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Livro comemorativo de10 ANOS

do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo


da Universidade Federal Fluminense

PRODUÇÃO
E GESTÃO
DO ESPAÇO
ORGANIZADORAS
Maria de Lourdes Costa
Maria Lais Pereira da Silva
PRODUÇÃO
E GESTÃO
DO ESPAÇO
Livro comemorativo de10 anos
do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo
da Universidade Federal Fluminense

PRODUÇÃO
E GESTÃO
DO ESPAÇO
organizadoras

Maria de Lourdes Costa


Maria Lais Pereira da Silva

1a Edição
Niterói, 2015
PPGAU/EAU/UFF
Rua Passo da Pátria 156, Bloco D, 5º andar, sala 541 Programa de Pós-graduação
em Arquitetura e Urbanismo
Campus Praia Vermelha, São Domingos
24210-240 Niterói Rio de Janeiro RJ

Escola de Arquitetura e Urbanismo


telefone 55-21. 2629.5490
www.uff.br/ ppgau

Universidade Federal Fluminense


parq.uff@gmail.com

O Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/EAU/


UFF foi criado pela Resolução UFF nº 71 de 03 de julho de 2002. Ofereceu, a
partir de 2003, o curso de mestrado e, em março de 2012, implantou seu curso
de doutorado. Nesse ínterim, ascendeu em relação ao conceito inicial dado
pela CAPES e teve 124 dissertações defendidas até o final de 2014. No início
de 2016 terá as primeiras teses de doutorado concluídas. Conta, atualmente,
com 24 professores, em sua maioria do corpo permanente, mais os colabora-
dores.
No trajeto dos 10 anos de existência recém completados passou por gestões
assumidas pelos coordenadores e subcoordenadores abaixo relacionados:

Gestão 2003-2007 Sergio Roberto Leusin de Amorim


Thereza Christina Couto Carvalho
Maria Lais Pereira da Silva
Gestão 2007-2010
Sergio Roberto Leusin de Amorim
Gestão 2010-2012 Maria de Lourdes Pinto Machado Costa
___________________________________________________________________ Maria Lais Pereira da Silva
Produção e gestão do espaço – 10 anos de PPGAU/UFF, Gestão 2013-2015 José Simões de Belmont Pessôa
Maria de Lourdes Pinto Machado Costa, Maria Laís Pereira da Silva –org.
Fernanda Furtado de Oliveira e Silva
Niterói: FAPERJ; Casa 8, 2014.
612 p.;Il.; 16x23cm
Inclui bibliografia
Livro comemorativo de 10 anos do Programa de Pós-graduação em O Programa forma também pós-graduandos com Estágio docente desde sua
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense 2003-2013
implantação em 2006, que contou até 2011 com a supervisão da profa. Patrí-
ISBN 978-859-927-429-3
cia Fraga.
1. Didática. 2. História. 3. Patrimônio. 4. Cultura. 5. Arquitetura e Urbanismo. 6. Plane-
jamento urbano e regional. 7. Gestão do território. 8. Políticas urbanas. 9. Habitação.
10. Mobilidade urbana. 11. Imagem urbana. 12. Mercado. 13. Percepção do ambiente.
14. Conforto ambiental. I. Costa, Maria de Lourdes P. M.,Silva, Maria Lais Pereira da. II.
Universidade Federal Fluminense. Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Ur-
banismo. III. Título: Produção e gestão do espaço – 10 anos de PPGAU/UFF
___________________________________________________________________

7
SUMÁRIO 4 CIDADE CONTEMPORÂNEA: IDEOLOGIA E MERCADO

Arquitetura da violência: segurança e mercado numa


cidade transparente 201
Apresentação 11
Sonia Maria Taddei Ferraz | Bruno Amadei Machado | Juliane G. Baldow
Maria de Lourdes Costa | Maria Laís Pereira da Silva
Projeto, ideologia e hegemonia na cidade brasileira contemporânea 213
Trajeto do Programa 19
Pedro da Luz Moreira
Vera Lucia F. M. Rezende | Marlice N. S. de Azevedo | Sergio R. Leusin de Amorim

5 HABITAÇÃO: POLÍTICAS, GESTÃO E REPRESENTAÇÕES


parte i ARTIGOS DE AUTORES DO PROGRAMA E CO-AUTORES
Reconfiguração territorial urbana em tempo de grandes projetos regionais:
1 EXPERIÊNCIA DIDÁTICO-PEDAGÓGICA
o caso do leste metropolitano do Rio de Janeiro 227
Necessidade e importância da formação para o ensino. Regina Bienenstein | Eloisa H. Barcelos Freire | Natalia Oliveira | Daniela Amaral
Disciplina didática aplicada 24
Jorge Baptista de Azevedo
O Programa Morar Carioca:
novos rumos na urbanização das favelas cariocas? 245
Gerônimo Emilio Almeida Leitão e Jonas Delecave 
2 HISTÓRIA E PATRIMÔNIO

Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico: Significados e representações em favelas:
a aldeia, o porto e a ponte 35 o que é e o que não é próprio, o que é? 261
Marlice Nazareth Soares de Azevedo Maria Laís Pereira da Silva com João Paulo Oliveira Huguenin

Memória e patrimônio na cidade: o caso do Rio de Janeiro 55 6 PERCEPÇÃO, OCUPAÇÃO E EXPANSÃO DO AMBIENTE NATURAL
Nireu Oliveira Cavalcanti
E CONSTRUÍDO
O telefone sobre a mesa do século XVIII, ou como os arquitetos modernistas Notas sobre a dispersão urbana: o exemplo de Maricá, RJ 279
brasileiros pensaram a conservação dos centros históricos 77 Werther Holzer | Camila Quevedo dos Santos
José Simões de Belmont Pessôa
Niterói e a ponte: transformações urbanas e impactos produzidos:
O urbanismo moderno na cidade do Rio de Janeiro: uma avaliação à luz da percepção ambiental 295
dos princípios à oficialização 89 Lelia Mendes de Vasconcellos
Vera Lucia Ferreira Motta Rezende
O projeto e avaliações de conforto ambiental e eficiência energética do
projeto do prédio do centro de informações do CRESESB, Rio de Janeiro 313
3 CULTURA, MORFOLOGIAS E MEIO SOCIAL
Louise Land Bittencourt Lomardo
Do kitsch à metafísica: arquitetura, estética e imagética 109 com Ingrid Chagas L. da Fonseca | Carla Cristina da Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello
Dinah Papi Guimaraens

A arquitetura de papel: os desenhos sedutores 127 7 PLANEJAMENTO E GESTÃO DO TERRITÓRIO: PERSPECTIVA URBANA E REGIONAL
Eduardo Mendes de Vasconcellos Globalização e metrópole.
A relação entre as escalas global e local: o Rio de Janeiro 337
(Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica 143
Glauco Bienenstein
Vinicius M. Netto | Júlio Celso Vargas | Renato Saboya
O projeto de cidade para os megaeventos:
Espaços livres públicos: uma análise multi dimensional
atores, escalas de ação e conflitos no Rio de Janeiro 359
de apropriações e conflitos 165
Fernanda Ester Sánchez Garcia
Lucia Capanema Alvares
A cidade dos megaeventos como laboratório neoliberal 373
O passado tem futuro? Um estudo sobre a
Christopher Thomas Gaffney
persistência dos espaços públicos 183
Thereza Christina Couto Carvalho | Aline Lima Santos
Reflexos da exploração do petróleo no trritório fluminense.
Impactos, normativas e intervenções urbanísticas 393 Apresentação
Maria de Lourdes Costa | Aline Couto da Costa | Diana Bogado Corrêa da Silva

Uma revisão das bases conceituais para um sistema de instrumentos


de política fundiária urbana 409 Maria de Lourdes Costa
Fernanda Furtado de Oliveira e Silva Maria Laís Pereira da Silva – Organizadoras

parte ii PESQUISADORES COLABORADORES EXTERNOS

ARTIGOS
Este livro é comemorativo de 10 anos de existência do Programa de Pós-gra-
duação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense – PPGAU/
A construção da imagem urbana nos grandes eventos:
Potemkinismo, a mídia e a periferia 428 UFF – que cresceu e consolidou-se no período. Ele objetiva apresentar diversos
Anne-Marie Broudehoux | Canadá aspectos e temas da produção científica de seus docentes, reunindo tanto textos
inéditos quanto outros, recuperados, revistos ou ampliados, de modo a mostrar o
La universidad y sus acciones en el Municipio Cerro 441
perfil de seu corpo docente e áreas de atuação. Apresenta, ainda, a contribuição de
Ada Esther Portero Ricol | Cuba
pesquisadores externos que vêm colaborando com o Programa através de inter-
Repensar La Habana: câmbios com diversas universidades e outras instituições de diferentes países, que
En búsqueda de la sustentabilidad del desarrollo urbano 455
se dedicam ao estudo de campos e temas de grande interesse para o Programa.
Gina Rey | Cuba
A primeira publicação coletiva dos docentes do Programa tem início com a
Historic centers under pressure. apresentação de seu resumo, seguido pelo depoimento conjunto de três professo-
Lights and shadows from the italian experience 481 res, que participaram da estruturação e desenvolvimento do PPGAU, e que revelam
Giorgio Piccinato | Itália
a trajetória do Programa em sua primeira decenia. Segue-se um texto das organi-
Ciudades para todos. Por qué el género es importante 495 zadoras do livro, em que destacam o teor dos artigos produzidos, segundo seções
Inés Sánchez de Madariaga | Espanha que congregam teorias e práticas de atuação profissional, abrangendo a variedade
Do bom uso (político) da cidade em imagens 519 de experiências que compõem a vertente da produção e gestão do espaço em dife-
Laurent Vidal | França rentes escalas territoriais.
O documento foi dividido em duas partes: a primeira traz artigos dos profes-
Importância da história para as pesquisas sobre arquitetura e urbanismo 531
Nestor Goulart Reis | Brasil sores do Programa; a segunda é composta pelas contribuições de autores externos,
provenientes de diferentes continentes, condizente com a internacionalização em-
Espacios publicos lineales en las ciudades latinoamericanas 545
preendida pela Universidade, em que se destacam trabalhos voltados tanto para
Silvia Arango | Colômbia
as atividades de ensino e pesquisa, quanto de extensão. Esses autores colaboraram
Quando as aldeias vieram à cidade, quando as cidades foram até às aldeias. com o desenvolvimento do Programa ao proferirem conferências, organizarem
Da Exposição do Mundo Português ao “Inquérito”: 1940-1961 559 workshops ou participarem de projetos junto a Grupos de Pesquisa e Laboratórios
Tânia Beisl Ramos | Portugal
constituídos pelos corpos docente e discente do PPGAU.
Urban mobility and the death of the automobile era (EAU) 577
Walter Hook | Estados Unidos Na Parte 1, os artigos foram organizados em sete seções de acordo com suas afini-
dades em linhas de pesquisa, de temáticas, de áreas de atuação e de interesse, assim
constituídos:
Identificação dos autores 597
1 EXPERIÊNCIA DIDÁTICO-PEDAGÓGICA
A seção trata de educação e atuação profissional, com a apresentação de
atividade característica e fortalecimento de um dos pontos altos do Programa em

