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BRAUDEL Documento de Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial

Associado à Fundação Armando Alvares Penteado

PAPERS
O “processo civilizador” vencerá o poder das novas armas?
Violência urbana e civilização
Peter Burke

O “processo civilizador” vencerá o poder das novas armas? 03


Violência urbana e civilização
Violência, pobreza, drogas 13
BRAUDEL
PAPPERS
Instituto Fernand Braudel de
Economia Mundial
Associado à Fundação 03 O “processo civilizador” vencerá o poder
Armando Alvares Penteado das novas armas?
Rua Ceará, 2 – 01243-010 Violência urbana e civilização
São Paulo, SP – Brasil (Peter Burke)
Tel.: 11 3824-9633
“Em 1986, quando cheguei no Brasil pela primeira
e-mail: ifbe@braudel.org.br
www.braudel.org.br vez, um artigo da Folha de ...”

13 Violência, pobreza, drogas


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(Presidente), Roberto Teixeira da Costa (Vice-Presidente), modernas armas ...”
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Braudel Papers é publicado pelo Instituto


Fernand Braudel de Economia Mundial

Braudel Papers é uma publicação


Editor: Norman Gall bimensal do Instituto Fernand Braudel
Versão online: Emily Attarian de Economia Mundial com o especial
Layout por Emily Attarian
apoio de Tinker Foundation,
Copyright 1999 Instituto Fernand Champion Papel e Celulose e
Braudel de Economia Mundial O Estado de S. Paulo.

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O “processo civilizador” vencerá o poder das novas armas?
Violência urbana e civilização
Peter Burke

Em 1986, quando
cheguei no Brasil pela
primeira vez, um artigo
da Folha de S. Paulo, comple-
mentado por mapas e estatísticas,
informou-me sobre a possibilidade
de ser morto ou assaltado em dife-
rentes bairros da cidade. Em abril de
1995, O Estado de S. Paulo publicou
uma reportagem sobre violência na
cidade, novamente com um mapa,
mostrando que houve um núme-
ro recorde de 2.588 homicídios em
1994 e sugerindo que 1995 (com
doze a quinze homicídios por dia no
início do ano) poderia bater aquela
marca. O aumento da taxa de homi-
cídios foi de 47% nos últimos quatro
anos. Mais alarmante, senão alarmis-
ta, foi um artigo mais recente do Estadão, entitulado “São de fontes torna os estudos em profundidade muito mais
Paulo vive os três dias mais violentos da história”. De acordo difíceis).
com a polícia militar, houve 58 homicídios e 39 tentativas de Seria insensato estudar qualquer aspecto da vida urba-
morte entre as 8 da manhã de sexta-feira, 23 julho de 1995, na isolado da sociedade que produziu as cidades. Deve-
e as 8 da manhã de segunda-feira, 26 de junho, na região mos deixar claro desde logo que, ao estudar a violência, os
metropolitana de São Paulo. historiadores políticos e sociais da Europa moderna tendem
O homicídio não é a única forma de violência urba- a enfatizar duas mudanças opostas, mas complementares.
na. Devemos estudar também o estupro, a destruição de Primeiro, houve um enorme aumento da violência públi-
propriedade e as lesões corporais. Entre 23 e 26 de junho, ca, do tamanho dos exércitos e da capacidade de destruição
registraram-se 445 casos dessas lesões em São Paulo. Todavia, das guerras. Essa tendência estava ligada ao processo de
as estatísticas de homicídios constituem um quadro de refe- construção do estado e ao desenvolvimento do que os
rencia útil para estas reflexões históricas. coetâneos chamaram de monarquia “absoluta”: governantes
Os especialistas em violência abundam, tanto que na que não compartilhavam o poder com assembléias, nobreza
Colômbia há uma palavra especial para eles: violentólogos. ou clero. A ascensão da monarquia absoluta estava ligada, por
Não sou um deles, mas ofereço estas reflexões na qualidade sua vez, ao que alguns historiadores chamam de “revolução
de historiador sócio-cultural, trabalhando sobre o período militar” do final do século XVI e início do XVII. Essa revo-
inicial da história da Idade Moderna européia (1500-1800), lução deu mais importância à infantaria (os famosos tercios
quando a violência urbana constituía uma preocupação espanhóis, por exemplo), às custas da cavalaria. Houve uma
recorrente e inescapável, senão constante. A maioria nova preocupação com o adestramento e, mais importante, o
de meus exemplos vem desse período, com referências crescimento rápido do tamanho dos exércitos, de uma média
ocasionais à Idade Média (menos urbana, mas não menos de 30 mil soldados, no século XVI, para cerca de 300 mil nas
violenta) e ao mundo antigo (para o qual a falta relativa fases finais da Guerra dos Trinta Anos (1618-48).

Peter Burke do Emmanuel College, Universidade de Cambridge, e historiador dos primórdios da Europa moderna
e membro do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial. Entre seus livros publicados no Brasil estão Cultura
popular na Idade Moderna (Europa 1500-1800), A escrita da história, Linguagem, indivíduo e sociedade, Veneza e
Amsterdam e A arte da conversação.

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Em segundo lugar, esse período assistiu ao declínio momentos e lugares sob sua jurisdição.
gradual da violência privada, um processo que, tal como o Três zonas eram de controle mais difícil. Primeiro, a fron-
crescimento do exércitos, estava ligado ao poder crescente do teira, antes um território ou terra de ninguém do que uma
estado e com sua determinação de oferecer o que o historia- linha, onde os estados toleravam ou estimulavam grupos
dor americano Frederic C. Lane chamou de um “serviço de armados e independentes como os cossacos, para funcionar
proteção”. Em outras palavras, o estado extraía mais dinheiro como uma espécie de pára-choque entre eles e os estados
do que nunca de comerciantes e outros — os impostos su- vizinhos. Em segundo lugar, as terras altas eram freqüen-
biram fortemente para pagar os novos exércitos —, mas em temente o refúgio dos chamados “bandidos” e de outros
troca, oferecia ao seu povo mais segurança. Essa segurança fugitivos da justiça e do poder do estado. Em terceiro, certos
pode ter sido uma pré-condição para a ascensão do capita- lugares dentro das grandes cidades. Em todas as três zonas,
lismo. Os governantes tentaram mais do que antes, ou com os homens andavam armados e a propensão à violência era
mais êxito do que antes, romper o poder militar dos grandes forte. No decorrer dos séculos XIX e XX, as fronteiras se
nobres que até então conseguiam recrutar e manter exércitos tornaram uma das partes mais controladas do território dos
privados. Exércitos maiores significavam que os nobres não estados europeus. Na era do avião, para não mencionar o
poderiam mais competir com os governos centrais no campo napalm, as regiões montanhosas não constituem mais o
militar. A idéia de que o soberano, o governo ou o estado refúgio seguro de outrora, Porém, alguns habitantes de
deveriam ter o monopólio da violência dentro de seu certas zonas de determinadas cidades podem resistir ao
território tornou-se cada vez mais aceita. Segundo William estado moderno e à sua polícia com
McNeill, houve uma tendência no sentido da “burocra- considerável impunidade. O Rio de
tização da violência”. Uma das conseqüências mais Janeiro e o Cairo oferecem exemplos
importantes dessa burocratização foi o que o dramáticos disso.
sociólogo americano Charles Tilly chamou de Alguns estudos valiosos da
o “desarmamento da população civil”. O alto violência urbana moder-
nível de violência não-oficial nos Estados na, no Brasil e em outros
Unidos de hoje costuma ser explicado lugares, têm uma dimen-
pela posse disseminada de armas de fogo são histórica. O que parece
Espadas e adagas estavam igualmente estar faltando é uma
disseminadas no séculos XVI e tentativa séria de situar
XVII, da mesma forma que na a violência numa pers-
Idade Média, e como mostra um pectiva histórica global,
estudo de Robert Muchembled, o exminá-la ao longo
que poderiam ser chamados de de uma longue durée
indivíduos “rápidos no punho” braudeliana e também,
eram tão comuns quanto os fazer comparações e
“rápidos no gatilho” de hoje. contrastes entre cidades
Porém, no curso dos séculos remotas no espaço e no
XVII e XVIII, os governos tempo, da Roma antiga
europeus fizeram esforços à Nova Delhi moderna.
consideráveis para controlar As comparações geral-
aviolência não-oficial, mente ficam confinadas
assumisse ela a forma no presente. A revista
fidalga de duelos ou Veja afirmou que, em
a forma plebéia de 1985, as taxas mais altas
brigas de taverna. de homicídio por cem mil
Em alguns lugares, essa habitantes ocorreram na
campanha de desarmamento foi eficaz, Cidade do Cabo (65),
como afirma o antropólogo e historiador Alan Macfarlane Cairo (56), Alexandria (49), Rio (49), Manila (36,5), Cida-
em um estudo sobre uma única aldeia de Westmorland. No de do México (28) e São Paulo (em sétimo lugar, com 26).
entanto, o estado moderno inicial era, na prática, muito A taxa de assassinatos de São Paulo subiu desde então para
menos centralizado do que a teoria do absolutismo supôs. 40 por cem mil. Curiosamente, Bogotá não está nessa lista,
Havia menos funcionários públicos, em comparação com embora a taxa de homicídios para toda a Colômbia em 1988
os séculos XIX e XX. Embora os exércitos tenham crescido tenha sido de 80 por cem mil.
rapidamente, os regimentos eram normalmente recrutados William McNeill escreveu numa edição anterior do
por seus coronéis, não por soberanos ou ministros, sendo Brauclel Papers que a “violência é e sempre foi uma
assim difíceis de controlar. Os primeiros governos modernos parte importante da vida humana”. Ainda assim, o objetivo
eram incapazes de evitar a violência não-oficial em todos os principal deste ensaio não é defender uma simples tese de

