é a protecção colectiva no interior da qual cada um se reconhece
através do grupo.

d. Sistema da personalidade

Os elementos do social e do cultural vêem-se, além do mais, interiorizados pelo


indivíduo, que, a partir deles, constrói as suas esperanças subjectivas, referindo-se
mais ou menos adequadamente às suas possibilidades objectivas. Assim se manifesta
a dimensão sócio-afectiva do contexto espacial.
Nesta perspectiva, a aldeia — dotada de uma cultura própria e garantida na sua
estabilidade através do controlo ecológico, constitui, para os habitantes, o lugar de
confiança incondicional, baseada no carácter personalizado e afectivo da relação; cada
um tem assim a obrigação de contribuir segundo os seus meios e as suas capacidades,
mas está simultaneamente certo de não ser incessantemente avaliado segundo o seu
contributo e de não ser abandonado em caso de necesssidade. Cada um encontra o seu
lugar, na condição de não querer singularizar-se e de aderir globalmente às regras e
aos costumes do grupo. É um sistema de conformidade libertadora em que o indivíduo
encontra um suporte colectivo para as várias tensões psicológicas que tem para resol-
ver. A sua identidade, assim como o seu projecto, confundem-se com a identidade e

30
o projecto do grupo; em troca, o mesmo grupo confere-lhe segurança em todos os
riscos que ladeiam a sua existência. Esta situação de protecção colectiva não deixa, no
entanto, de gerar um certo número de tensões e de reacções patológicas, já que a aldeia
não tolera desvio de espécie alguma.

e. Predominância da ligação simbólica

Esta primeira análise das características da aldeia em situação não urbanizada


mostrou a importância da relação pessoal e da não-mobilidade como condicões essen-
ciais de dinâmica. O espaço da aldeia, com os seus edifícios e espaços públicos, é o
lugar no qual está inscrita a história ao mesmo tempo pessoal e colectiva; o sistema de
objectos que ele constitui não é desde logo regido por uma relação mercantil, pois o
grupo mantém primeiro e antes de tudo com ele uma relação simbólica: ele é a sua
história materializada, a sua memória(2). Esse espaço da aldeia e o sistema de objectos
que ele constitui não entra, pois, numa composição em que tudo é substituível, tal
como acontece quando as referências sociais são regidas de forma preponderante pela
lógica do signo(3). No contexto da aldeia tal como foi descrita existe, pelo contrário,
uma ligação biunívoca entre a estrutura espacial e a estrutura social, a ponto de —
como mostrou Lévi-Strauss com o exemplo dos Bororos(4) — se decompusermos a
estrutura espacial, desorganizamos simultaneamente os princípios de base do agir
colectivo. O espaço é aqui de algum modo a única formalização maior da cultura do
grupo e das suas regras de funcionamento social.
Abordemos agora a segunda etapa do nosso tema, dedicada à análise das ligações
existentes entre os elementos que acabam de ser propostos. Iremos de seguida privilegiar
sucessivamente o sistema cultural (i.e. os regimes de trocas), o sistema social (i.e. a
ligação entre o estrutural e o cultural), e em seguida o sistema da personalidade, de
que evocaremos os laços ambíguos que mantém com o universo socializado.

2. REGIME DE TROCAS

Assim como o definimos no nosso livro Produire ou reproduire?{5), o regime de


trocas remete para o modo como se estrutura o sujeito da troca; dito de outra maneira,
ele é a resposta às questões de saber: quem troca o quê com quem, com vista a quê e

(2) G. E. MINGAY, (ed.), The Rural Idyll, London, Routledge, 1989.


(3) Jean BAUDRILLARD, Pour une critique de l'economie politique du signe, Cap. 2, La Genese
Ideologique des Besoins, Paris, Gallimard, col. Tel., 1972, pp. 59-94.
(4) Claude LEVI-STRAUSS, Tristes Tropiques, Paris, Plön., pp. 253-256.
(5) Jean REMY, Liliane VOYE, Emile SERVAIS, Produire ou reproduire? Une sociologie de la vie
quotidienne, vol. II: Transaction sociale et dynamique culturelle, Bruxelles, Vie Ouvriere, 1980, pp. 38-49.

31
mediante que regras? Nesta fórmula, o «quê» constitui o investimento ou o objecto da
troca (que não se deve confundir com uma coisa: assim, na troca matrimonial, é o
estatuto da pessoa que dá um sentido profundo à aliança). «Com quem» coloca a defi-
nição de uma alteridade, a qual será ou aliada ou adversária. A finalidade da troca que
se constitui é dada pela resposta à questão «com vista a quê», e as regras a que as
pessoas se referem (ou que desrespeitam) delimitam as modalidades da troca. Assim,
o regime de troca constitui um universo de legitimidade que define para cada inter-
veniente os «instrumentos culturais» que ele pode utilizar se quiser inscrever-se na
ordem social, pois que todos os outros instrumentos levam à transgressão desta. Nas
páginas que se seguem, limitar-nos-emos a salientar alguns elementos de base, consti-
tutivos ao mesmo tempo do sujeito, das regras vigentes (que, no caso da aldeia não
urbanizada, são dominadas pelo pressuposto da harmonia na hierarquia) e da finalidade
da troca (troca essa que se inscreve no quadro geral de uma economia de previdência).

a. Prioridade da identidade colectiva sobre a afirmação do indivíduo

Na aldeia não urbanizada, o sujeito de base é o «nós» e não o «eu», e são as prefe-
rências e exigências do «nós» que dominam.
Na presença de instrumentos individuais e não colectivos, semelhante prioridade
supõe um trabalho permanente de manutenção que passa por uma estruturação adequada
dos espaços-tempos. Assim, enquanto o trabalho (lembremos, essencialmente agrícola)
dispersa durante a semana, o domingo é o tempo do reagrupamento no centro, no
interdito do trabalho, e tudo é então accionado para reafirmar a realidade colectiva.
Podemos por exemplo, nesta perspectiva, restituir a importância da obrigação da prá-
tica religiosa dominical, que se mostra assim um dos tempos fortes de expressão, num
mesmo lugar, da unidade de grupo. Podemos, deste modo, redescobrir o papel da
praça da aldeia enquanto lugar privilegiado de reagrupamento do grupo, enquanto
lugar em que ele se manifesta enquanto tal, nomeadamente ao situar aí tudo quanto
evoca os momentos fortes da sua história — do nome com que a baptizam ao monu-
mento aos mortos, passando pela igreja e pela Junta de Freguesia.
Expressão festiva, o «nós» é também expressão útil, vindo resolver vários problemas
da prática diária, tanto de forma interna como de forma externa. No interior da aldeia,
o «nós» regula as relações entre as posições desiguais através de um regime de trocas
em que o notável recebe bens materiais, extraídos de forma regulada nas produções da
população, em troca da protecção que lhe assegura. Além do mais, no próprio seio da
população funciona um sistema de entreajuda, i.e. de serviços que as pessoas se vão
prestando umas às outras mas sem que estes sejam individualizados ou sequer
concebidos como tendo de ser compensados matematicamente e a curto prazo; é ao
nível do grupo que tudo se passa, supondo-se todos necessitarem uns dos outros numa
ou noutra altura de sua existência e serem, noutras alturas, levados a ajudar os outros,
sem se preocuparem nem com o prazo em que intervém a reciprocidade do serviço,

32
nem com saber se a pessoa que dele beneficia é ou não aquela de quem, anteriormente,
se obteve um serviço, sem se preocuparem tampouco com medir o valor material dos
serviços assim prestados. Face ao exterior, é a mesma regra da troca não individualizada
e não compensada, nem matematicamente nem a curto prazo, que prevalece; reen-
contramo-la, por exemplo, tanto nas trocas matrimoniais, que se fazem de grupo para
grupo, como na hospitalidade que, apesar da vontade de não-transparência da aldeia
e da sua leitura negativa do exterior, faz acolher com todas as honras o estrangeiro de
passagem, convencido que se está de que todo o habitante da aldeia que por sua vez
se encontrasse de passagem noutra aldeia receberia o mesmo acolhimento.
Assim afirmada, a primazia do «nós» inscreve a aldeia numa relação de autonomia
face ao exterior, relação em que os códigos da autarcia levam a melhor sobre os da
associação.

b. Prioridade da harmonia na hierarquia

Esta consciência e esta importância do «nós» não significa, contudo, que a aldeia
não urbanizada seja uma unidade não hierárquica. Já falámos do papel específico dos
notáveis da aldeia e do monopólio que detêm no contacto legítimo com o exterior; pode-
ríamos também evocar a diferenciação e a desigualdade que reinam entre os homens e
as mulheres, as quais reservam, por exemplo, aos primeiros o acesso a espaços de que
as segundas estão excluídas ou em que sua presença as vota à marginalidade; podería-
mos ainda falar da diferença e da desigualdade que atribuem aos idosos o prestígio
assente na acumulação da experiência e da sabedoria e que os opõe aos jovens, que
devem submeter-se aos mais velhos e imitá-los o melhor que puderem, se quiserem
beneficiar do suporte do grupo e por sua vez levar-lhe mais tarde o apoio da sua idade.
Estes exemplos indicam-no: o «nós» da aldeia é, deste modo, um «nós» diversifi-
cado e hierarquizado, tanto no que respeita ao poder detido como à expressão simbólica,
mas trata-se de uma hierarquia aceite e reconhecida como legítima, a partir da percep-
ção de que há harmonia, convergência de interesses entre posições desiguais. Desde
logo, há que não invejar os que estão noutro estado que não o próprio e não procurar,
no seio do seu próprio estado, desenvolver-se sozinho. O reconhecimento da legitimi-
dade da existência e da manutenção de posições desiguais leva a que, se houver con-
flito, não se tratará de um conflito entre classes, opondo uma posição a outra, mas
antes de um conflito entre clãs, opondo entre si grupos constituídos, repersentando
cada um diferentes posições da hierarquia. Além do mais, lidamos com um regime de
distância social que é estável e que procura perpetuar-se como tal; é nesta linha, por
exemplo, que é preciso recolocar os vários modos de despesas improdutivas e de
«consumação»® festiva dos excedentes; trata-se de manter cada um no seu posto, num
contexto em que o crescimento não é a finalidade.

(6) Georges BATAILLE, La part maudite, particularmente as pp. 165-178.

33
c. Economia e previdência

É, com efeito, outra característica importante do ideal-tipo da aldeia não urbanizada


situar-se, do ponto de vista económico, na perspectiva de um jogo com soma nula e
não na de uma reprodução alargada. Trata-se, pois, de garantir à aldeia possibilidades
de vida, e inclusive de sobrevivência, que permaneçam iguais ao longo dos tempos e
não que se desenvolvam. Constituir-se-ão, portanto, reservas, não para delas se bene-
ficiar e aumentar o nível do consumo, mas antes para se enfrentar os imprevistos que
possam surgir: um inverno demasiado longo, um verão demasiado seco, um conflito
com o exterior... Tudo quanto for além desta garantia é «consumido» na festa ou ainda
nos ritos e nas construções ligados à religião, a qual aliás suporta esse sistema de
previdência ao proibir todo e qualquer desejo de crescimento, e nomeadamente de
crescimento que resultasse de um pagamento do tempo decorrido entre a conservação
e o uso de um bem. Esta rejeição do lucro, que contraria um projecto de crescimento
económico, contribui para a afirmação do poder mediante a «consumação» e insereve-
-se numa vontade de construção de um universo moral que, quanto a ele, vai crescendo,
e a partir do qual, quando estiver confrontada com a cidade urbanizada, a aldeia não
urbanizada manterá uma avaliação negativa dessa mesma cidade, julgada precisamente
como sendo o lugar onde o apetite de crescimento económico destrói a procura de
crescimento moral(7).

3. DO ESTRUTURAL AO CULTURAL

Tomando aqui por ponto de partida o sistema social (i.e. o sistema de interacções
que os homens entrelaçam em torno das várias actividades específicas e para as quais
cada um deles domina recursos mais ou menos importantes e pertinentes), designaremos
por estrutural o conjunto das possibilidades objectivas existentes. Assim, veremos
como a agricultura — actividade de base no contexto que nos interessa aqui — é por-
tadora de várias características objectivas que definem simultaneamente quer os seus
recursos, quer as suas imposições. Interrogar-nos-emos então acerca dos efeitos destas
componentes duplas — recursos e imposições — e acerca do modo como, ao nível do
sentido vivido, elas se vêem reapropriadas no plano de uma dinâmica cultural carac-
terizada pela composição desses vários elementos. É o que designaremos por o cul-
tural. Este dispõe de uma autonomia relativa: longe de ser apenas uma mera tradução
do estrutural, ele propõe várias reinterpretações.
Este terceiro olhar passado pela aldeia não urbanizada quer, à partida, acentuar o
estrutural, i.e. a agricultura, que é a actividade económica de base deste tipo de socie-

(7) Pierre BOURDIEU, «La societé traditionelle», Sociologie du Travail, n e 1, 1963, pp. 24-44.

34
dade. Esta abordagem evidencia em primeiro lugar o carácter não dominável das con-
dições de produção: a terra é inextricável, já que, por um lado, fora de toda a técnica
de deslocação, ela está limitada ao território que pode ser alcançado a pé ou a cavalo,
e já que, por outro lado, as condições climáticas são imutáveis, tal como o são a natu-
reza do solo e a sua fertilidade.
A partir dessas imposições estruturais, vai-se organizando uma leitura cultural em
torno da oposição do não-vivo e do vivo, da vida e da morte, do homem e do animal;
o cíclico e o repetitivo levam a melhor sobre o linear e sobre a ideia de crescimento
e, tal como a natureza, o humano inscreve-se em ritmos cósmicos em que não há,
como numa simbólica instrumental, oposição entre o objecto e o não-objecto; a
mulher é como a terra, o lugar da fecundidade e a casa é como a família, o lugar
sagrado em que tudo se mistura.
Ao supor condições de produção, a actividade económica remete também para
relações de produção, que põem a questão de saber quem é «empreendedor»: será por
exemplo a unidade familiar que gere a produção ou será a aldeia enquanto tal, ou será
ainda a produção gerida por pessoas que habitam no exterior da aldeia — na cidade
— e que apenas têm contactos muito irregulares com ela, estando representadas por
um rendeiro que, também ele, não será necessariamente oriundo da aldeia? Estes
vários modos possíveis de gestão da produção irão inevitavelmente repercutir-se no
conjunto das relações sociais no interior da aldeia (relações no seio da família em si,
relações entre famílias,...), assim como nas modalidades de leitura de si e do exterior.

4. DIALÉCTICA SIMBÓLICO-IMAGINÁRIO

O sistema da personalidade mantém uma ligação ambígua com o universo socia-


lizado. Por um lado, tende a participar da valorização daquilo que permite ao grupo
constituir-se na sua força própria; por outro lado, é tentado por um distanciamento
desse mesmo universo, o que lhe permite quer crítica, quer desimplicação. E o que
designaremos como sendo a dialéctica entre o simbólico e o imaginário, na qual o sim-
bólico vem estruturar o que faz sentido na vida diária e na qual o imaginário permite
a constituição de espaços de distanciamento. Sublinhemos que convém não confundir
o simbólico evocado aqui com a simbólica de que tratámos anteriormente, quando
insistimos na oposição existente entre uma vida social dominada por signos (flutuantes
e que afirmam diferenças mediante objectos aleatórios) e uma vida social dominada
por símbolos (suportes sensíveis, com capacidade de evocação afectiva). O simbólico
encarado aqui corresponde ao modo como, ao nível do sentido vivido, uma legitimidade
social é capaz de mobilizar em profundidade uma dinâmica afectiva. A questão con-
siste, pois, em ver como os regimes de trocas e os efeitos culturais de que acabamos
de falar se tornam uma realidade a que os homens aderem efectiva e pessoalmente.

35
Em situação não urbanizada, a aldeia está essencialmente marcada pelo facto de
a vida quotidiana se organizar em torno do sentido positivo do enraizamento e da não-
-valorização da mobilidade espacial. Contudo, isto associa-se com vários modos de
aspiração a diferentes tipos de «outros lugares», mesmo se estes são entendidos como
momentos excepcionais. Assim, se o conjunto da vida quotidiana está organizado no
enraizamento, ela não deixa por isso de se estruturar pela busca de um «lugar de des-
taque», de um «outro lugar» que fosse de algum modo uma superação e que alguns,
por vezes, chegam a alcançar. É, por exemplo, a peregrinação a Santiago de Compostela
— provação longa e penosa mas da qual se regressa prestigiado. Também é, embora
de outra forma, o «mundo novo» que jovens da aldeia irão fundar «noutro lugar»,
respondendo a uma emigração forçada pela não-extensão das terras — um «outro
lugar» em que as «qualidades» da aldeia serão sublimadas. E ainda, de forma certamente
menos grandiosa, mas cada vez mais acessível a todos, a atracção da floresta vizinha
que Le Goff descreveu tão bem como sendo o mundo onde tudo é possível, onde
vivem o eremita e o salteador, um mundo regulado, no entanto, mas onde o excesso,
a violação do interdito, a exploração dos possíveis constituem a norma...(8). Assim, a
mobilidade encontra-se integrada de forma excepcional e em consonância com o ima-
ginário. E enquanto o simbólico se vai investindo através da projecção da história
individual e colectiva nos espaços quotidianos, o imaginário vem colocar-se a par
destes e permitir a cada um distanciar-se ao sonhar ou ao ir para um espaço onde não
há responsabilidade social própria, mas onde, longe de procurar uma desimplicação
em relação a ela, ele encontrará uma oportunidade de distanciamento crítico que refor-
çará a sua vontade de implicação.

(8) Jacques LE GOFF, La civilisation de 1'Occident Médiéval, Paris, Arthaud, 1967, cap. 6, pp. 169-240.

36
CAPÍTULO I I

A CIDADE NÃO URBANIZADA

Com uma morfologia e uma função social diferentes das da aldeia, a cidade não
urbanizada revela-se, no entanto, próxima da aldeia na estruturação da vida quotidiana.
A sua especificidade funcional assenta no facto de ser o lugar de estruturação de
vários campos de actividade e de articulação entre esses campos. Na nossa acepção,
o conceito de campo de actividade remete para o modo como um bem socialmente
valorizado (e que não é necessariamente um bem económico) é posto à disposição de
uma certa procura social, mediante a organização reconhecida como legítima de um
conjunto de papéis, de objectivos e de meios(1). Assim, falaremos em campo político
para abordar o modo de estruturação das leis e regulamentos, e o modo de colecta e
de gestão das finanças públicas, e para evocar os vários actores que intervêm na elabo-
ração e na utilização desses vários «bens»: partidos políticos, parlamento, adminis-
trações, grupos de pressão, beneficiários vários... A análise do campo político supõe
desde logo que se destaquem vários elementos a partir dos quais esses actores encon-
tram as suas modalidades específicas de interacção e de imposição. De igual modo,
falaremos em campo religioso para evocar os modos de produção, de enformação e de
consumo dos «bens de salvação», assim como os vários actores que intervêm a esses
diferentes níveis.
Assim, para nós, a cidade surge logo que se passe de uma situação de autoprodução
de vários bens socialmente valorizados a um estádio em que a produção desses bens
é considerada como tendo de passar por lugares e por actores especializados, que
detêm o monopólio do saber-fazer legítimo. É o caso, por exemplo, quando se passa
da religião «popular», que assenta na adopção de meios de salvação autogeridos, a
uma estruturação explícita e que se quer geral em relação a esses meios; vê-se, então,
aparecer a cidade enquanto lugar do tempo donde emanam os únicos meios legítimos
de salvação e onde se formula a única doutrina reconhecida. Também é o caso quando
se passa da autarcia da actividade agrícola a uma situação em que a cidade se instaura
enquanto lugar de mercado e lugar de organização da produção e da infraestrutura

(1) Jean RÉMY, Liliane VOYÉ, Émile SERVAIS, Produire ou reproduire?, pp. 153-158.

37
agrícola. Ao tornar-se, deste modo, progressivamente o lugar de estruturação de todos
os campos de actividade, a cidade irá, além disso, ser o lugar da sua articulação,
articulação que se tornará um campo específico de actividade mas que irá operar tam-
bém mediante o jogo espontâneo das economias externas.
Assim, a cidade é por essência centrípeta, pois que é o lugar que estrutura, coor-
dena e organiza os vários campos de actividade que se encontram no interior de si
mesma; só faz, pois, sentido através das relações com o exterior, relações que não são,
como no caso da aldeia, relações de distanciamento, mas antes pelo contrário relações
de controlo e de orientação.
Esta definição cobre além do mais dois tipos de cidade. Por um lado, a cidade que
assenta a sua existência nos «serviços» não económicos que presta ao campo, em troca
dos quais este lhe assegura as possibilidades de subsistência; é a cidade religiosa ou
ainda a cidade-guarnição. Por outro lado, a cidade que desempenha um papel motor
directo na actividade económica, quer, por exemplo, ao pôr em funcionamento meios
que permitam um aumento da capacidade produtiva do campo, quer ao organizar tro-
cas a longa distância e ao autonomizar-se do seu meio ambiente imediato. Em ambos
os casos, a cidade é assim definida como tendo uma função dominante ao nível do sis-
tema social, pois que é ela que domina a estruturação dos «campos de actividade»* e
das suas inter-relações.
Dito isto, não se deve considerar que, em situação não urbanizada, a cidade se
exprime necessariamente mediante uma ruptura cultural com o campo; antes pelo
contrário, a cidade pode mostrar ser o lugar onde uma dimensão sistemática será dada
à cultura rural ambiente, quanto mais não seja na medida em que irá rapidamente ficar
associada ao desenvolvimento da escrita e à formação de uma «casta» de letrados.
Lugar de estruturação e de inter-relação dos «campos», a cidade é, pois, também lugar
de formalização, e de uma formalização que é fonte de força para ela e para o seu meio
ambiente, como o mostra hoje ainda o caso dos países em vias de desenvolvimento
onde se vê que são as regiões cuja cultura foi sistematizada e formalizada por uma
cidade que opõem à cultura ocidental a maior capacidade de resistência.
Se o aparecimento da cidade não supõe uma necessária ruptura cultural com o
rural circunvizinho, esta não fica, no entanto, excluída. Assim, a cidade da Idade
Média desenvolveu-se como lugar de surgimento de um modo de pensar e de fazer
que se exprimia em ruptura com o sistema feudal que a cercava; é uma cidade autocé-
fala que se quer autónoma na sua gestão e no seu modo de vida. Porque foi capaz de
desenvolver um campo económico próprio, ela obrigou o príncipe a outorgar-lhe uma
carta-foral que estipulasse os direitos e os privilégios, em troca de, para esse principe,
nela colectar impostos, mas sem que ele pudesse definir os modos de colecta. A cidade

* Referência à «teoria das campos». O «campo de actividade» é o modo como um bem socialmente valo-
rizado — não necessariamente um bem económico — é posto à disposição duma determinada procura social,
através da organização reconhecida como legítima de um conjunto de papéis, de objectivos e de meios (N. R.).

38
da Idade Média é pois, de algum modo, comparável à cidade colonial que Hoselitz(2)
define como parasitária na medida em que, ao assegurar as relações entre a metrópole
e o país colonizado, fornecedor de matérias-primas e consumidor de produtos acabados,
ela se desinteressa por completo do próprio desenvolvimento desse país em que, ape-
sar de tudo, se situa.
Assim, pois, convirá não considerar o campo e a cidade como sendo pontos extre-
mos de um continuum, em que o primeiro teria total e exclusivamente todos os traços
da tradição e em que a segunda deteria em regime de monopólio todos os caracteres
da modernidade. Lidamos com uma realidade de eixos múltiplos em que a oposição
fundamental se faz entre uma situação de autoprodução, dominada pelos elementos
centrífugos, e uma situação regida por uma vontade centrípeta de estruturação e de
inter-relação dos vários campos de actividades. Consoante essa vontade se virar para
o ambiente imediato ou para regiões mais ou menos longínquas, o lugar onde se
manifesta essa vontade ganhará então tanto mais peso como centro de iniciativa
quanto será também o lugar onde vivem os diferentes actores colectivos importantes
que, mediante modalidades diversas de vida colectiva intensa, gerem as relações
sociais em pequena ou média escala(3).
Tendo assim globalmente clarificado o sentido da cidade em relação à aldeia, ire-
mos agora propor dela uma análise que retoma a mesma sequência que a seguida para
apresentar a aldeia, com o intuito de salientar as homologias existentes entre uma e
outra, para além das diferenças que as distinguem.

1. CARACTERÍSTICAS ESPACIAIS E SOCIAIS

Com a cidade ocidental medieval a servir-nos de referência, iremos propor aqui


um ideal-tipo da cidade não urbanizada.

a. Organização espacial

Uma nítida diferença distingue o espaço da cidade do da aldeia. Com efeito, em


situação não urbanizada, a cidade é um espaço construído, geralmente rodeado por
muralhas cuja significação não pode resumir-se à única preocupação de defesa militar,
nem à de materialização do lugar de colecta dos impostos. A muralha reveste-se tam-
bém de uma significação simbólica que perpetua a do simples fosso que os fundadores

(2) Bert F. HOSELITZ, Sociological Aspects of Economic Growth, Free Press of Glencoe, Illinois, 1970.
(3) Alain BOURDIN e Monique HIRSCHHORN (eds.), Figures de la ville. Autour de Max Weber, Paris,
Col. Champ Urbain, 1985.

39
traçavam muitas vezes para delimitarem o território da cidade: a muralha marca a
separação entre um exterior e um espaço «culturalizado» que quer ser um lugar de
«ordenamento» do espacial e do social. É claro que também a aldeia conhecia um
certo ordenamento a partir do centro, lugar de agrupamento, de manifestação da
«comunhão» do grupo local face à dispersão diária da actividade económica e dos
seus lugares de exercício. Mas a cidade vai ampliar e complexificar as oposições e
levá-las para outra escala.
A cidade organiza-se em bairros, agrupados em torno do centro. Os bairros
correspondem geralmente ao exercício especializado de uma profissão ou de uma
actividade própria, mas em cada um deles coexistem os diferentes intervenientes da
actividade ou da profissão em causa, e isso qualquer que seja o seu nível de autoridade
e de riqueza; a residência e o trabalho estão fortemente integrados, a ponto de, muitas
vezes, a casa ser simultaneamente o lugar de trabalho e a residência dos donos e
empregados. Cada bairro tem também os seus lugares próprios de vida festiva, onde
é muitas vezes a profissão que serve de base à expressão simbólica colectiva. O bairro
mistura deste modo intimamente o profissional e o social; é o lugar de desenrolamento
de toda a vida quotidiana, donde só se sai excepcionalmente, e que desenvolve os seus
próprios traços culturais(4).
Esses vários bairros, bem organizados segundo este mesmo esquema, só ganham,
no entanto, o seu sentido pleno face ao centro. Este é um espaço comum a todos os
bairros e onde se gerem as coisas importantes para todos eles. Lugar onde se vai regu-
larmente embora não todos os dias, o centro é o lugar onde estão instalados os pode-
res; pode, aliás, subdividir-se em vários espaços, sendo cada um deles «ocupado» por
poderes diferentes. Bruxelas proporciona assim um bom exemplo de cidade organizada
em torno de dois espaços-centros: no alto da cidade, onde se situa o palácio real e o
parlamento, encontra-se desde há muito tempo o «centro dos príncipes», que foram,
durante séculos, estrangeiros, representando, consoante as épocas, o Rei de Espanha,
o Imperador da Austria,...; em contrapartida, a Grand Place, na baixa, é tradicionalmente
o centro do poder «burguês», com a câmara municipal e as casas das corporações
(hoje transformadas em cafés e restaurantes).
Lugar comum a todos os bairros e onde estes geralmente irão fazer questão de se
exprimir de forma material (caso das corporações, vitrais das artes na igreja,...), o centro
é também o lugar onde se encontra o hotel, pois é a partir deste que o estranho pode,
impunemente, introduzir-se no espaço e na vida da cidade. Visto ser o centro o lugar
onde se encontram e se misturam, principalmente em certas alturas, os habitantes dos
vários bairros, o estranho é nele aceite mais facilmente do que nos bairros, onde é
primeiro visto como intruso.
Contida no interior das muralhas, a cidade, com o centro e os bairros, irá frequen-

(4) Derek GREGORY e John URRY, Social Relations and Spatial Structures, New York, St. Martin's
Press, 1985.

40
temente, num primeiro tempo, distinguir-se visualmente e nitidamente do espaço cir-
cunvizinho, como ainda hoje o mostra relativamente bem uma cidade como Carcassonne
em França, ou melhor ainda como Lucca, na Itália: uma espécie de «terra de ninguém»
de terras, cultivadas ou não, separa-a das aldeias vizinhas, dispersas pela natureza.
Pouco a pouco, todavia, surgirão excrescências: os arrabaldes, lugares de permissivi-
dade e de legitimidade duvidosa, onde a cidade rejeita tudo quanto a torna feia ou a
ameaça, mas onde encontra exutórios próximos e variados. Depois, à medida que o
seu dinamismo interno a vai fazendo sentir-se apertada no interior das muralhas, a
cidade integrará esses arrabaldes e, rodeando-os frequentemente com uma segunda
fortificação, imporá neles as suas próprias regras, invadindo deste modo progressi-
vamente o espaço que a rodeia e difundindo novos bairros cada vez mais longe do seu
centro.

b. Sistema social: interacções e controlo

Tal como a aldeia, a cidade não urbanizada funciona no quadro do controlo eco-
lógico, o qual encontra nela uma eficácia reforçada ainda pela densidade de ocupação
do espaço e pelo entrelaçamento da residência com o lugar de trabalho. Daí resulta
uma necessidade acrescida de lugares de evasão, necessidade a que os arrabaldes e, de
algum modo, o centro vêm responder.
O controlo ecológico favorece a liderança polivalente dos mestres das corporações,
que funcionam tanto mais facilmente como famílias alargadas quanto o trabalho, que
estrutura o conjunto, é associado à habitação. Contudo, ele não ultrapassa em muito
os limites do bairro e, logo, o pequeno mundo dos vários intervenientes da profissão
que nele se exerce, pois se é verdade que os diferentes bairros coexistem na cidade e
gerem em conjunto algumas questões que a todos respeitam, por intermédio dos seus
representantes que se reúnem no centro, esses mesmos bairros não deixam, contudo,
de viver a maior parte da sua vida diária em distância uns em relação aos outros,
quando não numa certa segregação, pois que cada um tem as suas regras, os seus cos-
tumes, os seus ritmos, que, de facto, são os da profissão.
E igualmente com referência a essa profissão que os habitantes de cada bairro se
agrupam, de tal modo que, em cada um deles, coexistem vários níveis sociais sem que
a mobilidade social seja muito grande, sem que, tampouco, ela seja uma aspiração
generalizada; nos bairros da cidade, tal como na aldeia, reina a harmonia na hierarquia
e as oposições manifestam-se mais entre corporações e, logo, entre bairros diferentes
do que entre níveis sociais.
O resultado desses conflitos vai, aliás, geralmente, decidir-se no centro, onde se
irão negociar também as trocas com o exterior e com o estrangeiro. E pois no centro
também que se resolve o problema do acolhimento, do distanciamento ou da rejeição
— o que reforça a significação desse centro como lugar de poder.

41
c. Sistema cultural

Comparável à aldeia no facto de que o controlo ecológio funda nela a organização


do sistema social, a cidade irá, tal como ela, estruturar o seu sistema cultural em torno
da oposição entre um interior que é lido positivamente e um exterior conotado nega-
tivamente; esta oposição manifesta-se, no entanto, noutra escala, pois que o citadino
se sente em casa num interior alargado e está mais familiarizado com uma leitura
ambígua do exterior.
A unidade cultural, verificada na aldeia, é reencontrada também ela na cidade,
mas com duas nuances importantes. Enquanto totalidade culturalmente estruturada, a
cidade autoriza, sobre um pano de fundo de unidade, a existência de diversidades
culturais que se enraízam o mais das vezes na diversidade das actividades de trabalho
e que integram, por isso mesmo, as várias expressões simbólicas do trabalho, como
acontecia com a agricultura na aldeia. Assim dotada de uma unicidade cultural que,
longe de ser uma homogeneidade, dá lugar a toda uma gama de diversidades, a cidade
é, além do mais, capaz de uma autoprodução cultural mais ampla do que a aldeia; bas-
tará pensar nos tipos de arquitectura que marcam a sua identidade e que se difundem
a partir dela.

d. Sistema da personalidade

Tal como o sistema social e o sistema cultural, o sistema da personalidade orga-


niza-se na cidade em consonância com a aldeia; assenta na valorização de um universo
de interconhecimento dominado pela regra de uma confiança a priori e que não é posta
em causa nem de forma renovada, nem a partir das aparências; estas últimas ganham
contudo alguma significação no centro, onde a «civilidade» vem suprir um inter-
conhecimento reduzido.
A profissão participa do bom funcionamento deste sistema de confiança relativa-
mente incondicional, pois que assenta em obediências a longo prazo e na garantia da
manutenção da protecção dos seus membros quando estes passam dificuldades tais
como doença, velhice ou acidente. Aliás, não é o único elemento a entrar neste jogo;
como repara, e bem, Ariès(5), a rua é, também ela, um local de confiança em que a
criança pode rapidamente distanciar-se em relação aos pais, sendo de facto protegida
por um universo múltiplo de adultos que não tem sobre ela nenhuma autoridade jurí-
dica mas que irá permitir que o seu desenvolvimento afectivo não fique exclusivamente
dependente dos pais.
Tendo assim completado a nossa análise da cidade em situação não urbanizada,

(5) Philippe ARIES, «D'hier ä aujourd'hui», in Familie et Societe Contemporaines, Semaine sociale de
France, Metz 1972, Paris, Ed. Chronique sociale de France.

42
verificamos que reencontramos nela os mecanismos maiores acerca dos quais vimos
que asseguravam o funcionamento dos diferentes sistemas na aldeia não urbanizada.
Contudo, esses mecanismos complexificam-se nela e as ambiguidades que já estavam
presentes na aldeia ganham aqui toda a amplitude.
Por outro lado, enquanto a história da aldeia é de algum modo uma história pri-
vada — carácter aliás acentuado pela vontade de não-transparência que nela reina —
a cidade é, por excelência, o lugar da história colectiva dos campos que estrutura.
Longe de ser um espaço construído fixo, ela inscreve aliás nas pedras e nos monumentos
as fases sucessivas dessa história colectiva, da qual se pode acompanhar o desenrolar,
com a sua continuidade e vicissitudes, nesses «objectos» que, desde logo, são lidos em
termos de património comum e precioso.
Uma certa tendência da sociologia americana tentou explicar essa especifici-
dade da cidade a partir de critérios simples, como o fez nomeadamente Wirth(6) ao pro-
curar a explicação no acréscimo do volume, da heterogeneidade e da densidade
da população da cidade em relação à da aldeia. Sem recusarmos radicalmente esta teoria
e aceitando, tal como o fizemos, que esses factores desempenham um certo papel,
consideramos que este não é necessariamente o que Wirth lhes atribui. Com efeito,
quando essas características se associam a uma composição espacial que desenvolve
uma vida social em pequena escala onde se agrupam elementos homogéneos, a densidade
vê aumentar o controlo ecológico, e os efeitos da heterogeneidade e do volume podem
ver-se neutralizados por uma organização espacial, hierárquica (vizinhança, bairro).
Não há, pois, ligação automática; os efeitos do factor sócio-demográfico só podem ser
avaliados quando associados às outras dimensões da cidade. Quanto a nós, insistimos
antes na significação funcional da cidade, a qual vê primeiramente esta enquanto
espaço centrípeto que se organiza com vista à estruturação e à inter-relação dos vários
campos de actividade e que tende à sistematização e à formalização. Em situação não
urbanizada, esta significação apoia-se numa morfologia do habitat que opõe o interior
ao exterior e faz o centro urbano desempenhar um papel determinante. Neste contexto,
cidade e campo opõem-se como duas entidades distintas ligadas por um laço orgânico,
embora tendo entre si similitudes que resultam de uma organização da vida social
imposta no plano do quotidiano pela mobilidade reduzida.

2. REGIME DE TROCAS

Considerando agora como, em tal contexto, se ligam o culural e o social, iremos


ver que embora apresentando amplas homologías com a aldeia, a cidade, dada a sua
função, vai dar a esses traços comuns uma significação diferente.

(6) Louis WIRTH, «Urbanism as a Way of Life», in: Albert J. REISS Jr., ed., On Cities and Social Life,
Chicago, University of Chicago Press, 1938.

43
a. Prioridade da identidade colectiva

É o bairro, simultaneamente lugar de residência e lugar de trabalho, que constitui


a base integradora do grupo; é um espaço concreto e personalizado, no interior do qual
se exprime uma vontade de viver em conjunto e do qual não se procura sair de forma
regular. As trocas internas são reguladas com referência ao «nós» e não com vista a
maximizar os interesses individuais de alguns. Esta identidade do nós não deixa, no
entanto, de ser particularmente prezada por algumas famílias que detêm postos chave
na corporação. A implicação afectiva dos habitantes no bairro vê-se, além do mais,
regularmente revigorada por festas em que se exprime a simbólica da profissão, asso-
ciada à da localidade.
Esse «nós» do bairro articula-se, além disso, com um «nós» mais amplo, mas que
permanece um «nós» interior. Com efeito, contrariamente à aldeia, o bairro não tem
qualquer autonomia de subsistência; só existe mediante as inter-relações com os
outros bairros (e eventualmente com o exterior), inter-relações essas que ele constrói
através do centro. É esse conjunto de inter-relações que se concretizam no centro e
que são simbolizadas por ele, que constitui esse «nós» mais amplo no qual se integram
os «nós» dos diferentes bairros e em relação ao qual, aliás, eles irão procurar competir
entre si. Não será precisamente isso o que, ainda hoje, encontramos por exemplo em
várias cidades italianas, onde cada ano, e com várias modalidades, se organizam com-
petições entre bairros no centro, cada um deles tentando ser o vencedor que será
recompensado pelo poder central? E certo que o «Palio» de Siena ou a «Regata
Storica» de Veneza parecem ter hoje a ver essencialmente com o folclore, mas essas
grandes festas exprimiam outrora essa vontade de afirmação de si dos bairros e a sua
preocupação em ser notados e gratificados não só pelos outros bairros mas também e
principalmente pelo centro e pelos poderes que este abrigava. Não se deverá, aliás,
pensar que esse «espírito de bairro» tenha, doravante, desaparecido totalmente;
subsistem dele elementos prestes a manifestar-se, mal se lhes dê a oportunidade, como
acontece com os exemplos que acabamos de evocar e com muitos outros, talvez
menos espectaculares, e que poderíamos multiplicar.
A vontade dos bairros de se exprimirem no centro e de serem reconhecidos por ele
traduz, deste modo, o reconhecimento desse centro enquanto lugar que faz surgir a
cidade não como uma federação de bairros mas antes como uma totalidade ordenada
e estruturada. Esta significação do centro assenta não só no facto de este ser o lugar
onde estão localizados os poderes, mas também no facto de aí se situarem os lugares
e os tempos fortes da animação colectiva; a praça que, geralmente, organiza o centro
e, além dele, os bairros, é simultaneamente o lugar permanente dos encontros possíveis
entre habitantes e representantes dos bairros e o lugar de reagrupamentos excepcionais
que ritmam a vida colectiva da cidade. Assim, o centro não é só o lugar privilegiado
das relações aleatórias; é também o lugar em que a noção de multidão, de massa,
adquire sentido no que Durkheim chama uma certa efervescência, e em que, no

44
ambiente colectivo, se diluem as emoções individuais para se fundirem numa emoção
colectiva sublimada. Por fim, o centro desempenha o papel de garante institucional
nas relações com o exterior; reciprocamente, a presença legítima do estrangeiro no
centro vem dar um acréscimo de garantia à força deste e, de algum modo, vem intro-
duzir nele o «outro lugar» no concreto da quotidianidade.

b. Prioridade da harmonia na hierarquia

Tal como na aldeia, é a harmonia na hierarquia que constitui a regra. Por um lado,
o centro e os bairros coexistem na dependência destes em relação àquele, sem que esta
relação seja vivida e sentida como opressora ou ilegítima. Por outro lado, no interior
dos bairros e do centro, vivem espacialmente próximos (e por vezes no interior de
uma mesma casa) meios sociais diferentes, directamente hierarquizados entre si já
que dependem de uma mesma corporação, sem que, no entanto, isso dê lugar à emer-
gência de oposições estruturadas; as relações económicas entre esses meios são regi-
das pela ética do preço certo e do justo salário, ética reconhecida por todos como
legítima.
Ao estar a cidade, do ponto de vista da estrutura interna, amplamente regida pela
harmonia na hierarquização, ela funciona de forma mais ambígua nas relações com o
exterior. O seu carácter centrípeto, que já sublinhámos, indu-la a querer familiarizar-
-se com o longínquo e a situar-se em relação a eixos e a possibilidades de comunicação
com o exterior. Neste processo, a cidade lê-se a si própria em termos de posição
superior: dá-se como o lugar da cultura face ao exterior, que é o lugar da natureza, i.e.
do forte, claro, mas também do não-«civilizado». Esta leitura que a cidade faz de si
própria não é, contudo, senão parcialmente partilhada pelo próprio exterior, o qual
insiste na qualidade moral que lhe confere a proximidade da natureza que o opõe à
cultura da cidade, onde não vê senão artifícios; mas, ao mesmo tempo, o exterior tem
de aceitar que é tecnicamente dependente da cidade, que julga, contudo, moralmente
inferior a si. Assim, as relações da cidade com o exterior circunvizinho estão menos
marcadas pela mera harmonia na hierarquia do que por uma ambiguidade que, con-
soante os domínios, inverte a relação hierárquica e a sua percepção, e faz da harmonia
uma necessidade em vez de uma legitimidade.

c. Reprodução alargada

Enquanto a aldeia era dominada por uma economia de previdência, visando sim-
plesmente assegurar uma estabilidade das possibilidades de consumo pelo tempo e
constituindo, para tal, um certo número de reservas para enfrentar os imprevistos do
amanhã, a cidade, dada a sua função, coloca-se à partida na perspectiva de uma repro-

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dução económica alargada e, portanto, de um jogo crescente. Isto responde directamente,
de algum modo, à função de estruturação dos vários campos de actividade para os
quais vimos ela remetia, a nosso ver, para a própria definição da cidade. Com efeito,
se é verdade que esse esforço de estruturação responde a uma vontade de poder e de
controlo sobre o exterior, também remete para uma preocupação em favorecer um
acréscimo e uma racionalização da produção — sendo o desenvolvimento da cidade
dependente, aliás, pelo menos em parte, da extensão dos excedentes, pois que assenta
na existência de uma população que não produz por si só os bens de subsistência.

d. Do estrutural ao cultural

Contrariamente ao que ocorre na aldeia, são as actividades não agrícolas que são
centrais na economia da cidade, já que esta está essencialmente centrada no controlo,
na gestão, na orientação das próprias actividades, nos vários modos de sistematiza-
ção e de formalização de várias actividades — produtivas ou não — da vida quotidiana
assim como em todo um artesanato que se desenvolve em benefício da população
citadina.
Esta diferença de actividades entre a aldeia e a cidade irá gerar modelos culturais
diferentes. Com efeito, os tipos de actividades que são específicos da cidade criam
uma certa distância em relação à natureza, às suas imposições e ao não-domínio do
homem sobre ela, de tal modo que, se a cidade ainda pode exaltar a ordem cósmica
(por exemplo, ao organizar o seu plano e o ordenamento das construções com refe-
rência aos pontos cardeais), a referência ao biológico enfraquece-se, quando não desa-
parece. O que é central no estrutural já não é, com efeito, a produção do vivo, mas
antes a informação e a formalização, o escrito e a «memória objectiva» que constituem
os arquivos.
Vê-se desde logo a palavra — que pode ser escrita e reproduzida no livro — levar
a melhor sobre o gesto e tornar-se o instrumento essencial do controlo. Ao afirmarmos
esta prioridade, juntamo-nos a Marx na análise que vê na cidade a realidade fundadora
da diferenciação e da hierarquização entre o trabalho manual e o trabalho intelectual
e que, a partir daí, situa na diferença cidade/campo a primeira oposição de classes.
Para além do mais, a importância que a palavra adquire faz com que o universo polí-
tico tome corpo como universo autónomo e campo especializado, e os lugares de
tomada da palavra — como a Ágora — tornam-se lugares explícitos da tomada de
poder.
Lugar da palavra e da escrita, a cidade é também o lugar da transformação, através
do desenvolvimento de instrumentos cada vez mais elaborados, e orientados para um
uso colectivo. Essa multiplicação dos instrumentos irá, também ela, modificar a
ligação com a natureza, no sentido em que esta irá ser cada vez mais vista como o
fornecedor de uma matéria bruta que é preciso transformar. O papel de «concepção»

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e de «criação» já não pertence, pois, doravante, antes de mais à natureza, mas antes ao
próprio homem, a partir da sua vontade e da sua capacidade de dominar essa mesma
natureza.
Entramos assim na «história», i.e. num universo cultivado que ganha sentido a
partir da concepção do homem e que pode ser dominado pelo conhecimento. Claro
está, esta nova perspectiva não se opõe radicalmente à concepção cósmica: com
efeito, há que conformar-se sempre à ordem pré-existente do cosmos, mas o que muda
é que as regras de funcionamento e o sentido deste serão tornados explícitos através
do conhecimento.
Estas várias transformações, que inauguram outra relação com a natureza e outras
relações entre os homens, não conduzem, no entanto, à ruptura dos laços que se
podem qualificar de «carnais» com a natureza. Não só a cidade precisa dos bens
produzidos pelo campo — de que ela procura, aliás, tornar-se o lugar de ajuntamento
e de troca — como o homem da cidade precisa ainda de um contacto pessoal directo
com a natureza e com os homens que vivem diariamente em simbiose com ela. Não
será isso precisamente o que, por exemplo, Le Roy Ladurie(7), entre outros, vê no hábito
que muitos citadinos abastados têm de pôr os filhos na ama no campo? É claro que isto
se explica também pela fraqueza do «sentimento materno» dessa época — como o
mostra bem Ariès(8) —, mas este aspecto associa-se com uma certa preocupação em
proporcionar à criança uma vitalidade e uma força que a natureza, supõe-se, detém por
excelência e que a cidade, ao distanciar-se da natureza, tende a enfraquecer.
Definida assim como lugar onde nascem o escrito e a transformação da matéria,
a cidade desenvolve, pois, todo um sistema de regulações formalizadas, ao passo que,
na aldeia, as regulações eram actuantes sem serem necessariamente formalizadas. A
regra escrita torna-se uma referência mais clara, mais certa. Permite sair do arbitrário
assente na confiança interpessoal e dá uma segurança ao nível de uma arbitragem
estruturada, que supõe a intervenção de terceiros, os quais desempenham o papel de
garantes mais ou menos abstractos.

e. Dialéctica imaginário-simbólico

A significação simbólica da cidade é importantíssima na medida em que inscreve


na sua construção e nos seus monumentos a sua história e a das suas relações com os
espaços exteriores que ela controla. Esta memória de pedra, que não encontramos —
pelo menos tão explícita — na aldeia, sugere a impressão de que a cidade é o lugar
privilegiado de expressão de uma ordem superior, o que não faz senão dar-lhe peso
nas relações com o exterior e confirmá-la na certeza do poder e da duração.