Maria de Lourdes Costa | Maria Lais Pereira da Silva (org.) 11


questão, ao mostrar a importância da formação docente para uma área de conheci- tinuidade, inclusive com abordagens específicas trazidas tanto por professores do
mento, através da disciplina de Didática a esta aplicada, escrito pelo professor Jorge quadro inicial, quanto por aqueles recentemente credenciados junto ao Programa.
Baptista de Azevedo, acompanhada da atividade de Estágio docente, que confere Assim é que, com focos e metodologias diferenciadas, mas que partem da
treinamento, preparo e supervisão para o efetivo exercício da docência, visando va- questão da morfologia de edifícios e cidades, os autores desta seção trabalham as
lorização e qualificação geral do ensino e deste ramo da profissão. Representa con- implicações no espaço público, sejam de caráter físico-territorial, social ou cultural.
tinuidade e aperfeiçoamento da referida atividade, em funcionamento desde 2006. O professor Vinicius M Netto, em coautoria de Júlio Celso Vargas e Renato Saboya,
apoiado em pesquisa com amplo instrumental estatístico, desenvolvem uma refle-
2 HISTÓRIA E PATRIMÔNIO
xão que, partindo da forma arquitetônica e de uma abordagem sobre densidades,
As vertentes de História Urbana e das questões do Patrimônio constituíram,
trabalha as relações de impacto das tipologias em diferentes setores urbanos do Rio
desde o início do Programa, linhas de produção científica importantes, e que vêm
de Janeiro, em termos de seus efeitos no movimento de pedestres, em aspectos da
sendo solidificadas e expandidas através de redes de pesquisa interinstitucionais
microeconomia local e nas formas de segregação socioespacial, buscando a carac-
nacionais e, mais recentemente, através de projetos de parceria internacional. Nos
terização mais fina destes setores. Numa outra vertente metodológica, a professora
textos constantes desta seção, alguns aspectos destas reflexões são apresentados.
Thereza Christina Couto Carvalho, com a arquiteta urbanista Aline Santos, egressa
A professora Marlice Nazareth Soares de Azevedo e o professor Nireu Oli-
do Programa, analisam efeitos e impactos nos espaços públicos a partir da ação e
veira Cavalcanti trabalharam no campo da História Urbana e voltaram-se para as
das transformações protagonizadas por agentes sociais e físico-territoriais, tomando
origens e desenvolvimento das cidades de Niterói e do Rio de Janeiro, respectiva-
como objeto de pesquisa quatro praças da cidade de Juiz de Fora. Indica uma diver-
mente. A primeira acentua a importância do olhar sobre a história dos indígenas
sidade de agentes que trazem singularidades a esses espaços, ancorando sua análise
fundadores da cidade de Niterói, traçando estes começos e como – em vários mo-
de um lado nas várias dimensões – sociais, ambientais, culturais, econômicas e de
mentos do desenvolvimento de Niterói – permanece como estratégica a área fun-
acessibilidade – e, de outro, nas transformações que foram sofrendo estes espaços
dada e conformada pelos nativos. O Professor Nireu Cavalcanti aborda a história da
ao longo da história. Neste sentido, focalizam, à medida que desenvolvem o texto,
cidade do Rio de Janeiro, pontuando suas transformações em diferentes momentos
as diferentes tipologias morfológicas que vão conformando os espaços pesquisa-
históricos, no que se refere à atuação dos vários agentes e suas repercussões no
dos. No debate sobre os espaços públicos, a professora Lúcia Capanema Alvares
patrimônio da cidade. Conclui ser esta uma cidade “contraditória” e encerra com
ainda introduz outro viés. De fato, ao fazer uma releitura dos espaços livres públicos,
propostas para a reversão das situações precárias apontadas.
embora também acentue as dimensões sociais, culturais e ambientais, desenvolve
Tanto a professora Vera Lucia Ferreira Motta Rezende quanto o professor
sua reflexão com a busca ainda de uma caracterização – na verdade um perfil – a
José Simões Belmont Pessôa retomam o viés histórico e trabalham o modernis-
partir das relações de conflito surgidas nestes espaços. Centra seu estudo sobre os
mo no Brasil, entretanto sob ângulos e prismas diversos. Confluem no período que
tipos e incidência de conflitos encontrados a partir de uma significativa base empírica
tratam, ou seja, a fase inicial do Modernismo. A professora Vera Rezende trata do
em que compara as áreas do Centro do Rio e o bairro de São Cristóvão. Neste sentido,
impacto do modernismo no urbanismo. Analisa, em especial, o lugar das transfe-
enfatiza o caráter político da apropriação dos espaços públicos, através das ações que
rências dos princípios modernistas de fora para o Brasil, o debate e coexistência das
aí se desenvolvem. A professora Dinah Papi Guimaraens faz crescer o debate discu-
correntes do urbanismo de “melhoramentos” e o modernismo “novo” introduzido
tindo a arquitetura no amplo e diversificado quadro em que se insere a questão da
inicialmente via arquitetura, através das propostas e concretizações na cidade. O
transculturalidade. Em vários momentos associa as teorias do projeto e da projetação
professor José Pessôa, por sua vez, assinala os debates e tendências na arquitetura,
para além dos limites disciplinares, mostrando suas interfaces mais abrangentes, em
focando em que os conceitos modernistas vão ser integrados ou absorvidos (ou
especial com a arte. Traz assim uma série de referências cruzando os campos e indi-
não) às mudanças e discussões de concepções de patrimônio.
cando formas novas e instigantes de se refletir sobre morfologia, cultura, arquitetura
3 CULTURA, MORFOLOGIAS E MEIO SOCIAL e cidade. Este viés é ampliado ainda pelo professor Eduardo Mendes de Vascon-
As questões que relacionam morfologia do espaço arquitetônico e do espaço cellos, que foca o seu texto nos significados e sentidos filosóficos da “representação”
urbano e suas implicações em impactos de caráter social e cultural, especialmente em arquitetura, explorando origens, trajetória e desenvolvimento dos conceitos e sua
no âmbito dos espaços públicos, vêm sendo objeto de contínua reflexão no PPGAU. transmutação para a linguagem do projeto arquitetônico.
É de se notar que a linha de estudos relacionados à cultura vem passando por con-

