Вы находитесь на странице: 1из 21

CAMINITZER, Luis. Simón Rodríguez.

In Conceptualism in Latin American Art:


Didactics of Liberation, University of Texas Press, 2007, pp. 37-43, 109-115.
Tradução de Denise Pereira Rachel

SIMÓN RODRÍGUEZ

Como artista, sinto frequentemente que uma preocupação excessiva


com a arte pode interferir na produção artística. Neste sentido, uma das razões
para Simón Rodríguez tornar-se tão atraente é o fato de ter sido
despreocupado em relação às questões artísticas e, apesar disso, ter deixado
um trabalho esteticamente inspirador. Mais ainda, tal trabalho serve como um
pano de fundo para este livro, ao considera-lo um exemplo vigoroso e pioneiro
de um dos argumentos apresentados aqui de que: na América Latina arte,
educação, poesia e política são convergentes por conta das experiências
enraizadas neste local. Assim como os Tupamaros nas décadas de 1960-1970,
nos anos iniciais de 1800, Rodríguez recorreu a estratégias estéticas para lidar
com questões relativas à sua inquietude em torno da política e da educação.
Geralmente, nem Rodríguez nem os Tupamaros são estudados pela
perspectiva da arte; ao invés disso, são analisados através de suas respectivas
disciplinas: educação/política no caso de Rodríguez; táticas de guerrilha no
caso dos Tupamaros. Pelo fato de ambos serem relativamente desconhecidos
fora de seus países de origem, irei traçar uma linha desordenada de seus
dados biográficos e elementos lendários neste capítulo e no próximo.

Simón Rodríguez nasceu em Caracas, Venezuela, em 1769, possuía


grande interesse tanto em educação quanto em política. No início de 1794 fez
uma análise crítica do sistema escolar e reivindicou equidade na educação
para crianças negras, mestiças e brancas.1 Rodríguez teve que fugir para o

1 Rodríguez, “Reflexiones”, I: 195-222. Rodríguez era totalmente contrário à escravidão e ao


racismo e viu nos Estados Unidos daquele período uma grande hipocrisia relacionada a uma liberdade
aclamada, enquanto a segregação e a escravidão eram permitidas.
exílio por ter participado de uma conspiração contra as leis espanholas, após
ter sido tutor de Simón Bolívar durante sua infância (entre 1792 e 1797). Ele
nunca mais voltou para a Venezuela. Primeiro foi para a Jamaica, aonde
aprendeu inglês enquanto brincava com as crianças. Então, seguiu rumo ao
norte para a Philadelphia e trabalhou em uma gráfica local em que aprendeu
sobre diagramação, algo que o auxiliou mais tarde na edição de suas próprias
páginas. Na sequência, prosseguiu para a Europa que, presumivelmente seria
seu destino inicial. Lá encontrou-se por acaso com Bolívar em Paris, em 1804.
Eles decidiram caminhar juntos para Roma e, foi nesta viagem que Rodríguez
testemunhou e reportou sozinho a famosa declaração de Bolívar pela
independência da Venezuela em relação à Espanha. Em 15 de agosto de
1805, Bolívar e Rodríguez subiram até o topo do Monte Sacro ou do Aventino
(depende da versão que você ler), aonde Bolívar exclamou sua promessa
pelos ares de Roma. Tal fato deu a Rodríguez seu primeiro e último momento
de fama.

Porém, muito antes desses eventos, Rodríguez já tinha estabelecido sua


vida ao tornar-se obcecado por ensinar e pelo desenvolvimento de sua teoria
pedagógica. Emile de Jean-Jacques Rousseau e Robson Crusoe eram suas
maiores influências e, baseado nesses textos, ele elaborou ideias que se
aproximavam em muitos aspectos de Johann Heinrich Pestalozzi e superavam
muitas ideias de Joseph Lancaster.2 Lancaster obteve certa importância na
América Latina por conta de Bolívar, que entrou em contato com suas ideias no

2 Joseph Lancaster (1778-1838) tinha interesse na educação para os pobres e organizou uma
escola em Londres em 1798. Devido à sobrecarga pelo grande número de estudantes, ele desenvolveu
um sistema de monitoria (ou, de acordo com algumas versões, pegou emprestado as ideias de Andrew
Bell, que havia desenvolvido um sistema similar em Madras, na Índia, em 1796). George III deu cem
libras para a escola e em troca solicitou que o foco seria os estudos bíblicos. Lancaster usou medalhas
como recompensa e palmatória como punição. Após uma série de problemas ele foi “persuadido” a
deixar sua escola devido a acusação de “punir ao seu bel prazer”. Tal fato levou-o a emigrar para Nova
York em 1817, onde morreu após ser atingido por uma carruagem. As mudanças de nome da sua
organização na Inglaterra refletem uma conexão interessante entre política e educação. Depois da
fundação real, em 1808, tornou-se “The Society for Promoting the Royal British or Lancaster System for
the Education of the Poor” (A Sociedade para Promoção da Realeza Britânica ou Sistema Lancaster de
Educação dos Pobres). Em 1813, o nome mudou para “Lancasterian Institution for Promoting the
Education of the Labouring and Manufacturing Classes of Society of Every Religious Persuasion”
(Instituição Lancasteriana para Promoção da Educação das Classes Trabalhadora e Operária de Todas as
Crenças Religiosas). Em 1814, após a saída de Lancaster da instituição, ela tornou-se “The British and
Foreign School Society” (Escola da Sociedade Britânica e dos Estrangeiros).
período em que estudou em Londres, convidando-o para ir a Caracas implantar
seu sistema.3 Lancaster era uma figura desagradável que acabou sendo
obrigado a deixar sua própria escola por conta de suas tendências sádicas.
Entretanto, o aspecto interessante do método de Lancaster era a ênfase no
ensino mútuo por meio de um sistema de monitoria. Interessado em uma
educação voltada aos “pobres”, construiu classes que acomodavam trezentos
estudantes. Trinta monitores eram treinados para auxiliar, escolhidos entre os
“raros estudantes inteligentes”. Junto a estes estudantes havia um mestre.
Rodríguez não gostava de Lancaster, em parte porque havia concebido seu
sistema em torno de estudos bíblicos e Rodríguez era totalmente anticlerical.
Ele acusava Lancaster de usar o ensino mútuo somente para forçar os
estudantes a memorizarem a Bíblia (“Ordenando-os a recitar de cor o que não
compreendiam feito papagaios, de modo a tornarem-se charlatões pelo resto
da vida”).4 As coisas provavelmente pioraram por causa da inveja profissional
gerada pela importância atribuída por Bolívar a Lancaster. De qualquer forma,
o anticlericalismo de Rodríguez era tão forte que ele chegou ao ponto de
chamar seus dois filhos e sua filha (nascidos durante sua estadia no Equador)
de Choclo, Zapallo e Zanahoria (Milho, Abóbora e Cenoura). Esta foi a forma
que encontrou para protestar contra a expectativa da Igreja de que as crianças
seriam cristianizadas ao serem registradas com nomes de santos.5