(7) Emmanuel LE ROY LADURIE, Montaillou, Village occitan, Paris, Gallimard.


(8) Philippe ARIÈS, L'enfant et lafamille sous 1'Ancien Regime, Paris, Le Seuil.

47
Dotada, deste modo, de uma grande força simbólica, a cidade mantém, por outro
lado, com o imaginário, relações múltiplas. É certo que, tal como na aldeia, ela con-
juga o enraizamento da sua vida quotidiana com a busca de um «outro lugar», busca
que alguns concretizam em viagens, peregrinações,... As possibilidades de tais concre-
tizações são. aliás, multiplicadas pelos habitantes da cidade, por um lado porque a
economia desta última se organiza em relação com um exterior mais ou menos
longínquo, enquanto na aldeia a economia está inscrita no local, e, por outro lado,
porque as funções de estruturação dos campos, de sistematização e de formalização
não só permitem como também requerem que um certo número de pessoas fiquem
libertas das actividades da produção económica directa para «colherem» de algum
modo, nas viagens, informações, tecnologias,... que, trazidas para a cidade, irão
aumentar a eficácia desta.
Mas, para a cidade, o «outro lugar» não é só algo exterior a si como o é a floresta
para a aldeia. O «outro lugar» penetra a cidade; esta contém os seus próprios espaços
imaginários através da constante presença do estrangeiro que nela introduz o exotismo
— com alta ou débil legitimidade — e que pode ter nela, inclusive, bairros reservados,
onde está em casa e onde desenvolve um modo de vida que lhe é próprio. A deriva e
a exploração são, pois, possíveis na cidade em si e tanto mais quanto o volume e a
heterogeneidade da população vão aumentando, e quanto lidamos com uma cidade
que multiplica os contactos com o exterior, e principalmente com um exterior outro,
diferente.
Esta presença do «outro lugar» na própria cidade manifesta-se também a outro
nível, a partir de uma característica ligada ao próprio habitat. Este é, com efeito,
geralmente organizado em ilhéus, cujo interior funciona como outros tantos mundos
afastados que, não sendo acessíveis, em princípio, senão aos soberanos, se tornam
lugares onde encontramos, com mais frequência do que somas de actividades indivi-
duais, as actividades colectivas mais distintas e mais susceptíveis de se desenvolver na
marginalidade, na ilegalidade,... e, logo, de suscitar um sentimento de curiosidade e
mistério; são passagens fechadas por prédios, é o antro dos salteadores ou o laboratório
do alquimista cujo segredo as pessoas tentam penetrar, não sem risco — o que parti-
cipa do sentimento «de um outro lugar»...
Outro fenómeno ainda faz viver esse sentimento do «outro lugar» no interior dos
próprios muros da cidade. Enquanto na aldeia a noite é um tempo de morte social em
que nada vive ou age, na cidade a oposição entre o dia e a noite é vivida, e a noite
torna-se um tempo forte do imaginário, com os seus ritmos, os seus actores, os seus
lugares privilegiados: há a meia noite, o coração da noite, o momento em que tudo
pode acontecer, o momento da gravidade ou do paroxismo da exaltação; é a alvorada,
limite entre as actividades da noite e as do dia, limite também, muitas vezes, entre o
interdito e o permitido, o exigido(9).

(9) Anne CAUQUELIN, La ville, la nuit, Paris, PUF, 1977.

48
Assim, o «outro lugar» é múltiplo na própria cidade e ninguém se espantará em
vê-la (essencialmente a grande cidade) tornar-se a base de representações fantasma-
góricas várias. Caillois evoca assim a existência, ao lado do Paris que conhecemos, de
«um outro Paris, o Paris real, um Paris fantasma, nocturno, inapreensível, tanto mais
poderoso quanto é secreto, e que vem, em qualquer canto ou momento, misturar-se
perigosamente com o outro»(I0). E poderíamos multiplicar as citações de escritores que
se interessam, de facto, mais pela cidade como espaço repleto de «lugares outros» do
que pela cidade que se dá a ver, e que escolhem essa cidade escondida, secreta, para
nela fazerem viver as suas personagens, suscitando assim à partida a ideia de que algo
anormal, ilegal, estranho e até demoníaco vai surgir e, assim, desenrolar-se neste
fundo de ordem que a cidade é por excelência.
Assim, a cidade é sempre ambivalente. Dada na utopia como o lugar do domínio
social em que um espaço formalizado vem responder ponto por ponto a um projecto
social, ela é simultaneamente esse labirinto de que fala M o l e s 0 i . e . um lugar de
mistério, de não-transparência, e um lugar não dominável globalmente por quem quer
que seja, um lugar de permissividade onde tudo é possível. Essa tensão entre a cidade-
-utopia e a cidade suporte do imaginário é, pois, permanente e necessária à existência
e à dinâmica da cidade, como o prova suficientemente o falhanço das cidades que
foram apenas utopia.

CONCLUSÃO

A análise da relação existente entre uma estruturação morfológica e regulações


sociais faz, deste modo, ressaltar importantes homologías entre o que se passa na
aldeia e o que se passa na cidade. Como diria Ledrut(12), há um modo de espacialização
específico à vida social que está ligado ao modo como estão integradas as deslocações
na vida de todos os dias e nos momentos excepcionais que a pontuam.
Esta homología de base vem modular-se em significações muito diferentes, ligadas
às funções que a cidade desempenha na estruturação dos vários campos de actividade
e das suas interferências.
Ao acentuarmos uma diferença funcional que distingue a aldeia da cidade, rela-
tivizámos a importância da morfologia sociodemográfica (volume, densidade,
heterogeneidade) e distanciámo-nos da Escola de Chicago. Misturando-se com a dife-
rença funcional tomada em conta, a homología cidade-campo resulta na composição

(10) Roger CAILLOIS, Le mythe et l'homme, Paris, Gallimard, 1938, p. 157.


(11) Abraham MOLES e Elisabeth ROHMER, Le labyrinthe du vecu. L'espace: matiere d'action, Paris,
Librairie des Meridiens, 1982.
(12) Raymond LEDRUT, La Revolution cachee, Paris-Tournai, Casterman, 1979.

49
do espaço social por uma oposição territorial, apoiando-se nos códigos de base de urna
situação não urbanizada, em que o interior se opõe ao exterior e em que é exigida urna
regulação das trocas que intervêm entre estes dois pólos. Complementarmente a este
apoio cultural, existe uma separação ao nível estrutural, pois que a cidade se afasta
cada vez mais da produção directa para desenvolver e concentrar as várias funções
que exprimem o poder. Nasce, assim, uma inversão entre a supremacia quantitativa do
campo (mais povoado e produtor dos bens materiais de destaque) e a supremacia
funcional da cidade, que se estende por vezes numa dimensão internacional, sem, com
isso, requerer ou supor um aumento de população na medida em que este alargamento
do papel da cidade assenta na multiplicação dos campos que é preciso coordenar, e no
desenvolvimento das trocas para as quais é preciso trazer uma crescente formalização.
Este processo de evolução, que se fará durante muito tempo sem ruptura no modo de
espacialização, atingirá limiares críticos, por um lado quando a urbanização transformar
o modo de distribuição espacial das actividades e fizer da mobilidade um estruturante-
-chave da vida quotidiana, por outro lado quando a industrialização e a burocracia
vierem modificar radicalmente a estrutura do mercado do trabalho e as repartições
espaciais das populações, as quais — cada vez mais numerosas —, migram das
regiões rurais para as aglomerações industriais num primeiro tempo, para as aglome-
rações urbanas depois.
A partir destas homologías podemos entender melhor o alcance das diferenças
que caracterizam as posições recíprocas da cidade e do campo, e que incidem no modo
como as territorialidades são reapropriadas como recurso pelos actores sociais.

50
SEGUNDA PARTE

INDUSTRIALIZAÇÃO
E RELAÇÃO COM O ESPAÇO
Na sequência do surgimento de vários fenómenos, ligados, por um lado, às condi-
ções de trabalho e, por outro lado, à generalização do uso do dinheiro, vários distan-
ciamentos irão manifestar-se em relação às características das situações não urbanizadas.
Já actuantes nas regiões industriais, que constituem o que consideramos ser situa-
ções de transição, esses fenómenos vão complexificar-se e ganhar amplitude com a
urbanização.
Nas páginas que se seguem apresentaremos sucintamente situações em que, em-
bora associadas ao desenvolvimento da industrialização, as composições espaciais
permanecem largamente comparáveis às situações descritas anteriormente: a mobili-
dade não estrutura nelas a vida quotidiana. Todavia, interferindo com a industrialização,
essas composições espaciais ligar-se-ão a efeitos sociais diferentes dos detectados em
situações não industrializadas, mas também elas pouco urbanizadas. E precisamente
neste ponto que reside o interesse destas páginas: permitem mostrar a multidimensio-
nalidade do modelo que é o nosso.

X. SITUAÇÃO DE TRANSIÇÃO: REGIÃO INDUSTRIAL.


CONFIGURAÇÃO ESPACIAL E VIDA SOCIAL

Relíquia do século XIX, as regiões industriais conheceram um forte desenvol-


vimento, com uma importante subida da densidade e um habitat a tornar-se mais com-
pacto, sem que isso, no entanto, acarretasse automaticamente quer formação de cida-
des, quer, sobretudo, urbanização. Os modos de estruturação do habitat foram-se
desenvolvendo aí, com efeito, num modo análogo ao que caracterizava as situações não
urbanizadas anteriormente descritas; só a actividade económica dominante se trans-
formou, ao passo que as possibilidades e imposições que regulam a vida quotidiana
das populações permaneciam similares. Com esta afirmação, afastamo-nos de novo à
partida da posição de Wirth(1), o qual vê nas variáveis demográficas as variáveis chave

(1) Louis WIRTH, JJrbanism as a Way ofLife, op. cit.

53
que explicam o aparecimento da cidade e da urbanização; para nós, apenas se trata aí
de variáveis que vêm conotar um processo mais fundamental.
Para construirmos esse ideal-tipo referir-nos-emos às situações da Inglaterra, do
Oeste da Alemanha, do Norte de França e da Bélgica, onde se desenvolveram no
século XIX as principais regiões industriais em torno das minas e da siderurgia. O
carácter intrínseco destas indústrias e, antes de mais, das minas, permite compreender
a organização espacial dessas regiões e os traços mais importantes da vida que aí se
desenvolveu.

a. Sistema social

Consideradas à escala europeia, as minas apresentam-se em jazigos contínuos


nitidamente localizados (a bacia do Ruhr, o Borinage,...), ao passo que à escala regio-
nal elas constituém explorações dispersas em função dos jazigos. A disseminação das
minas levou os patrões da altura a construir habitações e o mínimo de equipamento
para o pessoal, recrutado em cidades e aldeias mais ou menos afastadas; acumulavam
assim as prerrogativas de patrões e as de proprietários, e a vida social no seu conjunto
reproduzia a hierarquia e os conflitos da vida profissional. A imbricação trabalho-
-habitação-lazer, e o estreito e global interconhecimento que dela resultava eram aliás
tanto mais impostos quanto, por um lado, o tempo de trabalho era muito longo e, por
outro lado, existiam poucos meios de transporte, os quais, além disso, eram muito dis-
pendiosos.
Assim, nessas zonas industriais a vida social revestia-se dos traços essenciais que
notámos serem as características da vida na aldeia não urbanizada. O controlo ecológico
é aqui fortíssimo a partir da compenetração do trabalho e do conjunto da vida quoti-
diana, e as relações de vizinhança são tanto mais fortes quanto não existe qualquer
«segurança social» e quanto só a entreajuda entre vizinhos pode garantir, por pouco
que seja, contra os imprevistos da vida quotidiana. O bairro é vivido com referência
ao tipo de trabalho e as festas que aí decorrem são festas que remetem, também elas,
para o trabalho: a festa dos mineiros, a festa dos metalúrgicos,... é a festa colectiva —
o que traduz a mistura profunda do social e do cultural. O trabalho impregna assim
toda a vida, e isso tanto mais quanto o patrão, que é também proprietário das habi-
tações e dos equipamentos, for um líder polivalente. O «paternalismo», como ulte-
riormente se designará este tipo de poder, encontra assim múltiplos suportes ao nível
do espaço, tal como os tinham também os notáveis tradicionais da aldeia não urbanizada.
Contudo, pouco a pouco, irá manifestar-se uma diferença que ganhará rapida-
mente amplitude: ao poder do patrão opor-se-á progressivamente o contrapoder das
organizações operárias em nascimento, as quais se esforçarão também por estender a
sua liderança, nomeadamente ao multiplicarem as ancoragens espaciais: casas do
povo, cooperativas operárias, sociedades de habitação,... A dicotomia dos espaços nas

54
velhas regiões industriais dará, deste modo, uma expressão espacial concreta à oposi-
ção de classes.

b. Sistema cultural

Em tal situação, o bairro mostra-se uma base importante de identificação, na sua


relação com a vida profissional.
A região constitui mais uma justaposição de entidades iguais entre si do que um
conjunto hierarquizado, pois dela não se vê, geralmente, destacar-se nenhum centro
que assegure a integração das várias entidades constitutivas. Assim, na Bélgica, no
Borinage, não articula a cidade de Mons a região do interior, mesmo se ela é, para o
exterior, o centro de referência da mesma região? Estamos, pois, novamente perante
uma situação comparável à das regiões não urbanizadas, em que a cidade é um espaço
de que as aldeias necessitam, mas para com o qual fazem questão de manter ciosamente
algumas distâncias.

c. Sistema da personalidade

As regiões industriais conhecem, ao nível dos bairros, um intenso desenvolvimento


da protecção e responsabilidade colectivas: a solidariedade e a entreajuda são, com
efeito, imprescindíveis à sobrevivência, pois fora delas não existe nada que possa
automaticamente enfrentar a doença, o acidente, o desemprego; há que gerir, pois,
colectivamente as eventualidades.
Encontramos, deste modo, uma retoma dos comportamentos descritos como
característicos das regiões não urbanizadas, mas a manifestarem-se aqui talvez com
tanto mais intensidade quanto lidamos com entidades de mono-indústria, quando não
de mono-empresa, e quanto as populações agrupadas estão desenraizadas e cortadas
das solidariedades tradicionais. Além disso, as obediências estão explicitamente
dominadas pelo económico: está tudo centrado no trabalho, na população — o que
acarreta o desenvolvimento de regulamentos aplicáveis não só ao trabalho, mas tam-
bém à habitação, ao uso dos equipamentos.
Esta supremacia da economia — que se manifesta tão visivelmente quanto as
colinas das explorações de carvão ou as chaminés das fábricas, que ultrapassam os
campanários das igrejas e as torres — irá favorecer o desenvolvimento de um sentimento
de oposição de interesses entre o patrão, que é conhecido pessoalmente (e muitas
vezes intimamente pelas indiscrições do pessoal mais chegado), e os trabalhadores,
que, na greve, não encontram apenas um meio racional de negociação mas também a
possibilidade de exprimirem uma agressividade e uma rejeição afectivas tanto mais
profundas quanto mais amplo é o interconhecimento.

55
d. Rumo à decomposição do modelo de harmonia na hierarquia

A luta de classes, tal como Marx a analisou, remete para tais situações concretas
em que o afectivo e o racional se imbricam para darem sentido às oposições emergentes.
É também neste contexto que, como mostrou Engels(2), a habitação se torna um pro-
blema social em consequência das importantes migrações de população para os novos
sítios industriais. Ao lado do patrão, o proprietário imobiliário surge, desde logo,
como outra figura de exploração que, na situação de penúria gerada por essas des-
locações maciças, vê a possibilidade não apenas de multiplicar as construções de habi-
tações em espaços reduzidos (bairros operários) mas também e essencialmente de
multiplicar a ocupação dessas habitações, dividindo-as ao máximo ou alugando à hora
ou ao meio-dia quartos ou simplesmente camas. O problema atingirá uma gravidade
tal que tanto os patrões esclarecidos como os socialistas utópicos procurarão resolvê-
-lo criando a «habitação social», primeira manifestação importante de uma preocupação
com o enquadramento da vida quotidiana dos trabalhadores, por parte dos patrões e
por parte das organizações operárias, as quais vêem nela um meio eficaz de atingir as
suas respectivas finalidades, que, no entanto, divergem.
Assim, pouco a pouco e não sem ambiguidade, vemos desencadear-se a decom-
posição do modelo de harmonia na hierarquia: a sua relativa permanência é acom-
panhada pelo desenvolvimento de solidariedades laterais entre operários que se orga-
nizam como podem contra aqueles que, doravante, percebem serem pessoas que,
embora os conhecendo intimamente, os exploram: o patrão e o proprietário®.
Além disso, algumas modalidades tradicionais de protecção e de segurança vão
ver-se reapropriadas através de uma integração progressiva do cálculo na vida quo-
tidiana. Nascem assim sociedades mutualistas, cooperativas de compras,..., que se
organizam no plano local, já que sua federação só mais tarde irá intervir, e que se
apoiam simultaneamente numa confiança ligada às obediências tradicionais e na
passagem da ideia de protecção à de garantia (se é verdade que tanto uma como outra
têm em conta o longo prazo, contudo a garantia diferencia-se da protecção na medida
em que contabiliza a contribuição de cada um e mede as consequências no plano
individual — o que modifica radicalmente o regime de trocas e contribui para instaurar,
na vida quotidiana, a força estável de uma garantia abstracta).
A decomposição do modelo de harmonia na hierarquia, já ampliada pela mul-
tiplicação do cálculo na vida quotidiana, vê-se ainda acentuada por outro elemento do
contexto. Com efeito, as populações que trabalham nas novas fábricas são essen-
cialmente compostas por famílias que emigraram da sua aldeia, e que, por isso mes-
mo, estão doravante cortadas da sua comunidade, da segurança que esta lhes propor-
cionava, mas também do controlo normativo que exercia sobre elas. Esta ruptura,

(2) Friedrich, ENGELS, La question du logement, Paris, Ed. Sociales, 1969.


(3) Susanna MAGR1 e Christian TOPALOV, éds., Villes Ouvrières 1900-1950, Paris, L'Harmattan, 1989.

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associada à insegurança económica e à instabilidade espacial, tende a fazer, desses
meios, meios de relativa anomia — o que não deixa de ter efeitos perturbadores tanto
no plano do trabalho profissional como no plano da luta operária. O desenvolvimento
do alcoolismo, a multiplicação dos problemas familiares... acarretam, desde logo, no
norte da Europa, reacções moralizadoras, quer da parte dos patrões, quer da parte dos
líderes do movimento operário. A habitação social, que já evocámos, surge para uns
e outros como um remédio para todos esses males e, por exemplo, a lei antialcoólica
do socialista Vandervelde, na Bélgica, inscreve-se nesta solicitude de, simultaneamente,
devolver a dignidade ao operário e favorecer a consciencialização de classe.
Também é neste contexto que a conquista do poder municipal irá aparecer como
um desafio essencial tanto para o patronato como para o movimento operário, os quais
se esforçarão um e outro por se apropriar dele para, a partir dele, assegurar para si o
controlo da vida quotidiana dos bairros operários em particular. A importância desses
bairros é, com efeito, muito grande, pois se é verdade que assentam num projecto
colectivo que quer ultrapassar o local para manifestar uma solidariedade internacional
para além de toda a proximidade espacial e de todo o conhecimento pessoal prévio,
esses bairros não deixam por isso de constituir a própria base da rede internacional dos
seus habitantes, o fundamento da sua segurança e, portanto, da sua capacidade de
implicação num projecto colectivo mais ambicioso.
De um ponto de vista bem diferente, esses bairros, que se constituíram por aglu-
tinações progressivas e sem qualquer plano, aparecem visivelmente como espaços
desorganizados em que a fábrica e o habitat se misturam de forma anárquica numa
atmosfera poluída; assim sendo, servirão de contra-imagem aos arquitectos e urbanistas
dos anos 20-30 para pensar a arquitectura e o urbanismo «modernos», dominados por
uma vontade de ordenamento e de salubridade e por uma preocupação com a norma-
lização que nivelasse o acesso a diferentes vantagens.

2. PROCESSO DE INDUSTRIALIZAÇÃO E CONJUNÇÃO COM A URBA-


NIZAÇÃO

Se as modalidades de organização do espaço que estruturam a vida quotidiana


dessas regiões industrializadas se apresentam de forma bastante semelhante às que
descrevemos para as situações não urbanizadas, a transformação da lógica da vida
económica faz com que os modelos tradicionais, embora permanecendo aí um poderoso
ponto de apoio, experimentem profundas alterações. Isto leva-nos a tentar caracterizar
a industrialização enquanto processo distinto da urbanização e enquanto factor de
transformação da vida quotidiana.
Para tal, ficando na perspectiva que adoptámos à partida, caracterizaremos a
industrialização partindo da materialidade e, nomeadamente, da materialidade dos
instrumentos, dos produtos e do espaço. Isso permitir-nos-á extrair os traços pertinentes

57
para a nossa análise e que podem reinterpretar-se a propósito do desenvolvimento
ulterior de actividades outras que não as industriais.

a. Características materiais

Passagem do instrumento divisível ao instrumento indivisível


Enquanto com o artesanato cada um dispõe de instrumentos próprios, de máquina
própria e controla tanto o seu tempo e ritmo de trabalho como a quantidade e a quali-
dade produzidas, as coisas mudam, como notou Marx, com o estabelecimento fabril.
Aqui, embora as máquinas permaneçam individuais, estão doravante agrupadas num
mesmo espaço e o trabalho efectua-se sob o controlo visual de um patrão que decide
os horários, os ritmos, as quantidades e as qualidades e que compara os contributos
individuais; deste modo, o instrumento permanece divisível mas o trabalho efectua-se
segundo regras comuns impostas por um terceiro.
Alcança-se uma etapa suplementar com a fábrica industrial: doravante, o instru-
mento é colectivo e o produto comum, e é impossível medir o contributo de cada um
na produção. Logo, a repartição dos ganhos será imposta com autoridade pelo patrão
até ao momento em que os trabalhadores se vão aperceber que a interdependência do
trabalho e, portanto, da produção permite a alguns deles um bloqueamento geral do
instrumento: então a repartição dos ganhos impor-se-á cada vez mais através da nego-
ciação, apoiada quando necessário pela greve. Pois é, com efeito, essa capacidade de
bloqueamento, ligada à interdependência, que faz com que a greve ganhe todo o seu
peso económico. Assim, o desenvolvimento da classe operária enquanto classe de
oposição não foi gerado por um processo de empobrecimento, mas antes por uma
tomada de consciência, por parte dessa mesma classe, do seu poder. Vemos aqui, na
transacção social, em que medida a posição do operário é diferente da do pobre ou da
do «quarto mundo», como é designado hoje em dia.
Se, de facto, o instrumento indivisível, na medida em que torna não mensurável
o contributo de cada um, supõe a negociação da repartição dos ganhos (após ter
conhecido uma imposição autoritária desta), também precisa de ser gerido por uma
decisão concentrada, pois a máquina, tal como a produção, constitui aqui um todo.
Todavia, esta decisão concentrada pode actuar segundo várias modalidades consoante
os regimes económico-sociais. Assim, no quadro das sociedades capitalistas, o patrão
(ou assembleias de accionistas, mas não os trabalhadores) monopoliza a decisão
concentrada, fazendo dela um dos elementos em que assentam as relações de produção
ao nível das condições de produção.

Divisibilidade ou indivisibilidade do produto


Enquanto, por um lado, a industrialização assenta na indivisibilidade do instru-
mento, ela tende cada vez mais a criar produtos divisos, i.e. individualmente apro-

58
priáveis. Assim, o caminho de ferro tem-se visto progressivamente suplantado pelo
automóvel, tal como o cinema o foi pela televisão.
E o peso dos produtos vai crescendo mediante uma produção cada vez mais
maciça e cada vez mais estandardizada... Esta mutação não deixou de modificar o uso
do espaço, pois se os bens indivisíveis têm um consumo privilegiado ligado à densidade
de ocupação do espaço, já os bens divisíveis homogenizam as possibilidades através
do espaço, e favorecem a dispersão.

Consumo de espaço
O desenvolvimento da industrialização tem, aliás, vários outros efeitos ao nível do
consumo do espaço.
Enquanto através da multiplicação dos bens divisos tendeu a homogeneizar as
possibilidades no espaço, a industrialização, após ter-se imbricado como pôde num
tecido urbano muito fragmentado, foi-se a pouco e pouco orientando para o desenvol-
vimento de espaços indivisos, i.e. para a apropriação de superfícies relativamente
grandes por um determinado equipamento (indústrias, mas também escolas, hospi-
tais, comércios,...) que podia, desta forma, desenvolver-se sem desestruturar o antigo
tecido urbano, mas também atribuir-se a si próprio um máximo de autonomia e de
capacidades de controlo. A multiplicação de tais espaços fora dos centros urbanos
contribuiu amplamente para desvitalizar os mesmos e para fraccionar a complemen-
taridade que os caracterizava.
Além do mais, a evolução da indústria dos transportes, também ela, alterou o
consumo do espaço: enquanto os transportes colectivos favorecem a concentração
espacial das populações e dos equipamentos e serviços (pense-se no impacto do apare-
cimento das estações no século XIX), o automóvel, ao nivelar a acessibilidade,
favorece a dispersão e, quando se dá concentração, mostra-se consumidor bulímico de
espaço para a circulação e estacionamento — o que é feito em detrimento de outras
funções e de outras actividades.
Estas várias questões serão retomadas de forma mais alargada na análise da urba-
nização, mas quisemos, no entanto, mencioná-las desde já, na análise das regiões
industriais, pois foi aí que primeiro apareceram, aguardando, para se complexificarem,
que o processo de industrialização se conjugue com o de urbanização.
Tendo assim sucintamente descrito três elementos de base ligados às condições de
produção e com efeitos nas relações de produção, iremos agora situar-nos numa pers-
pectiva mais autónoma em relação ao próprio processo de produção, encarado a partir
do instrumento, do produto e do espaço, para nos interessarmos um pouco pela gene-
ralização do uso do dinheiro, e vendo nele um fenómeno que vem estruturar de forma
nova a vida quotidiana na empresa e com a empresa.

59
b. Dinheiro e individualização

No início da industrialização, uma parte mais ou menos importante do salário era


dada sob a forma de bens de consumo imediato (pão, carvão,...) ou de bónus com
designação explícita e exclusiva dos bens que permitiam adquirir. Assim, à relação de
dependência típica do salariato misturou-se uma dependência paternalista que alguns
queriam fosse educativa, e isso tanto mais quanto esses bens ou esses bónus eram de
curtíssima validade — o dia ou a semana.
Uma das primeiras reivindicações operárias foi que a integralidade do salário
fosse paga em dinheiro e, pouco a pouco, com prazo mais dilatado; deste modo, o uso
deixava de ser determinado de antemão e aparecia uma potencialidade de escolhas
quer nos tipos de consumo, quer nos prazos de execução deste.
Esta potencialidade mostrava-se tanto mais efectiva quanto se começava a sair de
um comportamento de preocupação em que o escasso dinheiro de que se dispunha mal
permitia sair da ordem do necessário, para entrar numa situação em que o nível de
rendimentos ia permitir uma orientação para este ou aquele bem em função de um pro-
jecto específico; claro que, este projecto iria, depois, ver-se cada vez mais manipulado
por uma publicidade tanto mais poderosa quanto categorias cada vez mais alargadas
de consumidores iriam assumir essa indeterminação que o dinheiro proporciona,
fazendo escolhas; mas não deixa de ser verdade que o pagamento do salário em
dinheiro iria acarretar uma redução da dependência paternalista e permitir a elaboração
de projectos pessoais. Assim, a nosso ver, a generalização do uso do dinheiro não tem
só efeitos negativos, como tende a sublinhá-lo frequentemente a evidenciação da opo-
sição entre valor de uso e valor de troca; ela é também um elemento de reestruturação
da vida quotidiana, nomeadamente porque faz do tempo um objecto de cálculo asso-
ciado à previsão que o pagamento à semana, depois à quinzena, e depois ao mês permite.
O tempo desenvolve-se assim como o objecto de cálculo tanto nas relações de tra-
balho como nas relações de consumo; e esta concepção pode inclusive imiscuir-se na
vida familiar na medida em que, por exemplo, a esposa que assume as tarefas domés-
ticas acha que isso leva muito tempo e quer dedicar parte dele a actividades que julga
mais interessantes, ou ainda julga que o tempo que dedica a essas tarefas merecem um
salário como qualquer outro trabalho(4).
Esta vontade, quando não esta capacidade de cálculo individualizado, permite
uma coexistência colectiva, apesar de ou mesmo por causa do desenvolvimento de
projectos individuais. O «eu» tem doravante prioridade sobre o «nós» e pode aparecer
como a componente de base a partir da qual o «nós», incluindo o «nós» familiar, acaba
por ganhar sentido.
Esta individualização da vida social resulta numa vontade de não dever nada a
ninguém e de preservar para si toda a liberdade de acção, o que levará à preocupação

(4) Georg SIMMEL, Philosophie de 1'argent, Paris, PUF, 1987.

60
de compensar todo o serviço individualmente e a curto prazo. Por conseguinte, as
pessoas mostrar-se-ão reticentes perante «serviços» gratuitos de vizinhança, temendo
entrar assim numa cadeia de obrigações recíprocas, tidas como outros tantos obstáculos
à autonomia: lidamos, neste caso, com um comportamento bem diferente do carac-
terístico das situações não-urbanizadas, em que a recusa de entreajuda teria sido con-
siderada como um grande insulto.
Através deste fenómeno de desenvolvimento do cálculo individual, ligado ao pro-
cesso de industrialização, vemos como se introduz na vida quotidiana uma lógica de
sociedade liberal em que o indivíduo está na origem e no fim do sentido, em que o
amanhã tem de ser melhor que o hoje e em que o progresso, afirmado ao nível ideo-
lógico, estrutura a vida quotidiana ao dar prioridade à previsão (que supõe dinheiro e
tempo abstracto) sobre a previdência.

c. A urbanização como processo que dá à industrialização toda a sua lógica

Definida enquanto processo integrando a mobilidade espacial na vida quotidiana


a partir quer das possibilidades técnicas de deslocação, quer de uma leitura positiva da
mobilidade, a urbanização dará à industrialização toda a sua lógica, como acaba de ser
descrito, e permitir-lhe-á também manifestar todas as suas contradições.
A mobilidade — que afecta não só as pessoas e os bens mas também as mensa-
gens e as informações — repercute-se de várias maneiras na estruturação e no uso do
espaço, e afecta a vários graus e numa temporalidade diferente a cidade e o campo.
Assim caracterizada como processo de integração da mobilidade na vida quotidiana,
a urbanização dará à individualização toda a sua lógica, ao diminuir o peso dos enrai-
zamentos territoriais e o do controlo ecológico na dinâmica global. Permitirá fazer do
projecto individual um elemento chave de reivindicação na vida quotidiana.
Ao associar-se, por outro lado, ao carácter colectivo do instrumento e com a
necessidade de decisão concentrada, ela instaurará uma separação entre a lógica de
apropriação individual em que a criatividade poderá ser valorizada e a lógica de con-
trolo colectivo em que a negociação institucionalizada se arrisca a ganhar peso, ao
favorecer a emergência de oligopólios não só ao nível da produção industrial mas
também ao nível da negociação entre poderes político, económico, cultural...
Além do mais, ao reduzir o controlo ecológico e o conhecimento interpessoal
retrospectivo, a urbanização irá multiplicar a necessidade de instrumentos abstractos
de avaliação e de comparação, instrumentos esses que contribuirão para difundir na
vida quotidiana uma lógica do signo, i.e. uma relação abstracta com os outros e com
as coisas.
A oposição evocada entre a criatividade e o controlo colectivo ganhará tanto mais
importância quanto a relação relativamente directa entre uma definição morfológica e
uma definição sócio-económica da cidade se dilui, já que os graus de liberdade se vão

61
multiplicando entre ambos. Isto dará lugar ao desenvolvimento da «cidade invisível»,
i.e. de uma cidade em que os agentes colectivos decisivos dispõem de lugares de
encontro que escapam à apreensão imediata, na medida em que não são os lugares
designados e reconhecidos como os do exercício legítimo do poder.
Desde logo, a nova relação com o espaço assim constituída contribui para o
reforço de uma mobilidade do capital, típica de uma sociedade de capitalismo avançado.
Ela induz também um hiato entre, por um lado, as modalidades espaciais que estruturam
os poderes com incidência nas possibilidades de vitalidade social e, por outro lado, as
modalidades espaciais que estruturam a vida sócio-afectiva dos habitantes. A urba-
nização poderia, desta forma, mostrar-se relativamente eficaz ao nível de algumas
funções sócio-económicas, mas revelar-se simultaneamente geradora de problemas
múltiplos ao nível sócio-afectivo.
São todas estas questões, evocadas aqui de forma sucinta, que desenvolveremos
ao analisarmos o processo de urbanização, encarado como mobilidade espacial que
estrutura a vida quotidiana e determina uma nova relação com o espaço.

62
TERCEIRA PARTE

SITUAÇÕES URBANIZADAS
Como já ficou dito anteriormente, a urbanização é aqui definida como processo
em que a mobilidade espacial organiza a vida quotidiana, o que supõe a possibilidade
e a capacidade de ser móvel, assim como uma valorização da mobilidade. Este processo
afecta tanto a cidade como o campo, embora tocando uma e outro com distâncias cro-
nológicas e intensidades variáveis.
É pela análise das características da cidade urbanizada que poderemos encetar
aqui a questão, antes de passarmos a um rápido exame da incidência desse mesmo
processo no campo.
A análise da cidade far-se-á em várias etapas, seguindo o modelo utilizado para
descrever as situações não urbanizadas. Insistiremos contudo mais aqui nos efeitos de
estrutura social, sublinhando como um mesmo contexto espacial pode ser diferentemente
apropriado, inclusive de modo contraditório, por diferentes autores—esta apropriação
tornando-se ela própria parcialmente constitutiva das capacidades respectivas de
transacção das várias posições sociais. Deste modo, surgirá mais nitidamente a im-
portância de que se reveste a lógica de apropriação, perspectiva central em toda a
questão.
No que diz respeito às cidades urbanizadas, os efeitos de estrutura social serão
abordados de dois modos complementares: interessar-nos-emos pelos actores que as
composições espaciais que se tornam dominantes tendem a excluir, e analisaremos
por outro lado os actores que se integram nessas composições espaciais, mas tendo em
conta várias lógicas de acção que as caracterizam e que, logo, vão articulando, com
maior ou menor força, as suas possibilidades.
Mas antes de abordar longamente esses efeitos de estrutura social, é necessário
analisar previamente as novas composições espaciais, induzidas pela transformação
da relação com o espaço que a urbanização permite. Para tal, partiremos de um exem-
plo preciso, que permitirá elaborar o nosso ideal-tipo, referindo-nos de forma pri-
vilegiada a posições médias de mobilidade social; servir-nos-ão posteriormente de
referência para analisarmos as outras posições e extrairmos as particularidades.

65
SECÇÃO I

A CIDADE E M SITUAÇÃO URBANIZADA


CAPÍTULO I

COMPOSIÇÃO ESPACIAL E EFEITOS SOCIAIS

Foi a análise da região industrial de Charleroi na Bélgica que — no começo das


nossas pesquisas — nos permitiu distinguir a noção de urbanização da de industria-
lização e, assim, elaborar a noção de cidade. Por isso iremos partir deste exemplo para
elucidar o nosso propósito.
Situada no rio Sambre, a uns cinquenta quilómetros a sul de Bruxelas, a região de
Charleroi conheceu um importantíssimo e muito precoce desenvolvimento industrial
em torno das minas de carvão e da siderurgia. Nos últimos sessenta anos do século
XIX, este último fez passar a aglomeração de cerca de 40.000 habitantes para 350.000.
Este forte aumento demográfico combinava com uma estrutura espacial próxima
daquela que acaba de ser descrita como característica das regiões industriais em geral
e Charleroi era uma cidade relativamente descentrada e pouco equipada para constituir
um centro atractivo para o conjunto da região.
Se durante aproximadamente o mesmo período, no século XX (1900-1960), o
volume populacional pouco mudou (passou-se de cerca de 350 para 400.000 habitantes)
e se a densidade e a heterogeneidade populacional também não conheceram qualquer
mudança significativa, a estrutura espacial, ela sim, transformou-se totalmente. O
desenvolvimento da metalurgia, da construção mecânica e da química levou à formação
de duas zonas de agrupamento do emprego industrial, a leste e a oeste da cidade, no
eixo do rio Sambre, recrutando estes dois pólos de emprego a sua mão-de-obra no
conjunto da região.
Simultaneamente, parte da população, a mais abastada, instalou-se a sul do rio
Sambre, num local mais agradável e não poluído pelos fumos das fábricas (levados
para oeste e nordeste pelos ventos dominantes), lugar que, contudo, permanecia pró-
ximo do seu lugar de trabalho. Assim, mais bem centrada, a cidade de Charleroi come-
çou a desenvolver um certo número de equipamentos (escolas, hospitais, comércios,
lazeres,...) que, doravante, fizeram dela um lugar de uso forçoso e de acessibilidade
privilegiada.
No contexto desta evolução, a maior parte dos bairros que até então eram relati-
vamente autocentrados, abriram-se progressivamente ao exterior, tornando-se alguns

69
inclusive simples unidades residenciais que os seus habitantes deixam quer pelo traba-
lho, quer pelas várias actividades tais como os lazeres, as compras, etc.
Paralelamente a esta tendência para o monofuncionalismo de vários bairros, outro
movimento de especialização do espaço se foi desenvolvendo. Com efeito, a maior
parte dos grandes equipamentos, industriais ou outros, localizaram-se em espaços
específicos, sem que isso resultasse necessariamente numa centralização, i.e. na
sobreposição num mesmo espaço de todos os equipamentos concentrados.
Estes vários fenómenos de especialização do espaço tornam a mobilidade espacial
necessária para os que querem utilizar os vários equipamentos, os quais, para além do
mais, se hierarquizam pelo espaço: se os equipamentos quotidianos, relativamente
banalizados, estão bastante divididos pelos bairros, os equipamentos mais específicos
localizam-se a níveis espaciais tanto mais largos quanto respondem a usos mais
excepcionais e necessitam de uma zona mais extensa de recrutamento de clientela
ou de utentes. Os bairros residenciais estão, deste modo, frequentemente vazios de
grandes equipamentos e tornam-se os locais em que se vive de forma forte a dissociação
entre o profissional e o extraprofissional, estando este último ainda dividido conforme
se tratem de actividades externas a esta.
Se se examinarem os efeitos sociais desta composição espacial, apenas possível
na medida em que a mobilidade organiza a vida quotidiana, aparece rapidamente que
o controlo ecológico já não pode ser a base do controlo social, pois que mais ninguém
tem a possibilidade de percorrer as actividades dos outros mediante observação
directa generalizada. De igual modo, a relação interpessoal já não é o factor decisivo
de um processo integrador global.
Por outro lado, se se comparar esta situação com o que se passava nas regiões
industriais em fase de transição, em que o lugar de trabalho e o lugar de residência se
misturavam intimamente do ponto de vista espacial, e em que esta mistura material
favorecia uma vida social e uma cultura profundamente marcadas pela vida profissional,
pode-se compreender que a especialização do espaço, ligada à urbanização, tenda a
diluir esta imbricação do profissional e do extraprofissional e, logo, a decompor de
algum modo a consciência de classe.
Para além disso, a busca, em espaços exteriores ao bairro de residência, de uma
resposta adequada às várias imposições culturais ou de serviços, por exemplo, acaba
por facilitar uma dissociação entre o ambiente do bairro e o que se encontra noutros
lugares.
Se estas várias evoluções se dão em Charleroi, há outra que aqui não aparece,
dado o momento histórico de surgimento desta cidade e a sua origem, antes de mais
industrial. Para muitas outras cidades, com efeito, apareceu uma mudança importante
com o desaparecimento das muralhas, desaparecimento esse que punha em causa a
distinção cidade/fora da cidade, outrora claramente aparente e vivida concretamente
pela própria existência dessas muralhas. A supressão destas no século XIX suscitou
frequentemente ásperas discussões e lutas políticas, como foi o caso, por exemplo, de

70
Genebra, onde as fracções tradicionais da burguesia se opuseram duramente à sua
destruição, pressentindo certamente a evolução do controlo interno e externo que iria
daí resultar^. Com efeito, dotados que estavam com múltiplas significações não só
militares e fiscais mas também simbólicas, as muralhas asseguravam uma definição
morfológica clara da cidade e localizavam nitidamente os privilégios de que esta
muitas vezes gozava. A sua supressão, que permitiu uma importante extensão espacial
da cidade num espaço não delimitado, provocou o desenvolvimento de periferias de
que seria hoje difícil dizer se, morfologicamente, se tratava de cidade ou de campo.
Depois, a vontade de limitar o crescimento dessas cidades com medidas abstractas do
tipo da planificação, como o traçado de perímetros de aglomeração, teve geralmente
pouco efeito e o limite permaneceu pouco nítido, porque já nada permitia, morfolo-
gicamente, distinguir sem hesitação a cidade dos arredores, tal como as muralhas o
autorizavam.
Associado à mobilidade espacial, este desaparecimento das muralhas permite,
pois, uma extensão quantitativa infinita da cidade. Com a urbanização, não há, logo,
só mudança de escala mas também mudança nos modos de delimitação. Não chegam
alguns hoje a designar os limites de uma cidade urbanizada partindo de uma definição
sócio-económica e incluindo a partir daí na cidade o conjunto das populações que
podem encontrar-se, dos equipamentos e serviços que podem utilizar-se e das acti-
vidades que podem exercer-se no quadro de um dia? Se tal definição apresenta vários
interesses, contudo a noção de aglomeração é, a nosso ver, a mais relevante para a aná-
lise espacial; supõe um espaço com forte densidade de habitat, cuja periferia instável
se define a partir dos ritmos de crescimento, desenvolvendo-se essa mesma periferia,
em números relativos, mais rapidamente do que as zonas interiores da aglomeração e
mais rapidamente também do que as zonas que lhe são exteriores. Assim considerada,
a aglomeração torna-se uma unidade de base para se compreender a dinâmica de dis-
tribuição interna das actividades e das populações. Apenas se compreende subsidia-
riamente como uma federação de bairros, ao passo que é a partir da posição do bairro
no conjunto da aglomeração que o conteúdo e a evolução deste último ganham sen-
tido, e isso mesmo se o bairro surge como tendo a sua dinâmica própria e mesmo se
tenta controlar as transformações que o afectam e que são induzidas do exterior.