12 apresentação Maria de Lourdes Costa | Maria Lais Pereira da Silva (org.) 13


4 CIDADE CONTEMPORÂNEA: IDEOLOGIA E MERCADO do de que tratam de forma direta e indireta de questões da política e da gestão da
As questões relacionadas à ideologia (no caso do plano, do projeto) e a ação habitação popular no Rio de Janeiro. O professor Gerônimo Leitão, em parceria com
do mercado imobiliário como agente modelador de nossas cidades perpassam boa o arquiteto urbanista Jonas Delacave, egresso da EAU/UFF, desenvolve uma aná-
parte dos trabalhos do Programa, em suas várias abordagens, em especial ao tratar lise detalhada sobre o recente Programa Morar Carioca, contrapondo-o, em alguns
do momento pelo qual passam as cidades brasileiras. Assim, nesta seção, reunimos aspectos, ao Programa Favela Bairro, e apontando, em especial, as inovações que
os trabalhos dos professores Pedro da Luz Moreira e Sonia Maria Taddei Ferraz. observa na proposta do Morar Carioca, situando-o no quadro das linhas recentes
O primeiro de início estabelece os contornos dos conceitos de ideologia, hegemo- de urbanização de favelas. A professora Maria Lais Pereira da Silva, tendo como co-
nia e projeto, discutindo-os no desenvolvimento histórico das cidades, e como base autor do trabalho o arquiteto urbanista João Paulo Huguenin, também egresso da
para a análise das cidades brasileiras. Neste sentido, explora as tensões presentes na EAU, foca sua análise nas representações dos moradores sobre os instrumentos e as
cidade brasileira contemporânea, surgidas através do mercado, da necessidade de formas de ocupação encontradas nas favelas. Os autores acentuam a importância
responder, de um lado aos “megaeventos” que têm levado a um tipo de projeto com de se compreender as regras e códigos que informam as ocupações e os significa-
a concepção de “monumento” e, de outro, ao plano e a ação projetual necessários dos atribuídos à posse, propriedade, aluguel etc. pelos moradores, como elementos
à demanda do cotidiano. Enfatiza a importância de se colocar o protagonismo do que, embora acrescentando complexidade à situação fundiária destas áreas, devem
plano e do projeto, que devem ser concebidos a partir de alguns princípios nortea- ser levados em conta nos programas de regularização fundiária instituídos pelos
dores de superação das tensões apontadas. órgãos públicos.
A professora Sonia Ferraz, em coautoria com Bruno Amadei Machado e
6 PERCEPÇÃO, OCUPAÇÃO E EXPANSÃO SOBRE O AMBIENTE
Juliane Guimarães, alunos de Iniciação Científica da EAU/UFF, explicita a forma e
NATURAL E CONSTRUÍDO
os mecanismos através dos quais o mercado imobiliário “redesenha” arquitetura e
Os textos desta seção tratam de temas e processos percebidos e materializa-
cidade com vistas à segurança contra o aumento da criminalidade na cidade de Ni-
dos sobre o território, ocorridos em diferentes dimensões e segundo abordagens que
terói. Assim, aponta o uso de novos materiais e tecnologias, e os discute a partir
dão foco às escalas regionais e municipais, de cidades e da arquitetura, mas com teo-
da concepção de “transparência” que, entre outros efeitos, leva à disseminação dos
rias bastante distintas. Evidenciam procedimentos metodológicos próprios, relativos
“muros de vidro” complementados pela tecnologia digital. Acentua as implicações
à avaliação de mudanças, seja no âmbito da ocupação do território, seja na forma
de tal utilização nas relações entre o espaço público e privado e o papel do mercado
de apreender essas mudanças, vivenciadas por diferentes populações deste Estado.
imobiliário nos seus desdobramentos, ao promover a crescente concretização de
Assim, o primeiro texto, de autoria do professor Werther Holzer, em coautorira de
uma sociabilidade excludente.
Camila Quevedo, trata de uma das vertentes mais recentes da urbanização – a dis-
5 HABITAÇÃO: POLÍTICAS, GESTÃO E REPRESENTAÇÕES persão urbana, ocorrida no município de Maricá que, com suas realidades e carac-
A questão habitacional, tanto na análise de suas características quanto nas terísticas geográficas, cercado por elevações, vem convivendo com acessos viários
intervenções dos vários agentes sob forma de políticas, programas e projetos, é um indutores de seu crescimento e parcelamento do solo, com tendências ocupacio-
dos campos de maior continuidade não só da produção que tem sido desenvolvida nais e formação de tecidos urbanos propiciados por este tipo de urbanização, e que
no PPGAU, como em relação à própria tradição de formação da Escola de Arquitetu- fragmenta seu ecossistema, segundo diferentes formas de isolamento. O segundo
ra e Urbanismo – EAU a que se vincula o Programa. Ao longo dos anos esta produ- texto se dedica a rever as transformações e os impactos trazidos pela construção da
ção tem se diversificado e acompanhado sob a forma de reflexão e de prática social ponte Rio-Niterói, analisados pela professora Lelia Mendes de Vasconcellos através
as transformações do campo. Neste sentido, os professores reunidos nesta seção das percepções retidas pela população e das imagens mentais formadas a partir do
abordam diferentes aspectos da questão habitacional, que são bastante expressivos espaço percebido, abarcando depoimentos e entrevistas com os que vivenciaram as
dessa produção. A professora Regina Bienenstein, em coautoria com os pesquisa- alterações das configurações espaciais. As diferentes apreensões foram detectadas
dores Eloisa Helena Barcelos Freire e Natalia Oliveira, do NEPHU/UFF e Daniela no levantamento realizado nos anos 1993-1994, vinte anos depois da intervenção no
Amaral, doutoranda do PPGAU, iniciam a seção incluindo de forma mais abrangente espaço e ambiente a elas concernentes, basicamente direcionadas a três diferentes
a questão habitacional em escala regional, tratando dos desdobramentos das inter- pontos da cidade de Niterói. O terceiro trabalho, de conotação tecnológica, desen-
venções sobre o espaço do leste metropolitano. Os professores Gerônimo Emilio volvido pela professora Louise Land Bittencourt Lomardo, em coautoria de Ingrid
Almeida Leitão e Maria Laís Pereira da Silva têm seus artigos confluindo no senti- Chagas L. da Fonseca, Carla Cristina da Rosa de Almeida e Estefânia Neiva Mello,

14 apresentação Maria de Lourdes Costa | Maria Lais Pereira da Silva (org.) 15


destaca a importância do conforto ambiental e eficiência energética, na avaliação de políticos, sob efeitos complexos e irreversíveis. O quinto trabalho, apresentado pela
projeto bioclimático específico no Rio de Janeiro, que privilegia os recursos naturais professora Fernanda Furtado de Oliveira e Silva, propõe a revisão de um sistema
em sua construção. O projeto demonstra aperfeiçoamento na metodologia aplicada, de instrumentos afeitos ao financiamento da infraestrutura necessária ao desenvol-
diretrizes para a adoção de recursos em favor da redução do ganho térmico da edifi- vimento urbano, tendo como princípio os recursos disponibilizados pelo Estatuto da
cação e tecnologias construtivas inovadoras. Cidade, referência para os Planos Diretores Municipais, com o objetivo de correção de
manifestações perversas do mercado, que permitem a apropriação privada da valo-
7 Planejamento e Gestão do Território: perspectiva urbana e regional
rização fundiária.
Presença marcante nas temáticas desenvolvidas nos artigos da seção mostra
preocupação com o estágio atual do capitalismo no país, em especial nestes tempos
A PArte 2 do livro consagra-se ao produto da colaboração prestada por pesquisado-
de neoliberalismo, com as correspondentes produções dos espaços, vistas de acordo
res externos, de grande valia para a complementação dos conteúdos trabalhados no
com diferentes instâncias, escalas, ações de agentes públicos e privados e instrumen-
Programa, trazendo além de metodologias científicas, o pensamento e a discussão
tos de políticas fundiárias. Em geral, considera grandes projetos em implantação no
de temas atuais, fundamentais para a formação, investigação e treinamento de técni-
estado, municípios e cidades fluminenses. O primeiro artigo, apresentado pelo pro-
cos que querem se dedicar tanto à educação quanto a outras atividades necessárias
fessor Glauco Bienenstein, destina-se a analisar as configurações de processos eco-
ao desenvolvimento urbano e regional, sobretudo de responsabilidade no âmbito
nômicos globais, segundo rebatimentos sobre o espaço metropolitano, apontando
público, em nosso país e em seus países de origem, na América do Sul, nos Estados
consequências que assumem padrões seletivos e excludentes de segmentos sociais,
Unidos e na Europa.
seja nos investimentos, na produção e/ou na gestão do espaço urbano, tomando o
Assim, o primeiro artigo apresenta a construção da imagem urbana nos gran-
Rio de Janeiro como caso referência. O segundo trabalho, escrito pela professora
des eventos, escrito pela professora Anne-Marie Broudehoux (Canadá). Os textos
Fernanda Ester Sánchez García, expressa a reconfiguração das cidades, especial-
em seguida, sob mesma procedência, primeiro da professora Ada Esther Portero
mente no que afeta aos grupos sociais submetidos aos impactos causados pelos me-
Ricol (Cuba), em coautoria com Ricardo Machado Jardo, mais os acadêmicos Mi-
gaeventos esportivos, quando se tenta refazer a cidade do Rio de Janeiro segundo a
relle Cristóbal Fariñas, Abniel Ramirez González e Roberto Adám Bell Sellén, na
imagem pretendida, na perspectiva de sediar a Copa de 2014 e os Jogos Olímpicos
busca do entendimento da sustentabilidade do desenvolvimento urbano de Havana
de 2016, situando o significado do megaevento esportivo como expressão da globa-
e, o seguinte, de autoria da professora Gina Rey (Cuba) coloca a posição da universi-
lização, com suas diversas dimensões e interconexões em relação a outros processos.
dade em relação às questões do desenvolvimento local. O quarto texto, do Professor
O terceiro texto, do professor Christopher Thomas Gaffney, expõe a orientação as-
Giorgio Piccinato (Itália), trata dos centros históricos sob pressão, visto à luz de sua
sumida nas reestruturações políticas, sociais e fiscais no contexto político-econômico
experiência em seu país. O quinto escrito abrange um tema que, aos poucos, vem
brasileiro, no mesmo tempo de neoliberalismo, tendo como foco a cidade do Rio
sendo demandado pelo Programa: trata-se de uma atualização da argumentação
de Janeiro, com suas transições revelando desigualdades e contradições, no curso
sobre a questão do gênero, como o que vem sendo desenvolvido pela professora
do surgimento de coalizões e interesses que transformam tanto os espaços quanto
Inés Sánchez de Madariaga (Espanha), em que destaca a importância deste estudo
as relações sociais, no horizonte dos megaeventos esportivos nas cidades brasilei-
para que as cidades possam ser consideradas realmente de todos. O sexto artigo é do
ras, em 2014 e 2016. O quarto texto – elaborado pela professora Maria de Lourdes
professor Laurent Vidal (França), em que revela o imaginário das cidades ao longo
Costa, em coautoria com a arquiteta urbanista Aline Couto da Costa (egressa do
do tempo e o uso político que se faz das imagens então construídas. O sétimo artigo
PPGAU) e pela então pesquisadora de Iniciação Científica Diana Bogado Corrêa
traz na análise a importância da história para as pesquisas dos arquitetos urbanistas e
da Silva (egressa do PPGAU), constitui-se um alerta em relação aos efeitos do novo
planejadores urbanos, de autoria do professor Nestor Goulart Reis (Brasil). Nele, os
ciclo econômico, advindo da exploração e produção offshore do petróleo no territó-
campos do saber aparecem em longa duração, segundo uma articulação que se faz
rio do estado do Rio de Janeiro, no que tange aos municípios litorâneos da bacia de
necessária desde alguns séculos atrás. O oitavo artigo se estende por experiências dos
Campos. Assumem importância os impactos locais e regionais ocorridos na área, as
espaços públicos lineares em cidades latino-americanas, nas análises da professora
intervenções urbanísticas então praticadas e a implantação gradativa de normativas,
Silvia Arango (Colômbia), cujos exemplos passam por vários países, urbes e espaços,
no curso do recebimento majorado de recursos, provenientes dos royalties, no pós
nesta escala. O nono texto, da professora Tânia Beisl Ramos (Portugal), nos remete
1988. O questionamento surge pela forma de urbanização propiciada, com desca-
a diferentes manifestações entre aldeias e cidades, no contexto luso, em período que
racterizações físico-espaciais e ambientais, ocorrendo sob a execução de projetos