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continuidade plus ça change, plus c’est Ia même chose. Ao momento, os locais, os motivos, a tecnologia e a admi-
contrário, ele segue a idéia de que a violência tem uma nistração da violência. Em cada um desses casos tentarei
história, tanto quanto tem uma geografia e uma sociologia, comparar e contrastar as megacidades do século XX, especial-
que ela assume formas diferentes em períodos diferentes. mente São Paulo, com cidades pré-industriais, em especial
O ensaio tenta também definir com mais nuances qual a as maiores cidades do início da Europa moderna, com cem
parte do “repertório cultural” da violência peculiar ao nosso mil ou mais habitantes. A escolha de cem mil como limite é
tempo. arbitrária, mas conveniente. Hoje em dia, cidades com mais
A violência urbana não é novidade, mas por outro lado, de cem mil habitantes abrigam um quarto da população
não é uma constante na história, nem mesmo nas gran- mundial. Em 1800, no entanto, eram habitadas por apenas
des cidades. Precisamos distinguir violência estrutural e 3% da população da Europa.
conjuntural (em outras palavras, o endêmico do epidêmi- A porcentagem era ainda menor trezentos anos
co). Devemos também discriminar entre tipos de violên- antes. Com efeito, em 1500 havia apenas quatro cidades
cia, locais de violência e ocasiões de violência. A ênfase no desse tamanho na Europa: Paris, Veneza, Nápoles e Istambul.
que segue recairá sobre essas diferenças em diferentes luga- Um século depois, já eram doze com cem mil habitantes,
res e tempos. Centramo-nos aqui na oposição binária entre acrescentando-se Lisboa, Sevilha, Londres, Roma, Moscou
cidades “tradicionais” (inclusive as do início da era moderna) e outras. Esse número mantevese mais ou menos constan-
e “modernas” (inclusive as contemporâneas). te no século XVII, quando a população européia permane-
Omite-se aqui a questão que Jean-Claude Chesnais ceu bastante estável. Mas entre 1700 e 1800, elevou-se de
discutiu tão cabalmente em seu Histoire de la violen- doze para 23, incluindo Gênova, Milão, Viena, Hamburgo,
ce (1981): o problema quantitativo das mudanças na Berlim, Varsóvia e quando a população européia perma-
quantidade, taxa ou nível de violência e a explicação para essas neceu bastante estável. Mas entre 1700 e 1800, elevou-se
mudanças. A questão é importante. A idéia de que de doze para 23, incluindo Gênova, Milão, Viena,
tendências demográficas podem estar por trás das variações Hamburgo, Berlim, Varsóvia e São Petersburgo. Em 1800,
nos níveis de violência deve ser certamente levada à sério. a maior cidade da Europa, londres, já tinha quase um
Porém, na Europa moderna, a mudança de uma popu- milhão de habitantes, tornando-a provavelmente a segun-
lação em crescimento no século XVI para uma população da maior cidade do mundo na época (Edo, a atual Tóquio,
estável no século XVII não parece ter correlação com qualquer ocupava o primeiro lugar).
mudança na violência urbana. Outra hipótese foi
lançada por Norbert Elias em seu livro O processo civiliza-
dor (1939). Elias ficou famoso por sua história social das
Os perpetradores
maneiras à mesa, o uso do garfo etc. Porém, seu argumen-
to central é político, sustentando que — graças em larga Na cidade contemporânea podemos distinguir entre
medida à ascensão do estado centralizador e sua tentativa de violência de amadores e violência de profissionais. De
monopolizar a violência — os ocidentais se tornaram cada um lado estão “multidões” usualmente acusadas pelos
vez mais auto-controlados no longo prazo, do século XII ao tumultos (embora seja insensato supor que profissionais
século XX. não tomem parte nesses movimentos). Do outro, estão os
Elias pode estar com a razão. Embora não tenha especialistas treinados em violência. Podem ser guerrilheiros
olhado para fora do Ocidente quando escreveu seu urbanos (“terroristas”), como nos casos recentes de Beirute,
livro, sua hipótese parece ajustar-se ainda melhor ao Japão. Belfast, ou São Paulo no tempo de Marighela. Ou podem ser
O país onde a elite militar dos samurais desenvolveu uma “homens fortes” — capangas, pistoleiros, goondas, sicarios
das demonstrações mais extremadas de autocontrole, o etc. (O exército e a polícia serão considerados mais adiante).
haraquiri, tem hoje um nível muito baixo de violência Entre os dois tipos, estão os grupos rivais ou “gangues” de
urbana. O problema para o historiador da Europa moderna jovens, tão visíveis hoje em Londres, Los Angeles ou Rio de
que queira testar a hipótese de Elias, ou a hipótese demográ- Janeiro. A violência não é sua profissão, mas faz parte de suas
fica, é que é impossível calcular a taxa de violência urbana vidas.
naquela sociedade. Para uma “história serial” da violência, Todos os três grupos tiveram precursores nas primeiras
devemos dispor de uma série de documentos suficientemente cidades modernas. Entre os profissionais estavam os capan-
homogêneos para permitir uma análise estatística, Tendo em gas da nobreza e os homens conhecidos nas cidades italia-
vista as fontes disponíveis para esse período, o máximo que nas do final da Renascença como bravi. Do lado amador, a
se pode fazer no modo quantitativo é estudar a ascensão e multidão (ou a “turba, como os ingleses passaram a chamá-
queda de um tipo de violência, como homicídio ou estupro, la então) tornou-se uma preocupação crescente das classes
tal como ficaram registradas nos arquivos judiciais de uma proprietárias no século XVIII. A multidão foi consequen-
cidade durante um ou dois séculos. temente estudada por muitos historiadores, como George
A abordagem adotada neste ensaio é portanto qualitati- Rudé, no caso de Paris e Londres no final do século XVIII.
va, em vez de quantitativa. Com o foco em violências varia- Em alguns casos pelo menos, inclusive no famoso
das, vou discutir sete temas: os perpetradores, as vítimas, o exemplo do ataque à Bastilha em 14 de julho de 1789, a