1. LÓGICA FUNCIONAL

Esta aglomeração surge como um espaço funcionalmente especializado, i.e. como


um espaço onde a distribuição das diferentes actividades necessárias à vida social,
profissional e extraprofissional, se faz mediante espaços especializados.

(1) Jean-Claude FA VEZ e Claude RAFFESTIN, «De la Genève radicale à la cité internationale», in
Histoire de Genève, sob a direcção de P. GU1CHONNET, Genève, Privat/Payot.

71
Falámos anteriormente da concentração. Esta desenvolve-se tanto mais quanto
está associada a esse tipo de especialização e ao desenvolvimento de relações de com-
plementaridade, outrora associadas a uma centralização que permitia encontrar, num
mesmo espaço, a diversidade das actividades. Este espaço que concentrava todas as
actividades era designado como «o centro», o qual era tanto mais diversificado quanto
se situava a um nível elevado da hierarquia funcional.
Se à especialização-concentração acresce a exigência de complementaridade, resulta
frequentemente uma dissociação espacial que é tanto mais fácil instalar quanto maior
for a mobilidade. Esta especialização pode integrar-se no interior de um bairro, que se
torna, deste modo, um espaço especializado onde se concentra um ou outro tipo de
equipamento. Encontram-se doravante bairros comerciais — no seio dos quais ainda
existe uma especialização por rua, em função de um determinado tipo de comércio:
lojas de calçado, de roupa..., bairros de lazer onde se concentram os cinemas, os cafés;
bairros financeiros, ou ainda dos equipamentos sanitários... Cada bairro pode, pois,
ser doravante caracterizado a partir da função dominante que exerce e que concentra
parte importantíssima dos seus equipamentos.
Esses equipamentos podem requerer progressivamente espaços indivisos com
maior dimensão e, não podendo geralmente achar tais espaços na rede urbana existente,
ir implantar-se na periferia, em espaços desinseridos em relação aos espaços residenciais.
As periferias podem assim tornar-se espaços privilegiados de localização de equipa-
mentos de alto nível hierárquico: hospitais, universidades, centros comerciais, zonas
industriais, grandes prédios com escritórios... Esta evolução pode resultar quer de uma
decisão própria dos poderes organizadores desses equipamentos em si, quer responder
a exigências exteriores. Assim, por exemplo, a cidade de Bruges, que montou um
«plano de estrutura» visando preservar a configuração citadina tradicional, proíbe
qualquer extensão desses tipos de equipamentos no tecido antigo, o que, sem dúvida,
tem por efeito (efeito aliás desejado) proteger o habitat e manter aí, e inclusive desen-
volver aí de novo, uma vida social intensa nas ruas e nas praças públicas, mas acarreta
também (e temos aqui um efeito de lógica objectiva) uma crescente dependência do
tecido antigo em relação às periferias e pode por vezes, em caso extremo, levar à sua
decomposição progressiva.
Este fenómeno de decomposição da textura construída tradicionalmente, e de dis-
persão dos equipamentos mais importantes num espaço descontínuo, vê-se reforçado
pelo uso do automóvel como meio privilegiado de mobilidade, a qual exige vários
pontos de paragem e provoca engarrafamentos onde há concentração dos fluxos em
pontos reduzidos. Deste modo, cria-se um espaço sócio-económico que apenas é facil-
mente acessível de carro, pois que a dispersão dos vários equipamentos torna dispen-
dioso, quer em tempo, quer em dinheiro, o seu acesso em transportes colectivos. A
melhoria da rede destes transportes colectivos e das suas qualidades não resultaria
contudo — como por vezes alguns imaginam — num regresso às morfologias citadinas
anteriores; apenas provocaria novos modos de reagrupamento e talvez desse lugar ao

72
surgimento de cidades lineares como as que alguns urbanistas soviéticos dos anos 20
imaginaram — os quais queriam fazer desaparecer a oposição cidade/campo que, de
alguma maneira, fora desacreditada pelas análises de Marx.

2. LÓGICA RESIDENCIAL

A lógica residencial, por seu lado, i.e. a lógica a partir da qual se localizam os
habitantes, responde a um mesmo fenómeno de especialização. Enquanto, na cidade
tradicional, o bairro pode ser visto, de algum modo, como um microcosmos repro-
duzindo as características do conjunto da cidade, o bairro urbanizado corresponde à
concentração de uma categoria sócio-profissional que se encontra nele reagrupada de
forma dominante. Assim, pois, podem detectar-se bairros operários, bairros burgueses,
bairros de profissões liberais, bairros de funcionários, bairros de estrangeiros, etc.
Esta escolha de uma localização em vez de outra depende do atractivo que o
bairro exerce a partir de uma combinação de características positivamente avaliadas:
espaço, assoalhamento, acessibilidade, tranquilidade,... Se estas características podem
variar em função da idade, da etapa do ciclo familiar, da profissão e... da moda, deve
contudo notar-se que a possibilidade de escolha não é igual para todos: apenas os
grupos dominantes dispõem de um real poder de escolha, estando os outros forçados
a residir onde sobra espaço — o que significa, em geral, nos bairros mais desfavorecidos.
Mas quando, por uma razão ou por outra, estes bairros desfavorecidos começam a
chamar a atenção dos grupos dominantes, a população que aí se encontrava vê-se a
pouco e pouco expulsa, quer por uma «invasão» progressiva dos grupos dominantes,
quer por uma medida de expropriação pública.
Isto sublinha, por um lado, o facto de as características de um bairro evoluírem
quer a partir de um voluntarismo colectivo (é o caso das operações de renovação),
quer a partir de decisões atomísticas induzidas, por exemplo, pela instalação de um
equipamento atractivo (um bom serviço de transportes colectivos, por exemplo).
Por outro lado, esta especialização funcional do espaço em matéria residencial
indica efeitos de dominação e de dependência que os bairros das cidades tradicionais
não traduziam assim.
Estas transformações acarretam outra importante consequência. Na vida de uma
família, a existência de várias mudanças não deve necessariamente ser lida em termos
de não integração social, inclusive de patologia, como por vezes é feito. Pelo contrário,
este tipo de mobilidade pode responder a um desejo de adaptação da habitação à
evolução da própria família, evolução que, por exemplo, fará com que se escolha uma
residência na periferia onde se pode dispor mais facilmente de espaços exteriores
quando se tem crianças pequenas ao passo que, atingindo essas crianças a idade do
ensino secundário, se poderá preferir entrar na cidade de modo a aproximar equipa-

73
mentos escolares e culturais. De igual modo, as mudanças sucessivas poderão corres-
ponder a mudanças de estatuto sócio-profissional; assim, nos Estados Unidos as
nuances das estratificações sociais projectam-se nas estruturas de residência dos bairros,
traduzindo desta maneira nitidamente a inter-relação que pode existir com a mobilidade
profissional. Por outro lado, a mobilidade pode permitir a certas famílias escolherem
o local de residência em função do local de trabalho ou vice-versa, ou ainda escolherem
um outro conforme diferentes critérios e, por exemplo, mudarem de residência sem
mudarem de empresa, ou o contrário. Por isso, convém, ao analisar-se as deslocações
profissionais, ver se estas são o resultado de uma imposição — desejo dos interes-
sados em aproximarem trabalho e residência — ou, pelo contrário, se essas deslocações
resultam de uma escolha ligada à vontade de distanciamento e de autonomização dos
critérios de selecção — facto que indica, então, uma integração positiva da mobilidade
na vida quotidiana.
Insistamos no facto, aqui, ser o funcionamento do contexto a estar no centro da
questão, independentemente de toda a preocupação quanto aos efeitos diferentes que
esta questão vai induzir e a que dedicaremos mais adiante todo o nosso interesse.

3. EXIGÊNCIA DE MOBILIDADE E INTEGRAÇÃO NA VIDA URBANA

Na medida em que as várias funções estão instaladas em bairros especializados, já


não é possível para a população satisfazer o conjunto das suas necessidades ficando no
mesmo lugar. Deve, daqui por diante, deslocar-se, e isso tanto mais quanto deseja
utilizar os equipamentos múltiplos e diversos que o meio urbano oferece.
A mobilidade torna-se, portanto, condição de adaptação e de participação na vida
urbana. A sua significação torna-se positiva ao passo que, já o vimos, era negativamente
entendida nos meios pré-urbanizados, onde constituía um factor de desorganização.
Essa mobilidade reveste-se de várias formas, entre as quais se podem distinguir:
as deslocações quotidianas ou pluriquotidianas para ir ao emprego, por exemplo, ou
para fazer compras; a mobilidade interurbana, que supõe deslocações de uma cidade
para outra em função das «especializações» das cidades e sua hierarquização (do
ponto de vista escolar, por exemplo, ou mesmo para compras mais especiais); as
mudanças que, longe de serem patológicas, são muitas vezes sinal de uma preocupação
com a adaptação a uma situação familiar ou profissional alterada.
Chega-se, pois, à produção daquilo que se poderia designar por «espaço móvel»,
no qual são os grupos sociais que o produzem e que dele se apropriam a encontrarem-
-se em situação de poder. Pode dizer-se, com efeito, que a capacidade de mobilidade
é uma condicionante da participação no meio urbano.
Põe-se um problema na medida em que esta capacidade não pertence a toda a
gente de forma igual: ao lado das diferenças ligadas à idade e à saúde, a capacidade

74
de mobilidade está, com efeito, estreitamente ligada quer à capacidade financeira dos
indivíduos, quer, e talvez ainda mais, a uma certa capacidade cultural que desenvolve
ou limita as exigências de um enraizamento espacial concreto e estável. Nesta pers-
pectiva, pode dizer-se que quanto mais se tratar de uma população com necessidade
de pontos de referência concretos e não transponíveis, mais a capacidade de mobilidade
será reduzida; é geralmente este o caso dos grupos sociais desfavorecidos que assentam
a sua segurança nas relações de vizinhança e no conhecimento pessoal. Os grupos
sociais dominantes, em contrapartida, possuem, em graus diversos, uma certa capa-
cidade de deslocalização na medida em que a sua rede de relações não se baseia na
proximidade espacial e em que dispõem de uma capacidade de abstracção que lhes
permite, em espaços que não conhecem, situar-se facilmente a partir de uma grelha
transponível de leitura do espaço.
No que respeita às funções sócio-económicas da cidade, a mobilidade vai permitir
uma autonomia crescente dessas mesmas funções em relação a uma morfologia do
habitat. As modalidades concretas desse desenvolvimento ficarão mais claras após a
análise da apropriação que se segue. Bastará aqui notar que uma aglomeração como
Los Angeles, que, do ponto de vista morfológico, poderia aparecer como a anti-
-cidade, é provavelmente uma das cidades que, socio-economicamente, realizam melhor
as funções de agrupamento de informações e de produção de conhecimentos, ligadas
ao processo aleatório, mesmo se isso se opera a partir de lugares privados e não a
partir de espaços públicos.

75
CAPÍTULO I I

LÓGICAS DE APROPRIAÇÃO

Partindo desta composição espacial como espaço já existente, não nos interes-
saremos aqui pelas lógicas de produção desse espaço, o que suporia que analisássemos
os vários actores com iniciativa nas transformações: poderes públicos, promotores
imobiliários, poupança institucional... Deixando, pois, para outro capítulo as lógicas
de produção, centrar-nos-emos nas lógicas de apropriação, colocando a hipótese
segundo a qual o espaço assim estruturado irá, consoante as várias modalidades do seu
uso social, ser para determinado grupo um trunfo que o torna forte ou, pelo menos, o
faz participar da transacção social, ao passo que, para outro grupo qualquer, esse mes-
mo espaço constitui um handicap que o marginaliza ou o exclui dessa transacção.
Essas modalidades de apropriação que iremos estudar mostrar-se-ão diferentes
consoante a possibilidade e a capacidade que testemunham em integrar positivamente
a mobilidade e a diluição do controlo ecológico que também era um garante da segu-
rança de cada um. Vimos, com efeito, através da análise da composição espacial, em
que medida o distanciar o lugar de trabalho e o lugar de residência e a especialização
dos espaços, que levam a diferenciar o ambiente do bairro de residência dos ambientes
exteriores, reduziram (quando não eliminaram) qualquer hipótese de controlo por
observação directa e geral. Vimos também quão importante se tornava a mobilidade
dos indivíduos e das famílias... Isso não significa contudo que o conjunto de uma
aglomeração urbana pode pensar-se segundo o modelo do hotel, de que Simmel(1) fala
por vezes, em que indivíduos relativamente isolados vêm utilizar os vários serviços
oferecidos, numa atitude totalmente instrumental. Isso tampouco significa que o
conjunto da população urbana viva à maneira dos Hobos, estudados por Anderson(2),
esses Hobos que seriam então o protótipo do trabalhador livre, sem qualquer amarra
e perfeitamente móvel (como o concebem às vezes alguns modelos económicos
simplificados ao falarem da concorrência perfeita no mercado de trabalho)... A apro-

(1) Georg SIMMEL, «The Metropolis and Mental Life», in Richard SENNETT, Classic Essays on the
Culture of Cities, New York, Appleton-Century Crofts, 1969.
(2) Nels ANDERSON, The Hobo, Chicago, University Press of Chicago, 1923.

77
priação do meio urbano não corresponde nem ao modo de uso de um hotel por clien-
tes, nem ao Hobo errante. Supõe, pelo contrário, que se reconstituam formas de inte-
gração tanto a nível do sistema social quanto aos níveis dos sistemas cultural e da per-
sonalidade, formas de integração que incorporam a mobilidade espacial como condi-
ção de dinâmica social. Assim, quando essa integração é bem sucedida, a mobilidade
deixa de ser apenas tecnicamente possível, torna-se socialmente valorizada. E para
nós, é a conjunção da possibilidade técnica e da valorização social que, sozinha, constitui
o processo de urbanização, qualquer que seja, aliás, a prioridade cronológica de uma
em relação à outra.
Essa integração da mobilidade simultaneamente como técnica e como valor não
é, contudo, igualmente possível para todos. Por isso, analisaremos sucessivamente
dois tipos de populações. Debruçar-nos-emos primeiro sobre as que entram nessa
lógica de apropriação e para as quais a mobilidade constitui um trunfo. Veremos de
seguida como outras populações permanecem distantes dessa integração da mobilidade
e como esse distanciamento pode enraizar-se em situações diferentes; para alguns, por
exemplo, essa não-apropriação do novo contexto explica-se por uma ligação às estru-
turas espaciais anteriores e, nomeadamente, ao bairro, o que pode resultar numa sim-
ples justaposição de dois modos de vida (um deles, claro, é dominante), ou então favo-
recer a médio prazo uma integração nas estruturas novas, ou ainda manifestar uma
vontade de resistência a estas últimas; para outras, esse distanciamento é visto como
uma dolorosa e injusta exclusão. São estes vários significados da marginalização que
evocaremos, após termos, num primeiro tempo, analisado a dinâmica da integração.

1. DINÂMICA DE INTEGRAÇÃO NO MODELO DOMINANTE

Para analisarmos o significado de que se reveste a integração da mobilidade na vida


quotidiana, vamos re-situar-nos na perspectiva dos sistemas social, cultural e da perso-
nalidade e tomar, à partida, como população de referência, uma classe média implicada
num processo de mobilidade social. A escolha desta população-alvo é motivada não por
uma preocupação em compreender mais particularmente essa posição social, mas antes
pelo facto de se tratar de circunscrever uma tendência que, embora transversal a todas
as posições, é, no entanto, mais explícita nesta população; isto permitir-nos-á perceber
melhor as articulações básicas dessa tendência comum que, como veremos depois, se
articula de modo diferente consoante as posições sociais. Esta diversidade será então
reelaborada com referência às várias outras situações.

a. Sistema social

A análise do sistema social — considerado em situação urbanizada e para aqueles


que integram a mobilidade simultaneamente enquanto técnica e enquanto valor na sua

78
vida quotidiana — irá organizar-se em torno de dois temas. Veremos primeiro como
a valorização da escolha contribui para instaurar o indivíduo no centro do sen-
tido. Veremos depois em função de que modalidades novas se organiza o controlo
social.

Lógica de escolha e instauração social do indivíduo


A quase totalidade dos equipamentos e serviços da cidade urbanizada caracteriza-
-se pelo facto de a sua localização não ser forçada por imposições técnicas; quer se
trate de comércio, de um cinema, de serviços às pessoas, de serviços financeiros, nada
vem, com efeito, impor-lhes tecnicamente uma localização particular. A imposição é
aqui de outra ordem: está ligada ao tipo de clientela interessado e procurado, clientela
essa que, consoante os casos, irá confrontar-se com uma ou outra dessas duas lógicas.
Ou irá procurar poupar tempo e, nesse caso, é normalmente o comércio ou o serviço
situado na proximidade da residência que será preferido — o que funda a utilidade e
a viabilidade dos comércios de bairro. Ou então, deseja escolher entre vários bens ou
serviços de um mesmo tipo (roupas, cinemas,...) ou às vezes, inclusive, entre bens ou
serviços de diversos tipos (cinema ou café); neste segundo caso, os comércios e
serviços em causa ganham vantagem em serem espacialmente reagrupados de modo
a proporcionarem à potencial clientela um máximo de possibilidades de escolha e a
beneficiarem eles próprios da «fama» da rua. Assim, o centro da cidade costuma con-
centrar num espaço reduzido a maioria dos comércios e serviços mais diversos; no
interior deste espaço, esses comércios e serviços agrupam-se, para além disso, por
especialidade: quase todos os cinemas estão situados em duas ou três ruas vizinhas, a
maioria das lojas de roupas ocupa quase todos os edifícios de determinada rua, ao
passo que outra rua é conhecida por concentrar nela as lojas de equipamentos domésticos
e que determinada avenida concentra a maioria dos bancos e escritórios de companhias
de seguros.
Esta lógica de escolha, favorecida pelos agrupamentos espaciais de equipamentos
similares e/ou complementares, tende, para além disso, a transpor-se em vários domí-
nios. A escola que se frequenta já não é necessariamente a que se encontra mais perto,
e o médico de família escolhido não mora de modo forçoso no bairro em que se reside.
De igual modo, os praticantes religiosos escolherão habitualmente a igreja que fre-
quentam e preferirão uma igreja que não a da sua própria paróquia, porque estacionam
mais facilmente o carro. E neste contexto, também a escolha do parceiro leva a melhor
sobre qualquer imposição espacial ou social (mesmo que haja relativamente poucos
casamentos entre classes e que a identidade de pertença regional ou subregional
desempenhe muitas vezes um papel de peso).
Essa possibilidade e esse desejo de escolha têm por efeito o pôr em competição
equipamentos e pessoas, e levam geralmente à rejeição do domínio de toda e qualquer
organização («I hate to be organized», como dizem os Americanos) e à recusa de toda
a forma de confirmação de competência e sem possibilidade de comparação. Assim,

79
por exemplo, vêem-se cada vez mais pessoas a consultarem vários médicos sucessiva-
mente, recusando limitar-se à aceitação do diagnóstico de um só.
Esta vontade de escolha acarreta diversas consequências que levam a uma reorga-
nização importante das relações sociais.
Em primeiro lugar, provocam uma rejeição de tudo quanto é visto como entrave
ou simplesmente risco de entrave à liberdade de escolha e de comportamento pessoal.
Deste modo, verificar-se-á com frequência uma desvalorização das relações de vizi-
nhança na medida em que o vizinho é considerado como susceptível de interferir a
qualquer momento em todos os aspectos da vida quotidiana; a partir daí, manifesta-se
uma vontade de distanciamento tanto mais forte quanto mais espacialmente próximo
for o vizinho e quanto alguns espaços forem de uso comum. Basta pensar no que se
passa nos blocos de apartamentos em que os coabitantes procuram preservar um certo
anonimato uns para com os outros, o que implica não somente que evitem geralmente
irem uns a casa dos outros, inclusive para pedirem ou se prestarem serviços, mas tam-
bém que as conversas se limitem voluntariamente a assuntos banais (o tempo), a ponto
de o elevador, o qual obriga à confrontação imediata, ser o mais das vezes um local
de pouco à vontade e de silêncio embaraçado.
Esta desvalorização das relações de vizinhança é compensada por diversas tendên-
cias que vêm, de algum modo, preencher as perdas que este comportamento implica.
Lembremos que nos colocamos aqui na perspectiva de uma classe média em trajectória
social ascendente e que as características que evocamos são susceptíveis de articulação,
ou mesmo de contradição, para outras posições. Insistamos também no facto de essa
classe média ascendente ser vista aqui como sendo o protótipo que, com várias moda-
lidades, tem grandes hipóteses de se impor como modelo de referência num contexto
em que a urbanização desenvolve uma sociedade de massa, que vai atenuando a
consciência de classe.
Face a esta desvalorização das relações de vizinhança, esta classe média tende a
desenvolver redes de relações funcionais, i.e. relações que não implicam de forma
definitiva e global e que são escolhidas em função da utilidade que se vê nelas; utili-
dade alicerçada numa certa capacidade do outro (domínio de uma técnica, rede de
relações,...). Esta dominante funcional que caracteriza a relação permite assim uma
maior autonomia de reacções; deste modo, pode por exemplo passar-se de um comer-
ciante para outro visto a implicação pessoal ser reduzida, quando não ausente. Por
outro lado, este tipo de relações favorece o desenvolvimento de estratégias pessoais.
«Pode vir a dar jeito», ouvimos nós dizer muitas vezes para explicar, por exemplo, o
facto de se convidar uma ou outra pessoa... Alguns vêem neste tipo de relações uma
certa «pobreza humana» porque o isolam de outros comportamentos relacionais que,
em si, traduzem antes de mais a procura de simpatia e de afecto, mantendo simulta-
neamente, no entanto, também eles a vontade de permanecerem livres e de não se
comprometerem sem hipótese de questionamento.
Paralelamente a essa dissociação das relações consoante as diferentes funções, vê-

80
-se multiplicarem-se em meio urbano pequenos grupos de todas as espécies, através
dos quais se procura muitas vezes amizades para além do objectivo específico declarado,
mas para com os quais se insiste em guardar a liberdade de ficar ou ir embora. Não se
pode, contudo, deixar de notar que aqueles que não conseguem inserir-se em tais
grupos irão encontrar-se numa situação de isolamento e de impotência, também ela
característica de parte da população urbana.
Assim, pois, enquanto em meio não urbanizado o funcional e o afectivo estavam
intimamente ligados, a urbanização, com a vontade de escolha que desenvolve, induz
por sua vez uma multiplicação e uma autonomização das dimensões e reduz as exi-
gências da mistura marcada onde o controlo ecológico poderia mais facilmente exer-
cer-se: entre vizinhos, por exemplo, mas também entre colegas de trabalho, não é fre-
quente dar-se a conhecer para além do que implica estritamente a proximidade espa-
cial transitória da vizinhança ou do trabalho.
Tal preocupação em rejeitar todo o controlo ecológico não significa contudo,
mesmo quando bem sucedida, que se consiga eliminar também o controlo social;
muitas vezes apenas pode dar a ilusão da autonomia pessoal absoluta, enquanto só por
um efeito de disfarce se chega a julgar estar-se a escolher livremente; nem por isso se
deixou de seguir as modas em muitos domínios, ou se deixou de operar invejosas
comparações em relação aos vizinhos ou de casar o mais das vezes no seu meio social
e na sua região.
Seja como for, ao nível da percepção, pelo menos, é o indivíduo que está no centro
da relação de troca. Os media entretêm-no, aliás largamente, na ideia de que pode e
deve formar o seu próprio juízo, «ajudado» nisso pela multiplicidade das informações
que recebe e que são supostas estimulá-lo na organização do seu projecto pessoal.
Este projecto pessoal substitui, com efeito, o projecto colectivo. Doravante, as
trocas são essencialmente individuais e querem-se compensadas a curto prazo. Já não
é enquanto membro de um grupo (nomeadamente familiar) que o indivíduo faz trocas
com outros: quer se trate de sua actividade profissional, das suas relações de amizade
ou do seu casamento, é ele e só ele quem é suposto escolher e decidir. Para além do
mais, ainda no sentido de preservar a sua autonomia e para guardar a liberdade de
prosseguir no seu projecto, irá procurar não implicar-se a não ser nas trocas que
podem ser compensadas por si próprio e a curto prazo, recusando as dívidas impres-
critíveis e as relações «do ut des» de que nunca mais se sai. Preferirá, pois, a coope-
ração — a qual supõe um objectivo preciso, delimitado em natureza e em tempo — a
toda a forma de solidariedade global, e inscrever-se-á num registo de previsão,
procurando incessantemente melhorar a sua posição e as suas condições de existência,
em vez de uma perspectiva de previdência em que se trata de fazer com que o amanhã
seja como o hoje e o hoje como o ontem. A generalização do dinheiro ajudá-lo-á, aliás,
nesta atitude, pois o dinheiro constitui um princípio de individuação e de escolha tanto
mais amplas quanto o rendimento se torna uma coisa individual e permite, deste
modo, romper com as antigas obrigações colectivas, familiares ou outras.

81
Neste contexto que promove a individuação, tudo quanto era suporte do colectivo
tende a ver a sua significação reduzir-se. Assim, pois, a festa no sentido forte do termo
— vista enquanto ruptura colectiva e momentânea das imposições do tempo, do espaço,
da economia e da hierarquia® — enfraquece-se e vê-se muitas vezes substituída por
manifestações de carácter privado e/ou comercial, e diluída numa oposição tempo e
lugar de trabalho/tempo e lugar de lazer, a qual lhe retira o significado colectivo glo-
bal que outrora tinha.
Este mesmo contexto repercute-se igualmente na percepção e na apropriação do
espaço: o centro da cidade e os espaços públicos em geral viram o seu carácter outrora
importante de lugar privilegiado de expressão colectiva e de reafirmação da existência
e da unidade do grupo na sua cultura e na sua estrutura social reduzir-se. Não espan-
tará, portanto, que os centros de cidade tenham sofrido os desmantelamentos de que
tantas vezes foram objecto desde os anos cinquenta, sem que muitas vezes se tivessem
levantado em sentido oposto. Desprovidos de seu significado colectivo, encontraram-
-se indefesos diante do movimento funcionalista «moderno» que, em nome da utilidade,
da eficácia e da rentabilidade, substitui o centro multifuncional e simbolicamente forte
por «centros» especializados e dissociados espacialmente, querendo-se sinais de pro-
gresso e de poder.

Poderes organizadores e controlo social


Esta explosão do centro é, com efeito, a tradução espacial de uma lógica nova que,
visando optimizar as condições de encontro do objectivo desejado, levará cada função
a tentar autogerir-se ao máximo. Quer se trate de administrações, hospitais, escolas,
mercados, cada uma dessas funções irá — tal como as empresas — querer reagrupar
espacialmente todos os seus serviços no sentido de os controlar e de acelerar as comu-
nicações internas mais facilmente e (teoricamente pelo menos) com menor custo,
comparado com o que a dispersão frequente nas antigas redes urbanas permitia. Esta
vontade de não-divisão espacial vai levá-las a procurar novas localizações, escolhidas
para cada caso segundo critérios próprios, mas levando geralmente essas funções e
serviços para fora do centro urbano, transportando-os para a periferia; o argumento da
falta de espaço disponível nos antigos centros é concerteza um argumento de peso,
mas associa-se amplamente a uma vontade de dar uma imagem de modernidade que
se traduz muitas vezes por um edifício de tipo cúbico, de construção elevada e isolado
no meio de alguma verdura.
Este movimento registado ao nível do espaço acompanha-se, ou melhor, confirma
e concretiza duas outras evoluções. Por um lado, a par da relocalização das diversas
funções, os poderes que as organizam e gerem autonomizam-se uns em relação aos
outros: cada função tem doravante os seus próprios dirigentes, ao passo que, noutro

(3) Agnès VILLADARY, Fête et vie quotidienne, Paris, Éd. Ouvrières, 1968.

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tempo, a liderança era polivalente. Contudo, a explosão desta liderança não significa
automaticamente que os vários poderes possam ter a sua própria política, sem se terem
em conta uns e outros, antes pelo contrário a interdependência vai crescendo e a mul-
tiplicação de poderes organizadores específicos não faz, na realidade e na maior parte
do tempo, senão reduzir a visibilidade das interdependências. Por outro lado, sempre
com vista a aumentar a rentabilidade, o recrutamento do pessoal faz-se com cada vez
maior frequência com referência aos únicos critérios técnicos de adequação de um
indivíduo a uma tarefa, sendo as características pessoais, familiares, morais, religiosas,
políticas,... tomadas secundariamente em conta, quando não totalmente ignoradas.
Deste modo, consoante os papéis que desempenha em diferentes momentos (empregado,
jogador de futebol,...), o indivíduo é recrutado com referência a algumas características
particulares e é levado a colaborar com outros indivíduos comparáveis ou complemen-
tares nesses estritos pontos considerados e em relação aos quais, nos restantes pontos,
se pode sentir diferente ou inclusive em radical oposição. As solidariedades globais de
outrora vêem-se pois, também elas, destronadas e substituídas por uma multiplicidade
de solidariedades parciais, assentando cada uma delas na avaliação específica com
referência a uma actividade particular. Algumas dessas solidariedades não passam,
aliás, de relações de clientela, não supondo nem implicação num grupo, nem interconhe-
cimento pessoal.
A explosão das solidariedades e das lideranças polivalentes, ligada ao domínio da
economia, acarreta por sua vez uma redução da fragilidade no conflito. Com efeito,
enquanto outrora o conflito não podia ser senão global tal como o eram as solidariedades,
poderá doravante ser localizado, limitado a um campo, a um sector, a um tipo de rela-
ções. A sua expressão é, logo, menos tímida, o que favorece, por outro lado, a procura
de procedimentos diversos de negociação. Todavia, esta transformação pode gerar
efeitos diferentes. Por um lado, a subida das interdependências pode fazer com que
um conflito limitado a um sector ou mesmo a um tipo de trabalhador tenha repercussões
globais; as dificuldades em matéria petrolífera já nos convenceram bem disso. Por
outro lado, a dissociação das relações profissionais e extraprofissionais (o patrão já
não é o proprietário da habitação e, para além do mais, habita-se em bairros mais ou
menos afastados do local de trabalho e tendo por vizinhos pessoas que não são colegas
de trabalho) não deixa de ser problemática quando se quer mobilizar uma população
para uma accção reivindicativa. Assim, pois, se a consciência operária permanece
muitas vezes viva no meio laboral, acaba por se diluir rapidamente fora dele, pois que
o meio de residência deixou de ser, como nos bairros tipicamente operários, uma espé-
cie de réplica das relações e condições de trabalho.
Desta forma, as trocas vão-se multiplicando, embora tornando-se mais parciais e
deslocando as solidariedades comunitárias incondicionais de outrora. Trata-se, pois,
de compensar as carências criadas deste modo. E é esse o sentido de que se reveste a
multiplicação dos mecanismos auto-reguladores, i.e. mecanismos que, mediante vários
processos de retroacção, garantem a estabilidade de uma situação, e isso independente-

83
mente da qualidade da intenção dos actores. Numa sociedade liberal como a nossa, o
mecanismo auto-regulador central é assegurado pelo dinheiro: é ele que, efectivamente,
enquanto distribuidor essencial de energia e primeiro instrumento de comparação,
introduz uma lógica de cálculo que se vai manifestar em todos os domínios. E é por
meio dele também, que irá transitar a maior parte dos outros mecanismos auto-
-reguladores. É, por exemplo, o caso da segurança social, que visa assegurar uma
oportunidade igual de trabalho para todos (o abono de família tenta, por exemplo, que
um trabalhador sem filhos seja mais facilmente empregado que um outro com encargos
familiares) e um rendimento compensatório em caso de paragem no trabalho (desem-
prego, reforma, doença); em cada caso, o mecanismo auto-regulador pretende assegurar
a realização de um objectivo valorizado pela sociedade (um rendimento para cada
um), tornando essa realização independente da intenção dos actores (quer o patrão
queira quer não, o abono de família é automaticamente pago aos legítimos interessa-
dos). A partir do momento em que esta lógica se torna dominante, a resolução de
numerosos problemas requererá o recurso a tais mecanismos; é o caso do pagamento
dos cuidados de saúde, para o qual é perfeitamente inútil apelar à generosidade dos
médicos, à sua solidariedade, pois que o problema apenas consegue resolver-se pela
instalação e controlo da aplicação de um mecanismo auto-regulador levando a que,
por exemplo, os médicos já não possam recrutar a sua clientela em função da capacidade
de pagamento da mesma.
Por meio destes vários fenómenos, as redes de relações tornam-se tanto mais for-
malizadas quanto se articulam ao nível de conjuntos de grande dimensão cujos mem-
bros têm a sensação que o funcionamento dos grupos de que fazem parte não pode ser
influenciado pela sua presença, ausência ou o seu ponto de vista. É o que se entende
por grupos estatísticos. Daí resulta uma tendência sensível para a redução da sensação
de responsabilidade, ao mesmo tempo que efeitos-massa vão tomando peso, i.e. as
consequências de um conjunto de decisões individuais de sentido idêntico, sem
concertação e sem consciência dos efeitos acarretados pela sua convergência. Assim,
por exemplo, a multiplicação a dado momento da procura de segundas residências
acarretou várias consequências sem que isso tivesse sido previamente desejado ou
mesmo pensado. Esta situação multiplica as dificuldades de previsibilidade por parte
dos poderes superiores, assim como tende a suscitar uma desimplicação das populações.
A partir daí geram-se novas formas de regulação que, muitas vezes, vão diferir
consoante se trate do profissional ou do extraprofissional.
No primeiro caso, vão-se multiplicar as exigências e, frequentemente, aplicar-se-
-á o modelo militar, i.e. um modelo que se estrutura à volta de grupos pequenos, arti-
culados por via hierárquica e em que cada nível tem as suas imposições e as suas
responsabilidades — a implicação fazendo-se ao nível do pequeno grupo, em cujo
interconhecimento se baseia. As relações de trabalho vêem-se assim frequentemente
estruturadas nestes moldes, o bom funcionamento do todo assentando na responsa-
bilidade interpessoal ao nível do pequeno grupo.

84
As coisas são mais complexas no que diz respeito ao extra-profissional. Neste
caso as coisas irão organizar-se de preferência com referência ao modelo dos media:
os modelos difundem-se a partir dos pontos de emissão, sem serem estritamente limi-
tados por proximidades espaciais e por uma ordem hierárquica. Desta forma, desen-
volvem-se contactos directos, embora não pessoais, entre vários tipos de líderes e seus
públicos, os quais tendem a contrariar o risco de atomização pela constituição de
grupos de referência ou de conselho. As reacções desses públicos podem assim ser
diferentes das expectativas do emissor que está em comunicação cega, não tendo vista
directa sobre as reacções suscitadas; irá, pois, procurar instalar várias modalidades
tais como as sondagens — que o ajudarão a tornar a relação mais transparente e, logo,
mais dominável.

Sistema aberto e primado do projecto individual


Para aqueles que integram a mobilidade enquanto técnica e enquanto valor na sua
vida quotidiana, a urbanização introduziu, pois, uma nova lógica no sistema social. As
relações interpessoais já não constituem o elemento-chave da integração. Encontramo-
-nos doravante em sistema aberto, i.e. um elemento pode substituir outro sem desor-
ganizar o conjunto e há, para além disso, possível aumento do número de elementos.
No quadro desta nova lógica, surgem combinatórias opostas no plano profissional
e no plano extra-profissional. A indivisibilidade das técnicas de produção induz, çom
efeito, uma multiplicação das imposições na vida profissional, ao passo que a divisi-
bilidade crescente dos produtos aumenta a autonomia na vida extraprofissional. Para
além do mais, as regras de interacção, por intervirem nos tempos e nos lugares de
trabalho e de não-trabalho, diferenciam-se tanto mais quanto há separação física, e,
por isso, psicológica, dos lugares e meios de trabalho e de residência. Face a esta
dissociação, é legítimo perguntar-se se um movimento de arrastamento se manifesta
de um para outro e em que sentido. Assim, podemos interrogar-nos acerca da questão
de saber, por exemplo, se uma vontade de criatividade, manifestada na vida extra-
profissional, irá acarretar uma reivindicação de controlo colectivo no meio de trabalho
ou se, pelo contrário, as imposições que pesam sobre ele irão provocar um fechamento
na vida extraprofissional, considerada como o único tempo e lugar onde é possível
ser-se si mesmo. Neste último caso, poderá também perguntar-se se a separação do
profissional e do extraprofissional não se mostra, na realidade, muito funcional para
o sistema no sentido de que as satisfações encontradas fora do trabalho e o sentimento
de autonomia que aí se desenvolve travariam as reivindicações no plano profissional,
levando a fazer do trabalho um meio e não um fim, e mesmo o único meio para, atra-
vés do dinheiro que proporciona, assegurar a liberdade para o resto da vida...
Qualquer que seja a resposta dada a estas várias perguntas, uma coisa fica óbvia:
onde e como quer que se exprima, o projecto individual tornou-se a condição primeira
da eficácia colectiva na medida em que permite valorizar a lógica das escolhas e as
modalidades novas do controlo organizacional. Com efeito, esse projecto pode resultar

85
numa primazia concedida à vida extraprofissional e, por conseguinte, no consumo,
sob qualquer forma, o que se traduz por uma estimulação da actividade económica. A
ambição pessoal pode também ser directamente «recuperada» pela empresa (entendida
no sentido amplo) na medida em que esta pode esforçar-se por fazer passar por ela e
só por ela a realização desta ambição. Pelo contrário, um grupo profissional bem orga-
nizado pode querer esforçar-se por realizar o seu projecto pondo várias empresas em
competição, ao passo que certos acontecimentos da vida pessoal (casamento, nascimento
dos filhos) impõem frequentemente uma preocupação com a estabilização, a qual im-
plica uma necessidade de integrar de forma flexível o jogo social, embora preservando
o projecto próprio.
Como se vê, projecto pessoal e dinâmica colectiva interferem de múltiplas maneiras,
mas em caso algum um poderá realizar-se sem ter o outro em conta.

b. Sistema cultural

Inversão da valência interior!exterior


Ao analisarmos as sociedades pré-urbanizadas, abordámos o sistema cultural
partindo da noção de códigos e mostrando como, nesse contexto, a cultura se organizava
em torno da oposição interior — visto como positivo — e exterior — visto como
negativo —, modulando-se esta oposição — base do distanciamento — mais ou menos
consoante diferentes circunstâncias espaciais e sociais (os homens vendo ser-lhes
legitimamente reconhecida uma mobilidade espacial maior que as mulheres e sendo
os notáveis os intermediários autorizados entre o dentro e o fora).
É uma inversão destas qualificações que a urbanização produz em vários sentidos.
Com efeito, o facto de se isolar no interior de um único e mesmo espaço é geralmente
lido em termos de fechamento, ao passo que a multiplicidade das deslocações em
locais diversos é associada à abertura. Deste modo, a mulher que se dedica exclusiva-
mente às tarefas domésticas e familiares acaba por ser considerada como marginalizada
em relação às coisas e aos locais importantes, e aquele que se contenta com ler e ouvir
unicamente as notícias locais é olhado como sendo de espírito limitado e pobre de
interesse. Pelo contrário, a viagem, que permite confrontar-se com experiências e pon-
tos de vista no respeito das diferenças, é frequentemente associada à realização plena
das potencialidades.
É claro que esta autonomização em relação a espaços concretos, materializando
identidades colectivas, não significa o desaparecimento destas, mas antes o desenvol-
vimento de interiores e de exteriores abstractos, i.e. independentes de uma inserção
espacial concreta particular e tendo os seus critérios próprios de reconhecimento e de
convivência. A distinção que Gurvitch(4) faz entre grupo em proximidade e grupo em

(4) Georges GURVITCH, La vocation actuelle de la sociologie, Vol. I, Paris, PUF, 1963.

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distância ganha aqui todo o sentido, visto que a urbanização acresce o peso dos grupos
em distância, na constituição social global. A proximidade territorial já não é a base
prioritária da proximidade cultural e as formas culturais autonomizam-se em relação
ao enraizamento regional de tal modo que o papel do espaço se vai reduzindo no
fechamento das redes de interdependência.

Homogeneidade/ heterogeneidade no espaço próximo


Assim sendo, um mesmo espaço pode ser partilhado por elementos de cultura
heterogénea na medida em que existem compromissos de coexistência; inversamente,
homogeneidades culturais podem desenvolver-se à distância. Assim, surge uma possi-
bilidade de heterogeneidade espacial interna e de homogeneidade externa em relação
a espaços imediatos e contínuos de coexistência, nomeadamente ao nível da habitação.
A comunicação à distância e o uso de bens culturais produzidos noutro lugar per-
mitem concretizar uma dissociação entre o espaço da vida quotidiana e o espaço de
formação das referências de avaliação e de selecção. Assim, Mac Luhan falará em
«aldeia global»(5) na medida em que informações e referências longínquas podem ser
mais bem conhecidas que acontecimentos ocorridos no universo próximo.
Esta imbricação do longínquo no quotidiano, associada à dissociação espacial,
multiplica a necessidade de garantes institucionais de selecção; garantes esses que
podem, aliás, ser impessoais, como no caso dos fenómenos de moda que fazem com
que se pergunte o que «se tem de» vestir na próxima estação ou quais os aparelhos
domésticos que «se tem de» ter.
A urbanização introduz desta forma o fora no dentro e a proximidade espacial já
não é nem o indicador nem o garante da proximidade social e cultural; a mobilidade
é, por isso mesmo, reapropriada enquanto factor de superação dos limites dos espaços
imediatos, o que permite a instauração do projecto individual para além das obrigações
territoriais.