16 apresentação Maria de Lourdes Costa | Maria Lais Pereira da Silva (org.) 17


alcança a produção do seu modernismo a partir de exposição que considerou vinte e
dois anos de sua história. O décimo e último artigo, de autoria do pesquisador Walter O trajeto do Programa de
Pós-graduação em Arquitetura
Hook (Estados Unidos) dá foco ao debate cada vez mais atual e premente em relação
às cidades contemporâneas: a questão da mobilidade urbana, a par da congestionan-
te cidade do automóvel.
e Urbanismo
Marlice Azevedo
Sergio Leusin
Vera Rezende

O curso de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU – UFF teve


início com a aprovação pela CAPES de proposta para a criação da Pós-graduação
em nível de mestrado em 2003. Esta aprovação veio coroar um esforço de um grupo
de professores que desde alguns anos já desenvolviam pesquisas e buscavam um
espaço para melhor compartilhar esta atividade com outros pesquisadores e alunos.
As atividades do curso começaram com a entrada da primeira turma no segundo
semestre de 2003.
A partir desse ano, o curso se tornou referência regional, formando como
pesquisadores técnicos de níveis superiores de órgãos públicos municipais, estadu-
ais e nacionais, assim como dirigentes políticos e profissionais de ONGs e empresas
privadas. Nesse período, tivemos projetos de pesquisas e bolsas financiados pelas
principais instituições de fomento de pesquisa do país, como CNPQ, CAPEs e FAPERJ,
FINEP, bem como convênios com instituições governamentais, como MDIC, ABDI,
Min. Das Cidades e organizações privadas, como a FIESP e SINDUCON RIO. Isto resul-
tou em grande número de produções bibliográficas sob a forma de artigos em anais
de congressos e periódicos, nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros.
Ao mesmo tempo, a implantação em nível de mestrado nos permitiu melhor
identificar a demanda existente por um curso de tal perfil localizado no Estado do
Rio de Janeiro, fora de sua capital, a cidade do Rio de Janeiro, apoiando-se na evidên-
cia de que tradicionalmente a Cidade de Niterói exercia uma polarização de serviços
especializados nos municípios vizinhos, como polo leste da Região Metropolitana
Em 2011, a criação do curso de Pós-graduação em “Produção e Gestão do Am-
biente Urbano” em nível de doutorado constituiu um desenvolvimento natural do
processo de amadurecimento do curso, concretizando a intenção inicial do grupo
de professores que formavam o quadro permanente do Mestrado.
Após cinco anos e meio de existência do curso em nível de Mestrado, havía-
mos verificado uma demanda permanente para as seleções das vagas oferecidas a

18 apresentação Marlice Azevedo | Sergio Leusin | Vera Rezende 19


cada semestre. Os candidatos eram originários de todo o Estado do Rio de Janeiro do. A formação esperada dos doutores reforça esse caráter de pesquisa interdiscipli-
e, ainda, extrapolavam os seus limites geográficos, vindo principalmente de estados nar, objetivando a sua inserção social, profissional e acadêmica.
como Minas Gerais e Espírito Santo. A inovação da criação do Programa em nível de Doutorado para o curso em
Essa demanda se reafirmou após a criação do curso em nível de doutorado. A geral se deu com a diminuição do número de linhas em nível de mestrado, “Planeja-
necessidade de profissionais qualificados é própria da Região Metropolitana do Rio mento e Gestão do Espaço”, “Projeto, Produção e Gestão do Edifício”, “Espaço e Cul-
de Janeiro, cujos problemas mostram a necessidade de refletir sobre questões urba- tura” e, ainda,“Espaço construído e Meio ambiente”, concentrando-as em três linhas,
nas e regionais e seus desdobramentos como sustentabilidade ambiental, proteção que tratam tanto da edificação quanto da cidade, a partir da inclusão do objeto
do patrimônio natural e construído, as transformações das cidades e sua história, a arquitetônico dentro das diferentes abordagens: projeto, planejamento, gestão, his-
moradia e a infraestrutura, assim como a busca e o resgate da possibilidade de apli- tória, cultura, sustentabilidade e ambiente.
cação de novos instrumentos urbanísticos. Essas três linhas, que contemplam tanto a edificação como unidade básica de
A especificidade do Programa se destaca por reunir as temáticas da arquite- composição do ambiente urbano, assim como, o espaço construído, correspondem
tura e do urbanismo, segundo óticas diversas, história, patrimônio, sustentabilidade às linhas de distribuição das pesquisas e estudos: “Projeto, Planejamento e Gestão
e gestão de projetos, em um mesmo programa em níveis de Mestrado e Doutorado. da Arquitetura e da Cidade”; “Cultura e História da Arquitetura, da Cidade e do Urba-
O Doutorado em “Produção e Gestão do Ambiente Urbano” se inseriu, por- nismo”; “Espaço construído, Sustentabilidade e Ambiente”.
tanto, em uma Região Metropolitana, que tem uma tradição técnica de preocupa- Apesar da diversidade contemplada nos temas de cada linha busca-se uma
ções com o urbanismo, intensificada por medidas mais recentes instauradas após a inter-relação entre estes, o que se traduz na existência de projetos de pesquisa e
Constituição de 1988. Um dos principais desafios a enfrentar é a crescente interde- disciplinas que cruzam de forma necessária reflexões de duas ou mais linhas.
pendência entre as cidades do Estado do Rio de Janeiro, que necessitam de instru- Devemos ressaltar uma forte preocupação pedagógica direcionada ao
mentos legais que não se restrinjam à escala municipal. mestre, refletida em disciplinas e estágios docentes complementares visando refor-
Por outro lado, a questão metropolitana merece permanente reflexão, seja çar a formação do exercício da atividade de professor.
pela interdependência econômica e social de suas atividades, seja em problemas
específicos de planejamento urbano e regional, ou ainda pelo impacto de grandes
eventos programados para os anos próximos como a Copa do Mundo de 2012 e os
Jogos Olímpicos de 2016.
A contribuição do PPGAU para os municípios da região é, pois, considerável,
tornando-se maior com a criação do Doutorado. Além de produzir a pesquisa e a
reflexão critica sobre conceitos e instrumentos, que podem servir de subsídios para
os órgãos públicos locais, o Programa tem assumido o papel de formar técnicos es-
pecializados de nível superior e também professores e pesquisadores que irão atuar
em outros cursos de graduação ou pós-graduação.
O caráter interdisciplinar do curso é marcante na área de concentração em
Produção e Gestão do Ambiente Urbano, que envolve conhecimentos de arquite-
tura, urbanismo, planejamento urbano e regional, história, sociologia, geografia
e gestão de projetos. Tal Interdisciplinaridade, justificada pela complexidade das
questões urbanas, reflete-se na produção intelectual do PPGAU, na formação dos
docentes e na entrada dos discentes, assim como em linhas de pesquisa e pesquisas
em desenvolvimento.
O exercício dessa interdisciplinaridade se refletiu, ainda, na estruturação das
suas disciplinas e no conteúdo acadêmico do Programa, no Mestrado e no Doutora-

20 o trajeto do programa Marlice Azevedo | Sergio Leusin | Vera Rezende 21


PARTE l
DOCENTES PPGAU E
COAUTORES
1. EXPERIÊNCIA DIDÁTICO-PEDAGÓGICA de la formación en el trabajo profesional de arquitecto y urbanista, cuando aborda las con-
secuencias potenciales de la falta de formación del profesorado centrada en la enseñanza.
A continuación, analizaremos su contenido y consecuencias, así como sus objetivos para la
recuperación y mejora de la educación y la consiguiente necesidad de fortalecer la profe-
Necessidade e importância sión, con la responsabilidad social y la ética, en Brasil.

da formação para o ensino.


Palabras clave: la educación, la enseñanza, la formación, el rendimiento, la arquitectura
y el urbanismo.

