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FIGURAS DE CERA E DESUMANIZAÇÃO: ORTEGA Y GASSET A

PROPÓSITO DO ROMANCE HISTÓRICO

ÂNGELA FERNANDES
FACULDADE DE LETRAS DE LISBOA

De entre as afirmações mais lapidares de José Ortega y Gasset sobre o


conhecimento da arte destacam-se estas palavras de 1914:
De uno u otro modo, es siempre el hombre el tema esencial del arte. Y
los géneros entendidos como temas estéticos irreductibles entre sí, igualmente
necesarios y últimos, son amplias vistas que se toman sobre las vertientes
cardinales del humano. Cada época trae consigo una interpretación radical del
hombre. Mejor dicho, no la trae consigo sino que cada época es eso. Por esto,
cada época prefiere un determinado género.
(Ortega y Gasset, 1914:182)

Este é um dos parágrafos iniciais da “Meditación Primera”, incluída no


inacabado projecto das Meditaciones del Quijote. A partir da consideração primordial
de que a arte tem sempre como tema “o homem”, Ortega explicita as suas noções de
género e de mudança histórica à luz dessa dependência entre a arte e a apresentação do
humano: os diversos géneros artísticos constituem simplesmente diferentes visões, ou
interpretações, da natureza humana e as transformações da arte ao longo dos tempos
mais não são do que o testemunho das mudanças na maneira como se concebe o ser
humano. E assim, numa sequência irresistível, diferentes concepções do homem dão
lugar a diferentes géneros artísticos, os quais, por sua vez, caracterizam as diferentes
épocas históricas. Revela-se, pois, uma estreita relação entre a essência da arte (o
homem), a sua manifestação formal (os géneros) e a sua dinâmica histórica (as épocas
artísticas). O conhecimento de qualquer um destes três pólos implica, por conseguinte, a
compreensão dos restantes; como sublinha Ortega, ainda neste ensaio de 1914: “todas
las formas de arte toman su origen de la variación en las interpretaciones del hombre
por el hombre. Dime lo que del hombre sientes y decirte he qué arte cultivas.” (p.230).
Na verdade, nesta “Meditación Primera”, subtitulada “Breve Tratado de la
Novela”, as observações gerais sobre a arte visam sobretudo enquadrar uma reflexão
sobre o romance – género literário que necessariamente deverá ser objecto de

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esclarecimento quando se pretende falar do Quijote. No entanto, mais do que discutir os
problemas genológicos inerentes à obra de Cervantes, procura Ortega y Gasset dilucidar
a evolução e os contornos do romance oitocentista enquanto exemplo de inequívoco
triunfo, numa determinada época, de um género literário, ou seja, de um dado
entendimento do humano. “Durante la segunda mitad del siglo XIX, las gentes de
Europa se satisfacían leyendo novelas”(p.183), sublinha Ortega, apresentando o ponto
de partida para a sua reflexão. Há pois que notar como esta apetência oitocentista pela
leitura de romances, embora constituindo uma questão de história literária, identifica
necessariamente um momento na história do pensamento sobre o lugar dos indivíduos
no mundo.
As conclusões apresentadas nesta “Meditación Primera” realçam, acima de tudo,
a peculiaridade da perspectiva de leitura requerida pelo novo género, e evidenciada logo
por Don Quijote de la Mancha, de Miguel de Cervantes. Ao reunir o imaginado e o
vivido, o trágico e o cómico, as aventuras e os caracteres, o romance obriga a uma
transformação importante no domínio da percepção estética, de modo a conciliar
elementos tão díspares. Ora, como traz para o universo artístico a banalidade do
quotidiano e do risível, ou a incongruência das almas comuns, este género implica uma
visão em profundidade – nas palavras de Ortega y Gasset:
El arte se enriquece con un término más; por decirlo así, se aumenta en
una tercera dimensión, conquista la profundidad estética, que, como la
geométrica, supone una pluralidad de términos. (…) Ahora tenemos que
acomodar en la capacidad poética la realidad actual.
(Ortega y Gasset, 1914: 211-212).