Não se sabe ao certo o quanto Rodríguez sabia a respeito do reformista


suíço Johann Pestalozzi, mas há uma grande coincidência de ideias e crenças
entre ambos, ao contrário de Lancaster, principalmente em relação a atitude de
respeito ao aluno e a busca pela conexão com a vida real. 6 Pestalozzi
valorizava a espontaneidade e a liberdade ao usar elementos da arte com as

3 Bolívar também tinha suas próprias concepções pedagógicas como, por exemplo: “O estudo da
história, de modo similar ao das linguagens, deve ser feito começando pela atualidade para então
retornar, por etapas, aos tempos obscuros das fábulas” (citado por Rojas, Ideas educativas de Simón
Bolívar, 96).

4 Rodríguez, Obras completas, 2:25.

5 Cova, Don Simón Rodríguez, 170.

6 Johann H. Pestalozzi (1746-1827) desenvolveu seu sistema na Suíça e, assim como Lancaster,
iniciou com uma escola para pobres.
crianças. Ele acreditava que a “natureza humana” deveria seguir seu curso,
auxiliada pelo estudo e a prática.

Rodríguez tinha tanto interesse em metodologia quanto em ideologia.


Ele desenvolveu sua própria versão resumida da ideologia socialista distinta
das influências convencionais. Em seu livro Sociedades Americanas, escrito
em 1828, Rodríguez afirmou que “a propriedade coletiva deveria ser a regra e a
propriedade privada a exceção” e, com sua forma peculiar de diagramação:

LIDAR COM AS COISAS


é a primeira parte da Educação
e LIDAR COM QUE AS TÊM
é a segunda7

Ele resumiu a condição de luta contra a colonização e o


subdesenvolvimento ao declarar: “Ou inventamos ou fracassamos”, uma frase
que apenas recentemente, por volta dos anos de 1990, tornou-se uma espécie
de slogan latino americano. Rodriguez escreveu muito, mas somente uma

7 Rodríguez, Sociedades americanas, edición fac-similar. O fac-símile reproduz uma versão


impressa em 1842; também em Obras completas, 1:356.
pequena parte de seus trabalhos sobreviveu. Em sua última viagem, pouco
antes de morrer, o barco em que estava afundou levando com ele um baú que
guardava seus escritos.

Ainda assim, o que restou é suficiente para preencher dois volumes que
mostraram a parte de Rodríguez que o transformou em um paradigma para
mim. A maior parte desses textos foi escrita em um formato fragmentado. As
frases raramente fluem de modo linear como nos textos comuns, mas são
subdivididas em grandes colchetes que apresentam ideias paralelas ou
subcategorias. A mudança frequente de fonte, as vezes na mesma linha, para
dar ênfase, enquanto o texto poderia seguir formas geométricas ou ser
organizado por um eixo central. Resultaram em páginas similares a caligramas,
uma forma popular durante os séculos dezoito e dezenove, em que uma
imagem é composta e descrita por meio da diagramação das palavras. Mas
enquanto os caligramas eram um jogo formalista, a única preocupação de
Rodríguez quando utilizava sua própria diagramação era de esclarecer as
ideias. Suas composições poderiam ser descritas como mapas conceituais que
proporcionavam a velocidade da compreensão. Eles eram tanto visuais quanto
aforismos, providos de uma beleza desinteressada. Assim, Rodríguez tratou do
processo de perda de informação de uma maneira peculiar e tentou transmitir
seus pensamentos em um formato conciso.

Do mesmo modo que Stéphane Mallarmé em Un coup de dés jamais


abolira le hasard (Um lance de dados jamais abolirá o acaso), publicado em
1895, Rodríguez usou seus artifícios para dar sentido. Mas, enquanto Mallarmé
estava interessado em uma estrutura paramusical que auxiliasse na sonoridade
do poema, Rodríguez estava preocupado apenas com a clareza. Mallarmé
queria a ambiguidade, pluralidade de sentidos e arranjos formais que
articulassem possibilidades. Rodríguez queria re-criar seu processo de
pensamento na mente dos leitores.