Disciplina didática aplicada 1. Introdução


Da profissão e da formação do arquiteto e urbanista
Jorge Baptista de Azevedo
“Não adianta termos o melhor currículo possível, se os professores conti-
nuarem trabalhando com metodologias e pensamentos superados, com
Resumo | Este artigo observa a importância das disciplinas Didática Aplicada e Estágio cursos repetidos e sem interesse. Sendo assim não há aluno que tenha
Docente supervisionado que integram o Mestrado em Arquitetura e Urbanismo da Univer- motivação.” (trecho de entrevista em Azevedo, 1995).
sidade Federal Fluminense. Estrutura-se a partir de uma breve análise sobre a complexida-
de da formação na atuação profissional do arquiteto e urbanista, quando aborda possíveis Arquitetos e urbanistas estudam, concebem e produzem o abrigo do corpo
consequências da falta de preparação docente voltada para seu ensino. A seguir, discorre humano em suas múltiplas atividades e dimensões. Seja a casa que abriga o homem
sobre os conteúdos e desdobramentos das disciplinas citadas, bem como seus objetivos de e sua família, seu trabalho ou lazer, ou ainda, a casa que contém todas as casas que é
valorização e melhoria do ensino para o consequente e necessário fortalecimento da profis- a cidade – a casa do corpo social e seus espaços livres resultantes, através do paisagis-
são, com responsabilidade social e ética, na atualidade brasileira.1 mo. Arquitetos e urbanistas, entre tantas outras atividades, são criadores e, também,
devem ser construtores. E como podem criar e construir, muitas vezes ousam uto-
PALAVRAS-CHAVE: ensino, didática, formação, atuação, arquitetura e urbanismo.
pias para o amanhã. Afinal, segundo Argan: “todo arquiteto é um reformador social”
Abstract | This article points out the importance of the subjects Applied Teaching Didac- (2000:87) e, isso, mais do que bom ou poético é absolutamente necessário.
ticism and Teaching stage at the education of Architecture and Urbanism Master’s degree A formação em arquitetura e urbanismo envolve tecnologia, ciências sociais e
at the Universidade Federal Fluminense. Structured from a brief analysis of the complexity artes, pensadas no projeto pedagógico, distribuídas e articuladas nas dimensões di-
of training in professional work of architect and urbanist, when addresses potential conse- dáticas do currículo e da sala de aula (LUAIZA, 2008). Por tantos aspectos é uma das
quences of the lack of teacher didacticism training focused on teaching. The following dis- mais complexas da atual configuração de áreas e campos de saberes do ensino su-
cusses its content and consequences, as well as your goals for recovery and improvement of perior brasileiro. A organização pedagógica e desdobramentos didáticos do ensino
education and the consequent need to strengthen the profession, with social responsibility das disciplinas, bem como os seus conteúdos precisam ser articulados para garantir
and ethics, in Brazilian present. qualidade e segurança, o que inclui a responsabilidade social e a ética no exercí-
Keywords: education, teaching, training, performance, architecture and urbanism. cio profissional. Afinal, durante a graduação é definido o perfil geral do profissional
Resumen | Este artículo señala la importancia de los temas aplicados Enseñanza y prácticas mesmo que, após o seu término, diferentes rumos de atuação possam ser tomados.
de Enseñanza supervisados que integran el Máster de Arquitectura y Urbanismo de la Uni- Por outro lado, esse ensino multifacetado e complexo, que visa a formação de um
versidad Federal Fluminense. Estructurado a partir de un breve análisis de la complejidad profissional generalista, também produz um estudo semelhante, em que muitas de
tantas informações diferenciadas podem ser distanciadas de um aprofundamento
1. Este texto se refere a terceira experiência da disciplina Didática Aplicada realizada sob minha docência. A partir da maior de seus conteúdos, ou das indicações de suas complementaridades. O que
segunda experiência, o professor visitante, Christopher Gaffney, participa e contribui voluntariamente para a mesma. pode representar a força, deste modo, também pode se transformar em fragilidade.
A sua participação e seu olhar crítico como docente de outras áreas em diferentes países têm sido muito enriquecedor
para a disciplina e, especialmente, para mim. (NOTA DO AUTOR).

24 Necessidade e importância da formação para o ensino Jorge Baptista de Azevedo 25


Em uma dimensão mais ampla de análise a profissão continua em expansão, De novo volta-se ao ensino, que é o ponto de partida, a base para o enten-
o crescimento populacional, somado ao desenvolvimento econômico brasileiros, dimento dos papéis e características almejadas para a profissão. Sabe-se, quase
tem aberto novas e significativas oportunidades profissionais para a arquitetura e o sempre, que as graduações não estão devidamente preparadas e atualizadas para
urbanismo e, assim, o campo de trabalho se ampliou muito nos diversos setores de tais empreendimentos – tarefismo sem reflexão, carência de experimentação, mas-
atuação. Entretanto, em todos eles, verificam-se mudanças aceleradoras do ritmo e sificação com mediocrização baseada na falácia da democratização do ensino, pro-
métodos do sistema produtivo que, por sua vez, exigem profissionais cada vez mais fessores desestimulados, alunos desmotivados com o curso e apenas interessados
qualificados, especialmente em termos tecnológicos, desde a representação gráfica nos diplomas e na renda futura, infelizmente estão por trás de muitos currículos.
do projeto até o canteiro de obras. Como exemplo de tantas mudanças e novidades, Tudo isso pode ser somado à falta de escolas e cursos originais e diferenciados,
é citado com frequência o desenvolvimento do uso da plataforma BIM, alvo de inú- apesar de se viver em um país continental e rico de culturalidades, já que a maio-
meros encontros e publicações, uma nova ferramenta da informática capaz de revo- ria das graduações tendem à um ensino homogêneo, pois, em geral, é mais fácil e
lucionar o cotidiano das tarefas do arquiteto e urbanista, controlando até mesmo a econômico cumprir somente o mínimo curricular disposto em lei. Esses são alguns
manutenção e uso das edificações após sua construção2. aspectos citados por estudiosos da crise do ensino da profissão no país.
A profissão de arquiteto e urbanista, por sua vez, encontra-se em um momen- Enfim, somos quase 300 graduações de arquitetura e urbanismo no país
to muito especial e delicado de sua história no país – seja no ensino, na atuação e, (VIEIRA, 2012) e sabe-se lá como funcionam. O ensino é ainda pouco valorizado e
mais recentemente, em sua reorganização política representativa. A categoria con- a ideia de que uma sala de aula, um quadro de giz e um professor mal remunerado
quistou seu conselho próprio, o CAU3, mas este só se fortalece com o fortalecimento podem dar o jeito, ainda é comum e rentável em muitas instituições preocupadas
da classe, em um processo bilateral de atuação e trabalho. Porém, tal fato só será com o lucro. Até nas instituições federais de ensino superior, que deveriam ser pa-
possível por meio do amplo reconhecimento dessa profissão e sua efetiva capacida- drões e referências de qualidade e eficiência, verificam-se instalações precarizadas
de de contribuir para a melhoria da realidade social, em suas múltiplas dimensões de e desatualizadas, o ensino sobrevive em sua dignidade pelo esforço de seu corpo
desigualdades, ainda gravíssimas na situação brasileira. Espera-se que, em breve, de docente e qualidade do discente. Afinal, ao garantir a estabilidade de vínculo empre-
acordo com a aplicação da lei já existente desde 2008, seja possível iniciar um proces- gatício em um cenário marcado pelas incertezas e má remuneração, esses empregos
so de transformação da imagem, ainda elitizada, que se faz fortemente presente nas ainda atraem os melhores profissionais de ensino e atuação da área. E, seguindo a
representações sociais da categoria. Com um bom caminho para essa desconstrução, lógica discente, a gratuidade das vagas e o reconhecimento da qualidade, por sua
arquitetos e urbanistas recebem a oportunidade e a responsabilidade por atender a vez, são chamarizes para os melhores e mais dedicados estudantes do ensino médio.
população de cada município brasileiro, para assegurar “às famílias de baixa renda Todavia, essa última observação poderá ser questionável em unidades que estão se
assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de transformando em escolões públicos de ensino superior (Mattos, 2007)4.
interesse social” (Lei 11.888/2008), conforme preconizado no Estatuto da Cidade, que Paralelo ao alardeado enfraquecimento de nossas graduações, verifica-se
regulamenta os artigos 182 e 183 sobre Política Urbana da Constituição Federal. que a crise econômica e financeira de outros países, em especial da Europa, tem
Por outro lado, existem dimensões do mercado norteadas pela especulação suscitado a vinda de inúmeros profissionais, especialmente jovens, oriundos de tra-
que também cooptam profissionais inescrupulosos, que assinam intervenções inde- dicionais instituições de ensino e em busca de oportunidades profissionais. Claro
vidas nas cidades e outros locais, antigos rurais ou com grandes recursos naturais, que uma injeção bem dosada de jovens profissionais qualificados pode ser positiva
aviltando lugares, culturas e vidas humanas. Arquitetos e urbanistas devem ser pro- e estimulante, mas uma proporção desequilibrada somada com a tradicional “sín-
fissionais com amplo olhar, atento desde o novo necessário até o antigo que precisa drome de colonizado” brasileira, poderá produzir o senso comum de que é mais
ser preservado, e esses valores devem ser apreendidos e fortalecidos durante a for- barato ou melhor importar profissionais do que os preparar por aqui.
mação universitária.
4. Em diversas unidades da Universidade Federal Fluminense (UFF), o caos praticamente se instalou, com turmas de
dezenas de alunos após a implantação mal planejada do Programa REUNI, ao qual a Escola de Arquitetura e Urbanismo
2. Building Information Modeling (BIM – em português, Modelagem de Informação para Construção) nas áreas de (UFF) não aderiu. Lembra-se aqui a fala do professor Mattos, de História, quando em seu surgimento: “Não há mágica
construção e projetos. (PINI Web – Especial BIM, de 23 de maio de 2013) capaz de multiplicar matrículas sem investimentos, e ainda assim afirmar-se que se estará formando profissionais com
3. Criado pela Lei Federal N. 12.378 de 31 de dezembro de 2010, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo, autarquia um ensino superior de qualidade. O que se propõe com o REUNI é diplomar um número maior de jovens em habili-
dotada de personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa, financeira e estrutura federativa, tações sem qualquer capacidade de inserção nos empregos de fato para profissionais de nível superior. Com isso se
passa a regulamentar as atividades de arquitetura e urbanismo no país. O CAU surge como o mais novo interlocutor da dá uma resposta fácil à justa demanda social por ampliação do ensino superior público, mas para agregar mais e mais
sociedade na agenda do desenvolvimento urbano (retirado do site CAU RIO DE JANEIRO. Disponível em: <http://www. diplomados ao desemprego e subemprego.” (Mattos, 2007).
caurj.org.br/?page_id=62>). Novembro de 2014.

