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UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA


CENTRO DE EDUCAÇÃO – CEDUC

A História Social da Escravidão na Paraíba; Um Estudo de Caso: Sumé-PB (1873-1888).


Orientador: Josemir Camilo de Melo.

Campina Grande, dezembro de 2006.

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INTRODUÇÃO

O principal objetivo deste trabalho foi investigar o lugar de agente histórico do


escravo, consciente de sua condição e possibilidades, que soube estabelecer espaços de
autonomia em seu cotidiano e até mesmo conquistar sua liberdade, na relação com seu senhor.
Com essa proposta de escrever uma história social da escravidão, observando a subjetividade
e as estratégias de liberdade dos escravos, estivemos diante de um problema ao analisarmos os
documentos encontrados em cartório: as informações sobre a vida de nossas personagens
eram poucas e fragmentadas. Isso devido ao tipo de documentos encontrados em maior
quantidade serem escrituras de compra e venda algumas procurações, outras poucas cartas de
liberdade, etc. Esses documentos referiam-se aos escravos, na maioria dos casos, apenas em
seu aspecto comercial – citando dados como nome, cor, idade, estado civil, preço e
origem.Porém algumas informações passageiras, observadas sistematicamente, nos deixavam
várias interrogações.
As “explicações economicistas” não serviram como modelo explicativo para essa
suposta lacuna deixada pela “ausência” do negro na história e nas fontes documentais. A
maioria das obras mostra a versão dos fatos apresentada pelo senhor, até mesmo o discurso de
época dos senhores transformam-se em discurso historiográfico. Pretendemos evitar esse
problema. A obra de Sidney Chalhoub,Visões da Liberdade,uma história das últimas décadas
da escravidão na Corte, revelou-se referência para a compreensão dos problemas que surgiram
nos documentos.O próprio autor pesquisou fartamente vários tipos de documentos, mas creio
que os mais ricos em informações foram os processos criminais, pela precisão de
detalhes.Não tivemos acesso a esse tipo de documento, mas adotamos sua proposta de reunir
todas as fontes primárias e analisá-las à luz de referências bibliográficas, pois:(...) “O
historiador, portanto, através de um esforço minucioso de decodificação e contextualização
dos documentos, pode chegar a descobrir a ‘dimensão social do
pensamento’”.(CHALHOUB, 1990, p.16)
No primeiro capítulo – Em busca da liberdade: presente ou conquista? – discutimos
teoricamente como os senhores pretenderam representar a liberdade dos escravos e o que a
liberdade realmente significou para os escravos. A escravidão brasileira é apontada em suas
características mais essenciais, como seu alto índice de mortalidade e conservadorismo, além
de ser uma instituição que servia de base para relações sociais desiguais e de exclusão, etc. As
relações estabelecidas entre senhores e escravos são percebidas dentro de um contexto de

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conflito, com os escravos buscando a liberdade e os senhores usando da “força e favor” para
controlá-los.
No segundo capítulo – A escravidão na Parahyba do Norte – discutimos o papel do
escravo na economia das diversas regiões da Paraíba, buscando analisar em que condições o
escravo exerceu seu trabalho. Também pretendemos discutir qual foi o papel do trabalho
escravo no Cariri, bem como os motivos de decadência da escravidão na Paraíba e as diversas
ações promovidas pelos escravos para conseguir sua liberdade.
No terceiro capítulo – Experiências escravistas em São Thomé – analisamos no âmbito
local os negócios da escravidão, em meio aos costumes e ao cotidiano da povoação, com
especial destaque para as atitudes senhoriais ao dispor de seus escravos e as atitudes destes
para conseguir a liberdade ou mais espaços de autonomia. Tentamos traçar um perfil simples
do movimento das vendas e dos escravos envolvidos.

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CAPÍTULO I EM BUSCA DA LIBERDADE: PRESENTE OU CONQUISTA?

(...) “E os próprios negrinhos – os libertados! –


disfarçam, não apreciam muito alusões à famosa
data, sobem positivamente a serra se são chamados
de 13 de maio ... Ora, eis no que dá a gratidão !”
Trecho da coluna A Semana, por Carmem
Dolores,Jornal do Commercio. 1912¹

1.1.Características da escravidão brasileira.

Ao estudarmos a escravidão brasileira nos deparamos com algumas características


marcantes. Chama à atenção o número de escravos que entraram no Brasil na fase do
escravismo pleno (1550-1850): dos 9 a 15 milhões de escravos vindos da África para a
América, o Brasil absorveu cerca de 40%(MAESTRI, 1988, p.33).Embora os números sejam
imprecisos, é certo que entre os escravos do Brasil houve grande mortandade. Nos Estados
Unidos a pequena população escrava aumentou significativamente ao longo dos anos, devido
às experiências de “reprodução” de escravos e boas condições de sobrevivência dos recém-
nascidos (CONRAD,1975,p.44), enquanto no Brasil essa população manteve-se a custo do
tráfico internacional.
Os senhores de escravos no Brasil, desdenhavam seus escravos, sobretudo as crianças
e outros não-produtivos, deixando-os em situações precárias na alimentação e vestimenta. Os
escravos eram o segmento populacional com maior mortalidade, mais susceptível às
epidemias; ou devido ao desgaste provocado pelo trabalho excessivo e as torturas.Não
conseguiam manter seus números através da reprodução natural. Assim era essencial para o
sistema escravista no Brasil a constante reposição de escravos, que em sua maioria eram
homens adultos. Esse contexto de desprezo pela vida e suas condições mínimas, nos dá
indícios do caráter atroz da escravidão no Brasil.

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¹ Esta epígrafe foi retirada de um recorte do Jornal do Commercio, colado no livro chamado “Miscellanea” do
Padre Emilio Cabral do Crato ,no Ceará,em 1912.

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Em uma segunda fase do escravismo, pós 1850, os escravos passam a ter um
tratamento melhor (CONRAD, 1975, p.36) e com algumas concessões legais. Mas ainda não
estão livres da violência e das arbitrariedades dos seus senhores. O tráfico interprovincial é
tão cruento quanto o que lhe deu origem, pois desenraizava o escravo, e o deportava em maior
quantidade para as plantações de café, onde a exploração do trabalho era maior, com jornadas
diárias de trabalho em torno de quinze a dezoito horas (PINSK, 1994, p.35). Esse movimento
deslocou milhares de escravos para o sudeste do país, intensificando os conflitos entre
senhores e escravos nesses lugares. O tráfico interno contribuiu também para a crise do
escravismo, pois provocou a insatisfação dos escravos diante de uma mudança tão radical em
suas condições de vida e trabalho. Houve, na ocasião, da parte dos escravos, uma pressão por
um “cativeiro justo”², tendo por base as experiências anteriores:

(...) “o escravo crioulo, negociado no tráfico interno, trazia toda uma bagagem de
práticas costumeiras, sancionadas na fazenda onde antes habitara, e encontrava-se
diante de uma situação marcada pela total ausência de prerrogativas”.(CASTRO,
1997, p.356).

Na opinião de Robert Conrad (1975, p.5) a escravidão brasileira foi uma instituição
social com raízes profundas, que mesmo com a independência política e o fim da era colonial,
ainda caracterizava muito bem a sociedade brasileira no século XIX.Nas suas palavras “a
escravatura penetrava a vida brasileira” (1975, p.17), pois nenhuma atividade econômica no
Brasil, nesse período, poderia prescindir do trabalho escravo.A escravatura era fundamental
para a manutenção de uma estrutura social desigual no Brasil, em que não só os escravos
estavam excluídos, mas também os ex-escravos e homens livres e pobres, pois viviam
submetidos aos potentados rurais – que controlavam o acesso à terra, justiça, religião,e todo o
aparelho estatal.De todos os países da América Latina, o Brasil e Cuba foram os países mais
inflexíveis na defesa da escravatura até o século XIX.O Brasil foi a última nação a abolir o
cativeiro no continente americano e a que importou o maior número de escravos.A escravidão
foi uma forma de organização social característica do conservadorismo da elite brasileira,
relutante até os últimos dias em fazer a abolição.

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² Esse conceito foi usado cada vez mais pelos escravos, a partir da década de 1870 para comparar as condições
entre um cativeiro “aceitável” de um cativeiro inaceitável e totalmente opressor.A esse respeito ver Sidney
CHALHOUB, Visões da Liberdade, passim.

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A idéia de que a escravidão africana no Brasil foi amena constitui um ponto polêmico
a ser contestado. Não faz sentido levar a sério a defesa do argumento da brandura escravista,
expressa também pelo autor de Casa-Grande & Senzala. Sem dúvida, extrapola as condições
de vida do chamado escravo doméstico e da intimidade que estes desfrutavam com seus
senhores (FREYRE, 1981, p.421), perpassando os seus efeitos aos escravos em geral,
sobretudo aos destinados ao trabalho produtivo dos engenhos. Anula, então, os conflitos que
resultavam das relações senhor-escravo.
Sem dúvida, a grande maioria dos senhores escravistas não foram bondosos, pacientes
ou tolerantes, para com os africanos. Prova disso é que, só após a abolição do tráfico, foi que
abriram mão das formas mais usais de tortura dispensadas aos escravos. Em caráter
excepcional, porém, os senhores escravistas determinavam torturas de extremo sadismo:
castração, amputação de seios, quebra de dentes a marteladas, salgamento de feridas e
emparedamento de pessoas vivas. (PINSK, 1994, p.52). O senhor controlava todos os atos da
vida dos escravos, até os mais íntimos, sobre o que decorriam muitas discórdias entre ambas
as partes.
A violência é outro aspecto inerente ao sistema escravista no Brasil, todavia nem
sempre foi um método seguro de controle social dos escravos. Os laços de dependência que os
senhores mantinham ao longo de anos com seu escravo, parece ter sido mais importante para
a manutenção de seu domínio moral. O uso de torturas nos escravos poderia causar a
insubordinação, e se fossem considerados “excessivos” poderiam dar margem para uma ação
judicial em favor da liberdade ou um plano de fuga. Ainda a violência praticada contra os
escravos não embotou a sua consciência ou retirou-lhes a vontade de resistir. Chalhoub chama
à atenção para o perigo de dois extremos ao considerar a situação do negro frente à violência:

(...) “A violência da escravidão não transformava os negros em seres ‘incapazes de


ação autonômica’, nem em passivos receptores de valores senhoriais, e nem
tampouco em rebeldes valorosos e indomáveis”. (CHALHOUB, 1990, p.42)

2.1 O relacionamento entre os senhores e os seus escravos.

O pressuposto de que escravizados criaram estratégias tanto para enfrentarem o


cativeiro, em seu cotidiano, quanto para conquistarem a liberdade, tem sido definido por
estudos que se inserem na recente tendência historiográfica inaugurada nos anos de 1980 e
tem modificado a compreensão acerca da escravidão no Brasil. (CASTRO, 1997, SLENES,

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1997, CONRAD, 1975, CHALHOUB, 1990). Nesta perspectiva, se firmou a idéia de que os
escravizados foram agentes históricos que, mesmo com os limites e a violência do sistema
escravista, construíram uma lógica de sobrevivência e resistência. Abandona-se, então, a idéia
de que os escravos haviam se submetido passivamente à política de domínio senhorial e o
ponto de partida analítico passa a ser o escravo. Assim, diferentes e complexas experiências
históricas da escravidão têm sido recuperadas, resultantes de variadas fontes documentais, a
exemplo do que fazemos neste trabalho, com o uso de cartas de alforria e escrituras de compra
e venda de escravos. Estas fontes falam sucintamente dos escravos, mas analisadas em
conjunto oferecem importantes informações sobre os escravos e seus proprietários.
Ao pensarmos a relação entre escravos e senhores como uma relação que ultrapassava
quaisquer formas de utilitarismo, onde se estabeleciam vínculos que acabavam por ir além de
interesses econômicos, poderíamos apontar para a idéia de que outros símbolos os
sustentavam. Por exemplo, era impossível aos senhores ter o controle total sobre seus
escravos para que os impedissem de fugir, pois era comum que eles circulassem sem amarras
– exceto nos canaviais - e trabalhassem para si aos domingos e dias santos para ajuntamento
de pecúlio, quase sempre sem o controle e a interferência de seus senhores. Fatos deste tipo
estavam ligados muito mais à tradição do que a legislação vigente sobre o trabalho escravo.
As condições de vida e de trabalho dos escravos, em geral, dependiam muito das
ocupações que desempenhavam. Os escravos poderiam ser explorados de múltiplas formas e
em diversas atividades pelos seus senhores. Em geral, os escravos que viviam na cidade
tinham maior liberdade de locomoção, às vezes vivendo longe de seus senhores, podendo ser
escravos de ganho ou de aluguel. Aqueles que tinham uma profissão conseguiam alguns
benefícios por isso, como morar numa casa à parte da senzala e juntar uma renda extra para
juntar seu pecúlio. No eito o trabalho pesado da roça não concedia benefícios e sua jornada de
trabalho era intensa. Os escravos domésticos – cozinheiras, mucamas, pajens, etc. - possuíam
melhores condições de vida por estarem mais próximos de seus senhores. Essa escala de
importância do escravo e sua função parece indicar também a quantas estava a proximidade
dele para com a liberdade.Os senhores souberam usar a distribuição dessas funções para
legitimar o seu poder diante dos escravos, como observa Slenes: “(...) A verdade, entretanto,
é que a própria distribuição dessas ocupações ‘melhores’ feita pelo senhor já refletia um
compromisso entre as partes no campo da representação da ‘dependência’”. (SLENES, 1997,
p.272).
Nem mesmo uma relação de maior proximidade com o senhor seria uma garantia
contra suas arbitrariedades e o uso de seu poder. Uma escrava que pretendesse usar de