Longe de ser ingênuo, Rodríguez estava consciente de que sua forma


de escrita não era ortodoxa e prefaciou a edição de 1828 de Sociedades
Americanas com uma nota que declarava:
Este projeto parecerá tão exótico, tão estranho quanto a
ortografia em que foi escrito. Para alguns leitores, talvez,
poderá causar riso. Para outros - ... desdém. Isto será injusto,
uma vez que não há falsidades nas observações, nem
ausência de sentido nas proposições. Em relação ao riso, o
autor pode afirmar (melhor em Francês do que em Latim)
“Quem ri por último ri melhor”. 8

A nota, coerente com o restante do trabalho, é dividida em pequenas


partes centralizadas com variações tipográficas. Mais tarde, em Tratado sobre
las luces y las virtudes sociales (Tratado sobre as luzes e as virtudes sociais;
1840), ele escreveu a respeito de sua abordagem ao discutir “a forma em que
se dá o discurso”. 9

A forma em que se dá o discurso: pintando as ideias


elementares em paradigmas; os pensamentos, em sinopses. A
língua e a mão são os dons mais preciosos do homem (como
Buffon observa). Entenda-se que aqui se trata da intenção de
instruir.
Não se trata da importância da palavra, porque não há quem
não a conheça. A importância da pintura desta é bem
conhecida por poucos e muitos nem pensam nisso. Não
obstante, se pode pintar sem falar, mas não se pode falar sem
pintar.
Os gestos são um esboço do que a mão não pode desenhar
por falta de meios ou de tempo. Gesticular é pintar no ar... 10

Mais adiante no mesmo ensaio ele afirma: “Sem pintura não há


memória, mas (apenas) ideias dispersas ou acumuladas.”

8 Rodríguez, Sociedades americanas, 1:260.

9 Rodríguez, Tratado sobre las luces, in Obras completas, 2:152.

10 Ibid., 151, 155. Este parágrafo parece atual ainda hoje e, entre outras coisas, também sintetiza
os trabalhos do artista argentino León Ferrari (1920-2013) criados entre 1962 e 1964, nos quais ele
explora as relações de sentido com a distorção da escrita. O trabalho de Ferrari neste período tornou-se
uma grande influência para as gerações subsequentes de artistas conceituais latino-americanos. Os
desenhos desta fase foram exibidos com o título de Politiscripts no Drawing Center, Nova York, em
2004.
Após discutir a condição necessária para uma boa leitura, Rodríguez
põe em prática suas descobertas ao escrever:

O escritor tem que organizar suas páginas para obter o mesmo


resultado: desse modo a arte da escrita necessita da arte da
pintura.
As ideias que se conectam para formar um pensamento não
têm a mesma importância do que os pensamentos que se
reúnem em uma pintura.11 Cada um dos componentes é uma
abstração e a composição é uma abstração das abstrações.12

11 A palavra “pintura” aqui as vezes se refere a pintura e as vezes a cuadro e posteriormente é


usada como uma metáfora ou como um diagrama.

12 Rodríguez, Tratado, 2:157. A palavra “abstração” obviamente está sendo utilizada aqui em um
sentido literal, não como uma forma artística.
Mallarmé, ao contrário disso, introduz seu Um lance de dados... com um
prefácio em prosa convencional explicando as razões para sua transgressão
formal:

Não estou transgredindo contra o sistema, mas simplesmente


dispersando-o. O papel interfere toda vez que uma imagem
desaparece por si ou é retirada da página, ao aceitar a
sucessão de outras e isto não é uma questão, ao contrário do
estado habitual das coisas, dos efeitos sonoros ou versos
comuns – temos uma subdivisão prismática de ideias, o
instante no qual elas aparecem, que dura suas contribuições, é
o momento em que se configuram na mente. O texto se impõe
em locais variados, próximo ou distante de um presságio de
direcionamento, de acordo com o que parece constituir um
possível sentido... Permita que o estilo se torne único como
uma sinfonia, pouco a pouco, bem como o modo no qual cada
um declama, deixando o antigo verso intacto – eu o venero e
atribuo a ele o império das paixões e dos sonhos – ao passo
que seria o tempo do presságio, preferencialmente, a seguir
naturalmente assuntos da pura e complexa imaginação ou do
intelecto, sem exclui-los da Poesia – a fonte única.13

Ambos os autores propõem inevitavelmente uma escolha formal, porém


Rodríguez não era um modernista e não se preocupava em analisar as
limitações do formato tradicional. Ele se esquivou disso, embora antecipasse
certa irritação por parte do público. Não obstante, Mallarmé abrandou suas
críticas com o discurso de que estava saindo das normas, mas assegurava ao
público que ele ainda era fiel à poesia. Também é interessante verificar a
referência que Mallarmé faz à música, comparando-a com a única preocupação
de Rodríguez de que não houvesse falseamentos e ausência de sentido.
Enquanto Rodríguez utilizava sua diagramação para localizar com precisão
suas verdades, Mallarmé queria interromper o movimento padronizado do olhar
durante a leitura, pois “caso contrário perderíamos aquele êxtase no qual nos
tornamos imortais por algumas horas, libertos da realidade, em que nossas
obsessões alcançam o nível da criação”.14

13 Mallarmé, Selected Poetry an Prose, 105-106; traduzido por Mary Ann Caws.

14 Mallarmé, “The Book, a Spiritual Instrument”, in ibid., 84.


Em uma de suas comparações entre a linguagem e o governo,
Rodríguez fez uma declaração anti-formalista digna do conceitualismo latino-
americano:

Para colocar o conceito de República em prática eles o


retiraram da cabeça e o trouxeram para as mãos, em suas
mãos este permaneceu: faz-se necessário que o conceito
retorne à cabeça. As formas estão trazendo descrédito para o
conceito. Isto não pode ser chamado de República, pois não é.
E deixa de ser pela ausência do povo.15