26 Necessidade e importância da formação para o ensino Jorge Baptista de Azevedo 27


Evidentemente que pensar o ensino de arquitetura e urbanismo, ou qual- o que teriam recebido. Assim, o aprendente era o maior responsável pelo seu pró-
quer ensino, é pensar na política nacional de ensino em um plano maior. Avaliar prio aprendizado. Desse modo, caberia ao estudante dar o seu jeito para aprender,
até que ponto os diversos aspectos do modelo econômico vigente, em que o con- compreender e absorver conteúdos e instruções repassadas, estabelecendo uma
sumo transforma tudo em mercadoria, influenciam a política que planeja o ensino equação bastante cruel com os estudantes menos preparados ou com dificuldades
superior. Em tempos em que o sonho do ensino superior para os filhos aponta nas específicas. Assim, fundamentava-se uma quase “antididática” baseada na crença
estatísticas junto ao da casa própria e o carro novo, torna-se mais importante se de que para o professor bastava emanar conhecimentos e sabedoria.
preocupar com a quantidade do que com a qualidade, e a política de ensino pode Essa didática às avessas, segundo diversos depoimentos de docentes e dis-
ser facilmente seduzida por um ensino político, centes, ainda hoje explica boa parte da dificuldade observada no aprendizado das
Por tantos aspectos e questões, surpreende que quase inexistam iniciativas disciplinas técnicas, resultando em desempenho insatisfatório, reprovações e péssi-
para pensar e propor estudos voltados para a formação docente em Arquitetura e mos índices nas avaliações. O pior deles é o afastamento na prática da dimensão téc-
Urbanismo. Daí, conforme anteriormente afirmado, segue a segunda parte deste nica da construção, pois raros são os arquitetos e urbanistas que gostam de realizar
texto, que analisa os problemas observados em diversas graduações da área, e a cálculos estruturais e vivenciar o canteiro de obras.
terceira parte final, que apresenta a proposta das disciplinas da Pós-graduação em Em muitas graduações de arquitetura e urbanismo, as disciplinas de tecnolo-
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense. gia são ensinadas por professores que chegam de outros departamentos como o da
Física, Matemática e Engenharia, onde a sensibilidade criativa dos futuros arquitetos
e urbanistas parece incomodar, pois, ao invés de esforços para tentar demonstrar a
2. A importância da Didática e as consequências de aplicabilidade de seus ensinamentos, utilizam-se, na maioria das vezes, de métodos
sua utilização indevida em graduações de terroristas e punitivos de ensino. 5 Como resultado, os alunos tinham de se dedicar
arquitetura e urbanismo quase que exclusivamente a tais disciplinas, prejudicando o andamento de outras
ao longo do curso. Os demais professores, face às olheiras ou à ausência de seus
A importância de um ensino de qualidade, devidamente planejado e ministra- discípulos, mesmo tendo suas disciplinas afetadas eram obrigados a reconhecer tais
do, é fundamental para a trajetória de qualquer profissional de excelência. É fato que dificuldades. Afinal, os próprios docentes, quando estudantes, também já haviam
um bom ensino de arquitetura e urbanismo tem custos elevados, afinal, em razão da enfrentado situações semelhantes. Perdia-se a reflexão para a decoreba da aplica-
complexidade já citada, são necessários espaços especiais, equipamentos atualiza- ção de regras de derivações, limites e integrais, esquemas abstratos que poucas
dos, como bons computadores, mobiliários, bibliotecas e laboratórios. Entretanto, vezes podem ser associados com elementos reais de uma construção.
mesmo quando bem equipados, sem a devida pedagogia e didática, ainda podem Mas, o pior de toda essa calculeira, caracterizadora de um ensino meramente
trazer problemas muito sérios para a formação. Verificam-se pelo menos dois graves tecnicista, é ser transmitida em disciplinas completamente separadas do ensino de
problemas de natureza didática-pedagógica que afetam diversas graduações brasi- projeto, pois jamais se associava a exemplificações didáticas de sua aplicabilidade.
leiras: no ensino tecnológico e no ensino de desenho, conforme se explicita nos pará- Por mais que um ou outro arquiteto possa reconhecer alguma importância nelas
grafos a seguir, pois, durante muito tempo, mesmo docentes profissionais graduados como exercício mental abstrato, é raro descobrir algum que afirme a sua utilização
em programas de grande proficiência não recebiam o devido preparo didático-pe- no cotidiano da profissão do modo como foram transmitidas. A aproximação do
dagógico. Tais problemas já poderiam ter sido melhorados ou mesmo resolvidos, curso de Arquitetura e Urbanismo com o de Engenharia Civil revela pesadas heran-
caso existisse uma preocupação didático pedagógica mais disposta e enfrenta-los. ças do tecnicismo e da “antididática”.
Talvez pela herança de se possuir uma formação parcialmente tecnológica, É importante lembrar que a tecnologia pode ser ensinada de forma mais
a docência nunca foi discutida como parte da formação, mesmo que suplementar, atrativa e coerente com o modo de pensar e trabalhar dos arquitetos e urbanistas.
bastando até certo tempo atrás ser um arquiteto para poder lecionar disciplinas na Lacunas e omissões não podem ser admitidas – afinal, trata-se de profissionais au-
área. Durante certa fase do ensino, em especial das áreas técnicas, naturalizou-se o
conceito do docente universitário que, quando reconhecido por sua atuação profis- 5. O que se pode dizer de professores cujo índice de reprovação chegava, em renovadas vezes, a quase 100% do
número de alunos da turma? Em 2013, cansados de reprovações e jubilamentos, os estudantes de Arquitetura e Urba-
sional, não necessitava de maiores preocupações didáticas. Todos acreditavam nisso nismo da UFF(Universidade Federal Fluminense) fizeram uma série de cartazes de filmes de terror alusivos às discipli-
e assim ficou, afinal, de acordo com o seu método de ensino, apenas reproduziam nas de Sistemas Estruturais e realizaram uma exposição com os mesmos no hall da Escola. Em 2014, o novo projeto po-
lítico pedagógico da prevê atividades integradas e disciplinas revistas sob um novo olhar didático. (NOTA DO AUTOR)

28 Necessidade e importância da formação para o ensino Jorge Baptista de Azevedo 29


torizados e historicamente envolvidos com construir e edificar e, portanto, possuem Muita coisa é feita distante das suas pranchetas, computadores com cads e mais
responsabilidades sobre aquilo que edificam. O que deve ser erradicado é o tipo de recentemente revits, e é bem verdade que existem exemplos fantásticos de criati-
tecnicismo estéril que se vem praticando e buscar a renovação das formas didáticas vidade e bom senso popular, erguidos frente à adversidade e escassez de recursos.
de ensino. Tecnicismo antiquado e decadente de soluções ultrapassadas e repeti- No entanto são mais numerosos os desabamentos anônimos, as aglomerações que
das, mal explicado e copiado de cadernos como receituários amarelados. É preciso impedem a circulação e implantações de redes de infraestrutura. Esforços de uma
estar atualizado das possibilidades técnicas, como também de lhe lançar desafios, vida que se vão a uma noite de tempestade, territórios espacialmente marginaliza-
questões e até novas soluções. Os atuais estudantes, futuros arquitetos e urbanistas dos, resistentes em sua caoticidade, à urbanização, estigmatizando e condenando
deverão estar mais atentos e exigindo maior qualidade de ensino nas disciplinas seus moradores a condições quase impossíveis de vida.
que abordam os materiais, seus comportamentos frente aos esforços, as estruturas Por outro lado, felizmente, a natureza das artes e das linguagens visuais, pre-
e instalações, durante o curso. Entretanto, a gravidade dessa herança ainda vai além sentes na formação do arquiteto e urbanista, sempre utiliza a visualização como
e também atinge a própria formação de engenheiros, resultando no surgimento de recurso, além de outros meios didáticos para seu ensino e aprendizado, ainda que
obras e autores que, egressos dessas áreas técnicas, reivindicam maiores preocupa- também possa ter problemas. A experiência prática, a demonstração de exemplos
ções didáticas e voltadas para um ensino mais criativo (LAURIA, 2001). são procedimentos metodológicos do ensino de artes que, tradicionalmente, se re-
Outro problema está centrado no ensino de desenho, em que a didática cos- produzem no ensino de projeto. Teorias e disciplinas complementares não se estru-
tuma faltar, fruto da dificuldade relacionada à questão de que há docentes de de- turam eficazmente sem a crítica e a compreensão de aspectos que são elucidados
senho que não sabem ou não querem desenhar, ou o que talvez seja ainda pior: por meio de leituras comentadas, compartilhamento de imagens e visitas especiais.
não usam e nem ensinam o desenho como ferramenta de reflexão e de comunica- Sendo assim, em geral, esse esforço para a compreensão da problemática humana
ção. Inicialmente o desenho precisa ser ensinado, implica em trabalho e dedicação para a produção da edificação e organização do espaço social, consubstanciadas
docente e discente, mas qualquer pessoa interessada pode aprender a desenhar, pelos meios técnicos, políticos e econômicos de cada tempo histórico, faz do estu-
obviamente desde que motivada por uma didática adequada para tal finalidade. dante de arquitetura e urbanismo um discente diferenciado, crítico e pouco afeito a
Em uma pesquisa realizada em escala nacional, estudantes de graduação de todo padrões impositivos de aprendizado, características que o afasta ainda mais de um
o país afirmavam saber fazer o antigo desenho técnico, bastante complexo e cheio ensino de tecnologias em que não se percebe reconhecido. 6
de instrumentos bem difíceis de manipulação, enquanto não conseguiam desenhar
livremente. O pior é que naturalizavam tal fato acreditando no dom para o dese-
nho, como algo de propriedade de alguns, e até docentes assinavam embaixo dessa 3. Os papéis das disciplinas Didática Aplicada e Estágio
tolice. Hoje a coisa se repete com o uso do computador e programas tipo CAD fa- Docente na formação do profissional da docência em
zendo a parte “técnica”(Azevedo, 1995). Arquitetura e Urbanismo
O desenho como limite entre a criação e a realização não deve ser um estrei-
tamento de possibilidades visando alguns poucos domínios de saber, por isso esse é Depois desta longa introdução que explicita alguns aspectos da complexi-
um ponto que precisa necessariamente ter suas práticas de ensino reavaliadas. Seja dade da profissão e, consequentemente, de seu ensino, fica mais fácil e justificado
o desenho de carvão sobre papel comum, seja o desenho realizado em computado- compreender a proposta da disciplina Didática Aplicada, que vem sendo oferecida
res de última geração, não devem representar uma linguagem redutora que coíba a no programa de pós-graduação. Na elaboração de sua programação, não se pensou
compreensão por parte dos não arquitetos, nem tampouco a do próprio arquiteto a disciplina apenas como uma exemplificação de recursos didáticos, como dinâmi-
enquanto interlocutor de desejos alheios, ou de seus próprios anseios de criatividade. cas em sala de aula, conforme sugere sua ementa, pois considera-se importante
Desse modo, o ensino do desenho tem sido, em uma das melhores hipóteses, uma compreensão mínima da profissão e de sua formação e estruturação no país.
um panorama de técnicas meramente aplicativas, sem a devida reflexão sobre os
6. No Brasil, ao contrário de outros países, existe um distanciamento pouco saudável entre profissionais da engenharia
porquês e para quês de sua aplicabilidade. Desvincula-se do estudo para o desen- e da arquitetura e urbanismo, infelizmente bastante generalizada. Esta prática se funda na graduação de ambos os
volvimento da linguagem gráfica em busca de melhores utilizações coerentes com cursos e, a meu ver, representa a mediocrização do ensino, uma vez que tais categorias não percebem a importância
de ambas estarem mais juntas e afins. O desconhecimento leva ao não reconhecimento e o medo parece ser recíproco.
as necessidades, sempre reatualizadas, da arquitetura e do urbanismo. Enquanto Os engenheiros temem a criatividade do arquiteto que implica em estudos mais complexos. O arquiteto, por sua vez,
os arquitetos sonham, cidades se erguem, ampliam-se e até mesmo desaparecem. teme não dominar os processos construtivos e se irrita com a frequente invasão de seu campo de trabalho por profis-
sionais da engenharia, que, em geral, não são preparados para tratar da complexidade dos projetos (NOTA DO AUTOR).