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relações amorosas para obter a liberdade, corria o risco de ter seus planos frustrados ou sofrer
represálias. Devia sempre ter em conta os custos de risco-benefício, como todos os outros
escravos em suas intenções de liberdade. Outro escravo que, por sua função, tivesse uma
maior proximidade com o senhor, também não estava livre do jogo do poder e das
interferências senhoriais na sua vida privada. Nesse caso específico é o que Hebe Mattos
chamou de “intimidade hierárquica” (1997, p.350), ao comentar os revezes a que estava
sujeita essa relação, mesmo com uma proximidade maior.
Diante da possibilidade de perderem seus espaços de autonomia ou frente às
arbitrariedades e violências da parte de seu senhor, os escravos tomaram atitudes radicais para
conseguir sua liberdade como a fuga ou o assassinato de senhores e feitores. Um caso
sintomático desses novos tempos de insubordinação dos escravos é relatado por Sidney
Chalhoub, onde o comerciante de escravos na Corte, José Moreira Veludo, sofre diversas
“bordoadas” dadas por vários escravos (CHALHOUB, 1990, p29). A maioria dos escravos
chegou ao Rio de Janeiro pelo tráfico interprovincial, e negavam-se a seguir para as fazendas
de café. Alguns disseram ainda que o senhor era mau e pretendia surrá-los em breve.Um
grupo de escravos articulou-se para surrar Veludo e depois se entregar à polícia, como forma
de resgatar seus espaços de autonomia retirados pela ganância comercial.Mas os escravos
também souberam cultivar no cotidiano e nas pequenas ações, um caminho para sua
liberdade. Os senhores conheciam as aspirações e insatisfações de seus escravos e por isso
dosavam “a força e o favor”, no dizer de Robert Slenes. Quando lhe era conveniente, o
escravo procurava moldar seu comportamento para ganhar favores. Se o senhor não cumprisse
o acordo, ele irrompia num ato de revolta.
A venda era um momento de indefinição e mudanças, para ambos os lados. Com o
maior peso recaindo sobre o escravo, a “peça”, que estaria diante de um novo trabalho ou
lugar, para o qual relutava em seguir. Os escravos poderiam influir em seus destinos ao
demonstrar sua opinião sobre as circunstâncias da venda, o que faziam quando fugiam ou
cometiam algum crime nesses momentos cruciais de sua vida (CHALHOUB, 1990, p.32).
Aqueles apresentados como escravos desobedientes ou fugitivos costumeiros, não seriam uma
boa opção para o novo senhor. Havia ainda o “período de teste” com estes novos senhores, no
qual o escravo seria avaliado em todas as suas condições físicas e morais, um momento
bastante oportuno para os escravos influírem no processo de transmissão de sua posse
(CHALHOUB, 1990, p.52).
Ao estudar a família escrava, Robert Slenes aponta para os laços que sobreviveram
dentro da escravidão, afirmando estar na permissão da formação familiar “uma importância

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central para a política de domínio dos senhores e para os projetos dos escravos” (SLENES,
1997). Por um lado a constituição de uma família, um casamento entre escravos, poderia
representar um “favor” concedido pelo senhor, e até mesmo uma forma de prender o escravo,
torná-lo obediente, e evitar sua fuga; por outro lado as relações familiares serviam de base
para os cativos buscarem a liberdade nos instantes decisivos formando uma rede de
solidariedade³.(SLENES, 1997).
O projeto de liberdade, dentro das incertezas e inseguranças do sistema escravista,
nem sempre foi uma atitude individual – como no caso da fuga – mas que acionava uma rede
de solidariedade envolvendo libertos, parentes, compadres, e outros brancos simpatizantes. A
união da família escrava serviu de base para a conquista da liberdade, como observa Hebe
Castro:
(...) “o acesso a relações familiares (mais fácil para os crioulos, de uma maneira
geral e para as mulheres, em particular)... constituía variável tão fundamental
quanto a proximidade da família senhorial para o acesso à alforria e, com
freqüência, se revelava precondição daquela.” (CASTRO,1997,p.350)

Na sociedade escravista, havia três modos do senhor outorgar a alforria ao escravo: a)


em pia batismal, na hora do batismo, o senhor poderia declarar que “forrava” a pessoa e o
motivo pelo qual lhe fornecia a libertação do cativeiro, ficando o vigário com a função de
registrar no livro de batismo; b) em testamento, documento em que um indivíduo indicava
como se deveria proceder a partilha de seus bens e ao cumprimento de suas ultimas vontades;
c) passando carta de alforria, que deveria conter a assinatura do senhor ou de terceiros (a rogo,
ou seja, em nome do senhor, prática muito comum, pelo fato de poucas pessoas saberem ler e
escrever), para maior validade e se evitar contestação judicial tornou-se hábito registrar tal
documento em cartórios e de lançá-los nos livros de notas. Estas medidas se firmaram na lei
costumeira, pois não havia uma legislação regulando a prática de libertar escravo.

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³ Contudo as relações familiares não foram garantia contra a separação e a violência imposta pelo sistema
escravista.Sobre esse assunto ver texto de Eric Foner, O significado da liberdade, sobre a condição dos libertos
americanos após a Reconstrução e os desafios da libertação.in :Revista Brasileira de História,nº16.ANPUH,
1988.

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A alforria e o pecúlio partilhavam um aspecto importante como instrumento de
negociação entre senhores e escravos. Para conseguir a liberdade, o cativo precisava
corresponder a lealdade esperada por seu senhor. Na política de dominação senhorial esses
dois itens se mostraram eficazes para diminuir a insatisfação dos negros com seu cativeiro. O
escravo para obter as somas necessárias à compra de sua liberdade mantinha-se estreitamente
ligado aos seus senhores. Por meio dessa aproximação, o cativo lograva executar tarefas
envolvendo rendimentos monetários. Outras vezes, o escravo buscava um homem livre, de
suas relações, que pudesse lhe adiantar o valor requerido, colocando-se em troca, sob a
proteção dessa pessoa – um depositário (CHALHOUB, 1990, p.166.) A Lei do Ventre Livre
procurou, inclusive, legitimar tais práticas, como veremos em seu artigo 4º, parágrafo 3º, onde
lemos: “E, outrossim, permitido ao escravo, em favor de sua liberdade, contratar com
terceiro a prestação de futuros serviços por tempo que não exceda de sete anos, mediante o
consentimento do senhor e aprovação do Juiz de Órfãos”.(CONRAD, 1975 p. 368). Todavia,
juntamente com o registro do pecúlio constava quase sempre a preocupação do senhor em
fazer anotar a benevolência do seu ato. Sob esse aspecto, as notas cartoriais de liberdade
extrapolavam uma simples troca comercial. Antes, elas carregavam consigo a mensagem de
retribuição e reciprocidade, na troca de benefícios às demonstrações de lealdade.Toda
concessão deveria parecer emanar das mãos do senhor.
Todos os atos relacionados à alforria deveriam ser representados como provenientes
da vontade privada do senhor.Por isso, o senhor fazia da entrega da alforria um momento de
cerimônia, entregando-a muitas vezes em momentos especiais e festivos para a família
senhorial, como casamentos, batismos, formaturas, etc. Após a promulgação da Lei 2.040, de
28 de setembro de 1871, a negociação entre o escravo e o senhor para o acerto do preço da
carta de liberdade continuava privativa das partes, mas com algumas modificações
importantes. A intervenção da Justiça que antes somente se justificava em caso de impasse,
agora havia as determinações legais de proteger o pecúlio e forçar a venda de escravos contra
a vontade senhorial, mediante o pagamento do valor do escravo em juízo. Os autores das
ações de liberdade, contudo, não se restringiam aos termos do negócio, isto é, a discordância
relativa aos valores e condições para a compra da liberdade.
Muitas vezes os pleiteantes procuravam incluir argumentos capazes de sensibilizar o juiz.
Entre as justificativas, a união familiar foi um importante argumento utilizado pelos
escravos.A indissolubilidade da família foi, inclusive usada como princípio para o
reconhecimento do pecúlio pela Lei do Ventre Livre, em seu artigo 4º, parágrafo 8º: “Se a
divisão de bens entre herdeiros e sócios não comportar a reunião de uma família, e nenhum

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deles preferir conservá-la sob o seu domínio, mediante reposição da quota-parte dos outros
interessados, será a mesma família vendida e o seu produto rateado”. (CONRAD, 1975 p.
368).
Umas das questões mais investigadas nos estudos de alforrias tem sido o respeito da
motivação dos proprietários em conceder a carta de alforria. Alguns estudiosos destacaram as
influências econômicas na concessão de alforrias; outros, como um instrumento paternalista
que contribuía para a manutenção da escravidão, visto que estimulava o bom comportamento
do cativo para concorrer a uma carta de liberdade; ou mesmo como resultado das relações
senhor/escravo, por este último ter conquistado a afeição de seu dono, mostrando as
complexidades e ambigüidades das relações escravistas que vigoraram no Brasil.
As ações cíveis de liberdade que se espalharam pelo país durante a escravidão
(CHALHOUB, 1990) servem como demonstrações de que a relação entre escravos e senhores
se deu muitas vezes de forma conflituosa e que em tais momentos rompiam-se os vínculos
primeiramente morais e posteriormente contratuais da relação. No campo do Direito, as
batalhas travadas pelos escravos em ações jurídicas que poderiam durar anos, acabaram por
desgastar a imagem da escravidão diante da sociedade.
O historiador Sidney Chalhoub (1990), em seu livro Visões da Liberdade: uma
história das últimas décadas da escravidão na corte, em uma pesquisa ampla em que utiliza-
se de vários processos crimes, ações cíveis de liberdade e livros de registros de cartas de
alforria, afirma que havia concepções muito precisas a respeito da legitimidade e dos limites
do domínio exercido pelo senhor em relação aos seus escravos. Para Chalhoub, tanto senhores
como escravos sabiam como proceder para não se desagradarem reciprocamente. Eles tinham
“uma concepção mais ou menos clara da reciprocidade de obrigações e direitos que os
ligava”. (CHALHOUB, 1990, p. 67).
Nas relações entre escravos e senhores no Brasil no século XIX, o convívio “pacífico”
entre eles era definido pela troca recíproca de obrigações morais (CASTRO, 1995). Cabia ao
escravo a obrigação de trabalhar e servir o seu senhor e ao senhor cabia dar aos seus escravos
garantias de vida e subsistência. Tais relações ultrapassavam, assim, a esfera do econômico e
estabeleciam obrigações morais outras, como, por exemplo, de fidelidade e de proteção. Bons
escravos, aos olhos dos senhores, eram aqueles que prestavam bons serviços, eram obedientes
e pelos quais se desenvolvia algum tipo de afeição em troca de proteção de subsistência e até
mesmo liberdade. Contudo, nos idos de 1870, os escravos passaram a questionar a
legitimidade de sua própria escravidão na justiça, utilizando-se de um conceito novo: o de

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“cativeiro justo”, usado para referir-se aos excessos dos senhores no seu campo de domínio
privado ou pela ausência das obrigações mínimas dos senhores.