Competição pela igualdade


Enquanto as sociedades não urbanizadas são dominadas por um modelo de har-
monia na hierarquia que permite a coexistência no mesmo bairro de populações de
níveis sociais diferentes, a urbanização é associada à emergência de um modelo de
competição pela igualdade. Com este, é a comparação com os outros que tem a pri-
mazia e que tende a induzir a reivindicação de uma igualdade de tratamento e de
acesso ao que se considera serem vantagens. Daí resultam formas de comparação
invejosa e uma possibilidade de distinguir o grupo de pertença e o grupo de referência.
O modelo cultural gera efeitos paradoxais nos agrupamentos residenciais. Uma
proximidade e visibilidade demasiado grande entre grupos sociais com capacidade

(5) Marshall MAC LUHAN, Pour comprendre les médias, Paris, Mame/Seuil, 1968.

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económica diferente, longe de aproximar, tende a multiplicar as frustrações recíprocas;
os desfavorecidos sentem as suas carências, ao passo que outros suportam mal as várias
expressões de inveja. Daí podem resultar modos de agrupamentos espontâneos, visando
aumentar o nível de satisfação no desenrolar da vida quotidiana. Assim, nalguns grandes
conjuntos em que a diversidade dos canais de selecção dos habitantes fizera avizinhar
populações socialmente diversas, organizaram-se trocas com vista a uma recomposição
mais homogénea dos vários imóveis — o que favoreceu uma melhor identificação,
reduzindo simultaneamente as frustrações e os conflitos(6). Semelhante mecanismo,
desenrolando-se em pequena escala, conjuga-se, em escala maior, com aquele que
exprime as possibilidades desiguais de localizar-se nos lugares mais invejados — ponto
a que voltaremos na análise dos efeitos de estrutura social.
Além disso, este modelo de competição pela igualdade pode levar os que o situam
no seio de um projecto de mobilidade social ascensional a procurarem voltar a lugares
de residência onde esperam que a vizinhança com o meio social a que aspiram per-
tencer acelere a socialização deste último aos seus modos de vida.
Estes fenómenos não excluem de forma alguma, ao nível de um bairro, a existência
e a aceitação de uma pluralidade de projectos, introduzindo assim uma certa diferen-
ciação no interior de um mesmo meio social.
Dessa forma, assim como na análise do sistema social o projecto individual sur-
gira como condição de eficácia da dinâmica colectiva, revela-se aqui promovido pelos
novos códigos espaciais e reapropriado em modelos culturais que modificam o sentido
da territorialidade em pequena escala.

c. Sistema da personalidade

Projecto individual e pequenos grupos


Se a importância do projecto individual acaba de ser sublinhada quer para o sis-
tema social quer para o sistema cultural, ela manifesta-se mais ainda que em qualquer
outro domínio ao nível do sistema da personalidade, onde se trata de ver como esse
projecto é levado em diante apesar ou antes por causa da pluralidade de meios e das
solicitações que o indivíduo tem que enfrentar. As tensões de papéis e de comunica-
ções são, com efeito, tanto mais difíceis de resolver quanto, doravante, o indivíduo já
não depende de um meio totalizante, em que as prioridades são colectivamente pré-
-determinadas, quando não debatidas; trata-se, pois, para o indivíduo, de permanecer
fiel ao seu projecto e, por conseguinte, à sua identidade mediante sequências a longo
prazo, as quais são flexíveis e mais ou menos bem dominadas. Este problema remete

(6) Jean Claude CHAMBOREDON e Madeleine LEMAIRE, «Proximite spatiale et distance sociale. Les
grands ensembles et leur peuplement», in Revue Frangaise de Sociologie, vol. XI, 1970. pp. 3-33.

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para a noção de carreira, que convém encarar em todos os domínios da trajectória e
não únicamente no campo profissional: não fala Goffman em «carreira moral»(7)? É
claro que, esta «trajectória» não se efectua no isolamento, e não conviria tomar como
protótipo da situação os «casos sociais», muitas vezes evocados pelos meios assis-
tenciais. Sem negarmos a sua existência (evocá-los-emos aliás posteriormente), não
podemos fazer deles a situação tipo para compreendermos a dinâmica de integração.
Esta assenta quase na hipótese contrária de uma sobrecarga de possibilidades de con-
tratos e de informações, mesmo se, por vezes, o indivíduo carece de relações capazes
de produzir a segurança e a estabilidade afectivas suficientes para ajudá-lo no prosse-
guimento da busca do seu projecto sem sofrer duros reveses®.
A possibilidade de constituir pequenos grupos capazes de representar, a partir da
sua dimensão afectiva, uma base de selecção e de interiorização dos comportamentos
disponíveis é um dos elementos-chave do ponto de vista do sistema da personalidade.
Ora, no contexto urbano, desenvolvem-se «de forma espontânea» grupos de pequena
dimensão a partir de um interesse comum, ligado, por exemplo, a uma actividade de
lazer, e que têm efeitos derivados ao nível de uma conivência afectiva, de uma infor-
mação e de uma capacidade de pressão que os ultrapassam. Na medida em que são
afectivamente bem sucedidos, esses grupos podem, com efeito, tornar-se grupos de
suporte recíproco, de entreajuda gratuita e, inclusive, de confidência pessoal, embora
permanecendo grupos em que se escolheu deliberadamente participar e de que se sabe
que se pode sair a qualquer momento sem, no entanto, desorganizar o conjunto da rede
interactiva.
É em tal perspectiva que alguns analistas vêem o redesenvolvimento do sentido da
família, considerada como lugar privilegiado de implicação afectiva. Esta última é, no
entanto, reencontrada segundo várias modalidades. Primeiro, a família de origem é
vista como um grupo assegurando uma solidariedade a longo prazo, para além das
peripécias da vida pessoal. Por outro lado, na família de procriação, o casal adquire a
importância ao mesmo tempo que se desenvolve a exigência de compor uma ligação
afectiva sustentada pelo prosseguimento de um projecto pessoal.
A par da família, desenvolvem-se novos núcleos de relações interpessoais com
forte carga afectiva e que, num fundo geral de anonimato da sociedade urbana, ajudam
à promoção do projecto individual de cada um dos seus membros. Estes pequenos
núcleos constituem uns tantos ilhéus de solidariedade, ganhando forma num fundo de
individuação(9). Todavia, o facto — em semelhante meio de stress e de competição —

(7) Erwing GOFFMAN, La mise en scène de la vie quotidienne. La présentation de soi, Paris, Éd. de
Minuit, 1973.
(8) Jean MORVAL, Introduction à la psychologie de /' environnement, Bruxelles, Éd. Mardaga, Coll.
Psychologie et Sciences Humaines, 1981. Ver a secção 3 do capítulo III. Régulation de Tintimité (pp. 84-99).
(9) Jacques COENEN-HUTHER, «Société post industrielle et formes de sociabilité urbaine», Revue Suisse
de Sociologie, 1986, pp. 91-102.

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de fazer assentar a segurança afectiva em tais pequenos grupos, família e outros, leva
muitas vezes a uma diminuição e a uma fragilização do espaço de comunicação signi-
ficativa. Consequentemente, um fracasso afectivo do casal pode colocar muitos pro-
blemas ao equilíbrio psíquico dos parceiros e dos filhos, na medida em que estariam
unicamente centrados na família e se encontrariam então desprovidos de qualquer
suporte afectivo alternativo, mesmo se, paralelamente, são incluídos num nível intenso
de relações sociais. A profundidade da confusão assim criada só pode, no entanto,
avaliar-se com referência àquilo que alguns chamam por vezes o «papel-chave» do
indivíduo, i.e. o papel em volta do qual constrói o seu investimento prioritário; os pro-
blemas colocados por tais fracassos afectivos serão com efeito maiores se o principal
investimento tiver precisamente revertido na relação afectiva do que se tiver revertido
no estatuto social ou nas possibilidades objectivas de intervenção.
Esta evolução do «papel-chave» permite sublinhar aqui que o investimento indi-
vidual pode organizar-se segundo várias prioridades: para alguns, são a familia e o
êxito afectivo desta última que são essenciais, ao passo que, para outros, o acento é
colocado em pequenos grupos de lazeres extrafamiliares (desportivos ou outros); para
outros ainda (hoje, indubitavelmente, os menos numerosos) é na vida profissional que
recai o interesse primeiro. O facto de poder não haver, deste modo, concordância entre
as várias preocupações dos indivíduos vem indicar claramente que, em meio urbanizado,
o sistema social, o sistema cultural e o sistema da personalidade se integram mediante
processos parcialmente independentes uns dos outros, ao passo que, já o sublinhámos,
num meio não urbanizado, cidade ou aldeia, é mediante a relação interpessoal que os
três sistemas se integram.

Projecto e critérios externos de pertença


Este enfraquecimento das funções da relação interpessoal e do interconhecimento
global e generalizado vai desenvolver uma vida social que se vive com fundo de ano-
nimato e em que, para se situarem uns em relação aos outros, se vão multiplicar os
critérios externos de pertença, critérios esses que, para a troca poder funcionar a partir
deles, supõem um consenso sobre a sua dignificação e o suporte desta por vários
garantes institucionais. Estes são particularmente importantes para a população que
tomámos aqui como alvo da nossa análise: a classe média em mobilidade social. Esta
última caracteriza-se, com efeito, pelo facto de os critérios de avaliação a que recorre
serem aqueles da população a que projecta pertencer e não aqueles da população de
que é oriunda ou a que já pertence. E, neste sentido, é a essa classe média em mobili-
dade social que se dirige mais particularmente a publicidade: oferecendo toda uma
gama desses critérios externos mediante os quais é possível situar-se — pelo menos
em aparência — ao nível do estatuto social por que se luta, a publicidade ajuda assim,
de facto, a organizar escolhas, escolhas cujo peso vai crescendo à medida que o nível
de vida médio permite sair de preocupações estritas e imediatas (alimentação, habi-
tação,...). A partir daí, os objectos e os serviços comprados, se tiverem (o que nem

90
sequer é sempre o caso) uma certa utilidade material, têm também e por vezes antes
de mais nada uma utilidade social, por constituírem critérios de referência a partir dos
quais se irão operar as trocas. É neste duplo registo da utilidade material e da utilidade
social que a publicidade quer intervir, o segundo registo tendo tanto mais importância
quanto, no caso de vários produtos, o consumidor é um mercado não informado, inca-
paz de julgar por si próprio da qualidade técnica do produto. Assim, pois, se o enfra-
quecimento do papel do interconhecimento permitiu um sensível aumento quando não
o aparecimento da autonomia individual e a elaboração de projectos pessoais, também
teve por consequência fazer viver o indivíduo na ambiguidade: força-o, com efeito, a
recorrer a critérios externos de referência que, se exprimem de certa forma a possi-
bilidade de escolha e de mobilidade social, favorecem ao mesmo tempo a sua mani-
pulação por um jogo comercial do qual apenas é possível sair passando por níveis de
abstracção mais elevados, implicando o recurso a instrumentos sofisticados de medição,
como as propostas por exemplo pelas associações de consumidores. O uso de tais ins-
trumentos abstractos é aliás requerido em numerosíssimos domínios, na medida em
que o controlo social é doravante despersonalizado e em que a mobilidade introduz
em espaços e em meios que, até então, não se conheciam; pensemos por exemplo no
mapa e no guia que permitem deslocar-se numa cidade desconhecida ou ter uma
imagem global de uma aglomeração; pensemos também no relógio de pulso e nos
vários instrumentos de cálculo e de controlo do tempo.
Ao integrar deste modo múltiplos instrumentos abstractos na vida quotidiana, a
urbanização contribui para dar uma força particular à dinâmica da industrialização.
Mas coloca o indivíduo diante de uma dupla exigência. É apenas, efectivamente, na
medida em que este último se mostra capaz de investir simultaneamente nos pequenos
grupos de segurança afectiva e na manipulação flexível dos critérios externos de refe-
rência e dos instrumentos abstractos que poderá elaborar e prosseguir um projecto
pessoal e preservar a sua integridade, apesar das circunstâncias instáveis e inesperadas.
Esta dupla exigência impõe-se não só àqueles que têm por projecto uma trajectória
que se inscreva no sentido da dinâmica dominante, mas também àqueles que, pelo
contrário, se dão um projecto de ruptura em relação a esta mesma dinâmica: apenas
terão hipóteses de o levar a bom termo se tiverem apreendido a lógica dominante, com
as exigências de comunicação e de troca que lhe são próprias.

d. Urbanização e apropriação do espaço

A análise que aqui prosseguimos começou por uma descrição da composição


espacial da cidade em situação urbanizada. Após termos visto como, neste contexto,
se operava a integração de cada um dos três sistemas — social, cultural e da personali-
dade —, iremos agora centrar-nos na análise das apropriações subjectivas do espaço
da cidade urbanizada e nas perspectivas que delas resultam.

91
Decomposição do centro
A cidade não urbanizada aparecera-nos como um espaço composto de territórios
distintos uns dos outros, mas, simultaneamente, articulados uns com os outros, nomea-
damente a partir do papel desempenhado pelo centro da cidade, lugar de encontro
dos bairros e de manifestação de uma pertença comum, relendo as especialidades dos
bairros no quadro de uma totalidade. Neste contexto, o centro é assim o lugar em que
as funções se sobrepõem e sobretudo o lugar em que se desenrolam as actividades
vistas como sendo particularmente importantes, aquelas que se situam ao nível
hierárquico mais elevado. É, além disso, o lugar simbólico por excelência, o da
história e da memória colectiva.
Quando levada até seus limites últimos (e lembremos aqui que trabalhamos por
ideal-tipo), a situação urbanizada induz uma apropriação que se faz a partir de uma
multiplicidade de lugares dispersos, ligados entre si por eixos de comunicação. É, por
exemplo, o que Lynch descobre ao interrogar habitantes de três cidades americanas:
para muitos deles, a cidade é vivida a partir de lugares marcantes, retidos em função
de vários critérios, mas é mais raramente evocada enquanto todo coerente! «Tal como
o Sherpa, diz Lynch, apenas avistamos as frentes do Evereste e não a montanha»(10).
Vista assim como adição de lugares distintos, a cidade urbanizada encontra-se,
além disso, muitas vezes interpretada a partir da habitação, lugar privilegiado de
investimento afectivo com referência ao qual os espaços exteriores — lugar de trabalho,
de compras, de lazeres... — se vêem distribuídos. Já não é, pois, o centro comum da
cidade, o centro histórico, onde eram frequentemente agrupados os equipamentos
importantes, que estrutura a percepção do espaço. Por um lado, esse centro, com
frequência, foi-se esvaziando de um certo número das suas actividades maiores, que
se dispersaram nas periferias, tomando aí muitas vezes a designação de «centro» e
diluindo, deste modo, o significado deste termo. Por outro lado, ao mesmo tempo que
essa difusão de equipamentos hierárquicos ia reduzindo a realidade e a percepção de
uma entidade coerente, a significação histórica e simbólica do centro foi acumulando
hesitações e acabou também por se desmantelar01). O papel e a ideia de um centro
único e colectivo tornaram-se tanto mais débeis quanto se assistiu a uma explosão da
simbólica: cada grupo procura um lugar de identificação que, remetendo para a sua
história particular, lhe é próprio e relativamente exclusivo — e a festa no sentido forte
da palavra, que aí se realizava e vinha reafirmar a memória colectiva, cedeu amplamente
o passo a actividades de lazeres, que, em vez de unirem, dispersam. Desta forma,
enquanto numa sociedade dominada pela agricultura era o trabalho que dispersava e
fundava a oposição de tempo e de espaço, entre a semana tempo de actividade dis-

(10) Kevin LYNCH, L'image de la cité, Paris, Dunod, 1976, p. 75.


(11) Jean-Paul LÉVY, Centres villes en mutation, CNRS, Centre Régional de Publication de Toulouse,
1987.

92
persa pelo trabalho nos campos — e o domingo — tempo de não trabalho e de ajunta-
mento no centro —, a urbanização, associada à industrialização, inverteu as associações;
é o trabalho que, durante a semana, agrupa a maioria das pessoas em espaços urbanos
reduzidos e mais ou menos centrais, enquanto o não trabalho dispersa em lugares ato-
mizados, entre os quais a habitação ocupa um lugar privilegiado.

Prioridade do signo sobre o símbolo


Se o centro vê assim reduzir-se a sua significação colectiva, há outra transforma-
ção importante provocada pela urbanização: é a passagem para uma prioridade do
signo sobre o símbolo, no sentido que Baudrillard dá a esses dois termos(12).
De uma maneira geral, pode dizer-se, com efeito, que em situação não urbanizada
se dá a projecção simbólica sobre o espaço e sobre os vários objectos que ele contém:
este espaço e estes objectos estão carregados de uma história personalizada e, por isso
mesmo, não são nem substituíveis nem vendáveis, o que os exclui de qualquer relação
mercantil. É o caso, por exemplo, da terra, a qual não é para o agricultor unicamente
um meio de trabalho, pois que também é o indício e a recordação de um acontecimento
da história familiar; o peso do investimento afectivo de que é desde logo objecto
colocou, por exemplo, inúmeros problemas aos processos de emparcelamento de ter-
ras, que vinham esbarrar contra este sentimento. O mesmo se dá no caso da casa, da
qual cada divisão, cada objecto evocam também eles a história da família e que, por
conseguinte, se recusará quer a deixar, quer ceder; foi assim que, ainda recentemente,
nos Pirenéus, vimos uma aldeia muito procurada por segundos residentes ficar ao
abandono porque os proprietários preferem abandonar e deixar apodrecer as casas
familiares que não habitam a alugá-las ou vendê-las, mesmo por um bom preço, a
«estrangeiros» que, de algum modo, «manchariam» a memória familiar e trairiam o
respeito devido aos antepassados, morando nas suas casas.
Algo completamente diferente acontece quando se entra na lógica do signo. Quanto
mais se integrar esta última nos comportamentos, mais, por exemplo, se mudará de casa
e até de bairro para se adaptar à evolução das necessidades e à trajectória familiar e para
fazer do lugar de residência um critério de referência. Assim, pois, a casa torna-se um
signo no sentido em que Baudrillard o entende, i.e. já não, antes de tudo, uma modalidade
de interrelação afectiva com outros, como quando é símbolo, mas antes uma modalidade
de demarcação social e de comparação invejosa para com os outros.
Além disso, quando um espaço urbano acolhe um grande número de populações
diferentes e, particularmente, quando essas populações estão de passagem ou com
enraizamento provisório, então multiplicam-se os suportes móveis escritos que per-
mitem a «não iniciados» situarem-se e conhecerem o destino de alguns imóveis (adm-

(12) Jean BAUDRILLARD, La genèse idéologique des besoins, Cahiers Internationaux de Sociologie,
Paris, 1969.

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inistrações, escolas, hospitais, casas da cultura, inclusive igrejas ou prisões); isto é
tanto mais necessário quanto, frequentemente, a arquitectura recente abandonou a
tipologia dos edifícios que, no século XIX, permitia distinguir logo uma estação de
uma escola e uma prisão de uma igreja.
Para além desta necessidade de multiplicar os suportes móveis escritos, imposta
pela presença de populações instáveis e por uma certa homogeneização da forma
arquitectónica, o uso do espaço urbano por utentes ocasionais induz uma banalização
da composição interna de alguns edifícios. Assim, em países diferentes, os centros
comerciais e os grande hotéis internacionais serão muitas vezes concebidos segundo
determinado modelo, de modo que permitam uma familiaridade imediata a utentes
não habituais que frequentam este tipo de equipamentos nos lugares mais variados. O
«bom uso» de um hotel de uma cadeia internacional é, desta forma, idêntico em Nova
Iorque, Singapura, Paris ou México, e aquele que frequentou uma ou outra vez um
desses hotéis sabe o que encontrará no quarto mas também quais os equipamentos,
serviços e lojas ao seu dispor no hotel; apenas elementos de decoração e, eventualmente,
um restaurante com especialidades locais (nos três ou quatro com que o hotel conta)
virão recordar o país em que se está e dar um ar ou cor locais. O mesmo acontece no
caso dos centros comerciais cuja composição formal só conhece algumas variantes e
onde a disposição de diferentes tipos de lojas e a sua densidade respondem a critérios
pré-determinados e homogéneos.
Estes vários aspectos traduzem o que Choay designa por «redução semântica» dos
espaços urbanos, i.e. o facto destes deixarem de ser, para o indivíduo, um referente
global e de os signos se tornarem móveis sem que, com isso, se desorganizem as redes
interactivas(,3). Está-se assim numa situação radicalmente diferente do caso da aldeia
Bororo descrita por Lévi-Strauss, em que a mudança da disposição espacial da aldeia
destruía as referências sociais e culturais básicas dos habitantes, e, ao desorganizar
toda a sua simbólica, os condenava de alguma forma à morte(14).

Vida social forte, vida colectiva débil


Em semelhante contexto, uma vida social intensa pode desenvolver-se e permitir
às funções citadinas baseadas na confrontação aleatória de pessoas e de informações
realizarem-se por completo(15). Isto se fará a partir de redes, as quais podem ser dis-
persas no espaço urbano e desenvolver-se também em lugares privados. Simultanea-
mente, a morfologia da cidade parece perder alguma importância.
Este vigor da vida social é, no entanto, muitas vezes compatível—como o sublinha
Ledrut(16) — com um enfraquecimento da vida colectiva, assentando numa forte noção

(13) Françoise CHOAY, Sémiologie et urbanisme, in Architecture d'aujourd'hui, Paris, 1979.


(14) Claude LÉVI-STRAUSS, Tristes tropiques, op. cit.
(15) Isaac JOSEPH, Le passant considérable. Essai sur la dispersion de 1'espace public, Paris, Libr. des
Méridiens, 1984.
(16) Raymond LEDRUT, L'espace social de la ville, Paris, Anthropos, 1968.

94
de pertença que se exprime nomeadamente em festas e numa solidariedade total face
a acontecimentos comuns, que asseguravam a reafirmação regular da identidade
colectiva. Quando subsiste, só muito raramente será na intensidade e na intemporalidade
de relações interpessoais incondicionais que essa identidade se há-de forjar: é na pro-
cura de signos abstractos de expressão que ela tentará redefinir-se, situando a cidade
num sistema de diferenças, fundado na comparação com outras cidades, comparação
que opera ela própria a partir de um elemento-signo. Assim, Strauss mostra como
algumas cidades norte-americanas bem conhecidas constroem para si uma imagem
global a partir de um estereótipo: é o Golden Gate de São Francisco ou o Empire State
Building de Nova Iorque(17); e Bourdin nota, no mesmo sentido, que a desmontagem
da Torre Eiffel colocaria mais problemas à identidade parisiense do que a questão de
um qualquer nó de autoestrada(18).
Não se deverá também atribuir o mesmo sentido aos efeitos de várias manifestações
desportivas, tais como o futebol, que conseguem construir num estádio um processo
de identidade a partir de um fenómeno de massa, compatível com o fundo de anonimato
geral da vida urbana? Não convirá igualmente situar na mesma linha o problema da
relação entre habitat antigo e habitat novo — sendo essa relação hoje em dia um dos
elementos mediante os quais uma identidade colectiva tenta redescobrir-se? O desen-
volvimento destes vários modos de comparações externas entre cidades funda o que
alguns designam por «marketing urbano», i.e. essa «política» que visa criar e/ou
desenvolver uma imagem positiva de uma cidade ou de uma região a partir de um
objecto ou de uma função. Assim, por exemplo, aquando de uma conferência proferida
em Liège há alguns anos, Pierre Mauroy explicava que quisera dar à sua cidade de
Lille uma imagem de cidade de cultura — nomeadamente com a criação da orquestra
nacional de Lille — de modo a contrariar a percepção frequentemente negativa que a
maior parte dos Franceses têm do norte do país; e sublinhava que essa imagem valori-
zante podia construir-se a partir dos elementos mais diversos, evocando nomeadamente
o exemplo de St-Étienne que «os Verdes» deram a conhecer a muitas pessoas que, não
fosse isso, o teriam ignorado...
É, pois, necessário estar consciente de que a cidade pode desenvolver as suas fun-
ções sócio-económicas, apesar de uma diminuição da vida colectiva, supondo um
sentimento comum de pertença, mediatizado pelo território e exprimindo-se de forma
recorrente mediante manifestações festivas nas quais cada qual deve participar; estas
podem também ampliar-se apesar da redução dos contactos pelos quais se visibiliza o
poder local; poder local que era desta forma objecto de um controlo permanente tanto
mais forte quanto se apoiava num projecto colectivo e provocava o consenso e o entu-
siasmo. É, aliás, nessa linha que se poderia ver a cidade urbanizada como suporte do

(17) Anselm STRAUSS, Image of American Cities, Free Press of Glencoe, Illinois, 1961.
(18) Alain BOURDIN, La ville dans le miroir de l'ancien. Le cas de Tours. Stanford French Sociology,
Spring 1977, pp. 79-94.

95
desenvolvimento de uma sociedade civil, enquanto, paralelamente, diminuem as
possibilidades de controlo de um poder político que se sente cada vez mais em comu-
nicação cega.
Esta tendência manifesta-se, certamente, tanto mais nitidamente quanto a cidade
tomada em consideração agrupa uma população mais numerosa do que a cidade não
urbanizada do passado, e quanto as reeleições estão nessa mesma cidade mais subme-
tidas ao fenómeno das massas flutuantes constituídas por indivíduos sem ligação per-
manente ou hereditária a um partido e podendo, portanto, rever a sua escolha de uma
eleição para outra, em função de critérios múltiplos, muitas vezes periféricos em rela-
ção às grandes opções; está-se aqui diante da lógica gerada por indivíduos-massa,
lógica em si resultante da urbanização e que pode deste modo debilitar o controlo do
político, ao mesmo tempo que permite o desenvolvimento de múltiplas influências,
moldando-se o mais das vezes ao jogo do campo económico.
Estas influências têm, aliás, tanto mais hipóteses de serem eficazes quanto intervêm
num contexto em que se saiu de um comportamento de preocupação e em que, por
conseguinte, se está diante das necessidades em expansão e a que os dados estruturais
respondem em termos de escolhas alargadas, veiculadas por uma publicidade intensiva.
Esta ganha, aliás, tanto mais peso quanto actua num fundo de anonimato, chamando
signos exteriores de identificação. O pôr em espectáculo destes signos irá, consequen-
temente, mostrar-se tanto mais lúdico quanto um certo número de bens são adquiridos
não numa perspectiva de uso e de utilidade, mas antes com referência ao efeito que
produzem ao nível do campo óptico. Desta forma multiplicam-se tipos variados de
relações de clientela, em resposta a solicitações mais ou menos autónomas umas em
relação às outras e resultando em formas variadas de identificação e de oposição.
Não é de admirar que tal situação dificulte a emergência de novas representações
colectivas, assim como a estruturação das pertenças em torno de oposições e de desa-
fios globais.

Simbólica e imaginário
Estas várias evocações respeitantes às mudanças que a urbanização introduz na
relação de apropriação do espaço citadino supõem que nos preocupemos um pouco
com a relação existente entre simbólica e imaginário. Anteriormente, com efeito, opu-
semos a simbólica espacial — que remete para espaços, tais como a floresta ou as «tra-
seiras» de alguns bairros da cidade tradicional, que serviam de suporte a um universo
onde tudo era possível e onde os extremos podiam coexistir.
A questão que se põe desde logo consiste em perguntar-se de que modo, na cidade
urbanizada, se organizam o suporte simbólico e o suporte imaginário(19). Algumas ten-
dências insistem na cidade enquanto lugar de anonimato, mundo do desconhecido e

(19) Pierre SANSOT, Les formes sensibles de la vie sociale, Paris, PUF, Coli. La Politique eclatee, 1986.

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do perigoso, selva na qual não convém arriscar-se muito. Esta reacção é bastante
frequente nos E.U.A., onde uma longa tradição anticitadina exacerba o aspecto repul-
sivo. A cidade é então associada a um imaginário negativo, o que induz um sobre-
-investimento no local de residência e na unidade de vizinhança, particularmente em
meio suburbano, sonhado deste modo como o lugar de paz, de segurança e de tranqui-
lidade, e isso tanto mais quanto ele está desprovido de desafio; isto foi muitas vezes
notado nos autores que analisam as ideologias do habitar. Nesta perspectiva, a per-
turbação da vida de vizinhança torna-se um desafio importante que, ao se inscrever
nos faits divers, alimenta a representação de um universo de insegurança. Este aspecto,
associado à redução ao funcional de um certo número de espaços urbanos, suscita um
desejo de escapatória e pode levar ao desenvolvimento das segundas residências.
Outras tendências, por seu lado, projectam a dimensão simbólica no habitat tradicional,
em particular naquele que, situado no centro urbano, está carregado de história.
O problema do imaginário nos espaços sociais contemporâneos põe-se certamente
de modo muito mais ambíguo, pois a cidade urbanizada que evocamos é proposta aqui
como um caso limite, já que a evocação de traços extremos visam fazer apreender
melhor a lógica subjacente que, sem dúvida, só muito raramente está presente nos
casos concretos. A realidade das cidades actuais apresenta-se como um conjunto mais
complexo, onde se misturam elementos da cidade pré-urbanizada com novos modos
de relação com o espaço. É, aliás, o que tentaremos entender melhor ao analisarmos
agora populações que, retomando o título de Gans(20), vivem na cidade à maneira de
aldeões. Mas antes disso, resumamos aqui, à guisa de conclusão, o que nos parece ser
o essencial do modo de vida urbano para aqueles que integram a mobilidade enquanto
técnica e enquanto valor.

CONCLUSÃO

Uma diferença maior distingue as situações não urbanizadas do que se passa na


cidade urbanizada. Nesta última, com efeito, os sistemas social, cultural e da persona-
lidade já não se integram segundo um processo uno e único: já não é a relação inter-
pessoal, é doravante o projecto individual que vai desempenhar um papel transversal
aos três sistemas.
Além disso, na cidade urbanizada, a integração mostra-se possível apesar de múl-
tiplas indeterminações; as interdependências entre elementos são, nessa mesma cidade,
efectivamente compatíveis com graus de liberdade acrescidos, o que, simultaneamente,
dá flexibilidade e permite estratégias individuais. Posteriormente, isso aparecer-nos-

(20) Herbert GANS, The Urban Villagers. Group and Class in the Life of Italian-Americans, The Free
Press, New York, 1965.

97
-á como um dos pontos de partida para analisarmos os efeitos de estrutura social que
resultam da integração no processo de urbanização.
Estes vários elementos fazem com que as significações sócio-económicas da cidade,
ligadas à produção de um conhecimento dependente da confrontação aleatória de pes-
soas e de mensagens, sejam reforçadas e que as funções citadinas possam ganhar
importância numa sociedade que se complexifica. Simultaneamente, contudo, essas
funções tornaram-se mais autónomas em relação a um suporte material pré-determinado
e delimitado como o era a cidade tradicional, a qual encerrava nas suas muralhas um
habitat compacto e se opunha à dispersão dos campos circundantes: doravante, a
«cidade invisível» — como Mumford a designa(21) — pode desenvolver a sua eficácia
apropriando-se dos lugares múltiplos e dispersos no espaço, a tal ponto que, por vezes,
a sua visibilidade colectiva é reduzida, quando não quase ausente — e isso tanto mais
quanto (como veremos na análise em termos de relação social) este acréscimo das fun-
ções urbanas é muitas vezes acompanhado por um fechamento e de uma privatização
dos circuitos. Com efeito, esse desenvolvimento é acompanhado pela multiplicação
de um certo número de contradições, pois a cidade urbanizada contribui para dar toda
a sua lógica a uma sociedade liberal que instaura o indivíduo como origem e fim do
sentido, indivíduo esse que se move em função de seu próprio projecto por meio das
referências abstractas múltiplas que a urbanização o força a inserir na vida quotidiana.
Esta evolução determina a emergência de uma contradição entre uma crescente socia-
lização do controlo e uma individualização crescente do projecto e do investimento
afectivo. Assim, pois, em muitos casos, a exaltação da criatividade individual desemboca
numa aspiração à redução do controlo colectivo, e a eficácia colectiva de um dispositivo
urbano pode ser acompanhada de um fracasso sócio-afectivo.

2. MODELOS DE DISTÂNCIA E DE AMBIGUIDADE

Ao analisarmos os efeitos que a apropriação de uma estrutura espacial já cons-


tituída acarreta nas possibilidades recíprocas dos diferentes intervenientes sociais,
acabamos de ver como esses efeitos se manifestam nas populações que não só utili-
zam mas também valorizam o novo contexto da cidade. Evocaremos agora alguns
tipos de situações respeitantes a populações que, na maior parte do tempo, coexistem
de uma ou de outra forma com esta situação nova e em certo sentido se conformam a
ela. Descreveremos assim sucessivamente:
— bairros que, embora integrados no espaço da cidade urbanizada, conservam um

(21) Lewis MUMFORD, The City in History: Its Origin, its Transformation, its Prospects, Harcourt Brace,
New York, 1961.

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modo não urbanizado de apropriação do espaço e se inscrevem numa continuidade
com o passado;
— bairros que, também eles, pertencem ao espaço da cidade urbanizada, mas
tomam nele uma significação particular pelo facto de funcionarem como comunidades
de transição para populações emigradas;
— espaços de bairros de lata, que constituem lugares importantes, quantitativa e
qualitativamente, em todos os países em desenvolvimento rápido e que funcionam
como interstícios entre a cidade e o campo;
— bairros objecto de reinvestimento por parte de populações valorizando modos
de vida não urbanizados e que descobrem, aí, um espaço de distanciamento em rela-
ção aos ambientes regidos pela ideologia dominante.

Diferentes, opostas mesmo, na possibilidade de escolhas de que dispõem e no


carácter positivo ou negativo de sua relação com o espaço e com o modo de vida
urbanizado, as populações habitando nesses diversos tipos de bairros têm em comum
a não-valorização (escolhida ou imposta) da mobilidade espacial, concebida como
facto estruturante da vida quotidiana, mesmo se essas populações se vêem forçadas a
algumas deslocações, para a sua actividade profissional ou para procedimentos admi-
nistrativos, por exemplo; o bairro permanece para elas a unidade de vida colectiva de
base e conserva múltiplas funções tanto a nível da utilidade material (comércio...)
como aos da expressão cultural, do relacional e da segurança afectiva. Deste modo
encontramo-nos numa situação radicalmente oposta à que acaba de ser estudada, onde
se partia da redução da significação global do bairro para se colocar depois no quadro
de uma lógica em que é o projecto individual que é determinante e que, consoante o
caso, irá rejeitar o domínio de um bairro visto como controlando, fechando e redu-
zindo a autonomia, ou então irá utilizar esse bairro de forma instrumental, na perspectiva
da sua própria realização.

a. Bairros tradicionais

Nas cidades urbanizadas que conhecemos é relativamente frequente encontrarmos


ainda hoje alguns bairros antigos que embora oferecendo às vezes um cruzamento de
populações de meios espaciais diferentes são, geralmente, bairros com predominância
de cultura popular, i.e. de uma cultura que, de algum modo, é um vestígio de um modo
de vida anterior, não marcado pelos efeitos da urbanização e pouco sensível a ela.
A vida desses bairros está carregada de memória colectiva e é amplamente
ritmada por festas que, lidas geralmente por não-residentes numa dimensão folclórica,
são, para os habitantes, elementos intrínsecos da vida quotidiana, para os quais se
preparam durante o ano todo e que constituem o seu orgulho. Assim, num antigo bairro
de Liège, a festa do 15 de Agosto sempre foi — independentemente da recuperação

99
«cultural» de que é objecto desde há alguns anos — um acontecimento primordial da
vida, mas um elemento que está latente no resto do ano e que ocupa os habitantes
durante todo o ano. Com efeito, as potales — espécie de nichos de pedra ou de madeira
fixados nas fachadas e contendo uma imagem da Virgem —, e que são objecto de uma
veneração constante (flores frescas, velinhas,...), são repintados e refrescados todos os
anos por ocasião da Assunção, e os habitantes preparam longamente para esse dia
paramentos novos para a Virgem, sumptuosamente realçados com rendas e pérolas.
Além disso, a beleza das potales é comparada de rua para rua, o que contribui para
reafirmar subidentidades no interior da identidade de conjunto do bairro. A festa não
é, pois, aqui um acontecimento «caído de páraquedas»: ela faz parte integrante da vida
do bairro, alimenta as suas conversas e reaviva as identidades.
Por outro lado, nesses bairros, a solidariedade de vizinhança funciona ainda fre-
quentemente, e as portas para a rua, muitas vezes entreabertas, testemunham essa con-
fiança recíproca e a entreajuda que nem sequer é preciso pedir para receber. O inter-
conhecimento é aqui profundo e o controlo social actua amplamente de modo que
qualquer estrangeiro ao bairro é imediatamente detectado e causa alguma perturbação,
já que o objecto de sua visita ou passagem levanta a curiosidade dos habitantes.
A população desses bairros pode assim viver a poucos passos dos lugares mais
animados da cidade e dos equipamentos mais desenvolvidos da urbanização dessa
mesma cidade sem, contudo, os utilizar para além do estritamente necessário e sobre-
tudo sem ser atraída por eles. É claro que os outros vêem esses habitantes como uns
excluídos, e efectivamente, eles estão objectivamente excluídos da relação social que
se inscreve doravante noutra perspectiva, mas eles próprios não se sentem excluídos
e vivem de algum modo noutro mundo. É, aliás, necessário notar que embora não
sendo «ricas», essas populações não são geralmente economicamente pobres e que,
com muita frequência, se tornarão proprietários das suas casas. No entanto, perpetuam
de alguma forma «naturalmente» — sem o terem escolhido, mas também sem que tal
lhes tenha sido imposto — um modo de vida anterior àquele que é hoje dominante.
Se é verdade que esse modo de vida é muitas vezes o que caracterizava as situa-
ções não urbanizadas, também acontece que corresponda à situação característica do
desenvolvimento industrial do século passado, de que vimos anteriormente que já
tinha muitos traços de séculos precedentes. Neste caso, o bairro vê-se carregado da
memória das lutas operárias, de tal modo é testemunho sobrevivente da estreita asso-
ciação que ligava outrora a fábrica e o bairro, associação espacial que favorecia uma
concretização quotidiana da consciência e do orgulho operários, tal como nenhum
movimento operário implicado numa lógica de urbanização consegue hoje gerar.
A sobrevivência de tais bairros vê-se contudo ameaçada na medida em que os
jovens procuram deixá-los. Claro que isto não é automático, pois que a ligação ao
bairro é muito forte e as alternativas disponíveis não são necessariamente sedutoras
para jovens criados num ambiente de interconhecimento, de confiança e de solida-
riedade. Podemos, aliás, ver o quanto a vida de bairro, importante para tais populações,

100
se dissolvia prontamente quando, na sequência de uma operação de renovação, essas
mesmas populações eram transferidas para bairros sociais: a lógica de individuação
substitui neles rapidamente a de entreajuda, causando inúmeros problemas aos que
não se adaptam, quer por serem idosos, quer porque carecem de meios económicos ou
outros para se desenrascarem sozinhos, quer ainda pelos dois motivos conjuntamente.
Mas quando os jovens abandonam esses bairros, estes sofrem rapidamente, juntamente
com o envelhecimento da população, um processo acelerado de deterioração. Neste
caso, ou se tornam uma «presa» fácil para a renovação-destruição, ou então sofrem
uma mudança mais ou menos total e brusca de sua população. Esta mudança pode
efectuar-se, em si, em várias direcções. Ou os recém-chegados pertencem a certas
fracções das classes dominantes e são atraídos para lá por uma qualidade arquitectónica,
pela proximidade dos grandes equipamentos, e irão então restaurar e reabilitar essas
habitações e nelas viver segundo todas as modalidades que a urbanização permite,
levando provavelmente ao extremo as características evocadas a propósito da análise
da classe média em ascensão social: recusa das relações de vizinhança, utilização
máxima dos equipamentos dispersos por todo o território da cidade e fora desta. Ou
ainda, aqueles que tais bairros irão atrair chegam principalmente em busca de um
lugar de expressão de um modo de vida alternativo, contestando a sociedade dominante;
evocá-los-emos depois. Ou ainda finalmente o habitat disponível desses bairros se
verá investido por populações «com problemas», em busca sucessiva e malograda de
um lugar de integração. Alguns desses bairros tornam-se então bairros de passagem
para populações instáveis; arriscam-se desde logo a ganharem «má fama» e a serem
conotados, numa política de terapia social, como sendo bairros que devem ser tratados
quando não arrasados, e em relação aos quais, em todo o caso, convirá ter uma solici-
tude particular.
Toda uma gama de modalidades de reapropriação desses bairros se mostra, pois,
possível, mas, em cada caso, na base dessas reapropriações, encontra-se a solidariedade
anterior do bairro e a estrutura de seu habitat, as quais permitem nomeadamente con-
trariar o anonimato que conheceria, na cidade urbanizada, a maior parte das populações
que vêm instalar-se nela. Constituem assim, como mostrou Coing(22), uns tantos ilhéus
de interconhecimento com base espacial no fundo dominante em que a proximidade
espacial já não determina nem designa as proximidades social e cultural.

b. Bairros, comunidades de transição

Em alguns casos, também, esses bairros podem constituir o lugar onde se vão im-
plantar populações recém-chegadas à cidade — quer se trate de rurais ou de imigrantes

(22) Henri COING, Renovation urbaine et changement social, Paris, Ed. Ouvrieres, Librairie des Meridiens,
1984.
Kaj NOSCHIS, Signification affective du quartier, Paris, Librairie des Meridiens, 1984.

101
de nacionalidade estrangeira — e vão tornar-se os lugares onde essas populações vão
tentar adaptar-se, integrar-se no modo de vida dominante.
Note-se que a questão da significação do bairro em tal processo de aculturação foi
bem estudado pela escola de Chicago(23) podendo censurar-se nestes estudos o facto de
terem feito dos processos típicos da Chicago dos anos vinte os processos de base que
permitem compreender o conjunto da vida social urbana, enquanto só explicam algu-
mas modalidades «de aprendizagem» desta, modalidades de que seguiremos aqui o
desenrolar.
Quando chegam à cidade para aí se instalarem, os emigrantes, rurais ou estrangei-
ros, não costumam dispersar-se ao acaso, mas agrupam-se num bairro de primeira
implantação. Este situar-se-á muitas vezes na maior ou menor proximidade de um
ponto de chegada. É essencialmente esse o caso dos rurais e nas grandes cidades, as
capitais, o caso dos provincianos, os quais irão então colorir esse bairro com traços
específicos da sua cultura. Assim se encontram em Paris, em torno das grandes esta-
ções, muitas lojas e equipamentos designados por nomes e especializados nos produtos
e serviços da região servida pelas grandes linhas ferroviárias que levam a cada uma
dessas estações: a gare de l'Est está rodeada por vários tipos de evocação da Alsácia,
em torno da gare Montparnasse é um pouco da Bretanha que está presente, ao passo
que as imediações da gare du Nord fazem como que eco ao norte de França, e até à
Bélgica.
Se os emigrantes estrangeiros podem também eles ficar reagrupados em torno das
estações de chegada (como é o caso, por exemplo, em Bruxelas, onde o bairro da gare
du Midi está fortemente marcado pela presença de populações espanholas, por um
lado, e árabes, por outro), estes vão também frequentemente reagrupar-se em bairros
do centro da cidade onde um habitat vetusto testemunha a antiguidade desse centro.
Vão aí desenvolver toda uma vida colectiva que lembra uma maneira própria de viver,
regional ou nacional: as lojas irão vender produtos que, sendo de consumo corrente
para esses estrangeiros, são, pelo menos à partida, exóticos para a população indígena;
os restaurantes exalam cheiros pouco habituais para esta última, ao passo que a música
que sai dos cafés chocará as suas orelhas... ou evocará para elas as férias; o menor raio
de sol trará para as ruas dos bairros das regiões do Norte toda uma vida e uma ani-
mação típicas dos países mediterrânicos e, onde o volume das populações emigrantes
for bastante importante, surgirão, como acontece muitas vezes nos Estados Unidos,
escolas específicas e igrejas nacionais. Deste modo, o bairro pode tornar-se de algu-
ma forma um lugar privilegiado de «recriação» de culturas e de modos de vida especí-
ficos, por meio dos quais os emigrantes procuram reencontrar um pouco do seu país
de origem. A grande cidade pode assim ver-se recheada de bairros com conotações
sócio-culturais diversas, a ponto de, por vezes, se tornar, como nos Estados Unidos,

(23) L'École de Chicago, Paris, Aubier/Champ urbain, 1979.