30 Necessidade e importância da formação para o ensino Jorge Baptista de Azevedo 31


Questionamentos como ”quais são os papéis que se espera ou se deveria esperar do melhor uso da didática, no bojo de um pensamento pedagógico coerente com a
desse profissional” podem contribuir para um ensino mais eficiente da profissão e formação e a atuação almejadas, são os principais objetivos da preocupação com o
capaz de enfrentar os sérios desafios que lhe são impostos. ensino, presentes nessa disciplina do mestrado.
Em relação à distribuição de conteúdos, a disciplina se divide em quatro mó- Para aplicar os conhecimentos aprendidos e vivenciar o ensino de Arquitetu-
dulos de aulas: no primeiro são estudadas e discutidas a didática e a pedagogia, en- ra e Urbanismo na totalidade de sua prática, existe a atividade Estágio Docente que
tendendo-as como ciências autônomas e seus devidos papéis. No segundo módulo pode se realizar de dois modos. No primeiro, trata-se do acompanhamento de uma
aborda-se uma compreensão dos aspectos estruturadores de seu ensino: a evolu- disciplina regular da graduação, sob a supervisão de um professor responsável, en-
ção histórica do ensino da profissão no país, a política de ensino nacional, o próprio volvendo os diversos aspectos de preparação, ensino e avaliação de uma disciplina.
ensino em sua dimensão política, e dentro dessa ótica analisa-se a regulamentação No segundo modo, o interessado se inscreve em uma turma especial do mestrado,
de ensino vigente e como se caracterizam seus atuais docentes e discentes, suas que oferece uma disciplina optativa para a graduação (normalmente Estudos Urba-
origens e a própria representação social da profissão. No terceiro módulo adentra- nos e Regionais II) com temática a ser definida, onde cada mestrando é responsável
-se a sala de aula como lugar da didática, em que são discutidos tópicos como o pla- por uma aula, também sob a responsabilidade de um professor. É importante frisar
nejamento do curso, ementa, programação e uso do tempo, além da organização que em nenhuma das modalidades se exime o professor de sua responsabilidade
espacial, meios técnicos e o mobiliário adequado, e questões relativas ao comporta- com a turma da graduação, ou, ainda, de usar tal iniciativa para suprir carências de
mento e disciplina, características e representações sociais de docentes, discentes e docentes nas disciplinas. O professor deve estar presente durante todas as aulas mi-
demais profissionais da arquitetura e urbanismo. No quarto módulo são observados nistradas e realizar tanto uma avaliação do desempenho do estudante, bem como
aspectos ainda mais específicos do ensino da arquitetura e do urbanismo em que contribuições durante a aula para estimular o seu dinamismo e valorizar a troca aca-
a didática pode contribuir para modos mais eficazes de aprendizagem e superação dêmica de conhecimentos.
de dificuldades. O debate por uma didática voltada para a criatividade no ensino e Durante a participação no mestrado, já fui responsável por coordenar dois
no aprendizado, no ensino de desenho e de projeto. A finalização do curso aborda estágios docentes, ocupados por estudantes mestrandos nas disciplinas de Projeto
questões sobre o papel da crítica no processo de construção de conhecimento, as de Paisagismo e Expressão no Urbanismo, respectivamente. Em ambas as experi-
metodologias de avaliação do ensino e suas práticas, quando existentes, além de ências, os benefícios foram compartilhados entre todos. As turmas contavam com
uma avaliação da própria disciplina. uma pessoa a mais a colaborar nos exercícios, explanação de dúvidas, nas críticas e
O mais interessante da disciplina é que, em cada módulo, com exceção do pri- comentários que, em geral, valorizam a autoestima dos estudantes, ao se sentirem
meiro que é realizado pelos professores, os assuntos são abordados em aulas expo- avaliados por dois profissionais. A presença do estudante em estágio-docente valo-
sitivas apresentadas pelos próprios alunos de modo individual. Cada aula exige a sua riza a disciplina, torna a aula mais dinâmica e estimula o próprio professor respon-
preparação, para a qual o estudante recebe orientações e indicação de textos de uso, sável, pois representa a presença de alguém mais próximo em termos de experiên-
não obrigatórios, durante um tempo previsto no início da aula da semana anterior. O cias e conteúdos acumulados para a realização de trocas e colaboração salutar. Para
estudante é convidado a criar dinâmicas para fixação e reforço dos objetivos de cada o mestrando em si, sempre se trata de uma aplicação prática dos conhecimentos
aula. Um questionário de avaliação é distribuído entre os demais estudantes presen- aprendidos em Didática Aplicada e de uma oportunidade de crescimento no exer-
tes com o objetivo de uma avaliação da aula apresentada pelo colega7. Ao final, os cício da docência, uma vez que pode acompanhar a evolução de uma disciplina de
questionários preenchidos são entregues ao autor da aula, para fins de autorreflexão, seu planejamento ao encerramento, ou seja, na totalidade.
e nos últimos minutos é realizada uma breve avaliação coletiva comentada. A disciplina Didática Aplicada e o Estágio Docente são atividades obrigató-
A expectativa em torno de cada novo encontro, tanto pela temática como rias para alunos bolsistas, porém, critico a possibilidade de o aluno não bolsista ser
pela atuação de cada colega, gera uma grande participação dos estudantes. O sis- dispensado de cursar tais disciplinas. Como lembra Paulo Freire (2010), somos todos
tema de funcionamento da disciplina leva a um engajamento com a dimensão da sujeitos de nossos aprendizados, aprendemos quando ensinamos e podemos en-
aula, não apenas participativo, mas, sobretudo, crítico e político. O desenvolvimento sinar o que aprendemos. Essa relação dialógica só enriquece o aprendizado para
todos seus participes. Todo mestrado acadêmico deveria formar mestres, e mestres,
7. O questionário, desenvolvido pelo professor Christopher Gaffney, avalia a aula com quesitos pedagógicos, como
a escolha do texto e estrutura do curso (aula) e os seguintes aspectos didáticos: engajamento, objetividade, uso do
como o próprio nome afirma, são educadores. Profissionais que lidam com a do-
tempo, variação metodológica, clareza, conteúdo, arranjo espacial e avaliação do aluno. São atribuídos conceitos MB cência devidamente qualificada para o processo de formação profissional, na busca
(muito bom), B (bom), M (médio) ou R (ruim). Existe ainda um espaço para comentários. (NOTA DO AUTOR)