1.3 Algumas questões sobre a liberdade.

Nas últimas décadas do oitocentos o sudeste escravista se agitava em movimentos


sociais de ordem diversa, principalmente aqueles relacionados à questão do elemento servil e
das formas de transição da mão-de-obra. Nos centros urbanos, emancipacionistas e
abolicionistas debatiam suas idéias e operavam a favor da libertação dos homens
escravizados, procurando estender sua atuação às zonas rurais. No parlamento, conservadores
e liberais discutiam propostas de encaminhamento de abolição gradual (CONRAD, 1975). Na
Província paulista os cativos abandonavam em massa (CASTRO, 1995) as fazendas onde
anos a fio haviam sido escravizados e tomavam a direção do porto de Santos, muitas vezes
deixando para trás um rastro de destruição e morte. O movimento e as preocupações não eram
menores na Corte. A cada dia cresciam nos tribunais de justiça processos de ação de liberdade
(CHALHOUB, 1995). A criminalidade praticada por mancípios contra os senhores, familiares
e seus prepostos também era crescente em todo sudeste. Nas grandes propriedades agrícolas,
casa grande e senzala viviam a expectativa daqueles anos melindrosos. A escravidão perdia
cada vez mais sua legitimidade, fato demonstrado nas ações de insubordinação dos escravos e
no crescimento do movimento abolicionista.
Em 1884, havia aproximadamente 779.175 escravos nas quatro Províncias que
compunham a região sudeste do Império: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito
Santo.Isto era praticamente o dobro do número de escravos nas oito províncias da região
nordeste, a segunda colocada, com 301.470 escravos (CONRAD,1978,p.346). A concentração
da população escrava em uma única região foi um dos fatores que provocaram o desequilíbrio
da escravidão no país, comprometendo algumas regiões com a continuidade da instituição,
como o Sudeste, enquanto outras regiões caminhavam já para a transição com o trabalho livre,
como foi o caso do Nordeste.
No caminho que se percorreu até a abolição da escravatura, muitos fatos foram de
fundamental importância para a concretização deste movimento. As rebeliões, as fugas, os
quilombos, os trabalhos mal executados ou não cumpridos eram formas de manifestações dos
negros que esbarravam em uma legislação rígida e um aparelho repressivo bem constituído
que sufocavam as revoltas e impediam a concretização dos ideais de liberdade dos escravos.
O processo de emancipação aspirado pelos negros só ganhou força a partir da segunda metade

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do século XIX quando o protesto de alguns setores da classe dominante se juntou à luta dos
negros.Mas, devemos levar em conta que essa política emancipacionista ocorreu de forma
progressiva, devido à resistência dos fazendeiros escravocratas que eram a base de
sustentação política da monarquia.
Um importante passo para o processo de liberdade ocorreu em 1871, quando foi
aprovada a Lei do Ventre Livre, estabelecendo que os filhos de escravos nascidos no Império
seriam considerados livres. Na verdade, esta lei só beneficiava de fato os senhores de escravos
já que estes proprietários deveriam criar os menores até os oito anos, quando poderia entregá-
los ao Governo e receber uma indenização; ou mantê-los consigo até os 21 anos, utilizando
seus serviços como retribuição pelos gastos que tivera com seu sustento. A questão é que esta
lei não foi cumprida na realidade, pois poucos escravos eram libertados, fazendo com que a
situação dos negros continuasse a mesma e por isso, os fazendeiros que em um primeiro
momento atacaram a lei, acabaram defendendo-a depois.
Somente em 1878, tomou corpo o movimento abolicionista, liderado por pessoas
como Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e André Rebouças, ou seja, pessoas que tinham
participação dos setores agrários não vinculados à escravidão e da classe média urbana, e
principalmente intelectuais, profissionais liberais e estudantes universitários. Mudanças
sociais como a introdução do trabalho assalariado, as atividades industriais e o crescimento da
população livre - por volta de 1890 chegava a 522.000 pessoas só no Rio de Janeiro
(VILLA,2000). e a urbanização intensificaram o movimento abolicionista que estava mais
concentrado nas cidades onde moravam os abolicionistas.Os abolicionistas promoviam
conferências, quermesses, festas beneficentes e comícios em praças públicas. Fundaram
jornais, clubes e associações encarregadas de difundir suas idéias, como a Sociedade
Brasileira contra a Escravidão, o Clube Abolicionista dos Empregados do Comércio e a
Sociedade Libertadora da Escola de Medicina.Além disso, em 1884, a escravidão foi abolida
no Ceará e no Amazonas, já que estas eram províncias menos vinculadas ao sistema
escravista, porque perderam boa parte de seus escravos no tráfico interno (CONRAD, 1975,
p.351).No Ceará, em dezesseis meses de campanha abolicionista, foram libertados 22.660
escravos, enquanto que em doze anos de vigência do fundo de emancipação da Lei do Ventre
Livre, foram libertados em todo Brasil apenas 18.900 escravos (VILLA, 2000, p.27).
Nas províncias de grande concentração de escravos como Rio de Janeiro e São Paulo,
as tensões entre senhores e abolicionistas aumentavam. Fato que contribuiu para que em 28 de
setembro de 1884 fosse sancionada pelo imperador a Lei Saraiva-Cotegipe, conhecida
também como Lei dos Sexagenários, que concedia liberdade aos escravos com 60 anos ou

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mais (mas estes eram obrigados a trabalhar para os senhores durante três anos ou até
completarem 65 anos) e previa um aumento do Fundo de Emancipação. Esta lei previa ainda a
suspensão do tráfico interno de escravos e o tabelamento do preço dos escravos, medidas
paliativas para sustentar a instituição decadente.
E somente no dia 13 de maio de 1888 a princesa Isabel, que substituía o imperador,
assinou a Lei Áurea, que libertava “incondicionalmente” em torno de 750.000 escravos, cerca
de um décimo da população negra do país (VILLA, 2000). Os dois breves artigos desta lei
apenas extinguiram a escravidão no Brasil e revogaram as disposições contrárias, não fazendo
nenhuma concessão para garantir a integração do ex-escravo à sociedade.
Na realidade, o que vemos é que em termos sociais, a abolição mais especificamente
para os negros não significou liberdade efetiva, pois ela se transformou, entre outras coisas,
em preconceito racial e exclusão social. A regra geral para os ex-escravos foi a não-integração
à sociedade. Ele não tinha condições de concorrer com o imigrante, melhor qualificado
tecnicamente. Os planos dos abolicionistas em relação à integração do escravo não se
concretizaram. Os negros foram atirados no mundo dos brancos sem nenhuma indenização,
garantia ou assistência e a grande maioria deslocou-se para as cidades, onde os aguardavam o
desemprego e uma vida marginal.
O que significava para as relações entre senhores e escravos à concessão da liberdade?
Seria o fim do vínculo, ou um momento para sua redefinição? A liberdade estava sendo
“dada” de forma livre e desinteressada? É intrigante observarmos, em algumas “cartas de
liberdade”, a concessão de alforria a escravos produtivos e de alto valor. Existem outras
respostas submersas no discurso dos senhores em torno do argumento dos “bons serviços
prestados”.
O que observamos nas poucas “cartas de liberdade” a que tivemos acesso, e nas
pesquisas históricas, é que na maioria dos casos o escravo usou de seu trabalho, pecúlio e a
ajuda de outras pessoas para conquistar a sua liberdade. Portanto, os escravos foram ativos na
conquista de sua liberdade, mesmo que para isso devessem ceder às determinações de seu
senhor, que a todo o momento procurava se beneficiar dessa situação.

20
CAPÍTULO II A ESCRAVIDÃO NA PARAHYBA DO NORTE

2.1.Os poucos braços de nossa lavoura arcaica

Desde o período colonial a quantidade de escravos na Parahyba foi baixa, se


comparada à proporção da população livre. A escassez da mão-de-obra ocorria por conta de
“seu estado de pobreza crônica” e da subordinação econômica a Pernambuco, em que os
senhores de engenho já pobres pagavam caro por escravos que desembarcavam na Capitania
vizinha. (MEDEIROS, SÁ, 1999, p. 50). Os escravos eram o esteio da economia, a força de
trabalho que gerava tantas riquezas. Outras províncias, com economia mais dinâmica no
Nordeste, como Pernambuco e Bahia, possuíam, isoladamente, uma quantidade de escravos
muito superior à da Paraíba.
Os escravos foram poucos para o trabalho na lavoura, e os reclames constantes dos
proprietários e presidentes da província evidencia a carência de trabalhadores, acentuada no
período pós-1850 (PINTO, 1977, V.II, p.210). O atraso técnico no plantio e fabrico do açúcar
condicionava o aumento da produção à expansão da área cultivada e do número de
trabalhadores. A dificuldade de transporte foi um empecilho para o desenvolvimento
econômico da Paraíba, porque era realizado em péssimas estradas e a longas distâncias,
tornando oneroso o transporte e retirando o lucro dos produtores.
Ao longo do século XIX a população escrava declina, enquanto a população livre
aumenta em evidência. Após a extinção do tráfico internacional em 1850, a população escrava
é reduzida ainda mais, pois corta-se a renovação de escravos africanos.Década após década a
proporção de escravos diminui, mas é interessante observar que os dados de Robert Conrad
referentes a 1864 colocam a Paraíba com 30.000 escravos (CONRAD, 1975, p.346), um
aumento súbito de escravos talvez devido ao progresso do algodão.À medida que a população
livre aumenta tanto e os escravos são reduzidos, os produtores se vêem obrigados a utilizar
algumas modalidades do trabalho livre.A tabela abaixo mostra, a variação da população
escrava, década após década, sendo aos poucos reduzida:

21
TABELA: I
POPULAÇÃO ESCRAVA DA PARAÍBA; (1798 a 1851)

ANOS POPULAÇÃO LIVRE POPULAÇÃO TOTAL


ESCRAVA
1798 30.989 = 77,70% 8.897 = 22,03% 39.894
1802 40.168 = 79,00% 10.667 = 21% 50.835
1805 39.279 = 79,58% 10.077 = 20,42% 49.358
1811 104.774 = 85,60% 17.633 = 14,40% 122.407
1820 79.725 = 82,66% 16.723 = 17,34% 90.448
1823 102.407 = 83,66% 20.000 = 16,33% 122.407
1850 178.479 = 86,25% 28.473 = 13,75% 206.952
1851 183.920 = 86,56% 28.546 = 13,43% 212.466
- - - -
1870 200.777 = 91,63% 18.327 = 8,36% 219.104
Fonte: (Medeiros,1999, p. 55)

Os donos de engenhos foram os que concentraram mais escravos em seus plantéis,


contudo a maioria deles tinha menos de vinte escravos; um número baixo comparado à média
de setenta escravos em Jaboatão no Pernambuco de 1857(GALLIZA, 1979, pp. 41,42). Essa
parece ser o máximo de escravos que um senhor de engenho paraibano podia sustentar: 20
escravos.Os proprietários consideravam o trabalho escravo fundamental à sua produção
agrícola, tendo em vista que desconfiavam da capacidade de disciplina do homem livre de
submeter-se ao rigor do trabalho imposto ao escravo.Os homens livres pobres viam com
aversão o pesado trabalho nos engenhos.

2.2 O trabalho escravo e suas produções

Os escravos que trabalhavam nos engenhos sofriam com uma pesada jornada de
trabalho. Consistia em plantar, cortar, e transportar a cana, depois ser a força para a tração das
moendas, etc. Eram empregados em outras atividades de manutenção do engenho, como a
pesca e a agricultura de subsistência. Mas a alimentação era pobre, baseada em charque e
bacalhau (GALLIZA, 1979, p.61).Em uma produção agro-exportadora lucrativa o que
importava era produzir cada vez mais, em detrimento da condição de seus trabalhadores.

22
Na fase de entressafra havia a preocupação em manter o escravo ocupado em outras
ações, mesmo que estas não significassem lucro. Os escravos eram usados nos trabalhos mais
penosos e considerados degradantes, tais como o transporte de cargas e pessoas, o reparo de
estradas, a construção de obras, etc. No século XIX, sobretudo no primeiro meado, os
escravos faziam todos os trabalhos no Brasil, desde criados domésticos, carregadores, a quase
todas as atividades manuais, de modo que era quase impossível não utilizar o trabalho escravo
na sociedade oitocentista brasileira (CONRAD,1975,p.23).
Mas essa não foi a única função do escravo, como ficou consagrado na história
oficial. O trabalho do escravo poderia ser usado em outras áreas além do litoral, onde também
poderia exercer diversas funções como criado doméstico, ferreiro, carapina, trabalhador de
eito, etc.Acerca da abrangência da escravidão no Brasil , Conrad assim se expressa :

“(...) Na década de 1870, todos os 643 municípios do Império dos quais havia
estatísticas ainda continham escravos... Os escravos não só eram um elemento
quase universal na população, mas também eram usados em quase todos os tipos
de trabalho ... Além dos principais produtos, os escravos também produziam uma
vasta variedade de exportações menores em quase todas as regiões do país.”
(CONRAD, 1975, p. 6).

O trabalho escravo se adaptou a diversas situações, além da agricultura exportadora do


litoral. Estabeleceram-se outras relações no interior e o escravo exerceu outros papéis,
inserindo-se às vezes numa produção voltada para o consumo interno, em que encontrou
melhores condições de vida. Muitas vezes o escravo trabalhou ao lado do homem pobre e
livre, situação que poderia suavizar as condições de trabalho do escravo ou endurecer a vida
do homem livre;o que parece depender mais da atividade econômica desempenhada e seus
lucros que outro contexto.
Na primeira metade do século XIX o açúcar constituía o principal produto de
exportação da Paraíba. A economia agro-exportadora sofria com os altos e baixos do preço do
açúcar, bem como a sua baixa qualidade frente a seus concorrentes internacionais (GALLIZA,
1979, p.23). No segundo meado do século o algodão, produzido no agreste e outras partes do
interior, traz lucros para os produtores e receita para a província. Além desses dois itens
voltados para o mercado externo, desenvolve-se na Paraíba oitocentista outras produções
voltadas para o mercado interno. É o caso da agricultura de subsistência praticada em maior
escala no agreste e no brejo, e da atividade criatória nos sertões. Essas produções não são

23
voltadas para as demandas externas, portanto oferecem condições mais estáveis para seus
trabalhadores. Na segunda metade do século XIX veio a decadência da indústria açucareira e
o avanço da produção de algodão, principalmente no interior da província, chegando a tornar-
se a principal fonte de renda da Paraíba. No Sertão, essa cultura foi complementar à criação,
pois parte da plantação servia de ração para o gado. O cultivo realizava-se em um curto
período, de maio a dezembro, e não necessitava de muita mão-de-obra. O aumento da
exportação de algodão para suprir a demanda externa inglesa superou os lucros com o açúcar
em 1850, e na década de 60 deu-se o “boom” do algodão, por conta da Guerra Civil norte-
americana. Os preços do açúcar e do algodão eram vulneráveis aos altos e baixos, já que essas
demandas vinham do exterior. Mas nesse período desenvolvia-se uma produção voltada para
o consumo interno, mais estável, requerendo menos trabalhadores.
Na segunda metade do século XIX veio a decadência da indústria açucareira e o
avanço da produção de algodão, principalmente no interior da província, chegando a tornar-se
a principal fonte de renda da Paraíba. No Sertão, essa cultura foi complementar à criação, pois
parte da plantação servia de ração para o gado. O cultivo realizava-se em um curto período, de
maio a dezembro, e não necessitava de muita mão-de-obra. O aumento da exportação de
algodão para suprir a demanda externa inglesa superou os lucros com o açúcar em 1850, e na
década de 60 deu-se o “boom” do algodão, por conta da Guerra Civil norte-americana. Os
preços do açúcar e do algodão eram vulneráveis aos altos e baixos, já que essas demandas
vinham do exterior. Mas nesse período desenvolvia-se uma produção voltada para o consumo
interno, mais estável, requerendo menos trabalhadores.
Foi no agreste onde a cultura do algodão se expandiu. (GALLIZA, 1979, p.45). Ao
lado da produção de algodão, fazia-se uma agricultura de subsistência, em que cultivavam
milho, feijão, mandioca, etc., nos sítios.As condições de trabalho mais amenas e uma melhor
alimentação atraíram em grande quantidade homens livres e pobres.O braço escravo foi
freqüente nos plantios de algodão no início do século XIX, mas após a extinção do tráfico,
torna-se mais rara a sua presença.Conforme afirma Marc Hoffnagel:

(...) “Comparando com outras regiões da província, o agreste tinha a menor


proporção de escravos, de forma que suas atividades agrícolas dependeram
grandemente da exploração do trabalho livre”.(HOFFNAGEL; 1990; p.45).