Rodríguez viveu na pobreza a maior parte da sua vida, ao recusar


comprometer seus ideais. As escolas que criou durante suas viagens ao Chile,
Peru, Bolívia e Equador nunca reuniram uma quantidade de alunos suficiente,
então ele tinha que ganhar dinheiro com outras atividades. Em mais de uma
ocasião, lecionou e fabricou velas no mesmo edifício. A propósito ele gravou na
porta de entrada: “LUZES E VIRTUDES AMERICANAS, isto é, [fabricação de]
velas com gordura, paciência, sabonete, resignação, cola tenaz, amor pelo
trabalho”.16

Durante sua estadia na Bolívia, ele foi estigmatizado como alguém


excêntrico e houve forte oposição às suas concepções. Dentre outras ideias
que o tornaram impopular entre as classes dominantes, estava a de que ele
tinha proposto um auxílio financeiro às famílias na expectativa de eliminar o
trabalho infantil, um dos fatores que mantinham as crianças fora da escola.17
Chegou ao ponto em que começou a haver rumores de que Rodríguez
organizou um jantar em homenagem ao General Sucre, que estava
governando o país naquele período dentro da estrutura Bolivariana. Para trazer

15 Rodríguez, Tratado sobre las luces, in Obras completas, 2:183.

16 Cova, Don Simón Rodríguez, 14.

17 Morales, Simón Rodríguez, 16.


descrédito a Rodríguez, os rumores incluíam que ele havia servido a comida
em comadres de hospital ao invés de utilizar pratos. Por meio desta ação ele
supostamente expressou seu descontentamento em relação ao sistema de
ensino implantado pelo general. Quando os rumores finalmente chegaram até
Rodríguez ele comemorou e contribuiu ativamente para que a história
continuasse circulando. Este incidente poderia ter sido reconhecido como a
primeira entrada de urinóis na história da arte.

Contudo, o que mais me interessa em Rodríguez é a relação intrínseca


entre forma e conteúdo em seus escritos. A estrutura das páginas de
Rodríguez não possuía as qualidades formalistas e tautológicas dos
caligramas, mas, caso ele tivesse utilizado caligramas a potência das suas
mensagens seria seriamente prejudicada. Os seus escritos eram desprovidos
de qualquer direcionamento estético e, ao invés disso, se ajustavam com
precisão ao visionário que ele percebia em si mesmo. As suas urgências não
eram as de um artista, mas de um pregador. No contexto artístico atual, pós-
Beuys, em que o artista como xamã parece ter se tornado uma noção popular,
pode ser importante distinguir os artistas latino-americanos em uma categoria
própria. A figura do “pregador” oferece uma descrição mais precisa e, com uma
carga menor de afetação do que a figura do “xamã”.

Graças ao processo de colonização e da ampla difusão da crença de


que aderir à modernidade é uma condição para a independência e o progresso
das nações emergentes, o nome de Mallarmé é sempre mais reconhecido na
América Latina do que o de Rodríguez. Entretanto, Rodríguez representa um
ato fundacional que, mesmo não sendo explícito, está latente em grande parte
das expressões culturais da América Latina. Isto se deve em parte pela
consciência do papel social do artista como alguém que auxilia na construção
de uma cultura cujo desenvolvimento parece ser constantemente interrompido.
E é aí que os artistas não são apenas pregadores, mas também, professores e
onde encontro Simón Rodríguez como um exemplo e um antídoto.

Junto à atitude fetichista em torno do objeto artístico, a arte elitista


sempre se concentrou na aura que qualifica o produto. O objeto é ungido e
irradia sua “artisticidade”. Até mesmo no caso do trabalho de Duchamp, que
poderia ser interpretado pelo efeito de seus readymades como a consequente
transferência desta qualidade artística para os objetos cotidianos. Os
precedentes estabelecidos por Simón Rodríguez apontam para os perigos da
interferência desta aura na comunicação que almeja a transformação social.
Enquanto professor, é a sua clareza e não seu status ou sua aura, que provoca
o pensamento. É por esta razão que nos escritos de Rodríguez, pregar e
ensinar caminham em uma direção diversa do xamanismo ou qualquer busca
por uma estética autônoma. A força de Rodríguez nesta tradição é a de que ele
nunca teria se definido como um artista. Ele era um artista negligenciado,
provavelmente, apenas em minha retrospectiva.

A INSERÇÃO DA PEDAGOGIA

A maioria das intervenções sociais radicais durante os anos de 1960


eram um abuso extremo de poder e do uso da violência por vários estados da
América Latina e de outros países periféricos. Era essa forma de “ruptura”
política e social, uma ruptura exercida por aqueles que estavam no poder,
contra a qual a arte e as pedagogias alternativas buscavam resistir. Cada
componente do poder do estado cindiu completamente qualquer ligação do
controle popular, em um processo que se prolongou e atingiu o clímax na
década de setenta. Ao analisar seu desenvolvimento, em 1968, Nicos
Poulantzas perguntou e respondeu (com grifos do próprio autor) esta questão:

O que pode ser entendido por força repressora e


violência, as quais são noções vagas e inúteis até serem feitas
de modo mais específico? O termo força encobre o
funcionamento de fato de certas instituições para repressão
física organizada, como o exército, a polícia, o sistema
penitenciário, etc. Esta repressão é socialmente organizada e é
característica de todas as relações de poder... A este respeito,
tal característica do estado é que assegura o monopólio da
repressão organizada ao contrário de outras estruturas sociais
das quais destacamos instituições como a igreja, o poder
senhorial, etc. que tem o privilégio de exercer o poder
paralelamente ao estado.18

