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Literatura e

Identidade Cultural

(Organizador)

Eduardo Dias da Silva


Literatura e Identidade
Cultural
Conselho Editorial Técnico-Científico Mares Editores e Selos Editoriais:

Renato Martins e Silva (Editor-chefe)


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Lia Beatriz Teixeira Torraca (Editora Adjunta)


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Ilma Maria Fernandes Soares (Editora Adjunta)


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Vitor Cei
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Literatura e Identidade
Cultural

1ª Edição

Eduardo Dias da Silva


(Organizador)

Rio de Janeiro
Eulim
2017
Copyright © da editora, 2017.

Capa e Editoração
Mares Editores

Os textos são de inteira responsabilidade de seus autores e não representam


necessariamente a opinião da editora.

Dados Internacionais de Catalogação (CIP)

Literatura e identidade cultural / Eduardo Dias da Silva


(Organizador). – Rio de Janeiro: Eulim, 2017.
185 p.
ISBN 978-85-93442-13-1
1. Análise e crítica literária. 2. Literatura 3. Identidade I.
Título.

CDD 801.95
CDU 82

2017
Todos os direitos desta edição reservados à
Mares Editores e seus selos editoriais
Eulim é um selo editorial de Mares Editores
Contato: mareseditores@gmail.com
Sumário

Apresentação ................................................................................ 9

Bixa Preta Linn da Quebrada: literária, cosmopolita e social ..... 16

Reflexões sobre identidade na literatura de José Rezende Jr. ... 31

Imagens da mulher contemporânea produzidas nas crônicas de


Martha Medeiros ........................................................................ 45

A constituição do ethos feminino no “A moça tecelã”, de Marina


Colasanti ..................................................................................... 71

Vozes negras femininas: canção de protesto, escrita da resistência


.................................................................................................. 100

Resgatando a identidade cultural negra através da negritude:


memórias costuradas ............................................................... 127

Entre o mel e a graúna, Iracema; entre África e América, navio


negreiro: história e literatura como enfrentamento das
desigualdades ........................................................................... 158

Sobre os autores ....................................................................... 183


Apresentação

Discorrer sobre Literatura e Identidade Cultural apresentadas


nessa obra é uma responsabilidade como também uma grata
satisfação para aqueles, que assim como nós, estão diretamente
ligados com os estudos lito-identitários culturais e suas várias
vertentes e possibilidades, tanto teóricas quanto metodológicas.
Dialogando, assim, com diversos campos das ciências humanas e
sociais em um processo constante de busca de melhor compreender
os fenômenos socioculturais no contexto brasileira e neles intervir
com vistas à construção de um caleidoscópio cultural frente aos
desafios que pairam sobre os retrocessos sociais recentes deste país.
Neste sentido, é com satisfação que apresentamos essa
coletânea de textos que versam sobre temas literários e de identidade
cultural pertinentes aos âmbitos da educação básica e do ensino
superior, frutos de estudos realizados por pesquisadores e estudantes
de cursos de mestrados e doutorados de diferentes regiões do país.
Esta obra tem o objetivo de fomentar a discussão de temáticas
relacionadas a Literatura e Identidade Cultural em curso no Brasil,
focando a abordagem de temas diversos considerando impactos e
mudanças nas práticas pedagógicas e sociais na Educação Básica, bem
como na Educação Superior, com reflexos diretos na formação inicial
e continuada de professores/as e, em última instância, na formação de

-9-
estudantes matriculados nestes níveis de ensino, no fomento de uma
sociedade justa, diversa e igualitária.
Com este foco, os/as autores/as de cada capítulo que compõe
esta obra, apresentam reflexões teórico-práticas em torno da
Literatura e Identidade Cultural em diferentes redes de ensino, a partir
de orientações e determinações da legislação educacional, com suas
implicações na organização do processo de ensino e aprendizagem e
formação de professores para os diferentes níveis, etapas e
modalidades de ensino.
Dessa forma, os aportes teóricos, bem como as análises das
experiências realizadas pelos estudos que aqui encontramos,
demonstram uma abordagem crítico-reflexiva que passa a ser
partilhada a partir da organização dessa coletânea. Os diversos textos
constituídos em forma de artigos estruturam os sete capítulos do livro.
Estes retratam temas ligados à representação do humano, aos
modelos de identidade e construções sociais em relação a
determinados sujeitos, à reflexão acerca das imagens da mulher, na
contemporaneidade, à compreensão do ethos discursivo de
personagens nos diferentes momentos da narrativa de um conto, às
vozes negras femininas no pensar as questões de raça e de gênero
promovendo um diálogo com o feminismo e suas manifestações e, por
último, à identidade cultural negra através da negritude, partindo da
crítica feminista negra.

- 10 -
A seguir apresentamos os artigos na sequência dos capítulos
que organizam a estrutura do livro, como o intuito de oferecer aos
leitores/as uma visão geral da obra. O primeiro capítulo apresenta um
artigo que versa sobre as possibilidades de representação do humano
pela música e poesia de Bixa Preta (2017) de Linn da Quebrada no
questionamento do lugar e da falta de visibilidade das bichas pretas,
pobres e faveladas na sociedade brasileira. O artigo, escrito por
Eduardo Dias da Silva intitula-se “Bixa Preta Linn da Quebrada:
literária, cosmopolita e social”, buscou desvelar as estruturas sociais
de poder, ideologia, opressão, mas, a partir delas, apresentar soluções
para a sua superação. Contribuindo, significativamente, para a
compreensão dos mecanismos sociais de dominação e resistência ou
de emancipação e de transformação social, segundo seu autor.
No capítulo dois o/a leitor/a encontrará o artigo intitulado
“Reflexões sobre identidade na literatura de José Rezende Jr.” escrito
por Felipe Teodoro da Silva que traz uma reflexão sobre as formas de
representação de identidade presentes no conto A Triste Orla do
Aqueronte (2005) do autor brasileiro José Rezende Jr., dessa forma o
estudo pretende observar como a leitura da obra de Rezende Jr. pode
colaborando em possíveis processos formativos, levando em
consideração uma de suas características, a alteridade, que é revelada
na apresentação de diversos tipos de narradores, pertencentes a
vários contextos sociais.

- 11 -
No capítulo seguinte, o terceiro, o/a leitor/a encontrará o texto
intitulado “Imagens da mulher contemporânea produzidas nas
crônicas de Martha Medeiros “, de autoria de Silvana Nascimento
Lianda, apresenta uma reflexão acerca das imagens da mulher, na
contemporaneidade, identificadas nas crônicas da escritora Martha
Medeiros, considerando, inclusive, os relatos de si também expressos
em seus textos. Além dos espaços de construção da escritora, os
modos de circulação de suas crônicas, a relação entre a escrita
feminina e a escrita de si, os modos de produção da subjetividade
feminina e os relatos sobre o cotidiano feminino contemporâneo
narrado por Martha Medeiros. As crônicas utilizadas como base foram
extraídas do livro Doidas e Santas, da referida escritora, publicado em
2010.
O capítulo quarto intitula-se “A constituição do ethos feminino
no ‘A moça tecelã’, de Marina Colasanti”, de autoria de Sabrina
Caroline Bassani. A autora propõe no artigo uma análise do ethos
feminino nesse conto de Marina Colasanti, na compreensão de como
se apresenta o ethos discursivo da personagem nos diferentes
momentos da narrativa, partindo dos pressupostos teóricos de
Maingueneau (1996, 2001, 2004, 2008a, 2008b, 2010, 2011),
procurou-se apresentar suas contribuições quanto à compreensão de
ethos discursivo e aprofundar os conceitos de fiador e de cenografia.
Observou-se a construção de uma personagem com um ethos variável,
que se transforma no decorrer do texto.

- 12 -
O quinto capítulo foi escrito por Juliana Aparecida dos Santos
Miranda e intitula-se “Vozes negras femininas: canção de protesto,
escrita da resistência”. Trata-se de evidenciar as vozes negras
femininas no movimento Riot Grrrl, pensando nas questões de raça e
de gênero promovendo um diálogo com o feminismo e suas
manifestações, destacando as vozes negras deste movimento e
percebendo os discursos de empoderamento das mulheres negras
com identidades múltiplas e em pleno estado de aceitação. Através de
uma discussão teórica e da análise textual de duas músicas de
protesto, observa-se o protagonismo da mulher negra que se recusa
se encaixar nos padrões estabelecidos pelos sistemas hegemônicos de
dominação e opressão. Neste contexto, a autora reflete sobre a
mulher negra, lésbica e gorda, pensando, sobretudo, na
representatividade e no modo como esses corpos descolonizados
promovem a revolução através da resistência e da autoafirmação.
O penúltimo capítulo, o sexto do livro de autoria de Dênis
Moura de Quadros se intitula “Resgatando a identidade cultural negra
através da negritude: memórias costuradas”. A discussão trazida por
este artigo parte da crítica feminista negra que pauta-se na
interseccionalidade ao analisar os espaços delegados às mulheres
negras na contribuição da formação de uma identidade cultural que
sofre com as constantes tentativas de apagamento e deslegitimação.
O processo de tomada de consciência dessa identidade ocorre através
da negritude que, na literatura, se dá através da autorrepresentação.

- 13 -
Para tanto, o autor usa como “testemunho” que essas memórias são
costuradas, as escritas de autossuperação de Ilhota: testemunhos de
uma vida (1993) de Zeli de Oliveira Barbosa (1941-2017) e os
depoimentos dAs Filhas da lavadeiras (2002) recolhidos por Maria
Helena Vargas da Silveira (1940-2009), a Helena do Sul.
O sétimo capítulo foi escrito por Heraldo Márcio Galvão Júnior
e Eliane Miranda Machado e intitula-se “Entre o mel e a graúna,
Iracema; entre África e América, navio negreiro: história e literatura
como enfrentamento das desigualdades”, no presente artigo os
autores apresentam uma pesquisa que dialoga diretamente com o
projeto de extensão desenvolvido no Instituto de Estudos do Trópico
Úmido – IETU/UNIFESSPA, em parceria com uma escola da rede
estadual de ensino. Esse projeto visa realizar um trânsito
interdisciplinar entre a Literatura e a História, com vistas a analisar as
ideologias referentes a diversidade cultural e ao processo de inclusão
étnico racial, sob os dois vieses, identificando, com isso, as
contribuições de literatos e historiadores na construção do discurso e
das lutas de inclusão.
Todos os textos presentes nesta obra convergem para um
ponto que é indiscutível e unânime entre o grupo de autores que é a
defesa de um mosaico cultural que resguarde os direitos sociais de
todos e todas como condição de constituição de uma vida mais cidadã,
neste sentido é que as questões da Literatura e Identidade Cultural
que lhes alicerça são discutidas. Identificamos um chamamento e um

- 14 -
empenho para este debate em torno do tema em tela. Desta forma
localizamos o atrativo da obra para todos e todas aqueles/as que
pesquisam Literatura e Identidade Cultural e auspiciam uma sociedade
de respeito às diferenças, mais democrática e regida por uma cultura
de alteridade levada ao patamar de desenvolvimento do século XXI.

O organizador

- 15 -
Bixa Preta Linn da Quebrada: literária, cosmopolita e
social

Eduardo Dias da Silva1

Introdução
Na evolução e na popularização das Tecnologias e das Artes, de
um modo geral, tem se apresentado no bojo destas áreas, novos
conceitos de cultura e de informação, e também na substituição de
velhos dogmas que já vinham sendo discutidos ao final do século XX e
das primeiras duas décadas do século XXI, sinalizam mudanças
sistemáticas acontecendo, em velocidade crescente, como apontado
por Pennycook (2001; 2006) que pretende-se mostrar ao longo desse
trabalho.
Das favelas (comunidades) para o mundo, do morro para redes
sociais, do funk entretenimento para o pop politizado e engajado. Linn
da Quebrada, sujeito cosmopolita na definição de globalização contra-
hegemônica de Sousa-Santos (2005), na qual há a valorização da
cultura local com ancoragem em elementos e tendências globais,
dessa forma, travestindo o global com aspectos locais, por vezes

1
Doutorando em Literatura e Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade de
Brasília (UnB). Professor de LEM/Francês e Pedagogo na Educação Básica da
Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF). Pesquisador dos
Grupos GECAL/UnB/CNPq e FORPROLL/UFVJM/CNPq.

- 16 -
antagônicos, para com isso mostrar uma visão combatida e, ao mesmo
tempo, indignada.
Linn da Quebrada e suas letras poético-musicais são sujeitos
frutos de uma sociedade, que de acordo com alguns pensadores, estão
inseridos em uma sociedade líquida (Bauman, 2009) ou pós-moderna
(Lyotard, 2011) ou em um processo de modernidade tardia (Giddens,
2002) cujos os elementos estão fragmentados/diluídos, deixando
simplesmente de existir, sendo necessário recorrer a fragmentos,
fatos ou “pedaços” da história para dar sentido à materialidade do
sujeito na interação social mediada pela linguagem, de acordo com
Silva (2014).
Pode-se dizer que a modernidade líquida/tardia/pós-moderna
é a época atual em que se vive. É o conjunto de relações e instituições,
além de sua lógica de operações, que se impõe e que dão base para a
contemporaneidade. É uma época de liquidez, de fluidez, de
volatilidade, de incertezas e inseguranças. É nesta época que toda
rigidez, certeza e todos os referenciais morais da época anterior,
denominada pelos autores como Bauman, Lyotard e Giddens como
modernidade de outrora, são retiradas de cena para dar espaço à
lógica do agora, do consumo, do gozo e da artificialidade.
Na busca da (in)completude dos termos ou denominações
supracitadas que tentam definir ou que procuram explicar o atual
quadro social no qual se insere Linn da Quebrada e suas letras poético-
musicais, já é de se pensar que outros tantos termos serão e são

- 17 -
também difíceis de conceituar, mostrando a polissemia e a
descentralidade das pesquisas sociais e literárias atuais,

e nesse processo de comunicação, a possível


mensagem veiculada giraria em torno da afirmação
da pessoa negra pelo que ela é. E isso vai além de
suas características físicas, fenotípicas e biológicas.
A construção da identidade [...] é uma construção
interdiscursiva e multicultural. A identidade é uma
construção social e política (ALMEIDA, 2015, p.
101).

Proporcionando, desse modo, ricas contribuições para a


compreensão ou tentativa de compreensão do mundo em que sujeitos
como Linn da Quebrada vivem e das relações humanas nelas inseridas,
buscando “ter voz, então, é primordial para subverter a ordem onde
os estereótipos constituem o controle social. Dar voz à menina negra
[Linn da Quebrada] contribui para a diminuição da negação e
invisibilidade na literatura em geral”, segundo Almeida (2015, p. 116),
para artistas contemporâneos como Linn da Quebrada.
A proposta dessa pesquisa qualitativa de análise documental é
colocar em evidência o teor literário, cosmopolita e social da
“Bixistranha, loka preta da favela” que Linn da Quebrada
relata/representa em sua letra poético-musical por intermédio da
canção Bixa Preta (2017), pois acredita-se que “há um processo de
associação entre a identidade pessoal e a identidade social. Ou seja, ‘a
identidade social’ é fruto do processo da inter-relação da ‘identificação

- 18 -
do indivíduo’ (ALMEIDA, 2015, p.106-107, grifos da autora), relativas
ao artista em tela. Desse modo,

a pesquisa documental trilha os mesmos caminhos


da pesquisa bibliográfica, não sendo fácil por vezes
distingui-las. A pesquisa bibliográfica utiliza fontes
constituídas por material já elaborado, constituído
basicamente por livros e artigos científicos
localizados em bibliotecas. [Enquanto que] A
pesquisa documental recorre a fontes mais
diversificadas e dispersas, sem tratamento
analítico, tais como: tabelas estatísticas, jornais,
revistas, relatórios, documentos oficiais, cartas,
filmes, fotografias, pinturas, tapeçarias, relatórios
de empresas, vídeos de programas de televisão,
etc. (FONSECA, 2002, p. 32).

As análises estão embasadas teórico-metodologicamente no


Realismo Crítico (BARROS, 2015), na Teoria das Representações Sociais
de Moscovici (1979; 2009) e na Análise Crítica do Discurso (ACD) de
Chouliaraki e Fairclough (1999) e Fairclough (2001).
A Teoria das Representações Sociais tem baseamento nas
representações coletivas preconizadas tanto na vida social quanto na
vida mental das pessoas e são constituídas por representações que,
depois de sedimentadas, tornam-se quase autônomas e exteriores às
consciências individuais, de acordo com Moscovici (1979; 2009).
O Realismo Crítico mostra a vida como ela realmente é, tem
uma postura objetiva, descreve o que está errado de forma natural, e
até certo ponto estimula mudanças, pois a ciência deve servir para
revelar algo que sirva para transformar a realidade social, como

- 19 -
elucidado por Silva (2017, p. 54). Sendo assim, comparado ao
Positivismo e ao Interpretativismo, o Realismo Crítico endossa e, é
compatível com uma gama relativamente ampla de métodos de
pesquisa, mas tem implícito que “as escolhas particulares devem
depender da natureza do objeto de estudo e daquilo que se quer
apreender acerca do mesmo” (Sayer, 2000, p. 20). Ou
complementando essa ideia, nos dizeres de Silva (2017, p. 55-56),

“a abordagem da ACD está em consonância com o


realismo crítico por entender o mundo social como
um sistema aberto, em constantes transformações.
O pesquisador, segundo a ACD, não é neutro; ao
contrário, deve ser crítico e transformador”.

O modelo de análise proposto por Chouliaraki e Fairclough


(1999), baseado na crítica explanatória de Bhaskar (1998; 2002),
sugere cinco momentos, de acordo com Papa (2011): i) Identificação
do problema; ii) Obstáculos a serem enfrentados; iii) Função do
problema na prática; iv) Possíveis maneiras de superar os obstáculos;
v) Reflexão da análise para explicar a realidade atual, seus atores e
suas interações. Vale, também, esclarecer que o foco da ACD não é a
linguagem como estrutura ou como ação individual, mas, sim, a
linguagem como prática social. A importância desta entidade social
para a ACD, assim como para a ciência social crítica, decorre de sua
qualidade de intersecção entre estruturas abstratas e seus
mecanismos, e eventos concretos na sociedade e pessoas vivendo
suas vidas, segundo Chouliaraki e Fairclough (1999) e Ramalho (2009).
- 20 -
Dessa forma, “a percepção de vida social organizada em torno de
práticas sociais ajuda a evitar o foco estrito na agência humana ou em
textos, por um lado, e na estrutura ou no sistema lingüístico, por
outro”, como elucidado por Ramalho (2009, p, 10).

Lacradora, lacração, lacrar


Destruir paradigmas sexuais, de identidade e de gênero é, uma
das possíveis, luta da funkeira MC Linn da Quebrada. Ela se define, de
acordo com seu site oficial como “Bicha, trans, preta e periférica. Nem
ator, nem atriz, atroz. Bailarinx, performer e terrorista de gênero”.
Ativista, ela colaborou com a formação da organização não-
governamental ATRAVESSA (Associação de Travestis de Santo André)
e atua como performer no Coletive Friccional. No clipe de seu primeiro
single, intitulado Enviadecer, Linn destrói a hierarquia aceita como
normal, em que as gays efeminadas cobiçam os machões. Segundo,
relato de Linn da Quebrada no seu site,

“Essa bixa preta também sou eu, mas, além disso,


são muitas outras além de mim”, comenta Linn
sobre a mensagem abordada na canção. “O nosso
corpo é visto como um corpo errado, preterido,
com o qual ninguém quer se relacionar. Para a
sociedade, a bixa preta é isso, mas o que eu quero
com a música é dizer que podemos nos amar e nos
desejar. Ser bixa preta é resistência, é poder e é
afeto” (QUEBRADA, s/d).

- 21 -
A letra poético-musical de Bixa Preta, lançado em fevereiro de
2017 pela artista e performer MC Linn da Quebrada, traz em sua letra
um aviso direto contra as imposições de gênero da sociedade: “...se
liga macho, presta muita atenção, senta e observa a tua destruição”.
Bixa Preta (2017) clama por mais respeito aos corpos e suas inúmeras
possibilidades de transformação, por meio de um funk dançante
inspirado no sucesso de Baile de Favela, do MC João, esses artistas
ganham o mundo.
Bixa, palavra estranha, nem tanto no universo gay, tão pouco
no mundo das travestis, mas cuidado para os desinformados que
chamá-las de bixa sem ser do meio, cuidado de quem quiser fazer
dessa palavra ofensa. Ser bixa é enviadescer, mas não é só dar o cú,
tão pouco tem a ver com pau, MC Linn da Quebrada já alertava antes.
Bixa é ser livre, resistência, quem faz do corpo o que quer, sua arte, se
expressa em generofoda-se. Corpo político para além de toda e
qualquer normatividade hetero-branco-fálica, a todo momento
causando a dúvida, o desconforto – é menino ou menina? Melhor,
aquilo que nem devia existir, mas que, por existir sem dever, entorna,
transforma, não deixa a norma intacta, causa estranhamento.
Mas e se além de bixa, ela ainda for preta, pobre e favelada?
Bixa preta, música, corpo, atitude que além de político, agora é campo
de guerra – a letra poético-musical do novo single da Mc Linn da
Quebrada, artista atroz, terrorista de gênero, como ela se intitula –
pauta os corpos pretos marginalizados, tratados como verdadeiros

- 22 -
monstros, “no olhar do macho quando a gente passa”, corpo que
aprende a fazer do escárnio combustível e, assim, esse “macho” tem
que se cuidar e muito, porque ela é "bixistranha, loka, preta da favela
[...] elas tomba, fexa, causa, elas é muita lacração" – ela como tantas
outras bixas pretas são orgulhos, são sobre saber que aquele riso do
“macho” é de nervoso, é de quem tá com medo não de ser só
destruído, mas desconstruído, de se ver igual, livre da ditadura do pau.
No trecho “Quando ela tá passando todos riem da cara”, tem-
se o primeiro momento, conforme asseguram Chouliaraki e Fairclough
(1999) e Fairclough (2001), o analista crítico do discurso deve
identificar o problema que pode estar em alguma parte da vida social,
bixa preta que precisa impor sua existência na comunidade pobre da
qual ela faz parte, buscando não só aceitação, mas visibilidade para
além dos morros.
No segundo momento, o analista crítico do discurso deve
reconhecer os possíveis obstáculos a serem enfrentados. Precisa fazer
uma análise denominada por Chouliaraki e Fairclough (1999) e
Fairclough (2001) de análise de conjuntura. Conforme os autores, a
conjuntura a que eles se referem representa um trajeto particular de
uma rede de práticas que constituem as estruturas sociais. Percebidas
em,

“se liga maxo/ Presta muita atenção/ Senta e


observa a tua destruição/ Que eu sou uma bixa loka
preta favelada/ Quicando eu vou passar/ e

- 23 -
ninguém mais vai dar risada/ Se tu for esperto,
pode logo perceber/ Que eu já não to pra
brincadeira/ Eu vou botar é pra fuder [...] ”
(QUEBRADA, 2017, s/p).

Ao proceder a análise de conjuntura, deve atentar-se para a


análise de uma prática em particular ou práticas sociais. Chouliaraki e
Fairclough (1999) e Fairclough (2001) identificam quatro momentos da
prática social: atividade material; relações sociais; fenômenos mentais
e discurso apresentados no excerto supracitado.
No terceiro momento, procura-se olhar a função do problema
na prática. Chouliaraki e Fairclough (1999) e Fairclough (2001)
explicitam a necessidade de que seja considerado o ‘se’ e o ‘como’ o
aspecto problemático do discurso tem uma função particular dentro
da prática social. Significa dizer que deve se concentrar em apenas um
aspecto da análise, acima dos obstáculos, para conseguir abordar o
problema. Significa também mudar do ‘é’ para ‘deve’, ou seja, passar
da fase da explanação da prática que conduz ao problema, para a fase
da avaliação da prática, em termos de resultados.

Que bixistranha, insandecida/ Arrombada,


pervertida/ Elas tomba, fecha, causa/ Elas são mta
lacração/ [...] A minha pele preta, é meu manto de
coragem/ Impulsiona o movimento/ Envaidece a
viadagem/ Vai desce, desce, desce, desce/ Desce a
viadagem! (QUEBRADA, 2017, s/p).

No quarto momento, procura-se as possíveis maneiras de


superar os obstáculos. Deve-se também mudar do ‘é’ para ‘deve’, isto

- 24 -
é, se as práticas estiverem problemáticas ou danificadas, o
pesquisador tem que procurar transformá-las. O analista crítico do
discurso deve, portanto, investigar os efeitos reprodutivos das
práticas, como elucidado por Papa (2011). No quinto e último
momento, deve-se fazer uma reflexão da análise, isto é, manter-se
como um pesquisador reflexivo, tendo em vista ser a pesquisa social
uma pesquisa crítica. Nesse sentido, a reflexão deve levar em
consideração se o que está sendo realizado é de fato uma pesquisa
que visa algum tipo de mudança na prática social.

Sempre borralheira com um que de chinderella/ Eu


saio de salto alto/ Maquiada na favela/ Mas, se liga
maxo/ Presta muita atenção/ Senta e observa a tua
destruição/ Que eu sou uma bixa loka preta
favelada [...]/ e ninguém mais vai dar risada/ Se tu
for esperto, pode logo perceber/ Que eu já não to
pra brincadeira/ Eu vou botar é pra fuder [..]/ Mas
que pena, só agora viu que bela aberração?/ É
muito tarde, macho alfa/ Eu não sou pro teu bico/
Não (QUEBRADA, 2017, s/p).

Antes da finalização do presente trabalho, tenciona-se


ressaltar que os estudos das representações sociais e do Realismo
Crítico na letra poético-musical de Bixa Preta (2017) podem somar
esforços aos grupos que intencionam a desconstrução da possiblidade
de existência de uma verdade absoluta “e que pode contribuir para o
rompimento dos estereótipos voltados à menina negra [Linn da
Quebrada], como meio de repensar o presente tendo em vista a

- 25 -
construção do futuro” (ALMEIDA, 2015, p. 116), cuja concepção é fruto
da revolução científica que dá início, por vezes, ao pensamento crítico-
reflexivo, segundo Alaminos e Mattos (2007) e Silva (2014).

Considerações finais
Neste artigo, sobre pesquisa em andamento, apresentou-se
algumas reflexões teórico-metodológicas da Análise Crítica do
Discurso (ACD), ressaltando aspectos do Realismo Crítico (RC) na letra
poético-musical da “Bicha, trans, preta e periférica. Nem ator, nem
atriz, atroz. Bailarinx, performer e terrorista de gênero” MC Linn da
Quebrada, considerados relevantes para analistas críticos do discurso
que desejam agir de forma a transformar as estruturas sociais de
poder e opressão na atualidade brasileira.
As considerações feitas aqui baseadas em estudos de
Chouliaraki e Fairclough (1999) e Fairclough (2001), com base no
Realismo Crítico de Bhaskar (1989), permitiram uma reflexão sobre
como a letra poético-musical de Bixa Preta (2017) de MC Linn da
Quebrada, na identificação do problema do gay efeminado, pobre,
negro, nas periferias do Brasil, tendo que superar os osbstáculos de
aceitação de gênero, de sexualidade e de identidade na formação
cultural brasileira.
A função do problema na prática trazida pela “Bicha, trans,
preta e periférica. Nem ator, nem atriz, atroz. Bailarinx, performer e
terrorista de gênero” Linn da Quebrada não é rotular pessoas, e sim,

- 26 -
empoderar e dar visibilidade as bixas pretas de que há espaço para
todos e todas na sociedade brasileira. A música é um dos veículos de
massa para as possíveis maneiras de superar os obstáculos sociais,
ideologias e culturais na aceitação da diversidade de gênero, de sexo
e de identidades.
As relações de poder, hegemonia e opressão devem ser apenas
uma parte da análise realizada pelos pesquisadores sociais críticos.
Pois, é preciso não apenas desvelar as estruturas sociais de poder,
ideologia, opressão e etc., mas, a partir delas, buscar soluções para a
sua superação. Contribuindo, significativamente, para a compreensão
dos mecanismos sociais de dominação e resistência ou de
emancipação e de transformação social, MC Linn da Quebrada é a bixa
preta que traduz mudança e reflexão no comportamento social dos
brasileiros e das brasileiras na busca de uma sociedade caleidoscópio
de cores e não monocromática.