Quando ocorreu o primeiro censo do Império em 1872, a Paraíba contava com 21.526
escravos, que representavam apenas 5,7% do total da população. (GALLIZA; 1979; pp.84 e

24
111).A população livre cresce no século XIX, como conseqüência da melhoria nas condições
de vida .Mas os proprietários, controlando o acesso à terra e ao poder local, relutavam em usar
o trabalho dos homens livres como alternativa ao problema da mão-de-obra.Os escravos eram
usados nos trabalhos mais penosos, de rígida disciplina e sob duras condições, dos quais o
homem livre preferia não tomar parte.Os homens livres preferiam prestar serviços
temporários e vagar de fazenda em fazenda, ou viver precariamente no campo, por isso eram
taxados de vadios e preguiçosos.Como o trabalho escravo era o modelo, para uma sociedade
patriarcal e arbitrária, o trabalho livre fazia-se a duras penas, sujeito às imposições dos donos
das terras.Mesmo nessas condições, na Paraíba e em outras províncias do Norte, já havia
homens livres encontrando emprego remunerado nas plantações de cana-de-açúcar – devido
ao esvaziamento de escravos provocada pelo tráfico interno.(CONRAD, 1975, p.86).
Para além do litoral, no Sertão e Cariri da Paraíba, desde o tempo colonial os escravos
foram usados em vários tipos de trabalho, como na criação do gado, curtição de couro,
lavouras de subsistência, etc. A intensificação do povoamento no interior a partir do final do
século XVII esteve atrelada à criação de gado como principal atividade econômica. Os
escravos foram utilizados em diversas funções, essenciais para a manutenção das fazendas do
criatório, como nos trabalhos domésticos, pela experiência profissional de alguns, nas obras
estruturais da fazenda (cercas, açudes, cacimbas, etc.),auxiliando o vaqueiro,etc.O trabalho do
negro foi importante e se inseriu na economia do interior. A historiadora Diana S. Galliza
enfatiza que o trabalho do “negro” esteve presente no sertão desde os tempos coloniais:

“(...) Embora nas primitivas fazendas sertanejas tenha ocorrido a utilização da


mão-de-obra índia ou mameluca, devido a sua predominância na região e ao
nomandismo típico do pastoreio, tão adequado à índole indígena, o trabalho do
negro não foi omisso no criatório, nos tempos coloniais”.(GALLIZA, 1979, p. 24).

2.3 O trabalho escravo no Cariri.

Ao realizarmos pesquisas nos documentos da Igreja e do fórum de São João. do


Cariri, pudemos perceber que os escravos se inseriam na economia da região do Cariri já no
segundo meado do século XVIII. Os documentos de São João do Cariri fazem referência a
diversas localidades, sendo de uso freqüente o trabalho escravo no termo dessa comarca. O
livro nº 01 da freguesia de Nossa Senhora dos Milagres de 1778 já traz registros acerca dos

25
escravos. Nele há diversas notas sobre o português Francisco Duarte Pinheiro, residente na
fazenda Roncadeira da povoação de Santa Ana do Congo. Este português foi dono de vários
escravos, entre eles: o escravinho Felix que morre em 1º de agosto de 1798, envolto em tafetá
vermelho e sepultado na Capela de Santa Ana; os escravos Manuel “do Gentio de Guine” e
Thereza “do Gentio da Costa”, que se casam em 11 de agosto de 1778. Também foi freqüente
o uso de escravos africanos na fazenda Alagoa no início do século XIX, de Manuel Monteiro
do Nascimento, fundador de Monteiro, onde se praticava a atividade criatória como principal
fonte de renda (RIETVELD, 2002).

O inventário de Izabel Rodrigues de Oliveira, que morreu em 1739, mostra-nos fatos


muito interessantes relativos à colonização, atividades produtivas e o trabalho escravo no
lugar . Em seu inventário constam 22 escravos, sendo que 14 deles são africanos, 8
nascidos no Brasil e apenas 01 é mestiço. O negro Vicente, um aprendiz de ferreiro, é o
escravo mais caro, avaliado em 120$000. Como estava ainda no auge do tráfico de escravos
africanos, os homens representam o dobro da quantidade de mulheres. Há uma citação no
inventário sobre 04 escravos que por alguns anos haviam fugido juntos, e não se sabia onde
estavam no momento que se procedia ao inventário dos bens. A senhora Izabel e seu marido o
capitão mor Domingos de Farias Castro tinham grande escravaria porque eram muitos ricos,
com diversas fazendas, uma delas localizada em Cabaceiras, onde produziam gêneros para
sua sobrevivência na lavoura e com suas engenhocas.

As fazendas de criatório necessitavam ser auto-suficientes, pela distância dos lugares


de distribuição e isolamento em que viviam. Quase tudo deveria ser produzido ali, e de
tempos em tempos os tropeiros traziam novidades para vender ou trocar pela produção local.
Os utensílios domésticos como mesas, bancos e cadeiras eram rústicos, e quase tudo era feito
de couro, como tamboretes e malas. O trabalho do negro entra como auxiliar do vaqueiro ou
mesmo como vaqueiro, nas plantações dos alimentos básicos, exercendo profissões ou
funções específicas. Também era importante nesse contexto o trabalho doméstico das
escravas que produziam tecidos, costuravam, cozinhavam ou exerciam outras atividades para
manter a fazenda.

1 As informações desse inventário foram retiradas do site www.persocom.com.br/cariri do pesquisador


genealógico Tarcísio Dinoá Medeiros.

26
A atividade de pastoreio, em si, não foi a principal atividade dos escravos nessas
fazendas, até mesmo pelos riscos de fuga que havia nas criações extensivas dos amplos
sertões. Suas funções principais parecem ter sido os trabalhos domésticos e agricultura de
subsistência. Participavam ainda desses trabalhos alguns agregados e índios, que segundo
Irinêo Joffily,estes tinham mais importância numérica no trabalho do pastoreio:

(...) Para semelhante modo de vida só era adaptada a raça americana; a africana
era inteiramente incapaz, e por isso a maior parte do pessoal de uma fazenda era
de raça indígena; havendo somente para o serviço doméstico, nas principais, entre
os escravos da fábrica alguns africanos.”(JOFFILY, 77, p. 238).

É evidente na afirmação de Irinêo Joffily o preconceito racial para com o negro,


acreditando na sua incapacidade de exercer tal função. Mas isso ocorreu mais por uma
questão estratégica, de manter os escravos sob o controle e vigilância. Embora os escravos
fossem em número reduzido, seu trabalho no criatório foi importante pelo suporte que davam
à manutenção da fazenda. Mesmo sendo em pequena proporção, os escravos e as relações que
estabeleciam com seus senhores, influenciavam de um modo geral o trabalho livre
depreciando-o e impondo-lhe duras regras (SÁ, 2005, p.58).

Na opinião de escritores paraibanos há divergências quanto ao papel do negro na


economia criatória do sertão.Para Horácio de Almeida a escravidão não teve importância
nessa região, pois foi diminuta ou quase não existiu no sertão (ALMEIDA, 1975, VII,
pp.63,64), porque a criação não necessitava de muitos braços, e os poucos que existiam eram
indígenas.Mesmo que ele se refira ao século XVIII, época em que o trabalho índio foi muito
usado, há evidências em documentos que mostram a presença regular do negro no sertão, no
período colonial (GALLIZA, 1979, p.24).Para Irinêo Joffily a atividade criatória no sertão foi
desenvolvida em sua maioria pelo vaqueiro e seus auxiliares (homens livres), que eram
recompensados recebendo uma parte do rebanho.Os poucos escravos que se inseriam,
entravam como trabalhadores domésticos.(JOFFILY, 1977, p.238).Ambos atribuem pouca
importância ao escravo na organização da economia sertaneja, atribuindo-lhe uma
incapacidade que seria própria da raça.

As pesquisas mais recentes têm mostrado que o lugar do escravo foi outro, mais
relevante, para a organização das fazendas sertanejas.De acordo com as pesquisas de Diana
Galliza em nove municípios paraibanos, no sertão a maioria dos escravos tinha uma profissão

27
ou função específica (agricultor, pedreiro, cozinheira, costureira, etc.), sendo imprescindíveis
ao bom funcionamento da fazenda.(GALLIZA,1979,pp.88,89).Os escravos eram responsáveis
pelo cultivo de uma lavoura de subsistência,bem como as obras estruturais necessárias à
criação de gado,como cercas,currais,açudes,etc.Para as historiadoras Maria do Céu Medeiros
e Ariane Norma de Menezes Sá, os escravos no Sertão se enquadram numa categoria
diferente :

(...) “Sob tais contingências, a maioria dos escravos no Sertão não eram escravos
produtivos mas de consumo.Isto significa que devem ser incluídos na categoria de
escravos domésticos.” (MEDEIROS,SÁ;1999;p.77)

Apesar da proclamada escassez de escravos no Sertão, municípios como Souza e São


João do Cariri chegaram a concentrar um número significativo de escravos, às vezes maior
que os municípios da área canavieira.Em 1884, nos instantes finais da escravidão, propício
para se desfazer dos escravos, curiosamente os municípios pecuaristas concentravam a maior
quantidade de escravos, poucos mais de 40% dos cativos da província (ver anexo), e São João
aparecia com 1.976 escravos; enquanto os municípios de economia canavieira concentravam
pouco mais de 30% dos escravos e a capital detinha 1.972 escravos. Um ponto que deve ser
levado em consideração é a mobilidade, pois os proprietários deslocavam seus escravos para
outras fazendas em outras produções, a depender da lucratividade.Os municípios da zona
canavieira foram bastante influenciados por essa evasão, devido às oscilações de preço do
açúcar no mercado externo.A concentração de escravos no Sertão foi significativa e aumentou
nos últimos anos da escravidão (ver anexo).

2.4 Uma instituição em ruínas.

O escravo também deu importante contribuição para que a escravidão chegasse ao fim
no Brasil. Era oneroso e preocupante para os senhores manterem uma vigilância permanente
sobre seus escravos, que poderiam fugir ou praticar “atos de rebeldia”. Na Paraíba não foi
diferente, pois no século XIX percebemos ações, em primeiro plano individuais e depois
coletivas, de resistência à escravidão (ALMEIDA,1978,V.II.p.201).As revoltas foram mais
difíceis de organizar, pela vigilância e controle permanentes a que estavam submetidos os
escravos.Essa resistência se deu de diversos meios: a formação de quilombos, as fugas que se
acentuam na seca 1877-79, na participação da sedição Quebra-Quilos em 1874, ou outros