18 Poulantzas, Political Power, 225-226.


Poulantzas não ampliou sua compreensão endereçando-a nem à arte
nem à educação, mas ele poderia ter feito ao considerar ambas como
atividades com base institucional na sociedade. Em todo caso, sob condições
em que as instituições do estado eram completamente desprovidas de
responsabilidade pelo público, qualquer estética conceitual é virtualmente e por
definição utópica em suas implicações. As fronteiras têm maior relevância para
a força policial deste estado, do que em um estado democrático e poroso. Ao
cruzar as fronteiras e até mesmo apaga-las, a arte conceitual representa uma
ameaça independente da mensagem que carrega, a partir do momento em que
permite ignorar e invalidar as estruturas de poder. As implicações políticas do
conceitualismo foram ainda mais contundentes, na medida em que o
conceitualismo latino-americano pretendia educar o público. Com isso em
mente, podemos inserir o conceitualismo em uma longa tradição de revoltas
que o ensino superior produziu no decorrer do século vinte. Foi um processo
que teve início com a Reforma de Córdoba em 1918, em Córdoba, na
Argentina e então se espalhou pelo continente nas décadas seguintes.

A Reforma de Córdoba foi um movimento iniciado pelos estudantes, que


começou a reorganizar o sistema universitário na América Latina em uma
estrutura autônoma. A reforma foi inspirada nas notícias que chegaram a
respeito da Revolução Russa que ocorrera no ano anterior. Tais
acontecimentos levaram a reavaliar o funcionamento do sistema universitário,
seu impacto social e as regras que determinavam o acesso aos estudos. Os
estudantes propuseram a organização da universidade como um estado
autônomo dentro do estado; alunos, ex-alunos e professores teriam poder
majoritário nos conselhos universitários; ações e comprometimento social
fariam parte da missão institucional.

No final da década de 1950, a Reforma de Córdoba foi renovada por


uma segunda onda de reformas universitárias. Os estudantes de todo o
continente se juntaram em oposição aos tratados militares com os Estados
Unidos, que asseguraram a construção de bases do exército estadunidense em
seus países. A união da militância contra os tratados também foi usada para
reavaliar a estrutura da universidade e demandou esforços para atualiza-la. Os
estudantes reafirmaram a necessidade de ampliar o acesso à educação para
segmentos maiores da população e a importância de encontrar as melhores
metodologias por meio das quais seriam abordadas questões sociais. Tanto o
corpo discente quanto docente e vários intelectuais apoiaram este movimento,
como afirma Lola Cendales:

Para compreender um sistema educacional começamos


não pelo sistema em si, mas por uma análise do tipo de
sociedade em que está inserido. O tipo de educação
corresponde ao “modo de produção” e à estrutura social.
Inserida no sistema de dependência capitalista, a educação
logicamente é uma instituição burguesa e pró-imperialista que
funciona para manter, reproduzir e desenvolver o sistema
social.19

O ensino nas universidades foi revisto mais uma vez neste período, mas
agora a revisão influenciou também os meios de comunicação usados pela
esquerda. O desenvolvimento de uma nova política de ensino se tornou clara
em todo continente graças à divulgação por meio de diversas publicações.
Uma dessas foi uma série de “cartas” aos campesinos brasileiros, escritas
entre 1960 e 1961 por Francisco Julião, líder das Ligas Campesinas do
nordeste do Brasil. Julião conseguiu descrever o direito ao voto em termos
simples, sem qualquer traço de condescendência. Seus escritos contrariaram o
rebuscamento barroco e o discurso partidário cuja retórica política digressora
tinha se espalhado por toda América Latina:

Vocês já são parte da maioria. A maioria que não vota.


Vocês têm sustentado a maioria que vota. É apenas assim que
vocês serão parte da maioria, incluídos e excluídos. Mas
enquanto vocês não conquistam este direito, peguem seu
alfabeto, tirem uma hora de folga e sigam cansados, famintos e
esfarrapados para a casa de um irmão que sabe ler e
aprendam com ele como soletrar e como assinar seus nomes.20

19 Citação de Austin em “Popular History and Popular Education”, 47, por Cendales, Educación
popular.

20 Julião, “Cartas a los campesinos”, n. 7, 12 de Fevereiro, 1961, in Escucha campesino, 76.


Contemporâneo de Julião e coincidentemente na mesma região, Paulo
Freire estava desenvolvendo seu método de ensino sob a égide da Igreja
Católica brasileira e reflexo das ideias da Teologia da Libertação. A palavra
“ensino” pode não ser totalmente apropriada. Enquanto não há registros de
qualquer referência consciente ao pensamento de Simón Rodríguez, as
concepções de Freire se encaixam claramente na mesma tradição que valoriza
a aprendizagem em relação ao ensino. Já em 1849, Rodríguez tinha escrito:

AQUI SE ENSINA

(É fornecido) O que os familiares desejam e como desejam que


seja ensinado.
Isto é verdade.

AQUI SE EDUCA... NÃO


Os familiares ficariam ofendidos, e com razão.
Deve-se manter o devido respeito a esses privilégios.
Professores de escola tem sido... e devem permanecer sob a
monarquia...
(e continuarão até o fim do mundo) pobres dependentes ou
professores mal pagos, como buzinas que soam conforme são
sopradas: sua tarefa é...