- 27 -
Referências

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inclusão escolar. In: SILVA, E. R.; UYENO, E. Y.; ABUD, M. J. M.
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- 30 -
Reflexões sobre identidade na literatura de José
Rezende Jr.

Felipe Teodoro da Silva2

Introdução
A proposta desse trabalho leva em consideração a literatura
não apenas como arte, mas também como uma forma de
conhecimento que nos ajuda a interpretar a nossa realidade e que
também oferece possibilidades de compreendê-la e,
consequentemente, transformá-la. É no texto literário que a
linguagem alcança seu potencial máximo de imaginação e significação,
com suas marcas linguísticas, figuras de linguagem, imagens, e a
riqueza sinestésica, chegamos mais próximos da essência humana e
também conhecemos outras perspectivas da realidade. De acordo
com Antonio Candido:

A arte, e portanto a literatura, é uma transposição


do real para o ilusório por meio de uma estilização
formal da linguagem, que propõe um tipo
arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os
sentimentos. Nela se combinam um elemento de
vinculação à realidade natural ou social, e um
elemento de manipulação técnica, indispensável à

2
UEPG
- 31 -
sua configuração, e implicando em uma atitude de
gratuidade (CANDIDO, 1972:53).

Dessa forma, a literatura torna-se uma ferramenta


imprescindível para a criação de novas formas de interação e
reconhecimento do eu, do mundo e também do outro. Agindo como
uma experiência de descoberta e redescoberta do mundo, atuando
assim na própria construção das identidades do sujeito. Segundo Leyla
Perrone-Moisés, isso se torna possível porque:

A significação, no texto literário, não se reduz ao


significado, mas opera a interação de vários níveis
semânticos resulta numa possibilidade
teoricamente infinita de interpretações; porque a
literatura é um instrumento de conhecimento do
outro e de autoconhecimento; porque a ficção, ao
mesmo tempo que ilumina a realidade, mostra que
outras realidades são possíveis (PERRONE-MOISES,
2008, p.18).

Partilhando dessa mesma noção, Todorov, em A literatura em


perigo, reitera o papel da ficção como uma nova capacidade de
comunicação com seres diferentes de nós. Citando um estudo do
filósofo americano Richard Rorty, ele declara que “conhecer novas
personagens é como encontrar novas pessoas” (TODOROV, 2009,
p.80) e “Quanto menos essas personagens se parecem conosco, mais
elas ampliam nosso horizonte, enriquecendo assim nosso universo”
(TODOROV, 2009, p.81). Sendo assim, buscamos aqui entender melhor
esses processos de “encontro com o outro” que a ficção pode

- 32 -
proporcionar ao leitor, levando em conta as possíveis questões
formativas que os textos apresentam.

Eu e o outro
A sociedade funciona através da interação, e as comunicações
só são possíveis com o contato com esse outro, que acontece através
do discurso. Bakhtin (1997) escreveu diversos ensaios cujo tema
principal era a relação entre o eu e os Outros. Para o autor, ser é ação
da pessoa. Uma forma particular da ação é o discurso entendido como
uma ação linguística. E através dessa ação linguística, proporcionada
pela língua, que surge a voz e os processos comunicativos. Nessa
articulação, o autor desenvolve sua perspectiva de dialogismo, não
como conceito, categoria que pode ser mobilizada, mas como visão de
mundo. Segundo ele, o diálogo não é apenas a comunicação entre
duas pessoas frente a frente, em voz alta. O diálogo, para Bakhtin, é a
forma mais importante de interação verbal. Porém, não significa que
seja necessária a presença de duas ou mais pessoas no mesmo
ambiente para que se estabeleça a comunicação. O conceito de
diálogo, sob esse ponto de vista, é muito amplo e a comunicação se dá
através dos gêneros discursivos. Com base nos estudos de Bakhtin, em
Estética da criação verbal (1997), o princípio dialógico institui a
alteridade como constituinte dos seres humanos e de seus discursos.
Para o autor, a palavra do outro é que nos traz ao mundo exterior.

- 33 -
A experiência verbal individual do homem toma forma e evolui
sob o efeito da interação contínua e permanente com os enunciados
individuais do outro. É uma experiência que se pode, em certa medida,
definir como um processo de assimilação, mais ou menos criativo das
palavras do Outro, e não as palavras da língua. (BAKHTIN, 1997, p. 313-
314). É a partir dessa perspectiva que Bakhtin explica:

Nossa fala, isto é, nossos enunciados, estão


repletos de palavras dos Outros, caracterizadas,
em graus variáveis, pela alteridade ou pela
assimilação, caracterizadas, também em graus
variáveis, por um emprego consciente e decalcado.
As palavras dos Outros introduzem sua própria
expressividade, seu tom valorativo, que
assimilamos, reestruturamos e modificamos.
(BAKHTIN, 1997, p. 314).

Bakhtin ao descrever o dialogismo, faz um estudo enunciativo


da linguagem dando ênfase ao fenômeno da alteridade, sobre a sua
importância no processo de comunicação verbal. Para o autor, a
comunicação é vista como uma relação de alteridade e essa é a
essência pela qual constrói o princípio do dialogismo. Desse modo, os
principais pontos do dialogismo são as constantes relações que o
homem mantém com o mundo por meio da linguagem e a
comunicação, como relação de alteridade, que se constitui do eu pelo
reconhecimento do tu. Dessa forma a comunicação só existe na
reciprocidade do diálogo; significa mais que a transmissão de
mensagens. É por meio da interação que o homem se constitui como

- 34 -
sujeito consciente, numa relação de alteridade. É através desse
referencial teórico que nos propormos a analisar a literatura, levando
em construção que essa é um fenômeno da linguagem. Olhar para a
alteridade presente na literatura – ou a outridade, como quer Octávio
Paz, que a vê a alteridade como a percepção do outro que há em nós,
ou seja, “de que somos outros sem deixar de ser o que somos”. (2003,
p.107) e discutir como esses processos de alteridade dentro do texto,
nos afetam através da leitura dos textos. Nossa análise tem como
objetivo entender como se dá essa relação do Eu e o Outro dentro da
obra do escritor José Rezende Jr. e compreender melhor a construção
das próprias identidades, levando em consideração as possíveis
experiências oferecidas ao leitor. Que tipo de “outro” é possível
encontrar nas obras do autor e como a alteridade pode atuar como
forma de humanizar aquele que lê, tendo em mente que uma das
funções da própria literatura é a de Humanização, como escreve
Candido “A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na
medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a
natureza, a sociedade, o semelhante” (CANDIDO, 1989, p. 117).

O conto de José Rezende Jr. e a alteridade


José Rezende Jr. é mineiro, nasceu em 1959 na cidade de
Aimorés e atualmente vive em Brasília. Atuou muitos anos como
jornalista e foi só e, 2005 que estreou na ficção com o livro de contos
A Mulher-Gorila e outros demônios. Na sequência publicou outros dois

- 35 -
livros de contos, sendo eles Eu perguntei pro velho se ele queria
morrer (e outras histórias de amor) em 2010, livro que ganhou o
Prêmio Jabuti e em 2016 seu terceiro e mais recente livro de contos
Os Vivos e os Mortos. Para a proposta do trabalho é realizar uma
análise do texto A triste orla do Aqueronte (2005). A análise levará em
consideração as possíveis questões formativas nos textos e que tipo
de experiência o autor oferece ao leitor, partindo do pressuposto que
a leitura literária oferece a possibilidade de olhar o mundo através de
uma perspectiva diferente da nossa.

A triste orla do Aqueronte


Neste conto, José Rezende Jr trata da invisibilidade dos
membros da classe mais baixa, por meio do personagem que é um
retirante, contrapondo-o com o que seria seu oposto, um homem de
negócios em seu local de trabalho. O conto é narrado em primeira
pessoa, através de um fluxo de consciência de um personagem que
logo será identificado pelo outro como “Doutor”. Esse personagem-
narrador inicia seu relato contando o momento em que é “abordado”
pelo sujeito de classe mais baixa, logo que entra no elevador “Doutor,
ele foi logo começando, e começou mal, odeio que me chamem de
Doutor, quer dizer, faço questão absoluta que me chamem de Doutor,
não encomendei à toa ao decorador de luzes que incidem 24 horas por
dia sobre minha vasta coleção de diplomas, exijo ser chamado de
Doutor, mas odeio quando pobre me chama de Doutor, pobre só

- 36 -
chama rico de Doutor na hora de pedir um prato de comida, um
emprego ou outra caridade, odeio pobre” (REZENDE JR., 2005: p.79).,
Já nesse primeiro parágrafo é possível perceber muitos dos traços do
personagem, neste conto, José Rezende Jr. escolhe um homem rico,
intelectual e que apresenta em um primeiro momento o desconforto
e preconceito em relação à pessoas pobres.
A narrativa segue com a descrição do outro, quem narra o
diferente, é o homem rico e o conto todo trabalha com essa relação
entre o Eu e o outro. O importante aqui é entender como o autor
realiza uma crítica escancarando um perfil de sujeito social que
infelizmente é possível se reconhecer em nosso dia-a-dia. Por alguns
minutos durante a leitura do conto, nós assumimos não só o papel do
narrador, mas também do outro personagem, que diz muito pouco,
mas é extremamente essencial para o desenvolvimento da narrativa,
visto que é o encontro dos dois a base para todo o enredo. No início
do conto o narrador conta que conheço o “tipo” do sujeito que se
encontra no elevador, segundo ele “retirantes, pedintes, aleijados,
fodidos em geral” (REZENDE JR. 2005: p. 79), nesse trecho temos a
informação sobre outra característica do protagonista, a erudição. Ele
diz que sempre que está lendo em seu carro, ele é interrompido por
um “pobre”, afirmando que as ruas estão cheias de pessoas
desprezíveis. Sobre a leitura, o narrado nos conta que lê poesia, que
não gosta de tradução e cita um dos seus versos favoritos no seguinte
trecho “eu os vejo nas ruas quando interrompo por um instante a

- 37 -
leitura dos versos que quase sei de cor, os versos que só leio no
original, odeio traduções, Nel mezzo del cammin di nostra vita...”
(REZENDE JR., 2005: p.79). Os versos recitados pelo narrador
funcionam no início do texto como uma ferramenta para melhor
compreender a estrutura e o sentido geral da narrativa. A escolha do
verso é totalmente intencional e acaba sendo uma das chaves de
desenvolvimento do enredo. O verso escolhido pelo autor pertence à
obra A Divina Comédia, é o início da parte Inferno, dessa forma,
podemos perceber que há na perspectiva bakhtiniana, relações
dialógicas entre o conto de Rezende e a obra de Dante Alighieri.
Rezende usa o verso para trazer a atmosfera de A Divina Comédia,
mais precisamente a relação da jornada de Dante através do Inferno e
a história do narrador do conto A Triste Orla do Aqueronte. E não é
apenas o verso que trabalha no sentido de construir essa relação, o
próprio título do conto é outra referência à A Divina Comédia, já que
o narrador, que é leitor de Dante Alighieri, cria uma analogia entre o
Rio Aqueronte, que é o primeiro rio do Inferno e a cidade onde ele
vive, cidade recheada de pessoas que ele não considera como vivos.
No terceiro parágrafo do texto, novamente o narrador deixa
claro sua opinião sobre o sujeito que ele encontra no elevador.
“...quase um mendigo, linguagem corporal de cachorro vira-lata, as
orelhas caídas, o rabo enfiado entre as pernas, conheço bem esses
tipos, retirantes, pedintes, aleijados, fodidos em geral”. (REZENDE JR.,
2005: p.79), nesse trecho o narrador deixa claro outra de suas

- 38 -
opiniões, na qual coloca todos aqueles mais pobres dentro de uma
única categoria, mostrando seu desprezo em relação aquele que é
diferente. Fica claro aqui, que o fator econômico é a chave para a
identificação do que seria um sujeito bem-sucedido. O narrador
continua destilando seu ódio e afirma que aquele elevador, aquele
prédio, não é lugar para pessoas como o homem que ele encontra no
elevador. Ele coloca a culpa do ocorrido no porteiro nordestino e
escancara outro dos seus preconceitos. Fica claro aqui que Rezende
desenha um narrador que vive em uma das metrópoles do país, lugar
onde muitas pessoas de outros pontos do Brasil escolhem para tentar
melhor suas condições de vida e buscar novas oportunidades. O conto
segue e as únicas palavras ditas pelo outro, são “Doutor”, o homem no
elevador chama o narrador, insiste em ganhar sua atenção, mas falha
sendo ignorado. “Doutor, ele começa pela quarta vez, odeio a
persistência dos pobres, pobre devia demonstrar a mesma
persistência na hora de cursar uma faculdade nem que fosse pública,
arrumar uma boa colocação no mercado, subir na vida, ficar rico, parar
de encher o saco, se bem que nada pior do que rico nascido pobre,
odeio novo-rico” (REZENDE JR., 2005: p.80), aqui fica claro outro
posicionamento do narrador que ignora uma série de fatores, isso
porque vê o mundo apenas de sua perspectiva, e julga aqueles que
não obtêm o que para ele, seria o sucesso. Ainda assim, temos por
parte dele a afirmação de pobres não devem ser ricos. O pensamento

- 39 -
do narrador novamente faz o leitor encontrar pelo menos um pouco
dos discursos que nos rodeiam.
O narrador do conto é um retrato não só do Burguês, mas de
uma linha de pensamento que infelizmente vêm contaminando
pessoas das mais diversas classes sociais. Para evitar a comunicação
com o sujeito do elevador, a estratégia do narrador é de se fingir de
mudo, depois, ele se finge de surdo e cego. Acredita que assumindo
essas posturas, ele não será capaz de responder ao chamado do outro
e é nesse trecho que surge outro discurso de ódio, agora em relação
aos portadores de necessidades especiais. “...odeio esses deficientes
físicos que emporcalham as vias públicas expondo suas deformidades
fedorentas” (REZENDE JR., 2005: p.81). É logo após a estratégia de
fingir ser surdo-mudo-cego, que o narrador fala sobre sua medicação
e o enredo do conto passa a assumir um tom de delírio, beirando o
fantástico. A partir daí, o narrador cria uma relação entre o elevador e
o inferno, a presença do outro, daquele que ele despreza, é o que
confirma a ele o fato do lugar onde ele se encontra não ser mais um
elevador, mas sim um possível castigo. E o delírio chega ao ápice
quando o elevador para no que o narrador diz ser o “Quinto-subsolo”,
neste trecho ele narra “Então este é o inferno, Ele é meu guia, pior,
talvez seja Ele o Diabo em pessoa” (REZENDE JR., 2005: p.86), e é só
quando a porta se abre que o narrador percebe que está finalmente
no térreo, o destino inicial ao entrar no elevador. É do lado de fora do
prédio que caminhamos para o desfecho do conto, em certo

- 40 -
momento, ao deixar o prédio, o homem no elevador se propõe a
ajudar o narrador “Doutor, eu levo o senhor”, diz o outro e dentro da
narrativa, o personagem entende que essa ação acontece pelo fato
dele estar fingindo ser deficiente. É nesse momento que ele ignora
novamente o outro e sai correndo para fora do edifício. Porém, é
possível perceber que o clima de delírio ainda continua e a dúvida
sobre a medicação ainda persiste. Ao sair do elevador ele se vê diante
do rio mitológico. O delírio causado pela falta ou excesso de
medicação provoca no narrador a visão do inferno, ele de certa forma
se torna Dante em sua jornada através do inferno “é só a cidade, o
centro da cidade, o asfalto pegando fogo, os pobres, os nordestinos,
as putas, os pretos, alguns até de terno, essa gente toda vindo em
minha direção, pedintes, leprosos, sifilíticos, apodrecidos, essa gente
toda forma um rio, o rio do inferno” (REZENDE JR., 2005: p.87). Em
uma crise, o narrador passa a assumir as características que antes
apenas fingia. Ele perde a voz, a audição e a visão. Se encontra perdido
e sozinho no meio da cidade. “Estou só, a solidão é pior que a presença
dele, mil vezes pior!” (REZENDE JR., 2005: p.86), é possível perceber
que é apenas no momento em que fica sozinho, que o narrador sente
a falta do outro. Ainda assim, essa preocupação não é com o outro em
si, mas sim pela necessidade de não aguentar ficar sozinho. É a
necessidade da alteridade que constitui o personagem, sem o outro
ele não pode ser.

- 41 -
A imagem do inferno volta, e agora o inferno é a cidade, onde
as pessoas estão sozinhas mesmo em multidões. No fim do conto,
quando a visão no narrador volta, ele enxerga o que chama de “A Casa
dos Espelhos” e lá ele encontra aquele que o condenou ao inferno. O
narrador narra que o monstro que ali habita não é o diabo construído
pelo senso comum “a criatura medonha tem apenas paletó e gravata
e um imenso nada à sua volta” (REZENDE JR., 2005: p.90) a descrição
do demônio aqui é apenas o reflexo do próprio narrador, que no fim
do conto percebe, seja pelo delírio provocado pelo remédio, ou pela
presença do outro, que ele mesmo está se condenando e que todas as
suas ações acarretaram em um trágico fim, onde ele grita por socorro,
mas seu grito é um silêncio e ninguém o escuta. O conto nos faz pensar
sobre nossas atitudes preconceituosas e pré-julgadoras em relação ao
que é diferente, explícita a força e o problema da norma. Infelizmente,
temos muita dificuldade em compreender e aceitar o outro, mesmo
estando diariamente expostos as diferenças. Vemos o outro somente
a partir de nós mesmos, e esse olhar superficial acaba por nos cegar,
muitas vezes também nos calar, levando-nos a atitudes equivocadas e
egoístas, que acabam contribuindo para o nosso próprio fim. A
experiência de assumir o ponto de vista daquele que ignora
completamente o diferente, acaba por transparecer ainda mais os
preconceitos e o ódio, assim como as consequências deles, revelando
que o discurso sobre o outro, o diferente, também é o discurso sobre
nós mesmos.

- 42 -
Considerações finais
No diálogo travado com o mundo do texto, não só ouvimos
confissões das vozes literárias, mas também essas vozes ouvem as
nossas. De fato, lemos a nós próprios no texto literário. E essa leitura
de nós se dá pela mediação que ocorre na leitura do outro. Em outras,
palavras, entre leitor e texto se estabelece um diálogo, assim como os
personagens da própria história. A linguagem dessa forma é
preenchimento de hiato, da distância que vai entre o que reconheço
como um eu e o mundo do outro, mas também do hiato que há entre
o meu eu agora e um eu possível. E é justamente por conta desse hiato,
que há movimento, passagem, formação. Desse modo, a literatura
atua como ferramenta formativa, porque age sobre sensibilidades e
prolifera modos nossos modos de existir, de viver, por meio do diálogo
constante e renovável entre leitor e os personagens e o autor. Assim,
a literatura nos enche de perguntas e apresenta diversas possiblidades
de respostas, deixando claro que as respostas dependem de como
cada um de nós vê o outro; se o percebemos como um ser estranho,
diferente de nós; e, por isso, indigno de confiança e até mesmo
inferior; ou se tentamos enxergá-lo a partir da perspectiva dele, do seu
mundo e das suas vivências, compreendendo melhor a diferença e nos
tornando mais humanos.

- 43 -
Referências

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7Letras, 2005.

TODOROV, A literatura em perigo. Rio de Janeiro: Difei, 2009.

- 44 -
Imagens da mulher contemporânea produzidas
nas crônicas de Martha Medeiros

Silvana Nascimento Lianda3

A escritora e seus espaços de construção


Martha Medeiros é jornalista, poetisa, romancista, aforista e
cronista de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, onde nasceu em 20 de
agosto de 1961. Iniciou a carreira como escritora através da produção
de poesia, mas seu trabalho teve uma maior repercussão a partir da
produção de crônicas, gênero considerado o seu destaque entre os
leitores. É colunista do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, desde 1994
(no Caderno Donna, com circulação aos domingos, e no Segundo
Caderno, com circulação as quartas), e do jornal O Globo, do Rio de
Janeiro, desde 2004 (no Caderno Revista O Globo que circula aos
domingos). Em entrevista ela explica o início de seu trabalho como
escritora (2006, p. 9): “Tudo na minha vida literária aconteceu assim,
meio ao acaso, meio circunstancial. Nunca projetei uma carreira
literária. Uma vez, mandei um trabalho para uma editora, outra vez
uma pessoa me procurou, amigos indicam, sempre foi uma coisa meio
informal”. Nesse sentido, acerca do seu primeiro livro publicado, um
livro de poesia, Vera Regina Morganti (2006, p. 36) afirma acerca de

3
UNEB
- 45 -
Martha Medeiros: “Nossa cronista enviou, aos 22 anos, alguns poemas
para a Editora Brasiliense avaliar. Nasceu Strip-tease, em 1985, na
coleção Cantadas Literárias, que lançou autores como Caio Fernando
Abreu, Reinaldo Moraes, Ana Cristina César”.
No que diz respeito ao início da escrita e publicação de
crônicas, Martha Medeiros explica que não tinha a pretensão de ser
cronista, que foi circunstancial. Afirma que em 1993 seu ex-marido
recebeu uma proposta para trabalhar em Santiago do Chile e ela,
cansada do trabalho com propaganda, deixou o emprego e nos oito
meses que lá ficou passava os dias escrevendo. Assim, o período em
que esteve no Chile resultou na publicação do livro de poesia
intitulado “De Cara Lavada” (1995) e na publicação do seu primeiro
livro de crônicas, intitulado “Geração Bivolt” (1995). Nessa época, o
jornalista Fernando Einchenberg, que trabalhava no jornal Zero Hora,
esteve em Santiago, ficou hospedado em sua casa e pediu seus textos
para mostrar em tal jornal. Relata que quando voltou a morar no Brasil
pediram uma crônica, depois outras, e em pouco tempo lhe deram
uma página no Zero Hora e a partir de então passou a viver da escrita,
como fica perceptível em seu comentário:

Tenho um vínculo profissional, um trabalho que


envolve disciplina, responsabilidade, e que eu
acabo privilegiando porque não posso chegar no
dia da entrega e não ter nada. [...] A crônica é um
trabalho que tenho muito prazer em fazer, mas é a
minha profissão, pela qual ganho um salário
mensal. (MEDEIROS, 2006, p. 14)

- 46 -
Formada em Comunicação Social, pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em 1982, e tendo trabalhado
cerca de treze anos como redatora publicitária e também como
diretora de criação em algumas agências de propaganda do Sul,
Martha Medeiros (2006) explica a contribuição dessa formação e
atuação para a escrita de suas crônicas. Afirma, nesse sentido, que
como a propaganda trabalha muito com a objetividade, tem pouco
tempo e espaço para passar o máximo de informação, e está sempre
seduzindo alguém através da TV, da revista, do anúncio no jornal, ela
funcionou como uma escola de síntese e sedução. E acrescenta que se
está nesse caminho é, em grande parte, graças à propaganda. Além
disso, afirma que a propaganda brasileira trabalha muito com o humor
rápido, o que também influenciou na produção de suas crônicas. Ainda
sobre os traços de sua escrita ela comenta que escreve como se
estivesse conversando, que se coloca muito, sendo quase um bate-
papo por escrito, no qual, embora de modo inconsciente está sempre
tentando agradar alguém, usando o humor, uma ironia ou a sua
facilidade de expressão. Afirma, assim, que todos os textos, de uma
certa maneira, são uma tentativa de sedução do leitor embora
conscientemente ela não esteja querendo vender uma ideia.

Modos de produção, circulação e recepção das crônicas

- 47 -
Ainda em entrevistas Martha Medeiros (2006) explica que no
início não tinha controle do quanto invadiria a vida do leitor,
simplesmente escrevia, se divertia, era muito mais solta e tudo era
assunto. No entanto, afirma que quando se começa a fazer um nome
as pessoas vão criando expectativas e isso significa mais compromisso
e responsabilidade, o que de certa forma cria algumas limitações.
Martha Medeiros esclarece ainda que algumas pessoas se
envolvem e a tratam como alguém próximo, uma amiga da família,
mas que seria irresponsabilidade de sua parte dar conselhos e se
envolver na vida íntima de pessoas que não conhece. Assim, as vezes
o vínculo vai além do que ela projeta, sendo que ela quer um vínculo
profissional, ter leitores, receber e-mails, saber se eles gostam ou não.
Esse envolvimento do leitor pode ser compreendido a partir de Vera
Morganti, quando expõe:

A crônica hoje é um gênero literário produzido


essencialmente para ser veiculado na imprensa,
com a finalidade pré-determinada de agradar aos
leitores. A partir dessa veiculação dentro de um
mesmo espaço e com a mesma localização, cria-se
uma familiaridade entre o cronista e quem o lê. A
crônica aparece, enfim, como uma pausa de
subjetividade diante da objetividade da
informação, um instante para a reflexão.
(MORGANTI, 2006, p. 38)

Martha Medeiros (2006) afirma ainda que a maneira que tem


de saber o retorno é o que escrevem para ela diretamente, através de

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e-mails. Relata que são elogios e críticas também, pois uma vez que
levanta assuntos para serem refletidos alguns vão gostar, outros não.
Declara que não gosta de críticas, que existe uma vaidade envolvida e
tudo que oferece para as pessoas, tudo que a envolve, quer que as
pessoas gostem, mesmo sabendo que é impossível isso acontecer. Por
isso, quando indagada sobre como gostaria que a lessem, ela responde
que, enquanto leitora, primeiro admira um texto se ele for bem
escrito, como admira uma tela ou uma casa bem decorada, e depois,
num segundo momento, avalia se concorda ou discorda e, mesmo
quando não concorda com alguma coisa, aquele texto lhe serve de
estímulo, está te fazendo reagir a uma ideia e é desse modo que ela
gostaria de ser lida. Ainda afirma que as pessoas podem discordar e
continuar lendo, pois muitas vezes alguém escreve sobre um assunto
que está de acordo com as ideias do leitor, mas o texto não é bom.
Diante disso, acerca do perfil dos leitores de suas crônicas, Vera
Morganti define:

Os leitores de Martha Medeiros são fiéis e vários:


homens e mulheres das mais diversas idades e
posições políticas e sociais. Esses leitores
aguardam a próxima crônica, publicada às quartas-
feiras e domingos, destacam as suas preferidas e
multiplicam-nas, enviando-as via internet, em
blogs, e-mails. (MORGANTI, 2006, p. 36)

Escrevendo há mais de trinta anos, Martha Medeiros possui


obras publicadas em variados gêneros embora tenha se destacado na

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escrita de crônicas. Suas crônicas, que inicialmente são destinadas às
colunas dos jornais, logo em seguida são organizadas em livros, entre
eles estão: “Geração Bivolt” (1995) – livro que reuniu pela primeira vez
as crônicas publicadas na Zero Hora e “Doidas e Santas” (2010) – livro
aqui utilizado como base para o presente estudo sobre imagens
femininas.
Tendo textos e\ou livros já transformados em música, filme,
peça teatral, série de TV, além dos resultados de pesquisas sobre
sucesso de vendas, realizadas por fontes como a Revista Veja, que a
incluem entre os autores de livros mais vendidos no país. Os livros de
Martha Medeiros são definidos como os que estão entre os que
atingem as maiores tiragens no mercado editorial brasileiro. Segundo
Marcelo Gonzatto (2013) os livros que saem já com cinquenta mil
exemplares impressos estão entre os livros com maior tiragem,
quantidade que é quase dez vezes maior que a média nacional. Assim,
segundo ele, Martha Medeiros só não chega a ser a cronista que mais
vende no país porque, na casa dos cem mil exemplares à venda está o
também gaúcho Luís Fernando Veríssimo. Ele afirma ainda que a
crônica está entre os gêneros que possui a maior tiragem inicial no
mercado brasileiro e as vendagens de Luís Fernando Veríssimo e
Martha Medeiros, sendo tão expressivas, mostram a capacidade de
alcance e a popularidade da crônica entre os leitores brasileiros.
Embora trabalhe como colunista nos jornais Zero Hora e O
Globo, e colaboradora de revistas como a Época, Martha Medeiros

- 50 -
tem muitos de seus textos divulgados através dos blogs e redes sociais,
fator que terminou propiciando que muitos deles tivessem sua autoria
adulterada ou até fragmentos dos seus textos manipulados. A esse
respeito Martha Medeiros (2006) afirma que o número de textos teus
que circulam na internet tem um pouco a ver com a sua participação
no site Almas Gêmeas, por seis ou sete anos, uma vez que escrever em
um site facilita a propagação de textos pela internet por ele já estar ali,
dentro do veículo. Nesse sentido, acrescenta que veicularem seus
textos com a autoria correta não a incomoda, pois isso divulga, mas as
pessoas fazem coisas lamentáveis como trocar o final, acrescentar
frases, e depois passam adiante, além de trocarem a autoria. Alega,
assim, que vários de seus textos foram assinados como se fossem de
Mario Quintana, Arnaldo Jabor, Miguel Falabella, e um texto seu foi
atribuído a Pablo Neruda, traduzido para o espanhol e publicado em
livro. Acontecimentos que a fazem se sentir lesada, mesmo se
tratando de nomes de peso.
Sobre as temáticas que a cronista discute em seus textos,
Martha Medeiros muitas vezes é mencionada enquanto cronista que
discute o cotidiano feminino, por utilizá-los como tema em muitos de
seus textos. A respeito dessa imagem que parte do público formou a
seu respeito, quando indagada se seu trabalho traz um olhar feminino
sobre a vida e os acontecimentos, ela afirma:

Às vezes, vou a encontros e me apresentam: “esta


é a Martha que traduz tão bem o universo

- 51 -
feminino”. Não rejeito. Comecei minha carreira de
cronista há 12 anos, escrevendo para o “Caderno
Donna”, Zero Hora, e escrevi muito sobre o
universo feminino. [...] Os meus temas, hoje, não
têm nada de feminino ou masculino. Tratam de
relações humanas. [...] Aqui no Sul fiquei com o
rótulo de escritora para mulheres. Há dois anos
escrevo no Globo, onde caí de paraquedas e pouca
gente me conhecia, e o retorno é
preponderantemente masculino. Na Zero Hora,
metade dos e-mails que recebo são de mulheres,
metade de homens. (MEDEIROS, 2006, p. 13-14)

Através de uma escrita acessível, sem muitas formalidades,


porém, bem estruturada, Martha Medeiros utiliza a intertextualidade
discutindo livros lançados no período da escrita de suas crônicas, bem
como acontecimentos ligados à música, ao cinema, ao teatro, à
literatura, às artes e a fenômenos da mídia. Assim, vai apresentando
as novas faces da sociedade construída por cotidianos, as demandas,
as perspectivas, os modos de transição já perceptíveis nos dias atuais,
os modos de se relacionar que estão se consolidando, enfim, os
modelos que estão em processo de afirmação. Além disso, suas
crônicas são um relato de suas próprias experiências, de suas
conquistas e frustrações, de modo que revelando em cada crônica um
acontecimento, um relato, uma descoberta, nelas as suas impressões
ganham voz, espaço, dimensão. Nesse sentido, a escritora afirma
(2006, p. 25): “Mas a escrita me liberou, me deixou mais falante, mais
resolvida. Escrever foi um caminho para me socializar, para me
entender”.