28
meios que os escravos encontravam em suas experiências cotidianas para fugir do julgo da
escravidão.
Entre os principais quilombos da Paraíba estavam o do Cumbe (SÁ, 2005, p.43), em
terra hoje do município de Santa Rita, que foi desbaratado no começo do século XVIII,
quando foram presos 25 escravos; outro no engenho Espírito Santo, que foi arrasado pela
polícia da província da Parahyba em 1851. E nas proximidades de Princesa Isabel, existiu o
Quilombo do Livramento, sendo possível até os dias atuais identificar seus descendentes. (Sá,
2005, pág. 43). Esses quilombos localizavam-se em áreas de difícil acesso, e eram formados
por escravos que fugiam sozinhos e partiam para lá como ponto de apoio.Nesses lugares
viviam à margem da sociedade,precariamente, do pouco que produziam e dos assaltos na
vizinhança.
A fuga parece ter sido no Brasil a primeira forma de resistência dos escravos.
(CONRAD, 1975, p.20). Os jornais brasileiros no século XIX estavam cheios de anúncios de
senhores dando recompensas em busca de seus escravos fugidios. Os escravos que fugiam
para os remotos sertões da Parahyba encontravam lá refúgio junto aos fazendeiros que lhe
acolhiam para aumentar o número de trabalhadores. (MEDEIROS, SÁ, 1999, p. 77).A fuga
significou um desgaste constante para a escravidão,pelos prejuízos decorrentes e o medo da
violência negra.
A participação dos escravos na revolta do Quebra-Quilos em Campina Grande em
1874 foi muito relevante. Surgiram grupos armados de escravos, conscientes de sua condição
de escravizados, exigindo que lhes fosse entregue o “livro da liberdade”, chegaram a ameaçar
o presidente da Câmara, Bento Gomes Pereira Luna, e sua família em troca da posse do livro
de classificação de escravos. Em meio a uma revolta de homens livres pobres, os escravos
aparecem reivindicando sua liberdade, identificados também como pessoas expropriadas de
todos os direitos. Cerca de 400 escravos juntaram-se na cidade, com o objetivo de tornarem-se
livres a partir do que dissesse o Vigário Calixto e apoderando-se do livro de classificação de
escravos (SÁ, 2005, p.44). Porém como o padre declarou que não havia documento contra a
liberdade deles, e com a eminente perseguição armada dos proprietários, a maioria deles
voltou ao trabalho e outros fugiram.
No seu cotidiano o escravo desenvolveu muitas práticas de resistência à escravidão,
algumas delas bem embutidas. Fingia obedecer ao seu senhor com ar de humildade, mas na
verdade imaginava ações que pudessem prejudicá-lo. Na literatura da época, as novelas –
libelo de Joaquim Manoel de Macedo, no livro As vítimas-algozes, mostra muito bem a
delicada relação entre senhores e escravos e expressa o medo contra o “perigo negro”, e já em

29
1869 diante do aumento das fugas e assassinatos de senhores, propõe uma emancipação
gradual e sem prejuízo para os senhores. O quadro da escravidão por ele construído tenta
convencer da necessidade urgente de emancipação dos escravos, tendo em vista que a
escravidão tornava o escravo perverso e traidor – além de corromper a moral da sociedade.
Quais foram os principais motivos da decadência da escravidão na Paraíba?Após 1850
a lei Eusébio de Queiroz anti-tráfico a escravidão no Brasil começa a minar, porque cessa a
reposição dos escravos. Esse é o primeiro golpe, numa província pobre que já possuía poucos
escravos. No segundo momento, vemos que o tráfico interprovincial deslocou
aproximadamente 3.412 escravos paraibanos entre 1874-1884 para o sul do país, e a Paraíba
foi uma das províncias nordestinas que mais perdeu escravos no tráfico interno (CONRAD,
1975,p.351).Aqui ficaram, em maior quantidade, as mulheres, os velhos e as crianças,
enquanto a maioria dos homens em idade reprodutiva era vendido a altos preços, para
trabalhar nas lavouras de café.
A Paraíba que historicamente sempre teve poucos escravos, nas décadas finais da
escravidão, tem seus escravos reduzidos drasticamente. Isso se deve a vários aspectos, entre
os principais citamos: o tráfico interprovincial, as concessões de alforrias, as ações do
movimento abolicionista, as epidemias e as secas, etc. As leis que o Estado Imperial baixou,
como forma de abrandar os interesses conflitantes entre senhores e escravo, criaram um
campo fértil para que o próprio escravo lutasse por sua liberdade.
O historiador Luciano Lima, ao estudar as ações de liberdade promovidas pelos
escravos em Campina Grande, destaca dois casos especiais. São as histórias de Maria e
Bernardo, em que ambos ousam desafiar a legitimidade de seu cativeiro, alegando serem
livres porque entraram no Brasil depois de 1831. A lei de 7 de novembro de 1831 foi uma “lei
pra inglês ver”, feita pelo governo brasileiro,tornando o tráfico de africanos ilegal e
declarando livres os escravos que chegassem a partir dessa data.O fato é que esses escravos
passaram a usar a lei, no início da década de 1870, para questionar sua própria
escravidão.Aproveitaram-se de uma contradição legal do sistema,que nesse período tinha
maior receptividade na justiça.Na difícil busca pela liberdade, esses escravos souberam tecer
uma rede de solidariedade, envolvendo desde seus companheiros de cativeiro,libertos,rábulas
e até outros brancos simpatizantes da causa.Acerca das diversas possibilidades do escravo
conseguir sua liberdade,Luciano Lima assim se expressa:

“(...) Alguns, após anos de exaustivo trabalho, usaram de muita paciência e astúcia
para conseguir a tão sonhada carta de alforria. Outros, apoiados numa extensa rede

30
de solidariedade, foram às barras dos tribunais litigar a liberdade com seus senhores.
Os mais afoitos fugiram , cometeram pequenos furtos e até atentaram contra a vida
de seus senhores.A maioria buscou estabelecer cotidianamente, muitas vezes no fio da
navalha, espaços de autonomia econômica, social e cultural no horizonte do próprio
sistema escravista”.(LIMA,2003,p.48)

O tráfico interprovincial de escravos deslocou 3.412 escravos para fora da província


entre 1874 a 1884, (CONRAD, 1975, pp. 351, 352). Nesse período o número de escravos
diminuiu em 25%, de 25.817 para 19.165, e apenas o tráfico interprovincial contribui com a
metade dessa redução. O tráfico já ocorria há algum tempo desde 1830, porque a lavoura
cafeeira no Oeste paulista e o “mercado de escravos” no Rio de Janeiro compravam escravos
por todas as partes do país a preços altíssimos. O tráfico interprovincial atinge seu auge na
década de 1870, com a crise no setor açucareiro e no comércio do algodão da Paraíba, com os
produtores indo em busca dos enormes lucros com a venda dos escravos. (GALLIZA, 1979,
p. 118).
O tráfico interprovincial de escravos, segundo Robert Conrad (1975, p.83), criou uma
divisão regional no país em relação ao comprometimento com a escravidão, que vai resultar
na sua ruína total. Se no início as províncias permitiram e incentivaram o tráfico, depois viram
os perigos que este movimento representava, e passaram a impor altas taxas sobre os escravos
exportados ou importados. O Norte, despovoado de escravos e com escravos de menor
qualidade produtiva, já era em sua maioria favorável à transição para o trabalho livre. A
reação conservadora vinha de províncias que mantinham altas porcentagens de escravos,
mesmo nos instantes finais, como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro – estas
concentravam agora a maior parte dos escravos do país .
As declarações de alforria ocorreram com freqüência na Paraíba, e influíram
positivamente para a decadência da escravidão. Estas foram mais comuns nas décadas de
1870 e mais ainda na de 1880, quando se sabia que era inevitável o fim da escravidão. Até
chegar a sua formulação definitiva de próprio punho do senhor e o posterior registro em
cartório, foi um processo que envolvia um jogo de interesse de ambas as partes. Curiosamente
percebe-se na década de 1880 um aumento considerável de alforrias, muito maior de que as
concedidas pelo fundo de emancipação. Talvez uma tentativa, de última hora, de preservar
parte de seu poder com os ex-escravos.

Para Sidney CHALHOUB (1990),o tráfico provincial foi responsável por aprofundar as contradições do
sistema escravista, aumentando sobretudo a pressão exercida pelos escravos nas províncias do sudeste.

31
TABELA II
ALFORRIAS ARROLADAS EM NOVE MUNICÍPIOS PARAIBANOS 1850-1888

TIPO DE ALFORRIA Nº DE ALFORRIAS %


GRATUITAS 479 45,5
COMPRADAS 270 25,6
CONDICIONAIS 199 19
FUNDO DE EMANCIPAÇÃO 44 4,2
POR TESTAMENTO 30 2,9
SEM DADOS PRECISOS 13 1,2
AÇÃO JUDICIAL 17 1,6
TOTAL 1.052
Fonte: (Galizza, 1979, p.143).

Em seu estudo sobre a decadência da escravidão a historiadora Diana Galliza


contabilizou 1.052 cartas de alforrias no período de 1850 a 1888 em nove municípios
paraibanos , informação que oferece um panorama das manumissões na Paraíba. Destas
cartas quase a metade foram gratuitas (479), 270 foram alforrias compradas - em sua maioria
autocompra - e as alforrias condicionais também foram consideráveis, chegando a 199 cartas.
Com menos importância aparecem outros meios de conseguir a alforria: o fundo de
emancipação (com 44), por testamento (30), sem dados precisos (13) e por ação judicial (17).
(GALLIZA, 1979, pp. 142, 143). Que inferências podemos ter com essas informações? Que
mesmo ao conceder a alforria gratuita o senhor tinha interesse em manter a fidelidade do
escravo para continuar trabalhando consigo.A maioria dos escravos consegue a alforria como
uma “concessão” senhorial (45,5%).Mas boa parte dos escravos toma parte ativa na busca por
sua liberdade, ao comprá-la ou brigando na justiça (27,2%). Fica claro que os senhores
querem obter algum benefício ao perderem seus escravos, seja em trabalho ou em dinheiro,
tornando o processo de libertação doloroso e cheio de revezes.Os proprietários queriam retirar
dos escravos o que pudessem de lucro e diminuir os prejuízos com a perca de seus escravos.

Estes dados são relativos aos municípios de João Pessoa,Areia,Mamanguape,Pombal,S.João do


Cariri,Pilar,Bananeiras, Guarabira e Piancó.

32
As epidemias, como a cólera, que atingem a Paraíba com mais intensidade após a
década de 1850, também vem reduzir o número de escravos. Os escravos eram a parcela da
população mais susceptível às moléstias, devido às más condições de higiene, alimentação
insuficiente e as longas jornadas de trabalho. O surto epidêmico de cólera matou 2.982 cativos
na Paraíba, o que significava 10,4% do número de escravos existentes em 1852. (GALLIZA,
1979, p. 139). As condições de vida dos escravos não eram boas, de modo que não se
reproduziam rápido como a população livre; e os indivíduos em idade não-produtiva como
crianças e velhos eram desprezados pelos seus senhores.
As secas desestruturaram a economia paraibana em vários períodos, foram momentos
de crise social e desorganização da produção. Em particular nos interessa a seca 1877-79
nesse momento de decadência da escravidão, anos em que o tráfico interprovincial atinge o
seu auge (GALLIZA, 1979, p. 119). A seca afetou com mais intensidade o sertão, de onde
partiram milhares de pessoas com destino ao litoral. O presidente da província em 1878
Ulisses Machado Viana, calculou que nesse ano 35.000 retirantes ocuparam a capital
(GALLIZA, 1979, p. 130). Nesse momento de crise, muitos senhores se desfizeram de seus
escravos, vendendo-os no tráfico interprovincial, em um momento que o preço do escravo
sobe ao topo para mais de dois contos de réis (GALLIZA, 1979, p. 112). Foi comum nesse
momento senhores abandonarem seus escravos, as fugas dos escravos, e até mesmo os roubos
provocados por escravos em busca de comida.
Na Paraíba o movimento abolicionista atua com mais intensidade na década de 80 e
encontrava-se restrito a três centros urbanos (a Capital, Areia e Mamanguape), que constituem
“sociedades emancipadoras” e sofrem influências político-culturais do Recife. (GALLIZA,
1979, pp. 195, 196). Acreditamos que o fenômeno das alforrias gratuitas e sem condições,
concedidas em massa, sobretudo na última década da escravidão, foram tentativas de os
senhores manterem os escravos ao seu lado e reforçarem o seu paternalismo com a gratidão;
ou simplesmente se desfazerem de seus escravos, já que agora tinham baixo preço, e o tráfico
interprovincial estava proibido; a abolição era eminente e o escravo não era mais lucrativo.
Esse movimento emancipatório na Paraíba começa no interior, em Areia, para depois
chegar à capital. Desde a década de 1870, momento de crise econômica em Areia, a
Emancipadora Areiense promoveu a emancipação gradual e sem desrespeitar o “direito à
propriedade”. Na década de 1880, como no restante do Brasil, o movimento radicaliza
propondo cartas de alforria, mas também incentiva as fugas e divulga as suas idéias em
jornais; suas propostas encontram um campo fértil, pois nesse período as cartas de alforria
dobram para 214 em Areia (1884-1888) em relação ao período de 1872-1880 que teve 72

33
alforrias. (GALLIZA, 1979, p. 190). Por causa da crise econômica da cana-de-açúcar e das
idéias emancipacionistas, a cidade de Areia tem um movimento abolicionista atuante,
conseguindo promover alforrias em massa com a ajuda do representante da Igreja Católica.
Como em outras partes do Brasil houve na Paraíba reações conservadoras, de senhores
que não admitiam perder os seus escravos. Até os últimos instantes tentaram obter lucros ou
outras concessões de seus escravos. Mesmo com uma população reduzida de escravos, sendo
cada vez mais esvaziada pelo tráfico interprovincial, pelas secas e leis imperiais, ainda assim
alguns representantes políticos não se empenharam em defender o fim da instituição
escravista. Porém o esvaziamento de escravos, provocado pelo tráfico interprovincial, forçou
os donos de terras a habituar-se ao trabalho de homens livres.