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análise cuidadosa de Rudé dos “rostos na multidão” revela entendemos alguém que pratica violência por ela mesma, por
que — ao contrário do estereótipo da turba — os atacantes excitamento, a resposta será “às vezes, mas nem sempre”, uma
não eram desempregados ou marginais, mas em geral mem- vez que a violência dos nobres era tanto expressiva quanto
bros respeitáveis das classes baixas parisienses: marceneiros, instrumental. A violência política estava disseminada entre
serralheiros, sapateiros e semelhantes do Faubourg Saint as classes altas das cidades-estados italianas. Havia confli-
Antoine, artesãos independentes, em vez de assalariados. tos freqüentes, virtualmente guerras privadas, entre facções
Em relação às gangues, é preciso fazer uma distinção.Con- políticas (guelfos e gibelinos, guelfos negros e brancos etc),
cordo com William McNeill quanto ao papel importante bem como entre famílias, especialmente em certos períodos,
desempenhado na violência urbana pelo queele chama de inclusive na época de Dante, que foi exilado de Florença
Gefolgscbaften, ou bandos de “jovens irriquietos’. Porém, pa- quando sua facção perdeu a luta pelo poder. Em contraste, o
rece que os rapazes da cidade pré-industrial lutavam por e se século XV foi mais pacifico para os florentinos.
identificavam com seu bairro, em vez de com gangues num Na Londres do início da era moderna, os aristocratas
sentido estrito da palavra, ou seja, grupos organizados com incitavam às vezes a multidão à violência com objeti-
uma vida coletiva de vários anos. No entanto, gangues com vos políticos. Um exemplo famoso vem da crise de 1679-
nomes e territórios característicos podem ser encontradas 81, quando o partido Whig organizou o que mais tarde se
na década de 1840, senão antes; os “Bowery Boys” de Nova chamaria de “manifestações” de rua como parte de sua
York, por exemplo. campanha para excluir o irmão católico de Carlos II, Jaime,
Em todos os casos, amadores ou profissionais, tradicionais duque de York (mais tarde Jaime II) da sucessão do trono. As
ou modernos, o que se destaca é a predominância de YAMs, batalhas de rua que ocorreram em Westminster durante as
abreviatura de “Young Adult Males” (homens jovens adultos), eleições de 1784 e 1788 também foram organizadas de cima.
porque sejam es- No Novo Mun-
pecialmente cons- do, o conflito en-
cientes de sua for- tre as famílias Pires
ça física, precisem e Camargo em São
colocar-se a prova, Paulo, em 1650, é
tenham menos a um bom exemplo
perder que os mais desse tipo de luta
velhos com respon- entre facções. O
sabilidades familiares, ou porque laços masculinos em grupos ponto principal é que no mundo pré-industrial, facção e ven-
formais ou informais (que podem facilmente se voltar para fins detta eram práticas disseminadas e “respeitáveis”. Hoje, ao
violentos) sejam uma característica de seu estágio no ciclo contrário, a prática da vingança parece praticamente confi-
da vida. Se há uma explicação fundamentalmente demográ- nada às organizações criminosas (máfías, tríades e terroristas
fica das mudanças no nível de violência urbana, ela talvez de vários credos) e aos seus opositores, a polícia. Para um
esteja nas variações da proporção de YAMs na população historiador cultural, isso confirma que grupos em combate
em geral. Porém, a predominância desse grupo não exclui durante um longo período de tempo adotam freqüentemente
algumas exceções interessantes à regra. Por exemplo, as as práticas uns dos outros.
mulheres apareciam muito nos motins urbanos do início
dos tempos modernos na Inglaterra, França e Países Baixos,
motins em que a ameaça de violência, senão a própria, era As vítimas
significativa. As mulheres desempenharam um papel parti-
cularmente importante nos protestos por comida. A marcha Em 1994, em São Paulo, 93% das vítimas registradas de
das mulheres do mercado — e, em oposição à lenda, mulhe- violência eram do sexo masculino e cerca de 75% tinham
res também de status social mais alto — sobre Versalhes em entre 15 e 49 anos de idade. Aqui também predominam
1789 para trazer o rei de volta a Paris é um exemplo famoso os YAMs. Não devemos pensar em termos de dois grupos
e dramático de participação feminina, mas está longe de ser completamente separados, ativo e passivo, agressores e
um caso isolado. vítimas. Uma análise comparativa das execuções conta-
Um segundo contraste entre nosso século e os primórdios ria provavelmente a mesma história. Em seu livro The
da era moderna refere-se ao papel das elites. Não era raro que London Hanged, Peter Linebaugh estuda a biografia
casos de estupro levados aos tribunais da Veneza renascentista coletiva de 1.242 pessoas enforcadas em Londres entre
envolvessem jovens nobres. Também na Inglaterra, no século 1703 e 1772. Infelizmente, ele não dá para a idade dos
XVI e começos do XVII, a propensão à violência entre os condenados a mesma atenção que dedica às suas ocupações
jovens nobres era tão comum que, por destrutivo que fosse, e locais de nascimento, mas o fato de que mais de um quar-
o duelo pode ser considerado como um estágio do “processo to dos ingleses nascidos fora de Londres fossem aprendizes
civilizador”, no sentido de limitar os combatentes a dois por já nos diz algo.
vez e impor regras sobre as lutas informais que o precederam. Em muitos lugares e períodos, a violência urbana esteve
Pode-se falar de hooligans nobres? Se por “hooligan” associada a uma “facção” ou grupo estruturado por solida-