Enganar os meninos por ordem de seus familiares.21

Forçado a partir para o exílio no Chile, pelo regime ditatorial de 1964 no


Brasil, Freire publicou seu Pedagogia do Oprimido três anos depois, no qual
reuniu suas experiências no empobrecido nordeste brasileiro. A premissa
desenvolvida no Brasil é a de que professor e estudantes devem ter uma

21 Rodríguez, “Extracto de la obra ‘ Educación republicana’”, 1:233.


participação igualitária, sendo a função central da educação auxiliar as pessoas
a compreenderem como o poder é usado para impedir a participação nos
processos decisórios por meio da opressão. De acordo com Freire, a
pedagogia não era desenvolvida para o oprimido como uma pequena oferta de
poder, mas com o oprimido como uma forma de empoderamento. Freire
reconheceu que mesmo quando analfabeto, o estudante está imerso em uma
cultura a qual contém tanto linguagem quanto história e, portanto, deve ser
tratado como um sujeito histórico. A cultura da dominação era para ser
combatida culturalmente tendo em vista a geração da revolução cultural,
processo que poderia ser auxiliado por uma tradição em estratégias
revolucionárias. Neste sentido, o livro de Freire foi tanto um manual para
professores quanto para artistas.22 Alguns anos depois, em Extensão ou
comunicação?, Freire descreveu o ensino nas palavras a seguir:

A tarefa do educador [tradicional] é, portanto, se colocar como


sujeito do conhecimento, se confrontar com um objeto do
conhecimento e, após compreendê-lo discorrer
discursivamente sobre ele para os estudantes, os quais se
tornarão arquivistas desta comunicação.
Educação é comunicação; é diálogo, na medida em que não
consiste na transferência de conhecimento, mas no encontro
do sujeito interlocutor que está em busca de sentidos.23

Em algum momento alguém poderia ter parafraseado a segunda parte


do texto de Freire e aplica-la aos artistas ao afirmar que “o artista tradicional faz

22 Dois anos depois, surgiu uma contrapartida dinamarquesa para o livro de Freire. Bo Dan
Andersen Soren Hansen e Jasper Jensen escreveram Den Lille Rode Bog for Skoolelever, o qual se tornou
famoso internacionalmente logo que apareceu uma tradução em francês de 1971, intitulada Le petit
livre rouge des écoliers & des lycéens. Este livro foi uma cartilha para os jovens estudantes
compreenderem as estruturas de poder de suas escolas e tornarem-se aptos a resistir a estas quando
não se desejava compartilhar o poder com eles.

23 Freire, Extensión o comunicación, 77. Freire prosseguiu em atividade como consultor de outros
países e se concentrou no impacto da colonização na educação dos países africanos que conquistaram a
independência recentemente. Em seu Cartas a Guiné Bissau, ele assinala como a história local inicia logo
após a saída dos colonizadores e “é evidente que, a libertação de um povo não começa, em termos reais
e autênticos, até que o povo reconquiste o uso da palavra, o direito de dizê-la, de ‘pronunciar’ e de
‘nomear’ o mundo” (168).
um objeto para ser observado e registrado pelo público. Arte é comunicação
estabelecida entre artista e público em busca de sentidos”.

Para usar o jargão conceitual, no contexto da educação latino-


americana, tanto Julião quanto Freire exemplificam uma forma de educação
des-institucionalizada. Eles contextualizam a informação e, devido à falta de
recursos, desmaterializam a educação. Ambos os autores tentam estabelecer
uma relação de conscientização coletiva ao invés de submergir em objetivos
terapêuticos como a educação progressista voltada para a estrutura capitalista.
Alguém pode afirmar, portanto, que o desenvolvimento em arte e pedagogia
nesta época na América Latina aconteciam simultaneamente, derivando
aparentemente de raízes em comum e parecem compartilhar objetivos
similares. A crença de Freire de que “a leitura de mundo precede a leitura da
palavra” poderia ser tratada como um paradigma tanto para arte conceitual
quanto para as novas formas progressistas de educação.24

Enquanto as publicações e práxis educativas de Freire se espalhavam


pela América Latina, os Estados Unidos estavam experimentando sua própria
revisão dos sistemas pedagógicos e suas metodologias. Para os inovadores
norte-americanos tornou-se claro que o bom ensino era aquele que –
independente da disciplina – somente era possível se a metodologia
empregada fosse explícita e autoquestionadora. A retórica correspondente a
esta proposta incluía o slogan “aprender a aprender”. Além disso, foi proposto
que não seria compartilhada apenas a administração das instituições de
ensino, como na América Latina, mas também esta proposta seria integrada ao
próprio currículo (governance for credit/gestão dos créditos). Este movimento
de reforma incorporou em sua agenda uma crítica institucional, mas nos
Estados Unidos os estudantes tiveram que “pagar” por isso, para conseguir
ganhar estes créditos.

De forma previsível, a esquerda atacou as instituições artísticas e


escolas em geral, como sendo veículos e porta-vozes da ideologia capitalista.

24 Posteriormente, Freire iria reformular esta frase ao dizer “ler uma palavra e aprender a
escrevê-la para então lê-la é uma consequência do aprendizado da escrita da realidade, de ter
experimentado o sentido da realidade e modifica-la” (Freire e Macedo, Alfabetización, 67).
As teorias críticas geraram uma ampla gama de medidas corretivas.
Propositores tanto do ensino progressista quanto do conceitualismo, mais
aqueles da elite do que os da periferia, tinham a ambição de destruir o que eles
viam como fortalezas do poder,25 mas nas regiões periféricas tais projetos
envolviam um alto nível de consciência de classe. Já nas regiões centrais,
estes pensamentos em torno da pedagogia e dos direitos estudantis tiveram
uma influência modesta, porém por pouco tempo.