34
CAPÍTULO III EXPERIÊNCIAS ESCRAVISTAS EM SÃO THOMÉ

3.1 Uma primeira abordagem

Os documentos referem-se a cerca de 70 escravos, em sua maioria registrados no


cartório de paz de São Thomé,oriundos de cidades pernambucanas ou de São João do
Cariri.Os senhores percorriam longas distâncias, desde suas fazendas até as povoações, para
registrar a compra no cartório de São Thomé e para matricular seus escravos na coletoria de
São João.Por isso os registros abrangem uma área que vai desde lugares circunvizinhos do
Cariri até vilas do Pajeú e outras mais de Pernambuco.Esses negócios realizados entre
moradores da povoação de São Thomé e pessoas desses lugares demonstram uma certa
ligação comercial, principalmente com São João e as vilas pernambucanas de Ingazeira e
Flores.
De acordo com o primeiro censo do Império em 1872, a vila da Alagoa do Monteiro, à
qual o distrito de paz de São Thomé estava ligado, teria uma população livre de 9.891 pessoas
e 611 escravos, com uma porcentagem de 6,2% de escravos (GALLIZA, 1979, p.34). Essa
quantidade considerável de escravos na vila era devido à prosperidade com o plantio do
algodão e por ser “passagem obrigatória de caravanas de almocreves que cortavam caminho,
encurtando as distâncias em direção ao Recife” (NUNES, 1997, p.61,62).
Do total de escravos pesquisados as mulheres representaram 60% do total, indicando
haver uma maior tendência para o trabalho doméstico nas fazendas, enquanto os poucos
homens entravam como auxiliares nas obras estruturais (cercas, casas de taipa, barragens,
etc.) e no trabalho de campo. Existe outra explicação para a maior proporção de mulheres no
conjunto de escravos pesquisados. O tráfico interprovincial havia retirado da região
preferencialmente os homens, esta característica também se observa na Paraíba com uma
maior proporção feminina entre sua população escrava na década de 1880 (CONRAD, 1975,
p.347).
As principais atividades econômicas da região foram a criação de animais, o plantio de
algodão e a agricultura de subsistência. Todas essas atividades não necessitavam tanto do
trabalho escravo, usando-se com maior freqüência diversas formas de trabalho livre como:
vaqueiros, agregados, meeiros, sitiantes ou trabalhadores sazonais. Em um mundo rural como
este, há citações recorrentes a disputas judiciais, por causa de empréstimo de animais (cavalo,
égua) para viagem e a não devolução ao dono (livro de protocollo do juízo de paz); as

35
referências à venda de couro de animais e a “fazendas de criar” nos documentos, mostram a
criação como uma das principais vocações do lugar. Havia na povoação em 1876 uma
“Bulandeira Machina Prensa” (escritura de compra e venda), a qual foi vendida uma metade
por 300$000 réis, apontando uma considerável produção de algodão e a necessidade de
trabalho braçal no fabrico e prensa da lã. Há ainda citações a “roçado de mandioca” ou a
propriedades bem equipadas com “caza de morada, outra de Engenho, um Assude, um
cercado e mais bemfeitorias” (escrituras de compra e venda).As casas de farinha e os
engenhos de rapadura, destinados ao consumo próprio, e, sobretudo, os trabalhos domésticos
de suporte às produções principais, parecem ter sido os trabalhos desenvolvidos pelo escravo
no lugar.
De tal modo que foram poucos os escravos masculinos registrados no cartório de paz
de São Thomé que ficaram na povoação. Entre os anos de 1873 a 1887 foram em torno de
setenta escravos, porém a maioria foi vendida para outros lugares da Parahyba do Norte, de
Pernambuco ou no tráfico interprovincial. Até mesmo os senhores detentores de mais posses,
com muitas terras e prestígio social tinham em média cinco ou seis escravos, apressando-se
em vendê-los nos momento de crise.
Em 1873, ano de criação da Vila de Alagoa do Monteiro, pelo Art.1º da Lei 457 de 28
de junho de 1872(NUNES, 1997, p.57), e também quando começam os registros com a
criação do juizado de paz de São Thomé.A partir dessa data, por determinação imperial, os
senhores têm a obrigação de matricular seus escravos nas coletorias, sob pena de um ano após
o encerramento do alistamento, perderem a posse legal de seus escravos, de acordo com o
Art.8° da Lei do Ventre Livre(CONRAD,1975,p.369).Todas as trajetórias aqui analisadas se
inserem nesse período da escravidão, em que vigoraram as imposições legais da Lei do Ventre
Livre e seus efeitos na relação senhor-escravo.

3.2 As vendas de escravos.

As escrituras de compra e venda de escravos foram os documentos mais abundantes na


nossa pesquisa. Mas também vimos documentos diferentes com o intuito de transmitir a posse
dos escravos tais como: procurações para vender ou matricular, procuração para permutar,
escritura de doação, papel de dote, procuração para vendas interprovinciais, e até mesmo uma
escritura de ratificação. De tal maneira que estas práticas de compra e venda de escravos
faziam parte do cotidiano das pessoas em São Thomé, bem como do espólio de inúmeros
herdeiros.

36
Na década de 1870, com o aumento do preço dos escravos (ver
anexos),encontramos alguns com idades entre vinte a trinta anos, avaliados em torno de um
conto de réis, quantia bastante significativa para a época. O preço pago pelo escravo
representava um alto valor investido. Se compararmos o valor do escravo em melhores
condições com os outros bens, veremos que, muitas vezes, um escravo valia a metade de uma
grande propriedade de terras com muitas benfeitorias, valia mais que uma parte de um sítio e
equivalia ao valor de várias casas ou animais (veja tabela abaixo). O escravo era um alto
investimento, do qual não se tinham garantias, mas disponível como bem de reserva nos
tempos de crise.

TABELA COMPARATIVA DE PREÇOS


ITEM PREÇO
ESCRAVO CANUTO, 19 ANOS, 1878 800$000
METADE DE UM SÍTIO, EM 1873 500$000
CAZA DE TIJOLO NA POVOAÇÃO, 1873 250$000
DUAS PARTES DE UMA DATA, 1873 1:600$000
TRÊS CARGAS DE LÃ 250$000
UM BOI 100$000
UMA VACA E TRÊS CRIAS 120$000
ALUGUEL DA VIAGEM DE UMA ÉGOA 20$000
ALGUMAS PEÇAS DE FAZENDA 14$200
Quadro organizado a partir dos documentos cartorais de São Thomé.

__________________________

37
Para se ter idéia dos altos preços que os escravos atingiram nesse período ver Sidney CHALHOUB,Visões da
Liberdade,1990,p.74.
Ao passar uma escritura de compra e venda o vendedor dava a posse definitiva para o
comprador. Mas ambos não estavam livres de outras obrigações legais. O vendedor deveria
apresentar os documentos do escravo, tais como escritura de compra e certidão de matrícula, o
que nem sempre se fazia ou nem sempre esses documentos estavam regularizados – por
exemplo, a matrícula poderia estar ainda em nome do senhor anterior. O comprador por sua
vez, deveria pagar os emolumentos (em sellos com a efígie do Imperador) e a meia siza de
escravos para a Thesouraria Provincial na coletoria da vila de São João. De acordo com o
período, os anos de 1877-79 foram onde as vendas se intensificaram (39 escravos vendidos
em apenas três anos), sobretudo no tráfico interprovincial, e devido aos efeitos da terrível seca
de 1877.
A mobilidade dos negócios da escravidão era enorme. A maioria desses escravos não
permaneceu na povoação de São Thomé, alguns eram vendidos daqui para fora, outros tinham
no cartório de paz do lugar apenas um ponto para registro de sua negociação (com ambos os
senhores sendo de outros lugares) isso talvez ocorresse pelo baixo poder aquisitivo dos
moradores da povoação, diante do alto preço dos escravos na década de 1870. Uma parte
considerável dos escravos que por aqui passavam ou até mesmo ficavam, eram originários,
em primeiro lugar, da vila de Ingazeira e Flores em Pernambuco, e segundo plano de São João
e de Monteiro.
Há poucas referências aos escravos nas escrituras e em outros documentos, no caso
das escrituras são detalhes de interesse comercial, com uma que diz:

(...) “como vendedor Francisco José Pereira e como comprador Saturnino Bezerra
dos Santos moradoures neste Destricto, reconhecidos pelos próprios de que faço
menção, e pelo mesmo vendedor foi dito, em presença de duas testemunhas abaixo
nomeadas, e assignadas, que ele é senhor e possuidor de hum escravo pardo de
nome Ponciano de quarenta e oito anos de idade, solteiro, natural d`esta Província
e por que o possui livre e desembaraçado de qualquer embargo, penhora ou
hypotheca, com toudos os seus achaques novos e velhos, vendi, como de facto
vendido tem de hoje para sempre por meio desta ao comprador Saturnino Bezerra
dos Santos, por preço e quantia de quientos[sic] mil réis, o que logo lhe foi
entregue pelo dito comprador em moeda corrente deste Império, pelo que lhe dava
plena e geral quitação de pago e satisfeito para mais em tempo algum lhe não ser
pedido por si, e nem por seus herdeiros; e que toda posse e domínio e senhorio,

38
que no dito escravo tem tido todo sede e transpassa para a pessoa do comprador,
que o gozara como seo.(Livro de Notas Nº1,1873).”

Essas descrições breves da vida dos escravos, analisadas em conjunto, podem nos
levar a algumas inferências. No caso do escravo Ponciano, vendido em 1873, por um
negociante de escravos local de nome Francisco José Pereira, então vivia na povoação, para
depois ser escravo do Major Saturnino. Este grande proprietário de terras e homem de
influência na povoação é citado por Irineu Joffly em suas crônicas de viajem ao sertão. Em
sua descrição Irineu mostra as atividades da principal fazenda do major, a fazenda Riachão:
uma grande e confortável casa de vivenda, uma grande várzea com um quilômetro de algodão
plantado, cultivo de cana de açúcar e a pretensão de construir uma coudelaria.
(JOFFILY,1977,pp.398-9). Sendo assim, o escravo Ponciano, já com idade média, poderia ser
usado nas produções agrícolas e nos trabalhos domésticos da fazenda.
Deixando de lado as personagens e analisando a transação em si, notamos que o
escravo foi classificado em alguns inventários como “bem semovente” e que para a boa
realização da venda do escravo, o vendedor não poderia ter nenhum impedimento legal ao
dispor de sua “propriedade móvel”. Outro aspecto que chama à atenção na venda são as
palavras “com toudos os seus achaques novos e velhos”, o que demonstra que ao aceitar os
termos da escritura o comprador aceitava os possíveis defeitos morais, vícios e doenças do
escravo. Então, o comportamento do escravo e as suas condições físicas seriam pontos
considerados pelos senhores no momento da compra.
Em algumas negociações notamos a consideração dos senhores pelas relações
familiares dos escravos e a observância das questões legais. Como em 1877 o senhor Victorio
José Leitão, morador na povoação, vende um lote com três escravas, sendo Veneranda com
trinta e dois anos, mãe de Francisca com doze anos e Margarida com sete anos, por quantia de
hum conto e duzentos mil réis todas três, a Carlos Gonçalves da Costa Lima, morador em
Bom Jardim de Pernambuco. A venda acontece dentro dos preceitos da lei de 1871, mantendo
a mãe junto a suas filhas menores. O único casal registrado em escritura de compra e venda,
eram pertencentes ao padre Francisco de Ananias de Farias Castro, os escravos Basílio e
Manoela, ele com quarenta e sete anos natural de Pernambuco e ela com vinte e sete anos
natural do Ceará. A maioria das uniões entre os escravos foi informal, apenas um
representante da igreja faria questão de manter uma união estável e sacramentada.
A maior negociata de todas, foi feita por Veríssimo de Souza Lima ao vender um seu
“escravinho”. Em 1877 o senhor passa uma procuração para “assignar a escriptura de venda

39
de um escravinho de nome Pastor de nove annos”. No mesmo documento existem pistas para
duvidar da idade do escravo, pois “sendo dito escravinho Pastor filho de sua escrava de nome
Luzia que elle outorgante não possui mais quando deo a matrícula dito escravinho”. Estamos
diante de um caso de reescravização de um “ingênuo”, vendendo o escravinho para o seu
próprio filho.
As procurações feitas pelos senhores serviram para representá-los em algumas
situações ou até conceder permissão a outrem para vender seus escravos e passar escritura de
venda.Os senhores passavam procurações nas mais diversas situações: para a venda de
escravos na região ou no tráfico interprovincial, para requerer ou dar baixa em matrícula de
escravo na coletoria, para busca de escravo fugitivo, para assistir aos termos de uma permuta
de escravos, etc.Um caso exemplar é do proprietário do sítio Carnaúba no termo do Monteiro,
o senhor Marcolino de Freitas Barros, também citado por Irinêo Joffily como grande produtor
de rapadura (JOFFILY, 1977, p.319) tentando por duas vezes vender alguns escravos seus.
Em 1875 este senhor passou duas procurações, uma em fevereiro e outra em outubro para
vender o escravo “de nome Roque, crioulo, solteiro de idade 18 anos como conta da matricula
que acompanha”, sendo que na primeira procuração seu representante é Manuel Ferreira da
Silva e na segunda é o nosso conhecido Francisco José Pereira quem assume o negocio da
venda. Em outra ocasião, já em 1878, acontece o mesmo e Marcolino tenta por duas vezes
vender uma escrava, primeiro através do negociante local de escravos Manuel Ferreira da
Silva no mês de agosto, e não sendo bem sucedido recorre a uma rede mais ampla de
negociantes:

(...) Disse que pela presente constituíam seus bastantes procuradores aonde com
esta se apresentarem, aos senhores Thephilo Rodrigues de Freitas e na cidade do
Recife a João Nepomuceno da Silva e João Pedro de Mello para em nome dele
outorgante venderem a sua escrava de nome Vicência de côr parda, de idade 24
anos, solteira, matriculada no município de São João... podendo ditos seus
procuradores assignarem a escritura de venda da dita escrava”.(Livro de Notas
Nº3,1877).