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riedade vertical (em oposição à solidariedade horizontal de ou “epidêmica”. Um estudo recente da violência na Índia
uma classe social); em outras palavras, um grupo composto comentou sobre a “violência estrutural normal presente
por protetores e clientelas. Suas vítimas eram os membros na vida cotidiana de Gujarat”. Um historiador das cidades
da facção oposta. Nos conflitos políticos da Roma antiga, dos séculos XVII e XVIII na Holanda, um dos lugares mais
Cícero, tal como seus inimigos, tinha protegidos, vetera- pacíficos da Europa de então, observou: “Em Amsterdam,
nos e escravos armados ao seu serviço. No século XII, em a violência de pequenas multidões era... considerada uma
Nishapur, uma disputa entre duas escolas muçulmanas de ocorrência comum”, fosse o tumulto causado por religião,
direito (a Hanafi e a Shafi’i) mobilizou duas facções que impostos ou preço dos alimentos. O historiador francês Marc
constam ter destruído a cidade em suas batalhas. Ao ler esses Bloch disse coisa semelhante quando comparou as revoltas
relatos sobre a Pérsia medieval, lembramos de Teerã na era camponesas da Idade Média com as greves modernas.
dos aiatolás. Nas cidades tradicionais, tal como nas sociedades
Porém, uma característica notável da violência urbana tradicionais em geral, a violência era mais intensa durante
moderna, em especial a violência coletiva, é a escolha de festejos. Eram ocasiões em que a cidade enchia-se de gente
forasteiros para vítimas, seja a agressão endêmica aos paquis- do campo que vinha assistir aos espetáculos, o trabalho era
taneses na Londres contemporânea, a epidemia recente de proibido para que as pessoas pudessem passar o tempo nas
ataques aos imigrantes na Alemanha, os massacres dos tâmi- ruas e as bebidas corriam mais soltas. Assim, com o nome
les em Sri Lanka em 1983, dos siques em Nova Delhi, em de “Evil May Day” foi batizado o ataque a comerciantes
1984, dos muhajirs em Karachi, em 1986 e assim por diante. alemães na Londres do século XVI que aconteceu no primei-
Na Índia, os chamados “tumultos comunais” talvez tenham ro de maio, uma importante festa inglesa, na época associado
começado no final do século passado, com o motim de Talla, à primavera e não aos trabalhadores organizados. Na londres
em Calcutá, em 1897 — o tema é controvertido. Mas em do século XVII, a terça-feira gorda era amiúde marcada por
outras partes do mundo, a tradição é muito mais antiga. ataques a bordéis por aprendizes, como se fosse uma maneira
Houve conflitos raciais em cidades norte-americanas festiva de abster-se de sexo durante a Quaresma. A celebração
no início do século XIX. Havia uma tradição de motins de Corpus Christi em Barcelona em 1640 marcou o começo
contra estrangeiros em Londres — contra alemães no século de uma longa revolta contra o controle de Madri. Em 1572,
XVI, franceses no século XVII e irlandeses no XVIII. Em o massacre de São Bartolomeu em Paris aconteceu nas véspe-
Moscou, ocorreram revoltas contra “alemães” — termo ras de uma festa importante. Quanto ao carnaval, um inglês
usado para descrever estrangeiros em geral — no século XVII. em visita à Veneza no final do século XVI observou que na
A violência contra minorias religiosas é ainda mais antiga. noite de domingo, dezessete pessoas tinham sido mortas e
Em 1572, em Paris e outros lugares, os católicos massacra- várias tinham ficado feridas e que lhe tinham dito que havia
ram a minoria protestante. Nas cidades espanholas, ataques mortes em todas as noites do carnaval. Essa cidade de 200
às minorias judaicas e muçulmanas já eram comuns no final mil habitantes talvez chegasse a 300 mil nessa época do ano.
da Idade Média. No século XX, por outro lado, apesar dos conflitos
Os regimes políticos, nacionais ou municipais, são periódicos entre sunitas e xiitas no Moharram, a violência
com freqüência as verdadeiras “vítimas” ou objetos da parece ter menos a ver com festas. Isso é verdade até mesmo
violência, seja dirigida contra as autoridades ou contra os para o carnaval carioca, pelo menos em termos relativos. As
prédios onde trabalham. No início dos tempos modernos, os estatísticas de 1995 da violência carnavalesca mostram São
soberanos de Inglaterra, França, Espanha e outros lugares da Paulo com 74 homicídios (um por 130 mil habitantes); o
Europa desistiram de sua existência nômade tradicional e Rio com 44; e Belo Horizonte, Porto Alegre e Salvador com
estabeleceram-se nas capitais. Essa mudança dos hábitos cinco cada uma. Porém esses números não são muito altos
reais tornou as pessoas comuns dessas cidades mais politica- em relação às taxas “normais” de homicídios dessas cidades,
mente conscientes e mais dispostas a protestar em relação às ou à taxa de mortalidade nos carnavais de Veneza do século
questões nacionais, exigindo a demissão de ministros XVI! No Rio, no início deste século, as brigas eram comuns
impopulares ou até mesmo um novo regime político. As durante o Carnaval. Todavia, as duas mortes ocorridas numa
barricadas erguidas em Paris em 1789, 1848 e 1871 ofere- batalha entre cordões de 1902 em Botafogo, que receberam
cem exemplos da ligação íntima entre violência urbana e considerável cobertura na época e permaneceram durante
política nacional, embora a tradição local das barricadas muito, tempo na memória popular, parecem ter sido excep-
date de pelo menos 1588, quando rebeldes proclamaram que cionais.
Henrique III poderia ser rei da França, mas que Henrique, Uma exceção parcial à minha generalização sobre o declínio
duque de Guise, era o rei de Paris. da violência durante festejos é caso das eleições. Esse evento,
que assume amiúde formas festivas ou teatrais, era ocasião
freqüente para violência, não só na Roma antiga e na Londres
Momento do século XVIII, como vimos, mas também no Brasil da vi-
rada do século e em alguns lugares, como a Índia e o México,
Uma distinção óbvia e útil deve ser feita entre a violên- até hoje. Não sabemos porque a violência abandonou mais
cia “endêmica” ou “estrutural” e aquela que é “conjuntural” ou menos as eleições no Brasil e na Venezuela, por exemplo,

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enquanto continua presente em outros campos. um dos muitos graffitti em Belfast proclamava que “Malone
Como e por que ocorreu essa mudança? No caso do Road (zona de classe média ) se diverte enquanto Shankill
carnaval carioca, as autoridades incorporaram as escolas de Road queima”. Na Europa, essas zonas “quentes” são comu-
samba ao carnaval oficial na década de 1930,com presença mente periféricas porque os pobres foram empurrados para
maciça da polícia nas ruas em que aconteciam os principais a periferia. Nos Estados Unidos, essas zonas são freqüente-
eventos. É menos fácil entender o declínio ou deslocamento mente centrais, devido à decadência do centro das cidades.
da violência eleitoral ou carnavalesca no longo prazo. Mas Encontramos outras zonas quentes em fábricas, com freqüên-
pode-se apontar para o declínio da importância das festas cia cenários de greves, piquetes e confrontos com a polícia;
públicas em geral, não só como ocasiões para violência, como prisões, onde ocorrem rebeliões violentas e repressão mais
também para exibições espetaculares de comer, beber, sexo e violenta ainda, como o massacre de 111 presos no Carandiru,
outras formas de relaxamento. em 1992; delegacias de polícia; avenidas em que o tráfego é
Não é difícil identificar outros ciclos de violência ou mais intenso; e estádios e suas vizinhanças, com a violência
não-violência relativa. Tome-se o caso de São Paulo, onde dos torcedores espalhando-se muitas vezes pelas ruas.
entrevistas recentes com moradores de certos bairros dão a A violência e a expectativa dela deixaram muitos
impressão de que os anos 30 foram uma espécie de idade traços na paisagem urbana atual. Em Chicago, as fortalezas dos
de ouro da não-violência, pelo menos em suas ruas. Há um líderes dos muçulmanos negros chamam a atenção. Os
elemento de mito nessas recordações de pessoas idosas, como morros cariocas também podem ser considerados como
aponta o estudo de Teresa Caldeira baseado nessas entrevis- fortalezas, ou como no-go areas, como dizem em Belfast,
tas. Porém, talvez haja também um elemento de verdade no onde a polícia normalmente não ousa entrar. Os modernos
que se refere a certos tipos de violência, especialmente em condomínios de São Paulo, Nova York, Los Angeles e outras
certos locais, em comparação com a década de 1980 (época cidades, com sua segregação espacial, seus altos muros ou
das entrevistas) ou 1990. cercas e guardas de segurança na entrada — para não
Sou um londrino que cresceu depois da Segunda mencionar os cães e sistemas de alarme — são outro
Guerra Mundial. Minhas lembranças desse perío- sinal da expectativa de violência.
do relativamente não-violento não são diferen- Tudo isso já aconteceu antes. Entre as áreas
tes daquelas das pessoas entrevistadas por no-go de cidades mais tradicionais estão
Caldeira (nos anos 70, caminhando a assim chamada rookety (favela) da
para a casa e meus pais de manhã, fui Londres do século XIX e seu equi-
parado certa vez por um policial que valente na Palermo do século
me aconselhou a tomar um taxi, XVII, com suas passagens
conselho que teria sido desne- subterrâneas entre as casas.
cessário nos anos 50). Fazen- No século XVIII, senão
do concessões à nostalgia, antes, os guias de Paris
essa experiência suge- chamavam a atenção
re que ocorrera uma para as zonas mais
mudança significativa. perigosas da cidade.
No mesmo perío-
do, os morado-
Locais res e visitantes
de Londres
Os estudiosos conheciam
contemporâneos da bem as áreas
cidade consideram- que deviam
na freqüentemente ser evitadas à
como uma arena ou noite.As zonas
conjunto de arenas para “quentes” incluiam
diferentes tipos de ativida- as pontes, cenários
de. Nesse sentido, podemos freqüentes, como nos
falar de “campos de violên- casos famosos de Veneza
cia” na cidade, bem como no cam- e Pisa, de choques ritualizados entre
po. O tema foi discutido ocasionalmente (nos rapazes de diferentes bairros. Elas podiam incluir
casos da criminalidade no Rio e dos motins na Índia), mas também panes da cidade dominadas por um determina-
merece mais atenção. do tipo de trabalhador, pois a violência industrial não era
Em Belfast, pelo menos até recentemente, a violência desconhecida nas cidades do século XVIII. Em Londres,
tendia a ocorrer em determinadas zonas da cidade, em em 1768, a zona no leste conhecida como “Spitalfields” foi
especial áreas proletárias como Shankill Road. Em 1969, cenário de violentos confrontos entre tecelões que usavam o