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A escrita feminina e a escrita de si
Em entrevista à Revista da Cultura, em 2013, Martha Medeiros
explica que tenta entender a si própria por meio do que escreve, mas
que por alguma razão os textos criam empatia e as pessoas acabam
querendo sugar dela mais do que podem. Acrescenta ainda que as
pessoas olham e dizem: “Martha, tu é tão bem resolvida”, ao que ela
responde que é muito fácil ser bem resolvida por escrito porque
reescreve em outro dia, faz uma faxina no texto, repensa, mas que
também se atrapalha na vida como todo mundo. Comenta, por outro
lado, sobre a realização que sente ao receber várias mensagens de
leitores que afirmam: “o primeiro livro que li foi o teu e, a partir daí,
comecei a me interessar por outros autores”.
No que se refere à relação entre as crônicas e as vivências da
escritora, os textos são um relato de suas próprias experiências, de
suas perdas e ganhos, conquistas e frustrações. Em cada crônica um
acontecimento, um relato, uma descoberta; elas funcionam como um
diário, no qual suas impressões ganham voz, espaço, dimensão. Diante
disso, considerando a exclusão histórica das mulheres no que se refere
à produção literária, pode-se afirmar que Martha Medeiros contribui
para a ampliação desse campo, principalmente por considerar vários
aspectos do cotidiano feminino em suas crônicas. Acerca dessa

- 53 -
exclusão e das dificuldades encontradas para dar alguma visibilidade
ao que foi produzido pelas mulheres, Zahidé Muzart comenta:

Qualquer um que ponha seu empenho na história


literária das mulheres brasileiras do século XIX
começa por enfrentar problemas. O primeiro é a
quase inexistência de reedições, sempre raras
porque vendem muito pouco ou porque os textos
de mulheres se perdem e desaparecem ao longo
dos anos. (MUZART, 2004, p. 103)

Por ter sido a literatura de autoria feminina tão invisibilizada e


diminuída ao longo da história, a produção de Martha Medeiros pode
ser considerada como literatura menor uma vez que, segundo Gilles
Deleuze e Félix Guattari (1977, p. 25), esta consiste em uma literatura
que uma minoria faz em uma língua maior.
No que se refere à relevância dessa literatura, Deleuze e
Guattari afirmam:

A literatura menor é totalmente diferente: seu


espaço exíguo faz com que cada caso individual
seja imediatamente ligado à política. O caso
individual se torna então mais necessário,
indispensável, aumentando ao microscópio, na
medida em que uma outra história se agita nele. É
nesse sentido que o triangulo familiar se conecta
com outros triângulos, comerciais, econômicos,
burocráticos, jurídicos, os quais determinam os
valores do primeiro. (DELEUZE e GUATTARI, 1977,
p. 26)

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Nesse sentido, as crônicas produzidas por Martha Medeiros
embora retratem o cotidiano, revelam as facetas deste que interferem
nos diversos triângulos que compõem as relações sociais. Os relatos
de suas próprias experiências dão visibilidade às experiências
cotidianas de tantas outras mulheres que não puderam transcrevê-los.
A respeito do poder político expresso pela literatura, Rita Schmidt
ressalta a presença da mulher no espaço dos discursos:

Falar sobre a instituição “literatura” e a presença


da mulher no espaço dos discursos e saberes é,
pois, um ato político, pois remete às relações de
poder inscritos nas práticas sociais e discursivas de
uma cultura que se imaginou e se construiu a partir
do ponto de vista normativo masculino, projetando
o seu outro na imagem negativa do feminino.
(SCHMIDT, 1995, p. 185)

Acerca do poder desse discurso em sua realidade material de


coisa pronunciada ou escrita e, consequentemente, dos meios de
cerceamento que o envolvem, Michel Foucault expõe:

E a instituição responde: “Você não tem por que


temer começar, estamos todos aí para lhe mostrar
que o discurso está na ordem das leis; que há muito
tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi
preparado um lugar que o honra mas o desarma; e
que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de
nós, que ele lhe advém”. (FOUCAULT, 1998, p. 7)

- 55 -
E destacando o que há de tão perigoso no fato de as pessoas
falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente, Foucault
alerta para onde está o perigo:

Suponho que em toda sociedade a produção do


discurso é ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por certo
número de procedimentos que têm por função
conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e
temível materialidade [...] Em uma sociedade como
a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de
exclusão. O mais evidente, o mais familiar também,
é a interdição. Sabe-se bem que não se tem o
direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo
em qualquer circunstância, que qualquer um,
enfim, não pode falar de qualquer coisa.
(FOUCAULT, 1998, p. 8 e 9)

Assim, Foucault discute que por mais que o discurso seja


aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem
revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder e
que o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os
sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder
do qual se quer apoderar.
Esse discurso como o pronunciado ou escrito, quando
alcançado pelas mulheres, segundo Zilda Freitas (2002, p. 119),
funcionou como muito mais que uma simples transgressão das leis que
lhes proibiam o acesso à criação artística, foi um território liberado,
uma saída secreta da clausura da linguagem e de um pensamento

- 56 -
masculino que as pensava e descrevia, um registro escrito do
inconformismo da mulher àquelas leis, uma vez que entre o público e
o privado a mulher que escreve estabelece seu mundo imaginário,
procurando dizer de si mesma aos outros e propondo maneiras
inovadoras de estar e de fazer. E ainda ressalta:

As mulheres, atualmente, escrevem também por


todas aquelas que nos séculos anteriores e mesmo
hoje em dia, em culturas mais restritivas, são
silenciadas. A meu ver, a escrita feminina é
justamente este livre expressar-se do universo
feminino, paralelo ao masculino, sem imitá-lo, mas
também sem desconhecê-lo. (FREITAS, 2002, p.
122)

Rita Schmidt (1995) afirma, por sua vez, que a literatura feita
por mulheres envolve dupla conquista: a conquista da identidade e a
conquista da escrita, uma vez que quando se usa a expressão “escrita
feminina” quer-se referir ao texto de autoria feminina escrito do ponto
de vista da mulher e em função de representação particularizada e
especificada no eixo da diferença. Nesse sentido, relata que
ultrapassados os preconceitos e tabus com relação ao potencial
criativo feminino, vencidos os condicionamentos de uma ideologia que
as manteve nas margens da cultura, superadas as necessidades de
apresentar-se sob o anonimato, a literatura feita por mulheres hoje se
engaja num processo de reconstrução da categoria “mulher”,
enquanto questão de sentido e lugar potencialmente privilegiado para

- 57 -
a reconceptualização do feminino, para a recuperação de experiências
emudeciadas pela tradição cultural dominante.
Acerca da invisibilidade feminina, Martha Medeiros relata em
sua crônica intitulada “A mulher invisível”:

Já me senti invisível em algumas ocasiões ao longo


da vida. Voltando no tempo, me pego invisível em
festas, invisível à mesa do jantar, invisível na sala
de aula. Uma sensação incômoda de estar ali, mas
ninguém levar em conta sua presença. Você fala,
ninguém escuta. É vista, mas não percebida. E ao ir
embora, ninguém dá por sua falta. Com você,
nunca? (MEDEIROS, 2006, p. 28)

Modos de produção da identidade/subjetividade feminina


Martha Medeiros, em suas crônicas, faz um alerta em relação
às construções culturais, aos modelos de relações que foram
naturalizadas com o passar do tempo. Demonstra um olhar crítico para
a naturalização dessas construções e faz uma exposição de tantos
outros possíveis modos de vida que por interesses da sociedade
patriarcal foram renegados ao longo dos anos, mas que começam a
ganhar espaço, visibilidade e perder a imagem de anomalia, erro,
desvio.
Considerando a subjetividade como o que se passa no íntimo
do indivíduo, como este vê, sente, pensa mediante as influências
culturais, educacionais, religiosas e das experiências adquiridas, Félix
Guattari e Suely Rolnik (1996, p. 27 e 28) propõem a ideia de uma
subjetividade maquínica, ou seja, essencialmente fabricada,

- 58 -
modelada, recebida, consumida. Dessa forma, tudo o que chega ao
sujeito pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que os
rodeiam trata-se de sistemas de conexão direta entre as grandes
máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social, e as
instancias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo.
Afirmam assim, que a produção de subjetividade constitui matéria-
prima de toda e qualquer produção. No entanto, alertam para as
possibilidades do sujeito de se reapropriar dos componentes da
subjetividade:

O modo pelo qual os indivíduos vivem essa


subjetividade oscila entre dois extremos: uma
relação de alienação e opressão, na qual o
indivíduo se submete à subjetividade tal como a
recebe, ou uma relação de expressão e de criação,
na qual o indivíduo se reapropria dos componentes
da subjetividade, produzindo um processo que eu
chamaria de singularização. (GUATTARI e ROLNIK,
1996, p. 33)

Através de suas crônicas Martha Medeiros tem possibilidade


de expressar e difundir suas emoções, sentimentos, pensamentos; sua
subjetividade, portanto, ganha visibilidade e espaço na vida de
inúmeros leitores que acompanham a publicação de seus textos não
só na versão impressa, mas também virtual. Seus textos uma vez que
são amplamente difundidos nas redes sociais e blogs alcançam um
público diversificado e de modo veloz. Assim, trechos de suas crônicas
vão circulando e ajudando a compor as expressões subjetivas de

- 59 -
outras pessoas. O ponto de vista de Martha Medeiros sobre os mais
diversos temas do cotidiano vai sendo apresentado em seus escritos
de modo que seus interesses e desejos também vão sendo expostos.
Dessa forma, a própria escritora vai se apresentando aos seus leitores,
vai narrando acontecimentos que vivenciou ou observou e julgou
relevante para o instante de reflexão.
Partindo da premissa de que os sujeitos desempenham papeis
diferentes conforme o ambiente e a situação em que se encontram, a
subjetividade contempla, portanto, essas diversas facetas que
compõem o indivíduo. Assim, nas suas diversas encenações do seu
lugar como mulher, mãe, filha, amiga, leitora, telespectadora, plateia,
escritora, Martha Medeiros demonstra interesse pelos
acontecimentos cotidianos, principalmente ao cotidiano feminino e
todos os afetos a ele relacionados.
A escritora, portanto, além de ajudar a compor o cenário de
literatura produzida por mulheres, utiliza o cotidiano feminino, e
muitas vezes o próprio cotidiano, como tema para a sua escrita. É
produzida, assim, a escrita de autoria feminina ao passo que também
é a escrita de si e que, considerando sua difusão, também funciona
como a escrita de tantas outras mulheres. No tocante a essa produção,
Zilda Freitas (2002, p. 119) afirma ser facilmente perceptível um
considerável aumento na produção assinada por mulheres, de modo
que agora o saber feminino se estrutura na própria experiência e não
mais aquela assimilada do discurso masculino.

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Imagens do cotidiano feminino contemporâneo
Tendo iniciado sua carreira literária a partir da década de 1980,
Martha Medeiros retrata os papeis encenados pelas mulheres
contemporâneas. Assim sendo, os espaços de vivências de tais
mulheres são muito mais abrangentes que os perceptíveis e citados na
produção literária de outras épocas, além disso, as demandas também
se mostram diferenciadas. Entram em cena as formações familiares
distanciadas do modelo patriarcal, bem como as motivações que
mobilizam essas formações. O desejo feminino abandona o campo do
reprimido e omitido e passa a ser a base para as construções
familiares, ao passo que findo esse desejo são sugeridas possibilidades
de término para os envolvidos, como uma etapa da vida a ser
encerrada para que melhores possam surgir.
A cronista fala da mulher contemporânea muito ocupada,
cheia de compromissos e tarefas inadiáveis que se sente sufocada
pelos excessos, divididas em obrigatoriedades. Mulher esta que ao
mesmo tempo em que cumpre seus compromissos do trabalho, se
sente forçada a dar conta do que se refere ao espaço doméstico e dar
conta de si, considerando as cobranças de padrões estéticos impostos
pela sociedade. Na crônica intitulada “O ônibus mágico”, ela comenta
os efeitos dessas cobranças: “Todo dia a gente perde um pouquinho
de nossa identidade por causa de medos padronizados e cobranças
coletivas”. (MEDEIROS, 2006, p. 188)

- 61 -
No que se refere a essas cobranças e obrigatoriedades, Zilda
Freitas alega que agora o papel social da mulher é definido
considerando-se sua vida privada e a pública, a dona de casa e a
trabalhadora, e acrescenta que a tentativa desesperada da igualdade
entre sexos transformou-se em apenas um esforço de androginia, com
a mulher assumindo uma dupla jornada.
Na crônica “Belíssima”, Martha Medeiros destaca o seu olhar
sobre demandas dessa mulher contemporânea:

Já fomos mais silenciosas. Mas, ao ganhar o direito


à voz, nos tornamos mulheres aflitas, que não se
permitem um momento de quietude. Falamos,
falamos, falamos compulsivamente, como se fosse
contra-indicado guardar-se um pouco, como se o
silêncio pudesse nos inchar. [...] Já fomos mães
mais atentas, que geravam por mais tempo, por
bem mais do que nove meses. Levávamos os filhos
dentro de nossas vidas por longos anos. Hoje temos
mais pressa em entregá-los para o mundo, a
responsabilidade pesa, e como peso é tudo o que
não queremos, acabamos por nos aliviar dos
compromissos severos de toda educação. [...] Por
um lado, conquistamos tanto, e, por outro,
estamos nos esvaziando, querendo tudo rápido
demais e abrindo mão de aproveitar o que a vida
tem de melhor: o sabor, o gosto. (MEDEIROS, 2006,
p. 38 e 39)

No entanto, Martha Medeiros ao passo em que tenta se


distanciar de aprisionamentos, também os repete em seu discurso,
uma vez que atenta para a necessidade de que suas leitoras notem os
perigos desse controle social expresso a partir de obrigatoriedades
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exacerbadas, mas ao mesmo tempo trata tais obrigatoriedades como
um modo de vida inevitável. Do mesmo modo, critica o padrão pré-
determinado para o corpo feminino ao passo que também cita seu
descontentamento com questões do próprio corpo. Em relação aos
padrões estéticos difundidos para o corpo feminino, a cronista critica
a abertura da novela “Belíssima”, que foi apresentada pela rede Globo,
de mesmo nome que sua crônica:

A modelo que aparece de maiô, sabe-se, tem um


rosto perfeito: pena que pouco apareça. Em
evidência, apenas aquele amontoado de ossos.
Coxas quase da mesma espessura dos tornozelos e
braços que mais parecem gravetos. Entre a pele e
as costelas, onde foi parar o recheio? Pode ter sido
apenas um problema de iluminação ou de recorte,
mas o resultado que nos é mostrado há meses,
todas as noites, é o raquitismo como sinônimo de
perfeição estética. (MEDEIROS, 2006, p. 38)

Já em relação ao próprio corpo, e a outros que não apresentam


esse padrão, a escritora fala do seu incômodo na crônica “Ela”:

Se você não tem problemas com a sua, levante as


mãos para o céu e pare agora mesmo de reclamar
da vida. O que são algumas dívidas para pagar, um
celular sempre sem bateria, um final de semana
chuvoso? Chatices, mas dá-se um jeito. Nela não.
Nela não dá-se um jeito. Para eliminá-la,
prometemos cortar bebidas alcoólicas,
prometemos fazer mil abdominais por dia, mas ela
não acusa o golpe, segue com sua saliência
irritante. A gente caminha, corre, sobe escada,
desce escada, vibra quando nosso intestino está

- 63 -
bem regulado, cumprindo suas funções à
perfeição, mas ela não se faz de rogada, mantém-
se firme onde está. “Mantém-se firme” é força de
expressão. Ela é tudo, menos firme. Você sabe de
quem estou falando. [...] Falam muito de celulite.
Falam de seios, de traseiros, de rugas, de pés
grandes, de falta de cintura, de caspa, de
tornozelos grossos, de orelhas de abano, de narizes
desproporcionais, de ombros caídos, de muita
coisa caída. Temos uma possibilidade infinita de
defeitos. Mas ela é que nos tira do prumo. Ela é que
compromete nossa silhueta. Ela é que arrasa com a
nossa elegância. Ela. Nem ouso pronunciar seu
nome. Você sabe bem quem. Se não sabe, sorte
sua: é porque não tem. (MEDEIROS, 2007, p. 105 e
106)

Em termos de relacionamento, uma temática recorrente em


seus textos, a escritora aposta em inícios e términos como indicativo
das múltiplas possibilidades de relacionar-se. O divórcio é bastante
comentado como uma necessidade para muitas convivências. Assim,
a noção de casados para sempre é substituída pelo “eterno enquanto
dure”, denunciando a velocidade com que os relacionamentos se
firmam e se encerram atualmente. Nesse sentido, ao invés de
representar os divórcios como algo negativo e doloroso, imagem tão
difundida, a escritora o descreve como chance de renovação, como
meio de evitar que duas pessoas passem a se prejudicar, se maltratar.
Isso é expresso em sua crônica intitulada “A separação como um ato
de amor”:

- 64 -
Se o que foi bom ainda está fresquinho na memória
afetiva, é mais fácil transformar o casamento numa
outra relação de amor, numa relação de
afastamento parcial, não total. Se o casal percebe
que está caminhando para o fim, mas ainda não
chegou ao momento crítico – o de tornarem-se
insuportavelmente amargos –, talvez seja uma boa
alternativa terminar antes de um confronto
agressivo. Ganha-se tempo para reestruturar a vida
e ainda preserva-se a amizade e o carinho daquele
que foi tão importante. Foi, não. Ainda é.
(MEDEIROS, 2006, p. 41)

E em outra crônica sobre o assunto, denominada “Ainda sobre


separação”, a escritora ressalta o porquê as separações não ocorrem
de um modo tranquilo:

Só não é mais civilizado porque a maioria das


pessoas ainda se rende muito facilmente ao script
que nos entregam no berço, sem bolar outras
formas de ser feliz – e até outras formas de ser
infeliz. Se todo mundo diz que separação é,
obrigatoriamente, um colapso de consequências
trágicas, lá vamos nós nos comportar como se
estivéssemos vivendo as tais consequências
trágicas, quando talvez estejamos apenas temendo
a liberdade à qual nos desacostumamos, mais
nada. [...] Melhor do que se preocupar com um
happy end ou com um unhappy end é desejar que
tudo tenha uma continuidade, estejamos sós ou
acompanhados. (MEDEIROS, 2006, p. 43)

Considerando que através da subjetividade é construída a


relação com o outro, são apresentadas imagens dos novos modos de
se relacionar, nos quais busca-se atingir os desejos de todos os

- 65 -
envolvidos, valorizando a subjetividade feminina que historicamente
foi apagada, silenciada, invisibilizada. Em entrevista, a escritora
afirmou ainda acerca disso: “no passado ou tu era casada ou era
solteira, mas hoje o mundo virou um grande supermercado, tem mil
maneiras de se relacionar e não precisa ser para sempre”.
No que se refere à maternidade, Martha Medeiros cita
comportamentos naturalizados para o ser mãe: o senso de super
proteção, a dedicação, mas ressalta as individualidades que
diferenciam essas mulheres. Na crônica “As supermães e as mães
normais” é possível notar o relato dessa multiplicidade:

Minha mãe me emprestou um livro meses atrás.


Chama-se O que aprendi com minha mãe,
organizado por Cristina Ramalho, que traz 52
depoimentos de personalidades a respeito de suas
gloriosas genitoras. Gloriosas mesmo. [...]
Ainda que não seja um livro de humor, dei algumas
gargalhadas por causa dele. Não durante a leitura,
que é realmente tocante, há relatos que comovem.
Ri muito foi ao devolver o livro para minha mãe. Ela
me perguntou: “E então, o que você achou?”.
Respondi: “Maravilhoso. Só que estou pensando
em me atirar do décimo andar. Descobri que sou
uma droga de mãe”. E ela: “Me espera que vou
saltar junto”. [...] Nem mesmo as mães são todas
iguais, contrariando o famoso ditado. Há as que se
sacrificaram, as que abriram mão de sua felicidade
em troca da felicidade dos filhos, as que
mantiveram casamentos horrorosos para não fazê-
los sofrer com um lar desfacelado, as que
trabalharam insanamente para não faltar nada em

- 66 -
casa, as que sangraram por dentro e por fora para
manter a família de pé.
Eu não fiz nada disso. Por sorte, a vida não me
exigiu nenhuma atitude sobre-humana. Fui e sigo
sendo uma mãe bem normalzinha. Que acerta, que
erra, que faz o melhor que pode. Em comum com
as supermães, apenas o amor, que é sempre
inesgotável. Mas medalha de honra ao mérito, não
sei se mereço. Não me julgo sacrificada e tampouco
sublime. Sou uma mulher que teve a sorte de ter a
Julia e a Laura, uma mulher que se equilibra entre
dúvidas e certezas e que consegue tirar um saldo
positivo dessa adorável bagunça. (MEDEIROS,
2007, p. 125 e 126)

No tocante aos aspectos culturais dessas imagens difundidas


nas crônicas e considerando o paradigma em que se pautou o
desenvolvimento da cultura ocidental, segundo Rita Schmidt (1995, p.
186), cultura vem a ser um conjunto de práticas que compõem o
processo social dando-lhe um certo padrão organizacional, o qual liga
todas as partes da formação social em um todo, uma totalidade social.
Assim, calcado na concepção de um mundo não-contraditório e com
uma identidade coesa, unitária e estável, esse paradigma tende a
reprimir a diferença. Martha Medeiros, no entanto, mostra a
pluralidade que compõe a mulher na contemporaneidade.
Contemporaneidade essa, descrita por Ivia Alves (2002) como
espaço/tempo no qual a mulher escritora avança na discussão da
condição feminina/identidade, passando a escavar o passado e o seu
próprio passado, formado pelo entrelaçamento da religião, do sistema
patriarcal e dos modelos que o domínio da burguesia construiu para a

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mulher. Na contemporaneidade, portanto, as produções das
escritoras elegem como narradora ou protagonista a mulher, mas essa
imagem da mulher não só questiona a beleza, a velhice, o amor, a
repressão, mas também suas escolhas e esses são aspectos
evidenciados nas crônicas de Martha Medeiros.

- 68 -
Referências

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contemporaneidade. In: Imagens da mulher na cultura
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- 70 -
A constituição do ethos feminino no “A moça
tecelã”, de Marina Colasanti

Sabrina Caroline Bassani4¹

Introdução
Neste artigo, propomos a partir dos pressupostos teóricos de
Maingueneau (1996, 2001, 2004, 2008a, 2008b, 2010, 2011), a análise
da constituição do ethos feminino no conto “A Moça Tecelã”, de
Marina Colasanti. A narrativa compõe a obra “Doze reis e a moça do
labirinto do vento”, publicada em 1983. Tomaremos como objetivo,
compreender como se apresenta o ethos discursivo da personagem
nos diferentes momentos da narrativa.
Para tanto, abordaremos, inicialmente, a noção de ethos
aristotélico, anterior ao ethos discursivo ampliado por Maingueneau.
O ethos aristotélico relaciona-se com o caráter de honestidade que o
orador do discurso mostrará para parecer digno de credibilidade,
perante aos interlocutores. Assim, nesta vertente, o ethos é a imagem
de si que o orador cria através do discurso e, não significa,
necessariamente, ser o caráter real do orador.
O conceito de ethos é recuperado e ampliado pela análise do
discurso a partir das discussões de Maingueneau (2008) e,

4
Mestranda em Letras pela Universidade de Passo Fundo

- 71 -
diferentemente do conceito aristotélico, a concepção discursiva do
ethos, apresenta situações discursivas diversas, tanto orais quanto
escritas. De modo que, na perspectiva da análise do discurso, não
podemos, como na retórica, fazer do ethos um meio de persuasão, ele
é parte integrante da cena da enunciação.
Partindo do pressuposto de que o ethos é parte integrante da
cena da enunciação e que a mesma integra três cenas que atuam em
planos complementares: a cena englobante, a cena genérica e a
cenografia, abordaremos as mesmas em nossa análise. Dentre as
cenas de enunciação descritas, nos atentaremos de maneira mais
específica à cenografia, que é a cena que nos permite interpretar e
analisar a constituição do ethos feminino no conto “A Moça Tecelã”.
Afinal, os gêneros literários, por natureza, exigem a escolha de uma
cenografia.
No entanto, antes de iniciarmos nossa análise, faremos
algumas considerações sobre Marina Colasanti e algumas
características de sua produção literária. Em seguida, analisaremos, a
construção do ethos feminino na narrativa dividindo-a em três blocos,
a partir desta divisão também serão identificados os fiadores do
discurso. Ao separar a narrativa em três blocos, que, apesar de serem
opostos nas ideias e no comportamento da Moça, podemos observar
claramente suas interligações e seu sentido impactante dentro do
texto. Em um terceiro momento, definiremos as três cenas integrantes

- 72 -
da cena de enunciação da narrativa. E, por fim, teceremos algumas
considerações a respeito da análise realizada.