A ideia corrente nos Estados Unidos naquela década, com exceção de


alguns movimentos sociais, era de que a educação deveria ser autorreferencial
e tão ou mais valorizada do que seus conteúdos. A educação, em outras
palavras, ecoava as características autorreferenciais representadas pelo
reducionismo e a tautologia que estava em voga na arte conceitual daquele
período. De qualquer forma, outra concepção estava emergindo no
pensamento conceitual a qual teve implicações na pedagogia: a crítica
institucional. Na arte, tal concepção levou à inserção da crítica da própria
apresentação do trabalho.26 Na educação, levou a grandes esforços para
encontrar novos formatos curriculares que “rompessem com o passo-a-passo

25 Um membro do conselho da faculdade em que estava lecionando em 1969 abria com um chute
todas as portas trancadas que aparecessem em seu caminho, ao invés de pedir para um zelador abri-las.
Ele fracassou em sua reeleição a despeito da sua popularidade entre os estudantes e hoje é um
respeitável intelectual neoconservador. Muitas dessas concepções pedagógicas estavam presentes no
pensamento de alguns movimentos estudantis e sociais dos Estados Unidos (que envolviam latinos,
negros e descendentes de asiáticos, em particular) mas contrariando o que muitos neoconservadores
estadunidenses continuam reclamando até hoje, os professores que restaram dos anos sessenta não
fizeram isso dentro da estrutura educacional. O primeiro livro de Freire em inglês foi publicado em 1970.

26 Em algumas poucas instâncias, esta crítica ganha forma, como na criação do grupo de militância
nomeado de Art Workers Coalition (Coalisão dos Trabalhadores da Arte) em 1969. O Art Workers
Coalition surgiu de uma discussão a respeito dos direitos que os artistas possuem sobre seu próprio
trabalho. O Museu de Arte Moderna de Nova York tinha decidido (contrariando um combinado anterior)
usar uma pequena e antiga obra do artista grego Vassilakis Takis em uma exposição. Em uma ação
pública, eles removeram a peça da sala de exposição e a colocaram no jardim. O grupo de artistas e
críticos que deram apoio ao artista se organizaram então em um coletivo bem orientado politicamente,
que se mobilizou por causas que iam da defesa dos direitos aos empregados de museus até protestos
contra a invasão do Vietnã. Nas demandas relacionadas aos museus eles propuseram um sistema
administrativo similar ao das universidades da América Latina na época: o conselho deveria ser
composto por uma representação equivalente entre funcionários, patronos e artistas. Lippard, “Biting
the Hand”, 79-120.
do ensino tradicional”. 27 Era como se a autoridade da instituição escolar fosse
desafiada agora principalmente em suas bases estéticas.

Na América Latina as coisas eram um pouco diferentes. A primeira


tarefa dos intelectuais era a busca pela libertação política e, tanto os conteúdos
quanto as ferramentas eram vistos como metáforas e não como um fim em si
mesmo. O objetivo na educação não era uma mera modernização dos
conteúdos, mas também ampliar o acesso ao sistema educacional que já era
público e gratuito. Os objetivos das reformas latino-americanas eram, desse
modo, mais radicais do que as reformas correlatas nos Estados Unidos. Eles
vislumbraram uma mudança dramática no poder da elite nas estruturas sociais,
para uma efetiva democracia. Uma das propostas discutidas com seriedade
pela união dos estudantes, era de que os alunos deveriam receber um salário
enquanto estudavam para compensar a perda da renda por não trabalharem.
Tal ideia se equiparava ao projeto de Simón Rodríguez de subsidiar os
familiares pela perda da força de trabalho infantil. Não é de se surpreender que
tal fato nunca esteve próximo de se concretizar. Ainda que o objetivo do
empoderamento em massa dos estudantes fosse visto como um meio
necessário para alcançar a democratização da sociedade. Em outras palavras,
a pedagogia na América Latina era entendida como uma ferramenta que
deveria ser utilizada na luta pelas causas sociais libertárias, enquanto que, nos
Estados Unidos, a pedagogia reformista – pelo menos na versão que foi
razoavelmente bem sucedida – se concentrava primeiramente na liberdade
individual, ao assumir que tal fato automaticamente produziria um sistema
democrático.28 Minette Estévez conseguiu capturar a ironia desse processo:

27 Esta frase estava nas instruções dadas pelo Board of Trustees of State University of New York
(Conselho Administrativo da Universidade Estadual de Nova York) para a criação da faculdade em Old
Westbury em 1968.

28 De acordo com esta abordagem, cada vez mais os estudantes eram vistos como consumidores e
as universidades, como corporações que tentavam satisfazer o mercado. Em dezembro de 1991, a
Comissão Europeia publicou um memorandum com recomendações para que as universidades se
comportassem como empresas, atuando a partir das regras de competição do mercado e os estudantes
fossem tratados como clientes. Em 1993, a mesma Comissão deliberou a criação de “recursos humanos
destinados exclusivamente às demandas da indústria” (Vaneigem, Aviso a escolares, 37).
Geralmente a identificação entre “estudantes” como “os
oprimidos” pelos discípulos de Freire [nos Estados Unidos],
defendida por uma ingênua pedagogia do empoderamento, a
qual evitava enfrentar um dos problemas mais difíceis de lidar
frente ao desenvolvimento de pedagogias socialistas dentro de
instituições burguesas, que era o fato de que os estudantes
das nações de primeiro mundo representavam, em geral, o
eleitorado mais empoderado do planeta e cujo
desempoderamento é um pressuposto necessário para uma
transformação global.29