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tear manual e tecelões que usavam o novo tear mecânico. foi vigorosamente atacada por Edward Thompson em um
A fábrica ainda não aparecera nas cidades inglesas, mas artigo famoso sobre a massa inglesa no século XVIII. Sua
Spitalfields se tornara, com lyons e Nanquim, um dos interpretação era exatamente oposta, vendo a multidão como
grandes centros de seda do mundo.Já se tratava de uma zona um agente moral e racional.
industrial onde uma alta proporção da população era de A crítica arguta e apaixonada de Thompson dos precon-
tecelões trabalhando em casa. ceitos, estereótipos e metáforas tão comuns entre observado-
Quanto às fortalezas urbanas, a Itália assistiu à ascensão das res de classe alta e média das “turbas” foi e é salutar. Porém,
torres privadas a partir do ano 1000: as 194 “torres nobres” seria um erro grave tomar esse modelo dos motins ingleses
registradas em Bolonha (duas das quais ainda sobrevivem no por comida e aplicá-lo indiscriminadamente aos motins
meio da cidade) e a floresta de torres que os turistas ainda urbanos em geral. Muitos desses tumultos foram e alguns
podem ver em San Gimignano. Mesmo na Florença renas- ainda são consideravelmente menoracionais, bem como
centista, uma grande construção como o Palazzo Medici tem mais letais, do que as tentativas de fazer valer um preço
muito em comum com um castelo medieval. Foi construí- justo que Thompson descreveu e analisou com tanta simpa
do tanto para defesa quanto para exibição, com suas portas tia. Até mesmo na Londres do século XVIII ocorriam revol-
maciças, suas janelas bem acima do nível do chão e protegi- tas mais violentas de tempos em tempos, tais como os motins
das de projéteis por grades de ferro. Ademais, os eventos da de Gordon, em 1780, dirigidos contra os católicos, inclusive
conspiração Pazzi do final do século XV, na qual Lorenzo imigrantes irlandeses (alvos também de tumultos londrinos
de Medici escapou por pouco de ser assassinado, mostram em 1736 e 1763). Essa violência dirigia-se contra a proprie-
que palácios-castelos desse tipo ainda eram necessários. Na dade, em vez de contra pessoas (embora 210 pessoas tenham
Perúgia do séculoXVI, colocavam-se correntes atravessadas sido mortas, em sua maioria amotinados mortos por solda-
nas ruas, tal como na Toledo medieval, a fim de defender dos). Os principais eventos dos motins de Gordon foram a
os habitantes de cargas de cavalaria. Essas mudanças para a derrubada ou saque de casas e lojas e o incêndio de prisões e
paisagem urbana da Europa mediterrânea no final da Idade destilarias.
Média refletem não uma elevação geral do nível de violência Tal como no passado, os imigrantes de hoje são
mas seu deslocamento, numa época em que os barões aban- freqüentemente percebidos como “poluindo” o bairro em
donavam o campo pela cidade. que se estabelecem (empestar é a palavra usada pelos velhos
habitantes da Móoca para se referir aos recém-chegados
nordestinos). A ânsia de purificar a comunidade da
Os motivos da violência “poluição” causada por forasteiros percebidos como menos que
humanos é certamente inexplicável em termos racionais como
A grande questão é certamente esta: a violência urbana é a necessidade de achar ou criar bodes expiatórios, ou o desejo da
racional ou irracional? Ou como dizem (ou costumavam parte de indivíduos de se perder ou se transcender dentro da
dizer) os sociólogos americanos, ela é “instrumental” ou multidão. Essas necessidades, ânsias e desejos pedem análises
“expressiva”? Nesse caso, não parece particularmete útil distin- antropológicas ou psicológicas, bem como sociológicas ou
guir entre períodos; nenhuma época, nem mesmo o iluminis- econômicas.
mo, pode reivindicar ser mais racional do que outra. Essas análises precisam levar em conta as formas cultu-
Tome-se ocaso do ato político. Por mais contra-produtivo rais locais, como os mitos, por exemplo, nos quais se arti-
que possa ser a longo prazo, é difícil negar sua raciona- culam e justificam esses desejos destrutivos. Os singaleses
lidade no curto prazo como meio provável de alcançar os que massacraram os tâmeis no Sri Lanka em 1983, por
fins desejados.Comparando o século XIX com outros pe- exemplo, viam-se aparentemente revivendo histórias de sua
ríodos, é difícil descobrir qualquer contraste óbvio entre, epopéia Mahavamsa, notadamente a morte dos demônios
digamos, a tentativa de matar o jornalista Carlos Lacerda pelo príncipe Vijaya. Padrões desse tipo podem ser observa-
no Rio, em 1954, o assassinato do jornalista liberal Libe- dos não apenas nos tumultos étnicos de hoje, mas também
ro Badaró em São Paulo, em 1830, ou ainda o do almi- em cidades tradicionais como Paris, durante as guerras reli-
rante Coligny na Paris de 1572. O que merece ser enfati- giosas do século XVI. Nessas guerras, católicos e protestan-
zado é o fato de que o assassinato político é muito menos tes viam-se revivendo a história do povo escolhido no Velho
comum em alguns lugares e épocas do que em outros. Ele Testamento, purificando a terra dos infiéis e idólatras.
tem sido raro na Inglaterra, mesmo em períodos como o A idéia de que a violência urbana é um sintoma de proble-
século XVIII, quando o nível de violência urbana era alto. mas subjacentes também precisa ser levada a sério. Alguns
A interpretação tradicional da violência coletiva, das descri- estudos recentes de tumultos em Karachi, por exemplo,
ções dos observadores do século XVI às teorias da virada do enfatizaram o efeito sobre os habitantes da cidade das
século do psicólogo Gustave Le Bon, sublinha a volubilida- freqüentes faltas de água e luz e do colapso de outros servi-
de, a irracionalidade e a “fúria cega” da massa (para não falar ços públicos desgastando os nervos e estimulando a busca
em turba, populaça ou canaille). A interpretação “espasmó- de bodes expiatórios. Consideração similar foi feita sobre as
dica”, como a chamou, do comportamento do povo como reações violentas às interrupções do sistema de transporte
uma espécie de reação pavloviana à fome e outros estímulos público no Rio e em São Paulo.