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um mosaico de «pequenas pátrias»(24) que proporcionam então ao urbano bem integrado
múltiplas possibilidades de mudar de ambiente.
Se, para os emigrantes (sejam ou não estrangeiros), esses bairros podem ser, de
uma certa forma, lugares de fechamento que nunca terão a possibilidade ou que recu-
sarão sempre deixar, também eles podem constituir uns tantos lugares de articulação
e de transição entre dois universos: aquele do qual se procede e com o qual se irá man-
ter durante muito tempo, quando não sempre, relações (sobretudo através da família
próxima ou longínqua que ficou «na terra» de origem) e aquele em que se entra e para
com o qual serve de lugar de aprendizagem e de informação(25). Este duplo processo
encontra-se, aliás, favorecido pela emergência de líderes que ajudarão nos contactos
e nas negociações com o exterior (e que, nos Estados Unidos, constituem uma das
peças importantes da máquina política).
Na medida em que alguns habitantes desses bairros forem bem sucedidos profissio-
nalmente, tenderão geralmente a deixar esses lugares de primeira implantação para se
instalarem noutros bairros, talvez ainda marcados por uma dominância regional ou
nacional mas onde os contactos com o universo dominante são mais frequentes e
dependem menos da mediação do grupo: será de notar que esses bairros são frequente-
mente próximos dos primeiros. Em Chicago, por exemplo, situam-se ao longo de um
mesmo eixo, e em Bruxelas notam-se nomeadamente dois casos em que estão sepa-
rados um do outro ou por uma via férrea, ou por uma grande avenida. Esta proximidade
espacial permite primeiramente o perdurar mais ou menos intenso das solidariedades
anteriores: regressa-se ao bairro do primeiro estabelecimento para os encontros festivos,
para as trocas que evocam o país de origem e para alguns actos de solidariedade
incondicional. Pode até acontecer que o bairro do primeiro estabelecimento já não
conte muitos habitantes de um grupo regional ou nacional mas que continue, no
entanto, a ser para este o lugar privilegiado de encontro. Mas esta proximidade espa-
cial desempenha também outro papel: o de salientar diferenças; ela confirma no seu
êxito «os que conseguiram»; ela oferece aos outros o modelo a seguir para conseguirem
e, talvez principalmente, ela testemunha junto destes a possibilidade para eles de con-
seguirem a integração. Acontece por vezes, contudo, que se desenvolvam conflitos
entre as populações que foram instalar-se noutros bairros e os líderes dos bairros de
primeiro estabelecimento, os quais nem sempre vêem com bons olhos que aqueles que
ainda consideram como membros da comunidade se desliguem a pouco e pouco da
cultura nacional e, nomeadamente, da conservação da língua e da sua aprendizagem
por parte dos filhos. Além disso, outro tipo de conflito pode surgir quando esses
bairros são «ameaçados» pela chegada de representantes de outros grupos regionais

(24) Ver, por exemplo, sobre este tema: Alain MEDAM, New York - Terminal, Paris, Galilee, 1977.
(25) «Situations interethniques. Rapports de voisinage dans quatre quartiers toulousains», Toulouse,
Cahiers du Centre de Recherches Sociologiques, n s 7, 1987.

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ou nacionais; os primeiros instalados irão então muitas vezes tentar resistir a esta inva-
são, pois a hierarquia de estatutos é particularmente importante para os emigrantes e
estes são-lhe tanto mais sensíveis quanto têm estatutos semelhantes e quanto a sua
mistura espacial pode confundi-los aos olhos do exterior, ao passo que eles fazem, por
seu lado, do bairro uma base importante da sua identidade colectiva e um testemunho
do caminho que percorreram desde a sua chegada ao país dito de acolhimento.
A localização da habitação acompanha com efeito normalmente o grau de inserção
dos emigrantes na sociedade dominante. É assim que o ponto seguinte de sua progressão
social no seio desta última será frequentemente marcado por um desejo de habitar
num bairro que já não é de predominância regional ou nacional e que lhes permitirá
avizinhar-se do «indígena médio». A instalação de emigrantes em tais bairros levará
muitas vezes essas populações a manifestações de excessiva conformidade, no sen-
tido de que, para se fazerem mais facilmente adoptar pelo grupo instalado, multiplicam
as manifestações exteriores que lhes parecem ser os indicadores de sua participação
nos modos de vida da sociedade dominante. É este tipo de comportamento que contri-
buiu para criar a imagem dos Estados Unidos como «melting pot», como cruzamento
de todas as culturas e em que cada qual se pode afirmar. Apesar do seu êxito, seme-
lhante imagem terá, no entanto, de ser fortemente matizada, como sugere a pergunta
«what is behind the melting pot?» que alguns colocam no sentido de chamarem a
atenção não só para o facto de a pertença nacional permanecer um forte critério de
identificação (pense-se, por exemplo, no peso dos judeus americanos na orientação da
política internacional dos Estados Unidos ou no papel que este país desempenha na
questão irlandesa através dos americanos de origem irlandesa), mas ainda para o facto
de essa pertença implicar o desempenho de um papel importante nas possibilidades
objectivas de cada um... É evidente que a situação norte-americana é específica na
medida em que a esmagadora maioria da população deste país é constituída por emi-
grados com chegada mais ou menos recente e não se pode comparar o peso político
que tem o cosmopolitismo nos Estados Unidos com o que poderá eventualmente ter
nos países europeus onde, embora numerosos, os emigrantes representam apenas uma
minoria da população. É no entanto inegável que algumas «colónias» estrangeiras
desempenham um papel importante, quanto mais não seja pela solidariedade interna
que alimentam e que perdura mesmo no seio das gerações aí nascidas. E o caso, por
exemplo, na Bélgica, dos Italianos, os quais se conhecem entre si, prestam serviços
recíprocos e muitas vezes, inclusive, arranjam mutuamente emprego, de tal modo que
controlam de forma dominante alguns sectores da economia do país e por vezes até
algumas associações profissionais(26).

(26) Albert BASTENIER e Felice DASSETTO (eds.), Immigrations et nouveaux pluralismes. Une con-
frontation de sociétés, De Boeck Université, Bruxelles, Coll. Ouvertures sociologiques, 1990.
Gilles LAVIGNE, Les ethniques et la ville. L'aventure urbaine des Immigrants portugais à Montreal,
Québec, Éd. du Préambule, Coll. Science et Théorie, 1987.

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Terminamos a rápida análise desta questão sublinhando que, tal como no caso dos
bairros tradicionais, a destruição dos bairros de primeira e muitas vezes de segunda
implantação destes emigrantes constitui um grave prejuízo para essas populações, que
necessitam de tais lugares de confiança recíproca e de solidariedade para entrarem
progressivamente, limitando os traumas, numa cultura e em condições de vida e traba-
lho que, até então, lhes eram desconhecidas. E este problema só muito imperfeitamente
poderá ser resolvido pela disponibilização de bairros mais recentes e/ou mais periféricos,
na medida em que isto é acompanhado muitas vezes por um controlo administrativo
mais ou menos estreito, o qual não só limita as chegadas ilegais como também preju-
dica todos aqueles que não foram previamente iniciados ao funcionamento da Admi-
nistração. Por outro lado — e independentemente do aluguer geralmente elevado que
representam —, essas habitações mais recentes mostram-se muitas vezes menos flexí-
veis para adaptações internas e as eventuais apropriações culturais são aí geralmente
proibidas ou, pelo menos, limitadas pela existência de regulamentos muito restritivos.

c. Centros urbanos abandonados

Numa sociedade em que o processo de urbanização tal qual foi descrito é adoptado
por uma ampla maioria da população, é frequente que esta abandone os centros, sobre-
tudo quando estes não estão fortemente marcados quer pela história, quer pela qualidade
da arquitectura.
Isso manifestou-se na maioria dos casos nos Estados Unidos, onde muitos centros
urbanos se viram reapropriados por «poor people», os quais, longe de estarem no
começo de um processo de integração e de ascensão social como aquele que acaba de
ser descrito, eram essencialmente populações já marcadas pelo fracasso. Um exemplo
típico deste fenómeno é oferecido pela aglomeração de Boston, onde uma auto-estrada
periférica, traçada a uns 20 km do oceano, frente ao qual se encontrava o antigo cen-
tro, serviu de área de distribuição para as grandes zonas de trabalho, para os grandes
centros comerciais e para a maioria dos novos bairros residenciais; a massa da popu-
lação urbanizada vivendo nessa periferia já não tem muitos motivos para se deslocar
ao centro da cidade, donde já saíram os serviços e equipamentos de qualidade, apenas
subsistindo um comércio de segundo nível. Esse centro viu-se desde então progressi-
vamente ocupado por centros de negócios e alguns prédios de apartamentos de grande
luxo, mas é principalmente o lugar de residência privilegiado das populações desfavore-
cidas que, mediante os transportes colectivos subsistentes, têm a possibilidade de
acesso diário aos lugares de trabalho periféricos. Durante a manhã e ao fim da tarde
cruzam-se assim dois fluxos de trabalhadores: os «profissionais» que chegam ao
centro da cidade ou o deixam vindo de ou regressando ao seu domicilio situado na
periferia, e os trabalhadores não qualificados que trabalham nas grandes empresas e
nos grandes equipamentos situados na periferia, embora residindo no centro, num

105
habitat vetusto e deteriorado. Esta situação explica aliás o facto de, nessa cidade, as
lutas urbanas escolherem para alvo principal os comerciantes dos bairros centrais, os
quais procuram tirar proveito do monopólio de que dispõem junto dessas populações
com mobilidade espacial reduzida, impondo-lhes preços não proporcionais à qualidade
dos produtos vendidos.
Com esta estrutura dualista a exprimir-se tanto no plano social como no plano
espacial, Boston proporciona, deste modo, uma muito nítida e legível ilustração de um
processo de urbanização que deixa toda uma parte da população não integrada nas
exigências e nos contributos dessa mudança. O facto é obviamente mais chocante aqui
e põe mais problemas do que nos casos evocados anteriormente, quanto mais não seja
porque a população marginalizada representa em Boston uma importante proporção
da população total e porque a oposição é mais vincada ao nível do espaço. Para os
marginalizados, os excluídos, esta evidência da sua situação leva-os muitas vezes a
recusar a cultura dominante e, com ela, a motivação para o trabalho e a ética do
esforço individual. O centro urbano tende então a tornar-se um espaço perigoso para
o homem urbanizado, o qual é visto pelos excluídos que aí habitam como um intruso
a espoliar. E se estiverem desprovidos de poder ao nível do mercado de trabalho e no
plano directamente económico, esses excluídos poderão muito bem encontrar uma
força na sua capacidade de eliminar ou de destruir o mobiliário urbano cuja fragilidade
funda as diversas formas de guerrilha urbana.

d. Bairros de lata

É numa perspectiva totalmente diferente que se põe o problema dos bairros de


lata, numerosos nas grandes cidades da maior parte dos países em vias de desenvol-
vimento. Esta diferença não assenta unicamente no facto de, com frequência, a popu-
lação desses bairros de lata constituir a maioria da população da cidade (de 60 a 70%),
onde está amontoada em espaços reduzidos (de 20 a 30% do espaço disponível). A
diferença procede também e principalmente do facto de se tratar de uma população
que deixa o campo ou a província para escapar à desorganização do meio rural, desor-
ganização essa ligada à mudança brusca dos modos de gestão e ao aumento demográfico
que, uma e outro, provocam um problema de emprego, e para responder à atracção da
miragem da cidade imaginada enquanto lugar de todos os possíveis, da riqueza, do
saber. Esses bairros de lata, que são, pois, espaços intersticiais entre dois universos —
um rural, com o qual se conserva ligações, e outro citadino, no seio do qual se procura
infiltrar —, desenvolvem uma estrutura espacial e social que nada tem a ver com a
desorganização dos centros urbanos abandonados que evocámos a partir do exemplo
de Boston. Alguns evocaram, aliás, com muita propriedade, a «racionalidade» dos
bairros de lata, sublinhando que o que pode aparecer aos olhos exteriores como um
lugar de desordem espacial e social é, na realidade, um lugar altamente ordenado,

106
segundo regras que, certamente, lhes são próprias, mas que lhes permitem viver e
manter um equilíbrio apesar de sumárias condições de existência material(27).
Todavia, se essas regras internas permitem às populações dos bairros de lata viver
uma vida bastante harmoniosa no interior dos mesmos, nem por isso lhes trazem os
códigos de que necessitariam para se situarem no universo citadino. Vivendo toda a
sua vida social à maneira de um jogo de sorte, essas populações justificam todas as
suas peripécias pela sorte, e mais ainda pela pouca sorte, e constituem um terreno
favorável ao desenvolvimento das seitas religiosas de tipo mágico a que aderem de
bom grado, contando assim apropriar-se mais eficazmente da sorte.
As populações desses bairros de lata podem, aliás, viver diariamente na proximidade
imediata dos bairros mais abastados, sem que isso provoque nelas — excepto em
momentos específicos de revolta — um sentimento de injustiça, visto que lêem as
diferenças de condição apenas em termos de sorte. É assim que, em Caracas, habitantes
de um bairro de lata vizinho do parque de um grande hotel foram vistos a disfrutarem
com emoção do desfile das sumptuosas toilettes e da ostentação da riqueza aquando
de um «garden party», dizendo: «Se Deus quiser e nos der sorte, havemos de lá ir um
dia também...». Ora, era preciso ter muita sorte para sair da indigência dessas populações
que, na maioria, vivem de biscates, mesmo se alguns conseguem por vezes desenvolver
actividades alternativas em redes de economia informal ou ainda integrar-se no mer-
cado oficial de trabalho. Nem por isso deixarão de morar nos bairros de lata, não só
por lhes ser difícil arranjar uma habitação por um preço compatível para eles, mas
também porque preservam assim uma liberdade para com o controlo oficial e porque
conservam os laços afectivos no interior desses espaços, que a sua presença irá, no
entanto, mudar nalguma coisa, tornando-os heterogéneos quer internamente, quer uns
em relação aos outros.
Se é verdade que esta homogeneidade relativa é aceite quando procede de popu-
lações oriundas dos bairros de lata e no respeito das regras, apesar da mudança de con-
dição, o mesmo não acontece quando procuram integrar-se nesses espaços populações
como as evocadas, por exemplo, no parágrafo anterior e que são consideradas como
susceptíveis de desorganizarem o bairro de lata do mesmo modo como desorganizam
o centro urbano. Trata-se então de resistir a essa invasão, e o problema é tanto mais
delicado de resolver quanto, para as populações urbanas integradas, os marginais dos
centros urbanos abandonados e os habitantes dos bairros de lata são igualmente consi-
derados como um mal e como uma ameaça que não se consegue distinguir.

(27) Gerard D. SUTTLES, The Social Order of the Slum, Chicago, University of Chicago Press, 1968.

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e. Bairros suportes de um modo de vida alternativo

Se muitos consideram negativamente esses vários bairros, algumas fracções da


população urbanizada viram neles a dada altura os únicos espaços onde ainda se pode
viver um modo de vida baseado na solidariedade interpessoal e onde pode expressar-
-se uma resistência aos atractivos da modernidade e onde pode desabrochar um modo
de vida alternativo. O mais das vezes, esta reacção é o resultado de populações que
dispõem de um certo capital cultural, não valorizado plenamente no plano económico,
e é esta contradição vivida na vida quotidiana que faz com que sejam mais sensíveis
que outros a determinadas falhas do sistema dominante e com que se dêem desde logo
por missão tornar-se uma minoria inovadora e, por vezes, purificadora. A importância
dessa missão é neles subjectivamente reforçada pelo sentimento de uma aliança
possível com as populações desses bairros, que ajudarão a sair da sua marginalidade
social e a tomar iniciativas no controlo do seu ambiente e na produção de empregos
de tipo autogestão.
É nesta perspectiva que irão então reivindicar a cidade enquanto possibilidade de
desenvolver micro-meios sociais em que a solidariedade e a reivindicação se baseiam
na apropriação e na partilha de um espaço comum, o bairro. Este tipo de aspiração e
de projecto serve de trampolim para o surgimento de associações de bairro, associações
essas que se organizam tanto mais rapidamente em grupos e em comités de defesa
quanto iniciativas vindas do exterior ameaçam a manutenção dessas populações
nesses bairros e por vezes mesmo a existência física dos mesmos.
Os grupos que valorizam assim o bairro enquanto micro-meio social têm além
disso frequentemente tendência para desvalorizar a cidade enquanto macro-meio e
para denegrir as comunicações e as trocas que esta última facilita entre pessoas que
apenas conservam entre si relações funcionais e parciais, com fundo de anonimato.
Nesta contestação, essas minorias inovadoras e as alianças que desenvolvem ao
nível dos bairros exprimem, embora de forma aguda e às vezes caricatural, um mal-
-estar mais generalizado e aspirações novas de uma mais ampla população. Assim
sendo, favorecem a emergência e a difusão da valorização da imagem contrária à da
cidade urbanizada: primado da relação sobre a exigência funcional, associação espacial
trabalho-residência, insistência na pequena dimensão e rejeição da grande dimensão,
valorização das técnicas sofisticadas ditas demasiado abstractas e macro-instrumentos
ditos desumanizantes, vontade de reintrodução no ambiente da «natureza viva» em
oposição a um universo mineralizado e a uma natureza demasiadamente domesticada.
Tudo isso é acompanhado, além do mais, ao nível do projecto racional, por uma
depreciação da competição e do cálculo generalizado sobre o trabalho e sobre o
tempo, depreciação acompanhada e suposta ter de ser compensada pelo regresso a
trocas gratuitas e em que não se é incessantemente reavaliado em função do contributo
do momento.
Pelo facto da ascensão relativamente recente deste tipo de projecto, alguns bairros

108
que há ainda pouco tempo eram abandonados por populações com certo nível económico
e com certo poder simbólico vêem-se hoje bastante activamente procurados — o que,
a médio prazo pelo menos, não deixa de ser problemático para aqueles que os ocupa-
vam no princípio. Pesa, desde logo, uma ambiguidade sobre o devir desses bairros.
Por um lado, a vontade de ajudar populações excluídas da reivindicação social (inclu-
sive daquela que se exprime através do movimento operário tradicional) leva para lá
uma população, de resto bem integrada no modo de vida urbano, mas que o quer con-
testar — e fá-lo aliás tanto mais facilmente e com tanto mais vigor quanto a sua pró-
pria integração é forte.
Por outro lado, esta população bem integrada, movida por semelhante preocupação,
vê acrescentar-se-lhe (e é, às vezes, também ela simultaneamente) uma população que
procura nesses bairros para si própria um novo modo de vida e que acaba por atrair por
sua vez camadas mais largas de população, frequentemente tanto mais seduzidas por
essas expressões novas quanto estas se manifestam em bairros próximos do centro
urbano e de que se redescobre o valor histórico e/ou arquitectónico. Assim, a pouco
e pouco, esses bairros arriscam-se a aparecer como sendo as respostas mais adequadas
às críticas dirigidas aos conjuntos concebidos segundo os modelos propostos pelo
urbanismo e arquitectura modernos, e enquanto ainda há pouco tempo apareciam
como vetustos, desactualizados, pouco práticos,... tendem a ser doravante considerados
como garantes de qualidade de vida(28). Desde logo desencadeia-se um processo colec-
tivo de substituição e alguns desses bairros que haviam escapado à picareta dos demo-
lidores — devido nomeadamente às intervenções e manifestações de oposição por
parte inovadoras aqui evocadas —, vêem-se deste modo, embora de forma mais lenta
e menos espectacular, mas mais eficaz e irreversível, esvaziados de sua população
original em benefício das fracções muitas das vezes mais bem integradas das popu-
lações urbanas — as quais são as primeiras a ser atraídas por esses locais redescobertos
que permitem viver na cidade de outro modo.

CONCLUSÃO: DA CONTESTAÇÃO À ALTERNATIVA

Na primeira parte deste capítulo, propusemos um modelo dominante gerado pela


urbanização e em vias de generalização. Fizemos notar de seguida o quanto certas
populações não eram capazes de entrar directamente neste processo. E acabámos de
esboçar a hipótese segundo a qual está a surgir um modelo alternativo sem que,
todavia, isso se traduza por uma recomposição da dialéctica centro/bairro que se
conhecia nas situações não urbanizadas e sem que isso acarrete um reestabelecimento

(28) Alain BOURDIN, Le Patrimoine réinventé, Paris, PUF, Col. Espace et Liberté, 1984.
Henri-Pierre JEUDY (éd.), Patrimoine en folie, Paris, Éd. de la Maison des Sciences de THomme, 1990.

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da sobreposição das definições morfológica e sócio-económica da cidade, como também
existia nessa altura.
A análise da ligação entre cidade urbanizada e classes sociais que se vai seguir
mostrará precisamente como um certo número de posições fortes desenvolve moda-
lidades específicas de apropriação do processo de urbanização, que aumentam a sua
capacidade de iniciativa ao mesmo tempo que reduzem a sua dependência estrita em
relação a determinado enraizamento num espaço de pequena dimensão, sem que isso
resuma as procuras de apropriações alternativas a estratégias secundárias: a nossa
hipótese, pelo contrário, considera a urbanização como um processo que permite dar
toda a sua lógica à sociedade liberal e fazer surgir dela todas as contradições, pondo
o indivíduo no coração do sentido num contexto de vantagens socializadas. E uma vez
instauradas e generalizadas essa lógica e suas contradições, teremos todas as hipó-
teses de nos encontrarmos num ponto de reviravolta dialéctica e no ponto de partida
de uma via nova, partida essa que se traduz com frequência pela afirmação radical do
contrário daquilo que é dominante. Assim, estaremos hoje no alvor de um movimento
social com expressões múltiplas (lutas urbanas, movimentos regionalistas, movimentos
feministas, movimento ecológico,...) que, passada uma primeira fase marcada pelo
negativismo, deveria progressivamente chegar a propor, num processo de transacção
social, referências alternativas que integrem elementos da sociedade urbana e industrial
em elementos novos. Se querem resultar em algo concreto, o regresso ao bairro e a
evocação do passado não podem, com efeito, significar a reprodução da cidade não
urbanizada; devem, pelo contrário, resultar na produção de novos espaços sociais. É,
aliás, nesse sentido que os antigos bairros são reapropriados, os quais, se são apreciados
pelos seus espaços de ruas e de praças assim como pelos ambientes interiores que per-
mitem, não se concebem a não ser dotados de elementos de conforto e de utilidade que
participem do modo de vida urbano, associando-se com uma importante mobilidade,
e com a escolha e a autonomia que esta permite(29).
Assim, se os movimentos de contestação do sistema dominante que surgem desde
há alguns anos têm poucas hipóteses de generalizar-se enquanto tais, não deixam de
ser o indicador de uma insatisfação e desencadeiam a busca de outro modo de vida
que, sem atingir os excessos preconizados por esses movimentos, sem eliminar radi-
calmente todos os traços característicos do modo de vida urbano, e sem tampouco
regressar ao modo de vida não urbanizado, combinará elementos de cada uma dessas
situações com a imaginação de elementos novos que, certamente, estarão ligados à
crise actual e às perspectivas da tecnologia de amanhã.

(29) René SCHOONBRODT, Essai sur la destruction des villes et des campagnes, Bruxelles, Liège, Éd.
Mardaga, 1987.
Pierre ANSAY, René SCHOONBRODT, Penser la ville, choix de textesphilosophiques, Bruxelles, AAM
Éditions, 1989.

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Contudo, será ainda preciso ter em conta — se se quiser antecipar com alguma
pertinência e com maior precisão as características dessa provável evolução — a
diversidade dos contextos em jogo. É o caso, em particular, das significações que
podem tomar os vários fenómenos evocados de exclusão e de marginalidade, consoante
as relações quantitativas com que se formam. A sua significação e o seu alcance serão,
com efeito, bem diferentes conforme nos referirmos, por exemplo, aos Estados Unidos
e aos países industrializados, onde esses fenómenos dizem respeito a cerca de vinte
por cento da população, e ao Terceiro Mundo, onde afectam, inversamente, oitenta
por cento da população. Assim, uma urbanização relativamente comparável tomará
significações diferentes e acarretará efeitos variáveis consoante, nomeadamente, a
estrutura do mercado de trabalho com que se depara.
Se a industrialização acompanha a urbanização, há sérias hipóteses de a maioria
da população se encontrar em situação de utilizar em seu proveito os trunfos que o
meio urbano proporciona (mesmo se as flutuações da conjuntura apostam, num ou
noutro sentido, nessa capacidade e na sua difusão). Em contrapartida, se — como
acontece no Terceiro Mundo — a urbanização ultrapassa a industrialização, os excluídos
são maioritários e a urbanização pode reforçar as contestações e proporcionar as con-
dições principais da gestão de uma explosão.
Por outro lado, para além da necessidade que há em cruzar a urbanização com a
industrialização e o mercado de trabalho, convém também, para apreciar os seus
efeitos, ter em conta diferentes procedimentos de segurança colectiva que entram ou
não em jogo. Assim, o problema põe-se de maneira diferente nos Estados Unidos e na
Europa na medida em que os primeiros não conhecem muito os mecanismos de
segurança colectiva que a Europa, em contrapartida, desenvolveu amplamente (embora
também a níveis diferentes consoante o país).
Seria, pois, necessário, para analisar mais amplamente a urbanização e os seus
efeitos, deixar o método ideal-típico e situar-se numa perspectiva comparativa que
evidenciasse as significações diferentes de que se pode revestir uma urbanização que,
embora comparável, se vê tomada em contextos diferentemente compostos. Se não
seguimos esse procedimento nesses países foi porque a nossa questão quer centrar-se
na lógica social subjacente a diferentes modalidades de apropriação do espaço e
porque seguir essa perspectiva nos teria colocado questões completamente diferentes.
Não queríamos, no entanto, deixar de sublinhar a sua importância e o seu interesse(30).

(30) A título de exemplo, este tipo de método é seguido por Jean-Claude LUGAN, La petite ville au
présent et au futur, CNRS, Centre Régional de Publications de Toulouse, 1983.

Ill
CAPÍTULO I I I

CONTEXTO URBANIZADO
E EFEITOS DE ESTRUTURA SOCIAL

Como já o dissemos no princípio, é a lógica da apropriação da cidade urbanizada,


considerada enquanto objecto já produzido, já presente, que nos interessa aqui. Nesta
perspectiva, veremos como os usos que resultam desta apropriação ganham sentido no
plano do projecto social e como, longe de ser apenas um factor de reprodução, repre-
sentam também uma determinante do poder social. O espaço estruturado constitui-se
como um recurso que é apropriado socialmente de vários modos.
O nosso propósito não é, pois, analisar directamente os actores que estão na ori-
gem da transformação do espaço urbano, como o faríamos se falássemos da lógica de
acção dos poderes públicos, dos promotores imobiliários, dos proprietários prediais
ou da poupança institucional, ao mesmo tempo que veríamos como esta se associa às
estratégias ligadas aos investimentos industriais e comerciais e como se situam, a par-
tir daí, as empresas construtoras e os conceptores (arquitectos, urbanistas, planifi-
cadores). E, pelo contrário, a lógica da apropriação do espaço urbano já estruturado
que nos preocupa, e formamos a hipótese de que esta lógica de apropriação dispõe de
um certo grau de autonomia em relação à lógica de produção, e explica, parcialmente,
pelo menos, a evolução da relação social e do poder de imposição. Reafirmemos, pois,
que analisar a lógica de apropriação não se resume a analisar a reprodução, mas antes
a captar um dos factores importantes da constituição dos actores nas suas relações
recíprocas. E é precisamente objecto deste capítulo ver como e porquê as apropriações
diferentes de que são capazes as várias posições sociais ganham sentido no plano do
projecto social de cada uma delas e resultam na sua constituição em poder recíproco.
Longe de ser apenas um factor de reprodução, essas apropriações representam também
uma determinante do poder social, mesmo se o utente tem cada vez menos a iniciativa
na produção do quadro edificado e manifesta aliás por isso, em certos casos, uma von-
tade de redefinição autogestionária.
Colocando-nos assim na perspectiva do reconhecimento da existência de posições
não igualitárias, acabámos de ver como estas se definem, entre outras coisas, por uma
inclusão, por uma marginalização ou por uma exclusão em relação à urbanização.
Mas outras desigualdades surgem, face a este processo, quando olhamos para as

113
populações que apresentámos como nele integradas e mais ou menos aptas a dele tirar
proveito.
A descoberta da diversidade, e inclusive da oposição desses efeitos, supõe que, logo
à partida, nos distanciemos em relação à imagem de um indivíduo médio, a qual supõe
que toda a gente reage da mesma forma diante de um mesmo estímulo do ambiente ou
do quadro de vida, as variações afectando apenas a identidade e não o sentido e a
orientação. Muitos estudos partem contudo dessa imagem, o que os leva, por exemplo,
a ligar unilateralmente a propensão para a mobilidade espacial por motivos não
profissionais (equipamentos, serviços, relações amigáveis,...) à especificidade das
necessidades, a qual cresce com o nível de instrução associado ao rendimento.
Partindo desta hipótese, afirma-se, pois, que quanto mais desenvolvida intelectual-
mente for uma população e quanto maior for o rendimento de que dispõe, maior será
a sua propensão em procurar longe e em lugares diversos a satisfação das suas necessi-
dades de serviços, encontros,... e as únicas modulações que se aceitam em relação a
esta regra geral são as ligadas ao sexo, à idade e às etapas da vida (as mulheres são
geralmente menos móveis que os homens, assim como o são também as pessoas ido-
sas e os casais com filhos pequenos em relação aos mais novos e aos casais sem filhos
ou com filhos já autónomos). Mas essas variações não deixam de ser apenas amplitude
e nunca sentido. Sem negarmos a importância e a incidência desses factores, conside-
ramos, quanto a nós, que estes só ganham todo o seu sentido social quando são cru-
zados por uma análise que parte da hipótese segundo a qual, a um mesmo estímulo,
os indivíduos reagem de maneira diferente, e inclusive de maneira oposta consoante
a sua posição social, pois é esta última que estruturalmente os dota com uma gama
mais ou menos extensa de recursos e que os torna portadores de um projecto que
transforma em esperanças subjectivas as possibilidades objectivas. O problema põe-
-se então sob vários ângulos.
Ao nível cultural, primeiro, trata-se de ver — a pretexto de um certo consenso
quanto às regras de comunicação e de troca em que a competição pela igualdade
substitui a harmonia na hierarquia e em que o projecto individual tem prioridade sobre
as obediências colectivas —, como se desenvolvem apropriações diferentes de uma
posição social a outra e como essas diferenças contribuem para constituir trocas assi-
métricas. As várias contradições que salientámos na análise dos modos de apro-
priação do espaço da cidade urbanizada por parte de populações em dinâmica de inte-
gração (contradição entre criatividade individual e controlo colectivo,...), ganharão
então sentidos diversos e por vezes até opostos consoante as possibilidades ou as von-
tades de apropriação que caracterizam as várias posições sociais.
Situando-nos de seguida ao nível estrutural, sublinharemos a incidência que pode
ter determinada raridade de bens sobre o desenvolvimento de fenómenos de
competividade e sobre a emergência de modalidades diversas de selecção de prioridades.
Isto permitir-nos-á evocar as articulações que se operam entre lógica de apropriação
e lógica de produção.

114
A partir do reconhecimento dessas situações desigualitárias e da existência de
desafios comuns, será então interessante demorarmo-nos a mostrar como os vários
agentes que,se encontram em situações em que serão parcialmente solidários e par-
cialmente opostos vão encontrar a experiência do conflito. Uma experiência do con-
flito bem distinta da vivida na empresa, visto que os agentes são definidos já não em
termos de produtores directos, mas antes em termos de utentes, portadores de reivindi-
cações mais ou menos contraditórias e mais ou menos transversais em relação aos
grupos de interesse ligados à vida profissional.
O desenvolvimento de semelhantes solidariedades parciais, induzidas pela urbani-
zação, mostra-se então favorável à diluição de algumas formas de consciência colectiva,
assim como à emergência de uma consciência individual que, ao nível da percepção,
tenderá a dissimular os efeitos de sentidos opostos de que anteriormente notámos a
importância.
Toda esta análise levar-nos-á, em conclusão, a sublinhar quanto a urbanização
agudiza a lógica e as contradições de uma sociedade liberal ou capitalista.

1. REGIME DE TROCAS E FORMAÇÃO DE CAPITAIS

Colocando-nos aqui numa perspectiva cultural interessar-nos-emos por uma popu-


lação que, efectivamente, integrou as regras do regime de trocas dominante mas que
as utiliza segundo lógicas diferentes de acção, inclusive contraditórias.
Optar por esse ponto de partida supõe que façamos do ethos de posição(1) o ele-
mento-chave a partir do qual se podem entender as várias lógicas de apropriação. Esta
hipótese supõe, por outro lado, que se distinga nitidamente a existência social de uma
posição da constituição de um meio, supondo a partilha regular, quando não constante,
de um território comum. Na linha de Gurvitch(2), pomos a hipótese segundo a qual as
«posições» ou as «classes» se constituem enquanto «grupos à distância», i.e. enquanto
grupos que podem ser operantes apesar da dispersão espacial e do afastamento —
podendo estes factores associar-se, nalguns casos, à constituição de redes fechadas de
relações. A autonomia mais ou menos ampla de que dispõem as várias posições
sociais em relação ao que Gurvitch designa por «grupos de proximidade» vai ser uma
das chaves que permitirão compreender a diversidade das lógicas de apropriação e o
efeito de reforço ou de abrandamento que estas acarretam nas possibilidades de
intervenção colectiva das várias posições sociais.

(1) Pierce BOURDIEU, La distinction, Paris, Ed. de Minuit. Jean REMY, Liliane VOYE, Emile SERVAIS,
Produire ou reproduire?, Bruxelles, Vie Ouvriere, 1978, Vol. I, pp. 311-346
(2) Georges GURVITCH, La vocation actuelle de la sociologie, Vol. I, Paris, PUF, 1963, pp. 387-402.

115
Tomamos novamente aqui por referência o indivíduo de classe média, na medida
em que é o comportamento deste último que permite captar mais explicitamente a
lógica subjacente e fazer surgir as situações e percepções opostas.
As várias posições sociais podem ser caracterizadas pelos «capitais» de que
dispõem, i.e. pelos recursos de que são capazes de se apropriar e do mobiliário com
vista à realização de um projecto. Este recurso pode ser um instrumento técnico, uma
rede de relações, um prestígio social... É nestes dois últimos aspectos que nos iremos
centrar, a rede de relações que determina o capital social e o prestígio, o «capital
simbólico»(3).

a. Formação do capital social

A forma de seleccionar as relações em função do campo dos possíveis é


parcialmente guiada pelo projecto de base do grupo, projecto que pode organizar-se à
volta de prioridades diferentes. As análises de Farber sobre as estratégias familiares
ajudar-nos-ão a detectar vários tipos de projectos e a ver como, a partir deles, é pro-
curada determinada rede de relações(4).
A reacção a um mesmo contexto será, com efeito, muito diferente consoante a
família quiser maximizar o sentimento de autonomia e de auto-organização, ou au-
mentar as possibilidades de mobilidade social ascensional, desenvolvendo formas de
socialização antecipada, ou procurar constituir micromeios, reforçando a capacidade
de influência; ou ainda prosseguir uma estratégia defensiva, movida que está por uma
vontade de protecção dos valores a legar às gerações seguintes. Vejamos como, con-
soante os vários projectos, essas famílias irão conceber a sua rede de relações e que
importância lhe irão conceder.
Movidas por uma vontade de maximizar as escolhas individuais, algumas famílias
irão rejeitar tudo quanto poderia lembrar o controlo ecológico, i.e. uma situação em
que os outros se reservam um direito de fiscalização sobre os comportamentos dos
seus membros e são capazes de o exercer efectivamente através da visibilidade espa-
cial mais ou menos geral que têm destes. Este tipo de família — que, aliás, será muito
sensível aos critérios abstractos de distinção — quererá demarcar-se e organizar a sua
vida quotidiana em torno do que considera ser a realização de cada um de seus mem-
bros. Trata-se, pois, de uma estratégia baseada no bem-estar e em que a família serve
de suporte à promoção das referências individuais de cada um dos membros.
É no sentido de aumentarem as possibilidades de mobilidade social vertical que
outras famílias irão organizar a sua vida quotidiana. Neste caso, vê-se que procuram

(3) Encontraremos um mais amplo desenvolvimento desta noção em: Jean RÉMY, Liliane VOYÉ, Émile
SER VAIS, Produire ou reproduire?, Vol. I, Bruxelles, Éditions Vie Ouvrière, 1978, pp. 237-240, 245-247.
(4) FARBER, Family organization, San Francisco, Chandler, 1968.

116
preferencialmente dissociar-se do seu grupo de pertença. Quando vivem em pequenas
cidades onde o interconhecimento é grande, as famílias bem sucedidas deste tipo dis-
tanciam-se muitas vezes das suas origens para tentarem misturar-se noutro meio. Na
grande cidade, onde a vida social é vivida mais anonimamente, essas famílias irão
frequentemente adoptar uma dupla táctica: receberão os familiares e as relações do
meio de origem que reconheçam e admirem o seu êxito social, ao mesmo tempo que
desenvolvem paralelamente uma nova rede de contactos, que se esforçarão por não
misturar com a primeira. Essas mesmas famílias desejarão, por outro lado, com fre-
quência, habitar num bairro conotado socialmente como mais elevado do que a sua
própria posição, esperando assim encontrar, em particular para os filhos, uma apren-
dizagem acelerada do modo de vida do meio a que aspiram.
Quando desenvolvem uma estratégia de poder e de influência, outras famílias
estarão antes de mais preocupadas com o desenvolvimento das redes de intervenção,
mesmo se, ao fazê-lo, contribuem para reconstituir até certo ponto, para si, meios de
controlo. O objectivo primeiro é aqui o de multiplicar os pequenos meios de inserção,
tendo simultaneamente uma perspectiva de abertura ao ambiente, que se deseja trans-
formar ou controlar.
Por fim, as famílias em estratégia defensiva irão na maior parte dos casos procu-
rar manter-se num meio fechado às exigências do meio circunvizinho, que não projec-
tam influenciar, mas cujas influências perturbadoras querem limitar, quando não
impedir.
Esses vários projectos, que levam a apreciar de modo diferente as redes relacionais,
irão, além disso, distribuir-se desigualmente consoante as posições sociais.
Assim, o projecto de maximização das possibilidades de escolhas individuais será
mais comum em posições sociais dotadas de rendimentos médios, que querem aproveitar
uma situação adquirida; é, no entanto, também comum, embora numa versão diferente,
nalgumas fracções da classe operária que se contentam com a sua sorte e que, deste
modo, se implicam pouco na reivindicação ou numa estratégia de mobilidade social.
Estas duas versões de um só projecto serão, todavia, conotadas de modo diferente con-
soante o capital cultural de ambos os grupos.
É na classe operária que quer melhorar a sua sorte e essencialmente a sorte das gera-
ções seguintes que se encontrará mais frequentemente o projecto de mobilidade social
vertical, mas também poderá ser essa a actuação de algumas posições médias, para as
quais, no entanto, a melhoria visada respeita tanto à geração adulta quanto aos filhos.
A estratégia de influência, por seu lado, é característica de posições sociais fortes
e, nomeadamente, das fracções inovadoras. É comum nos militantes das várias posições
sociais, movidos por determinado projecto.
Quanto à estratégia defensiva, finalmente, é característica sobretudo das posições
superiores que se sentem ameaçadas pela emergência de novas fracções; também é
comum, da mesma forma, e mais ou menos acentuada, nas fracções das várias posi-
ções sociais que, também elas, sentem pairar sobre si a ameaça de elementos inovadores.

117
Assim, cada posição social poderá ter versões diferentes dos vários projectos
familiares evocados, mesmo se um deles tem, para cada uma delas, mais hipóteses de
ser predominante. A relação entre posição e projecto é, pois, marcada por um certo
grau de liberdade e deixa uma relativa autonomia. Todavia, veremos como a urbanização
permite a preponderância de uma reacção sobre outra, contribuindo desta forma para
reforçar ou enfraquecer uma posição social nas suas relações com as outras.
É a partir da noção de interacção que iremos analisar esse fenómeno, opondo as
interacções ligadas a uma relação em que o interconhecimento e a afectividade são
decisivas àquelas em que a possibilidade de suporte recíproco e a transferência de
informações existem a partir de um mínimo de conivência.
São possíveis várias combinações, conforme o acento for posto simultânea ou
separadamente na qualidade da relação pessoal, no poder e no prestígio.
Para alguns, apenas contam as relações pessoais e estas são avaliadas como sendo
tanto mais profundas quanto se tornam íntimas; tudo o resto é considerado então como
superficial. É no projecto de valorização das escolhas individuais que esta reacção é cer-
tamente mais frequente; tende a levar a uma auto-exclusão da possibilidade de influência,
em nome de uma ideologia da criatividade. O mesmo não ocorre quando essa reacção é
associada a uma procura de relações consideradas como importantes para a construção ou
reforço de um poder, essas relações podendo sobrepor-se às relações afectivas ou dis-
tinguir-se entre si. Este tipo de associação encontra-se sobretudo nos meios que desen-
volvem uma estratégia de poder alicerçada na inovação social ou tecnológica.
Bem diferente é o comportamento de meios que visam antes de mais constituir
para si uma rede de relações de tipo instrumental e que aceitam, para tal, negligenciar
trocas mais pessoais. Este tipo de reacção, que pode levar a viver numa multiplicidade
de contactos, embora num grande isolamento afectivo, tem mais hipóteses de ser
encontrado nos meios com uma estratégia de mobilidade social ascensional, mas pode
também ser a actuação de alguns meios calculistas, onde apenas conta a dimensão
instrumental da relação.
Enquanto, pois, alguns conjugam as relações afectivas e as relações instrumentais
e outros acentuam umas ou outras, existem ainda alguns meios que são excluídos
desses vários tipos de relação e que, desde logo, vivem a vida urbanizada como lugar
de solidão, regido unicamente pela relação mercantil face à qual, aliás, só têm poucas
possibilidades. Este tipo de situação é por vezes apresentado como sendo o protótipo
da vida em meio urbano, o que se explica pelo facto de as famílias e pessoas a que diz
respeito constituírem a clientela privilegiada de intermediários sociais vários (os quais
se arriscam, aliás, desde logo a avaliar excessivamente a importância quantitativa
dessa mesma clientela).
A atitude adoptada face aos vários tipos de situações que acabam de ser evocadas
irá gerar reacções diferentes, nomeadamente no respeitante à dissociação das redes
profissional e extraprofissional e à atracção de toda a gama de relações intermédias
que podem ocorrer entre a relação íntima e a relação estritamente utilitária.