Neste caso de sucessivas tentativas de vendas, percebe-se que o senhor tenta vender
seus escravos primeiro no âmbito local, e não sendo bem sucedidos, recorre aos negociantes
que fazem parte da rede do tráfico interprovincial. A ânsia por vender os escravos se devia aos
efeitos da forte seca 1877-79 e aos autos preços oferecidos pelo trafico interprovincial
(GALLIZA, 1979, p.119). Durante a seca de 1877 na povoação de São Thomé as pessoas

40
chegaram a comer o couro das malas e os mais abastados fugiram para a região do Pajeú -
única que ainda guardava suprimentos de água.
Foram inúmeras as procurações de tráfico interprovincial citando os negociantes
locais, pessoas ou companhias do Recife e do Rio de Janeiro. Em alguns casos esses senhores
pagavam impostos para vender seus escravos para fora da província, como o direito de
procuração e o direito de exportação. Os donos de escravos pernambucanos não pagavam
nenhum imposto para venderem seus escravos, não sabemos por qual motivo. As procurações
citavam as pessoas envolvidas na rede do trafico interprovincial, como uma passada de 1879
pela D.Senhorinha Francisca Xavier, da vila de Ingazeira:

(...) “Disse que pela presente constituía seus bastantes procuradores aonde com
esta se apresentarem aos senhores Francisco José Pereira, na cidade do Recife, a
Clementino dos Santos Lineu Simente, Augusto Octaviano de Sousa, Joaquim
Nicoláu Ferreira, João Pedro de Mello, Monteiro & Correia, Gratuliano dos
Santos Victal, Comendador Antonio José Rodrigues de Sousa, em Rio de Janeiro, a
Domingos Alves Guimarães Cutia, Gedeião de Araújo Jacobina, Aguiar Iglesias e
cia e Amaral & Santos, para em nome dela outorgante venderem o seu escravo de
nome Vicente, de cor pardo, idade 17 anos, solteiro, aptidão boa”.(Livro de Notas
Nº4,1879).

A maneira como Sidney Chalhoub descreveu o tráfico interprovincial foi como uma
sucessão de vendas, desde o proprietário inicial até o seu destino final, com procurações
substabelecidas por vários negociantes nas quais a finalidade era evitar o pagamento do
imposto de transferência (CHALHOUB, 1990, pp.43,44). De acordo com essa lógica,
entendemos que estas procurações nomeavam vários possíveis negociantes, desde o
negociante local até aqueles que faziam parte da rota que seguia para Recife e o Rio de
Janeiro. A operação envolvia varias pessoas e companhias especializadas na venda de
escravos, como a Aguiar Iglesia e Cia do Rio de Janeiro que mantinha importantes negócios
na Paraíba (GALLIZA, 1979, p.121). Esse movimento representava a violência do sistema
contra o escravo, pois além de desenraizá-lo ainda o submetia constantes mudanças de
ambientes e atitudes senhoriais, frente às quais ele pouco poderia resistir.

41
______________________
Essas informações foram dadas em entrevista, por Antônio Aprígio Pereira .

Quando os escravos se transformavam em espólio, poderiam ser divididos por


inúmeros herdeiros, sendo objeto de brigas renhidas ou ficando com senhores condôminos.
Essa é a situação de uma procuração, passada em 1879, para a venda no tráfico
interprovincial:

(...) “Procuração bastante especial que fazem João Albino de Barros,Severino de


Albuquerque Barros,José Joaquim das Neves,Dario Rodrigues de Freitas,Basilia
Rodrigues de Freitas e Joaquina Rodrigues de Freitas... que pela presente
constituião seus bastantes procuradores aonde com esta se apresentarem...
venderem a sua escrava de nome Nazaria de côr parda, idade dezessete
anos,solteira... que pagou a mentecapita [sic] Delfina Maria do Espírito Santo e
seus filhos a importância de vinte e cinco mil réis do direito de procuração para a
venda da escrava.(Livro de Notas Nº 4,1879)

Na presente situação os herdeiros passaram a gerir o negócio da venda da escrava,


tendo em vista a suposta incapacidade mental da mãe. Tantos herdeiros talvez vislumbrassem
no tráfico interprovincial um lucro maior para ser rateado. E o período da seca não era uma
situação confortável para manter escravos.
Os senhores também fizeram permuta de seus escravos. Em duas procurações
encontramos vestígios dessa negociação. Em novembro de 1875 se procedia os “termos de
uma permuta” de escravos,realizada no Juizado de Orphãos de São João.Uma das partes
enviou dois procuradores para representá-los, tal como fez Antonio Pedro dos Santos “como
consenhor do escravo Pedro assistir aos termos de permuta do mesmo escravo, com os
escravos Isabel e Hipólito, pertencentes ao Cap. João da Santa Cruz Oliveira”.O tutor dos
orphãos também consenhores de Pedro, o senhor Manoel Palmeira de Souza, também nomeia
um representante para defender os interesses dos pequenos.Eram vários donos do mesmo
Pedro que pretendiam trocá-lo por um casal, de mais idade.Essa negociação talvez fosse a
solução para a divisão do capital investido pelos consenhores de Pedro e outros possíveis
conflitos dessa posse compartilhada.
Por fim, temos o contrário de tudo visto até agora, uma negociação má sucedida e
incompleta. Trata-se de duas escrituras de ratificação feitas em 1886 por vários filhos e um
sogro, em nome da falecida D.Paula Maria do Carmo. Esta senhora vendeu em 1884 duas
escravas suas de nome Rosenda e Jovina, para donos diferentes na vila de São João. O

42
problema a ser corrigido é que em vida a dita senhora não passou escritura de venda das
escravas, mesmo recebendo os pagamentos e as escravas estando em poder dos novos
donos.Os herdeiros, como sucessores do direito de propriedade, reconheceram a posse dos
outros senhores, passando as escrituras de ratificação para ambos senhores e transmitindo a
posse legal das escravas em 1886.Como disse Chalhoub “há muita coisa a destrinchar sobre
os negócios da escravidão” (1990, p.48).

3.3 Os “ingênuos”.

Dentro da política imperial de emancipação gradual, a lei de 28 de setembro de 1871


foi um importante passo para o reconhecimento legal da liberdade dos escravos (CONRAD,
1975, p.366-399).A Lei do Ventre Livre garantia ao escravo a posse de um pecúlio, de
comprar a sua liberdade em caso de disputas judiciais, assegurava a união familiar do escravo,
e o mais importante, libertava todos os escravos nascidos a partir daquela data – eram os
chamados “ingênuos”.Esta lei determinava um registro nacional de todos os escravos, com os
ingênuos sendo registrados em livro especial.Ainda de acordo com essa lei, o senhor era
obrigado a criar o ingênuo até os oito anos, quando deveria optar por uma indenização do
governo ou pelo trabalho do menor até os vinte e um anos.Contudo essa lei não foi garantia
contra as pretensões dos senhores de reescravizar os menores, ou de simplesmente burlar a lei.
Os donos de escravos em São Thomé burlaram a lei, quando registraram os ingênuos
com mais idade para serem considerados escravos ou ao separá-los de sua mãe através das
vendas.O senhor Francisco Ferreira dos Santos e D. Antônia Barboza do Nascimento,
moradores no sítio Suçuarana do termo de São João, venderam vários escravos na
povoação.Ao longo de duas décadas (1860-1880) possuíram dez escravos, sendo oito
mulheres, várias delas crianças menores de doze anos.Em 1875 vendem uma escravinha de
nome Francisca, com oito anos, não se sabe se a idade era verdadeira, mas em todo caso foi
vendida separada de sua mãe.Em 1879 e 1881, são vendidas no tráfico interprovincial,
respectivamente Adriana e Delfina, maiores de vinte anos e, portanto, mães das
escravinhas.Ao separar as filhas menores de suas mães, estavam em contradição com a Lei do
Ventre Livre Art.1º,parágrafo 5º: “No caso de alienação da mulher escrava,seus filhos
livres,menores de doze annos, a acompanharão, ficando o novo senhor da mesma escrava
subrogado nos direitos e obrigações do antecessor(CONRAD,1975,p.367)”.
Vimos, por exemplo, uma escritura pública de doação feita por Francisco Ferreira e
sua mulher D.Antonia em 1876, de “uma escrava de nome Maria de cor parda de idade seis

43
anos filha de nossa escrava Adriana no valor de duzentos mil réis” (Livro de Notas
Nº2,1875), para Filismina Maria da Conceição de São Thomé.Estes senhores deveriam ser
muito amigos, se não fossem parentes.Mas estavam em desacordo com a lei, pois venderam a
mãe no tráfico interprovincial e doaram a ingênua como se fosse uma escrava. Outro aspecto
curioso é o registro da idade da escravinha, a qual pela idade teria nascido exatamente um ano
antes da Lei do Ventre Livre.Encontramos alguns casos parecidos de registro da idade de
crianças escravas.É muito provável que fossem mais novos, e seus senhores usaram desse
artifício para não concedê-los benefícios como “ingênuos”.
Em meio aos negócios da escravidão, surgem diversas relações, algumas bem
interessantes e diferentes. Como no caso de “hum escravinho pardo crioulo [sic] de nome
Antonio de idade seis annos, filho de nossa escrava Maria” (Livro de Notas Nº4,1879), o qual
é concedido em um “papel de dote” por Francisco Braz de Macedo e sua esposa Maria José da
Conceição, em 1879, a seu genro José Pereira da Rocha e filha Feliciana Gomes Barbosa. O
escravinho, no valor de duzentos mil réis, deveria ser entregue ao casal no dia do casamento e
entrar no inventário dos doadores. Nestas condições, o escravo foi apresentado como um
valioso bem a ser dado aos nubentes herdeiros, sendo oferecido como dote pelo pai da noiva.
Como seria a vida desse escravinho ingênuo com seus novos senhores? É muito provável que
tenha sido tratado como escravo, vivendo distante da mãe, e mesmo pelas evidências do
descumprimento das leis nos negócios senhoriais aqui observados.O dote foi a maneira dos
senhores preservarem o ingênuo como patrimônio familiar, ao transmiti-lo para seus herdeiros
como se fosse escravo.

3.4 As cartas de alforria.

Buscamos também nessa pesquisa, investigar os caminhos trilhados pelos escravos


para conseguirem sua liberdade. Nesse sentido, encontramos algumas “cartas de liberdade” e
uma procuração para busca de escrava “que evadio-se da posse do outorgante”, para alforriar
ou receber indenização do fundo de emancipação.As ações dos escravos variaram entre a
busca por maior autonomia dentro dos limites impostos pela escravidão e a resistência total às
condições estabelecidas.A maioria (5 escravos) conquistou a sua liberdade dentro dos limites
da escravidão, através de cartas de alforria concedidas pelos seus senhores.
Encontramos poucas cartas de alforria, a maioria localizada na década de 1880. Esses
documentos foram um instrumento usado pelos senhores para assegurar sua dominação e a
gratidão do escravo, no momento em que a abolição era iminente. Uma alforria condicional

44
expressa bem a permanência dos laços de dependência, estabelecidos pelo senhor mesmo após
a liberdade:
(...) “em meu cartório compareceo Maria escrava de Germano Ferreira da Costa
morador no Saco deste termo e pedem que lançasse em notas a carta de liberdade
ou alforria,a qual é do teor seguinte digo eu abaixo assignado que entre os mais
bens que possui de bom e justo título,bem assim uma escrava molata de nome
Maria de idade mais ou menos trinta anos a qual escrava pelos bons serviços que
nos tem prestado a suor e fidelidade com que sempre mostrou serviço por isto
concedo sua liberdade de hoje para sempre, e por caridade pode já a dita escrava
gozar de sua liberdade como se livre nasceu do ventre materno, somente com a
condição de me acompanhar enquanto eu for vivo e quiser obediente como sempre
tem sido.(Livro de Notas, 1886,2º cartório de São João do Cariri).”