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Nas cidades pré-industriais, as crises de alimentos tinham sileiro, pelos problemas do transporte coletivo? Ou se tra-
efeitos semelhantes, pelomenos ocasionalmente, fossem ta de uma estratégia consciente, uma tentativa de forçar as
escolhidos para bodes epiatórios os comerciantes ou os autoridades municipais a melhorar o sistema? A violência
coletores de impostos. Nas cidades espanholas do final da dos torcedores de futebol dentro e fora dos estádios parece-
Idade Média, os ataques de cristãos aos bairros de judeus ou ria um exemplo melhor de violência expressiva ou festiva.
muçulmanos tornaram-se mais freqüentes depois da grande Ou seu equivalente na cidade pré-industrial, as periódicas
peste negra de 1347-8, quando morreram cerca de um guerras de socos na Veneza dos séculos XVI e XVII e suas
terço da população européia. O papel do mito na arti- análogas em outras cidades, por exemplo, a “batalha pela
culação e jutificação da agressão em alguns episódios de ponte” anual de Pisa. Centenas, senão milhares de ho-
violência urbana é assumido em outrasocasiões pelo boa- mens adultos, principalmente das “classes subordinadas”
to. Por exemplo: o rumor sobre seqüestro de crianças pelas reuniam-se nessas ocasiões, em geral na fronteira entre dois
autoridades, que levou à violência em Paris, em 1750, foi bairros da cidade, sendo o objetivo do exercício a invasão
interpretado por dois historiadores franceses como sintoma do território do outro. Algumas pessoas eram mortas e
de um descontentamento subjacente com a monarquia, de muitas ficavam feridas nesses choques em que os socos eram
forma semelhante à interpretação de Georges Lefebvre apoiados por paus, pedras e facas. O costume perdurou
do “Grande Medo” de 1789. Esse boato sobre a iminente durante séculos. Por que?
chegada de salteadores, que começou em Paris e varreu a A essa altura talvez valha a pena levantar a questão
França, foi conside- do machismo como
rado por Lefebvre uma possível chave
como uma expres- para as tendências
são da desconfiança violentas em
do povo em relação certos lugares e
à aristocracia (fos- de certos grupos.
se consciente ou Teria a violên-
inconsciente). Um antropólogo trabalhando na África cia política espanhola algo a ver com os valores culturais
descreveu certa vez as acusações de feitiçaria como regulado- tradicionalmente expressos na tourada, com sua glori-
ras de tensões sociais, tomando públicas as hostilidades entre ficação da coragem e da morte? Como podemos explicar
ou dentro de famílias que há tempos ferviam em fogo bran- as altas estatísticas de homicídio de certos países latinos,
do privado. Da mesma forma, episódios súbitos de violência como Colômbia, México, Filipinas e Brasil? Porém,
coletiva na cidade podem ser interpretados como indicadores qualquer tentativa de explicar a violência urbana em
de tensões sociais acumuladas. termos do estereótipo do ‘‘temperamento latino” e vulnerá-
A “violência festiva”, como chamou-a o crítico russo vel a duas grandes objeções.
Mikhail Bakhtin - usando a expressão para se referir antes Primeiro, o contraste entre certos países latinos, inclusive
a um estilo ou modo particular de violência do que a uma vizinhos como Costa Rica e El Salvador, ou Colômbia e
associação a festas formais — merece uma discussão separada. Equador, enfraquece a teoria. Em segundo lugar, os valores
No caso do Brasil, pensa-se especialmente na violência contra agressivos masculinos não constituem monopólio dos lati-
a propriedade privada, o assim chamado quebra-quebra, seja nos. Longe disso. As altas taxas de homicídio no Cairo e em
contra a iluminação pública (como no Rio, em 1904), ou Alexandria citadas no início deste artigo encaixam-se muito
contra o transporte público (como no Rio e em São Paulo bem no quadro do Oriente Médio tradicional, sua ênfase na
em 1974). A explicação tradicional para essa violência está coragem física e suas gangues de jovens (futuwwa), tal como
primorosamente resumida por uma canção carnavalesca, o discutido pelos historiadores e antropólogos e retratado nos
Maxixe aristocrático, de José Nunes: romances de Naguih Mahfouz. Pode-se falar de um machis-
mo médio-oriental?
Quebra, quebra, quebra e “Masculinidade” talvez seja um termo melhor, precisamen-
Requebra te porque a violência não é um monópolio latino. Voltamos
Vamos de gosto quebrar ao papel dos YAMs nas diversas culturas. Em certos lugares
Vamos de gosto quebrar. e períodos, pelo menos, a agressão é uma parte central da
definição da masculinidade. A linguagem do insulto talvez
Paralelos no passado desse tipo de violência não são seja reveladora a esse respeito. Afinal, não é somente no
difíceis de achar, dos tumultos dos bordéis de Londres no mundo latino e mediterrâneo que os homens se insultam
final do século XVII ao costume romano de saquear o uns aos outros refletindo sobre sua coragem e sexualidade.
palácio de um papa recém-eleito. No entanto, tal como a Na Inglaterra contemporânea, por exemplo, a violência dos
teoria “espasmódica” do tumulto, essa análise levanta mais torcedores de futebol não raro é precedida de insultos ritu-
problemas do que resolve. É a destruição (por mais alegre) alizados tais como “punheteiros”, uma maneira de afirmar
fundamentalmente expressiva, um fim em si mesma? Ou é que os do outro lado não são homens de verdade. Pode-se
um alívio para tensões psicológicas provocadas, no caso bra- comparar com o incidente em Amritsar em 1984, quan-