Com efeito, a evolução do género romanesco nas literaturas ocidentais parece


testemunhar, por parte do público, uma sensibilidade cada vez mais favorável a esta
acomodação da perspectiva artística à representação da “realidade existente”. A
referência à vida comum e aos acontecimentos históricos domina progressivamente as
ficções narrativas, de tal modo que o triunfo do romance no século XIX surge
nitidamente associado à sua capacidade de aparentar uma imagem bastante plausível da
vida humana. No âmbito da associação inical de Ortega entre géneros artísticos, épocas
históricas e interpretações do humano, o século XIX afigura-se, assim, um momento
propenso ao conhecimento imediatista e superficial: a narração exaustiva de

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acontecimentos em articulação com a observação sistemática do pormenor concreto e a
consequente descrição pitoresca denotam esse modelo dominante de conhecimento
humano. Estes procedimentos, exemplarmente demonstrados pelos romances da época,
visam, no limite, ocultar a própria convenção artística e o ponto de vista que a orienta,
reforçando, assim, a aparência de verdade.
Ora, esta concepção oitocentista do romance não parece ser já válida nas
primeiras décadas do século XX. No ensaio “Ideas sobre la Novela”, de 1925, Ortega y
Gasset volta à reflexão sobre o romance, procurando agora os motivos da “decadência”
do género na sua época. O êxito oitocentista ter-se-á diluído face a uma nova
sensibilidade do público “más rigorosa y exacta” (Ortega y Gasset, 1925b:389): o
público espera do romance não a “definição”, mas antes a apresentação do mundo com
vista à construção conceptual por parte do próprio leitor. Eis a descrição de Ortega:
En sus comienzos pudo creerse que lo importante para la novela es su
trama. Luego se ha ido advirtiendo que lo importante no es lo que se ve, sino
que se vea bien algo humano, sea lo que quiera. (…)
Si en una novela leo: «Pedro era atrabiliario», es como si el autor me
invitase a que yo realice en mi fantasía la atrabilis de Pedro, partiendo de su
definición. Es decir, que me obliga a ser yo el novelista. Pienso que lo eficaz es,
precisamiente, lo contrario; que él me dé los hechos visibles para que yo me
esfuerce, complacido, en descubrir y definir a Pedro como ser atrabiliario.
(Ortega, 1925b:392; sublinhado meu).

Esta argumentação a favor da descrição não conceptualizada conjuga-se com a


referência a outros preceitos técnicos, como a lentidão do tempo narrativo (p.393), a
demora em torno das personagens (p.394), ou a concentração da intriga (p. 400). Ainda
que reconheça a necessidade de um mínimo de acção (i.e., de movimento narrativo)
para desencadear o interesse e a atenção do leitor, Ortega sublinha que a “essência” do
romanesco não se encontra na intriga, mas sim “en el puro vivir, en el ser y el estar de
los personajes, sobretodo en su conjunto o ambiente” (pp.407-408). Daí a necessidade
da restrição do horizonte evocado e o afastamento deliberado face ao mundo exterior ao
romance: “la táctica del autor ha de consistir en aislar al lector de su horizonte real y
aprisionarlo en un pequeño horizonte hermético e imaginario que es el ámbito interior
de la novela.”(p.409)
O modelo de romance (e, em simultâneo, de procedimento cognitivo) proposto
por Ortega y Gasset radica, pois, na concentração sobre um universo circunscrito que