O ethos aristotélico
A noção de ethos pertence à tradição retórica. Aristóteles foi o
responsável por sistematizar a arte de persuadir. A noção de ethos na
retórica mobilizava características extradiscursivas e, como a essência
da produção discursiva era a oralidade, e não o texto escrito, os
oradores utilizavam características físicas, a fim de construir uma
autoimagem positiva.
Em sua arte retórica, Aristóteles apresenta conceitos e passos
da arte de convencer pelo discurso, cuja finalidade é trazer provas, já
que o objetivo maior da retórica não é apenas persuadir, mas
diferenciar os instrumentos de convencer. Portanto, um dos pontos
fundamentais na arte de persuadir está na qualidade das provas
empregadas pelo orador.
Existem as provas dependentes e as independentes. As provas
independentes não dependem do orador e estão relacionadas a fatos
ocorridos, dados de natureza científica, documentos escritos,
testemunhos ou confissões. Já as provas dependentes são
empregadas pelo orador para persuadir seu auditório. A respeito das
provas dependentes, Aristóteles (s.d., p. 33) observa que “precisamos
de as encontrar”.

- 73 -
Há três provas dependentes: o ethos, o pathos e o logos. A
primeira corresponde às condutas, ao caráter moral do orador, a
segunda diz respeito às paixões despertadas no auditório e última
compreende ao próprio discurso, pelo que ele demonstra ou parece
demonstrar. Ou seja, na arte de convencer temos três elementos de
provas dependentes articulados pelo discurso, um centrado no
orador, outro centrado no ouvidor e, por fim, um último centrado no
próprio modo do discurso.
Segundo Heine (2007), o ethos aristotélico não pode ser
compreendido isoladamente do pathos e do logos no processo
retórico, no entanto Aristóteles afirma que o ethos é a mais
importante das provas. Nesta perspectiva, segundo a autora, ele será
o caráter do orador representado através do discurso, caráter que
desempenhará um papel importante na persuasão. Assim, nesta
vertente, o ethos é a imagem de si que o orador cria através do
discurso e, não significa, necessariamente, ser o caráter real do orador.
Pois, o que está em jogo na arte de convencer pelo discurso não é a
verdade, mas os índices que provoquem os efeitos de verdade.
Neste sentido, o ethos está ligado à própria enunciação, e não
a um saber extradiscursivo sobre o locutor. Então, para dar a imagem
positiva e de si mesmo, de acordo com Aristóteles, o orador deve se
valer de três qualidades: a prudência, a virtude e a benevolência. A
prudência se constitui pela capacidade de bem deliberar, de calcular
os meios necessários para atingir um fim. A virtude é uma disposição

- 74 -
de caráter relacionada com a escolha. Já a “captação da benevolência”
do auditório para o orador depende da estrutura da correta
incorporação da tridimensionalidade do pathos.
Portanto, diante das categorias analíticas vinculadas ao ethos
– prudência, virtude e benevolência, verificamos que o ethos
aristotélico relaciona-se com o caráter de honestidade que o orador
do discurso mostrará para parecer digno de credibilidade, perante aos
interlocutores. Como afirma Barthes (apud Amossy, 2005:70), ethos
"são traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco
importando sua sinceridade) para causar boa impressão”. Nesta
vertente, o ethos para os gregos é construído no discurso, no
momento da enunciação.

O ethos na perspectiva da análise do discurso


O conceito de ethos é recuperado e ampliado pela análise do
discurso a partir das discussões de Maingueneau (2008) e,
diferentemente do conceito aristotélico, a concepção discursiva do
ethos, apresenta situações discursivas diversas que se estendem aos
enunciados orais, escritos, na modalidade verbal, visual, ou verbo-
visual, representando uma pessoa ou até mesmo uma ou várias
instituições.
Segundo Maingueneau (2008)

Minha primeira deformação do ethos constituiu


em reformulá-lo em um quadro da análise do

- 75 -
discurso que, longe de reservá-lo a eloquência
judiciária ou mesmo à oralidade, propõe que
qualquer discurso escrito, mesmo que a negue,
possui uma vocalidade específica, que permite
relacioná-lo a uma fonte enunciativa, por meio de
um tom que indica quem o disse: o “tom”
apresenta a vantagem de valer tanto para o escrito
quanto para o oral.

A determinação da vocalidade implica uma determinação do


corpo do enunciador. De modo que, a leitura faça surgir uma origem
enunciativa, uma instância subjetiva encarnada que exerce o papel do
fiador. A esse fiador são atribuídos uma “corporalidade” e um
“caráter”, cujas especificidades irão variar conforme cada texto. A
“corporalidade” está associada a uma compleição corporal e a uma
forma de vestir-se e de mover-se no espaço social. Enquanto o
“caráter” corresponde a um feixe de traços psicológicos.
Desse modo, o ethos corresponde a um controle tácito do
corpo, apreendido por meio de um comportamento global. O caráter
e a corporalidade do fiador se apoiam sobre um conjunto disseminado
de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, de
estereótipos em que a enunciação se apoia e, por sua vez, contribui
para reforçar ou transformar. Os estereótipos culturais circulam nos
diferentes registros da produção semiótica de uma coletividade, como
na literatura, publicidade, no teatro, na pintura, na escultura e no
cinema.

- 76 -
Reconhecer a função do ethos desse modo permite que nos
afastemos de uma concepção de discurso em que os conteúdos dos
enunciados seriam independentes da cena de enunciação que os
sustenta. Portanto, não é possível separar a organização dos
conteúdos e a legitimação da cena de fala. Uma vez que, são os
conteúdos desenvolvidos pelo discurso que permitem especificar e
validar a própria cena e o próprio ethos, pelos quais eles surgem.
A incorporação designa a ação do ethos sobre o coenunciador,
ou seja, a maneira pela qual o coenunciador se relaciona ao ethos de
um discurso. Para Mangueneau (2008, p. 73) a noção de incorporação
faz surgir três dimensões complementares

 A enunciação do texto confere uma


corporalidade ao fiador, ela lhe dá um corpo;
 O coenunciador incorpora, assimila um
conjunto de esquemas que correspondem à
maneira específica de relacionar-se com o mundo,
habitando seu próprio corpo;
 Essas duas primeiras incorporações
permitem a constituição de um corpo, da
comunidade imaginária dos que aderem a um
mesmo discurso.

Desse modo, boa parte do poder de persuasão de um discurso


está no fato de que leva o leitor a identificar-se com a movimentação
de um corpo investido de valores historicamente especificados. Já a
qualidade do ethos remete a figura do fiador que, mediante sua fala,
se dá uma identidade compatível com o mundo que se supõe que ele

- 77 -
faz surgir. Assim, é pelo seu próprio enunciado que o fiador deve
legitimar a sua maneira de dizer.
Segundo Maingueneau (2008), uma das principais dificuldades
que a concepção de ethos discursivo suscita é que ela pressupõe um
ethos que poderia ser chamado de escritural em oposição ao
tradicional ethos oral. Trata-se de dois regimes muito diferentes, o
primeiro exige do leitor um trabalho de elaboração imaginária a partir
de indícios textuais diversificados. Enquanto o segundo impõe a fala
imediata de um locutor encarnado.
O ethos discursivo está ligado à enunciação, não a um saber
extradiscursivo sobre o enunciador. Maingueneau (2008) afirma que
não existe um ethos preestabelecido, mas sim construído no âmbito
da atividade discursiva. Nesta perspectiva, a imagem de si é um
fenômeno que se constrói dentro da instância enunciativa e se mostra
através de seu discurso.
Portanto, na perspectiva da análise do discurso, não podemos,
como na retórica, fazer do ethos um meio de persuasão, ele é parte
integrante da cena da enunciação, assim como o vocabulário ou os
modos de difusão que o enunciado implica por seu modo de
existência. A cena de enunciação integra três cenas que atuam em
planos complementares: a cena englobante, a cena genérica e a
cenografia.
Conforme afirma Maingueneau (2008, p. 75):

- 78 -
A cena englobante corresponde ao tipo de
discurso; ela confere ao discurso seu estatuto
pragmático: literário, religioso, filosófico... A cena
genérica é a do contrato associado a um gênero, a
uma “instituição discursiva”: o editorial, o sermão,
o guia turístico, a visita médica... Quanto à
cenografia, ela não é imposta pelo gênero, ela é
construída pelo próprio texto: um sermão pode ser
enunciado por meio de uma cenografia
professoral, poética, etc.

Os gêneros do discurso não são todos igualmente propícios ao


desenvolvimento de cenografias variadas, por isso podemos dividi-los
em uma linha contínua com dois polos extremos. De um lado, os
gêneros de discurso dos quais as cenas de enunciação se reduzem à
cena englobante e à cena genérica. De outro, os gêneros de discurso
têm maior possibilidade de originar cenografias que se afastam de um
modelo preestabelecido. Entre os dois extremos, os gêneros com
possibilidade de cenografias variadas, mas que se atêm, de maneira
mais frequente, a sua cena genérica rotineira.
As variações entre os gêneros de discurso parecem estar
fortemente ligadas aos à finalidade de cada um. A lista telefônica não
apresenta cenografia e é um gênero essencialmente utilitário.
Enquanto o discurso publicitário e o discurso político mobilizam
cenografias variadas, pois para persuadir o seu coenunciador devem
atribuir-lhe uma identidade invocando uma cena de fala valorizada.

- 79 -
Dentre as cenas de enunciação descritas, nos atentaremos à
cenografia, que é a cena que nos permite interpretar e analisar a
constituição do ethos feminino no conto a moça tecelã, de Marina
Colasanti. Afinal, os gêneros literários, por natureza, exigem a escolha
de uma cenografia.
A cenografia, de acordo com Maingueneau (2001), não é tão
somente um cenário onde o discurso aparece no interior de um espaço
já construído e independente dele; ela é a enunciação que, ao se
desenvolver, constitui progressivamente - e paradoxalmente - o seu
próprio dispositivo de fala; a cenografia é "[...] ao mesmo tempo fonte
do discurso e aquilo que ele engendra; ela legitima um enunciado que,
por sua vez, deve legitimá-la estabelecendo que essa cenografia onde
nasce a fala é precisamente a cenografia exigida para enunciar como
convém”. (MAINGUENEAU, 2001, p.87-8).
A cenografia define as condições de enunciador e
coenunciador, bem como o espaço (topografia), e o tempo
(cronografia), a partir dos quais se desenvolve a enunciação. Não é
simplesmente um quadro, um cenário, como se o discurso aparecesse
inesperadamente no interior de um espaço já construído e
independente dele. Ela implica um processo de enlaçamento
paradoxal, na medida em que é, ao mesmo tempo, a fonte do discurso
e aquilo que ele engendra. Além do mais, pode apoiar-se em cenas de

- 80 -
fala já instaladas na memória coletiva, ou seja, no universo do saber e
de valores públicos validados.
O coenunciador reconstrói a cenografia de um discurso com o
auxílio de indícios diversificados. Ele pode apoiar-se no conhecimento
do gênero de discurso, na consideração dos níveis da língua e do ritmo
ou, até mesmo, em conteúdos explícitos. Ou seja, o coenunciador
apreende a cenografia de um determinado discurso com auxílio de
indícios deixados pelo enunciador no texto. E, caso “concorde” com
seus enunciados, o coenunciador incorpora a cenografia instituída por
ele e adere ao universo dessa cenografia.
O Ethos e a cenografia são elementos indissociáveis que
constroem e legitimam a enunciação. Afinal, a enunciação estabelece
com o coenunciador um modo de comunicação considerado como
participando do mundo evocado pelo texto. Nesta perspectiva, o ethos
está ligado a uma cena enunciativa, na qual o coenunciador se
inscreve.
Para Maingueneau (2008), o ethos efetivo, aquele que os
coenunciadores, em sua diversidade, constituirão pelo discurso, é
resultado da interação entre diversas instâncias, cujo peso varia
segundo os discursos. Desse modo, o ethos é resultante da interação
de diversos elementos: a) do ethos pré-discursivo, b) do ethos
discursivo, c) do ethos dito e d) do ethos mostrado.

- 81 -
Figura 1 - A constituição do ethos em Maingueneau.

Fonte: Maingueneau, 2008.

Segundo o esquema, o ethos compõe-se de duas partes: o


ethos pré-discursivo e o ethos discursivo. Essas duas categorias
relacionam-se mutuamente a partir do momento em que o ethos pré-
discursivo pode ou não ser confirmado pelo ethos discursivo. O ethos
pré-discursivo se refere à imagem que o coenunciador constrói do
enunciador, antes mesmo que este pronuncie algo.
Segundo Maingueneau (2008), o ethos se desdobra no registro
do “mostrado” e, eventualmente, no “dito”. O ethos mostrado está no
domínio do não explícito, da imagem que não está diretamente
representada no texto, mas é construída pelas pistas que o enunciador
oferece ao coenunciador no momento discursivo.
Enquanto o ethos dito, é criado através das referências diretas
do enunciador, mas também pode incidir sobre o conjunto de uma
cena de fala, apresentada como um modelo ou um antimodelo da cena
de discurso. Dessa forma, ambos relacionam-se mutuamente já que

- 82 -
não há uma linha clara de separação entre o explicitado e o não
explicitado. É possível relacionar as metáforas ao mesmo tempo com
o dito e com o mostrado, de acordo com a maneira como são
empregadas no texto.
Na base do esquema estão os estereótipos, através dos quais o
coenunciador utiliza-se de representações culturais fixas, de modelos
pré-construídos para atribuir características ao enunciador. Segundo
Maingueneau e Charaudeau (2004), os estereótipos designam
imagens prontas, que medeiam a relação do indivíduo com a
realidade; ao mesmo tempo em que eles se relacionam com a cena
validada que já está instalada na memória coletiva.
A cena validada fixa-se em representações estereotipadas
popularizadas pela iconografia e é ao mesmo tempo exterior e exterior
ao discurso que evoca. O conjunto das cenas disponíveis varia de
acordo com o grupo atingido pelos discursos. Uma vez que, são cenas
armazenadas na memória discursiva, as quais entram no
funcionamento do discurso como elemento interdiscursivo que
corrobora com a projeção da cenografia do próprio discurso em
formulação.
A partir da abordagem realizada sobre o ethos aristotélico e o
ethos discursivo, observamos que o primeiro, de acordo com a retórica
clássica, designava o termo ethos como a construção de uma imagem
de si destinada a garantir o sucesso do empreendimento oratório;
enquanto a visão da análise do discurso considera o ethos como

- 83 -
presente em todas as manifestações do discurso, pois se constitui em
uma dimensão enunciativa que faz parte da identidade de um
posicionamento discursivo.

Metodologia
Em seguida, tomaremos como corpus de análise, sob a
perspectiva da análise do discurso, o conto “A Moça Tecelã”, de
Marina Colasanti. A narrativa compõe a obra Doze reis e a moça do
labirinto do vento, publicada em 1983.
Na análise, buscaremos compreender como se apresenta o
ethos discursivo da personagem nos diferentes momentos da
narrativa, identificaremos os fiadores do discurso e definiremos as três
cenas integrantes da cena de enunciação.
O percurso metodológico para o desenvolvimento da análise
será organizado da seguinte maneira:
a) No entanto, antes de iniciarmos nossa análise, faremos
algumas considerações sobre Marina Colasanti e algumas
características de sua produção literária. Afinal, de acordo com
Mussalim (2011, p. 1458) “Dominique Maingueneau proporá um
dispositivo de análise do texto literário que tem como ponto de
partida o pressuposto de que o texto é uma forma de gestão do
contexto”. Dessa maneira, não podemos dissociar o contexto
que participou do momento de criação de qualquer produção e
o ethos de seu autor;

- 84 -
b) Em seguida, analisaremos, a construção do ethos
feminino na narrativa dividindo-a em três blocos, a partir desta
divisão também serão identificados os fiadores do discurso. Ao
separar a narrativa em três blocos, que, apesar de serem opostos
nas ideias e no comportamento da Moça, podemos observar
claramente suas interligações e seu sentido impactante dentro
do texto;
c) Em um terceiro momento, partindo do pressuposto de
que o ethos é parte integrante da cena da enunciação,
definiremos as três cenas integrantes da cena de enunciação da
narrativa.

O corpus de análise
A escritora Marina Colasanti nasceu em Asmara, na Eritreia
(África), em 27 de setembro de 1937. Mudou-se com a família para a
Itália e, durante a Segunda Guerra Mundial, aos 11 anos, em 1948,
mudou-se para o Brasil. Talvez essa trajetória geográfica, de mudanças
para países distintos, tenha contribuído para a construção de sua
sensibilidade estética, caracterizando, assim, em sua escrita, um
significativo conteúdo literário universal, além da presença de
elementos míticos.

Unindo as narrativas mitológicas aos contos de


fadas, intercambiando culturas, expondo em sua
obra as ideias, os anseios, os temores, as

- 85 -
expectativas de seu tempo, Marina Colasanti
contribui na formação de um leitor crítico; procura
restaurar a discussão que a sociedade deve fazer
quando repensa o papel de cada um de nós: o lugar
do homem e da mulher, do sujeito, e assim resgatar
a cidadania perdida. (DAVID, 2001, p.98).

Desse modo, podemos estabelecer relações com a


personagem clássica Penélope. No trecho “Depois, lãs mais vivas;
quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca
acabava” (COLASANTI, 1985, p. 21), a menção a Penélope se torna
mais evidente. Afinal, a mulher de Ulisses, na Odisseia, tecia (e
“destecia” todas as noites), mas “nunca acabava” a mortalha com a
qual, pretensamente, desejava envolver o herói que, segundo os
pretendentes desejosos, havia morrido na guerra de Troia. Com esse
artifício, Penélope adiou a escolha até que Ulisses voltou para matá-
los. Logo, não podemos deixar de considerar esse interdiscurso
importante na produção do texto estudado.
O conto “A Moça Tecelã” tem a estrutura de narrativa
tradicional, de entendimento direto, fortemente influenciado pelos
modelos clássicos de fabulação: castelos, ideais de príncipes
encantados e magia constante.

Marina Colasanti faz um resgate de narrativas


orais, dos mitos, o maravilhoso dos contos de
fadas. E, muitas vezes, vestígios de mito junto com
elementos tirados de contos de fadas para que o
leitor recupere histórias que fazem parte do
patrimônio da humanidade. (DAVID, 2001, p.84).

- 86 -
Apesar dessas características, o conto possui um forte apelo de
conceitos, propõe uma nova maneira de pensar a postura feminina,
com base na transgressão dos costumes. Há uma tentativa de
confrontar o interdiscurso patriarcal, machista, com a possibilidade de
alteração de paradigmas. Logo, narrativa traz em sua diegese uma
inovação no comportamento feminino, a subversão anunciada

Vimos quebrar-se a imagem da mulher submissa ao


poder masculino, à cultura hegemônica para abrir
espaço à fala, aos desejos, aos anseios da mulher.
Por isso Marina Colasanti contribui com sua
escritura ao refletir uma cultura feminina no
interior da cultura maior, dominante e opressora.
(DAVID, 2001, p.97).

Analisaremos, portanto, a construção do ethos feminino na


narrativa dividindo-a em três blocos, ambos apresentam situações que
se opõe e, ao mesmo tempo, se interligam para a formação de
sentidos do texto. No primeiro bloco, Marina Colasanti expõe o ethos
da Moça Tecelã, apresentando ao coenunciador seu gosto pelo tear e
sua delicadeza ao tecer o passar de seus dias. Neste trecho da
narrativa, é possível inferir que a Moça possuía uma vida solitária, mas
parecia sentir-se satisfeita e completa. Afinal, realizava tudo a seu
modo e na hora desejada, sem sobressaltos ou aborrecimentos.

Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo


peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe
estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede

- 87 -
vinha, suave era a lã cor do leite que entremeava o
tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de
escuridão, dormia tranquila. (COLASANTI, 1985, p.
21).

Já no segundo bloco do texto, a Moça Tecelã começa a


apresentar um ethos de incompletude e solidão, sedento de
companhia, de necessidade masculina e com fortes desejos de
transformar-se em uma Mulher Tecelã. “Mas tecendo e tecendo, ela
própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez
pensou como seria bom ter um marido ao lado” (COLASANTI, 1985, p.
21). Nesse sentido, a narrativa vai ao encontro do interdiscurso
machista que vigora em nossa sociedade e que define que toda mulher
precisa de um homem que a complete para que ela possa realizar-se
plenamente.
Podemos observar nessa passagem a necessidade de união, de
realização com o outro. “Não esperou o dia seguinte. Com capricho de
quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no
tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia”. (COLASANTI,
1985, p. 21). Essa vontade de se unir a um homem nada mais é do que
o reflexo dos conceitos patriarcais, segundo os quais a união
homem/mulher é a única possibilidade de realização pessoal, não
restando outra saída senão enlace matrimonial. Vemos aqui a
perpetuação de um interdiscurso, pois, de acordo com Maingueneau
(2010, p. 51) “Entre posicionamentos centrais, há dominantes e

- 88 -
dominados. Os posicionamentos da periferia são por natureza
dominados pelos do centro”.
Mais uma vez, ao dar voz aos desejos femininos internalizados,
a Tecelã “[...] deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos
que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade. E feliz foi,
durante algum tempo”. No entanto, a Mulher passou a realizar os
desejos do marido, como uma boa representante da submissão
feminina: casa, palácio, estrebaria, não podia sequer ver a luz do sol,
pois não conseguia colocar no tapete o amarelo da liberdade.
Contudo, podemos classificar essa segunda etapa como a fase
da submissão em que a Mulher se despiu de toda e qualquer vontade
para atender aos caprichos do marido. Até esse momento da narrativa,
a personagem apresenta o Ethos de subserviência proposto e exigido
pelos interdiscursos patriarcais, pois, como mostra Maingueneau
(2010, p. 61):

Existem em toda sociedade falas que são


autoridade, pois reivindicam uma forma de
transcendência, já que elas não têm um além. Esses
discursos constituintes são aqueles que dão
sentido aos atos da coletividade; assim, fiadores de
muitos outros, possuem um funcionamento
singular: zonas de fala entre outras falas que se
pretendem acima de todas as outras. Discursos
limítrofes, colocados em um limite e lidando com o
limite, devem gerar textualmente os paradoxos
que seu estatuto implica.

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Afinal, em nossa sociedade, regida pelos princípios patriarcais,
as mulheres, de uma maneira ou de outra, têm acostumado a sujeitar-
se a essas situações. O discurso machista é o fiador de todas as
posturas autoritárias, por isso é preciso considerar que as mulheres
que não ecoam suas vontades acabam reproduzindo também um
discurso masculinizante.
No terceiro bloco, aborda a constatação da Mulher Tecelã
acerca da situação em que se encontrava. Observamos, nesse
momento, uma vontade de estar sozinha novamente.

E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua


tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos
os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em
como seria bom estar sozinha de novo. Só esperou
anoitecer. [...] Desta vez não precisou escolher
linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário,
e jogando-a veloz de um lado para o outro,
começou a desfazer seu tecido. (COLASANTI, 1985,
p. 21)

Nesse desfecho, o ethos da personagem passa a ser seguro e


transformador, reflexo de sua postura transgressora. A personagem se
transforma em uma mulher mensageira de um novo discurso, um
discurso não mais patriarcal, mas centrado e impregnado de uma
carga de inovação, já que abre mão da redenção pelo casamento e
resolve buscar a felicidade sozinha. Desse modo, o discurso e a postura
feminina são os fiadores de um pensamento inovador, transformador.

- 90 -
Contudo, a ruptura da tecelã não é feita somente com o
marido, mas com os valores determinados pela sociedade em que uma
mulher só é feliz se casar e tiver filhos. A Moça Tecelã provoca a quebra
de um estereótipo cultural, em que a mulher tem uma ação passiva
diante do seu papel/função social. Seu ethos era de uma mulher
submissa e cumpridora das regras estabelecidas pela sociedade, mas
ao final assume o papel dominante e transformador.
Podemos observar que Marina Colasanti gerou uma
personagem de ethos variável, que se transformou no decorrer do
texto: uma moça sonhadora, que deseja em um primeiro momento
somente aquilo que lhe parece vital; depois, percebemos a chegada da
mulher amante, que deseja um homem para ser seu companheiro; por
último, vemos o desabrochar de uma mulher segura, experiente e,
principalmente, livre e com poder total para decidir, alterar e criar sua
própria vida. Podemos dizer que, a Moça Tecelã é uma metáfora da
importância e da possibilidade de alteração de um discurso que há
séculos hiberna.
Partindo do pressuposto de que o ethos é parte integrante da
cena da enunciação e que a mesma integra três cenas que atuam em
planos complementares: a cena englobante, a cena genérica e a
cenografia, abordaremos as mesmas em nossa análise.
A cena englobante corresponde ao tipo de discurso, no caso do
corpus analisado corresponde ao discurso literário. Para Maingueneau
(2008), no discurso literário o ethos desempenha um papel de

- 91 -
primeiro plano, dado que, por natureza, visa a instaurar mundos que
ele torna sensíveis por seu próprio processo de enunciação.
A cena genérica é a do contrato associado a um gênero, neste
caso ao gênero conto. Conforme Maingueneau (1996 a, p.140): “[...]
sabendo diante de qual gênero está, o público estrutura suas
expectativas de acordo com ele”. A noção de gênero envolve o
conhecimento partilhado entre autor-leitor por meio da interação, na
qual o primeiro constrói as pistas para que o receptor participe
dinamicamente do ato da leitura.
Como afirma Maingueneau (2008 e 2001), há textos que se
reduzem às cenas englobante e genérica, como uma lista telefônica,
uma receita médica, uma bula de remédio etc. Não é, certamente, o
caso do conto, afinal os gêneros literários, por natureza, exigem a
escolha de uma cenografia.
A cenografia evoca os principais ideais de conquistas
femininos, ou seja, as possibilidades de alteração do discurso
patriarcal que tolhe o comportamento da maioria das mulheres,
possível através da postura transgressora feminina adotada pela
personagem, a Moça Tecelã. Tal discurso patriarcal fixa-se em
representações estereotipadas já instaladas e validadas na memória
coletiva, estas entram no funcionamento do discurso como elemento
interdiscursivo e corroboram com a projeção da cenografia do próprio
discurso.

- 92 -
Considerações finais
Este artigo teve como a analisar da constituição do ethos
feminino no conto “A Moça Tecelã”, de Marina Colasanti, buscando
compreender como se apresenta o ethos discursivo da personagem
nos diferentes momentos da narrativa. Utilizamos os pressupostos
teóricos de Maingueneau (1996, 2001, 2004, 2008a, 2008b, 2010,
2011), procurando apresentar suas contribuições quanto à
compreensão de ethos discursivo e aprofundamos os conceitos de
fiador e de cenografia, com suas respectivas características.
Também realizamos uma abordagem sobre a noção de ethos
aristotélico, anterior ao ethos na perspectiva da análise do discurso
recuperado e ampliado por Maingueneau. A partir da abordagem
realizada sobre o ethos aristotélico e o ethos discursivo, observamos
que o primeiro, de acordo com a retórica clássica, designava o termo
ethos como a construção de uma imagem de si destinada a garantir o
sucesso do empreendimento oratório; enquanto a visão da análise do
discurso considera o ethos como presente em todas as manifestações
do discurso, pois se constitui em uma dimensão enunciativa que faz
parte da identidade de um posicionamento discursivo.
Através da análise proposta, observamos a construção de um
ethos variável, que se transformou no decorrer do texto. Desse modo,
a Moça Tecelã provocou a quebra de um estereótipo cultural, em que
a mulher tem uma ação passiva diante do seu papel/função social. Seu
ethos era de uma mulher submissa e cumpridora das regras

- 93 -
estabelecidas pela sociedade, mas ao final assume o papel dominante
e transformador.
Com base nas constatações anteriores, concluímos que
cenografia da narrativa evoca as possibilidades de alteração do
discurso patriarcal que tolhe o comportamento da maioria das
mulheres através da postura transgressora feminina adotada pela
personagem, a Moça Tecelã. Tal discurso patriarcal fixa-se em
representações estereotipadas já instaladas e validadas na memória
coletiva, estas entram no funcionamento do discurso como elemento
interdiscursivo e corroboram com a projeção da cenografia do próprio
discurso.

- 94 -
Referências

AMOSSY, R. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. In:


______. Imagens de si no discurso: a construção do ethos. Trad.
Dílson Ferreira da Cruz, Fabiana Komesu e Sírio Possenti. São Paulo:
Contexto, 2005a, p. 9-28.