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do o exército ocupou o templo e as hightec — metralhadoras e rifles de longo alcance no Rio,
mulheres siques escarneceram de seus lança-foguetes em Belfast, gás venenoso em Tóquio etc.
homens com perguntas como “onde Mudanças semelhantes ocorreram na tecnologia dos méto-
está a goma de seu bigode agora?” O dos de controle das massas. Vivemos na era dos camburões,
assassinato de Indira Gandhi por seu escudos, balas de plástico e gás lacrimogêneo.
guarda-costas sique ocorreu logo de- A transferência de tecnologia e técnicas entre
pois. grupos deve ser mencionada, como
O último exemplo dá mar- entre a guerrilha urbana brasileira com
gem a outra reflexão. Gran- objetivos políticos e a organização de
des cidades da Índia como traficantes conhecida como Coman-
Calcutá apresentam estatís- do Vermelho, resultado dos contatos
ticas surpreendentemente entre os dois grupos nas prisões do Rio.
baixas de violência urba- Esse não foi o primeiro caso desse tipo
na, baixas o suficiente para de transferência cultural. Na Espanha do
estimular a especulação sobre a século XIX, os bandidos aprenderam com as
possível relevância do sistema técnicas de guerrilha usadas contra Napoleão.
de casta para a manutenção O papel do automóvel na violência
da paz urbana, no sentido de urbana não deve ser esquecido. Os
que a casta “insula” diferentes acidentes de trânsito mataram
grupos sociais e minimiza assim a 1.708 pessoas em São Paulo em
possibilidade de choques entre 1994, comparadoscom 4.494
elas. Tudo isso dentro do mun- homicídios alguns provocados
do hindu, evidentemente. Mas por problemas de trânsito
os tumultos comunais deixam numa cidade onde muitos
claro que essa forma de motoristas andam armados.
isolamento é ineficaz no caso de
choques entre hindus e
siques, bem como entre hindus e
O gerenciamento
muçulmanos. da violência
Um contraste entre tradicional e moderno também emerge
A tecnologia de uma análise do que é conveniente chamar de “gerencia-
da violência mento” da violência (com freqüência, mas nem sempre, um
eufemismo para repressão).
Um exame das mudanças na tecnologia da violência O sistema tradicional europeu confiava em amadores
permite um contraste claro entre o antigo e o moderno. As ou semi-amadores para manter a ordem nas cidades; a
pedras estão entre as armas mencionadas com mais freqüência ronda, a milícia, os archers parisienses, os sbirri romanos, os
nas fontes sobre a Roma antiga, o que revela o estado das ruas schutterij de Amsterdam, os “bandos treinados” londrinos
e talvez, o preço das facas. Ao contrário, na Itália medieval, etc. Esses grupos eram muitas vezes objeto de riso devi-
o modo de guerrear era tecnologicamente mais sofisticado, do a sua ineficácia, como o Dogberry de Shakespeare nos
testemunhado pelo uso de óleo fervente no assédio a torres, lembra. Para apoiar esses esforços um tanto débeis, não
ou pelo uso da cavalaria nas ruas (os cavalos da polícia de havia muito mais que o ritual. Nos países católicos, o
hoje nos dão uma idéia do impacto da cavalaria sobre os sacramento sagrado era usado às vezes como instrumento de
pedestres). No século XVI, o crescimento rápido da controle das massas como ocorreu em Nápoles e Palermo nas
inovação tecnológica das armas já preocupava as revoltas de 1647. Quando os padres saíram às ruas com a
autoridades. O florete, por exemplo, que entrou na moda hóstia erguida, os revoltosos pararam o que estavam fazendo
entre os jovens da nobreza européia seiscentista, tornou os e ajoelharam-se obedientes. Infelizmente para as autorida-
duelos mais letais, uma vez que ficava mais fácil atravessar o des, não ficaram de joelhos por muito tempo. As execuções
corpo do adversário. Mais perigosa ainda foi a disseminação públicas também podem ser consideradas como um
do arcabuz e seu uso em cidades como Gênova, ou Paris, ritual ou uma forma de auto de purificação, advertindo o
onde o líder protestante almirante Coligny foi assassinado público sobre as conseqüências do crime. Para ser mais
com arma de fogo em 1572, deflagrando o massacre de São preciso, elas eram encenadas com esse propósito, usando a
Bartolomeu. violência para desestimular a violência. Se os espectado-
No século XIX, a bomba entrou no arsenal da violên- res interpretavam os eventos dessa forma, ou se conside-
cia urbana, associada em particular aos anarquistas. Hoje, ravam as execuções como entretenimento, ou sentiam
testemunhamos a ascensão e diversificação da violência solidariedade pelas vítimas é um problema que continua a

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preocupar os historiadores. De maneira continua nas cidades de todo o mundo. As cidades
similar, exibiam-se instrumentos de coloniais oferecem muitos exemplos, dos quais
tortura nas ruas de Roma no carnaval o massacre de Amrisar, efetuado pelo exército
para relembrar os participantes de que britânico contra manifestantes pacíficos, é um dos
havia limites para aquele momen- mais conhecidos. Ainda na Manchester do sécu-
to de licença. Com freqüência, as lo XIX, mandou-se que a tropas atacassem uma
autoridades supunham que festejos manifestação pacífica numa ocasião famosa ,
públicos desse tipo funcionavam como em St. Peter’s Fields, em 1819, evento lembrado
uma válvula de escape, uma forma de com humor amargo como o massacre de “Peterloo”.
desordem controlada, embora a associação O ataque dos cossacos a uma manifestação
entre festas e tumultos fosse bem co- em São Petersburgo, no “Domingo Negro”
nhecida. Em pelo menos uma oca- de 1901,
sião, em 1648 na Sicília, um ano é igualmente
depois de uma grande bem conheci-
revolta em Palermo, as do. Voltando
autoridades discutiram se o para São Paulo,
carnaval deveria ser banido temos a violência da
por ser causa de violência ou policia contra grevistas
estimulado como cura para ela. no início deste século, ou o
O medo da violência descontrolada, famoso ataque à multidão na Praça
não menos que o temor da sexualidade da Sé, no primeiro de maio de 1919.
descontrolada, motivou o que chamei Ou ainda a bem documentada violên-
em outro lugar de “reforma da cultu- cia da ROTA durante a ditadura mili-
ra popular”, um movimento coletivo tar. E mais: o fato dea polícia militar ter
de elites laicas e clericais do início da matado 1.104 pessoas em São Paulo em
Europa moderna para domesticar o 1991. Em resumo, podemos lembrar três
povo e seus festejos. teses simples:
Se a violência irrompesse nas ruas, 1. A violência urbana não é nova mas
havia pouco que as autoridades não assume as mesmas formas em todas as
pudessem fazer nos estágios iniciais, épocas. É importante distinguir suas variedades, as
além de ordenar um toque de reco- diferenças entre tipos de ator, vítima, ocasião,
lher provavelmente difícil de fazer local, tecnologia etc.
cumprir. Em último caso, se a 2. A importância do deslocamento ou
hóstia sagrada não funcionasse e a realocação da violência dentro da cidade
guarda fosse ignorada, seria neces- merece ênfase particular. As eleições e carnavais
sário chamar o exército para restau- brasileiros, por exemplo, não são mais ocasiões
rar a ordem. A súbita mudança da importantes de violência. Porém, deslocamento
relativa impunidade dos desordeiros não significa desaparecimento. Na Europa, por
para seu tratamento como “inimigos” exemplo, a violência festiva mudou-se de
era dramática. As pessoas ficavam locais tradicionais como a ponte, para
alarmadas ao ouvir a aproximação lugares novos como os estádios.
de um exército. Pouco impor- 3. A violência pode ter se
tava se fosse inimigo ou supos- profissionalizado gradualmente no
tamente “amigo”, pois o medo de longo prazo embora não possamos verifi-
saque, pilhagem, estupro e tortura era o mesmo em ambos car essa hipótese com métodos quantitativos. A violência
os casos. Não surpreende que nesse período o acantonamen- urbana tradicional, numa época em que a maioria dos
to de tropas nas casas dos civis fosse usado como punição homens adultos portava armas, era principalmente obra
na França e na Espanha, bem como uma solução para o de amadores, enquanto que hoje (com a significativa
problema do que fazer com elas em tempos de paz (na exceção dos tumultos étnicos) é principalmente obra de
Inglaterra, ao contrário, as tropas eram usualmente a profissionais. A proporção da população que toma parte
quarteladas em hospedarias). Esse sistema só começou a ativa na violência provavelmente diminuiu ao longo dos
mudar quando os governos construíram quartéis perma- últimos séculos. Nesse sentidolimitado, apesar da escala
nentes para os soldados a partir do final do século XVII e apavorante do problema da violência nas cidades contem-
a mudança só se tornou definitiva quando se organizaram porâneas, ainda podemos falar, como Norbert Elias, de
forças policiais profissionais no decorrer do século XIX. um “processo civilizador”. Só não sabemos se a força desse
Não obstante, a violência de cima persistiu e ainda processo vencerá o poder das novas armas.