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demonstra a sua natureza artística precisamente devido à quebra dos laços com o mundo
real. Ao contrário do romance oitocentista, o romance do século XX deverá apresentar-
se claramente como romance, como construção artística, e não como uma aparência de
verdade vivencial: só assim o romance poderá corresponder à sofisticada percepção de
um público que encontra o comprazimento estético, não na entrega à ilusão de real, mas
antes no “esforço” de construção conceptual a partir dos elementos romanescos. A
clarividência na percepção constitui um elemento fundamental para que se efective a
comunicação estética e a verdadeira arte será aquela que não traz dúvidas, a quem a
contempla, sobre a sua natureza artística.
Nesta linha argumentativa, Ortega y Gasset chega ao caso do romance histórico.
Sabe-se que este subgénero romanesco, moldado principalmente a partir das obras de
Walter Scott, usufruiu de ampla aceitação entre os leitores europeus durante o século
XIXi; favorecido pelas preocupações de fidelidade histórica e de exactidão realista
dominantes na ficção narrativa da época, o romance histórico surge afinal como
paradigma da mistura entre os planos artístico e vivencial – uma mistura que, segundo
Ortega, se torna insustentável:
Yo encuentro aquí la causa, nunca bien declarada, de la enorme dificultad –
talvez imposibilidad – aneja a la llamada «novela histórica». La pretensión de
que el cosmos imaginado posea a la vez autenticidad histórica mantiene en
aquélla una permanente colisión entre dos horizontes. Y como cada horizonte
exige una acomodación distinta de nuestro aparato visual, tenemos que cambiar
constantemente de actitud; no se deja al lector soñar tranquilo la novela, ni
pensar rigorosamente la historia. En cada página vacila, no sabiendo si proyectar
el hecho y la figura sobre el horizonte imaginario o sobre el historico (…) El
intento de hacer compenetrarse ambos mundos produce sólo la mútua negación
de uno y otro.
(Ortega y Gasset, 1925b: 411-412; sublinhados meus).

O autor condena o romance histórico enquanto texto híbrido que perturba o


processo habitual de leitura: a confluência do “imaginário” e do “histórico” não permite
ao leitor a manutenção de uma atitude estável perante o romance, e inviabiliza, assim, o
olhar coerente construtor de significações.
Importa notar que este passo ecoa claramente a argumentação desenvolvida no
ensaio “La Deshumanización del Arte”, publicado conjuntamente com as “Ideas sobre
la Novela”, em 1925. Ortega y Gasset expõe aí a sua análise da arte das primeiras

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décadas do século XX, sublinhando a necessidade de adoptar um novo modelo de
relacionamento estético para compreender a nova arte “desumanizada”. Em seu
entender, a arte moderna está desumanizada porque não procura apresentar
convincentes ilusões de vida, mas antes evidencia a sua própria dimensão artística,
construtiva e mediadora. Trata-se, portanto, de uma arte que não suscita a adesão
emotiva do espectador e que, pelo contrário, requer um olhar atento ao filtro artístico:
um olhar desumanizado, porque sem contaminações do patético humano.
A diferença entre a arte e a vida reside no facto de cada uma exigir uma distinta
maneira de ser olhada, de ser compreendida. Por isso, como afirmava Ortega no excerto
citado acima, cada horizonte (o do romance, diferentemente do da história) exige uma
“acomodação distinta” do olhar do leitor - o que conduz em certos casos, como o do
romance histórico, a hesitações constantes e infindáveis: a dúvida é, no limite,
impossível de ultrapassar pois optar por um dos “horizontes” implica a negação da
própria natureza dos objectos em causa. Em “La Deshumanización del Arte”, Ortega
acentua que este é o verdadeiro perigo: o espectador perde a consciência da sua situação
perceptiva e deixa de gerir racionalmente a experiência estética. Ora, quando não se
consegue adoptar uma “atitude clara e estável” (p.370), entra-se no domínio da desrazão
e das reacções emotivas e instintivas, o que contraria a dimensão intelectiva do
verdadeiro prazer estético. Nesta medida, a dificuldade em decidir sobre a natureza
artística ou humana de um dado objecto torna-se motivo de angústia e não de
comprazimento.
Uma situação exemplar desse mal-estar que se instala no receptor no momento
da dúvida perceptiva encontra-a Ortega na contemplação de figuras de cera:
Ante las figuras de cera todos hemos sentido una peculiar desazón.
Proviene ésta del equívoco urgente que en ellas habita y nos impide adoptar en
su presencia una actitud clara y estable. (…) No hay manera de reducirlas a
meros objetos. Al mirarlas, nos azora sospechar que son ellas quienes nos están
mirando a nosotros. Y concluímos por sentir asco hacia aquella especie de
cadáveres alquilados.
(Ortega y Gasset, 1925a:370).