118
Assim, a dissociação das relações profissionais e extraprofissionais será certamente
tanto mais forte quanto a família adopta uma estratégia de autonomia, a partir da qual
trata de poder mover-se nos seus vários espaços de vida ao aceitarem entre si apenas
um mínimo de implicação recíproca. Muito pelo contrário, quanto mais uma família
for marcada por uma estratégia de poder, mais a associação — eventualmente selectiva
— entre o profissional e o extraprofissional ganhará importância e mais meios terceiros
que não a habitação familiar, nem o local de trabalho, serão procurados ao mesmo
tempo.
Quanto à atracção por toda a gama das relações intermédias, as quais não são nem
estritamente íntimas, nem estritamente utilitárias ou mercantis, aumenta certamente
também na medida em que há uma estratégia ou de promoção social, ou de influência;
assim, a valorização do centro urbano, com todas as possibilidades que oferece de
trocas aleatórias, aumenta quando há investimento na promoção ou no poder.
Estas várias combinações não deixam de ter incidência na maneira de valorizar
alguns espaços urbanos. Assim, em particular, a expectativa por um centro urbano que
seja outra coisa que não um centro comercial privilegiado ou um local de especta-
cularização recíproca será maior ou menor consoante se busca ou não desenvolver a
rede de relações e de troca de informações. Aqueles para os quais o centro urbano é
antes de mais um centro comercial adaptar-se-ão certamente melhor e mais depressa
à deslocação das múltiplas dimensões sociais tradicionais dos centros urbanos europeus,
e ficarão satisfeitos na medida em que reencontrarão centros comerciais periféricos,
de que apreciarão aliás a facilidade de acesso e de estacionamento. Espaços de substi-
tuição serão mais dificilmente encontrados por aqueles que procuravam essencialmente
no centro urbano uma dimensão de espectáculo e uma possibilidade de passeio num
ambiente simultaneamente comunicativo e anónimo. Por fim, se aqueles cujo objectivo
primeiro é a formação de relações ficam, também eles, diminuídos pelo desmantela-
mento do centro urbano, estão muitas vezes aptos a recriar lugares de encontros mais
ou menos equivalentes embora dispersos. Esta dispersão reduz-lhes, aliás, a abertura
relativamente à que o centro urbano proporcionava.
Importantes para percebermos a atitude face ao centro urbano e às transformações
que sofre, a diferenciação dos projectos e o valor concedido aos vários tipos de rela-
ções permitem também entender a diversidade de laços no bairro. Este último pode,
efectivamente, desempenhar um papel determinante na constituição de uma rede de
relações interpessoais de carácter familiar e com base estável e fundar o sentimento de
uma identidade colectiva, que permite diferenciar-se dos outros. É o que encontramos
frequentemente nos bairros populares, e por vezes nalguns bairros operários, que
constituem lugares regidos pela confiança a longo prazo e que, receptáculos da
memória colectiva, servem de base à percepção da diferença e da oposição. Tais bair-
ros serão, em contrapartida, muitas vezes lidos negativamente por fracções importantes
da classe operária, fracções atraídas mais por ambientes suburbanos onde a habitação
se torna o lugar prioritário de investimento afectivo e económico; isto resulta numa

119
estratégia de introversão, ligada à autonomização da habitação e da vida quotidiana
em geral, e contribui para diluir a consciência de uma pertença colectiva, favorecendo
um projecto de individuação e atomizando uma posição social. É, em contrapartida, o
contrário que se dá quando, em reacção à diminuição das solidariedades afectivas à
volta da família e da habitação, alguns querem revalorizar a significação das uni-
dades de vizinhança e do bairro enquanto lugar de vida relacional e festiva — sem que
isso, no entanto, resulte em desenvolver de novo uma consciência de classe comparável
àquilo que existia anteriormente. E enquanto alguns grupos investem deste modo quer
ao nível da habitação quer ao nível do bairro, acentuando a qualidade da relação inter-
pessoal, outros, sem excluir esta última, estão preocupados em constituir para si redes
selectivas e fechadas de relações, a partir das quais irão acelerar a sua promoção ou
irão alargar o campo do seu poder.
Assim, um idêntico contexto urbanizado pode contribuir para atomizar uma posi-
ção social enquanto multiplica os trunfos doutra posição na sua busca de poder e de
controlo.

b. Utilização de uma legitimidade cultural: valorização do privado

Vejamos em primeiro lugar qual o alcance da preferência concedida a espaços


marcados ou, pelo contrário, a espaços vistos como neutros.
De modo mais frequente outrora do que hoje, a identidade sócio-profissional pode
ser de tal modo valorizada que acaba por servir de referência explícita. Se é verdade
que ainda estamos acostumados a que este tipo de critério funcione, por exemplo no
caso dos médicos, nos quais, aliás, sabemos o quanto a bata branca assegura a capaci-
dade de distanciamento, ou no caso do engenheiro, que se esquece «distraidamente»
(inclusive nas férias) do seu capacete no banco de trás do carro (favorecendo assim
uma confusão com o operário, não viesse a concordância de vários critérios externos
muitas vezes operar a «triagem»); por outro lado, esse desejo de se designar assim
socio-profissionalmente perdeu muito da sua amplitude numa sociedade marcada pela
imagem dessa fracção da classe média que procura principalmente dotar-se dos signos
dos meios superiores, a que aspira pertencer. O mesmo não acontecia outrora, quando
o vestuário distinguia claramente o operário do empregado de escritório, e este último
do patrão e quando, quase sempre, cada um se orgulhava da pertença social própria.
Este orgulho levava, além disso, a procurar espaços conotados socialmente e, por
exemplo, a valorizar o facto de se comprar roupa numa loja com o letreiro «Confecções
operárias», a alimentação na «Cooperativa operária» e tomar um copo no «Café dos
Metalúrgicos»... O desejo de não-detecção social desvalorizou esses letreiros, subs-
tituídos por evocações da vida de lazeres, de viagens e do dinheiro: «Les Champs-
-Élysées» substituíram «A Mina» e «Le petit Nice» apagou o «Porion», testemunhando
a passagem de um orgulho do reconhecimento da diferença a uma vontade de parecer-

120
-se «como toda a gente». Esta mudança gerou uma atracção complementar por lugares
considerados como anónimos, tais como o centro urbano, os centros comerciais, nos
quais podemos pelo menos criar a ilusão da igualdade mesmo se este sentimento
apenas ilude quem a procura, ficando os outros sempre capazes de ver a diferença.
Este desejo de não-detecção social pode, além disso, ser acompanhado de um
desejo de não-detecção ideológica. Assim, em países como a Bélgica, a Suíça ou o
norte da França, em que os movimentos operários socialistas e cristãos haviam desen-
volvido toda uma rede de serviços e de equipamentos («Casa do povo» e «Círculos
católicos», cooperativas), o sucesso desses lugares ideologicamente marcados acabou
por desvanecer-se em benefício de espaços comerciais e de lazeres onde a clientela se
sente mais autónoma na medida em que o uso desses espaços não supõe a manifestação
de escolhas políticas ou ideológicas, mesmo se, de facto, são espaços privilegiados de
desenvolvimento publicitário ao serviço de interesses económicos.
Através desta valorização de espaços social e ideologicamente neutros, constitui-
-se uma promoção do indivíduo participante na massa e retomado em séries definidas
a partir das preferências de consumo. Assim se dilui a identidade colectiva, ao passo
que a exigência de diferença e de oposição se reorganiza segundo princípios novos.
Essa transformação ganha aliás tanto mais importância quanto essa valorização de
espaços neutros pode ser concomitante ao desenvolvimento de espaços altamente
conotados em prestígio. Assim, alguns lugares de férias podem tornar-se atraentes a
partir da «qualidade» dos primeiros utentes. Vê-se assim como a reivindicação iguali-
tária desemboca num processo de inveja-imitação tanto mais forte quanto a capacidade
de produzir prestígio é parcimoniosamente repartida...
Tendo assim mostrado sucintamente como se passa de uma situação que valoriza
as distinções marcadas social e ideologicamente a uma situação em que são os espaços
vistos como neutros que são privilegiados, iremos de seguida ver como a oposição
privado/público se traduz também ela ao nível do espaço.
Um espaço fica a ser visto como público quando é acessível a qualquer pessoa e,
eventualmente, em qualquer altura; é considerado como privado quando o acesso é
reservado a um grupo específico que o controla.
Para importantes fracções de população, os espaços públicos são valorizados
como sendo espaços neutros, social e ideologicamente, ao passo que o espaço privado
é visto como lugar de desenvolvimento de todas as distinções marcantes. Lugar de
acessibilidade geral, o espaço público é, desta forma, reapropriado na lógica do indiví-
duo-massa e das diferenças ligadas à série e aos consumos.
Por outro lado, determinada perspectiva democrática poderia considerar que o
público é o lugar privilegiado das coisas colectivas importantes enquanto o privado
seria o das coisas pessoais importantes e colectivas secundárias; contudo, o privado
pode tornar-se o lugar em que se tomam decisões importantes para a colectividade,
apesar do carácter fechado e relativamente secreto que implica. Mostra-se assim o
lugar a partir do qual se constituem os vários grupos que têm uma estratégia de

121
influência, e que negam assim a legitimidade dos controlos exteriores em nome do
respeito pela vida privada, sublinhado enquanto liberdade fundamental.
Mesmo se é comummente valorizado, o privado é portador, consoante as estratégias,
de significações diferentes. Lugar de retiro para uns, ele é para outros um trampolim
legítimo, e para outros ainda o próprio lugar de exercício do poder.
Se retomássemos aqui a significação sócio-económica da cidade, ligada ao desen-
volvimento de redes em que a transferência de informações e a constituição de novas
relações se operam segundo processos aleatórios, veríamos certamente que essa fun-
ção se cumpre amplamente a partir de espaços privados. Na cidade não urbanizada,
pelo menos ao nível da situação ideal-típica, havíamos sublinhado o laço existente
entre a função sócio-económica e a morfologia, ao insistirmos particularmente na
significação do centro, das praças públicas... Nessa altura, a função citadina exercia-
-se no contexto de alta visibilidade colectiva e em espaços com redes relativamente
abertas. É um ideal-tipo inverso que a cidade urbanizada propõe. A função sócio-
-económica ganha aí autonomia em relação a espaços designados e desenvolve-se em
lugares de encontro múltiplos e espacialmente dispersos, tendo frequentemente um
carácter de «clube» privado. A visibilidade social fica proporcionalmente reduzida e
as redes fecham-se, diminuindo a acessibilidade. E, como dissemos, o desenvolvimento
do que Mumford designa por «a cidade invisível»(S), entendendo com isso que as funções
sócio-económicas urbanas continuam a exercer-se apesar do facto de, como o deploram
muitas análises, a cidade, enquanto habitat compacto, estar a desaparecer.
A reapropriação dos bairros antigos e, nomeadamente, dos que estão situados na
cidade ou próximo dela, não resulta necessariamente em reinserir essas funções eco-
nómicas no quadro do habitat. Todavia, essas novas tendências são certamente o indi-
cador de uma questionação — pelo menos por algumas fracções sociais — de uma
certa matriz de apropriação do espaço. A este propósito, a inversão das conotações do
habitat antigo e do habitat novo é bastante significativa. Com efeito, no estádio de
exaltação da modernidade, o habitat antigo era facilmente visto como ultrapassado,
vetusto e como um obstáculo a que o homem do século XX criasse para si uma nova
escala espacial.
Actualmente, em contrapartida, começa-se a revalorizar esse habitat antigo no qual
se vê uma maneira de reencontrar as «qualidades de autenticidade» que permitirão o
renascimento da cidade.

2. ESCASSEZ DOS BENS E SELECÇÃO DOS PRIORITÁRIOS

As diferentes lógicas de acção que resultam em apropriações opostas ganham


tanto mais peso quanto nos encontramos num contexto estrutural em que há escassez

(5) Lewis MUMFORD, La cité à travers 1'histoire, Paris, Seuil, pp. 702-710.

122
relativa de bens: equipamentos, habitação,... Partindo das situações simplificadas, a
análise deve agora complexificar-se para integrar esse fenómeno de escassez e da
selecção de fins prioritários daí resultante. É evidente que esta análise se opera
segundo modalidades diversas — como o mostra a comparação das sociedades socia-
listas e das sociedades capitalistas — mas quaisquer que sejam os mecanismos, sem-
pre tal selecção desemboca em efeitos desigualitários. Trataremos, pois, aqui de ver o
laço existente entre estes efeitos e os dados estruturais(6).
Quando se dá crescimento quantitativo, a cidade urbanizada pode conhecer hiatos
no tempo entre a oferta e a procura. Assim, por exemplo, ao analisarem a instalação
e o desenvolvimento da siderurgia marítima em Dunquerque, Castells e Godard mos-
traram como, apesar de o volume de empregos trazido desta forma para essa região ser
muito importante, quase nada fora previsto para responder às necessidades de habitação
e em serviços da população assim drenada(7). De igual modo, todas as cidades novas
se tornam problemáticas na medida em que proporcionam certamente habitação, mas
raramente emprego, e em que os habitantes devem muitas vezes esperar anos antes de
disporem de lojas, escolas,... e inclusive serviços municipalizados, que lhes serão
necessários.
Põe-se assim a questão de saber se esses hiatos devem interpretar-se em termos de
contradições ou em termos de estrangulamentos. A resposta depende certamente da
perspectiva adoptada ao nível da percepção subjectiva. A não-concordância cronológica,
considerada em termos de contradição, constituirá um factor de consciencialização da
existência de elementos incompatíveis — o que remete para o sentido estrito da con-
tradição. O problema que, em caso de crescimento quantitativo, a disponibilização de
equipamentos e de serviços suficientes coloca parece-nos depender mais da escassez
de meios, que implica determinação de prioridades.
Semelhante problema tanto se põe na Europa de Leste como nos nossos países,
quando, por exemplo, há emergência de localizações industriais novas e quando o
orçamento disponível não permite realizar simultaneamente quer as próprias empresas
novas, quer a habitação e os serviços necessários às populações transplantadas pelas
necessidades de emprego. O problema da determinação de prioridades põe-se assim a
vários níveis. Por um lado, é às vezes possível construir simultaneamente os edifícios
industriais e a habitação e equipamentos necessários às populações que estarão neles
ocupadas, realizando uns e outros por fases; para além de a parcelarização da construção
de edifícios industriais nem sempre ser possível, há uma escolha a fazer entre a maxi-
mização da produção e, logo, do lucro o mais rapidamente possível e a preocupação
em permitir que os trabalhadores que têm de deixar a região ou a cidade onde viviam

(6) Edmond PRETECEILLE, «Social classes, collective consumption, urban segregation», in Society and
Space, vol. 9, 1986, pp. 145-154.
(7) Manuel CASTELLS e Francis GODARD, Monopolville: l'Entreprise, l'Etat et /' Urbain, Paris, Matin,
1974.

123
até então encontrem as condições de vida o mais normais possível, o mais rapidamente
possível perto do local de trabalho. Por outro lado, para realizar simultaneamente a
construção dos edifícios industriais e da habitação e serviços destinados ao pessoal, é
por vezes necessário escolher se se dará prioridade a estes últimos ou se, por exemplo,
se dedicará primeiramente o orçamento disponível a uma política de prestígio
(acolhimento, por exemplo, dos Jogos Olímpicos) ou ainda a uma modernização do
orçamento. Está-se diante de um problema de escolha global: dever-se-á dar prioridade
a algumas exigências do crescimento da produção ou às exigências dos utilizadores e
utentes? Este problema de escolha está presente em qualquer sociedade.
Face a tais problemas de escassez, como se apresentam para cada posição as pos-
sibilidades de realizar os projectos individuais? A questão é pertinente, pois se já des-
crevemos a cidade urbanizada enquanto lugar que privilegia a escolha individual,
torna-se claro a partir daí que ela pode ser, para alguns, o lugar por excelência da não-
-escolha, da imposição e da distribuição desordenada. Assim, quando há tensão no
mercado da habitação, torna-se impossível que cada um seja capaz de escolher a sua
habitação segundo critérios ligados ao seu projecto pessoal. Além disso, se a habitação
e serviços construídos forem insuficientes para responderem à totalidade da procura,
vários processos de selecção dos prioritários, reveladores de diferentes escolhas soci-
ais, irão operar-se. Deste modo, na sequência da penúria da habitação, a «designação»
dos prioritários faz-se, nos países de Leste, com referência a critérios de tipo merito-
crático, ao passo que, nos nossos países, é a capacidade de pagar que é determinante,
mesmo se, subsidiariamente, o poder político tenta compensar os efeitos de exclusão
que daí resultam para alguns.
Para muitos, o facto de encontrar uma habitação de preço relativamente abordável
será já uma grande satisfação, pela qual se consentirão, por exemplo, deslocações
profissionais desproporcionadas, não regidas pelo desejo de distanciamento entre o
local de trabalho e o lugar de residência. Esta escassez leva a efeitos opostos; alguns
conservam uma possibilidade de escolha ao passo que outros vêem multiplicarem-se
as imposições. A diferença resulta do domínio do recurso determinante na selecção.
Na sociedade capitalista, este é prioritariamente o dinheiro, ao passo que na sociedade
socialista são as formas múltiplas de implicação no campo político que desempenham
um papel preponderante. Num tal contexto de insegurança, pode inclusive ver-se o
desenvolvimento de um sistema de troca em que, mediante pequenos anúncios, por
exemplo, alguns casais se propõem trocar o seu apartamento situado a leste da cidade
por outro com qualidades mais ou menos análogas mas situado a oeste, para se apro-
ximarem do local de trabalho... Tais situações fazem com que a cidade já não apareça
como o lugar da escolha a não ser a uma minoria cada vez mais restrita da população:
a que dispõe de um rendimento nitidamente superior ao da procura média que rege o
mercado da habitação.
Bem diferente é o que acontece quando esse mercado da habitação é detido por
uma oferta superior à procura, e isto aos vários níveis desta última. Os termos da troca

124
invertem-se então e jogam a favor do utente, diminuindo proporcionalmente o lucro
e a autonomia de decisão dos que oferecem, os quais não só não conseguem encontrar
adquirentes a preço forte, como tampouco conseguem doravante vender uma coisa
qualquer como o fazem nos casos extremos em que o mercado está sob tensão. Assim,
enquanto há uma dezena de anos se vendia a preço de ouro na região situada a sul de
Bruxelas qualquer celeiro em ruínas com a designação muito vantajosa de «quintinha»,
vê-se actualmente multiplicarem-se as intenções de revenda dessas «quintinhas» dis-
pendiosamente restauradas e que se arrastam por muito tempo no mercado antes de
conseguirem comprador a preços relativamente baixos, já que a procura é actualmente
reduzida e se orienta para outros tipos de localizações e de construções. A este res-
peito, se se está em situação monopolística do ponto de vista da oferta, esta pode ali-
mentar determinado grau de escassez que lhe é favorável; a análise que acaba de ser
apresentada deveria ser completada com um olhar sobre a produção do espaço e sobre
os efeitos de exploração a ela ligados.
A interferência entre a lógica de apropriação e a lógica de produção que acaba de
ser evocada a propósito da habitação funciona da mesma maneira noutros domínios e,
por exemplo, em matéria de serviços. Com efeito, se houver escassez de cinemas ou
de teatros, os que desejarem assistir a um ou outro espectáculo serão forçados a
reservar os seus lugares com muita antecedência — o que reduz, quer para eles quer
para os outros as hipóteses de escolhas múltiplas e variáveis e o que permite aos
«produtores» subirem fortemente os preços, deixando espaço para o surgimento de
um «mercado negro».
O fenómeno da escassez põe também todo o problema da substituição de usos e
utentes. Assim, bairros em que residem populações de fracos rendimentos, mas para
as quais o bairro é o lugar exclusivo de relações sociais complexas, podem ver-se
bruscamente cobiçados por actividades ou populações que têm uma capacidade de
pagar tal que dispõem efectivamente de um poder de preempção. Particularmente num
contexto de mutação, isto resulta em que as populações de alguns bairros se sintam em
situação de incerteza crescente e de fragilidade face ao futuro, vivendo constantemente
sob a ameaça mais ou menos explícita de expropriação social. Essas populações são
aliás tanto mais vulneráveis quanto não são capazes de transformar em termos de
renda urbana as vantagens de que gozam no bairro em que residem, e quanto a modés-
tia dos alugueres e dos valores prediais aumenta o poder dos outros. Assim, como nota
Certeau(8), poder-se-iam opor grupos sociais que se apropriam da cidade na lógica de
um espaço doméstico e os que se apropriam dela na lógica de um espaço domesticado.
No primeiro caso, o espaço urbanizado é plenamente utilizado no sentido do projecto
que se tende a realizar mediante apropriações flexíveis e múltiplas do espaço. Em
contrapartida, no segundo caso, o espaço, e nomeadamente o espaço do bairro, surge

(8) Michel DE CERTEAU, L'invention du quotidien, Vol. I, Arts defaire, Paris, Union Générale d'Éditions,
Col. 10/18, 1980, pp. 175-230.

125
mais enquanto lugar de familiaridade mas cuja apropriação é precária na medida em
que outros poderiam interferir e, de algum modo, desapossar, forçando à mudança.
O que acaba de ser dito a propósito da habitação e dos serviços também pode ser
retomado no plano da circulação e dos meios de deslocação. Se os engarrafamentos nas
horas de ponta resultam para todos na subida do custo em dinheiro e em tempo da
mobilidade, não deixa, no entanto, de ser verdade que actualmente a organização do
espaço tal como se apresenta faz com que toda uma série de locais de trabalho, de
lugares de lazeres, de equipamentos e de serviços apenas sejam acessíveis àqueles que
fazem um uso diário do automóvel. Deste modo, o que é vivido em termos de aumento
de escolhas por parte daqueles que dispõem de um carro que lhes permite irem onde qui-
serem, quando quiserem, por onde quiserem (não existem autocolantes a afirmarem que
«o meu carro é a minha liberdade»?), será sentido por outros como uma exclusão, visto
que os transportes colectivos limitam uma escolha dos horários, dos trajectos e dos
destinos. Esta limitação ligada aos transportes colectivos não faz, aliás, senão aumentar,
na medida em que não somente eles se vão tornando mais raros, mas, pelo facto também
de a «liberdade» dos automobilistas se restringir à medida que se aproxima do centro da
aglomeração ou dos lugares fortemente concentrados em equipamentos, a tendência
destes para a dispersão se intensifica, indo assim contrariar a convergência espacial
requerida para um bom funcionamento dos transportes colectivos.
A escassez e as imposições ou as escolhas económicas de que derivam vêm, assim
explicar, no plano estrutural, a desigualdade e a diferença das apropriações possíveis
dos diversos recursos oferecidos pela cidade urbanizada. Contudo, o peso do estru-
tural não se faz apenas sentir dessa maneira; combinado com o cultural, interfere na
formação dos capitais (evocados anteriormente) para acentuar ainda mais as diferenças
e as desigualdades e para, desta forma, constituir certas posições em redes de influência
de fraca visibilidade social, enquanto outros valorizam reacções atomísticas.
De várias maneiras, a urbanização acaba por mostrar-se, pois, geradora de posições
desigualitárias que não podem nem simples nem essencialmente ler-se como se se ins-
crevessem na linha de uma acentuação das derivadas a partir das relações ligadas ao
meio de trabalho. Com efeito, a urbanização vem também, e talvez principalmente,
modificar o peso que ganha a experiência de trabalho na estruturação da experiência
social global, onde intervêm cada vez mais elementos tirados da implicação dos
agentes em espaços-tempos extraprofissionais, os quais conhecem muitas vezes evolu-
ções divergentes das registadas nos meios de trabalho. Assim, por exemplo, pode
verificar-se que enquanto estes últimos estão cada vez mais marcados pela grande
dimensão e pela crescente formalização, os meios extraprofissionais são cada vez
mais invadidos por instrumentos e objectos individualmente apropriáveis, estimulando
o desenvolvimento de práticas diversas em pequenos grupos e requerendo um mínimo
de articulação organizacional. Semelhante evolução divergente não pode deixar de ser
sentida na maneira como é travado e visto o conflito, e nos lugares em que surge.

126
3. CIDADE E EXPERIÊNCIA DO CONFLITO

O vínculo entre cidade e relação social tem sido até agora abordado de duas
maneiras. Por um lado, numa perspectiva cultural, puderam deduzir-se modos diversos
de apropriação da cidade a partir dos diferentes tipos de projectos e de estratégias e de
suas hipóteses desiguais de sobrevivência consoante os meios sociais. Por outro lado,
a aproximação estrutural permitiu analisar a inversão do campo dos possíveis que uma
mesma localização ou uma mesma combinatória espacial pode gerar.
Esses elementos culturais e estruturais constituem uma das determinantes das
modalidades de transacção entre grupos sociais, modalidades que iremos agora abordar
de forma mais explícita. Ao problema da escassez já evocado juntam-se procuras e
desejos de evolução que não são idênticos para todos e podem por vezes ser incom-
patíveis. Dado o sistema de interdependência, isto desemboca em desafios e em oposi-
ções em torno destes. A finalidade dos efeitos desigualitários será assim completada
pela análise da significação do conflito, opondo o que se passa na empresa ou no meio
laboral ao que se exprime na cidade, vista enquanto contexto englobante. Este processo
permitir-nos-á não somente definir melhor o que, a nosso ver, faz a cidade, mas ainda
discernir o que distingue as reacções que se exprimem no campo económico das que
surgem no campo político.
Dois modos de abordagem se mostram pertinentes para analisar os efeitos de
estrutura social gerados pela partilha de um mesmo espaço urbanizado por grupos
sociais diferentes. Ou nos prendemos à lógica que permite apropriações diferentes, o
que supõe uma compreensão dos «ethos de posição» e dos capitais que a cidade per-
mite organizar ou desorganizar; fazendo-o, salientamos como os actores são constituídos
nas suas possibilidades recíprocas de imposição. Ou então, considera-se a cidade em
si mesma, um contexto em que a interdependência associada a procuras diferentes se
torna o lugar de elaboração e de encenação de alguns conflitos; trata-se então de ver
a cidade como um «meio interno», i.e. enquanto território socialmente pertinente para
o problema examinado, território cuja composição determina as reacções recíprocas
dos elementos que o constituem.
Na linha deste segundo modo de abordagem — que é o que iremos seguir —, a
noção de meio ganha importância na medida em que se insiste na existência de um
meio interno, por oposição a um meio externo com o qual são, de facto, mantidas
algumas relações mas que não é estritamente constitutivo da identidade. Esta noção é
tanto mais importante quanto permite então ver a cidade como meio interno englobante
e distingui-la assim da empresa, que se pode considerar como sendo um meio interno
parcial, o qual permite investir de múltiplas formas no interior e no exterior. Com
efeito, a empresa é um meio no qual é possível sentir-se implicado mas para com o
qual, num contexto de urbanização que valoriza a desterritorialização das redes inter-
accionais e a dissociação espacial entre vida profissional e vida extraprofissional, se
procura um distanciamento, já não a considerando como o elemento indutor a partir do

127
qual se estruturam todos os espaços de vida e todas as redes relacionais. Os efeitos de
semelhante distanciamento irão, aliás, lembremo-lo, diferir de um grupo social para
outro e investir em sentido diverso nas suas potencialidades de consciência e de acção:
se a dissociação espacial local de trabalho/lugar de residência contribui para aumentar
a autonomia da vida extraprofissional dos trabalhadores (e nomeadamente para desen-
corajar muitas das veleidades de paternalismo), ela também investe num papel deses-
truturante na formação de uma consciência de classe e dificulta acções cuja pertinência
surgida nos locais de trabalho se enfraquece ou até parece ver-se contradita desde que
se sai deles; pode acontecer algo bem diferente noutros grupos sociais para os quais,
pelo contrário, o distanciamento do local de trabalho e do lugar de residência tem
hipóteses de favorecer a conexão de redes de relações profissionais fora do espaço de
trabalho e a constituição de um capital relacional de influência que beneficie de uma
reduzida visibilidade colectiva.
Este possível distanciamento — hoje cada vez mais valorizado — dos lugares de
trabalho e de residência não pode existir mutadis mutandis para a cidade, pois esta é
um meio englobante no interior do qual as pessoas se situam sem poderem recorrer a
procedimentos de dissociação espacial do mesmo tipo: é um território colectivo que
há que partilhar com outros. Irá, pois, pôr-se a questão de saber se se considera ou não
esta partilha como sendo equitativa e até se as pessoas se sentem incluídas na cidade
na medida em que o desejam. Se a partilha for considerada insatisfatória, este sentimento
tenderá a suscitar reivindicações diversas mas que, todas elas, visarão obter um acesso
considerado como mais equitativo a vários «bens» ou vantagens da cidade: acesso à
habitação, reivindicado quer no plano dos preços dos alugueres, das localizações...,
quer até directamente em termos de «direito à habitação» (não é esse, aliás, um dos
leitmotives dos «krakers», que, em particular nos Países Baixos, ocupam prédios
abandonados por proprietários privados ou públicos?); acesso aos equipamentos
comunitários cuja instalação é reivindicada num perímetro facilmente acessível; acesso
aos transportes colectivos para os quais se quer, porventura, uma revisão da distribuição
das linhas e das frequências.
Assim como pode ser objecto de reivindicações visando outra repartição das van-
tagens que proporciona, a cidade pode ser vivida também como um conjunto dema-
siado vasto no interior do qual as pessoas se sentem perdidas, estranhas. Longe, pois,
de gerar reivindicações activas, este sentimento arrisca-se a suscitar quer um fechamento
sobre si na solidão do anonimato, quer o investimento mais ou menos intenso num ter-
ritório reduzido de coexistência — unidade de vizinhança ou bairro —, investimento
que, se não se tornar o trampolim para uma tomada de consciência do facto de que este
território não pode em caso algum ser considerado enquanto totalidade autárquica,
se arriscará a levar a um acréscimo do não-domínio na medida em que esse territó-
rio pode ser definido noutra escala como um desafio importante de que há que apro-
priar-se.
Objecto de reivindicação, mundo alheio no interior do qual pessoas procuram a

128
constituição de um «refúgio» de solidariedade tanto mais ameaçado quanto não se
situam enquanto parceiros num jogo mais global, a cidade pode ainda participar de
uma definição de si em termos de dupla rejeição: é este frequentemente o caso das
populações das favelas que, rejeitadas do campo donde procedem e com que romperam,
desejariam encontrar-se integradas na cidade, sem terem, nisso, qualquer capacidade
de imposição; sentem-se periféricas em relação a esses dois espaços a partir dos quais
se definem ao apreendê-los como englobantes embora mutuamente exclusivos um
para com o outro. Se a cidade se distingue deste modo da empresa na medida em que
é um meio englobante no interior do qual as pessoas se situam sem disporem de meio
de distanciamento — é o lugar donde se fala e do qual se fala — diferencia-se dela
também de um outro modo importante. Com efeito, a empresa é orientada para um
objectivo preciso que, partindo de um instrumento comum, designa modalidades
específicas de interacção. Para além disso, apresenta-se como sendo uma entidade
visível e detectável, dotada de uma autoridade concreta e de um sistema explícito de
atribuição das iniciativas e de partilha do benefício; as oposições de interesses podem
nela ser imediatamente captáveis e uma posição de exterioridade pode ser tomada em
relação ao poder que a anima.
O mesmo não acontece, de modo algum, no caso da cidade. Esta é, com efeito, um
meio com objectivos difusos e os laços que unem os habitantes e os utentes não são
primeiramente laços de dependência interaccional, organizados com vista a uma
tarefa; trata-se antes de mais de laços de coexistência e de partilha de territórios
comuns a todos, como o centro urbano, ou específicos a uma ou outra população,
como os bairros de residência — partilha que põe o problema do acesso desigual a
espaços de vida tidos como importantes. Associada à experiência da inclusão ou
exclusão, esta desigualdade de acesso a territórios invejados constitui uma base a
partir da qual as pessoas se situam e se apreendem na sua relação com os outros,
percepção que remete para uma imagem de estratificação social muito mais que à de
um conflito radical entre posições sociais antagónicas: a questão do acesso aos vários
«recursos» da cidade (espaços, equipamentos,...) coloca-se efectivamente em termos
de mais ou de menos, o que pode levar ao desenvolvimento de um projecto que se
exprima em termos de homogeneização do espaço urbano que é a cidade (homo-
geneidade das habitações, distribuição «matemática» dos equipamentos e dos meios
de transporte, etc...). Claro está, esta percepção em termos de graus desiguais de
acesso e, logo, em termos de estratificação volta a aparecer também na empresa, mas,
nesta, a experiência do conflito permanece um elemento estruturante das trocas.
A partir daí, percebe-se que se possa constituir uma imagem idealizada da cidade,
levando a uma vontade de produzir um espaço social cuja homogeneidade e continui-
dade se quer reforçar diminuindo as diferenças constitutivas de desigualdades — quer
se trate do que diz respeito à qualidade das habitações ou ao desenvolvimento dos equi-
pamentos dos diferentes bairros, ou ainda no que toca às possibilidades de acesso aos
locais da cidade tidos por importantes, centro urbano ou espaços verdes, por exemplo.

129
Esta percepção primeira oculta muitas vezes a existência de actores sociais com
interesses divergentes e que são levados por lógicas de acção diferentes (quando não
contraditórias) das dos utentes. Deste modo, não se tornará evidente ver-se estes últi-
mos distanciar-se criticamente dos promotores imobiliários cuja preocupação essencial
não é responder às necessidades e às expectativas de uma determinada clientela, mas
antes produzir uma habitação correspondente a uma «faixa» (para usar o vocabulário
próprio) rentável do mercado imobiliário ou ainda preferir lançar no mercado superfícies
de escritórios em vez de espaços de habitação, sendo os primeiros mais rentáveis que
os segundos. Promotores imobiliários, investidores institucionais, grandes sociedades
de distribuição,... estes vários actores oligopolísticos apenas serão, com frequência,
vistos a desenvolver uma lógica antagónica na medida em que os habitantes e utentes
detectarem discontinuidades e hiatos quantitativos.
O mesmo não acontece de modo algum no que diz respeito ao poder municipal,
que se verá muitas vezes criticado e ao qual se censurará frequentemente o não asse-
gurar suficientemente a promoção de vantagens comuns de que cada um se acha no
direito de poder beneficiar. Todavia, se este poder é tão frequentemente contestado,
nunca é visto como adversário «total», como acontece com a figura do patrão no
quadro da empresa. Com efeito, na cidade, o poder está por todo o lado e em lado
nenhum: no hospital como na prisão, na escola como no jardim público... Assim
sendo, a contestação do poder municipal centrar-se-á muito mais em problemas de
gestão do que numa reivindicação de transformação social: trata-se de conseguir uma
melhor definição do «bem comum» que é a cidade e de assegurar uma melhor repar-
tição desse bem. A atitude para com o poder municipal é, pois, ambígua: evidentemente,
será contestado (e concerteza, aliás, sê-lo-á tanto mais quanto os seus detentores
momentâneos não pertencerem à fracção política a que se pertence) mas será antes de
mais objecto de reivindicações, pois é ele o responsável pelos bens e serviços de que
se desejaria beneficiar.
Por outro lado, tomando corpo numa armadura urbana, a cidade é o lugar de trans-
missão de uma dinâmica que a ultrapassa e que a define enquanto lugar de articulação
entre actores localizados e actores deslocalizados, tendo cada um o seu nível de com-
petência próprio. Neste quadro, para o poder local (que não se deve confundir com o
poder municipal, fundado no controlo do campo político), há que dominar as relações
e conflitos internos, e reduzir as intervenções exteriores, fazendo simultaneamente
convergir na cidade as vantagens financeiras e outras que actores exteriores a ela con-
trolam. Torna-se então interessante perguntar-se qual a configuração dos actores
portadores da dinâmica da cidade que, mediante a sua participação em vários campos
e a sua pertença a vários meios (câmara de comércio, sindicato de iniciativa, conselho
municipal...) dominam um capital relacional importante, susceptível de favorecer
múltiplas conexões simultaneamente no plano local e fora dele.
No quadro desses grandes desafios colectivos, a experiência da cidade, do ponto
de vista dos habitantes, tende a suscitar reivindicações de participação que se inscrevem

130
na linha de uma competição pela igualdade. Por outro lado, neste contexto, as dife-
renças e os efeitos desigualitários não são necessariamente no sentido da manutenção
dos conflitos, na medida em que as modalidades de composição e de uso do espaço
minimizam o peso desses conflitos nos lugares quotidianos de coexistência.

4. INTERACÇÕES E REGULAÇÃO DOS CONFLITOS

Se as diferenças entre cidade e empresa surgem logo que se salientem os processos


de implicação e de representação colectivas, surgem também quando se considera esses
dois meios em termos interaccionais. Com efeito, enquanto a unicidade do instrumento,
a especificidade e o carácter compulsivo da tarefa da empresa impõem uma interacção
contínua apesar dos conflitos e uma resolução rápida destes, na cidade, a ausência de
interacções impostas resulta — quando há uma certa disponibilidade de espaço — na
separação espacial dos elementos que poderiam estar em relações conflituais — e leva,
quando essa disponibilidade não existe, à procura de formas diversas de compromisso
de coexistência que permitem fazer com que o espaço quotidiano não seja um lugar de
tensões constantes. A esse respeito, iremos examinar como a questão se coloca a três
escalas diferentes.

a. A unidade de vizinhança

Ao nível da vizinhança, é a propensão para minimizar os conflitos que leva a


melhor. Esta tendência vai concretizar-se quer por um agrupamento de elementos
homogéneos, quer pela elaboração de amplos compromissos de coexistência; a primeira
solução é geralmente adoptada se existirem importantes espaços disponíveis, enquanto
a segunda irá prevalecer em caso de penúria ou de escassez de espaço. Em caso de
fracasso de uma e de outra dessas duas estratégias, irão multiplicar-se os «espaços-
-resíduos»: trata-se de espaços abandonados por todos aqueles que têm um mínimo de
possibilidades de se inserirem noutro espaço e que, para os outros, se tornam micro-
-universos em que os conflitos permanentes se vão teatralizando.

b. O bairro

A escala média pode combinar várias entidades relativamente homogéneas de


pequena escala, que encontrarão aí um lugar contínuo de aproximação e de confrontação,
em particular por ocasião do uso de equipamentos e de serviços variados. É a escala
do bairro, em torno da qual se desenvolve um certo sentimento de identidade e de
diferenciação para com outros bairros.
Para além dessa apropriação colectiva, compatível com uma relativa diversidade,
essa escala de vida requer a existência de um sentimento de segurança, avaliado

131
diversamente consoante os meios sociais. Assim, por exemplo, no meio popular, se irá
apreciar tudo quanto, no bairro, manifestar o interconhecimento dos habitantes: a
passagem frequente de pessoas conhecidas é normalmente sentida como um indicador
positivo de presença e como o garante de trocas potenciais, trocas cuja ocorrência se
irá, aliás, favorecer ao deixar entreaberta a porta para a rua e ao utilizar a própria rua
enquanto lugar de descanso e de relaxamento (com o primeiro raio de sol, tiram-se as
cadeiras de casa e fica-se a conversar com os vizinhos e os transeuntes e a «vigiar» os
estranhos ao bairro, os quais, neste contexto, são facilmente vistos como portadores de
uma potencial ameaça). O mesmo não se dá de modo algum em bairros onde residam
populações de classe superior, para as quais a rua está negativamente conotada e para
as quais os vizinhos são tanto mais apreciados quanto permanecerem relativamente
anónimos e não procurarem o contacto.
Quaisquer que sejam, assim, as modalidades por meio das quais é experimentado
o sentimento de segurança, a identidade associada ao bairro pode ver-se abalada pela
progressiva infiltração de pessoas que introduzem elementos heterogéneos num espaço
para onde as leva a sua mobilidade espacial individual. Esta heterogeneização será
acolhida de forma diferente consoante corresponder a um princípio de elevação social
ou de degradação social — o que, mais uma vez, sublinha o facto de a cidade favo-
recer uma percepção em termos de estratificação social. A análise dessas infiltrações
e sucessões dominantes foi, lembremo-lo, um dos temas centrais dos trabalhos da
Escola de Chicago.

c. O centro urbano

Se os bairros residenciais são deste modo tanto mais valorizados quanto os


habitantes partilham dos mesmos códigos de intimidade e de proximidade, e definem
da mesma maneira «o estranho», o mesmo não acontece no centro urbano, cujo
carácter vivo e atractivo está, entre outros factores, ligado ao facto de favorecer o con-
tacto com o estrangeiro, com o desconhecido, e de ser o lugar onde se espera a ocor-
rência sempre possível do acontecimento e do inesperado. Assim, quando nos colocamos
à escala grande, o ideal não parece ser a ausência de conflito. Com efeito, a cidade é
o lugar do debate e da encenação de pontos de vista mais ou menos opostos que
encontram no centro o seu lugar privilegiado de expressão. Não foi precisamente
Leibniz quem disse que «uma cidade onde a paz é o resultado da inércia dos cidadãos
merece o termo de solidão em vez do de cidade»?
Dizer assim que centro urbano é o lugar de confrontação não significa, contudo,
que o dia a dia esteja nele constituído por conflitos abertos permanentes, nem que os
conflitos que nele se vivem desorganizem toda a solidariedade interna. Isto supõe um
modo de vida particular de coexistência na distância, onde cada um dispõe de tempos
e de lugares privilegiados de apropriação legítima, oferecendo-se de algum modo ao
espectáculo uns dos outros. Isto tem tanto mais importância quanto o centro urbano se

132
define como lugar privilegiado de controlo efectivo e simbólico da vida colectiva; a
sua apropriação é deste modo um desafio de importância e o facto de estar excluído
desse desafio induz uma despossessão que pode suscitar fortes contestações.
Contudo, vimos que a urbanização pode levar ao abandono do centro urbano a
populações marginais e a uma dispersão espacial dos lugares de actividades e de
encontros importantes para a vida colectiva. O carácter centralizado da relação social
assim desmaterializado torna-se menos visível, o que, longe de o dissolver ou de o
enfraquecer, tende, pelo contrário, a reforçá-lo e a torná-lo vulnerável, na medida em
que o que é encenado na vida pública tende a desdobrar-se num jogo de bastidores que
escapa à transparência.
Assim, pois, a cidade não é na sua totalidade nem um lugar de tensão, nem um
lugar de segurança: é a composição de ambos os valores e o conhecimento dos lugares
onde cada um deles se exprime que faz a sua actividade e lhe dá o seu carácter vivo.
Assim, por exemplo, alguns bairros da cidade serão conhecidos como sendo de uma
ou doutra maneira lugares de insegurança, portadores de um certo grau de risco (ou de
representação de um risco): optar-se-á, portanto, por não passear neles ou, em certas
circunstâncias, por ir para lá em consciência, precisamente para sentir esse risco que,
sendo desde logo notório e antecipado, participa muitas vezes do lúdico(9).
A importância da composição, evocada a propósito dos ambientes globais,
manifesta-se também no que diz respeito às artes do espaço: uma cidade será tanto
mais apreciada quanto a sua arquitectura, a sua trama e a sua decoração fizerem alter-
nar sequências neutras e sequências de excitação multissensorial.
A experiência da cidade surge assim como sendo a da articulação entre actividades
e populações diversas — o que a distingue claramente de outras experiências, tais
como as da empresa, da escola ou ainda de um centro comercial. Esta especificidade
gera várias incidências nas ligações entre actores e posições sociais; mediante efeitos
de sentidos opostos, ela contribui para constituir possibilidades desiguais de participação
e de intervenção ao mesmo tempo que suscita um modo particular de experiência do
conflito. No entanto, com a urbanização, que favorece formas múltiplas de autonomia
individual, a percepção destas oposições arrisca-se a ficar diluída. É o laço entre esse
processo de individuação e o enfraquecimento da consciência de classe que irá ser o
tema da continuação da nossa análise dos efeitos de estrutura social.