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d.

COLASANTI, Marina. A moça tecelã. In: ______. Doze reis e a moça no


labirinto do vento. 11. ed. São Paulo: Global, 2001, p. 9-14.

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Discurso. São Paulo: Contexto, 2004, p. 215--‐221.

DAVID, Mara Lúcia. A presença do mito na ficção de Marina Colasanti:


resgate das culturas portuguesas e brasileiras. São Paulo: USP,
Dissertação de Mestrado. Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas da faculdade de filosofia, Letras e Ciências, Universidade
do Estado de São Paulo. São Paulo, 2001.

HEINE, P. V. B. O ethos e a intimidade regulada: especificidades da


construção da construção do ethos no processo de revelação da
intimidade nos blogs pessoais. Dissertação de Mestrado. Salvador,
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AMOSSY, R. (Org.). Imagens de si no discurso. 1. Ed. São Paulo:
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MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. São Paulo:


Cortez, 2001.

MAINGUENEAU, D. Pragmática para o Discurso Literário. São Paulo:


Martins Fontes, 1996.

- 95 -
MAINGUENEAU, D. A propósito do ethos. Trad. Luciana Salgado. In:
MOTTA, A.R.; SALGADO, L. (Orgs.). Ethos discursivo. São Paulo:
Contexto, 2008. p. 11-29.

MAINGUENEAU, Dominique. Doze conceitos em análise do discurso.


São Paulo: Parábola, 2010.

MUSSALIM, Fernanda. Análise do discurso literário: Campo discursivo


e posicionamento na interlíngua.In: Anais do VII Congresso
Internacional da Abralin, Curitiba, 2011.

ANEXO
A MOÇA TECELÃ (Marina Colasanti)
Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando
atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que
ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade
da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em
longo tapete que nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a
moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais
felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio
de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a
chuva vinha cumprimentá-la à janela.

- 96 -
Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as
folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos
fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo
os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os
seus dias.
Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com
cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser
comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o
tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia
tranquila.
Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se
sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um
marido ao lado.
Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma
coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as
cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi
aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado,
sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o
último fio do ponto dos sapatos, quando bateram à porta.
Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou
o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.

- 97 -
Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos
filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.
E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha
pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder
do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele
poderia lhe dar.
— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E
parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas
lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa
acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.
— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou.
Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com
arremates em prata.
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos
e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela
não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha
tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar
batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.
Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido
escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.
— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de
trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se
esqueça dos cavalos!

- 98 -
Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido,
enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados.
Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe
pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela
primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.
Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia
sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho,
subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a
lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro,
começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as
estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas
as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena
e sorriu para o jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura
acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar.
Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés
desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo
corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma
linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de
luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.

- 99 -
Vozes negras femininas: canção de protesto, escrita
da resistência

Juliana Aparecida dos Santos Miranda5

Introdução
A música nunca foi um espaço de predominância feminina, no
Brasil, até o ano de 2006, as mulheres representavam apenas 20% da
categoria6, o que demonstra o silenciamento e a invisibilidade por
parte da indústria cultural musical. Não foi encontrado estudos que
revelassem a porcentagem de mulheres negras neste espaço, mas
considerando a problemática racial do Brasil, e também pelo que
vemos evidente nas grandes mídias, é possível prever que sua
presença é ainda menor e mais dificultada. Com isso não queremos
dizer que mulheres negras não fizeram história na música, ao
contrário, algumas delas não só fizeram, como foram reconhecidas por
isso, porém, infelizmente, esse crédito merecido só foi permitido à
poucas, a grande maioria delas ainda permanecem na invisibilidade.
Um dos aspectos que garantiu o reconhecimento das
musicistas negras, ao menos enquanto cantoras, foi baseado em
questões étnicas, mas não menos racista: o som “negroide” especifico

5 Mestranda em crítica cultural pelo programa de pós-graduação em crítica cultural pela UNEB: Pesquisadora Capes.
6 Pesquisa realizada pelo grupo Rumos Itaú Cultural Musical, em 2009.

- 100 -
da entonação em contralto de cantoras eruditas norte-americanas
(BITTENCOURT-SAMPAIO, 2012, p. 11). A noção reducionista com a
qual o timbre vocal da mulher negra estava relacionado, gerava a ideia
de uma tonicidade unilateral e depois, ao reconhecer a beleza desse
canto, ele se tornou um instrumento de sedução, que aponta para o
caráter de fetiche e sexualização da mulher negra. Bittencourt-
Sampaio aponta como essa sexualização através do fetiche da voz
negra feminina se apresentou em romances na literatura brasileira,
autores como Aluísio de Azevedo, Jorge Amado, Carlos Drummond de
Andrade, entre outros, relacionaram o cantar da mulher negra a
atributos sexuais, a exemplo disso, o autor apresenta um trecho do
romance A mulher obscura, de Jorge de Lima, em que a voz
personagem negra é direcionada ao fetiche da sedução:
“Possivelmente essa voz compósita, fruto de repetidos caldeamentos,
tinha culminado sua sedução nela como dote sexual, tão excitante
quanto a opulência das coxas, que igualmente havia herdado dos seus
trigueiros antepassados” (LIMA apud BITTENCOURT-SAMPAIO, 2012,
p. 17).
A resistência histórica da mulher negra se deu na música bem
como em diversos aspectos de sua vida, fazer protesto é, deste modo,
uma prática constante em suas produções artísticas, pois somente o
fato de haver tal ousadia em permanecer em um cenário totalmente
hostil a sua presença já se constitui em uma postura protestante. Nina
Simone, compositora e cantora de jazz, em sua canção Revolution

- 101 -
escreveu: “Cantando sobre uma revolução porque estavam falando
sobre uma mudança sua mais do que apenas evolução. Bem, você sabe
que tem que limpar o seu cérebro, a única maneira que podemos ficar
de fato é quando você tirar o pé das nossas costas7“.. Nesta canção a
impressão que temos é que Nina Simone protesta contra anos de
dominação e que mesmo com a ideia de “democratização racial” a
relação entre brancos e negros só será possível quando os brancos
forem destituídos do papel de agressor, tirando seus pés das costas do
povo negro. A exemplo do protesto cantado por Nina Simone, outras
vozes negras femininas se juntaram, ecoando bravas e fortes,
buscando se fazer visível e romper com a hegemonia branca que por
muito tempo a silenciaram.
De acordo com Giani (1985), música de protesto se caracteriza
pela sua atuação político-ideológica, dando “prioridade a sua ‘função
social’, concebida sob diversas linhas de pensamento [...]” (GIANI,
1985, p. 53). O contexto que Giani traz em seu estudo diz respeito ao
período da ditura militar no Brasil e traz a tropicalia como exemplo
maior de canção de protesto nacional. Outros estilos musicais podem
também possuir o carater protestante, a exemplo, o jazz de Nina
Simone citado anteriormente, pois a definição da canção de protesto
enquanto movimento social é “antagônica ao movimentos musicais
diretamente comprometidos com a escalada da indústria cultural sob

7 No inglês: Singin about a revolution because were talkin about a change its more than just evolution well you know you got to
clean your brain the only way that we can stand in fact is when you get your foot off our back.

- 102 -
o capitalismo em sua fase monopolista”. (GIANI, 1985, p. 140). Neste
contexto, Giani cita o rock’n roll e suas vertentes como sendo um
gênero problematizador dos padrões impostos pelo sistema
hegemônico e por isso altamente protestante.
O rock’n roll veio de origens negras, mais especificamente do
rhythm and blues “uma espécie de blues que se caracterizava pelo seu
ritmo, pela marcação dura e pesada. Esta música era interpretada
exclusivamente pelos negros”. (GIANI, 1985, p. 141). Apesar da
imagem de Elvis Presley estar fortemente relacionada ao surgimento
do gênero, especula-se que o rock nasceu de fato, assim como toda a
humanidade, através de uma mulher, de uma mulher negra. Rosetta
Tharpe, ou Sister Rosetta como ficou conhecida, foi uma cantora e
guitarrista gospel norte-americana que ingressou na carreira musical
ainda quando criança, aos 4 anos de idade, sendo uma das poucas
mulheres negras de sua época a tocar tal instrumento. Rosetta possuia
um programa de rádio gospel e nas décadas de 30 e 40 conquistou os
norte-americanos, gospels e seculares, através da sua música: um
blues que apontava para os primeiros acordes do rock’n roll. Rosetta
inspirou artístas como Chuck Berry, BB King, Bob Dilan e, entre outros,
até mesmo o próprio “rei” do rock, Elvis Presley, perdendo para eles
sua visibilidade e se tornando apenas um vulto na história do rock.
O rock’n roll além de música é também dança e faz jus ao
fetiche da sexualidade através do seu ritmo, colocando em jogo, aqui
nem tanto a voz, mas a relação do corpo com o compasso musical.

- 103 -
Deste modo, é comum que, nesse contexto a noção de cultura negra
venha atrelada a questão da música, enquanto ritmo e da dança,
enquanto corpo, como sendo as únicas características da cultura
negra. Associar então a cultura negra a esse simplismo cultural é uma
ação racista que implica em desconsiderar toda a diversidade
existente nela, assim, Stuart Hall (2003) afirma que não há purismos
nas formas culturais, pois elas, independente de qual grupo
pertençam,

[...] são sempre o produto de sincronizações


parciais, de engajamentos que atravessam
fronteiras culturais, de confluências de mais de
uma tradição cultural, de negociações entre
posições dominantes e subalternas, de estratégias
subterrâneas de recodificação e transcodificação,
de significação crítica e do ato de significar a partir
de materiais preexistentes. (HALL, 2003, p. 343)

A ideia de Hall citada acima centra-se principalmente na


questão de haver um aspecto seletivo da cultura negra utilizado para
deslegitimar todos os demais aspectos, seleção essa que impulsiona a
apropriação e a mercantilização da cultura negra, numa tentativa de,
não só tomar o protagonismo das causas, como também frear a luta.
Um bom e contextualizado exemplo é a apropriação do rock’n roll
pelos brancos donos das grandes mídias, transformando-o em rock
and roll, uma vez que para eles “parecia que rock’n roll coincidia com
a luta dos negros pelos direitos civis e [...] ‘fazia parte de um complô
[...] para corromper a juventude branca do sul’” (GIANI, 1985, p.142).

- 104 -
É importante considerarmos tais fatores para explorarmos o tema
canção de protesto pelo viés da mulher negra, pois, de acordo com o
conceito de deslocamento-cruzado, trazido por Hall (2003) é possível
perceber como as identidades se moldam a depender dos sistemas
estruturais em que se encontram, ou seja, se homem negro sofre com
o racismo ele ainda está na vantagem se comparado com a mulher
negra, que sofre com o racismo e com o machismo, e este último ela
sofre tanto por parte de brancos e quanto por parte de negros.
Cabe destacar, antes de partirmos para as canções que serão o
corpus deste artigo, que dentro das canções de protesto cabíveis no
gênero “Rock” muitas poderiam ser destacadas, no entanto para este
artigo, considerando principalmente pelo viés feminista da discussão,
privilegiamos o movimento Riot Grrrl. O Riot Grrrl surgiu na década de
90 nos Estados Unidos a partir da iniciativa das bandas Bratmobile e
Bikini Kill, o objetivo deste movimento era organizar um contra-
discurso ao movimento punk, que apesar da ideia libertária expressava
em seu contexto segregações baseadas no gênero. No Brasil o
movimento Riot Grrrl ganhou uma notória evidência através da
internet e redes sociais, incluindo no movimento questões próprias
dos feminismos aqui aplicados.

Você não é exótica, você é rainha!

- 105 -
A estética negra sempre foi alvo de críticas negativas pela
sociedade racista, as características próprias do sujeito negro, como a
“pele escura, cabelo crespo, nariz largo e lábios carnudos” (CUTI, 2010,
p.1) foram estigmatizadas como sendo respaldo para toda a
inferiorização que se construiu acerca de sua imagem, criando assim a
concepção de belo e feio, sendo que o belo está ligado
inconscientemente ao branco e o feio ao negro. Estabelecidos tais
critérios o racismo passa a se materializar na forma como o negro, e a
negra, se vê e é visto pelos demais, com base nessa perversa ideologia
a ideia do negro enquanto ser negativo, feio e inferior foi se
naturalizando, abrindo espaço para um processo que poderia resgatar
a população negra desses atributos: o embraquecimento.
O processo de embraquecimento pode acontecer de inúmeras
formas, desde a miscigenação até transformações físicas, como
cirurgia no nariz e alisamentos capilares, por exemplo. De toda
maneira, ambas as formas almejam fazer extinguir as características
negras a fim de fazê-la assemelhar-se com o ideal de brancura. Das
muitas variadas problemáticas que a ideia de embranquecimento traz
consigo, ressaltamos a noção de democratização racial como sendo a
central, aquela que de alguma maneira relaciona-se com as outras de
modo direto. De acordo Edward Telles (2012), a miscigenação no Brasil
se deu, primeiramente, de forma violenta:

Frequentemente, os homens brancos estupravam


e abusavam das mulheres africanas, indígenas e

- 106 -
mestiças. De fato, os brasileiros mestiços foram
grande parte gerados através da violência sexual
durante o período da escravatura, apesar de não
serem incomuns a coabitação e o matrimônio entre
brancos e não-brancas. (TELLES, 2012, 21)

Embora mal vista, a miscigenação era entendida por alguns


como uma chance de embraquecimento da população brasileira, para
estes “a mistura de raças eliminaria a população negra e conduziria,
gradualmente, a uma população brasileira completamente branca”
(TELLES, 2012, 23). O que houve, entretanto, durante as décadas de 10
e 20, e daí por diante, foi o crescente número de mestiços e dos
chamados “pardos”, essa nova realidade mudou o pensamento da
elite da época, que continuava tão racistas quanto antes, mas
sustentavam o discurso de harmonia racial, invisibilizando qualquer
discussão sobre raça. A noção de democratização racial tomou conta
do país, “o governo brasileiro convenceu a si mesmo, a população e a
comunidade internacional de que seu povo era culturalmente
antirracista e que, portanto, não precisaria destas leis” (TELLES, 2012,
30), o governo militar “proclamou com confiança a inexistência de
discriminação racial no país” (TELLES, 2012, 32) e falar sobre racismo
era uma atitude racista, além disso a criação e a existência do
movimento negro, era vista como “ameaça de peso à segurança
nacional” (TELLES, 2012, 32). O cerco aos poucos foi se fechando,
apontando para a sociedade brasileira um racismo velado que permite

- 107 -
que negros continuem sendo explorados e que os brancos continuem
se beneficiando dos privilégios resultante dessa exploração.
Outro aspecto relevante no contexto do mito da democracia
racial foi transformar o negro em afro-descendente, o que, de acordo
com Cuti, é uma tentativa de diluir as características relacionadas ao
fenótipo negro, pois afro-descendente todos podem ser, uma vez que
a África é o berço da humanidade. Deste modo, negar o uso da palavra
negro é esconder todas as problemáticas raciais que deveriam estar
sendo evidenciadas, para Cuti “Muita gente hoje, com as expressões
formadas a partir do prefixo ‘afro’, trabalha ‘confortavelmente’, sem
necessitar de confronto com a ideologia racista, negando-lhe a
existência”. (CUTI, 2010, p. 6). Ao negar a existência do racismo torna-
se impossível combate-lo, uma vez que não se combate aquilo que não
pode ser visto. Afirmar-se enquanto negro e negra é importante não
só para combater o racismo e a cultura de embranquecimento, é
fundamental também para o reconhecimento da população negra
enquanto parte da formação identitária do Brasil.
Dentro desse contexto de negritude enquanto fenótipo,
trazemos para a discussão uma canção da banda Riot Grrrl, paulista
Útero Punk intitulada por Caroline, a canção reflete o modo como a
ideia de embranquecimento afeta a vida e o corpo das mulheres, e
meninas, negras:

Caroline

- 108 -
Meu cabelo é crespo
Minha pele é negra
O seu padrão não me representa!
Vamos desembaraçar a sociedade
Que quer nos impor a ditadura progressiva
Vamos desembaraçar a sociedade racista
Que diz que meu cabelo só é bonito quando
alisa.
Menina pretinha, você não é exótica, você é
rainha!
Vamos defender a nossa liberdade,
a nossa identidade, a nossa africanidade.
Duro é o seu preconceito, duro é o seu
racismo!

A canção Caroline reflete a realidade de inúmeras mulheres


negras que são acuadas por padrões eurocêntrico impostos a elas
ainda quando muito crianças, os aspectos físicos das mulheres negras
estão sempre se esbarrando com os conceitos estabelecidos do que é
ser bonito e feio e neste jogo as características negras são sempre
transformadas em algo que se assemelhe a brancura estabelecida
como bela. A questão dos cabelos talvez seja a mais comum entre as
tentativas de embranquecer a mulher negra e é através da aceitação
do cabelo crespo que a canção começa buscando questionar esse
padrão. Para Bell Hooks (2005),

Dentro do patriarcado capitalista – o contexto


social e político em que surge o costume entre os
negros de alisarmos os nossos cabelos –, essa
postura representa uma imitação da aparência do

- 109 -
grupo branco dominante e, com freqüência, indica
um racismo interiorizado, um ódio a si mesmo que
pode ser somado a uma baixa auto-estima.
(HOOKS, 2005, p. 2)

Hooks traz à tona uma questão que foi colocada por Cuti como
a invisibilidade de si mesmo. Invisibilizar-se é se auto negar em prol de
um padrão pré-estabelecido por um sistema hegemônico. O sistema
de dominação trazido por Hooks é o patriarcado capitalista, que, ao
criar um arquétipo de mulher perfeita, excluiu as mulheres negras
deste âmbito, vendendo para elas os produtos necessários para que
nele elas possam adentrar. Nesta lógica, eis uma boa justificativa para
o nome do alisamento citado na canção: progressiva. Progresso é o
mesmo que evolução, ou seja, sujeitar o cabelo crespo a tal processo
a fim de alisá-lo se refere ao ato de evoluir, em seus sinônimos:
melhorar, desenvolver, enriquecer, ou seja, a imagem da branquitude.
Os discursos postos sobre a estética das mulheres negras estão
carregados de ideologias racistas, mas funcionam de modo sutil. Falas
corriqueiras como as que dizem que o cabelo da mulher negra só é
bonito quando alisa ou que a mulher negra fica mais bonita quando o
cabelo está alisado, são falas que demonstram o repúdio massivo das
características físicas das negras. Essa imposição colocada para as
mulheres negras afeta de modo significativo a sua autoestima,
fazendo com que elas recorram a qualquer tipo de processo de
alisamento, colocando em risco não só sua identidade enquanto
mulher negra, mas também a sua saúde, conforme afirma Oliveira

- 110 -
(2015): “Algumas dessas, sabemos, podem ser caras às usuárias
custando-lhes, inclusive, a vida, quando submetidas aos ostensivos
processos de alisamentos, sem os devidos cuidados e/ou informações
acerca dos mesmos”. (OLIVEIRA, 2015, p.105). É importante notar
também o modo como a estética dos cabelos das mulheres negras
afetam também a sua afetividade, de acordo Hooks, os homens negros
preferem as mulheres negras cujos cabelos estejam longos e alisados,
por este motivo, as mulheres heterossexuais optam por este tipo de
cabelo, ao contrário, as mulheres homossexuais preferem se afastar
dessa imagem ao adotar os cabelos curtos e crespos (HOOKS, 2005, p.
5).
Outra questão a qual devemos chamar atenção é no trecho da
canção em que a palavra exótica é utilizada fazendo alusão a tentativa,
por parte de brancos, de fazê-la soar como um elogio para a beleza das
mulheres negras. Primeiro cabe ressaltar que apenas é exaltada e vista
como exótica a mulher negra que possui os traços mais
embranquecidos, como nariz fino, boca fina, cabelos menos crespos e
pele mais clara, as demais continuam sujeitas aos métodos de
embranquecimento a fim de ficarem “belas”. O exótico é, no entanto,
apenas mais uma das maneiras em que o racismo se manifesta. Para
Stuart Hall o pós-modernismo chegou trazendo uma enorme
fascinação pelas diferenças, sejam elas no âmbito sexual, racial,
cultura ou étnicas, para ele “não há nada que o pós-modernismo
global mais adore do que um certo tipo de diferença: um toque de

- 111 -
etnicidade, um ‘sabor’ do exótico [...]” (HALL, 2003, 337). Porém, não
nos deixemos enganar, por trás do exótico existe uma classe
dominadora que a escolheu como tal e só escolheu por estarem em
padrões mais aceitáveis para a supremacia patriarcal branca, além
disso, junto com todo o fetiche pelo exótico há também um
silenciamento desses diferentes e uma exploração brutal da sua
imagem para fins mercantis e de apropriação cultural.
Examinando a canção é possível perceber o quanto a aceitação
dos fenótipos próprios das mulheres negras, evidente em suas linhas,
implica na autoafirmação de uma identidade negra que resiste. Como
bem sabemos, e conforme afirma Nilma Lino Gomes, “a identidade
não é algo inato” (GOMES, s/d, p. 41), em sua liquidez é possível que
haja uma gama infinita de diversidades. No entanto, quando falamos
de identidade negra precisamos, sobretudo, considerar que seu
processo de construção vem depois de complexas discussões,
problematizações e ressignificações, assim, é possível concordar com
Gomes quando ela diz que:

A identidade negra é entendida, aqui, como uma


construção social, histórica, cultural e plural.
Implica a construção do olhar de um grupo
étnico/racial ou de sujeitos que pertencem a um
mesmo grupo étnico/racial, sobre si mesmos, a
partir da relação com o outro. (GOMES, s/d, 43)

É deste modo que o orgulho da identidade negra permite às


mulheres negras reconhecerem sua história plural, aceitando a sua

- 112 -
africanidade e exibindo orgulhosamente os traços resultantes dessa
origem. Assumir a pele negra e os cabelos crespos é uma forma de se
manter resistente perante a sociedade que deseja a todo custo impor
um padrão brancocêntrico às mulheres negras, sendo assim, assumir
tais fenótipos é mais do que assumir uma identidade negra, é acima
de tudo positiva-la diante de “uma sociedade que, historicamente,
ensina aos negros, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso
negar-se a si mesmo” (GOMES, s/d, p. 43).
Vencer o racismo e a discriminação é uma dura missão que as
mulheres negras precisam enfrentar ao longo de sua vida. Na canção
a luta pela afirmação identitária que se forma em seu contexto busca
auxilio do termo “desembaraçar” em seu sentido deslocado, o termo
que normalmente é utilizado para se referir ao ato de pentear ou tirar
os nós dos cabelos crespos, uma vez que cabelos lisos pouco
embaraçam, é deslocado e se transforma em uma ação de desfazer o
pensamento hegemônico existente nos discursos da sociedade racista.
De acordo com Gomes, o racismo deve ser entendido como “um
conjunto de ideias e imagens referente aos grupos humanos que
acreditam na existência de raças superiores e inferiores” (GOMES, s/d,
p. 52), assim, romper com a lógica racista em si próprio é questionar a
noção de superior e inferior promovendo assim um ato de defesa a
liberdade e a identidade das mulheres negras.

- 113 -
Preta, gorda e sapatão
Vencer o machismo e o racismo são apenas dois dos obstáculos
na vida da mulher negra, que enquanto sujeito complexo é
multifacetada em aspectos identitários. Neste ponto deste artigo a
ênfase será voltada para o discurso da mulher negra lésbica e gorda,
ou seja, sujeito vítima de quatro tipos diferentes de violências que
dialogam entre si contribuindo ainda mais para a agressão desta
mulher. Deste modo é preciso, antes de mais nada, compreender
como essas manifestações de violências se dão e como se diferem ou
equiparam umas com as outras.
De acordo com a concepção de Carlos Moore (2007) há uma
grande confusão quando se trata de racismo e sexismo, para muitos
estes termos estão agrupados no espaço chamado de “preconceito”.
O autor, entretanto, salienta que existem diversas formas de
preconceito, mas o que difere o preconceito do sexismo e do racismo,
por exemplo é o fato deles poderem “não ser compartilhados em
determinadas culturas ou civilização” (MOORE, 2007, p. 280),
enquanto os exemplos citados anteriormente “são formas de
consciência historicamente construídas e determinadas, atemporais e
englobantes, o racismo e o sexismo perpassam todas as culturas e
todas as civilizações” (MOORE, 2007, p. 281). Assim sendo, podemos
concluir que, no que tange o fato do racismo e do sexismos serem
violências tão comuns, há uma justificativa voltada para o modo como
as construções identitárias da mulher e da (o) negra (a) foram

- 114 -
intencionalmente desviadas para o polo inferior de uma maneira
ampla e universal.
Cabe notar, entretanto, que dentro da escala de opressão não
se comunga a solidariedade entre os oprimidos, deste modo, é
completamente possível e fácil perceber o modo como determinados
grupos oprimidos oprimem outros grupos baseados em suas
diferencias, ressalto o aspecto generalizante da questão levantada.
Desta maneira, a solidariedade feminina, bem como a homossexual,
pode se desintegrar diante da questão racial, conforme remonta
Moore “O homossexual negro, homem ou mulher, é alvo do racismo
do homossexual branco, homem ou mulher. Ora, tanto os
homossexuais brancos quanto negros são estigmatizados pela
homofobia de negros, mulheres ou homens” (MOORE, 2007, p. 282).
O que implica, nestes casos, é o fato de que nesses sistemas de
opressões o que ocorre é a manutenção dos benefícios das classes
hegemônicas que necessitam desse círculo de opressão para se
manterem no poder, classe esta, formada por homens, brancos, ricos
e heterossexuais.
É neste sentido que Audre Lorde, “negra, lésbica, feminista,
socialista, poeta, mãe de duas crianças e membra de um casal
interacial” (LORDE, s/d, p. 5) afirma, com propriedade de causa, que
sobre a opressão não há hierarquia, em suas palavras: “eu aprendi que
opressão e intolerância da diferença vem em todas formas e tamanho
e cores e sexualidade” (LORDE, s/d, p. 5). Lorde e Moore

- 115 -
compreendem a fatalidade do sistema de opressão e com isso é
possível perceber o quão difícil é romper este ciclo, uma vez que a
violência representada por ele funciona de modo a fazer com que os
padrões permaneçam sempre os mesmos, estabelecendo, a partir
desses padrões o inferior e o superior. Para Moore, “o problema não
reside necessariamente no fato de que o racista se sente superior, mas
no fato de que ele vive uma vida efetivamente superior à daqueles que
oprime” (MOORE, 2007, p. 286), nesta citação Moore faz uma reflexão
sobre o racista, mas pensamento semelhante pode ser proposto para
o machista, o LGBTfóbico, o gordofóbico e muitos outros, conforme
afirma Lorde: “Eu aprendi que sexismo e heterosexismo ambos
nascido da mesma fonte do racismo – a crença em superioridade
inerente de uma raça sobre todas as outras e então seu direito de
dominância” (LORDE, s/d, p. 5).
Para promover mudanças em tais sistemas de opressão é
necessário que haja a quebra do silêncio dos oprimidos e que haja,
sobretudo, uma oposição capaz de problematizar e desconstruir essas
violências, de acordo Moore:

Cada vez que o racismo recua, ele o faz somente


diante de uma ferrenha oposição. E cada vez que
essa oposição enfraquece, ele começa novamente
a ganhar espaços, continuando a evoluir – da
mesma forma que evolui o tempo – conforme seu
sentido inicial. O racismo nunca recua de forma
permanente. (MOORE, 2007, p. 289)

- 116 -
Enfatizo novamente que, apesar de Moore tratar
exclusivamente sobre racismo, essa lógica pode ser aplicada a outros
sistemas de opressão. É pensando nessa oposição contra o racismo, o
machismo e outras formas de opressão, juntamente com o
rompimento do silêncio dos oprimidos, que a canção Preta, gorda e
Sapatão, da banda mineira Bertha Lutz, também adepta ao
movimento Riot Grrrl, protesta contra padrões impostos e os sistemas
de opressão:

Preta, gorda e sapatão

Corpo político, desviante, fora do padrão


Que não se encaixa em sua cor nem em sua relação
Todos olhares acompanham minha movimentação
Vigilantes, revelando a minha condição.
Preta, gorda e sapatão
Minha resistência é minha revolução
Afetos negados, emoções interrompidas
O dedo apontado na cara, o dedo cravado na ferida
Sou sapatona preta sem vergonha da minha
existência,
102 kilos de pura resistência.