As figuras de cera constituem, pois, um exemplo cabal da arte “demasiado


humana” (pp.359, 381), aquela que confunde deliberadamente o público, fazendo-o
mesmo duvidar da sua posição no relacionamento estético, já que se tornam equívocas

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as fronteiras entre os “objectos” a contemplar e os sujeitos humanos que contemplam.
O filtro artístico torna-se nestes casos demasiado transparente e a inquietação que cresce
no espectador traduz-se numa perturbação comportamental, na medida em que revela a
perda do controlo racional da situação. O caso das figuras de cera, mencionado em “La
Deshumanización del Arte”, conjuga-se assim com o problema do romance histórico,
abordado em “Ideas sobre la Novela”, e a proximidade dos dois exemplos é
curiosamente reforçada por algumas referências de Ortega, neste último ensaio, ao
escritor Pío Baroja (pp. 387, 400, 419).
A controvérsia entre Ortega y Gasset e Pío Baroja a propósito do género
romanesco inicia-se em 1915 com algumas observações de Ortega e prolonga-se por
mais de uma décadaii. No que respeita ao debate em curso em 1925, sublinha-se
habitualmente a “resposta” de Baroja no prólogo do seu romance La Nave de los Locos,
desse mesmo ano. Contudo, terá particular interesse descortinar as relações entre os
ensaios de Ortega aqui tratados e o romance histórico que Pío Baroja havia publicado
no ano anterior, precisamente intitulado Las Figuras de Cera. Esta obra integra-se numa
sequência de romances históricos que Baroja designou genericamente “Memorias de un
Hombre de Acción”; os vinte e dois volumes dessa série, publicados entre 1913 e 1935,
organizam-se em torno das aventuras de Don Eugenio de Aviraneta, antepassado de Pío
Baroja e figura controversa da história da Espanha das primeiras décadas do século
XIX.
Em Las Figuras de Cera conta-se o episódio, ocorrido durante a primeira guerra
carlista, do transporte para Bayona, em França, de um tesouro guardado em Pamplona e
constituído por objectos preciosos retirados das igrejas de Navarra na sequência da
guerra. Esse transporte é organizado por Alberto Dollfus, mais conhecido como
Chipiteguy, um sucateiro de Bayona, que utiliza como pretexto para se deslocar a
Pamplona a exibição, na feira de San Fermín, da sua exposição de figuras de cera. O
conjunto dos bonecos de cera do sucateiro ocupa, por conseguinte, um lugar central na
intriga, e surgem mesmo ao longo do romance diversas referências aos efeitos
produzidos no público pela exposição ceroplástica. Um dos momentos mais extensos de
reflexão sobre as figuras de cera ocorre durante a conversa de três visitantes da
exposição: don Eugenio de Aviraneta, o escritor Ochoa e um jovem pintor. Alguns
fragmentos da conversa são ilustrativos das questões abordadas:

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- Oiga usted, don Eugenio – le dijo Ochoa a Aviraneta - , ¿qué cantidad
de verdad hay en estos retratos?
Aviraneta se sonrió; era amigo de Chipiteguy.
- No están mal – dijo.
- Es curioso - exclamó el pintor -; las figuras de cera son más pintorescas
y más típicas cuanto más estropeadas y viejas están.
- ¡Ah, claro! No es obra artística – indicó Aviraneta.
- Indudablemente – dijo el pintor con petulancia -, las figuras de cera son
algo atrayente, sobre todo para los chicos y la gente del pueblo. Es un
espectáculo de gran curiosidad, emocionante…
- Pero al mismo tiempo, de extraña repulsión – indicó Aviraneta.
(…)
- ¡Qué macabros están ustedes! – exclamó el pintor.
- No, macabros, no. Insistimos un poco para aclarar – replicó Ochoa-.
Indudablemente tiene usted razón, don Eugenio. El tamaño influye mucho. Es el
del natural; por tanto el del muerto. Aumentándolo o achicándolo, bastaría
probablemente para quitar esa sensación desagradable, porque no hay
posibilidad de confundirle con una persona. ¿Por qué la posibilidad de la
confusión es tan desagradable?
- Es la posibilidad del fantasma, del espectro – dijo Aviraneta -. Un
fantasma como una mosca o como un monte no podría ser fantasma asustador.
- Luego hay el otro punto – insistió Ochoa -. ¿Por qué una figura tan
realista como una figura de cera no produce efecto artístico? (…) ¿Por qué el
asesino con un puñal en la mano y la víctima con una herida de la que brota
sangre nos son odiosos en figuras de cera y no en un cuadro?
- Resolver esa cuestión sería encontrar el tope del arte – dijo Aviraneta –,
sería saber dónde están sus límites.
(Baroja, 1924:140-143)

O sensato Aviraneta conclui, assim, da impossibilidade de resolver os problemas


suscitados pela contemplação das figuras de cera: descobrir os motivos da ambivalência
destas esculturas e, sobretudo, as razões da sua diferença face a objectos artísticos
implicaria descobrir a própria essência da arte e delinear os seus limites – mas tal tarefa
não parece estar ao alcance de qualquer um… Ainda assim, afirmam estes interlocutores
que o mais perturbante nas figuras de cera é a sua semelhança excessiva com as
pessoas: são semelhantes até no tamanho, o que significa que não há nelas qualquer
traço evidente do processo de representação, i.e., do gesto de mediação que toda a arte
supõe. A interrogação do escritor, “por que é que uma figura tão realista como uma
figura de cera não produz efeito artístico?”, denota o raciocínio, comum à época, que
associa a arte à representação realista; contudo, esta interrogação anuncia também a sua

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própria resposta: é precisamente por ser “tão realista” que a figura de cera não chega a
ser artística, e não consegue, por conseguinte, desencadear os efeitos da arte.
Este romance de Pío Baroja evoca, assim, quer a popularidade dos bonecos de
cera na primeira metade do século XIX (com referências mesmo ao gabinete de
Madame Tussaud, p.193), quer os problemas latentes na apreciação de tais objectos. Em
certa medida, alude-se deste modo a algumas questões centrais na arte oitocentista, uma
vez que as figuras de cera, não sendo arte, resultam igualmente de uma certa tendência
realista, fundamental na arte do século XIX, e o êxito obtido por estas exposições
testemunha bem esse gosto generalizado pela apresentação vívida da realidade. As
figuras de cera são apenas o gesto realista levado às últimas consequências, e
constituindo, afinal, a demonstração das limitações desse mesmo gesto enquanto
processo artístico e, de acordo com as associações de Ortega y Gasset inicialmente
descritas, enquanto processo de conhecimento humano.
Importa sublinhar que, embora as referidas descrições das figuras de cera façam
coincidir a exemplificação argumentativa de Ortega e a intriga romanesca de Baroja,
nada permite concluir que Baroja esteja de acordo com a aproximação entre figuras de
cera e romances históricos. Na verdade, Pío Baroja proclama, no seu prólogo a La Nave
de los Locos, a possibilidade de construir um romance com poucas regras, com um
esqueleto incerto como um animal “invertebrado” (p.44), e incluindo os elementos mais
díspares. Ao afirmar que “la novela, en general, es como la corriente de la Historia: no
tiene ni principio ni fin; empieza y acaba donde se quiera” (ibidem), Baroja acentua
tanto a proximidade entre a percepção do devir histórico e a construção de sequências
narrativasiii, como a importância de um “querer”, i.e., de uma vontade autoral na
construção da unidade romanesca. Em última análise, é esta força unificadora que
agrega os elementos diversos (históricos ou imaginados) e permite que o romance possa
ser entendido enquanto unidade de sentido, ultrapassando assim a percepção dos
horizontes conflituais descritos por Ortega.
Baroja e Ortega têm, pois, concepções diferentes quanto ao romance, em geral, e
ao romance histórico, em particular. Ainda assim, tornou-se produtivo confrontar os
seus argumentos e as suas imagens, sobretudo no sentido de aclarar a fundamentação
das objecções de Ortega y Gasset face ao romance oitocentista, e em especial face ao
romance histórico. Para este autor, o que está verdadeiramente em causa são as