Sob as restrições ideológicas do mercado, era evidente que tais


especulações históricas e filosóficas alcançassem notoriedade e fossem
visadas e consumidas por um público seleto. Mesmo o grupo
britânico/estadunidense/australiano Art & Language, um dos mais lúcidos
politicamente do mercado, se deixou levar por instâncias que eram
essencialmente elitistas, senão contrárias ao direito público. Uma exposição
retrospectiva feita em 1999, repleta de referências a Lenin e a arte “proletária
amigável” foi, não obstante, uma das exposições mais indigestas que já vi há
um bom tempo.30 A exposição requeria um grande aparato de pesquisa para
que a montagem fizesse algum sentido e tinha o auxílio de um mapa para
distinguir as unidades separadas, inseridas em um mosaico abrangente que
agrupava trabalhos os quais não tinham nenhuma relação, dispostos em uma
parede maciça. Tal mapa estava disponível somente na mesa de entrada, mas
a necessidade de utiliza-lo só aparecia em uma sala mais distante em que
ficava a instalação. A lucidez típica de muitos textos produzidos pelo coletivo
ficou embaralhada e muitas vezes inacessível, até para o público mais
informado. Os curadores pareciam ter consciência disso e, portanto, ofereciam
uma das inúmeras explicações para a qualidade hermética da exposição:

29 Estévez, “The Point Is to Change”. A predominância deste pensamento em psicologia coincide


com o idealismo informado pelo Peace Corps (Corpos da Paz, organização patrocinada pelo governo
estadunidense, que estimula jovens a trabalharem como voluntários em países em desenvolvimento).
Apesar de bem intencionado, o Peace Corps não conseguiria transcender o fato de que isto era uma
forma de filantropia chauvinista com alcance internacional.

30 A exposição era The Artist Out of Work: ART & LANGUAGE, 1972-1981, PS.1, Museu de Nova
York, setembro de 1999.
A instalação intenta combater uma historicização simplista (ou
tendenciosa) do Art & Language. Esta variedade de produções
suspensas em um mosaico promove um deslocamento
cronológico e parodia uma causalidade linear.31

Para contrastar, alguém poderia dizer que a arte conceitual na América


Latina almeja retirar a arte do lugar considerado convencional, ou seja, o
campo dos sintomas culturais. Este novo lugar seria um passo além, no campo
das práticas cotidianas que supostamente são a causa de tais sintomas. A arte
tornou-se um meio de conceder ao público formas de participação nos
processos decisórios a partir dos quais se esperava a libertação social e
econômica. Desse modo, abordagens didáticas eram bem-vindas, no entanto
isto não significava que se deveria adotar meios tradicionais simplistas para
transmissão de uma mensagem política. Este tipo de transmissão, típica da
pedagogia antiquada, é classificada como doutrinação. A pedagogia atual não
almejava fazer uma lavagem cerebral, mas fornecer às pessoas ferramentas
para criar.

O muralismo mexicano definiu um modelo de arte didática que era


comum na América Latina até o final dos anos 1950. A arte com conteúdo
político era predominante nos espaços públicos e os passantes não tinham
como escapar dela. Posteriormente, no início dos anos 1960, o Group de
Recherche d’Art Visuelle (GRAV – Grupo de Pesquisa de Arte Visual)
modificou o modelo e propôs o primeiro exemplo de compartilhamento de
ferramentas para criar, ao invés de exibir imagens. Apesar de possuir
integrantes de múltiplas nacionalidades e trabalhar em Paris, o GRAV teve uma
presença latino-americana de peso com a participação de Julio Le Parc (1928-
), Horacio García Rossi (1929-2012) e Hugo Demarco (1932-1995), todos
provenientes da Argentina.32 Os manifestos do grupo eram mais radicais do
que os trabalhos que produziam, na medida em que clamavam pela eliminação

31 Corris e Powel, “Na Attempt at a Textual Analogue”, 3, um artigo impresso em uma edição do
jornal publicada em conjunto com a exposição.

32 O GRAV foi fundado em 1960, os assinantes do primeiro manifesto do grupo eram: Hugo
Demarco, Héctor García Miranda, Horacio García Rossi, Julio Le Parc, François Molnar, Françoi Morellet,
Moyano, Servanes, Francisco Sobrino, Joël Stein e Jean-Pierre Yvaral, o filho do artista Victor Vasarely. O
grupo foi criado por conta de discordâncias em relação ao trabalho de Vassarely.
da categoria “obra de arte” e desejavam criar uma “nova situação visual
baseada na visão periférica e na instabilidade”.33 Ao tentar criar uma arte
participativa, eles demandavam a interação com o público e a obra de arte só
era considerada completa quando ocorria tal interação. Embora os artistas
predeterminassem de forma rígida os parâmetros de atuação nos processos
decisórios por parte do público (não era permitido ao público introduzir
alterações radicais nos trabalhos, nem destruí-los, por exemplo), ainda havia
uma grande oportunidade de compartilhar com o público os meios de produção
das esculturas do grupo e de seus environments ao mover partes e ao colocar
obras em movimento.34

De qualquer forma, ultimamente, todas essas manifestações, do


muralismo mexicano até o GRAV, bem como alguns trabalhos conceituais que
se seguiram, foram guiados por uma ideia de criação artística para o povo, ao
invés de assumir plenamente a responsabilidade por completar a tarefa de
empoderamento ao propiciar uma arte pelo povo.

33 Manifesto de 25 de outubro de 1961, Paris. Reimpresso em Marchán Fiz, Del art objetual, 371-
372.

34 O próprio Le Parc também fez algumas peças políticas no final dos anos de 1960, mas não se
enquadravam nos parâmetros conceituais. Suas peças envolviam o público por meio de atividades como
atirar no alvo representado por um símbolo capitalista, as quais enfatizavam a participação e não a
criação.

Вам также может понравиться