Na canção acima, o corpo da mulher negra, gorda e lésbica é


colocado como fora do padrão, no entanto, uma potente arma
política. Neste contexto a canção rompe com o silêncio causado pela
opressão e utiliza-se da linguagem para assumir o corpo “desviante”.
Para Lorde o silêncio representa “o medo do desprezo, da censura, do
julgamento, ou do reconhecimento, do desafio, do aniquilamento”
(LORDE, s/d, p. 23), essas sensações são pessoais, mas estão presentes

- 117 -
em experiências vividas por várias mulheres em situação de opressão.
A transformação do silêncio em fala, não significa, entretanto, que tais
medos sejam abolidos, se fazer visível é assumir o risco de encarar os
medos e promover mudanças radicais e é neste sentido que Lorde
afirma:

Podemos aprender a trabalhar e a falar apesar do


medo, da mesma maneira que aprendemos a
trabalhar e a falar apesar de cansadas. Fomos
educadas para respeitar mais ao medo do que a
nossa necessidade de linguagem e definição, mas
se esperamos em silêncio que chegue a coragem, o
peso do silêncio vai nos afogar. (LORDE, s/d, p. 25)

A quebra do silêncio traz consigo visibilidade e afirmação de


uma identidade múltipla, deste modo, a mulher retratada na canção
reporta a si mesma afirmando as construções identitárias que foram
se constituindo em seu corpo. Ao contrário da canção anterior em que
os traços desta identidade eram marcados pelo fenótipo, nesta, as
marcas fazem parte de descobertas feitas através das suas vivências,
é o descobrir-se negra, lésbica e gorda e acima disso, compreender
que ambas as identidades cabem em uma única pessoa e não se
anulam. É nesse contexto que Lorde aponta o modo como tais
identificações define o sujeito como um todo:

Dentro da comunidade lésbica eu sou Negra e


dentro da comunidade Negra eu sou lésbica.
Qualquer ataque contra pessoas Negras é uma
questão lésbica e gay porque eu e centenas de

- 118 -
outras mulheres Negras somos partes da
comunidade lésbica. Qualquer ataque contra
lésbicas e gays é uma questão Negra, porque
centenas de lésbicas e homens gays são Negros.
(LORDE, s/d, p. 6)

Deste modo, a canção traduz essa ideia ao demonstrar que não


luta apenas de um lado das diferenciações, há luta em todos os lados
e nenhuma é maior ou menor que outra. A música retrata um corpo
não dócil, um corpo que não se encaixa em padrões socialmente
estabelecidos, seja no que condiz a cor ou as relações, um corpo
descolonizado que recusou se manter domesticado em prol de um
fetichismo machista e racista acerca do corpo da mulher negra
materializado em seus estereótipos. Compreender que o estereotipo
“é uma simplificação porque é uma falsa representação de uma dada
realidade [...] uma forma presa, fixa, de representação que, ao negar
o jogo da diferença, constitui um problema para a representação do
sujeito” (BHABHA, 1998, p. 117), é fundamental para sua
desconstrução e para a aceitação do sujeito enquanto multiplicidade.
Romper com os padrões é, como vimos, se tornar visível, é ver
e ser vista, considerando que o corpo, lugar onde a visibilidade se
estabelece primeiramente, “está sempre inscrito tanto na economia
do prazer e do desejo como na economia do discurso, da dominação e
do poder” (BHABHA, 1998, p. 107), é promover uma ação direta sobre
os ditames coloniais, questionando, problematizando e descontruindo
tais estereótipos naturalizados. É deste modo que mesmo estando

- 119 -
cerceada por vigilâncias diversas que repulsam a sua existência,
afirmar-se enquanto preta, que se recusa embranquecer, gorda que se
recusa sacrificar seu corpo em prol de um padrão de magreza e
sapatão, deslocando o pejorativo para transformá-lo em instrumento
de afirmação sexual, que a mulher multifacetada se reconhece e se
empodera perante os sistemas de opressão.
No texto da canção há uma referência sobre o modo como os
afetos são negados a essa mulher desviante, a partir disso é relevante
refletir sobre a solidão das mulheres negras, somando aos demais
fatores que as mantem fora do padrão e dificultam ainda mais a
existência desses afetos. Ana Cláudia Lemos Pacheco (2013) realizou
uma extensa pesquisa sobre a afetividade e a solidão das mulheres
negras. Ao longo de seu estudo Pacheco constatou, por meio de
contribuições teóricas e de seu corpus de pesquisa, que a escolha
afetiva dos homens brancos ou negros, são, de modo geral, mulheres
brancas, sob a premissa do código social que, veladamente, dispõe a
mulher negra como não sendo ideal para um relacionamento afetivo
estável, apenas para relacionamentos sexuais. “Há nesta concepção”,
de acordo Pacheco,

[...] a separação entre sexo-sexualidade e


afetividade. A afetividade representa um projeto
maior que englobaria união estável, constituição
de família, convivência, filhos, casamento formal
ou não, durabilidade na relação, qualidades que a
ideia de ‘sexo’ e de sexualidade, por mais que este
último conceito fosse mais amplo, não explicariam,

- 120 -
por si só, o leque de preferências afetivas.
(PACHECO, 2013, p. 267)

O estudo de Pacheco deu enfoque apenas as questões raciais,


as mulheres negras homoafetivas e gordas não foram tratadas com
especificidade, no entanto a partir de tais concepções é possível
afirmar que estar em um padrão considerado inadequado, seja um
padrão sexual ou um padrão corporal, reflete diretamente no modo
como as relações afetuosas se constrói para essas mulheres, uma vez
que o estereotipo ideal constituído é fruto de um imaginário
sociocultural que atinge a homens e mulheres. É deste modo que esta
canção, conforme ela própria afirma, “é o dedo apontado na cara, o
dedo cravado na ferida”, é a voz empoderada e incômoda da mulher
negra, lésbica e gorda que se recusa a se renunciar em prol da
manutenção dos sistemas de opressão e que utiliza-se de um espaço
de protesto para reivindicar seu lugar de fala, resistência e revolução,
fazendo valer a premissa de que o pessoal é político, considerando que
“na política os corpos negros foram ressignificados. Isso foi
evidenciado na linguagem corporal e discursiva. A política transformou
os corpos, antes, negados e perpetrados pela violência do racismo,
física, social e simbólica, em corpos revoltados” (PACHECO, 2013, p.
348).

- 121 -
Considerações finais
Para a elaboração deste artigo pensamos em algumas bandas
brasileiras que representassem o movimento Riot Grrrl e trouxesse em
suas canções discussões sobre questões raciais. Apesar de reconhecer
em algumas delas traços de discussões sobre raça, num contexto
generalizado, as discussões não focavam nem colocavam a mulher
negra enquanto protagonista. As duas bandas citadas foram
selecionadas principalmente pelo protagonismo da mulher negra, não
só no discurso da canção, como também posicionadas enquanto
integrantes das bandas. O ativismo encontrado nesta relação mostra
como as vivências e as artes podem se entrecruzar, promovendo
desconstruções, revoluções e representatividade.
Em um artigo escrito para o blog Gorda e Sapatão, Bah Lutz,
vocalista da banda Bertha Lutz e compositora da canção Preta, gorda
e sapatão, narra como se deu seus interesses musicais e como isso a
ajudou a lhe dar com a descoberta da sua sexualidade. Ao longo do
artigo, Bah Lutz mostra como a falta de representatividade no espaço
Riot Grrrl promovia um desconforto e um não pertencimento, ela
afirma: “Praticamente todas as minas sapas do riot grrrl eram brancas
e magras e por isso eu nunca me reconheci de fato no rolê, mesmo o
riot sendo a principal referência musical e política na minha vida”.
Assim como Bah Lutz, Tati Góis, vocalista e compositora da banda
Útero Punk, afirma, em entrevista para o site Nada Pop, que a
representatividade é necessária para o propósito da música de

- 122 -
protesto, por isso a discussão deve ser feita de maneira a incluir e
promover o reconhecimento entre as mulheres, por isso ela afirma:
“Com a UP não tem essa coisa de teórico e academicismo, abordamos
vivência, realidade experiência de vida mesmo, o que faz com que toda
e qualquer mulher entenda do que estamos falando – desde feminista
acadêmica até a mulher leiga de periferia [...]”.
O proposito deste artigo foi evidenciar as vozes das mulheres
negras e feministas que estão fazendo de todos os espaços lugares de
militância e visibilidade. Em seus discursos podemos observar o modo
como as suas vivências se apresentam e derrubam os muros
construídos pelos vários tipos de opressão. Sem medo da
inconveniência e do incômodo alheio, para elas resistir não é apenas a
única opção é fazer da resistência um lugar de luta que sirva de
inspiração para que, assim como elas, outras mulheres negras também
possam resistir. A ressignificação pautada em seus discursos
protestantes também marca a maneira como esse feminismo vem
revolucionando a sociedade a partir da autoafirmação das mulheres
negras, que se recusam embranquecer, que são donas do próprio
corpo e da própria sexualidade e que mantém firme e forte perante
uma saciedade racista, machista e LBTfóbica que tenta de todas as
maneiras, em vão, negar-lhe o direito da existência. Mulheres negras
existem e resistem!

- 123 -
Referências

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Relações de gênero no campo da música – Rumos Itaú Cultural Música


– Edição 2007/2009. Disponível em:
http://d3nv1jy4u7zmsc.cloudfront.net/wp-
content/uploads/itau_pdf/001588.pdf

- 126 -
Resgatando a identidade cultural negra através da
negritude: memórias costuradas

Dênis Moura de Quadros8

Marcadas por discriminações sexistas e racistas, as mulheres


negras sofrem com a invisibilidade e o apagamento da memória
coletiva ancestral, fato esse que deslegitima seus discursos e seu lugar
no mundo. Esta invisibilidade social desdobra-se na literatura que,
cristalizada e encastelada no cânone hegemônico, não permite que
essas vozes sejam ouvidas. As mulheres negras ao se
autorrepresentarem refletem, em suas narrativas, um caráter
documental, denunciando sua dura realidade e ao mesmo tempo
ficcional, pois rememoram a partir de um distanciamento temporal.
Contudo, não é apenas essa a função das obras escritas por mulheres
negras, mas, principalmente, dessilenciar essas vozes demarcando seu
lugar no mundo.
Esses testemunhos são advindos de “culturas estilhaçadas pela
diáspora, pelo colonialismo e pela discriminação sócio-econômica”
(GOMES, 2004, p.19), logo a memória dessas mulheres é composta de
retalhos. A costura dessas memórias individuais converge para uma
memória coletiva (HALBWACHS, 2006) que representa, sobretudo, seu

8
FURG/CAPES
- 127 -
lugar de fala. Essa memória coletiva social é rememorada, costurando
esses retalhos que culminam nos testemunhos de espaços periféricos
como as favelas. Esses territórios, simbólicos, são construídos
socialmente (HAESBAERT, 2011) e trazem resquícios de outros espaços
delegados, em especial, a essas mulheres negras discriminadas pelo
gênero, raça, condição social e outros fatores convergentes
interseccionalizados. Resgatar essa memória coletiva é resgatar e
compreender a identidade cultural negra que, não sendo inata, é
construída socialmente sob dois mitos: o do negro preguiçoso e o da
democracia racial.
A literatura produzida por mulheres negras ou literatura
afrofeminina, adotando o conceito de Santiago (2012), é pouco
estudada e lida na sociedade brasileira. Dessa literatura, Santiago
(2012) elenca como precursoras três autoras negras: Maria Firmina
dos Reis (1825-1917); Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e Antonieta
de Barros (1901-1952). Nesse ano do centenário de morte de Maria
Firmina pouco se ouve falar de suas obras ou mesmo do primeiro
romance abolicionista brasileiro Úrsula (1859), bem como são raras as
homenagens a esta autora basilar na Literatura Brasileira nos
inúmeros eventos acadêmicos ao longo desse ano.
Ao pensarmos nessas autoras precursoras, percebemos que
são de distintos lugares, o que nos leva questionar a ausência das
autoras negras gaúchas. Das invisíveis autoras surge, atrelada à obra
de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), a obra Ilhota: testemunho de

- 128 -
uma vida (1993) de Zeli de Oliveira Barbosa (1941-2017). A obra de Zeli
só é publicada graças à mediação da socióloga Enid Backes (1930- ) e
ao projeto da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre Outras
vozes. Ao que parece, Zeli é a segunda mulher negra gaúcha a ter uma
obra publicada e mesmo sendo uma das precursoras da literatura
escrita por mulheres negras no Rio Grande do Sul há pouquíssimos
trabalhos acerca de sua obra que conta com alguns artigos dispersos e
menções.
Anterior à Zeli Barbosa há outra autora negra precursora da
literatura afrofeminina gaúcha relembrada por Conceição Evaristo
(2011) na antologia crítica organizada por Eduardo de Assis Duarte,
Maria Helena Vargas da Silveira (1940-2009) ou Helena do Sul, como é
conhecida e autodenominada, nasceu em Pelotas- RS e publica sua
primeira obra, É fogo, em 1987, um compilado de ensaios, contos e
crônicas. Helena do Sul também publica a obra poética Meu nome
pessoa: três momentos de poesia (1989); as antologias de contos e
crônicas: O sol de fevereiro (1991); Odara (1993) e Negrada (1994) e
as novelas sociais: Tipuana (1997); O encontro (2000) e Os corpos e
Obá contemporânea (2005). Além dessas obras também publicou As
filhas das lavadeiras (2002) e Rota existencial (2007). Rompendo com
a constante presença de mediação, como Audálio Dantas e Enid
Backes, em As filhas da lavadeiras (2002), Helena do Sul media vinte
depoimentos de mulheres que, como ela, são filhas de lavadeiras,
costureiras e empregadas domésticas.Os depoimentos rememorados

- 129 -
de mulheres negras e acerca de mulheres negras partem de um espaço
comum, de um território periférico formado socialmente, bem como
escancaram a realidade social brasileira das descendentes de africanos
escravizados que, como podemos antecipar, é semelhante à
desumanização sofrida pelos antepassados.
O primeiro ponto a ser refletido no presente trabalho é a
memória. Segundo Levi (2004, p.19): “As recordações que jazem em
nós não estão inscritas na pedra; não só tendem a apagar-se com os
anos, mas muitas vezes se modificam”. Logo, essa memória, que será
apagada e esquecida, necessita ser, devido ao grau de importância
sócio-cultural de representação, transcrita, testemunhada. Esses
relatos exigem uma força de vida muito grande das testemunhas, pois
rememorar uma lembrança dolorosa acentua a cicatriz por ela
deixada. Das memórias advindas das obras desse trabalho
percebemos que há um distanciamento, temporal e territorial, dessas
mulheres em relação ao que contam, fato que faz com as memórias
sejam refletidas e, logo, aumentadas e manipuladas pelas experiências
pessoais.
Bosi (1994, p.55) afirma que: “lembrar não é reviver, mas
refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje as
experiências do passado”. Mesmo não revivendo, as memórias
evocam as dores e os sofrimentos o que pode ou não sublimá-los
através da escrita. É das memórias individuais de cada testemunho
que buscaremos uma memória coletiva, pois segundo Halbwachs

- 130 -
(2006, p.69): “cada memória individual é um ponto de vista sobre a
memória coletiva”. Dessa forma, será possível perceber como cada
testemunho converge para um lugar no mundo específico dessas
mulheres, lugar subalterno delegado a elas que precisa ser rompido.
Essas memórias são construídas socialmente e culturalmente
refletindo uma memória comum entre o grupo que define quais
memórias merecem ser relembradas e influenciam e são influenciadas
pela identidade cultural a que pertencem.
Pensando nas memórias das mulheres negras, percebemos
uma memória esfacelada, fragmentária, a que Nora (1993, p.7), afirma
que:

A memória cristaliza-se e refugia-se onde a


consciência da ruptura com o passado confunde-se
com o sentimento de uma memória esfacelada,
mas onde o esfacelamento desperta ainda
memória suficiente para que se possa colocar o
problema de sua encarnação. O sentimento de
continuidade torna-se residual aos locais.

O território descrito por Zeli Barbosa é semelhante ao de


Carolina Maria de Jeus em Quarto de depejo (1960). Território
permeado de sujeitos descendentes de povos diaspóricos, a favela da
Ilhota em Porto Alegre-RS descreve o espaço de violência e
subalternidade imposta denunciada no testemunho de Zeli Barbosa.
Esses espaços, assemelhando-se aos campos de concentração
nazistas, também estão presentes nos vinte depoimentos dAs filhas

- 131 -
das lavadeiras costurados e mediados por Helena do Sul. Esses
territórios presentes nas obras são simbólicos e construídos
socialmente e a cada desterritorialização e reterritorialização deixa
nos sujeitos fragmentos que constituem o “espaço de referência para
a construção de identidade” (HAESBAERT, 2011, p.35).
Gomes (2004, p.13) afirma que: “A escrita (da mulher) negra é
construtora de pontes”. Essas pontes que unem o passado e o
presente refletem o quanto ambos traduzem experiências dor e
sofrimento. Contudo, é a partir desses eventos traumáticos que
descobrimos a “reserva de forças” (LEVI, 2004) que cada um porta
dentro de si. Essas pontes construídas pelas mulheres negras em suas
narrativas testemunhais servem de ponto de apoio para a ruptura
dessa realidade, para dessilenciar essas vozes e romper com o véu que
as esconde. Como afirma Santiago (2012, p.231): “não se quer repetir
histórias e vivências, mas desconstruí-las quando oportuno”, é
necessário testemunhar o genocídio do negro brasileiro como o faz
Abdias do Nascimento (1968) e cada autora negra.
Ao pensarmos nesses locais como influenciadores da
construção da identidade cultural no local de fala e na
autorrepresentação dessas mulheres em seus testemunhos. Aliada ao
estudo do local de fala, a interseccionalidade, base da teoria feminista
negra (CARDOSO, 2012; ZERAI, 2000), surge como forma de
compreendermos melhor a importância desse local de fala.

- 132 -
A garantia de que todas as mulheres sejam
beneficiadas pela ampliação da proteção dos
direitos humanos baseados no gênero exige que se
dê atenção às várias formas pelas quais o gênero
intersecta-se com uma gama de outras identidades
e ao modo pelo qual essas intersecções contribuem
para a vulnerabilidade particular de diferentes
grupos de mulheres. (CRENSHAW, 2002, p.174)

A interseccionalidade busca compreender as várias formas de


discriminação contra as mulheres a partir dos inúmeros fatores além
do gênero. Pensando nisso, recordamos que por muito tempo as
mulheres negras permanecerão em um entre-lugar subalternizado e
marginalizado por serem mulheres e negras e esse espaço, sem
representatividade. Essa realidade, aliada a falta de
representatividade feminina negra, culmina na afirmação de Jurema
Werneck (2010) de que as mulheres negras não existem e quando se
fala delas o espaço delegado é, quase sempre, o dos subempregos
antes desempenhados pelas escravas. “Mulher negra, naturalmente,
é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostitua”
(GONZALEZ, 1984, p.226), essa naturalização da condição da mulher
negra é, também, refletida na literatura brasileira, mesmo em
constante apagamento e subalternização. Incluindo a representação
sexualizada das “mulatas”, essas duas figuras são atualizadas
socialmente pelo mito da democracia racial que vela o racismo no
Brasil. “Passada a escravidão, o negro permaneceu nos porões da
sociedade, subordinado a uma hierarquia social que pauperiza-o e

- 133 -
estigmatiza-o por sua cor” (AMARO, 1997, p.11). A literatura
afrofeminina vem, através da escrevivência, romper com essa
realidade e com esse mito.

O que poderia ser considerado como história ou


reminiscências do período colonial permanece,
entretanto, vivo no imaginário social e adquire
novos contornos e funções em uma ordem social
supostamente democrática, que mantém intactas
as relações de gênero segundo a cor ou a raça
instituídas no período da escravidão. As mulheres
negras tiveram uma experiência histórica
diferenciada que o discurso clássico sobre a
opressão da mulher não tem reconhecido, assim
como não tem dado conta da diferença qualitativa
que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem
na identidade feminina das mulheres negras.
(CARNEIRO, 2003, p.20)

Desse lugar de fala marcado pela exclusão e subalternização,


as mulheres negras estão no mundo, possuem seu lugar, mas: “um
contexto desfavorável, um cenário de discriminações, [...] pobreza,
baixa escolaridade, subempregos, violações de direitos humanos,
traduzem histórias de dor”. (WERNECK, 2016, p.13). Essas histórias só
podem ser transcritas literariamente por meio do testemunho. “A
narrativa de testemunho pode ser compreendida como um escrito
dotado, ao mesmo tempo, de um caráter documental e de um traço
de ficcionalidade” (ALÓS, 2017, p.85, grifos do autor).
Além disso, a literatura de testemunho ou literatura de
depoimentos não é vista como um gênero autônomo, talvez, por

- 134 -
representar grupos subalternizados. Essas escritas de si, que partem
de um espaço de “confluência de múltiplas formas, gêneros e
horizontes de expectativas” (ARFUCH, 2010, p.58) não remetem
apenas a testemunha, mas a outros, aos “afogados” (LEVI, 2004). Essa
escrita de si que representa outras vozes nos remete ao conceito
cunhado por Conceição Evaristo de “escrevivência”, uma escrita
pautada nas vivências pessoais e ancestrais.
Ao falar de Ilhota, Zeli já não reside mais na favela que,
também, fora realocada mais à margem da capital gaúcha atual bairro
Restinga. Os depoimentos contidos em As filhas das lavadeiras
também remetem a um passado de resistência dessas mães
lavadeiras. Além disso, a rememoração permite que os sujeitos colem
suas memórias fragmentadas pelo trauma ou, que a costurem com fios
de ferro que compreendem a dura vida. Esses testemunhos são
fundamentais para compreendermos o apagamento e consequente
invisibilidade dessas mulheres negras na sociedade brasileira que
contribui para uma maior instabilidade da identidade cultural desses
sujeitos.

Autossuperação no testemunho de Zeli Barbosa


Zeli de Oliveira Barbosa publica em 1993 suas memórias de
quando era moradora da favela da Ilhota em Porto Alegre. Escrito em
1972 relembra a época em que residia na Ilhota entre 1959 e 1964. A
publicação de Ilhota (1993) ocorre através do projeto Outras vozes

- 135 -
financiado pela Secretaria da Cultura de Porto Alegre- RS. Além disso,
na busca das “vozes” dos bairros a ilustre Ilhota, bairro de Lupicínio
Rodrigues (1914-1974), não poderia ficar de lado. Através da mediação
da socióloga Enid Backes, os escritos de Zeli Barbosa são elencados
para compor o projeto.
O testemunho de Zeli inicia com “Somente agora depois anos
é que me deu vontade de escrever, pois dizem que recordar é viver e
só agora eu vivo realmente”. (BARBOSA, 1993, p. 15). Já moradora da
parada 46 de Alvorada- RS, onde veio a falecer no início do ano de 2017
com complicações hospitalares, Zeli tece os fragmentos de memória
advindos das duas vezes que fora forçada a residir na Ilhota pela falta
de moradia. É inegável perceber os fios de ferro que tecem o
testemunho de Zeli e o distanciamento dela com os moradores desse
espaço. Não é à toa que a comparação da escrita de Zeli com a de
Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e seu Quarto de despejo: diário
de uma favelada (1960), visto que ambas imersas nos espaços
periféricos não se incluem entre seus moradores. Ambas sabem que
toda escrita é política e creem no poder que ele tem.
Dotada de sensibilidade e empatia, Zeli reflete sobre os casos
vivenciados na Ilhota de pessoas que se apropriam dos poucos bens
dos parentes logo após sua morte. Não consegue compreender como
as pessoas podem chegar ao ponto de degradação humana,
questionando ela: “Será meu Deus, existem mesmo pessoas sem
coração, despidas de qualquer sentimento, ou sou eu que sou

- 136 -
sentimental demais? Eu não posso me conformar com isso”
(BARBOSA, 1993, p. 16). Zeli se depara com uma realidade diferente
da sua, criada por uma família de posses, casa-se e, por falta de
oportunidades, vai residir com o marido e os filhos nas terras da
prefeitura de Porto Alegre conhecida por Ilhota, nome dado pelas
constantes enchentes. Mesmo pertencente a prefeitura da cidade, a
família de Zeli e as outras famílias pagavam aluguel a Dona Olga que
era Nação, ou seja, era Yalorixá do Batuque do Rio Grande Sul.
Interessante notarmos que mesmo à margem do centro da
cidade, a Ilhota era estratificada em becos, classificados de acordo
com características comuns dos moradores. Zeli residia no beco dos
Anjos, assim conhecido pela massiva presença de crianças. Havia,
ainda, o beco do conforto em que residiam os moradores que
possuíam um maior poder aquisitivo. Ou seja, dentro desse espaço
periférico conhecido como Ilhota haviam “becos”, espaços, ainda
mais, marginalizados. Essa estratificação, ainda, corresponde aos
espaços de maiores e menores alagamentos dentro da Ilhota.
Podemos perceber nos depoimentos de Zeli a constante
preocupação com a formação moral dos filhos. Inserida em um
contexto “de tanta degradação, de tanta promiscuidade” (1993, p.22),
o que mais lhe deixava amargurada era seus filhos se acostumarem ao
ambiente quase sem lei, na visão de Zeli. Aos sujeitos infratores da lei
que residiam na Ilhota Zeli os nomeia como “malandros” e conta, em
seu relato, a primeira morte a que ela e seus filhos presenciaram. O

- 137 -
uso do termo “malandro” ainda caracteriza os moradores que não
trabalhavam. Contudo, mesmo inserida nesse contexto
subalternizadom Zeli reflete que aprendeu algo.

Eu passei por momentos bem difíceis por causa da


umidade e falta de higiene do lugar, mas graças a
Deus sempre tinha alguém disposto a me orientar
e confortar para que eu pudesse continuar na luta,
que para mim foi grande, pois não tinha
experiência nenhuma de vida [...] E para mim foi
uma escola, muitas vezes vendo pessoas morrendo
baleadas, com facadas ou mesmo de bebidas.
(BARBOSA, 1993, p. 32)

Apesar da força que toda escrita emana, Zeli se distancia da


realidade da Ilhota e seus moradores. Esse distanciamento vindo do
depoimento de uma mulher negra moradora de favela nos remete ao
fato de que a identidade cultural não é inata, mas construído
socialmente e, também, constantemente desconstruído. Neusa dos
Santos Sousa, em Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do
negro brasileiro em ascensão social (1983), afirma que se nasce negro,
torna-se negro, em que: “Ser negro é [...] tomar consciência do
processo ideológico que [...] engendra uma estrutura de
desconhecimento que o aprisiona em uma imagem alienada” (SOUSA,
1983, p. 77) Além dessa consciência, definida como negritude por
Bernd (1988), é a ruptura dessa imagem cristalizada pelos mitos do
negro e da democracia racial.

- 138 -
Toda ascensão e entrada dos negros em espaços
majoritariamente brancos força um sacrifício. Este sacrifício, quase
sempre, é o apagamento de sua identidade, de sua negritude e a
concordância com o discurso do opressor. Claro que, cada vez mais, há
negros e negras ocupando esses espaços e legitimando, ainda mais,
sua negritude, mas em sua maioria servem de exemplos para a
“meritocracia” que atualiza o mito do negro preguiçoso e acomodado.
Assim como há os casos de escritoras que compactuam com o discurso
patriarcal e machista o que lhes garante espaço no cânone. Em Ilhota
percebemos como Zeli compactua com a subalternidade feminina ao
concordar com o discurso de sua patroa de que fosse submissa ao
marido e lhe perdoasse as faltas. Levi reflete sobre esses oprimidos
que serviam de cúmplices dos opressores em Aushwitz, afirmando
que: “Quanto mais feroz a opressão, tanto mais se difunde entre os
oprimidos a disponibilidade de colaboração com o poder”. (LEVI, 2004,
p.37). E, talvez, seja por isso que Zeli, mesmo constantemente
oprimida pelo poder soberano o justifica.