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contingências epocais dos mecanismos de percepção estética e de interpretação do
humano. Ainda que noutros momentos possam ter sido uma aspiração primordial da
representação artística, o excesso de aparência de vida próprio das figuras de cera ou o
excesso de aparência de verdade histórica característico dos romances históricos
constituem, no tempo de Ortega, um obstáculo perceptivo para todos aqueles
espectadores que entendem a arte como um universo que deve obrigar a um esforçado
exercício de atenção persistente e de decisão conceptual. O comprazimento dos
observadores e dos leitores modernos situa-se, portanto, na apreciação da distância da
arte face à vida. Tanto mais que, relembrando uma imagem grata a Ortega, esquecer
essa distância seria como “mirar en el jardín un cuadro que representa un jardín”,
quando afinal “el jardín pintado sólo florece y verdea en el recinto de una habitación,
sobre un muro anodino, donde abre el boquete de un mediodía imaginario” (Ortega y
Gasset, 1925b:411).

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Notas

i
Lembrem-se estudos de conjunto sobre o romance histórico, como o clássico Lukács (1937) ou Shaw
(1983).
ii
Veja-se, a este propósito, o artigo de Iglesias (1974).
iii
Lembre-se como, sobretudo desde White (1973), a teorização sobre a escrita da História tem sublinhado
o carácter inevitavelmente narrativo e literário da historiografia.

Referências Bibliográficas

BAROJA, Pío
1924, Las Figuras de Cera, Madrid, Editorial Caro Raggio.
1925, “Prólogo casi doctrinal sobre la novela, que el lector sencillo puede saltar impunemente”, in La
Nave de los Locos, Madrid, Editorial Caro Raggio, pp.7-46.

IGLESIAS, Carmen
1974, “La controversia entre Baroja y Ortega acerca de la novela”, in Pío Baroja, ed. Javier MARTÍNEZ
PALACIO, Madrid, Taurus, pp. 251-261.

LUKÁCS, Georges
1937, Le Roman Historique, trad. Robert Sailley, Paris, Payot, 1965.

ORTEGA Y GASSET, José


1914, “Meditación primera. Breve tratado de la novela”, in Meditaciones del Quijote, ed. Julián Marías,
Madrid, Cátedra, 1998, pp. 177-245.
1925a, “La deshumanización del arte”, in Obras Completas, Tomo III, Madrid, Alianza Editorial -
Revista de Occidente, 1966, pp. 353-386.
1925b, “Ideas sobre la novela”, in Obras Completas, Tomo III, Madrid, Alianza Editorial - Revista de
Occidente, 1966, pp. 387-419.

SHAW, Harry E.
1983, The Forms of Historical Fiction: Sir Walter Scott and his Successors, Ithaca - London, Cornell
University Press.

WHITE, Hayden
1973, Metahistory: The Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe, Baltimore – London, The
Johns Hopkins University Press.

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