(9) Jean RÉMY e Liliane VOYÉ, Ville, ordre et violence, op. cit., pp. 121-170.

133
5. DA CONSCIÊNCIA DE CLASSE À EMERGÊNCIA DE UMA SOCIEDADE
DE MASSA

Se se entender por consciência de classe a consciência que se tem de uma pertença


colectiva imposta pelas estruturas sociais e que conduz a oposições globais centradas
na reivindicação do controlo do poder, será forçoso constatar que a urbanização favo-
rece uma diluição deste sentimento, em benefício do desenvolvimento das massas
flutuantes, as quais hesitam entre as várias ofertas que lhes são propostas e aderem,
consoante os momentos, a uma ou outra de entre elas. A emergência da consciência
individual que daí deriva dificulta substancialmente a existência de representações
colectivas e a mobilização à volta de desafios globais. É este contexto que chamamos
«sociedade de massa» e que se estrutura em torno da ascensão do processo de indivi-
duação, processo já evocado mas cujo sentido iremos precisar aqui, sendo a nossa
hipótese que a urbanização contribui para lhe dar todo o campo de possibilidades e
toda a lógica.

a. Processo de individuação e vida social

Quando a elevação do nível de vida permite a um crescente número de casais


saírem de um comportamento de preocupação em que a questão é, na realidade, a da
sobrevivência, desenvolve-se um comportamento de escolha ligada à existência de um
rendimento com destino particularmente indeterminado. Economicamente, está-se
potencialmente em situação de escolha: será esse rendimento utilizado no uso não
imposto da substituição do carro, no envio dos filhos em estágio de línguas no estran-
geiro ou ainda num safari no Quénia, por exemplo? A escolha que será finalmente
feita assenta tanto numa vontade de afirmar a sua individualidade seguindo os gostos
e as preferencias pessoais (ocultando frequentemente aqui a incidência da publicidade
e a influência das escolhas operadas pelos outros!...) como na procura de um sentimento
de realização de si, em que a necessidade sentida como mais urgente é frequentemente
a que se situa no limite do possível. Está-se, pois, aqui numa situação radicalmente
diferente daquela, durante muito tempo dominante, em que os indivíduos eram regidos
por necessidades estáveis e incompressíveis, necessidades que, por outro lado, marca-
vam o seu estatuto: neste caso, o trabalho visa satisfazer essas necessidades, e um
aumento de recursos leva a uma redução do trabalho. O mesmo já não acontece hoje
em dia, em que a individuação leva à expressão de si através da expansão das
necessidades e do estímulo crescente do trabalho. Isto significa, já se vê, a incidência
nas possibilidades de reivindicação e de negociação, já que tudo leva a pedir mais
trabalho para obter mais recursos com vista a encontrar necessidades cujo crescimento
e diversidade incessantemente estimulados (e que, pelo menos em tempo de recessão,

134
se procura manter ao nível já alcançado — aceitando, desde logo, um certo «sobre-
-trabalho»). A individuação está deste modo ligada a uma degradação das possibilidades
reivindicadoras activas e a um reforço das potencialidades de reacções defensivas, as
quais funcionam em cheio quando se desenvolvem formas múltiplas de associações
encarregadas de promover o ponto de vista e os interesses específicos de cada cate-
goria social, sem se preocuparem com os outros(10).
Esta expressão de si, através das necessidades em expansão, associa-se, por outro
lado, à afirmação do indivíduo enquanto origem do sentido. Este último vai, pois,
adoptar estratégias que visem maximizar o domínio do seu projecto. É o que ilustra,
por exemplo, o caso dos jovens que, ao quererem distanciar-se da família e do bairro
de origem, procuram estabelecer-se num outro lugar, afirmando desta forma a sua
vontade de começarem eles próprios algo de novo, minimizando o peso de um pas-
sado pessoal e próximo. É no mesmo sentido também que convém interpretar o distan-
ciamento voluntário do lugar de trabalho e do lugar de residência: trata-se de autono-
mizar-se em relação às pertenças que poderiam tender a uma certa globalização
(sendo os vizinhos simultaneamente colegas de trabalho e amigos) e que são sentidas
como uns tantos riscos de entrave à livre escolha e à liberdade de movimento e de
comportamento. Mas, novamente, semelhante valorização da autonomia individual
contribui para a diluição das consciências colectivas e, nomeadamente, para a diluição
da consciência de classe.
Este processo vê-se reforçado por outro traço já evocado da sociedade urbanizada,
a reivindicação de igualdade individual, que resulta numa vontade de já não marcar a
todo o momento as pertenças sociais e ideológicas. Assim, o operário já não irá querer
ser reconhecido como tal pela sua linguagem ou vestuário; reivindicará o direito a
aparecer «como toda a gente e como qualquer pessoa» e, por vezes, preferirá para os
seus filhos escolas com conotação mais multiclassista ou inclusive mais burguesa,
esperando para eles desta «fricção quotidiana» com categorias sociais mais elevadas
uma aprendizagem dos comportamentos dessas categorias para, por sua vez, acederem
a elas mais facilmente.
Assim, quando um certo nível de vida se associa a uma diluição das pertenças
englobantes de visibilidade permanente, os graus de liberdade entre o comportamento
e as características de identificação objectiva (profissão, rendimento,...) tendem a
crescer. Deste modo se pode compreender por que razão enquanto os estudos tradicio-
nais sobre o modo de vida partiam dessas condições objectivas para delas fazerem o
bom pregador do comportamento, os estudos mais recentes identificam primeiro os
estilos de vida para examinarem de seguida como se distribuem eles com referência
às características objectivas dos indivíduos.

(10) Bernard FRANCQ e Didier LAPEYRONNIE, Les deux morts de la Wallonie Sidérurgique, Éd. Ciaoo,
LLN, 1990.

135
A publicidade vem, aliás, inserir-se neste processo que não poderia ter criado, mas
que tende a ampliar. A sua força é tanto maior quanto tem à sua frente clientes-
-compradores ou adquirentes de bens e de serviços que não dispõem dos meios que
lhes permitam julgar estes últimos em profundidade, i.e., nas suas qualidades «técnicas»,
e que, desde logo, se orientam pelos indícios exteriores e indirectos: marca, aparência,
associação a «vedetas». Estes elementos ganham tanto mais importância quanto todo
o objecto ou todo o serviço adquire sentido não com referência apenas ao seu valor de
uso, mas também enquanto se propõe e é visto como sinal de uma pertença social e de
um estilo de vida. E este valor sinal ganha tanto mais importância quanto o indivíduo,
sujeito de escolhas, emerge sob fundo de anonimato, resultado das estratégias de auto-
nomia que contribuem para desvalorizar os meios de interconhecimento onde a obser-
vação directa permite a toda a gente situar cada um com referência às suas características
de profissão ou de origem. A explosão das pertenças, anteriormente evocada, dá assim
aos signos toda a sua amplitude, permitindo nomeadamente a cada um propor de si
próprio uma leitura que julgue apresentar os indicadores do grupo a que se refere, em
vez de o encerrar na imagem de um grupo a que pertence mas que recusa aceitar.
Essa incapacidade crescente de julgar o produto com referência a uma análise
técnica e essa necessidade de um universo de signos identificatórios e projectivos
põem um problema de dinâmica social que vai permitir à publicidade assentar a sua
função social. Insistamos no facto de não ser a publicidade quem gerou o problema —
teria sido bem incapaz de o fazer —, apenas beneficia habilmente das características
do contexto — características que contribui então largamente a ampliar e a estender
a vários domínios.
Assim acontece, em particular, no campo político, na medida em que, como
vimos, se assiste ao desenvolvimento das massas flutuantes, as quais, de uma eleição
para outra, podem modificar o seu voto e dá-lo de cada vez a um partido diferente.
Estamos aqui bem longe da situação anterior, em que o voto era quase regido por uma
obediência hereditária a um ou outro partido. Claro, neste caso, a participação era
mais ou menos activa e existiam críticas internas, às vezes virulentas; mas quaisquer
que sejam os programas e quer estes conduzam ao êxito ou ao fracasso, mantinha-se
a confiança no mesmo partido de uma eleição para outra. Em contrapartida, quando as
pertenças colectivas se dissolvem, esse quase automatismo do voto diz cada vez
menos respeito aos eleitores, e um número crescente destes juntam-se e ampliam uma
massa flutuante outrora insignificante. Pouco aptos a julgar os diferentes partidos pelo
fundo (aptidão que obviamente não era maior anteriormente mas que não era o critério
de selecção requerido, já que a ligação a um partido se fundava em características
objectivas de pertença), esses eleitores — que, no entanto, são quem vai decidir do
resultado da votação! — irão, na sua maioria, referir-se a indicadores exteriores em
que parece assentar a sua segurança de juízo. Isto explica o novo estilo das campanhas
eleitorais, nas quais a encenação e a simpatia que os candidatos inspiram desempenham
um papel decisivo. Qualquer que seja a importância do factor publicitário neste

136
processo, seria todavia vão procurar nele a causa daquilo que se considera muitas
vezes como uma degradação dos costumes políticos: repitamos mais uma vez que aqui
como noutros campos a publicidade só é eficaz porque as características novas do
contexto lhe dão espaço de manobra.
Entre essas constantes solicitações de cada um mediante relações de clientela, no
sentido em que o entendem os estudos de mercado, e a solidão em que cada qual
mergulha na ascensão da individuação, irão contudo interferir progressivamente vários
pequenos grupos que, beneficiando da confiança dos seus membros, servirão de
referentes de selecção e de intermediário de reacção em campos específicos, sem, por
isso, se tornarem lugares de implicação, quer globais, quer exclusivos, quer definitivos;
a sua duração será aliás condicionada tanto pelo respeito que terão pela autonomia
individual dos seus membros como pela eficácia da ajuda que lhes proporcionarão em
situações em que os membros requerem a sua assistência. Alguns irão, obviamente,
reagir contra o alargamento deste processo de individuação, mas não poderão dispensar
toda a transacção com ele; mais ainda, enquanto um certo número desses opositores
se propõe manifestar a sua rejeição deste processo ao implicarem-se em «comunidades»
diversas, é forçoso constatar que estas se mostram como apenas uma etapa nalgumas
«carreiras de vida» individuais, esbarrando a implicação global que a comunidade
suporia com demasiados elementos de um contexto que tendem a fazê-la parecer aba-
fadora e alienante para a autonomia individual.
Assim, de vários modos, o processo de individuação contribuirá para colocar em
termos novos a relação entre consciência individual e consciência colectiva e tenderá a
tornar inoperantes vários procedimentos de orientação colectiva. Isto nem por isso
significa que se assiste ao desenvolvimento de uma situação de anomalia, já que moda-
lidades específicas de dinâmica social nova se desenvolvem e vêm eliminar esse risco.

b. Individuação e modalidades específicas de dinâmica social

A individuação implica o reconhecimento de modalidades de controlo social


diferentes daquelas que derivam de uma situação em que predominava a consciência
colectiva e põe assim indirectamente a questão da relação que essa sociedade de
massa mantém com a multidão e com as elites organizadas, pois que ela multiplica as
situações em que os efeitos colectivos resultam de uma soma de reacções individuais.
As teorias tocantes à multidão, vista sobretudo enquanto reagrupamento activo,
insistem de bom grado na diluição do sentimento de identidade individual numa iden-
tidade colectiva que induz um sentido do ultrapassar e que pode criar o acontecimento.
As teorias das elites, quanto a elas, apresentam estas como minorias organizadas,
opostas à massa maioritária mas inorganizada, incapaz desde logo de exprimir a sua
vontade e composta por pessoas politicamente passivas, mas também, num sentido
mais largo, inaptas para a iniciativa e para a inovação.

137
Face a estas perspectivas, queríamos perguntar-nos que estatuto pode ter a inter-
venção activa do homem comum, enquanto sujeito de interpretação e de estratégia.
Numa sociedade de massa, com efeito, a soma desses sujeitos «activos» induz processos
colectivos de retroacção, ligados nomeadamente a escolhas similares. O processo de
individuação será deste modo associado a efeitos de banalização e de homogeneização
tanto mais fortes quanto se associam a uma reivindicação igualitária.
A posição aqui adoptada surge em contraposição de uma atitude nostálgica que
predissesse o desaparecimento do social, quando consciência e pertença colectivas já
não têm o peso que eram supostas ter outrora. Afasta-se também da abordagem de
Durkheim, o qual apenas encara a dinâmica social enquanto laço com consciências
colectivas fortes.
Com efeito, se, como Durkheim, se pretende associar a dinâmica social às formas
de controlo que resultam dos sentimentos de pertença e de consciência colectiva, só se
pode constatar uma diluição, quando não uma morte do social. Para nós, contudo, as
novas formas que se apoiam na individuação (ou, para falarmos como Durkheim, no
primado da consciência individual) não desembocam apenas na inércia e proporcionam
ao indivíduo outros modos de reacção que aquele que consistiriam simplesmente para
ele em não responder. Elas geram um processo interactivo específico que não pode ser
discernido senão com referência a parâmetros diferentes dos que tornavam inteligível
a sociedade onde predominava a consciência colectiva.
Após termos indicado alguns elementos indicadores da diluição do social, é esta
especificidade que procuraremos captar, antes de nos interrogarmos acerca da tensão
dialéctica existente entre consciência individual e consciência colectiva. Assim sendo,
perguntar-nos-emos se a afirmação actual muito exclusiva de um dos dois pólos — a
saber, o pólo consciência individual—não será anunciadora de um ponto de reviravolta
que não estaria, claro, marcado por um regresso a consciências colectivas que carac-
terizaram o passado (como a nação ou a classe social), mas veria a emergência de
novas consciências, as quais, embora continuando a afirmar a irrefutabilidade da
consciência individual, releria esta última em moldes em que algumas dimensões
colectivas estariam revalorizadas.
Diluição do social, dissemos nós. Muitos aspectos deste processo já foram evocados,
mas queríamos aqui insistir mais particularmente nalguns pontos.
É antes de mais incontestável que esse processo de individuação permite a mul-
tiplicação, em numerosos domínios, de decisões individuais que, quando vão no
mesmo sentido, provocam fenómenos colectivos que podem ser importantes e arrastar
efeitos não radicalmente previstos nem previsíveis. O poder político, em particular,
encontra-se desde logo muitas vezes confrontado com a situação, que não domina
nem directa nem completamente. Um exemplo pode ilustrar este propósito. Pode,
concerteza, mostrar-se que actualmente ainda os discursos políticos que preconizam a
prioridade que é necessário dar aos transportes colectivos nem sempre são — longe
disso — acompanhados das medidas decisivas que iriam nesse sentido. No entanto,

138
seria por demais unilateral atribuir apenas a esta carência a total responsabilidade da
extensão do parque imobiliário e da intensificação do uso do automóvel; é com efeito
evidente que, entre as pessoas, uma larga parte da população está pouco disposta a
limitar o uso que faz do automóvel, cada um achando boas razões para justificar esse
mesmo uso no seu caso próprio — semelhante reacção não está aliás ausente naqueles
que criticam os poucos esforços feitos no plano político para aumentar a atracção dos
transportes colectivos. Assim, escolhas individuais poderão interferir com projectos
políticos e vir tanto mais facilmente inflectir estes últimos quanto, por um lado, esses
projectos estão mal assentes e quanto, por outro lado, o político, preocupado com
repercussões eleitorais das suas decisões, procura não ir muito contra preferências da
«base», preferências aliás estimuladas por todo um contexto.
A este primeiro aspecto, acresce outro, ligado aos modos de comunicação exis-
tentes. A sociedade actual, que qualificámos de «sociedade de massa», caracteriza-se
também pela perda das mediações através das quais os poderes difundiam, outrora, as
suas propostas e decisões e através das quais eram informados das reacções e das sen-
sibilidades da base. A ampliação das comunicações à distância desenvolve, com
efeito, uma comunicação cega entre emissores e receptores; a observação e a confron-
tação directas recíprocas estão cada vez mais ausentes e os lugares anteriormente por-
tadores de identidade colectiva desapareceram progressivamente. Pensamos aqui em
particular na fábrica, que, enquanto lugar de trabalho colectivo em condições englo-
bantes similares, desempenhou um papel decisivo na emergência da consciência
operária, simultaneamente ao nível das representações a que está associada e no plano
da gestação e do pôr em marcha das acções reivindicativas.
A diluição das representações colectivas e dos lugares a partir dos quais se for-
javam as identidades (diluição que a telemática tenderá sem dúvida a acentuar ainda
mais) leva com frequência, para além disso, o poder político a perceber com maior ou
menor consciência «a massa» como movida por movimentos irracionais e aleatórios;
ele tende, desde logo, a interpretar as dificuldades que tem em comunicar nesse con-
texto, mediante uma leitura dessa massa em termos de força cega que não sabe o que
quer, que muda incessantemente de opinião mas que, no entanto, tem peso. Arrisca-
-se deste modo a ser tentado a seduzi-la por argumentos superficiais que dependem
antes de mais do espectáculo, e, assim, a vir a «perder a sua alma».
Não subscrevemos este tipo de leitura. Com efeito, parece-nos que a diminuição do
peso de consciências colectivas englobantes não desemboca nem automática nem
exclusivamente em criar situações anómicas; pelo contrário, mediações novas vão-se
forjando. Retomemos, para ilustrarmos este ponto, o exemplo do político. Enquanto
anteriormente, como o lembrámos, as adesões políticas eram guiadas por pertenças
sociais globais que, efectivamente, excluíam a escolha, hoje são as relações de
clientelismo que dominam e é um novo paradigma que urge seguir para pensar doravante
as relações entre a oferta e a procura. Neste paradigma, pode afirmar-se que a iniciativa
não é nem da procura, como na hipótese de uma economia clássica, nem da oferta,

139
como o afirma uma certa crítica social da sociedade capitalista. A relação recíproca
entre ambas faz-se segundo o modo de uma negociação implícita e difusa que desig-
naremos com o termo de transacção, querendo significar com isto que há que ter em
conta a relativa autonomia de interpretação de base, a sua capacidade de estratégia e as
suas possibilidades de retroacção, assim como a força de imposição do poder e das
várias sensibilidades e preocupações que compõem esse mesmo poder.
Uma outra questão surge ainda. Podemos ainda perguntar-nos em que medida o
processo de individuação resulta em multiplicar as reacções activas e em desenvolver
uma espécie de mito em torno da ideia de criatividade individual. Distanciando-nos
deste modo da hipótese behaviorista que tende a ver na atitude do indivíduo apenas
uma resposta a um estímulo, urge então perguntar-nos como a sociedade de massa
favorece no indivíduo o desenvolvimento de uma capacidade própria de interpretar
várias situações e de elaborar estratégias. Esta capacidade supõe um certo distancia-
mento de toda a forma de implicação social; supõe também que renunciemos a ler as
solidariedades e oposições sociais como organizadas à volta de dois pólos com
características complexas, dissociando radical e globalmente «os bons e os maus» e
que as substituamos por uma leitura mais matizada, na qual «nunca nada é ou total-
mente bom, ou totalmente mau». Semelhante distanciamento crítico, ao obstacularizar
tanto uma identificação total como uma rejeição total, favorece incontestavelmente a
emergência de um projecto individual, fabricado a partir de empréstimos feitos a
vários lados e que encontra a sua coerência nele mesmo, fora de adesões que poderíamos
qualificar de «quase naturais» na medida em que parecem automaticamente ligadas a
pertenças definidas como globais, nomeadamente às classes sociais. Enquanto a
consciência destas classes sociais se enfraquece, alguns — como Michel Maffesoli(I1)
— insistem na importância daquilo a que chamam «o ethos popular», no qual vêem,
levada por uma forte vontade de viver, a expressão de uma capacidade de se dar com
toda a gente e de actuar nos interstícios numerosos, deixados por tudo quanto é orga-
nizado, para fazer passar modos de vida renovados e, pouco a pouco, tecer novos
desafios. Esta capacidade, que se desenvolve na base da interpretação individual e, a
partir dela, do espírito de iniciativa, impõe ao poder a invenção de novas mediações,
tendo em conta as conjunturas sócio-afectivas novas (conjunturas que visam, por
exemplo, reflectir os estudos de mercado). Seja como for, este fenómeno vem modificar
as zonas de consenso e contribui para multiplicar relações de clientela que afectam
todos os domínios da vida social. Contudo, permanece colocada uma questão: enquanto
a oferta se estrutura em oligopólio com vista a encontrar melhor uma procura doravante
mais flutuante e mais deslocada, como poderá esta última sair de uma situação ato-
mística que a penaliza, debilitando-a e fragilizando-a?
A análise em termos de transacção social, que nos parece particularmente pertinente

(11) Michel MAFFESOLI, A L'ombre de Dionysos, Paris, Librairie des Méridiens, 1982.

140
para compreendermos a situação actual, deveria completar-se com a referência a um
outro paradigma: o do teatro, tal como é utilizado por Goffman(12).
Este autor, com efeito, insiste na importância da dualidade palco/bastidores na
vida social: enquanto o palco é o lugar de representação face a um público, supondo
rituais de apresentação de si em relações de competição e de conflito, os bastidores
apresentam a possibilidade de uma distância para com o papel, distância essa que
permite evitar deixar-se armadilhar pela representação. Assim, enquanto os palcos se
multiplicam na vida social, os bastidores devem seguir nela o mesmo crescimento,
pois que da sua existência depende a hipótese de não se ser apanhado na armadilha do
espectáculo. A analogia, que funciona em numerosos domínios, adquire um alcance
particularmente interessante para o nosso tema sobre o político. Com efeito, aqui, a
plausibilidade e a credibilidade da mensagem assentarão tanto mais largamente nas
apresentações de si quanto nos encontrarmos num mercado não informado, i.e. onde
o público não tem a possibilidade de julgar do fundo e apenas pode valer-se daquilo
que as encenações lhe propõem.
Ainda com referência a esse mesmo paradigma, seria útil ver como a capacidade
de mobilizar relações e informações pode hoje ser tanto maior quanto se dispõe de
lugares privados de fraca visibilidade social, lugares a partir dos quais, contudo, se
estruturam redes complexas de pessoas pertencentes a meios diferentes; se não fosse
talvez hábil mostrar essas pessoas em conivência umas com as outras, a possibilidade
que têm de se encontrarem e, deste modo, de negociarem «nos bastidores», localiza
frequentemente o jogo político fora dos limites onde é explicitamente previsto, o que
torna o seu funcionamento ainda mais opaco. E esta opacidade será tanto maior
quanto, logo que o jogo entrou no palco, o público em causa fica ele próprio menos
apto para utilizar bastidores e para suspeitar da importância que estes últimos ganham
noutros. E, pois, evidente que se volta a encontrar assim todo o peso das posições
sociais e toda a perspectiva dos efeitos opostos que pode, em função delas, gerar a
multiplicação dos bastidores.
Mas não se pode tampouco negligenciar o facto de, ao mesmo tempo aliás, o
público por vezes definir, conscientemente ou não, novos desafios em que se possa
investir, e isso sem referência, pelo menos imediata, ao político entendido sensu stricto.
E nesse sentido, por exemplo, que interpretaríamos a emergência dos «verdes» e as
várias lutas que travam quer contra a instalação de centrais nucleares, contra as chuvas
ácidas ou ainda contra a extensão de um aeroporto ou de uma rede rodoviária, exten-
são pela qual seria necessário sacrificar parte da floresta. Se, de seguida, algumas frac-
ções de semelhante movimento procuram inscrever-se politicamente, é a maior parte
das vezes contra a sua tendência dominante. Mas não se pode negar que tais movi-
mentos, partidos da base, tenham imposto à política uma tomada de consideração de

(12) Erving GOFFMAN, La mise en scène de la vie quotidienne, Paris, Éd. de Minuit, 1973.

141
tais problemas, mostrando assim que projectos individuais, levados por uma mesma
sensibilidade, embora transversais em relação às pertenças globais tradicionais, e
nomeadamente às classes, conseguem impor-se ao político organizado, ao exercer
desta forma um modo de controlo colectivo eficaz.
Assim, a compreensão daquilo que faz a dinâmica de uma sociedade baseada no
primado da consciência individual não impede que nos possamos interrogar acerca da
tensão dialéctica existente entre consciência individual e consciência colectiva. Pode-
mos, aliás, perguntar-nos a esse propósito se a afirmação demasiado exclusiva de um
dos pólos não anunciará um momento de viragem dialéctica(13). A emergência de
consciências individuais pode valorizar uma criatividade individual em detrimento de
uma vontade de intervenção colectiva; pode também resultar desse facto um senti-
mento de insegurança que deriva de um «cada um por si». Além do mais, tal sociedade
pode ser muito fragilizada a partir do momento em que um indivíduo ou um grupo não
respeite as regras de coexistência, como bem o mostrou a guerrilha urbana no início
dos anos 60 nos E.U.A. e como procura ainda utilizá-lo o terrorismo internacional.
Assim, o desrespeito por alguns dos instrumentos individuais e colectivos dificulta
bastante a sua defesa apenas por meio de um mero controlo e protecção policial... E
o que faz temer a Sennett(14) que uma sobrevalorização do indivíduo e inclusive das
comunidades de base se revele destruidora do social... na medida em que exclui qual-
quer outra dimensão e em que muitos dos problemas não podem ser geridos pelas ins-
tituições que estavam tradicionalmente encarregados delas.
Uma viragem dialéctica pode desde logo surgir e associar-se a uma inversão da
relação entre consciência individual e consciência colectiva: passaríamos então de
uma situação em que as consciências individuais ganham forma com fundo de cons-
ciência colectiva, para uma situação oposta, em que o fundo é substituído pelo reforço
das consciências individuais, sobre o qual as consciências colectivas acabam por
ganhar forma.
Não será nesse sentido, por exemplo, que se poderia tentar interpretar algumas
iniciativas actuais que, embora valorizando os vários papéis de empreendedor indi-
vidual (no sentido de Schumpeter) e a sua capacidade inventiva, introduzem no seu
projecto uma dimensão colectiva que dá lugar ao social e ao cultural em nome de uma
responsabilidade política global?
Mas talvez existam dois perigosos obstáculos que se oponham à emergência de
um contexto em que o colectivo, sob formas novas, retomaria de pleno direito um
lugar signifivativo: o obstáculo daquilo que facilmente designaríamos por opção popu-
lista, assentando na ideia que basta fazer com que o povo fale e ouvi-lo para saber o
que há a fazer; arriscamo-nos, deste modo, a deslizar para uma reprodução de modelos-
-padrões (na medida em que, o contexto anterior precisamente, muito abafou

(13) S. LUPASCO, L'univers psychique, Paris, Éd. Denoel-Gonthier, 1979.


(14) Richard SENNETT, La communauté destructrice. Au-delà de la crise, Paris, Éd. du Seuil, 1976.

142
amplamente esse direito à palavra e em que «o povo», como já o repetimos, é geral-
mente um mercado não informado) e, por outro lado, a remeter-nos para a voz da
maioria quando muitas vezes são as minorias que são portadoras de novas visões; e o
obstáculo do tecnocratismo, por outro lado, pois este assenta em boa parte na ilusão
de um pensamento racional infalível enquanto, à força de fragmentar os problemas,
deixa escapar a própria essência destes.
Em lugar de tentarmos evitar este duplo obstáculo mediante uma saturação de
informação em que o objectivo acaba por não ser já a informação mas a atracção que
se consegue pelo sobreinvestimento na sedução, é para uma modificação da cons-
ciência possível que, a exemplo de Goldmann(15), pensamos que convém encaminharmo-
-nos; esta última suporia uma aprendizagem alargada à utilização dos técnicos, rom-
pendo a relação de dependência existente para com eles e substituindo-a por uma
capacidade de utilizar a competência desses mesmos técnicos de forma crítica, activa
e personalizada. Deste modo, poderíamos certamente orientar-nos para novas formas
de democracia que estariam em ruptura com as representações das que, inventadas no
século XVIII, se generalizaram no século XIX.

CONCLUSÃO

Ao introduzir a mobilidade na vida quotidiana, a urbanização produz um novo


modo de espacialização na vida social. O espaço social surge desde logo não espe-
cificamente ligado ao exercício dos vários modos de actividades, mas antes à maneira
como estas se compõem em diferentes escalas(16). Essa composição apareceu-nos como
tendo uma incidência nos modos de controlo social e na maneira como se constituem
posições desigualitárias e as modalidades de transacção que intervêm entre si.
A urbanização aumenta, para além disso, os graus de liberdade existentes entre a
cidade descrita em termos de morfologia do habitat e a cidade vista enquanto complexo
de unidades que asseguram modos de coordenação colectiva. Favorece, por outro
lado, um processo de individuação, ao associar-se com outros factores que actuam
no mesmo sentido, tais como o desenvolvimento de uma ideologia igualitária ou ainda
a multiplicação dos bens individualmente apropriáveis. Essa individuação da vida
social colabora, contudo, com imposições alargadas de interdependência e de socia-
lização — o que talvez seja uma das maiores contradições geradas pelo processo de
urbanização. A partir daí, o par criatividade individual/controlo colectivo torna-se

(15) Luden GOLDMANN, «Épistémologie de la sociologie», in: Jean PIAGET et al., Logique et
connaissance scientifique, Paris, Gallimard, Encyclopédie de la Plêiade, Vol. XXII, pp. 998-1018.
(16) «La Cite Beige d'aujourd'hui, quel devenir?», Bulletin Spécial du Crédit Communal de Belgique, n s
154, Out. 1985.

143
uma chave de análise na medida em que, consoante as posições sociais, o investimento
se faz da maneira privilegiada num dos pólos ou, pelo contrário, na sua composição.
Por outro lado, a urbanização aumenta a autonomia respectiva da morfologia, do
sócio-económico e do sócio-afectivo; ela permite dissociar os efeitos de cada um
desses aspectos e pode mostrar-se estimulante para o sócio-afectivo — e inversamente;
isto supõe, pois, que sejam elaboradas modalidades autónomas de gestão desses
vários aspectos.

144
SECÇÃO I I

O R U R A L

E M VIAS DE URBANIZAÇÃO
Tal como o fizemos no caso da cidade, a nossa análise do rural fundamenta-se em
situações-tipo e não em situações modais. Trata-se com efeito, para nós, de salientar
as lógicas sociais que operam no quadro de situações que apresentem várias carac-
terísticas específicas, dadas como pertinentes. É, pois, partindo deste pressuposto que
vamos examinar de que forma a urbanização afecta o rural(1).
Em situação não urbanizada, a cidade e a aldeia são dois territórios com modalidades
próprias de funcionamento. Enquanto a aldeia é centrífuga e multiplica os mecanismos
de distanciamento para com a cidade e outras aldeias, ao fazer da não-transparência
um elemento primordial da sua força, a cidade, por seu lado, é centrípeta: quer-se o
lugar de relacionamento e de estruturação dos diferentes campos, o que a leva a procu-
rar estender o seu controlo sobre o exterior exterior — esse de que, aliás, necessita
para se apropriar dos bens necessários à sua existência.
A urbanização irá aumentar as funções da cidade e, em coexistência com a indus-
trialização, irá complexificar os campos, reduzindo simultaneamente as sobreposições
territoriais; assim, as funções desenvolver-se-ão e, ao mesmo tempo, dispersar-se-ão
espacialmente; isto levará aliás Mumford a falar em «Invisible City», em «cidade
invisível»(2).

(1) Numerosas publicações foram nestes últimos tempos publicadas acerca das mudanças no mundo
rural. Nomeadamente: Tiphaine BARTHELEMY e Florence WEBER (eds.), Les Campagnes à livre ouvert.
Regards sur la France rurale des années trente, Paris, Presses de 1'École Normale Supérieure, Ed. de 1'Ecole
des Hautes Études en Sciences Sociales, 1989.
Daniel BODSON (ed.), Sociologie rurale. Sociologie du rural?, Recherch.es Sociologiques, Louvain-la-
-Neuve, Vol. XX, nQ 3, 1989.
Pascal DELFOSSE, C'est beaucoup changé dedans le temps. Ruralité et transition, Bruxelles, Ed. De
Boeck, 1988.
Bernard KAYSER, Les Sciences Sociales face au monde rural. Méthodes et Moyens, Toulouse, Presses
Universitaires du Mirail, Amphi 7, Sociologie, 1989.
Bernard KAYSER, La renaissance rurale. Sociologie des campagnes du monde occidental, Paris, A. Colin,
Collection U. Sociologie, 1990. Catherine MOUGENOT e Marc MORMONT, L'invention du rural, Bruxelles,
Éd. Ouvrières, 1988.
(2) Lewis MUMFORD, op. cit., pp. 702-710.

147
O campo, por seu lado, também se verá transformado pela conjunção dos efeitos
da urbanização e da industrialização.
Irá, primeiro, conhecer uma reestruturação drástica da actividade agrícola que,
então, o organizava tanto estrutural (a terra, instrumento de trabalho) como culturalmente
(a aldeia base do cultural e da integração pessoal). Esta reestruturação traduz-se de
uma forma dupla. Por um lado, há diminuição radical do número de agricultores e da
percentagem de activos ocupados na agricultura. Por outro lado, em consequência do
desenvolvimento da mecanização e da introdução maciça de adubos químicos e de
pesticidas, a produtividade por hectare e per capita aumenta em enormes proporções;
como constata Fourastié(3), o número de pessoas ocupadas na agricultura não garante
a capacidade de se alimentarem: assim, com 70% de activos ocupados na agricultura,
a índia continua à beira da fome endémica, ao passo que uma agricultura que ocupa
10% dos activos permite aos Estados Unidos exportarem produtos alimentares em
abundância. Contudo, se a diminuição dos activos ocupados na agricultura está longe
de significar uma redução da produção, acarreta outros efeitos, em particular uma
marginalização da parte do rendimento nacional que os agricultores representam e
uma perda do seu poder na dinâmica geral!
Culturalmente também, o campo transformou-se na sequência da difusão da moder-
nidade, i.e. da racionalização (a qual especifica os objectivos e particulariza os meios a
empregar para alcançar cada um deles) e da individuação (o indivíduo está doravante no
centro do sentido; é suposto ter o seu projecto próprio, afastado que está das obediências
tradicionais globais, definitivas e incondicionais). Simultaneamente e em relação com
estas componentes, a modernidade introduziu uma inversão da relação com o tempo:
doravante, a preocupação já não consiste em fazer com que o hoje seja fiel ao ontem e
que o amanhã se conforme ao hoje; trata-se, pelo contrário, de tudo accionar para que o
amanhã traga mais que o hoje. A ideia de progresso, ligada ao sentimento de domínio
crescente do homem, gera também uma abertura às mudanças de todos os tipos que,
anteriormente automaticamente temidas, são doravante consideradas como dignas de
se experimentarem, quando não se trata de as adoptar logo à partida. E a tradição,
outrora sinal de autenticidade, tende a tornar-se indicador de rigidez e de atraso.
Neste processo de transformação, a cidade surge como o referente primeiro, o
lugar por excelência onde a modernidade exibe os seus efeitos e o faz com amplitude.
Lugar de trabalho e de saber, lugar de riqueza e de poder, a cidade torna-se o modelo
a imitar. E a partir da sua imagem que a remodelação do campo é pensada, julgada
necessária; é a partir do seu modo de vida e de trabalho que se elaboram as reivindi-
cações, por exemplo, em matéria de equipamentos e de serviços ou ainda em termos
de horário de trabalho. É para ela que se precipitam todos quantos se sentem abafados
pelo interconhecimento da aldeia e partem deste modo para a cidade, onde pensam

(3) Jean FOURASTIE, Le grand espoir du XXe siecle, Paris, Gallimard, Collection Idees, n2 20, 1962.
Essai de morale prospective, Paris, Gonthier, 1966.

148
encontrar um campo aberto de possibilidades e de oportunidades. É novamente para
ela que, nos países do Terceiro Mundo, convergem todos esses rurais que, atraídos
pelo seu brilho, irão sobrepovoar ainda mais bairros de lata e favelas que uma pro-
funda subindustrialização não consegue esvaziar.
Um duplo reparo deve, contudo, ser feito aqui. Primeiro, é certo que a mudança
não se opera logo de entrada e que a leitura da cidade enquanto modelo de referência
supõe a desconstrução pelo menos parcial da imagem anterior, a qual via o campo
provavelmente enquanto tecnicamente inferior à cidade, mas sobretudo enquanto
moralmente superior a ela. Além disso, tal mudança não intervém nem ao mesmo
ritmo, nem do mesmo modo em todo o campo: sequências diferentes podem ser
observadas. Assim, algumas regiões rurais irão multiplicar os mecanismos de rejeição
e manter de várias maneiras a marginalização dos citadinos que as frequentam; essas
mesmas regiões talvez possam, nalguns casos, aparecer como lugares de resistência
efectiva e simbólica. Outras regiões, em contrapartida, esforçar-se-ão por abandonar
tudo quanto lembrar nelas o carácter rural, ao passo que outras ainda se mostrarão
preocupadas em integrar, tanto no seu modo de vida como na sua materialidade,
elementos de modernidade, embora velando pela preservação da sua identidade rural
e das especificidades distintas desta. Voltaremos a tratar essas várias modalidades de
encontro do rural com a modernidade através da técnica do ideal-tipo.
Por outro lado, à medida que a modernidade se vê criticada, como hoje sucede,
o campo torna-se uma espécie de fortaleza contra os aspectos julgados negativos desta
— de tal modo que citadinos procurarão nele «uma autenticidade» que julgam que a
cidade não tem capacidade de lhes proporcionar. Esta busca é, apesar disso, por sua
vez, ambígua, visto que o campo em que pensam esses citadinos se torna com fre-
quência um subproduto de sua própria modernidade — inscrevendo-se na dimensão
lúdica desta — mais do que é valorizado pela sua realidade própria; em vez de
«reserva de índios», o campo apenas é então satisfatório se escapar à modernidade,
sendo-lhe censurado qualquer desenvolvimento.
É a partir da materialidade que iremos desenvolver de algum modo esta pro-
blemática. Interrogamo-nos sobre a questão de saber quais os problemas que surgem
na aldeia, até então considerada enquanto entidade autónoma e globalizante, logo que
é tocada pela urbanização, i.e., segundo a nossa definição, pela integração da mobilidade
na vida quotidiana. Perguntar-nos-emos também como se define a aldeia face à mul-
tiplicação de equipamentos colectivos que se desenvolvem a uma escala diferente da
sua — quer se trate de escolas ou de centros comerciais, de centros desportivos ou
administrativos. Interessar-nos-emos de seguida pelas transformações que afectam o
sistema social, o sistema da personalidade e o sistema cultural. Assim sendo, consi-
deraremos o rural no seu conjunto e não de forma prioritária pela agricultura, tornada
minoritária e cada vez mais dependente de decisões que lhe são exteriores. Termina-
remos, no entanto, este capítulo com algumas reflexões que lhe dizem mais especi-
ficamente respeito.

149
1. TRANSFORMAÇAO DA COMPOSIÇÃO ESPACIAL

Impõe-se uma primeira constatação: a aldeia é cada vez menos um centro de


equipamento e de decisão, mesmo no respeitante à agricultura. Basta um breve olhar
para nos darmos conta disso mesmo: a rede rodoviária principal — que ou deixa as
aldeias à margem, ou as atravessa destruindo-as — define espaços doravante decisivos.
Por um lado, é nas margens desta rede que se instalam vários grandes equipamentos
— zonas industriais com grandes superfícies comerciais. Estes equipamentos — con-
cebidos para drenarem uma certa mão-de-obra, uns, outros uma clientela procedente
das aldeias, ou até das cidades mais ou menos vizinhas — não dependem de modo
algum dessas aldeias nem no respeitante aos elementos que presidiram à escolha da
localização, nem no tocante à sua gestão. Por outro lado, outros equipamentos que,
também eles, privilegiam o acesso imediato aos grandes eixos rodoviários estão, antes
de mais, destinados não aos habitantes vizinhos, mas aos utentes desses próprios
eixos, que encontram aí restaurantes, serviços,... tidos por tanto mais indispensáveis
quanto a mobilidade entrou na vida quotidiana quer como imposição estrutural (é
preciso deslocar-se para ir trabalhar), quer como imposição cultural (é preciso deslocar-
-se para «ser do seu tempo»,...).
Este tipo de implantações, se pode esvaziar as aldeias do seu papel e da sua iden-
tidade, também pode, esquecemo-lo muitas vezes, ser um factor para a sua reanimação
e suscitar nelas actividades próprias, sendo simultaneamente outros tantos lugares de
aprendizagem de uma modernidade que é preciso então reinventar por si próprio. Isto
é realmente importante já que uma aldeia que não entrasse nesta lógica ligada à mobi-
lidade se arriscaria a ser abandonada e, quando muito, a já não ser senão um lugar efé-
mero de férias para citadinos minoritários.
Em relação com o desenvolvimento dos equipamentos de que acabamos de falar,
tem-se assistido também a uma desorganização radical do artesanato «utilitário» que
a aldeia conhecia e que lhe dava uma certa autonomia. Hoje, muitas dessas actividades
(que vão do padeiro ao sapateiro) estão agrupadas nos supermercados periféricos,
propondo produtos e serviços normalizados. Simultaneamente, muitas aldeias, esva-
ziadas deste tipo de comércios e serviços, desenvolveram várias actividades destinadas
aos turistas — restaurantes com louça de barro de arte, passando pelos ateliers de tece-
lagem ou lojas de «antiguidades». Este duplo fenómeno é revelador de um importante
processo de mudança: a autarcia anterior (relativa) da aldeia desaparece e o seu modo
de vida urbaniza-se; a aldeia define-se e é definida com referência à cidade, tanto nos
comportamentos que os seus habitantes adoptam como na imagem que propõe de si (o
artesanato, o feito à mão, o natural, o autêntico, a tradição,...). A todos estes aspectos
corresponde uma constante: o futuro da aldeia não depende dela, mas antes de deci-
sões tomadas na cidade e, neste futuro, a agricultura fica com pouco peso — sendo ela
própria, aliás, gerida a partir da cidade.
Este impacto da cidade manifesta-se também no plano do habitat. Com efeito, dada,

150
r

por um lado, a diminuição do número de agricultores, a que se juntou a frequente


inadequação de muitos edifícios agrícolas às novas técnicas e, por outro lado, dado o
desejo de numerosos rurais de adquirir uma casa nova, marcando assim um distan-
ciamento em relação ao meio de origem e afirmando um certo sucesso procedente do
trabalho na cidade, muitos dos edifícios rurais tradicionais vêem-se esvaziados de seus
habitantes e têm-se visto reapropriados por citadinos, em busca, muitas vezes, menos
de vida rural do que do mito do rural. Seja como for, aparece uma dualidade em mui-
tas aldeias. Os edifícios antigos e, nomeadamente, os do centro aglomerado, são trans-
formados em residências secundárias ou, por vezes, em primeiras residências, embora
ocupadas umas e outras por citadinos geralmente preocupados em manter e restituir os
materiais e as formas de origem; inversamente, muitos rurais ocupam casas novas,
com materiais e formas designados de modernos — essas casas ficam frequentemente
situadas fora da aldeia-centro: fica-se na planície quando «a aldeia velha» se encontrar
mais acima, e nos flancos da serra quando o vale acolher a localização mais antiga.
No entanto, em vez de opor dois modos de vida diferentes, esta dualidade do habitat
remete para várias características geradas pela urbanização — mesmo se exprime
diferentes estádios do avanço desta.
Seja como for, há hoje tanto menos oposição radical entre a cidade e o campo
quanto, ao crescimento da mobilidade, se veio juntar a multiplicação dos bens e equi-
pamentos divisíveis.
ry Por outro lado, a conjunção, nos anos sessenta, de uma forte elevação do nível de
vida, de uma preocupação acrescida com a higiene, de um desenvolvimento e de uma
ampla difusão das técnicas (tanto nos vários sectores profissionais como no domínio
doméstico) e da instalação em muitas aldeias de numerosos citadinos (que desejam
saborear «o natural do campo» sem se privarem das vantagens da cidade) dotou
progressivamente o rural com as mesmas redes de equipamentos colectivos que já
beneficiam as cidades: a distribuição de água generalizou-se, assim como a da elec-
tricidade e como a rede de saneamento. Isto não deixou de incidir na forma que iam
tomando as aldeias, nas suas extensões, as quais seguiam de modo completamente
preferencial os eixos equipados.
Estas extensões tornaram-se, além do mais, importantes, particularmente nas
aldeias que vias rápidas ligam facilmente às grandes cidades com que permitem e
desenvolvem migrações diárias. São tanto mais fáceis e facilmente aceites quanto as
aldeias vivem cada vez menos da agricultura e quanto a agricultura sobrevivente
conheceu um grande aumento de produtividade: são-lhe reservadas menos terras, o
que faz recuar muito o limiar do crescimento demográfico admissível por essas
aldeias. Este crescimento é ele próprio função da procura, i.e. da avaliação de que a
aldeia é objecto e na qual intervêm, entre outros, a localização em relação a uma
cidade, a importância dessa cidade e a qualidade do sítio — sendo os dois primeiros
elementos prioritariamente retidos na escolha de uma primeira residência e desem-
penhando o último um papel decisivo quando se trata de uma residência secundária.