Na vila, pessoas que não tinham tido jamais um


caso com a polícia, como nós e várias outras
famílias, era vermos nossos lares invadidos por
policiais, muitos sem um pingo de educação, se me
permitirem, brutalizados pela profissão, entrar em
nossos lares a qualquer hora sem nem mesmo
pedir licença, pois nesse tipo de vila eles não
podiam mesmo ser amáveis, pois sabiam o tipo de
pessoas que iam encontrar. (BARBOSA, 1993, p.
38).

- 139 -
Contudo, podemos perceber que o testemunho de Zeli de
Oliveira Barbosa reflete a dura realidade que subalterniza os
descendentes de africanos escravizados que, no Brasil e mais
especificamente o Rio Grande do Sul, sofrem com a invisibilidade e
falta de oportunidades. A importância de Ilhota parte de duas
perspectivas: é o relato de uma mulher negra, gaúcha, favelada e;
denuncia a constante presença da morte e degradação impostas aos
moradores das “margens”, da periferia. Não sabemos o quanto Zeli
concorda com o discurso do opressor, afinal, a publicação de seu
testemunho passou pelo seu crivo pessoal, como a troca de nomes dos
moradores a que se refere, e por alguns “mediadores” que também
não sabemos o quanto influenciaram ou não na obra de Zeli.

[...] o relato de Zeli é um depoimento de auto-


superação, de resistência contra a violência e luta
por um projeto de vida próprio. Zeli conseguiu
afirmar-se como sujeito de seu destino e a prova
disso é a escrita do relato, que lhe assegura a
condição de sujeito moderno, que constrói através
da memória sua identidade e dá sentido à sua
existência. (MONTEIRO, 2006, p. 108)

Repetimos que toda escrita é um ato político e conseguir ser


publicado é resistência. Mesmo esquecida pela crítica literária e pela
historiografia literária, o testemunho da vida de Zeli de Oliveira
Barbosa reflete a tomada de consciência, através dos relatos e
reflexões de degradação humana, dos sujeitos negros periféricos no

- 140 -
Rio Grande do Sul. Essa degradação reflete o tratamento dado aos
ancestrais escravizados e o quanto essa identidade é formada pelo
passado e pelo discurso hegemônico. Contudo, a identidade cultural
não é estável, ela é constantemente deformada e reformada e, dessa
forma, a literatura desempenha papel central na construção da
identidade cultural negra, ao passo que, desmitifica e abala as
estruturas da nova (velha) Casa Grande.
Zeli encerra seu testemunho com a lembrança das prostitutas
que residiam na Ilhota, em especial Maria Borjão, que cuidava de seus
filhos para que ela pudesse trabalhar vendendo seus quitutes. “E às
vezes eu fico pensando onde andará essa criatura que foi tão boa para
os meus filhos, sempre peço a Deus que dê uma boa sorte para ela”.
(BARBOSA, 1993, p.70). Invisível e apagado o testemunho de Zeli de
Oliveira Barbosa retorna dado sua representatividade sócio-histórica
e a (de) formação de uma identidade subalternizada do negro gaúcho.

O testemunho das filhas das lavadeiras


Maria Helena Vargas da Silveira ou Helena do Sul reúne em As
filhas das lavadeiras (2002) vinte depoimentos de mulheres negras de
diferentes regiões do Brasil que rememoram o trabalho de suas mães
e a preocupação com a ascensão dessas filhas pela educação. Esses
depoimentos partem, principalmente, do Rio Grande do Sul, estado da
autora cujos depoimentos se entrelaçam com a sua vida. Mas também

- 141 -
há depoimentos advindos de Minas Gerais, Santa Catarina, Rio de
Janeiro, São Paulo e Espírito Santo.
A obra está dividida em quatro atos, como se refere Helena do
Sul, em que o primeiro ato traz os depoimentos ou referenciais
históricos das filhas das lavadeiras; o segundo é uma breve análise que
a autora faz desses depoimentos colocando-se como filha e neta de
lavadeiras; o terceiro é constituído de poesias e canções fazendo
referência ao trabalho das lavadeiras cantando a beira dos rios e o
quarto e último ato é constituído por um álbum de fotos das mães e
das filhas.
Dos vinte depoimentos elencamos, para melhor percebermos
o objetivo da obra testemunhal mediada por Helena do Sul, cinco dos
vinte depoimentos. O primeiro é do sul de Minas Gerais, Caxambu,
pertencente à Ana Maria da Silva Martins. Deste depoimento é
interessante notarmos o papel dos “clubes sociais” na formação da
identidade negra. O segundo pertence a Maria José de Souza falando
do estado de Santa Catarina, depoimento que ao falar de sua mãe
Maria Luiza da Silva estende seu relato amoroso a outras mães
lavadeiras. O terceiro é da primeira miss Brasil negra, a gaúcha Deise
Nunes Ferst, falando sobre os sacrifícios de sua mãe lavadeira Ana
Maria Nunes. O quarto depoimento é da atriz Ruth de Souza,
depoimento que versa acerca da representatividade negra nos
espaços hegemônicos. Por fim, analisaremos aqui o depoimento de
Omy dos Passos Loureiros e a vivência com sua mãe Benedita.

- 142 -
Ana Maria da Silva Martins, filha de Maria Aparecida Gonçalves
da Silva, afirma que após sua entrada no Movimento de Caxambu-MG:
“Entendeu que os poderosos donos dos hotéis de Caxambu herdaram
as suas terras de ricos fazendeiros [...] deixando para a classe pobre
[...] uma distância muito grande em relação a tudo que era
possibilidade”. (SILVEIRA, 2002, p.30) Citando a interdição dos negros
ao Balneário Parque das Águas, espaço natural da cidade ocupado
pelos ricos da cidade e turistas.
Presidente do Movimento Negro de Caxambu, Ana Maria
reflete as dificuldades de reunir os negros da cidade. Na falta de um
espaço para as reuniões do Movimento, utilizam a sede do Grêmio
Recreativo Prazer das Morenas, clube criado pelos negros da cidade
que não tinham nenhum espaço para festas na cidade. A principal luta
do Movimento, como relata Ana Maria, é a (re) construção da
autoestima e da autoimagem dos negros da cidade buscando na
negritude a ruptura de uma identidade negativa que causa vergonha
nesses sujeitos “o negro, em Caxambu, ainda recolhido, muito cabeça
baixa, porque faltam maiores informações mais estudo” (p. 32)

Os ensinamentos e informações que Maria


Aparecida, sua mãe lavadeira, continua passando
para os filhos e netos são de muito valor e,
especialmente, para Ana Maria são estímulos para
lutar pela justiça e diminuição da desigualdade
social, para superação da discriminação racial”.
(SILVEIRA, 2002, p.33)

- 143 -
Empoderamento e resistência é o ensinamento mais marcante
das mães lavadeiras. A esperança dessas mulheres negras na ascensão
de suas filhas e netas rompendo com incessante sucessão de linha de
trabalho está pautada na educação. É através da busca pela formação
superior que as mães lavadeiras incentivam as filhas e é, também,
através da educação que essas filhas rompem com o “destino” de
lavadeiras e empregadas domésticas. Contudo, salientamos que essa
ruptura não é nada simples e os poucos exemplos que conhecemos só
reforçam essa dificuldade, essa falta de acesso. Não basta méritos,
eles nem sempre se prestam como argumento que deslegitima todas
aquelas mulheres que seguem a profissão de suas mães que, apenas,
não ocupam outros espaços por falta de oportunidade.
De Santa Catarina, atual Antonio Carlos, Maria José de Souza
afirma que rememorar a vivência com sua mãe Maria Thomazia da
Silva é:

[...] mais do que um depoimento sobre sua mãe,


estará fazendo uma homenagem a todas mulheres
que educaram seus filhos ao redor dos tanques e
legaram para eles um nível de dignidade, muitas
vezes, invejável, por muitos que foram tratados
com certos confortos, mas que infelizmente
tenham sido marcados por preconceitos e
desafetos que às vezes influenciam,
negativamente, no exercício de respeito ao ser
humano”. (SILVEIRA, 2002, p.67)

- 144 -
O depoimento de Maria José nos mostra como o preconceito
racial é uma constante na vida dos negros que, independente da
formação moral, sofrem esses “desafetos” como se refere Maria José.
Esse preconceito, ao que nos parece, é mais acentuado na região sul,
cuja invisibilidade do negro é mais pungente. Esse fato se dá pela
colonização europeia da região fortemente habitada por
descendentes de italianos e alemães, como é o caso da avó de Maria
José. Contudo, a presença de negros no sul do Brasil e sua influência
pode ser percebida, por exemplo, no Ri Grande do Sul com o Mercado
Público de Porto Alegre e a presença do assentamento do Orixá Bará.
Maria José relembra que sua família gostava muito de beber e
se divertir e uma das festas populares da região era a festa do Boi
Mamão que envolvia uma ritualística que evocando o boi o benzia.
Recordando sua mãe, enfatiza a luta das mulheres por espaço e para
conseguir manter a família nessa sociedade hegemonicamente
branca. “Os extras conseguidos por minha mãe eram adquiridos a
duras penas, depois de um dia todo lavando roupa, dobrando e
passando” (p.75). Além disso, aponta a necessidade de organização
dos Movimentos Negros, destacando esse Direito Humano de
representatividade.

Nós não temos a preocupação de saber qual é a cor


do outro mas, se esquecermos que somos negros,
alguém haverá de nos lembrar e para que isso não
aconteça, entendemos que o fato de estabelecer
parcerias não quer dizer igualar-se. No mundo

- 145 -
globalizado, onde os dominadores proliferam
como se mobilizassem novamente a Casa Grande,
também os negros se mobilizam e o grande
segredo é a organização. Não é ousadia organizar-
se para ter poder e progresso. É um Direito, é
Direito Humano. (SILVEIRA, 2002, p.81)

Maria José nos lança uma preocupação que, cada dia mais, se
acentua no Brasil que, protegidos pelo direito de expressão, publicam
abertamente ofensas raciais. O caso mais recente teve como alvo a
fala da atriz Taís Araújo (1978- ) que em um TEDx (Evento auto
organizado do TED uma organização sem fins lucrativos, criado em
1984, dedicada a espalhar boas ideias) afirmou que a cor de seu filho
faz com que as pessoas troquem de rua. Essa fala gerou vários
comentários e memes de internet racistas. Há inúmeros casos que
poderíamos falar e esse número preocupante retorna a preocupação
de organização e empoderamento na busca de uma identidade
cultural que reflita, realmente, a negritude.
Daisy Nunes Ferst também compõe o quadro de filhas de
lavadeiras que ocupam, atualmente, espaço na sociedade brasileira.
Daisy é a primeira miss Brasil negra, vencedora do concurso de 1986.
Recordando o trabalho de sua mãe Ana Maria Nunes, enfatiza como
foi duro e difícil, mas não se deixava se abater, resistia. Além disso,
Daisy relata a dolorosa ferida que os afrodescendentes carregam
dentro de si e que a sociedade insiste em fazer arder mais: o racismo.

- 146 -
Foi uma vida dura, difícil, mas mesmo assim ela
nunca deixou de sonhar com um futuro melhor
para todos nós. Sempre me ensinou os princípios
básicos da boa educação, pois o dinheiro não
compra educação. [...] já fui discriminada, em
vários momentos, principalmente, em minha
carreira, por ser negra. Confesso que é muito ruim
ser discriminada. Dói muito mesmo (SILVEIRA,
2002, p.112)

A representatividade é um ponto importante para a formação


de uma identidade negra, além disso, o título de Daisy Nunes reflete,
como ela mesma afirma, a melhora da autoimagem e da autoestima
da mulher negra que fica de fora do padrão de beleza eurocêntrico. O
primeiro título de miss ao povo negro só ocorre em 1986, em um
concurso que ocorre desde 1954 e depois dele só teremos outra
representante negra em 2016, quando Raissa Santana vence o
concurso. Em 2017, a miss Piauí Monalysa Alcântara vence o concurso
e é alvejada por inúmeros comentários racistas e a acusação de
“racismo reverso”, um termo que já traz em si o racismo contra o
negro tido como normal, já que o racismo contra o branco é “reverso”.
Ainda falando de representatividade a atriz negra Ruth de
Souza também tem seu testemunho registrado na obra de Helena do
Sul. Filha da lavadeira Alíde Pinto de Souza, Ruth recorda, sobretudo,
da dignidade de ser pobre quando criança que no auxílio ao trabalho
da mãe brincavam. “Brincava entre as tinas, quando ia ajudar a
estender lençóis. Era tudo muito divertido”. (2002, p.182). Além disso,
relembra que enquanto passava roupa, a mãe Alaíde escutava no rádio

- 147 -
a transmissão das óperas e operetas advindas do Teatro Municipal e,
atento ao rádio, recontava às filhas aquelas histórias. Ao final, Ruth
reflete sobre a responsabilidade que carrega como mulher negra de
ocupar os inúmeros espaços.

Quero dizer às mulheres que não se deixem abater,


que não deixem de ter fé, muita coragem.
Precisamos pensar em ser melhores. Se estou
fazendo um trabalho, quero fazer o melhor, se
estou em uma peça teatral ou novela e se eu sou a
protagonista, naquela cena, eu tenho que fazer
tudo melhor, o melhor que eu posso, o melhor que
sei fazer, principalmente na televisão que coloca a
minha figura feminina de mulher, notadamente de
mulher negra. (SIVEIRA, 2002, p.185)

Fazer o melhor, nas palavras de Ruth de Souza, é o


ensinamento de sua mãe lavadeira que ela carrega com orgulho. A
educação, a simpatia e a necessidade de fazer a diferença nos
inúmeros espaços preenchidos por essas mulheres negras é, também,
resistência. Ruth também recorda do TEN (Teatro Experimental do
Negro) e de sua convivência com seus pares e, sobretudo, o idealizador
Abdias do Nascimento (1914-2011). A visibilidade do negro demonstra
que não basta ser bom naquilo que desempenha, há de ser o melhor.
O último depoimento elencado para o presente recorte vem do
estado do Espírito Santo, na cidade de Guarapari e recebe a mediação
de Núbia, como se refere Helena do Sul. O depoimento é de Omy dos
Passos Loureiro, uma alegre senhora que recorda de sua mãe Benedita

- 148 -
dos Santos Loureiro. Omy relembra as dificuldades de sua infância em
que trabalhavam na lavoura e depois começa a ajudar sua mãe na
lavagem das roupas. Recorda que o desejo da mãe era: “que ela
pudesse ter algum estudo, que fosse alguém na vida, para não andar
pedindo nas portas” (SILVEIRA, 2002, p. 188). Essa preocupação com o
estudo das filhas é recorrente nos relatos.
A preocupação com a negritude, ou seja, tomar consciência da
identidade negra subalternizada e romper com ela formando outra,
também aparece no depoimento de Omy que afirma: “que nossas
origens étnicas precisam ser engrandecida porque, neste país, a
maioria é negra e misturada com negro, mas as oportunidades de
desenvolvimento são mais difíceis para os negros”. (SILVEIRA, 2002,
p.191). Esta parte do relato, em 2002, nos faz lembrar das palavras da
personagem Mãe Susana, em Úrsula (1859) de Maria Firmina dos Reis
(1825-1917), que afirmam que não há liberdade para os negros em um
país racista.
Analisando os referenciais históricos, Maria Helena Vargas da
Silveira, afirma que: “Sempre insistindo, as mães lavadeiras
acreditaram que podiam fazer das filhas, mulheres que não
precisassem lavar roupas, assim como elas, para ganhar o pão. E
conseguiram”. (SILVEIRA, 2002, p.213). A educação fora uma das
formas de romper com a identidade negativa que subalterniza e
marginaliza as mulheres negras e através da representatividade,
enegrescendo os espaços, é possível compreender o passado histórico

- 149 -
dos ancestrais e assumir uma identidade cultural negra, não estável,
mas construído sob uma base positiva. Essa (nova) identidade cultural
rompe com os mitos do negro (KABENGELE, 1988; SOUSA, 1983) e da
democracia racial.

Considerações finais: falando de enegrescimento necessários


Stuar Hall (2011) afirma que a identidade cultural não é algo
inato, nem estável, ela é construída socialmente e culturalmente em
um constante estado de vir a ser. A identidade negra advinda da
diáspora se encontra resistente nas memórias dos afrodescendentes,
contudo essa memória coletiva sofre constantes rupturas e tentativas
de apagamento, tornando-se fragmentária. A escrita é uma forma de
“costurar” essas memórias e lembranças baseadas na vivência e,
sobretudo a literatura afrofeminina, não repetir essas histórias, mas
abalar as estruturas da (nova) Casa Grande.
Desse abalo, buscamos na interseccionalidade, base da crítica
feminista negra, subterfúgios para compreender a importância do
resgate dessa memória coletiva que (re) constrói a identidade negra
através da negritude. A invisibilidade dessas mulheres e a completa
falta de oportunidades de ocupar os espaços hegemonicamente
masculinos e brancos demonstram a importância de “resgate” e de
dar, não voz porque elas a tem, ouvidos a suas histórias, relatos e
depoimentos.

- 150 -
A herança deixada pelas mães lavadeiras resume-
se em valores que incluem o estudo, a alegria de
viver, o trabalho, a coragem, a honestidade, a
organização, a disciplina, a solidariedade, a
amizade, a fé, o carinho, o amor, o bom trato com
os semelhantes, a resolução dos problemas [...] a
proteção da figura do pai, mesmo que tenha
problemas, a criação de estratégias para conseguir
o desejado. (SILVEIRA, 2002, p. 216)

Partindo do depoimento de Zeli de Oliveira Barbosa (1941-


2017) acerca de sua vivência na Ilhota (1993) permeado de morte,
violência e constante depressão da autora chegando aos vinte
depoimentos mediados por Maria Helena Vargas da Silveira (1940-
2009) em As filhas das lavadeiras (2002) podemos perceber a
desumanização com que fora/é tratado o povo descendente de
africanos escravizados. O depoimento de Zeli é autossuperação de um
contexto discriminatório de pobreza e falta de condições. A esquecida
obra Ilhota (1993) é de extrema importância, pois, além da crítica
social, tece reflexões acerca das identidades (de) formadas nesses
espaços periféricos.
Do depoimento preocupante de uma mãe com seus filhos
chegamos às memórias das filhas dessas mães que conseguem
romper com ciclo de subserviência que se arrasta desde o período
escravocrata. Essas filhas, através da educação e da resistência,
ocupam atualmente papeis importantes na sociedade e, nessa
ocupação, sua representatividade abre espaço para visibilidade e a
necessidade da união e da negritude.

- 151 -
É preciso enegrescer, verbo instaurado pela literatura negra e,
sobretudo, a afrofeminina (SANTIAGO, 2012), os espaços antes
hegemônicos. Enegrescer também é o objetivo do projeto
Enegrescência, uma proposta intercultural de ocupar os inúmeros
espaços sociais. O projeto já conta com uma coletânea de poesia,
Enegrescência: Coletânea poética (2016) publicada pela editora
Ogum’s Toques Negros. No mesmo da negritude resistente a antologia
Sopapo poético: Pretessência (2016) reúne poetas negros gaúchos
que todas as primeiras terças-feiras de cada mês (de março a
novembro) se reúnem para declamar suas poesias no sarau Sopapo
Poético. Esse ponto de cultura promove, desde 2012, outras
atividades envolvendo a cultura afro-brasileira ou afro-gaúcha. Por
fim, é preciso ocupar os espaços, um engrescimento necessário que
contribui para pensarmos na formação identidade cultural brasileira.

- 152 -
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- 157 -
Entre o mel e a graúna, Iracema; entre África e
América, navio negreiro: história e literatura como
enfrentamento das desigualdades

Heraldo Márcio Galvão Júnior9


Eliane Miranda Machado10

Introdução
Este artigo é fruto das discussões teóricas, historiográficas e
literárias ocorridas na construção e aplicação de um projeto de
extensão intitulado “Dos poetas românticos à inclusão étnico-racial:
percurso interdisciplinar entre a história e a literatura na universidade
e no ensino médio”, promovido no Instituto de Estudos do Trópico
Úmido da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará e na Escola
Estadual Pedro Ribeira Mota, do município de Xinguara/PA, pelos
mestres Eliane Miranda Machado e Heraldo Márcio Galvão Júnior,
Gilson e demais integrantes.
Além disso, algumas das reflexões contidas aqui são resultados
de uma palestra intitulada “Da literatura à inclusão étnico-racial:
relações interdisciplinares entre história e literatura como
enfrentamento das desigualdades”, promovida na UNESP, Campus de

9
Coordenadora do projeto de extensão universitária. Unifesspa
10
Membro do projeto de extensão universitária. Unifesspa

- 158 -
Ilha Solteira, pelo prof. Heraldo Galvão a convite da Profa. Dra. Ana
Clédina Gomes (Faculdade de Educação da Unifesspa) e do Prof. Dr.
Harryson Júnio Lessa Gonçalves, (Faculdade de Engenharia da Unesp
de Ilha Solteira e coordenador do Núcleo Afro-Brasileiro de Ilha
Solteira (Nabisa).
O projeto de extensão supracitado, contemplado pelo
Programa Institucional de Bolsas de Extensão (PIBEX) da Unifesspa visa
realizar, de forma interdisciplinar, um trânsito nas narrativas “O Navio
Negreiro” de Castro Alves e “Iracema” de José de Alencar, ambos
oriundos do período literário romântico. O intuito é fazer
levantamentos na narrativa que demarquem as posições sociais
assumidas pelos sujeitos naquele período. Complementando com
saberes historiográficos que contemplam os debates levantados na
obra, propõe-se compreender a realidade brasileira vivenciada entre
os séculos XVIII e XIX, interstício de tempo em que perdurou o
Romantismo Brasileiro, na intenção de destacar características que
demarcam bem as questões sociais que envolvem os sujeitos na
sociedade da época para, a partir disso, realizar um estudo
contextualizado das leis que alteraram a LDB referentes à inserção de
conteúdos específicos acerca da cultura afro-brasileira. Assim, o
objetivo é dirimir a discriminação racial por meio de estudos acerca da
cultura e do povo que contribuíram para o desbravamento do Brasil e
que, na contemporaneidade, são mazelados.

- 159 -
Com este intuito, a cidade de Xinguara/PA foi escolhida para o
desenvolvimento do projeto por motivos além dos óbvios, ou seja,
também pela sua história recente permeada de relações sociais,
culturais e étnicas conflitantes. Xinguara, localizada no sudeste do
estado do Pará, passou à condição de município em 31 de dezembro
de 1893, desmembrada de Conceição do Araguaia, e sua economia é
baseada na agropecuária, essencialmente de bovinos e suínos. Desse
modo, as peculiaridades regionais e econômicas trouxeram para a
cidade uma identidade própria, chegando a ser conhecida atualmente
como a capital do boi gordo, contando com festividades e rituais
presentes no imaginário social e identitário da cidade.
Antes da sua elevação à condição de Município, ainda na
década de 1970, a região levava o nome de “Entroncamento do
Xingú”, como afirmam Marianne Schimink e Charles H. Wood:

A estrada começou a cerca de vinte quilômetros ao


norte do povoado de Rio Maria, projetando-se
rumo a oeste a partir da PA 150, o elo
intensamente trafegável entre Conceição do
Araguaia e Marabá. Os migrantes começaram a
povoar a área no instante em que as turmas de
construção da estrada se puseram a trabalhar.
Num prazo de poucos meses, um punhado de casas
provisórias surgiu repentinamente nessa
interseção. O lugar ficou conhecido como
Entroncamento do Xingu11.

3
SCHMINK, Marianne, WOOD, Charles H. Conflitos sociais e a formação da
Amazônia. Belém: EdUFPA, 2012.

- 160 -
Nesta fase, o Brasil passava pelo período da Ditadura Civil-
Militar em que houve incentivo ao povoamento da região a partir de
políticas de incentivos fiscais e propagandas, como pode ser percebido
no slogan “terras sem homens para homens sem terras”. Além de
povoar, o intuito com tais prerrogativas ancorava-se na criação de uma
reserva de mão-de-obra a serviço do latifúndio. Um dos resultados
desta política foi a intensa migração de diversas partes do país para a
referida região e que também mesclou-se às diversas etnias indígenas
já presentes, gerando a fixação da identidade pela alteridade.
Inicialmente, a exploração da região ocorreu por diversas madeireiras,
cujos resquícios ainda se encontram na memória urbana, como os
nomes de ruas e monumentos. Após esta fase, a agropecuária foi a
atividade econômica que mais avançou até os dias atuais, havendo
diversos conflitos de terras entre donos, empregados e movimentos
sociais.
Em meio a esta confluência de identidades, culturas, etnias,
exploração do trabalho, denúncias recorrentes de escravidão e abismo
social provocado pela ampliação do agronegócio, vivem cerca de 40
mil pessoas, cujas matrículas de crianças e adolescentes somaram
7.607 no ensino fundamental e 1.748 no ensino médio no ano de
201512. É neste contexto que desenvolvemos este projeto que parte

4
Fonte IBGE

- 161 -
da história e da literatura como enfrentamento das desigualdades
étnico-culturais na escola.
Além destas questões, estamos amparados por uma vasta
legislação que, desde o artigo quinto da Constituição Federal de 1988,
que trata de uma política de igualdade, até as discussões acerca da lei
10.639 de 2003 que acelera as discussões sobre a equidade de direitos
aos grupos étnico-raciais. Esta já prevê a inserção de estudos
relacionados a cultura afro-brasileira e indígena no sentido de
assegurar a formação de cidadãos críticos e humanizados. Esta Lei
alterou a Lei de Diretrizes e Bases, tornando obrigatório o estudo de
história afro-brasileira com o objetivo de conscientizar os educandos
desde a educação básica, considerando que é através da educação
formal que ocorre o processo de conscientização e formação crítica de
cada sujeito. Tendo em vista que são objetivos da educação básica:

[...] conhecer e valorizar a pluralidade do


patrimônio sociocultural brasileiro, bem como
aspectos socioculturais de outros povos e nações,
posicionando-se contra qualquer discriminação
baseada em diferenças culturais, de classe social,
de crenças, de sexo, de etnia ou outras
características individuais e sociais (Brasil, 1998, p.
7).

Nesse contexto, é necessário repensar práticas pedagógicas


que visem dirimir todo e qualquer ato discriminatório. Para tal, a
escola é um espaço de formação que deve conduzir os alunos a

- 162 -
atitudes mais sensatas e humanas provocando assim, a redução de
problemas ligados a discriminação.
Para isso, buscaremos respostas para perguntas como: Como
as questões étnico-raciais foram abordadas nas narrativas do período
literário Romântico? É possível detectar, por meio dos personagens
das narrativas, características em defesa da pluralidade étnica?
Através de narrativas românticas é possível verificar relações étnico-
raciais?
Sendo assim, este artigo faz parte de um projeto de extensão
que visa trabalhar a literatura do período romântico e suas
colaborações para os estudos históricos, discutir questões
étnicas/raciais, analisar os materiais didáticos (de História), criar um
diálogo entre a universidade, alunos e professores de História de
escolas estaduais do município de Xinguara/PA.
É necessário destacar ainda que a pesquisa se estende para
compreender como os materiais didáticos (livros) vem contemplando
esse assunto, tendo em vista que é o suporte teórico que subsidiam as
atividades em sala de aula e, como a Lei de Diretrizes e Bases já
assegura a inserção do conteúdo no currículo da educação básica, a
mesma deve ser contemplada por meio dos materiais didáticos.

Os estudos apresentados evidenciam o fato de o


sistema formal de educação ser desprovido de
elementos propícios à identificação positiva de
alunos negros com o sistema escolar. Esses estudos
demonstram a necessidade de uma ação

- 163 -
pedagógica de combate ao racismo e aos seus
desdobramentos, tais como preconceito e
discriminação étnicos. Eles podem estar ocorrendo
no cotidiano escolar, provocando distorções de
conteúdo curricular e veiculando estereótipos
étnicos e de gênero, entre outros, por intermédio
dos meios de comunicação e dos livros didáticos e
paradidáticos. (CAVALLEIRO, 2000, p.35).