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Violência, pobreza, drogas
Alba Zaluar
Jovens estão matando jovens cada vez mais com moder- ladrões e traficantes. Presos aos seus pares, as crianças e
nas armas de fogo. O Brasil de hoje, famoso no mundo por adolescentes de rua passam a ser submetidos a toda
causa das mortes violentas de crianças e adolescentes, ressoa espécie de usos e abusos, inclusive dos adultos per-
os ecos da história, como sugere Peter Burke em “Violência tencentes às redes de receptação de objetos roubados,
urbana e civilização”, publicado neste Braudel Papers. assim como dos policiais corruptos. Porém, ainda que
A evolução da pobreza nas últimas décadas não possam cometer crimes menores, há um mínimo de crimes
sustenta a tese que explica o aumento da criminalidade violentos entre eles.
apenas pela miséria. Minhas pesquisas nas favelas do Rio A violência tem um efeito inflacionário. Quando a
de Janeiro nos últimos quinze anos mostram que o taxa de crimes aumenta, o medo e a insegurança da
percentual de pobres que optam pela carreira criminosa é população ameaçam a qualidade de vida conquistada a
baixo. Além disso, curiosamente, as maiores taxas de mortes duras penas em décadas de desenvolvimento econômico
violentas foram observadas nos estados mais produtivos e e de reivindicações sociais. As pessas trancadas em casa,
ricos do país, como Rio de Janeiro e São Paulo, ao pas- seja na favela ou no bairro de classe média, deixam
so que as menores taxas foram encontradas entre os mais de se organizar, pouco participam das decisões locais
pobres, como Maranhão, Bahia e Ceará, famosos pelos que afetam suas vidas e pouco convivem entre si. Ao
meios primitivos e espetaculares de resolver os confli- invés, muitos trancafiam-se, armam-se e preparam-se
tos interpessoais, tal como contam a história e as lendas para enfrentar os próximos perigos como se estives-
brasileiras. sem numa guerra. O resultado disso é um generalizado
Em nossas grandes cidades, os adolescentes estão sendo desrespeito pelas regras da convivência social, para não
assassinados por outros jovens da mesma idade. Setenta por falar de regras fundamentais à segurança de todos, como as
cento das mortes violentas no Brasil atingem adolescentes leis do trânsito, que afetam todas as classes sociais.
entre 15 e 17 anos. Na faixa de idade que vai até os 14 anos, Os dados oficiais da polícia indicam que na região
os acidentes de trânsito respondem pela maioria das mortes metropolitana de São Paulo, a taxa de homicídios teve
violentas, mas entre os jovens de 15 a 18 anos de idade, as crescimento acentuado durante a década de 80; em
armas de fogo são os instrumentos de 43% do número total 1981, essa taxa era de 21 mortos por 100 mil habitantes,
de mortes, seguidos dos acidentes de trânsito (24%) e outros aumentou para 42,91 em 1990-94 e pode chegar a 48
tipos de armas (11%). Grupos de extorsão, compostos neste ano. Dessas mortes, 47,21% atingiram jovens do
muitas vezes por policiais corruptos, tornam-se grupos de sexo masculino, entre 15 e 24 anos. Em São Paulo, as
extermínio. Quadrilhas de traficantes e assaltantes usam pressões populacionais sobre o espaço físico da cidade
métodos semelhantes, de modo que a luta pelo butim entre geraram medo nos moradores dos bairros pobres e
elas leva à morte os seus jovens peões. remediados. As pessoas falam não só dos criminosos,
O aumento da proporção de famílias pobres chefiadas mas também que “a justiça não funciona, a polícia falha e
por mulheres e com crianças de menos de dez anos teve desrespeita a lei”. Eles culpam os nordestinos que passaram
impacto na formação dos círculos viciosos apontados. Em a habitar no mesmo bairro pela situação insuportável
1989, 43% das famílias chefiadas por mulheres viviam e exigem políticos “de pulso forte” para restabelecer a
abaixo da linha de pobreza, correspondendo a 12% do ordem. Os efeitos mais evidentes dessa postura não são os
total das famílias pobres. Apesar da sensível diminuição muros altos, grades, fechaduras, alarmes e cadeados, mas o
da proporção de crianças na população brasileira, que caiu descrédito no trato com estranhos e a descrença
de 44,7% em 1980, para 4l% em 1989, cerca de 50,5% na participação democrática. A idealização de uma
das crianças e adolescentes continuaram em famílias comunidade de semelhantes encolheu os horizontes
cujo rendimento mensal per capita era de até meio salário sociais, restringindo o mundo significativo e de confiança.
mínimo, e 27,4%, em famílias com até um quarto O “processo civilizador” apresentado por Elias e discutido
do salário mínimo. A maioria desses jovens e crianças, por Burke no contexto europeu sofreu uma derrota.
embora não se envolva necessariamente em atividades No Rio de Janeiro, onde tráfico internacional de
criminosas, fica em posição mais vulnerável à influên- drogas se intensificou a partir do final da década de
cia do crime organizado enquanto trabalham nas ruas. 70, a posse de armas de fogo poderosas deu para os
Apenas uns poucos terminam em quadrilhas armadas de jovens quadrilheiros um poder militar que não só os

Alba Zaluar é professora de Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora há quinze anos dos
problemas da droga e violência.
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levou a matar-se mutuamente, como abalou as bases de entrevistei em minha pesquisas revelaram a interiorização
qualquer autoridade. No esquema de extorsão e dívidas de uma ideologia individualista em que a ilusão quanto à
contraídas com traficantes, os jovens começam como independência do sujeito estava atrelada a uma concepção
usuários de drogas, são levados a roubar, a assaltar e, algumas extremamente autoritária do poder. Se o chefe era
vezes, até a matar para pagar aqueles que os ameaçam de concebido comohomem capaz de exercer irrestritamente
morte e os instigam a se comportar como eles. Muitos sua vontade, isso fazia-se às custas da submissão de seus
tornam-se membros de quadrilhas para saldarem dívidas seguidores ou de suas vítimas. A falta de meios para resolver
ou para se protegerem dos inimigos criados, num círculo conflitos, característica da sociabilidade violenta, caracteriza
diabólico. as relações comerciais e de poder nas quadrilhas,
Um dos nós da questão é a crise de valores que provocando rígida separação entre comandados e chefes,
surge das mudanças ocorridas na nova sociedade urbano- assim como o emprego de crianças nos papéis submissos.
industrial. Enfraqueceram-se os laços delealdade e depen- Esses criminosos são incapazes de criar instituições
dência entre pais e filhos, padrinhos e afilhados, patronos duradouras e prosperam por pouco tempo, em geral
e clientes. O mesmo aconteceu com os velhos valores, cuja vivendo e morrendo rapidamente, no vácuo deixado
destruição não foi compensada pelo aparecimento de novos pelo fracasso das modernas instituições de nossa
modelos para guiar o caminho dos jovens. Todos os que sociedade.

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