151
Num e noutro caso, assiste-se a um deslize da lógica que subjaz à relação com a terra
e com a aldeia: é doravante a lógica do signo que leva a melhor, face à do símbolo(4),
tornando-se a localização uma maneira de as pessoas se manifestarem pela diferença
e já não pela pertença herdada.
Assim, a composição espacial da aldeia tem-se modificado profundamente e,
com ela, as significações que lhe eram atribuídas. O facto de se viver numa aldeia está
longe, hoje, de remeter à partida para um modo de vida diferente daquele que se
atribui automaticamente à cidade; mais ainda, mesmo que se comece a conhecer
actualmente uma certa viragem a partir do que se convencionou chamar «regresso à
cidade»(5), talvez se possa avançar a ideia de que uma parte importante dos citadinos
que, nos anos sessenta, se instalou nas aldeias pertencia precisamente às categorias
sociais mais urbanizadas, procurando precisamente neste distanciamento físico da
cidade muliplicar ainda mais as vantagens que esta característica já lhes proporcionava.
Seja como for, a aldeia já não pode doravante ser considerada como um lugar
centrífugo: participa, bem pelo contrário, de um espaço regional de mobilidade no
seio do qual a sua significação se foi transformando. Isto não impede que subsistam
diferenças entre a aldeia e a cidade, e alguns tendem hoje a reafirmar algumas delas;
é o que acontece, nomeadamente, com a frequente valorização associada aos mais
pequenos reagrupamentos que a aldeia proporciona, em consequência da dispersão
espacial ou ainda do reconhecimento cada vez mais frequente da superior adaptação
do automóvel às zonas rurais.

2. MODIFICAÇÃO DO SISTEMA SOCIAL

Se a aldeia tradicional era para os seus habitantes um lugar de total interconheci-


mento e, desde logo, de controlo social importantíssimo, e se ainda se pode apresentar
às vezes como tal hoje para «os seus» — o que, aliás, é uma das razões da partida de
alguns jovens rurais —, as condições estruturais de sua existência permitem-lhe cada
vez menos exercer esse controlo. Ela é, com efeito, cada vez menos polivalente: por
um lado, residir nela está longe de significar que se trabalhe nela, e vice-versa; por
outro lado, perdeu amplamente o seu peso decisório. O «controlo» que ainda poderia
exercer fica, logo, reduzido tanto nos aspectos em que poderia actuar como nos efeitos
que poderia ter.
Para os «citadinos imigrados», ainda, a aldeia constitui muitas vezes, por excelência,
o lugar de não-controlo; constitui um espaço de liberdade que as imposições de uma

(4) Jean BAUDRILLAARD, op. cit.


(5) Liliane VOYÉ, Le retour à la ville.

152
vizinhança citadina densa excluem. É claro que, isto não significa que os habitantes
tradicionais da aldeia não vão exercer (ou tentar exercer) um certo controlo sobre
esses recém-chegados, nem criticar alguns traços de seu modo de vida aparente; antes
pelo contrário, fá-lo-ão muitas vezes. Mas essas tentativas ficarão sem efeito na
medida em que, pelo menos, esses recém-chegados procurarem primeiro um ambiente
físico de qualidade para a sua residência e não um meio relacional — o que, certamente,
é a característica mais relevante das categorias sociais mais urbanizadas que evocávamos
acima. Outros, em compensação, procurarão não só na aldeia um ambiente de qualidade
mas também, e por vezes principalmente, um meio menos anónimo do que aquele que
conheceram na cidade. Estão, desde logo, mais desejosos de entrar nas redes de
interconhecimento, cujas vantagens irão reter mais do que verão os inconvenientes de
um controlo, aliás reduzido, como o dissemos, pela perda de polivalência da aldeia e
pelo desenvolvimento de uma mentalidade preocupada com a autonomia do indivíduo.
Reparemos ainda aqui que modalidades de alianças várias podem surgir entre
algumas fracções de rurais e citadinos «imigrados» — alianças que se organizarão à
volta de desafios vários, consoante o tipo de região rural e consoante a estratificação
social de ambas as populações.

3. AUTONOMIA DA PESSOA

O controlo que poderia exercer-se perde, pois, grande parte de seu sentido, quer
porque se conhece, globalmente, cada vez menos pessoas — aliás, o tempo passado
na aldeia é muitas vezes limitado —, quer porque a opinião que cada um possa ter dos
outros afecta tanto menos quanto a individuação se difundiu nas aldeias urbanizadas,
inclusivamente na fracção agrícola da população aldeã. Cada vez menos lugar de
controlo, a aldeia é também cada vez menos um meio de confiança incondicional, em
que cada um encontra o seu lugar sem necessidade de reavaliações constantes, e com
o qual se pode contar em caso de dificuldades.
Assim, a lógica de entreajuda que dominava as relações interpessoais e dava à
pessoa uma segurança material e psíquica apaga-se, para dar lugar a uma lógica de
autosuficiência, a partir da qual convém evitar tornar-se dependente dos outros, quer
não retribuindo os seus serviços, quer assegurando por si próprio, e mediante mecanis-
mos auto-reguladores (pensão, seguros,...) a defesa contra as incertezas do futuro. E
nesta perspectiva que, por exemplo, Lalive d'Épinay mostra como, na Suíça, a genera-
lização do sistema de pensões modificou as relações entre os «velhos» e os seus filhos,
no que permite aos primeiros escaparem à dependência na qual temiam cair para com
os segundos®. Assim, é na afirmação da sua capacidade de autonomia individual que

(6) Christian LALIVE D'ÉPINAY et ali., Vieillesses, Saint-Saphorin (Lavaux), Éd. Georgi, 1983.

153
a pessoa procura doravante o equilíbrio, sem que haja, nesta matéria, diferença radical
entre a cidade urbanizada e a aldeia urbanizada — mesmo se esta última conserva por
vezes veleidades, diversamente apreciadas, de adopção comunitária.
Seria, com efeito, incorrecto dizer que já não subsiste nenhum traço da aldeia
tradicional. Estamos, antes, mais diante de uma ambivalência do que diante de uma
radicalização do modelo urbanizado que supusesse a exclusão de toda e qualquer
sobrevivência e inclusive, por vezes, de toda e qualquer valorização de elementos
mais dependentes do modelo pré-urbano. Tudo dependerá dos campos em causa, dos
problemas colocados e da conjuntura no meio da qual ocorrem. Tudo dependerá igual-
mente das pessoas: a idade, o sexo, a actividade,... desempenham efectivamente um
papel diversificador e fazem privilegiar este ou aquele aspecto na definição de si e das
relações com os outros.
Além disso, seja como for, a urbanização que se desenvolve nas aldeias conjuga-
-se aí com elementos parcialmente diferentes daqueles a que se associa nas cidades.
Merece desde logo aí uma certa redefinição que dará toda a sua especificidade à nova
troca social cidade-aldeia.

4. CÓDIGOS CULTURAIS E REGIME DE TROCAS

Essa diversificação a que se acaba de aludir não se limita aliás ao nível dos ele-
mentos nos quais a pessoa assenta a sua identidade. Também afecta os códigos cultu-
rais que compõem as leituras actuais do espaço rural, o qual é levado a redefinir os ele-
mentos de sua especificidade e irá surgir diversamente apto a desenvolver uma capa-
cidade de concentração — i.e. uma definição de si próprio em que, longe de se ver
como «vizinho, próximo ou distante de...», é ele quem situa o exterior em relação a si.
A aldeia terá, pois, de se redefinir em torno de avaliações que podem ser contraditórias
a vários níveis; neste processo, pode ou acentuar um carácter de lugar vazio onde não
se passa nada ao contrário do que marca o exterior e em particular a cidade, lugar
cheio de todas as actividades e de todos os possíveis; ou avançar uma dimensão de
autenticidade e de qualidade moral que não reconhece à cidade, lugar que, obviamente,
concentra a força técnica e o poder decisório, mas que apenas é feito de artifícios e
cuja fraqueza moral se manifesta através de múltiplos sinais, desde a violência à
droga, passando pelas poluições de toda a espécie.
Se se pode afirmar que esta é uma leitura bastante comum, tanto nos citadinos
como nos rurais, não passa, repetimos, de uma leitura entre outras possíveis — desi-
gualmente difundidas consoante os grupos sociais e consoante as sub-regiões. Assim
se verifica muitas vezes que em meio rural há mais detractores da cidade entre os
homens e entre os idosos do que nas mulheres e nos jovens — estes dois grupos
encontram-se frequentemente aliados numa leitura positiva da cidade; os seus motivos,

154
contudo, são bem diferentes: enquanto os jovens vêem na cidade o lugar que lhes abre
um futuro de liberdade e de sucesso, a passagem forçosa do seu sucesso e da sua
ascensão social, já a imagem positiva que as mulheres desenvolvem da cidade parece
assentar mais na preocupação que têm de ver a aldeia e a região tornarem-se uma
entidade dinâmica (nomeadamente no que diz respeito às possibilidades de trabalho e
também ao equipamento da casa) com vista a travar a tentação que precisamente os
jovens têm de partir para a cidade. Neste sentido, elas apostam de modo ambíguo num
outro código cultural: o do fechamento e da abertura da aldeia — código que se vê,
também ele, reapropriado diferentemente consoante os grupos sociais e os projectos.
A diversidade destes últimos, em particular, irá levar a variações da conotação
que afectarão os contactos com o exterior: tidos por bons e úteis por aqueles que ambi-
cionam a mudança e a multiposicionalidade social, eles serão, pelo contrário, recusados
ao máximo por todos quantos temem as comparações e as posturas de competição
com o exterior e por todos quantos devem o seu papel à força exclusiva da sua inser-
ção local — característica que, note-se, se pode encontrar em todos os escalões sociais
e em todos os campos.
E assim nomeadamente que as pessoas de importância e destaque tradicionais,
que extraem o poder do papel que desempenham no plano local, se arriscam muitas
vezes a ver-se desvalorizadas, na medida em que o seu peso de intermediários se reduz
à medida que vão perdendo o monopólio dos contactos com o exterior no seio do qual
não têm muita inserção directa. Em contrapartida, novas pessoas influentes surgem,
extraindo a sua força dessa inserção exterior, de que, espera-se, a aldeia venha a bene-
ficiar ao reservar-lhes um lugar privilegiado.
Não será isso o que explica, por exemplo, a frequente presença de citadinos-
-aldeões mais ou menos recentes no seio de assembleias de juntas de freguesia? É
evidente que estas mudanças dos critérios que intervêm no reconhecimento da influên-
cia se repercutem na maneira como cada um e as próprias pessoas influentes, antigos
ou novos, avaliam a abertura e o fechamento da aldeia, ao conotarem positivamente
uma ou outro consoante a sua própria posição.
Contudo, a abertura para o exterior, para a cidade, raras vezes está totalmente
ausente, quanto mais não seja porque o meio rural se vê também ele afectado por essa
transformação do regime de trocas que faz com que se passe de um modelo de har-
monia na hierarquia a um modelo de competição pela igualdade. Desde logo, só difi-
cilmente as pessoas poderão abster-se de comparar o modo e o nível de vida que têm
aos da cidade; são estes que servem de pontos de referência, de argumentos de reivin-
dicação e de negociação: as mesmas vantagens, os mesmos equipamentos, as mesmas
condições e modos de utilização; trata-se de tender para uma homogeneização da vida
na cidade e no campo, e isso, nomeadamente para os agricultores.
Reivindicações deste tipo podem, aliás, levar a outra mudança significativa no
meio rural. Com efeito, nesta busca de homogeneidade e de igualdade, as aldeias
sentem-se muitas vezes todas em atraso em relação à cidade. E não é raro, desde logo,

155
ver-se aldeias outrora rivais desenvolverem entre si relações activas para defenderem
interesses que julgam ser-lhes agora comuns, e que procuram, com a sua aliança,
conseguir mais facilmente impor aos decisores da cidade. Solidariedades trans-aldeãs
tornam-se, deste modo, doravante possíveis, ao passo que ainda há bem pouco tempo
cada aldeia se definia a tal ponto como «diferente» que o «completamente diferente»
que representava a cidade não conseguia reduzir o isolamento em que a colocava este
sentimento orgulhoso para com as aldeias vizinhas.
Assim, assiste-se a uma mudança de escala do vivido. As antigas aldeias que eram
outrora microcosmos individuais, autónomos uns em relação aos outros e numa
relação de exclusão uns para com os outros, tende a dar lugar a uma situação em que
a interferência entre aldeias se tornou necessária, porque há, em certo sentido, necessi-
dade de afirmação diante da cidade e porque essas aldeias, diversamente equipadas e
orientadas, precisam umas das outras e preferem muitas vezes recorrer a uma delas em
vez de recorrerem à cidade. Vemo-lo, por exemplo, ao nível das escolas, onde fre-
quentemente os rurais das aldeias onde a escola foi suprimida escolhem de preferên-
cia, em vez da escola da cidade, a escola de uma aldeia vizinha, supostamente mais
humana e mais próxima da educação procurada.
Reencontramos, deste modo, o que Jean-Pierre Hiernaux sublinhava há já alguns
anos: de aldeia para aldeia, vai-se do outro ao mesmo; da aldeia para a cidade, passa-
-se para o totalmente outro, com mudança de escala e de qualidade(7). E se a homo-
geneização de que acabámos de falar é, em certo sentido, incontestável em muitos
planos, não deixa de ser verdade que subsistem importantes diferenças, quanto mais
não seja porque a cidade detém, mais do que nunca, o poder e porque é dela que par-
tem as novas definições do rural. Contudo, assim sendo, esta última esbarra cada vez
mais com uma vontade interna da aldeia de não se deixar fechar numa definição passa-
dista que alguns citadinos nostálgicos do «bom selvagem» e da «mãe-natureza»
quereriam que ela adoptasse, e pouco a pouco assistimos a uma dinamização do rural
por si próprio e a uma automização relativa do seu projecto. Tal acontece, por exem-
plo, no que diz respeito à ecologia, em que, ao lado dos temas defendidos pela ala
citadina destes movimentos, começa a aparecer um discurso próprio às escolas do
meio rural (não necessariamente agricultores), discurso que se afasta por vezes sensivel-
mente do dos pioneiros, que eram, em grande parte, citadinos.
Neste domínio como noutros, se os primeiros promotores da renovação rural
foram os citadinos que se sentiam mais à vontade no urbano, e que, a esse título,
também lançaram a renovação urbana, é forçoso verificar que actualmente os próprios
rurais tomam muitas vezes em suas mãos o seu devir e o do seu meio, depois de se
terem eles próprios suficientemente urbanizado, a ponto de perderem todo o complexo
face à cidade.

(7) Jean-Pierre HIERNAUX.

156
Dito isto, quer a revitalização do rural seja, como o foi primeiro, antes de mais
obra de citadinos, ou quer seja, como se está a tornar, a dos próprios rurais, o facto é
que este processo se situa numa lógica de composição espacial e social que afasta o
rural da sua concepção tradicional. A neo-ruralidade que, nomeadamente, como o diz
Syl-via Ostrowetsky(8), permite uma abertura selectiva a pessoas vindas do exterior e
que poderão eventualmente desempenhar um papel de líderes, não consiste em regressar
a um statu quo ante, mas antes em criar alternativas tanto ao nível da organização
espacial como no plano dos modos de vida. Este processo inovador ganha certamente
tanto mais sentido quanto o desenvolvimento das novas tecnologias, por um lado, e a
necessária reorganização do trabalho e do tempo de trabalho, por outro, irão, sem
dúvida alguma, colocar noutros termos a relação com o espaço, e, nomeadamente, a
relação entre a cidade e o rural.
De uma maneira esquemática, e sem excluir todas as situações intermédias, esta
relação tende certamente a instaurar-se em dois sentidos contraditórios: por um lado,
o rural empenhado num processo de transacção com novas condições de vida arrisca-
-se a ver-se abandonado e desertado por muitos dos seus habitantes que, pelo menos
durante algum tempo, procuram afastar-se dele; por outro lado, as mudanças que
acabamos de evocar favorecem indubitavelmente o desenvolvimento de um senti-
mento de inveja para com o rural. E esta dupla perspectiva que iremos encarar sucin-
tamente.

5. DO RURAL ABANDONADO AO RURAL COBIÇADO

O rural abandonado é interpretado a partir da emigração que o afecta. Corresponde


a regiões onde a dinâmica económica está ausente ou incerta, o que coloca problemas
de emprego que suscitam a emigração das fracções mais jovens e mais activas da
população, deixando na aldeia os habitantes mais idosos e menos empreendedores
que, simultaneamente, desenvolvem cada vez mais uma reacção de desconfiança.
Enquanto se pode dizer que outrora a aldeia autogeria as suas migrações, que eram,
desde logo, de alguma forma voluntárias e selectivas, hoje é à impotência que, neste
domínio, se vê reduzida, na sequência do contágio da urbanização que valoriza as
escolhas individuais, a mobilidade espacial e torna inoperantes as modalidades tradicio-
nais de controlo colectivo. Ao perder assim os elementos que poderiam ter sido os
melhores portadores de renovação, a aldeia tem tanto menos hipóteses de se regenerar
quanto, nesse movimento de abandono, as mulheres estão amplamente presentes, dei-
xando assim na aldeia muitos homens solteiros. Numerosas aldeias morreram assim
mesmo, abandonadas progressivamente pelos seus habitantes e esvaziadas, logo, a

(8) Sylvia OSTROWETSKY e Samuel BRODREUIL, Le style néo régional, Paris, Dunod, 1980.

157
pouco e pouco dos equipamentos (comércios, escolas, médicos,...), o que não fez
senão acelerar o processo de partida.
Vários outros elementos se foram aliás combinando no mesmo sentido. Assim,
tem-se visto muitos notáveis que articulavam a aldeia com o exterior assegurar a sua
sobrevivência ao abandonarem-na, porque doravante pouco apta quer para os sustentar,
quer para assentar a notabilidade. É evidente que conservam sempre um elo de liga-
ção, mas já não é na aldeia que está a sua implantação privilegiada; muitas vezes,
inclusive, só regressam à aldeia a título privado, se assim se pode dizer, e não
enquanto actores determinantes para a vida desta. A sua preocupação arrisca-se, desde
logo, a ser mais a conservação de um lugar e um meio do que uma modernização que
atentasse contra o «retorno» que procuram na aldeia.
Esta modernização do rural não deixa, aliás, de ter efeitos perversos: querida pela
sua defesa e promoção, pode acontecer que precipite o seu declínio. Assim, tem-se
visto, por exemplo, que a criação de escolas secundárias em meio rural aumentava a
propensão para a migração para a cidade (como o fazem, aliás, as auto-estradas, que,
em vez de manter os habitantes na aldeia e inclusive de trazer para lá actividades,
multiplicam por vezes as migrações pendulares!).
Por outro lado, o envelhecimento da população da aldeia, que resulta da emi-
gração dos mais novos, é ainda intensificado pelo facto de, frequentemente, uma vez
alcançada «a idade» da reforma, estes voltarem à aldeia para nela passarem os últimos
anos. Contudo, trazem consigo os modelos urbanos que adoptaram na cidade e,
nomeadamente, uma maior ou menor individualização dos projectos que se afastam
das perspectivas mais comunitárias que, com frequência, os que permaneceram na
aldeia guardaram. Assim, para além de contribuir para o envelhecimento dessa mesma
aldeia, o seu regresso é muitas vezes um factor suplementar da sua destruição e da
desorganização da sua imagem. Mas esta desestruturação e esta desorganização resul-
tam frequentemente dos residentes secundários e dos turistas, cujos ritmos de vida,
usos que dão ao espaço, expectativas e representações que constroem do rural e da
vida que tencionam levar nele contribuem muitas vezes para modificar este último,
tanto na sua materialidade como no seu projecto e no domínio que dele conservam.
Semelhante situação, que apresenta todos ou parte dos inconvenientes que acabamos
de evocar sucintamente, não é contudo a de todas as regiões rurais, longe disso! Ao
lado dessas regiões em declínio, outras manifestam uma imponente capacidade de
redefinição por si próprias e de desenvolvimento; esse desenvolvimento pode provir
de uma agricultura dinâmica, utilizando convenientemente o apoio das técnicas dispo-
níveis e orientando-se para produções de alto rendimento e de forte procura. Trata-se
de regiões dirigidas por «empresários agrícolas», que gerem os seus negócios na
lógica da gestão e do management modernos, preocupados com o equipamento e a
informação e que se adaptam às flutuações do mercado; inclusive, que orientam este
último para novos produtos.
A relativa proximidade de uma cidade induz, por outro lado, muitas vezes uma

158
inveja em relação a regiões rurais vizinhas. Neste caso, contudo, o carácter rural
dessas regiões arrisca-se a reduzir-se pouco a pouco, a não ser — e mesmo aí!... — na
paisagem. O mesmo acontece a par dos eixos rodoviários mais importantes, não só
daqueles essencialmente utilizados diariamente para as deslocações ligadas ao trabalho,
mas também, cada vez mais, hoje em dia, daqueles que drenam regularmente as
migrações semanais de lazer e de descanso; instalam-se aí frequentemente comércios
e equipamentos que, simultaneamente, procuram beneficiar dos preços dos terrenos,
inferiores aos da cidade, do espaço menos escasso, e também da maior flexibilidade
de tempo de que se dispõe nesses momentos, mais propícios, aliás, às compras e
divertimentos em família.
Nessas situações em que o rural surge enquanto dinâmico e invejado, a questão
que se põe consiste em ver se ele é capaz de enfrentar os novos desafios que se lhe
colocam, integrando várias transformações tanto de populações como de actividades,
mantendo simultaneamente o domínio das suas mudanças em vez de sofrer passivamente
essas mesmas mudanças.

6. UM CAMPO ESPECÍFICO DO RURAL: A AGRICULTURA

No início deste capítulo, insistimos em duas coisas. Por um lado, sublinhámos o


facto de o rural não se resumir à agricultura e, logo, de o nosso tema não se restringir
a ela. Por outro lado, fizemos notar que a dinâmica da aldeia já não dependia dora-
vante do dinamismo da agricultura e que, reciprocamente, o dinamismo da agricultura
não se media pela dinâmica da aldeia. Os vários pontos que acabamos de abordar e
que dizem respeito ao conjunto do rural aplicam-se igualmente à parte agrícola deste
último, tanto na sua materialidade como nas suas dimensões sócio-culturais; contudo,
esta merece que nos atardemos um pouco nas suas especificidades.
Uma das maiores mudanças introduzidas pela modernidade na agricultura diz
respeito à percepção do tempo.
A modernidade inverteu, com efeito, primeiramente a percepção da tradição: a
leitura positiva e tranquilizante desta deu lugar a uma avaliação negativa, em que a
tradição é o que encerra e entrava o progresso. Na confusão, a experiência vê-se ques-
tionada — o que não deixa de se repercutir nas relações entre gerações, relações que
permanecem particularmente sensíveis numa situação em que, ainda com frequência,
várias gerações são levadas a coabitar e a trabalhar juntas, e em que o peso patriarcal
permanece tanto mais pesado quanto o pai continua frequentemente como «o patrão»
e o dono.
Por outro lado, um tempo de trabalho não medido e pontuado por momentos de
descanso mais ou menos improvisados foi sendo substituído, com referência ao
modelo urbano, por uma tendência a opor tempo de trabalho e tempo de lazer, e, a par-
tir daí, a julgar que nunca se terminou o trabalho: não há fins de semana, não há férias

159
como na cidade! E as mulheres são muitas vezes particularmente sensíveis a isso —
a ponto de, para inúmeros agricultores, um dos problemas mais importantes ser
arranjar uma mulher! (Não é que se inventou há alguns anos, numa aldeia dos Pire-
néus, uma «Feira dos solteiros» para tentar resolver localmente esses problemas? Não
se terá também, às vezes, «importado» de algum modo mulheres asiáticas para tentar
responder a essa mesma dificuldade?...).
Ao abalar a concepção do tempo, a modernidade também introduziu o cálculo na
agricultura, acarretando uma tendência para a dupla contabilidade: a da família e a da
empresa. A essa mudança corresponde também com frequência uma vontade de dis-
sociar claramente o espaço de trabalho do espaço de habitação, e de dotar este último
de equipamentos que assegurem um conforto medido pela norma urbana. Por outro
lado, uma nova preocupação apareceu: trata-se com efeito doravante de assegurar para
si quer um mínimo de rendimentos regulares, quer uma reforma. Isto é tanto mais
importante quanto a actividade agrícola se define cada vez mais enquanto empresa,
supondo investimentos por vezes pesados e requerendo uma grande capacidade de
adaptação a políticas definidas a partir do exterior e numa perspectiva internacional.
Assim, o trabalho agrícola vê-se menos exclusivamente avaliado em termos de
espaço (ser dono de sua casa, estar nas suas terras) do que em termos de tempo, estru-
turado em torno de um projecto e de um cálculo. Esta diluição da referência ao espaço
vem abalar um dos maiores pilares tradicionais da agricultura. Com efeito, até recen-
temente, era a terra que definia o estatuto do agricultor e a sua posse era para ele uma
reivindicação de importância — com todos os problemas que, aliás, cada sucessão
colocava (ameaça de fraccionamento, assim como de perda de rendimento e de esta-
tuto, e, por vezes, risco de exílio forçado). Parece que actualmente, em certo número
de agricultores pelo menos, esta lógica esteja a desmoronar-se em benefício de uma
outra, segundo a qual o que conta é poder controlar os arrendamentos de terras sem
investir e sem imobilizar dinheiro na terra, ao mesmo tempo que se desenvolve a
capacidade de trabalho pelo equipamento de que os agricultores se dotam e graças ao
qual podem também trabalhar nas terras de outrem. Esta última lógica arrisca-se, além
do mais, a angariar tanto mais adeptos quanto, em meio rural, doravante, o valor da
terra e a evolução dos seus preços já não estão ligados unicamente ao seu valor
agrícola: o desenvolvimento de outros usos, e nomeadamente do turismo, intervém
para mudar critérios de avaliação outrora unicamente retidos com referência à qualidade
produtiva do solo. Esta transformação pode, aliás, levar a inversões radicais de valor
— os terrenos arborizados e acidentados ou os flancos divididos ganhando, por
exemplo, muitas vezes mais valor que as terras planas de solo rico dos planaltos ou
das planícies! E isto vem indicar a dependência na qual a agricultura se encontra para
com a cidade, pois que é doravante o mais das vezes a partir do uso que esta encara
dar ao espaço agrícola que este último é apreciado e, eventualmente, vê mudar o seu
destino. Mesmo quando esse destino continua a ser agrícola, aliás, é muito amplamente
a partir da cidade que o seu conteúdo e as suas orientações são geridas. Com efeito,

160
ao assentar nisso as exigências da industrialização, da produção em série e da compe-
titividade internacional, o jogo político que encontra o seu lugar na cidade (enten-
damos aqui não a cidade vizinha, mas a capital nacional ou internacional) introduziu
a estandardização dos produtos e impôs o desenvolvimento de critérios externos sim-
plificados que permitem avaliações e comparações rápidas: assim, por exemplo, os
frutos e legumes são calibrados, assim como os ovos, de que se sabe, além do mais,
que o cliente está disposto a pagá-los mais caro conforme a casca for castanha e a
gema de coloração intensa. O artifício entra assim no próprio campo agrícola (para
grande despeito, notemo-lo, dos ecologistas, cujos discursos encontram pouco eco nos
agricultores, preocupados antes de mais com a rentabilidade). Essa estandardização é,
por outro lado, modulada pelas variações de gostos e de critérios de uma clientela que
está doravante deslocada — de outras regiões e de outros países, podendo cada um ter
as suas preferências, ligadas à pertença do produto em vez de à sua qualidade intrín-
seca (assim alguns tipos de maçãs desapareceram quase totalmente do mercado por-
que a sua cor era cinzenta e a sua casca áspera, pouco lisa!), preferências, aliás, que
conhecem «modas» que há que seguir...
Temos aí uma importante mudança vivida pela agricultura: a produção depende
cada vez mais de decisões externas, deslocadas — tanto no que respeita aos tipos de
produtos como no que respeita à sua qualidade. Se o agricultor vai semear no próximo
ano milho ou soja, irá depender — se quiser ser rentável e mesmo se quiser continuar
a existir — da concorrência internacional, de «quotas» regionais... Trata-se, pois, para
ele de se informar junto das associações profissionais e dos conselheiros técnicos, e
não já de semear «o que sempre se semeou» ou de remeter esse assunto para o resto
da aldeia. Esta imposição é tanto mais vital quanto a sua produção está submetida a
leis de concorrência e de higiene de vários tipos e quanto, em caso de dificuldades, só
poderá contar com indemnizações se tiver respeitado a lei e os regulamentos.
O agricultor está de facto tanto mais propenso a submeter-se a todos esses regula-
mentos quanto acontece cada vez mais frequentemente que, em vez de ser, como
outrora, produtor directo de produtos acabados, ele já não passa de um interveniente
entre outros numa cadeia de produção: o leite é recolhido por uma cooperativa que se
encarregará da sua transformação parcial em manteiga, nata, queijo, e da distribuição
de todos esses produtos sob embalagem estandardizada e com nome colectivo; o
mesmo acontece para grande parte dos legumes, comprados de antemão por conserveiras
ou por empresas de congelação, e para o gado, que deve ser abatido e tratado em mata-
douros regulamentados, a partir dos quais se opera igualmente a distribuição no inte-
rior do país exclusivamente, ou por toda a Europa, consoante o matadouro em causa
tiver ou não o distintivo europeu.
E um facto que os agricultores têm cada vez menos o controlo da sua produção
agrícola, vendo-se esta regulada e orientada por peritos que decidem em função da
concorrência internacional em matéria agrícola mas também com referência a uma
problemática mais ampla que, por exemplo, tome em conta a competividade industrial

161
entre países, competividade cujo, nível respectivo dos salários constitui, podendo um
aumento desses salários ser tanto mais facilmente travado quanto os produtos alimen-
tícios não conhecem aumento de preço.
Todas estas mudanças não afectam, claro está, no mesmo grau, todos os agricultores,
e a Europa conhece ainda muitas situações em que os modos de vida e de trabalho per-
maneceram, como diz Mendras(9), idênticos ao que eram no século XVII. Contudo, as
tendências aqui esboçadas arriscam-se a generalizar-se, e isso particularmente num
contexto político em que a agricultura é um dos sectores mais importantes da consti-
tuição da Europa e da afirmação desta face aos Estados Unidos (pense-se nos conflitos
virulentos que opõem regularmente estes dois parceiros). Mais ainda, e na própria
lógica do desenvolvimento dessas trocas internacionais, algumas regiões vêem-se
excluídas enquanto lugar pertinente de uma produção doravante avaliada com referência
aos parâmetros da rentabilidade económica e do mercado. Eventualmente, fica-lhes a
possibilidade de desenvolver circuitos paralelos de produção e de distribuição, mas,
seja como for, isto supõe que accionem mecanismos de transacção com a modernidade,
e isso não numa perspectiva de defesa, mas antes com uma vontade agressiva de se
impor.
Em semelhantes situações, em que a agricultura escapa simultaneamente aos agri-
cultores e ao poder local, põem-se várias questões — para além das subjacentes aos
temas que acabam de ser desenvolvidos.
A primeira diz respeito a saber se a agricultura irá permanecer uma das raras pro-
fissões — quando não quase a única — a ser hereditária. Claro está, as formações pro-
fissionais na matéria multiplicam-se e escalonam-se a todos os níveis da hierarquia
escolar. Contudo, à excepção das formações superiores (engenheiros, em particular),
as quais levam essencialmente a papéis externos de direcção e de investigação, essas
formações, em geral, apenas são seguidas por jovens oriundos de meios agrícolas. Por
outro lado, sabe-se que os agricultores reagem muito negativamente para com «cita-
dinos» que pretendem por vezes improvisar-se em agricultores e que, há que reconhecer,
falham com frequência lamentavelmente nessa ambição mais impulsionada por um
projecto ideológico do que por uma atracção real e uma competência efectiva. A questão
resume-se em saber, pois, como se fará a arbitragem entre códigos técnicos e económicos
que tendem a evacuar o carácter hereditário das profissões agrícolas, e um meio que
procura manter um controlo quase monopolístico sobre todo um ramo da economia.
Outra questão, de resto ligada a esta, diz respeito ao aspecto muitas vezes ainda
patriarcal da agricultura: a coexistência—já evocada — de várias gerações parece, em
muitos casos, pôr problemas, nomeadamente na medida em que mantém os jovens sob
a dependência dos pais, e isso, muitas vezes, tanto no aspecto profissional das suas vidas
como no aspecto privado. Se deste último aspecto resultam dificuldades quanto ao

(9) Henri MENDRAS, Sociétés paysannes, Paris, Armand Colin, 1976.

162
cônjuge — escolha deste e aceitação da coabitação —, no plano profissional essa
coexistência põe obstáculos em numerosos casos à inovação e à mudança: oposição dos
pais à mecanização, mas também (quando não principalmente) aos pedidos de
empréstimos que a possibilitariam.
Tudo isto põe o problema da inovação em meio agrícola, inovação que, parece,
terá num primeiro tempo tanto mais hipóteses de ser aceite quanto é introduzida por
alguém que confia na aldeia. Há que perguntar, pois, como se formam os novos líderes
em mundo rural, como garantes institucionais da inovação. A esse propósito, vários
elementos parecem indicar que, em França, as regiões de fraca religiosidade se abri-
ram menos facilmente à inovação do que as outras onde a Acção Católica Rural for-
neceu precisamente intermediários credíveis, aptos a fazer aceitar várias inovações,
apoiando-se na legitimidade adquirida por esse seu movimento(10).
Numa ordem de ideias totalmente diferente, há que reter ainda duas questões —
que apenas enunciaremos, de tal modo a sua importância exigiria longos desenvol-
vimentos, fora do nosso propósito. Por um lado, como poderão os agricultores, torna-
dos minoritários e tributários de decisões parcialmente externas à sua problemática,
dotar-se de um poder próprio e evitar ficarem reduzidos à busca de protecções polí-
ticas que, em contrapartida, os utilizam num jogo em que se arriscam sempre a ser
enganados? A constituição de um poder próprio supõe, com efeito, o desenvolvimento
de uma dinâmica económica que, também ela, resulte desses agricultores, os quais,
desde logo, podem utilizar a política como um mediador em vez de serem dela eternos
devedores. Por outro lado, à medida que se vão desenvolvendo actividades de lazer,
que requerem terra (carrosséis, caça, parques de caça reservada, esqui, golf,...) e que
surgem muitas vezes aos agricultores como fontes novas de rendimentos, como evitar
a «subalternização» destes e fazer com que, sem excluir esses novos usos da terra, os
agricultores permaneçam participantes na sua definição?

CONCLUSÃO

Assim, as mudanças que vimos desenvolver-se na cidade, tomando as conotações


específicas que esta lhes dava, foram-se difundindo progressivamente nas regiões
rurais, à medida que a modernidade ia expandindo o seu domínio. Toda a questão que,
a partir daí, se coloca consiste desde logo em ver se o rural apenas sofre esses pro-
cessos que, de algum modo, lhe são impostos do exterior, fora de toda a escolha que
poderia ter feito, ou se, pelo contrário, manifesta uma capacidade de reapropriar para

(10) Joel MORLET, «L'appartenance religieuse comme voie d'accès à la rationalité moderne», Social
Compass, Vol. 36, n 9 2, 1989, pp. 263-279.

163
si esses mesmos processos numa lógica que lhe seja própria e que, ao requalificá-los,
o leva a dotar-se de uma nova especificidade. Tal é o desafio a que está confrontado
o rural e face ao qual as diversidades dos trunfos de que dispõe e da dinâmica dos seus
actores levam a diferentes sequências de desenvolvimento e de perspectiva.

164
CONCLUSÃO

Através destas análises em que utilizámos o método do ideal-tipo (construção de


situações simplificadas e contrastadas), o espaço foi progressivamente aparecendo
como uma determinante social global que, ao interferir com outros, é constitutivo da
troca social nas suas dimensões desigualitárias. Longe de ser apenas um suporte espe-
cífico, ele mostrou ser uma modalidade de composição entre actividades e grupos.
Nestas concretizações, o espaço é, deste modo, simultaneamente indutor e induzido,
tal como o mostram, por exemplo, os laços existentes entre a morfologia do habitat e
A os aspectos sócio-económicos e sócio-afectivos da vida social.
A análise desses laços permitiu sublinhar o carácter não automático e não homo-
géneo destes, marcando assim a importância dos cruzamentos com outras dimensões
que permitem, por exemplo, detectar que um mesmo contexto pode ter efeitos de sen-
tidos opostos, reforçando um grupo e debilitando outro. A captação desses efeitos
construiu-se a partir da elaboração da lógica de apropriação de um espaço já constituído,
sendo a hipótese que o que explica a produção de um espaço nem por isso explica
necessariamente os modos de apropriação desse espaço.
A compreensão destes supõe que se distingam a lógica intencional valorizada
pelos agentes sociais, preocupados com a escolha e com a autonomia, e a lógica objec-
tiva que surte os seus efeitos de forma autónoma e pode assim torná-los bem diferentes
dos procurados; a valorização da escolha pode, deste modo, por exemplo, resultar
num aumento da precariedade e da dependência. A não concordância entre ambas
arrisca-se, desde logo, a resultar numa não-transparência da situação real e numa des-
locação do lugar da explicação. Alguns grupos irão assim, por exemplo, valorizar a
criatividade individual, ao passo, precisamente, que esta tende a marginalizá-los e a
reduzir as suas possibilidades de controlo.
Assim composto, o espaço mostra ser um recurso utilizado e valorizado diferente-
mente consoante os actores para fazer valer as suas prioridades na transacção social.
Este recurso intervém num triplo ponto de vista, consoante é considerado no quadro
Hn çktpma sistema cultural ou do sistema da personalidade.

165
Nas suas ligações com o sistema social, o espaço estrutural cria um campo de
potencialidades diversamente mobilizáveis. É o que ocorre assim com a acessibilidade
de vários lugares estratégicos para a acção e com as possibilidades de reagrupamentos
ou de dispersão que resultam, consoante os casos, na formação de redes ou no isola-
mento (um «ghetto» podendo ser instrumento tanto de promoção como sinal de
exclusão). O mesmo acontece com as modalidades de estruturação formal ou informal
das relações e das actividades, as quais as tornam mais ou menos visíveis e, portanto,
mais ou menos controláveis pelo público e domináveis por uma organização espacial.
Quando é considerado como um dos elementos constitutivos do sistema cultural,
o espaço proporciona códigos de composição das representações sociais, tanto de um
ponto de vista estatístico (interior/exterior, alto/baixo,...) como de um ponto de vista
dinâmico (encenação do desenrolar das intrigas e das transacções da vida social).
Essas representações intervêm a vários níveis: do signo, da detecção e da legibilidade.
Ao associar-se à legitimidade, isto servirá para distribuir prescrições e interditos,
nomeadamente em torno das categorias do privado e do público. A outro nível, essas
representações articular-se-ão de modo mais íntimo em questões de dinâmica afectiva,
organizando projecções simbólicas em objectos que exprimem uma história individual
e colectiva que eles evocam à maneira de uma memória. O mesmo se dá nos suportes
imaginários que permitem um distanciamento em relação ao vivido quotidiano, ao
permitirem espaços alternativos que podem ser ou sonhados ou vividos, tal como o
são por vezes na residência secundária ou nalguns bairros explorados num modo
lúdico.
As relações do espaço com o sistema da personalidade estão ligadas às possibi-
lidades que ele oferece de apresentação de si e de jogos múltiplos no segredo e no
revelado. O espaço intervém de modo decisivo na expressão dos papéis e no distancia-
mento destes, dando assim existência à esfera do íntimo, articulando-o simultaneamente
no social. A multiplicação dos papéis em palcos diferentes e não transparentes entre
si dota, desde logo, a pessoa de uma menor ou maior capacidade de arbitragem, conso-
ante mantiver o domínio ou a incoerência, a construção de redes de relações ou o iso-
lamento.
Estas três modalidades de integração do espaço, ao articularem-se entre si, dão
lugar a «efeitos de meio» e, portanto, a interdependências que só existem e se podem
compreender por meio das suas conexões espaciais. Isto leva-nos a afirmar o estatuto
explicativo do espaço e a recusar a ideia de que não passaria de uma mera projecção
para o solo de uma realidade social que se constitui com toda a independência para
com ele. As composições espaciais são mais que um reflexo ou que um efeito de
superfície; são uma determinante cujo peso inteiro só se pode interpretar captando-a
nos seus laços com as outras dimensões.
Assim, os modos de espacialização da vida social devem entender-se como sendo
um fenómeno social total mas percebido sob um ângulo específico. Nesta perspectiva,
é particularmente importante compreender a transformação desses modos de espaciali-

166
zação resultantes do desenvolvimento da mobilidade sob formas várias, quer se trate
daquelas que evocámos ou daquelas que as novas tecnologias começam a induzir.
Esses modos de espacialização só se podem, aliás, interpretar em todos os seus
efeitos se forem conjugados com a dimensão temporal. Avaliar o presente com refe-
rência ao passado ou ao futuro, organizar o seu devir sob o modo da previdência ou
o da previsão, ver a vida em termos de etapas ou de carreira tanto para a família ou a
profissão como para a habitação, ter ou não uma divisão estrita do tempo de lazer,
tudo isto constitui outras tantas variáveis que se repercutem ao nível da organização
do espaço.
A preocupação dessa conjunção do espaço e do tempo levou-nos a privilegiar uma
entrada para as estruturas. Mas a matriz poderia ser transposta para servir de base a
uma análise centrada nos agentes, na sua vida quotidiana, nas suas estratégias, nos
seus modos de representação e de utilização dos espaços onde decorre a sua vida
social. Essa preocupação alternativa estaria mais próxima de um procedimento antro-
pológico, ao passo que o ponto de vista que retivemos se inscreve mais directamente
na preocupação com o pôr em marcha de uma acção colectiva.
Assim, uma sociologia do espaço e do tempo confirma-se como distinta de socio-
logias especializadas num ou noutro domínio de actividade (família, educação, em-
presa,...). Enquanto tal, ela é uma contribuição directa para uma sociologia geral da
regulação e da transformação social(1).

(1) Michel MARIÉ, Les ierres et les mots. Analyse institutionnelle, Paris, Éd. Méridiens/Klincksieck,
1989, (nomeadamente: Conclusion: I'espace transitionnel).

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