Esta carta de alforria condicional foi escrita pelo senhor Germano em 1879, mas
somente foi registrada definitivamente em cartório em 1886. Essa foi a estratégia do senhor
para proteger-se de uma eventual insubordinação de uma escrava que se considerasse “livre”
antes do tempo e uma maneira de aplacar a insatisfação da escrava, conseguindo mais alguns
anos de trabalho e fidelidade. Enquanto isso Maria vivia, por muitos anos, a angustiante
situação de ser liberta e não poder gozar a liberdade de fato.
Uma carta de liberdade em particular chama à atenção, pelos questionamentos que
suscita. É a carta de liberdade do mulato Vicente de vinte e sete anos, natural de Flores, no
Pernambuco, avaliado em setecentos mil réis.O escravo Vicente foi libertado em 1879, sem
condição alguma imposta por Antonio Leite Monteiro, o que já causa certa estranheza, pois o
escravo é de alto valor e está em idade reprodutiva.O recibo de compra do escravo registrado
logo acima da carta de alforria fornece indícios para desvendar esse mistério.O recibo foi feito
no mesmo dia da carta de alforria,em 4 de julho de 1879, e nele o senhor Francisco José do
Prado Chavier reconhece ter recebido setecentos mil réis de Antonio,pelo seu escravo
Vicente.Até ai nada demais, mas continua o problema: o que teria motivado Antonio Leite a
comprar um escravo tão valioso e logo em seguida dar-lhe a liberdade sem nenhum contrato
de prestação de serviços?Vimos em outros documentos que Antonio Leite Monteiro foi
escrivão de notas do cartório de paz de São Thomé e também negociava escravos na região.
Como a alforria que ele passou para Vicente não previa nenhuma condição (ver anexos),
entendemos que houve um acordo tácito entre o negociante de escravos Antonio e o escravo
Vicente.O escravo Vicente poderia ter um pecúlio consigo, e agora estaria diante da

45
possibilidade de morar numa terra nova e juntar dinheiro para pagar o que restava de sua
liberdade.
Em uma carta de liberdade incondicional, o major Saturnino Bezerra dos Santos
alforria a sua escrava Antonia em 1884, e faz menção às relações familiares da escrava:

(...) “Por este por mim abaixo assignado, declaro que sou Senhor e possuidor de
uma escrava de nome Antonia, mulata de idade de vinte annos, filha de minha
escrava Secundina, a qual Antonia de minha livre e expontanea [sic] vontade e sem
constrangimento de pessoa alguma, concedo desde já a liberdade. (Livro de Notas
Nº7,1883)”.

Apenas um mês se passou entre a escrita da carta de alforria pelo senhor e a definitiva
confirmação com o registro em cartório.Talvez pouco mudasse na condição de vida da
escrava Antonia, continuando junto a sua mãe servido ao major Saturnino. A família devia
servir esse senhor há muitos anos, e a carta de alforria para a filha era uma estratégia de
conseguir a gratidão de todos e mantê-las servindo-o mesmo após a abolição. Contudo, a carta
de alforria abria a possibilidade de Antonia lutar por sua liberdade já legitimada.

3.5 Os rebeldes.

Porém não foram todos os escravos que seguiram as regras do jogo estabelecidas pelos
senhores. Alguns escravos partiram para uma resistência mais anunciada. Isso aconteceu em
1875, com a escrava Maria, pertencente a Manoel Ricarte Bezerra, o qual passa uma
procuração com a finalidade de trazer de volta a escrava:

(...) “Manoel Ricarte Bezerra morador neste districto disse que pela prezente
constituía especialmente seus bastantes procuradores na Comarca de Alagoa do
Monteiro e no termo de São João a Luis Alves de Araújo, Manoel Porfírio dos
Passos Viana e Serviliano Farias de Castro para em nome dele outorgante como se
proprio fosse, resgatarem em juízo ou fora delle a escrava Maria de cor fula de
idade dezenove anos que evadio-se da posse do outorgante e bem assim chamar a
conciliação os resistentes que pugnarem a entrega da dita escrava.(Livro de Notas
Nº2,1875)”.

Enquanto a escravatura durou, o problema dos fugitivos impôs um desgaste


permanente das energias e bens da classe proprietária de escravos (CONRAD, 1975, p.20).A

46
fuga talvez fosse a solução imediata vista por Maria para um cativeiro violento ou muito
arbitrário.Era a negação total do cativeiro e de sua legitimidade, da parte da escrava.
Um outro escravo, de nome João, também provocou muita dor de cabeça em seu
senhor. O escravo cometeu um ato de desobediência grave, causando prejuízo e
constrangimento para seu senhor.Entre 1875 e1876 o escravo João, pertencente a Francisco
Braz de Macêdo, matou uma vaca com três crias de outro senhor.Como os dois senhores não
entraram em acordo, após dois anos, em 1878, o senhor Francisco de Borja Rodrigues de
Freitas trazia citado a Francisco Braz em juízo de paz para que pagasse “huma vacca com três
[sic] crias” ou pagasse cem mil réis.Para resolver a disputa judicial, Agostinho Braz de
Macedo, entra como curador de seu decrepto pai, dando “huma vacca de oito arrobas e hum
novilhote, pagando elle as custas”(Livro de Protocollo do juízo de paz).
Mesmo após a abolição, as práticas de violência e exclusão do negro continuaram
presentes nas relações sociais. Em São Thomé não foi diferente, pois o subdelegado de polícia
volante do distrito José Pereira de Gouvêa era “um homem que costumava castigar seus
empregados, deixando-os uma noite inteira no tronco, como se fossem escravos, vinte anos
depois da abolição da escravatura”. (NUNES, 1997, p.100).

47
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao término deste trabalho, vimos que ainda há muito que se desvendar das relações
sociais da escravidão. Os escravos não deixaram muita coisa escrita de seu próprio punho, e
todo o estudo que fazemos deles são reflexos de impressões de brancos brasileiros ou
viajantes estrangeiros e seu olhar preconceituoso. Mesmo assim há muito material a ser
pesquisado nos cartórios e arquivos sobre o cotidiano e as relações da escravidão, para que se
possa reunir vários tipos de documentos complementares, construindo uma história da
escravidão ao avesso - na ótica do próprio escravo.Esperamos que nossa singela pesquisa
tenha resultado em alguma contribuição nesse sentido.
De acordo com os diversos documentos em Sumé a escravidão fez parte do cotidiano
da cidade no século XIX, mesmo que a maioria da população julgue nunca ter existido
escravos na cidade. Mostramos que esta instituição fez parte dos costumes da povoação nas
vendas locais e até mesmo na rede do tráfico interprovincial, sendo a maior parte dos escravos
do sexo feminino – o que indicava uma maior tendência para o trabalho doméstico.
A liberdade pode ter significado o direito de ir e vir quando bem quisesse ou de estar
junto aos seus parentes, de servir a quem quisesse ou não servir ninguém, no dizer de Sidney
Chalhoub (1990). Não foi possível apreender em nossa pesquisa o que os negros entendiam
por liberdade, mas percebemos que eles contribuíram para conquistá-la, seja trabalhando anos
e anos, juntando um pecúlio ou mesmo partindo para um rompimento total nas suas relações
de dominação com seu senhor.
O importante é perceber que mesmo no silêncio, os escravos lutaram e criaram
estratégias contra as violências do sistema escravista, muitas vezes dentro dos limites do
próprio sistema escravista. Parece que este foi o caminho da maioria dos escravos
pesquisados.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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49
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FONTES DOCUMENTAIS

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guardados no 2º Cartório de Registro de Imóveis Viton Leites Rafael-Sumé-PB.

Livro de batismo nº 13 (1867-1871) da Igreja Católica de São João do Cariri-PB.

Livro de óbitos nº15 (1875-1879) da Igreja Católica de São João do Cariri-PB.

Livro de Notas de 1886 no 2º cartório de São João do Cariri-PB.

Livro de Assentos nº 1- 1778 da Igreja Católica de São João do Cariri-PB.

51
Alguns inventários no fórum de São João do Cariri-PB.

ENTREVISTADOS

Antonio Aprígio Pereira.


Eunice Braz.
Laura Braz.

52
ANEXOS

TABELA

POPULAÇÃO ESCRAVA DOS MUNICÍPIOS PARAIBANOS DISPOSTA EM


GRUPOS DE ACORDO COM A ECONOMIA A QUE ESTÁ VINCULADA

Açucareira
Municípios 1852 % 1872 % 1884 % 1886 %
Parahyba 4391 2684 1972 2376
Alagoa Grande - 339 476 461
Alagoa Nova 1024 419 283 203
Manmanguape 2398 802 1320 1599
Areia 2020 1424 1052 1229
Pedras de Fogo - 1145 898 940
Total 9733 34,85 6813 31,65 6001 30,34 6808 36,24
Algodoeira
Municípios 1852 % 1872 % 1884 % 1886 %
Ingá 693 1308 1074 953
Independência 1246 1334 1056 1259
Cuité - 611 51 323
Teixeira - - 99 100
Total 1939 6,78 3253 15,11 2680 13,55 2635 14,02
Pecuária
Municípios 1852 % 1872 % 1884 % 1886 %
Cabaceiras 1013 587 481 377
Misericórdia - 628 490 490
S.J.Cariri 1538 642 1976 1399
S.L.Sabugi - 335 244 219
A.Monteiro - 611 520 354
Patos 544 830 499 320
Piancó 997 612 1015 616
C.Rocha 1108 1016 791 780
Pombal 915 1182 1031 886
Sousa 3448 1376 743 979
Cajazeiras - 403 290 87
Total 9561 33,46 8222 38,19 8084 40,87 6487 34,56
Economia Mista
Municípios 1852 % 1872 % 1884 % 1886 %
Pilar 1982 1191 1128 1326

53
Bananeiras 1785 639 972 595
Campina Grande 3446 1105 913 815
Total 7213 25,25 2935 13,63 3013 15,23 2736 14,56
População Total 28566 21526 19778 18785

Fonte: (Galliza, 1979, p.40)


CÓPIA DE RECIBO E CARTA DE ALFORRIA DO ESCRAVO VICENTE.

“Recibo de compra de um escravo de nome Vicente, pertencente a Antonio Leite Monteiro,


como abaixo se declara. Saibam [sic] quantos este público instrumento de recibo virem, que
no anno do Nascimento do Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos e setenta e nove aos
quatro de julho, em meu cartório me foi apresentado um recibo do theor seguinte: Recebi do
Senhor Antonio Leite Monteiro a quantia de sete contos mil réis, proveniente de um escravo
de nome Vicente,mulato, de idade vinte e sete anos, matriculado no município de Flores da
Província de Pernambuco,com o número novecentos e setenta e oito e quatro da relação
apresentada e cento e setenta e seis da mesma matrícula, ficando eu obrigado a passar
escritura pública todo e qualquer tempo que me faz exigida por ser feita a venda da minha
expontanea vontade, por ser verdade mandei passar este no qual me assigno com o meo
proprio punho.Estava sellado com uma estampilha de duzentos réis imobilisada pelo modo
seguinte.São Thomé 24 de maio de 1879.Francisco José do Prado Chavier, como testemunha
José Monteiro Leite,Theóphilo Rodrigues de Freitas Luindo.Nada mais se continha em dito
recibo aqui fielmente copiado no meo livro de notas do próprio original ao qual me reporto e
dou fé.
João Fernandes Vieira de Mello.”

E logo abaixo estava registrada a carta de alforria:

Carta de liberdade do mulato Vicente escravo que foi de Antonio Leite Monteiro como abaixo
se declara.Saibão quantos este publico instrumento de carta de liberdade virem, que no anno
do Nascimento do Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos e setenta e nove aos quatro
dias domes de julho do dito anno, nesta povoação de São Thomé de segundo Distrito da
Comarca dAlagôa do Monteiro da Província da Parahiba do Norte, em meu cartorio me foi
apresentada uma carta de liberdade cujo theor é o seguinte.Por este por mim abaixo
assignado declaro que sou Senhor e possuidor de hum escravo de nome Vicente,mulato , de
idade de vinte e sete annos, havido por compra a Francisco Jose do Prado Chavier, e sem

54
constrangimento de pessoa alguma, concedo desde já a liberdade; e de facto liberto fica de
hoje para sempre, afim de que desde já possa gosar de sua liberdade, como se fora de ventre
livre, e como livre que é por virtude deste meu presente escripto, sem que ninguem o possa
chamar já mais [sic] a escravidão, por qualquer pretesto que seja, pois eu como Senhor que
sou do dito Vicente lhe concedo a mesma liberdade, sem clausula ou condição, e queiro que
este meu escripto lhe sirva de prova e lhe seja profícuo em todo tempo.E para firmeza e
segurança mandei passar este que assigno com a minha letra e signal na presença de
Theóphilo Rodrigues de Freitas e José Monteiro Leite testemunhas que assistirão.E para
mais segurança tãobem [sic] as duas testemunhas acima mencionadas que forão presentes a
este acto da declaração da minha vontade.Povoação de São Thomé, 02 de julho de 1879
Antonio Leite Monteiro.Como testemunhas Theophilo Rodrigues de Freitas Luindo, José
Monteiro Leite.Nada mais se continha em dita carta de liberdade aqui fielmente copiada no
meu livro de notas do próprio original ao qual me reporto e dou fé.
Em testamento de verdade – tabelião de paz.
João Fernandes Vieira de Mello.

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TABELA

PREÇO E OUTRAS INFORMAÇÕES SOBRE OS ESCRAVOS

NOME SEXO IDADE ORIGEM COR PREÇO


Ponciano M 48/58? PB Pardo 500$000
Luiza F 6 PB Preta 425$000
Bemvinda F 5 PB Preta 200$000
Juvina F 14 PB Preta 710$000
Francisco M 14 PB Preto 700$000
Domingas F 14 PB Parda 600$000
Vicente M 27 PB Mulato 700$000
Antonio M 6 PB Crioulo 200$000
Francisca F 8 PB - 350$000
Alexandrina F 17 - Crioula 500$000
Thereza F 19 PB Crioula 800$000
Pastor M 9 PB - 450$000
Maria F 16 PB Preta 600$000
Eudocia F 39 PB Preta 300$000
Canuto M 19 PB Crioulo 800$000
Domingos M 30 PB Crioulo 950$000
Maria F 52 PE Preta 200$000
Rosenda F 15 PB - 400$000
Jovina F 14 PB - 400$000
Maria F 34 PB - 150$000
Fonte: Escrituras de compra e venda de Escravos nos livros de notas do Cartório de Paz de São Thomé.

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