Diante da instabilidade em relação a formalização do ensino


para todas as raças e etnias, o que demanda reformulações legais, é
que surge a lei 12.796 de 2013, instituída para alterar a LDB
9394/1996, especificamente o artigo 26:

Art. 26. Os currículos da educação infantil, do


ensino fundamental e do ensino médio devem ter
base nacional comum, a ser complementada, em
cada sistema de ensino e em cada estabelecimento
escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas
características regionais e locais da sociedade, da
cultura, da economia e dos educandos. (Redação
dada pela Lei nº 12.796, de 2013)
§ 4º O ensino da História do Brasil levará em conta
as contribuições das diferentes culturas e etnias
para a formação do povo brasileiro, especialmente
das matrizes indígena, africana e europeia (BRASIL,
1996).

Diante do pressuposto, a lei de diretrizes e bases é reformulada


pela lei n° 12.796, criada especificamente para contemplar a inserção
de conteúdos curriculares que promovam o crescimento acerca da
conscientização da pluralidade e diversidade étnica.

- 164 -
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino
fundamental e de ensino médio, públicos e
privados, torna-se obrigatório o estudo da história
e cultura afro-brasileira e indígena. (Redação dada
pela Lei nº 11.645, de 2008).
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este
artigo incluirá diversos aspectos da história e da
cultura que caracterizam a formação da população
brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais
como o estudo da história da África e dos africanos,
a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a
cultura negra e indígena brasileira e o negro e o
índio na formação da sociedade nacional,
resgatando as suas contribuições nas áreas social,
econômica e política, pertinentes à história do
Brasil. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura
afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros
serão ministrados no âmbito de todo o currículo
escolar, em especial nas áreas de educação
artística e de literatura e história brasileiras.

Dentre as mudanças propostas na grade curricular figura-se a


inserção do ensino e da cultura afro-brasileira e indígena que,
conseqüentemente, deverá abordar aspectos que os caracterizem
enquanto culturas constituidoras da identidade da população
brasileira, assim como as contribuições das mesmas para a sociedade,
a política e a economia do país, dando a cada uma delas a devida
importância.
E, ainda para complementar, o presente projeto corrobora
para a efetivação dos objetivos traçados pela LDB uma vez que de

- 165 -
forma interdisciplinar, intercalará entre a literatura e a história os
levantamentos acerca da inclusão étnico racial.
Nesse contexto, a relação étnico-racial envolve também a
relação étnico-cultural, levando em consideração que trata-se de
povos distintos que, consequentemente possuem culturas peculiares
e singulares também. Desse modo, a questão étnico-racial extrapola
as questões biológicas e geográficas e parte para um envolvimento de
práticas sociais e vivências que são identitárias. Assim, pode se dizer
que a formação cultural do Brasil advém da mistura de povos, em
decorrência do processo de colonização, que consequentemente, deu
origem a uma mistura de raças e também de culturas, o que é
responsável pela diversidade cultural que caracteriza a nação
brasileira na contemporaneidade.

A história e a literatura como enfrentamento das desigualdades


As relações entre história e literatura são frutíferas quando
levamos em consideração os aspectos internos e externos de uma
obra de arte, ou seja, texto e contexto, afinal, longe de ser uma criação
ficcional, pode ser considerada reflexo de uma determinada
sociedade, assim como ajuda a construir e propagar fenômenos
culturais, sociais, políticos e econômicos. Antônio Cândido, em
Literatura e Sociedade, disserta sobre a questão do texto e do contexto
para uma análise literária, reconhecendo que pode prevalecer um dos
dois aspectos, dependendo da formação ou preferência do

- 166 -
pesquisador, mas que para alcançar uma análise mais completa e a
integralidade da obra, não se deve

adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que


só a podemos entender [a obra] fundindo texto e
contexto numa interpretação dialéticamente
íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que
explicava fatores externos, quanto o outro,
norteado pela convicção de que a estrutura é
virtualmente independente, se combinam como
momentos necessários do processo interpretativo.
Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social)
importa, não como causa, nem como significado,
mas como elemento que desempenha um certo
papel na constituição da estrutura, tornando-se,
portanto, interno (CÂNDIDO, p. 04).

É necessário, portanto, confrontar as obras literárias com


outras fontes a fim de promover a contextualização e obter a maior
proximidade dos múltiplos significados da realidade histórica.
De acordo com o exposto, a localização dos autores no tempo
e no espaço social são de fundamental importância para se chegar à
suas práticas e representações culturais e sociais, o que nos leva à
necessidade de identificar as redes de sociabilidade dos autores, assim
como a relações entre ambos, pois

As percepções do mundo social não são de forma


alguma discursos neutros: produzem estratégias e
práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a
impor uma autoridade à custa dos outros [...] Por
isso esta investigação sobre as representações tem
tanta importância como as lutas econômicas para

- 167 -
compreender os mecanismos pelos quais os grupos
de impõem ou tentam se impor, a sua concepção
do mundo social, os valores que são seus, e o seu
domínio (CHARTIER, 1990, p. 17).

Estas características parecem ser consenso para estudiosos da


historiografia e da teoria/critica literária, como é o caso de Sérgio
Buarque de Holanda, Nelson Werneck Sodré e outros mais próximos à
atualidade, como Nicolau Sevcenko ao destacar que

Nem reflexo, nem determinação, nem autonomia:


estabelece-se entre os dois campos [história e
literatura] uma relação tensa de intercâmbio, mas
também de confrontação. A partir dessa
perspectiva, a criação literária revela todo o seu
potencial como documento, não apenas pela
análise das referências esporádicas a episódios
históricos ou do estudo profundo dos seus
processos de construção formal, mas como uma
instância complexa, repleta das mais variadas
significações e que incorpora a história em todos os
seus aspectos, específicos ou gerais, formais ou
temáticos, reprodutivos ou criativos, de consumo
ou de produção. Nesse contexto globalizante, a
literatura aparece como uma instituição, não no
sentido acadêmico ou oficial, mas no sentido em
que a própria sociedade é uma instituição, na
medida em que implica uma comunidade envolvida
por relações de produção e consumo, uma
espontaneidade de ação e transformação e um
conjunto mais ou menos estável de códigos formais
que orientam e definem o espaço da ação comum.
(SEVCENKO, 2003, p. 299)

- 168 -
Nesse sentido, historiadores consideram a literatura13 como
componente formador e cristalizador de uma “tradição inventada” nos
moldes de Eric Hobsbawm e Terence Ranger (1984). É possível
destacar, a priori, na obra de José de Alencar, Iracema, o processo de
miscigenação cultural do Brasil, uma vez que destaca o caso da índia
Iracema e do guerreiro Martim que da união deu vida a um mameluco,
nem índio nem europeu, o que já representa a mistura de povos.
Na obra indianista de José de Alencar é possível destacar, a
priori, a representação da mistura de raças ainda no período dos
“descobrimentos”, quando os europeus chegaram às margens de
terras, hoje brasileiras, e encontraram os povos indígenas que já
tinham uma identidade cultural. Assim, há na obra, não só a
demarcação do processo de miscigenação, mas também da
“implantação” cultural europeia, em detrimento da cultura indígena.
No que se refere a questão do negro, para Peixoto a temática
é abordada por Castro Alves, mas também perpassa a esse autor,
embora tenha sido o principal autor que tomou iniciativa acerca desse
tema, “foi feito sinceramente com as emoções e as ideias de Castro
Alves, que habituaram as gerações novas de seu tempo à piedade
pelos cativos, à indignação contra o cativeiro” (Peixoto, 1944, p. 193).
Em Bhabha (2007), este processo aparece descrito da seguinte
maneira:

5
Não só a literatura, mas a história também.

- 169 -
O reconhecimento que a tradição outorga é uma
forma parcial de identificação. Ao reencenar o
passado, este introduz outras temporalidades
culturais incomensuráveis na invenção da tradição.
Esse processo afasta qualquer acesso imediato a
uma identidade original ou a uma tradição
“recebida”. (BHABHA, 2007, p. 21).

Nesse contexto, busca-se através de narrativas literárias


românticas identificar os elementos que começam a construir a defesa
ao indivíduo independentemente de cor ou raça, haja vista que nas
relações estabelecidas entre nativos e colonizadores, senhores e
escravos, houve uma distorção de valores humanos que levou a
construção de uma sociedade discriminadora.
Desse modo, a literatura é escolhida para discussão da
temática proposta pelo seguinte fator:

A literatura não apenas fez da identidade um tema;


ela desempenhou um papel significativo na
construção da identidade dos leitores. [...] As obras
literárias encorajam a identificação com os
personagens, mostrando as coisas do seu ponto de
vista. Os poemas e os romances se dirigem a nós de
maneira que exigem identificação, e a identificação
funciona para criar identidade. (CULLER, 1999,
p.110-111).

Diante das exposições feitas, justifica-se a exploração da


Literatura para a discussão da temática levando em consideração que
ela oferece condições para que o leitor se identifique com os
personagens abordados nas narrativas e por sua conduta no decorrer

- 170 -
da narrativa. Nesse caso, abordando no período indianista e
condoreirista, a defesa por questões étnicas raciais que já vinham se
desenhando naquele cenário.
Ainda como Peixoto (2006) explana:

A literatura, como qualquer linguagem, coloca


algumas questões para reflexão: a primeira delas é
pensarmos a linguagem literária como instituinte
da realidade, sem que haja entre ambas qualquer
relação de anterioridade. A segunda é que, em se
tratando de um campo atravessado pelas relações
de poder, as convenções literárias são padrões de
escrita estabelecidos historicamente, cujo
processo de constituição envolve tensões em torno
de concepções diferenciadas de história e de
literatura (PEIXOTO, 2006, p. 158).

Nesse sentido, a literatura enquanto ciência da linguagem, usa


seu campo de atuação para referendar reflexões acerca das relações
étnicas, tendo em vista que muitos autores se opõem às opressões
ocorridas no período romântico que, por sua vez, foram retratados nas
obras.
Assim, para estudar a inclusão étnico-racial, selecionamos
como pano de fundo o movimento literário romântico que perdurou
entre os séculos XVIII e XIX no intuito de colher informações para
corroborar com os levantamentos contemporâneos apropriados pela
lei 12.796. Ainda assim, ocorrerá de forma interdisciplinar um diálogo
com a história, buscando de forma teórica fazer abordagens que

- 171 -
reconstroem o cenário brasileiro da época e sirvam para discussões
sobre as relações étnico-raciais presentes no ensino brasileiro.

Entre a afirmação romântica da nacionalidade à crítica social


O movimento artístico conhecido como romantismo surge no
ocidente a partir do desenvolvimento do capitalismo e é intensificado
a partir da Revolução Francesa e da Revolução Industrial Inglesa, em
que a burguesia aumenta a exigência de uma arte que a represente e
que conteste em certa medida o barroco e o arcadismo, vinculados ao
catolicismo e às monarquias. Valorizando o homem emotivo, intuitivo
e psicológico, rejeitava-se o racionalismo iluminista em um período de
desagregação das monarquias absolutistas e do surgimento de novas
formas de governo como a república moderna, a monarquia
constitucional e parlamentarismo. Nesta perspectiva, o nacionalismo
surge como característica importante do movimento a partir da
construção das identidades pátrias.
Nesta fase, as duas superpotências ocidentais, França e
Inglaterra, disputavam mercados e zonas de influências, gerando
diversos conflitos sem vencedores finais, afinal Inglaterra era
possuidora de uma frota marítima comercial e bélica poderosa e a
França um exército terrestre expressivo. Napoleão Bonaparte, a fim de
desestabilizar economicamente as ilhas britânicas, decreta em 1806 o
Bloqueio Continental, que consiste basicamente em proibir todos os
países de comercializar com a Grã Bretanha e Irlanda sob pena de

- 172 -
serem invadidos pelo exército francês. Entre estes países estava
Portugal, cuja economia era atrelada à Inglesa por diversos acordos e
tratados, como o Tratado de Methuen, conhecido também como
Tratado dos Panos e Vinhos, fazendo referência ao tecido inglês e à
bebida portuguesa.
Apoiado pela Inglaterra, a família real portuguesa deixa seu
país e vai em direção às suas colônias na América, desencadeando um
desenvolvimento relativo do Brasil com melhorias urbanas do Rio de
Janeiro, aumento do mercado interno e da produção de manufaturas,
até então proibida pela legislação, elevação da colônia a Reino Unido
a Portugal e Algarves, entre diversos outros fatores. Com a queda de
Napoleão e o restabelecimento da autonomia portuguesa em seu
território de origem, D. João VI volta a Portugal e seu filho declara a
independência do Brasil em 1822.
Com as rebeliões coloniais, revoltas emancipacionistas e o
processo de independência do país, a questão da identidade nacional
passou a ser encarada mais intimamente por pessoas e grupos
políticos e intelectuais, incluindo movimentos artísticos como o
romantismo com características brasileiras. Enquanto o romantismo
português elegia o herói nacional, buscado nas histórias de cavalaria,
o brasileiro deveria ater-se à terra, na busca do primeiro brasileiro a
fim de construir a nacionalidade, incluindo aí o anticolonialismo.
Respostas a perguntas como “O que é ser brasileiro? Quais etnias
faziam parte do eu brasileiro?” deveriam der respondidas. Nesta

- 173 -
empreitada, personagens como “índios” e “negros” tiveram
preferência na reconstrução de um passado comum, mas obedecendo
às especificidades de cada fase e autor.
No caso de José de Alencar, que era escravocrata, ou seja,
defendia a escravidão africana, escolheu como uma de suas
personagens Iracema, anagrama de América. A fase indianista, a qual
o autor faz parte, elege como herói o índio representante da
identidade nacional. Tanto nesta obra, como em outras, como O
Guarani, o autor apresenta personagens do Velho Mundo que tem
relações com o Mundo Selvagem gerando o Novo Mundo, o Brasil. No
caso do trabalho, Iracema, da tribo tabajara, tem relações sexuais com
Martim, português, gerando Moacir, que significa “filho do
sofrimento” e que seria o primeiro brasileiro gerado pela mistura das
raças.
Embora seja uma das primeiras vezes que a temática étnica
seja tratada enquanto identidade nacional, Iracema possui
características europeias e seu filho, Moacir, o primeiro brasileiro
nato, é levado para Portugal recém-nascido, educado, catequizado
para depois voltar à América, ou seja, há a representação do indígena
e mestiço a partir da “civilidade” europeia.
Logo, cabe destacar que nas obras de José de Alencar é possível
perceber a submissão de uma cultura à outra. No caso da obra
Iracema, a cultura indígena é apresentada sempre em escala de
valores culturais inferiores aos colonizadores. Isto justifica-se pelo fato

- 174 -
da índia envolver-se com europeu e, pelo sentimento amoroso,
abandona sua cultura para viver a cultura do outro. Nesse aspecto, já
se constata o julgamento de valores entre as culturas na obra
“Iracema”, e foca-se na pessoa do índio para representar a
nacionalidade brasileira e criar identidade. No decorrer das obras
como o “Guarani” e “Ubirajara”, os índios são colocados como heróis
em substituição aos cavaleiros medievais, valentes que combatiam em
guerras em defesa de sua pátria. O índio passa então, a assumir as
características heroicas dos cavaleiros medievais, como a concepção
do “bom selvagem” de Rousseau, que apresentou uma visão
idealizada do índio, forte e guerreiro. Ainda assim, apesar da visão
idealizada do índio, foi apresentada na obra a inferioridade da cultura
indígena em relação ao colonizador.
Nesse aspecto, embora a literatura tenha se preocupado com
a identidade nacional no pós independência, procurando caracterizar
a nação recém liberta por meio de seus recursos naturais, exaltando o
índio e a natureza, ela o faz em comparação a cultura européia e os
artistas se dobraram, apresentando uma literatura nacional, mas com
reflexos da Europa em todos os seus aspectos.
Logo, é possível destacar na versão condoreira um novo
posicionamento do autor em relação à defesa do negro em analogia
ao posicionamento de José de Alencar, tendo em vista que o primeiro
parte em defesa da liberdade do negro e do tratamento de igualdade
para com o mesmo, levando em consideração as características

- 175 -
peculiares e a especificidade oriunda desse povo, enquanto José de
Alencar dá ênfase ao indígena a partir da busca da identidade cultural
da nação brasileira. Contudo, faz menção direta deste com a cultura
europeia, ligando elementos de beleza e heroísmo aos estereótipos
europeus.
Já no Navio Negreiro, de Castro Alves, também do movimento
literário romântico, na fase condoreira, representada pela ave
“Condor”, que tem como características o voo alto de liberdade,
caracterizando assim o grito de liberdade paro os cativos africanos,
comercializados no período colonial para mão-de-obra escrava no
Brasil.
A partir disso, os textos literários com características
abolicionistas, como o de Castro Alves que foi estudado no
desenvolver do projeto, buscam desmistificar o estereótipo criado por
muitos autores que, de forma discriminadora reduzia a imagem do
negro a “pessoas ingênuas e subalternas”.
Para isso:

[...] os textos literários abolicionistas, defendendo


manifestamente uma tese comum - a extinção da
escravidão – divergem nas estratégias de que se
servem para questionar a ordem escravista e na
forma como avaliam e representam as relações
inter-raciais na vigência da escravidão. Vigorando
especialmente no período em que floresceu o
Romantismo, a literatura abolicionista
caracterizou-se em linhas gerais, especialmente
nos textos produzidos por autores brancos, por

- 176 -
uma atitude de benevolente paternalismo no
tratamento do negro (Toller Gomes, 1994, p. 148).

Como ainda acrescenta:

[...] para se compreender a atitude de Castro Alves,


a partir de 1865, de um lado diante do que sua
geração começava a compreender como “missão
do poeta”, e de outro, diante do que sua mesma
geração começava a denunciar como erros
gritantes e até mesmo terríveis de nossa estrutura
política e social: um monarquismo, que se não era
absolutista e tirânico, era, contudo, surdo aos
reclamos de justiça e de igualdade, por parte do
povo; uma aristocracia, uma teocracia e uma
plutocracia, privilegiadas, poderosas e insensíveis à
miséria do povo e à pungente tragédia dos
escravos. Investindo-se, portanto, como todos os
moços de sua geração, sobretudo acadêmicos, de
uma “missão revolucionária”, desenvolveu [...]
uma desabrida campanha a favor dos novos ideais
políticos do republicanismo, dos novos ideais de
liberdade do espírito e da palavra, e mais veemente
e insistentemente, porque o momento pedia, em
favor dos ideais da abolição da escravatura (Amora,
1973, p. 190).

Ainda corroborando com a ideia apresentada, pode se dizer


que:

[...] em todo o Romantismo, mesmo com o


movimento abolicionista, a temática dominante
não era a pessoa do negro escravizado, mas a
instituição. [...] Mas só Castro Alves iria vê-lo como
ser humano integral, com paixões, heroísmos,
fraquezas, revoltas. Está, então, lançada, pode-se
dizer, a semente efetiva de uma possível aceitação

- 177 -
do negro como ‘grupo étnico’, formador também
da identidade nacional (Santos, 2000, p. 34).

Nesse contexto, conclui-se que os autores abordados neste


artigo, um defendendo a imagem do índio e outro a do negro,
defendem a instituição, a pátria, vendo-os não pela sua fragilidade e
pela condição de submissão, mas pela condição de seres humanos
arraigados de sentimentos, fraquezas e emoções, valores estes que
estão imbricados na questão social, isto é, que envolve a inclusão
étnico-racial, destacando em cada sujeito a condição de seres
humanos, independentes de raça ou cor.
É importante destacar que poetas com as mesmas ideologias
de Castro Alves foram considerados rebeldes pela classe senhorial do
Brasil no período, acreditando que os textos publicados pelo poeta
colocavam em cheque os mecanismos usados para sustentação do
poder político, levantando então a bandeira para uma nova forma de
governo para a nação, que nesse caso, seria a república. Surge então,
nesse período, o condoreirismo fazendo o uso metafórico do condor,
cujos vôos são bem altos em busca de liberdade.
Nesse aspecto, essa vertente da literatura romântica nasce
num período de transição poética, cujas temáticas sobressaem às
temáticas ultrarromânticas e volta-se para uma literatura de cunho
social, que traz em seus textos, a ideologia dos problemas sociais
vivenciados pelo Brasil na época.

- 178 -
Assim, o “Navio Negreiro” pode ser caracterizado como uma
literatura de denúncia, que vislumbra através da poética e da poesia,
os sofrimentos do povo africano que eram comercializados e trazidos
sob maus tratos para o Brasil em condições desumanas e que na
colônia buscavam sua liberdade através de fugas, que gradativamente
foram aumentando e os negros partiram para a formação de grupos,
que foram denominados quilombolas.

Considerações Finais
A partir do exposto, pudemos analisar as obras românticas de
José de Alencar e de Castro Alves à luz da literatura e dos movimentos
político-sociais brasileiros do século XIX. A partir de uma análise crítica,
evidenciaram-se as maneiras pelas quais os autores consideravam os
indígenas e os afrodescendentes em seus trabalhos, isto é, a partir da
busca pelo nacionalismo enquanto sentimento de identidade e
pertencimento.
Como o intuito não era promover uma justiça histórico-social,
mas defender seus anseios, o indígena e o negro foram tratados pela
perspectiva européia, afinal acreditavam que só haveria uma nação
brasileira a partir do elemento colonizador. Mesmo o condoreirismo,
que promove a defesa e denuncia os maus tratos para com o elemento
africano, não defende a igualdade entre todos e revela-se recheado de
preconceitos raciais historicamente colocados, reafirmados e
cristalizados.

- 179 -
Nesta perspectiva, este trabalho exerce sua função de
extensão na medida em que os aspectos tratados aqui serão
trabalhados com os alunos do ensino básico da rede pública de ensino
mediante aulas, debates, conversas e atividades aplicadas nas aulas de
história e de literatura.

- 180 -
Referências

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UFRJ/EDUERJ, 1994.

- 182 -
Sobre os autores

Dênis Moura de Quadros


http://lattes.cnpq.br/3223715562579993
Atualmente é mestrando em História da Literatura na Universidade Federal
do Rio Grande-FURG, onde pesquisa sobre literatura brasileira, em especial,
as peças do dramaturgo Nelson Rodrigues; sobre a formação do leitor
literário; sobre o negro na literatura brasileira e sobre a literatura de
expressão feminina. É graduado em Licenciatura em Letras- Português e suas
respectivas literaturas pela Fundação Universidade Federal do Pampa
(UNIPAMPA), campus: Bagé. Sua área de interesse é no campo da crítica
literária e sua atual linha de pesquisa é literatura comparada, onde foi
bolsista do projeto Cinema às Cinco sob orientação da Prof. Dra. Lúcia Maria
Britto Corrêa e defendeu o TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) com o
título: "Anjo Negro e Senhora dos Afogados de Nelson Rodrigues: Dramas ou
Tragedias?".

Eduardo Dias da Silva


http://lattes.cnpq.br/5262032700960455
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade
de Brasília (PósLIT/UnB), Mestre pela mesma instituição no Programa de Pós-
Graduação em Linguística Aplicada (PGLA/UnB) (2014), Especialista em
Metodologia no Ensino de Língua Portuguesa e Estrangeira pelo Centro
Universitário Internacional - UNINTER (2013), Licenciado em Letras - Língua
Francesa e respectiva literatura pela Universidade de Brasília (2006) e em
Pedagogia pela Faculdade de Ciências de Wenceslau Braz (FACIBRA) (2015).
Supervisor Acadêmico na área de língua francesa do Programa Permanente
de Extensão UnB Idiomas (2009-2014). Pesquisador do Núcleo e do Grupo de
Estudos Críticos e Avançados em Linguagem (NECAL/GECAL/CNPq) e do
Grupo de Pesquisa em Formação de Professores em Línguas e Literatura
(FORPROLL/CNPq), membro da Associação Brasileira de Linguística
(ABRALIN), da Associação de Linguística Aplicada do Brasil (ALAB) e da
Associação de Professores de Francês do Distrito Federal (APFDF). Professor
de Educação Básica na Secretária de Estado de Educação do Distrito Federal
- SEEDF (2014), ministrando aulas de francês língua estrangeira (FLE) no
Centro Interescolar de Línguas de Sobradinho - CILSob/DF (2014-2015).
Atualmente, Diretor do Centro Interescolar de línguas do Paranoá (CIL-

- 183 -
Paranoá) pela mesma Secretaria. Tendo a Didática de Línguas, os Estudos
sobre Oralidade em Língua Estrangeira, Teorias Curriculares, Ensino e
aprendizagem de LE/L2, Práticas de Leitura, os Estudos sobre Gêneros
Discursivos/Textuais, os (Multi)Letramentos e Transculturalidade em
ambientes de ensino-aprendizagem, bem como a Formação de Professores
como norteadoras das atividades e interesses de pesquisa e ensino em
perspectiva transdisciplinar com a Linguística, a Linguística Aplicada (Crítica),
a Literatura, a Educação e ciências afins.

Eliane Miranda Machado


http://lattes.cnpq.br/5187121815637281
Possui graduação em licenciatura plena em letras pela Universidade do
Estado do Pará (2006); Especialização em Educação no Campo pela
Universidade Aberta do Brasil em parceria com o Instituto Federal do Pará;
Mestrado em Letras: Ensino de Língua e Literatura pela Universidade Federal
do Tocantins (20117). Atualmente é secretária executiva da Universidade
Federal do Sul e Sudeste do Pará com a função de Coordenadora
Administrativa do Instituto em Xinguara e professora - Secretaria de Estado
de Educação do Pará. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em
Língua Portuguesa, atuando principalmente nos seguintes temas: letramento
digital, ensino da escrita, normatividade gramatical.

Felipe Teodoro da Silva


http://lattes.cnpq.br/2191423151316397
Possui graduação em Letras (Português/Inglês) pela Universidade Estadual
de Ponta Grossa (2014) e atualmente é mestrando do programa de
Linguagem, Identidade e Subjetividade (UEPG), orientado pela professora
Dr.ª Silvana Oliveira. Desenvolve pesquisa nas áreas de Teoria e Crítica
Literária.

Heraldo Márcio Galvão Júnior


http://lattes.cnpq.br/0736849120036197
Possui graduação em História / Licenciatura Plena pela Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho (2009) e mestrado em História (Conceito
CAPES 5) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP,
Brasil.(2013). Atualmente é Docente de Ensino Superior da Universidade
Federal do Sul e Sudeste do Pará. Tem experiência na área de História.
Atuando principalmente nos seguintes temas: Guilherme de Almeida,

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Oswald de Andrade, Mon Coeur Balance, Leur Âme, cosmopolitismo e
nacionalismo.

Juliana Aparecida dos Santos Miranda


http://lattes.cnpq.br/4005809824271855
Graduada em Letras Vernáculas com habilitação em Língua portuguesa pela
Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus II. Mestranda em Crítica
Cultural pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus II. Interessa-
se por estudos da língua portuguesa, literatura, música, questões
socioculturais e estudos de gênero, raça e feminismos.

Sabrina Caroline Bassani


http://lattes.cnpq.br/6212020000960666
Graduada em Letras - Português e Inglês e Respectivas Literaturas pela
Universidade de Passo Fundo (2014). Especialista em Metodologia do Ensino
da Língua Portuguesa e Inglesa pela Universidade Candido Mendes (2016).
Mestranda em Letras pela Universidade de Passo Fundo (2016 - 2017).
Docente na Escola Municipal de Ensino Fundamental Barra Funda.

Silvana Nascimento Lianda


http://lattes.cnpq.br/2593218497462556
Possui graduação em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia
(2013).

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É com satisfação que apresentamos essa coletânea
de textos que versam sobre temas literários e de
identidade cultural pertinentes aos âmbitos da
educação básica e do ensino superior, frutos de
estudos realizados por pesquisadores e estudantes
de cursos de mestrados e doutorados de diferentes
regiões do país. Esta obra tem o objetivo de
fomentar a discussão de temáticas relacionadas a
Literatura e Identidade Cultural em curso no Brasil,
focando a abordagem de temas diversos
considerando impactos e mudanças nas práticas
pedagógicas e sociais na Educação Básica, bem
como na Educação Superior, com reflexos diretos
na formação inicial e continuada de professores/as
e, em última instância, na formação de estudantes
matriculados nestes níveis de ensino, no fomento
de uma sociedade justa, diversa e igualitária.

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