32 Necessidade e importância da formação para o ensino Jorge Baptista de Azevedo 33


de um arquiteto e urbanista renovado em sua imagem, em um momento em que a 2. HISTÓRIA E PATRIMÔNIO
profissão se amplia e se populariza. Mestres que, efetivamente, busquem contribuir
para a educação de seres éticos e críticos e, consequentemente, para um mundo
mais justo e pleno de potencialidades. Nosso país possui realidades transculturais
que resultam de convívios interculturais seculares e que precisam ser mais compre- Niterói e a enseada de
endidas e preservadas pelos representantes desta e de outras profissões.
Em tantas instâncias de nossas vidas somos professores, em casa, no traba-
lho, no cotidiano em geral. Ensinar obriga a olhar o outro, a compreender suas po-
São Lourenço como local estratégico:
tencialidade e dificuldades e, assim, a ajudar a prosseguir onde, às vezes, só parece
haver grandes obstáculos. Aprender e ensinar, ensinando e aprendendo, faz de cada
a aldeia, o porto e a ponte
ser uma pessoa mais tolerante, compreensiva e generosa. Afinal tudo isso são coisas
que todo mundo e cada um necessita, e não apenas aqueles que irão se dedicar ao
Marlice Nazareth Soares de Azevedo
ensino como profissão. Arquitetos e urbanistas, acima de tudo, precisam se sensibi-
lizar com a dimensão humana e se responsabilizar, ética e esteticamente, contra a
falta de graça e de justiça do mundo.
Resumo | “Dos belos arredores do Rio, o mais interessante para mim foi quando fomos à
vila de São Lourenço, o único arredor da capital onde se encontra ainda os habitantes pri-
Referências Bibliográficas mitivos do país antes tão numerosos nestes cantões” (príncipe Maximilien de Wied-Newied,
Voyage au Brésil 1815).
ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e destino. São Paulo: Editora Ática. 2000.
Este marco de origem da cidade, o morro de São Lourenço, foi cuidadosamente escolhido pela
AZEVEDO, Jorge Baptista de. Um olhar sobre o desenho na formação de arquitetos e urbanistas posição estratégica, pois permitia uma visão completa da baía de Guanabara, da entrada ao
brasileiros. Niterói, dissertação de mestrado aprovada junto a Escola de Educação da
fundo, constituindo um privilegiado ponto de vista para controlar os invasores estrangeiros. Essa
Universidade Federal Fluminense, 1995.
localização qualificada foi reiterada como um dos pontos de referência para a entrada da cidade,
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes necessários á prática educativa. 42ª Ed. São em momentos distintos: o núcleo da aldeia (1567), o terminal ferroviário e portuário (1927), a
Paulo: Paz e Terra, 2010.
ponte Rio-Niterói (1975). São Lourenço é o berço do primeiro povoado de Niterói e também
MEIRA, Maria Elisa. A Educação do arquiteto e urbanista. Coord. Valeska Peres Pinto e Isabel objeto de importantes e emblemáticas obras públicas de intervenção urbana, como a constru-
Cristina Eiras. Piracicaba: Editora Unimep, 2001.
ção do porto no aterrado e da ponte de ligação com o Rio de Janeiro.
SANTOS, Milton. Por uma nova Geografia. São Paulo: HUCITEC – Universidade de São Paulo, 1978.
Esses fatos reiteram o valor histórico do lugar representado pela enseada e pelo morro de São
LAURIA, Douglas et al. O desafio da criatividade na formação e atuação do engenheiro. Disponível
Lourenço como origem da cidade e seu papel de acesso à baía de Guanabara, à cidade e ao estado
em: <www.pp.ufu.br/Cobenge2001/trabalhos/FCU003.pd>, Acesso em: fevereiro de 2014
do Rio de Janeiro através dessas interconexões. Essas relações se consolidaram, mas apesar de
LUAIZA, Benito Almaguer. Pedagogia e didática: duas ciências independentes. Cuba,
local fundador, São Lourenço é percebido como uma “periferia” física e social da cidade.
CEPEDH (Centro de Pesquisas para o Desenvolvimento Humano). Disponível em: <
br.monografias.com/trabalhos3/pedagogia-e-didatica/peda>, acesso em maio de 2011. Abstract | “The most interesting place of Rio`s beautiful outskirts is the village of São
MARAGNO, Gogliardo Vieira. Questões sobre a qualificação e o ensino de arquitetura e Lourenço. The only place around the capital where you can still find some native people
urbanismo no Brasil. In: XXXI ENCONTRO NACIONAL SOBRE ENSINO DE ARQUITETURA once so numerous in the area” (Prince Maximilien de Wied-Neuwied, Voyage au Brésil (1815).
E URBANISMO. ABEA: São Paulo, 2012. Disponível em: <http://www.abea-arq.org. The São Lourenço hill, where the city began, was carefully chosen for its strategic posi-
br/?p=382>, Acesso maio de 2023.
tion because it allowed a vast view of Guanabara Bay, from its mouth to its end. It was a
MATTOS, Marcelo Badaró. Reuni: expansão ou escolão? Espírito Santo. CADI – UFES. Disponível privileged view to control foreign invasions. This highly qualified position was reinforced
em: <http://cadiufes.wordpress.com/2007/10/26/reuni/>, Acesso em outubro de 2014.
through time as one of the references to enter the city: the center of the village (1573), the
train station and the docklands (1930), the Rio-Niterói bridge (1975). São Lourenço was the
center of the first settlement in Niterói. It is also the place of important and famous public

34 Necessidade e importância da formação para o ensino Marlice Nazareth Soares de Azevedo 35


works and urban interventions as the landfill to build the harbour and the bridge connect- núcleo da aldeia (1567), o terminal ferroviário e portuário (1927), a ponte Rio-Niterói
ing the cities of Niteroi and Rio de Janeiro. (1975). São Lourenço é o berço do primeiro povoado de Niterói e também objeto de
These examples reaffirm the historical importance of the São Lourenço cove and hill as the importantes e emblemáticas obras públicas de intervenção urbana, como a constru-
origin of the city and its role in the access to Guanabara Bay, to the city of Rio de Janeiro as ção do porto no aterrado e da ponte de ligação com o Rio de Janeiro.
well as to the state of Rio de Janeiro using the existing interconnections. With time these Esses fatos reiteram o valor histórico do lugar representado pela enseada e
relations were reinforced but despite being the origin of the city, São Lourenço is seeing pelo morro de São Lourenço como origem da cidade e seu papel de acesso à baía
today as a physical and social ‘outskirt’ of the city. de Guanabara, à cidade e ao estado do Rio de Janeiro através dessas interconexões.
Essas relações se consolidaram, mas apesar de local fundador, São Lourenço
Resumen | “La vecindad de São Lourenço fue, de entre todos los bellos alrededores de Rio,
é percebido como uma “periferia” física e social da cidade.
el que más me llamo la atención ya que justamente en este punto de la capital es donde
aún se puede encontrar a los habitantes originales del país, antes tan numerosos por estos
cantos”. Príncipe Maximilien de Wied-Newied, Viaje a Brasil (1815). 1. A Aldeia de São Lourenço dos Índios. Origem
El morro de São Lourenço, como marco de fundación de la ciudad, fue cuidadosamente
elegido por su posición estratégica ya que permitía una completa visión de la bahía de Gua- A concessão a Araribóia das terras da Banda d’Além pode ser entendida num
nabara, permitiendo así, un efectivo control de los invasores extranjeros. Esta localización contexto do projeto colonizador português, que se caracterizava no Rio de Janeiro
privilegiada de entrada a la ciudad ha sido puesta de manifiesto en distintas oportunidades: pela necessidade de se fixar nas terras em torno da baía de Guanabara, e para tanto
como centro de fundación de la aldea (1573), como terminal portuario y ferroviario (1930), era imprescindível se desvencilhar dos franceses invasores. A proximidade dos por-
como punto para la construcción del puente Rio-Niterói. São Lourenço, aparte de ser el tugueses com este chefe guerreiro Tememinós era fundamental pelas alianças já
lugar que dió origen al primer poblado de Niterói, ha sido también objeto de importantes estabelecidas entre os franceses e os Tamoios, inimigos históricos de Araribóia, que
obras públicas representativas de la intervención urbana, tales como la construcción del por conta disso já tinha anteriormente se refugiado no Espírito Santo. Por solicitação
puerto y también del puente que une Niterói a Rio de Janeiro. dos portugueses, sob o governo de Mem de Sá, ele volta desse refúgio para partici-
Los hechos ya mencionados no hacen sino reiterar el valor histórico del lugar representado
par da luta contra os franceses.
por la ensenada y el morro de São Lourenço debido a su importancia como punto de fun-
Após a expulsão francesa, a presença próxima do chefe indígena era funda-
dación de la ciudad y en su rol como acceso a la bahía de Guanabara, a la ciudad de Rio de
mental para assegurar a posse portuguesa. Coube a Antônio Marinho, figura de ex-
Janeiro y al estado del mismo nombre. A pesar que estas relaciones de interconexión se han
pressão do Reino, futuro provedor da fazenda real no Rio, a tarefa de transferir a Ara-
reforzado, el punto de fundación de São Lourenço es, aún, percibido como “periferia” física
ribóia as terras do outro lado da baía, o que também garantiria a proteção da futura
y social de la ciudad.
capital do Reino. No registro deste ato aparece o nome cristão de Araribóia, Martim
Afonso, índio da terra, que em 1568, com seus comandados ainda permanecia no
lado ocidental da baía em terras jesuíticas, pela ameaça permanente do retorno dos
Introdução franceses. De fato, os franceses com seus aliados tamoios voltaram a atacar o Rio de
Janeiro ainda naquele ano. Tais circunstâncias adiaram a posse efetiva da sesmaria
“Dos belos arredores do Rio, o mais interessante para mim foi quando fomos doada, que só se deu em 22 de novembro de 1573.
à vila de São Lourenço, o único arredor da capital onde se encontra ainda os habi- O aldeamento se instalou sob as normas do projeto colonizador português
tantes primitivos do país antes tão numerosos nestes cantões”. (príncipe Maximilien de orientação jesuítica, que impôs o estabelecimento de um único aldeamento. A
de Wied-Newied: Voyage au Brésil, 1815). sesmaria era extensa para os padrões da época e constituída de uma légua na orla
Este marco de origem da cidade, o morro de São Lourenço, foi cuidadosamen- marítima (6 6000 m) e com duas léguas de profundidade (13 200 m) pelo sertão
te escolhido pela posição estratégica, pois permitia uma visão completa da baía de adentro. O aldeamento se localizou junto à enseada denominada de São Lourenço,
Guanabara, da entrada ao fundo, constituindo um privilegiado ponto de vista para e no morro foi edificada uma pequena igreja dedicada ao Santo, local que se tornou
controlar os invasores estrangeiros. Essa localização qualificada foi reiterada como o coração da aldeia. Estava em curso um processo de descimento dos gentios para
um dos pontos de referência para a entrada da cidade, em momentos distintos: o as aldeias existentes e, cinco anos mais tarde, já se identifica uma solicitação do je-

36 Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico Marlice Nazareth Soares de Azevedo 37
suíta Antônio Lousada, nomeado procurador dos índios, por mais terras, pois eram çada pela expulsão dos jesuítas em 1759, pelo Marques de Pombal, a aldeia só foi
poucas para os que lá viviam e para os que descessem. A solicitação foi atendida e extinta em 1866.
quatro léguas da banda d’ Além, depois do rio Macacu, foi dada em 1578. Como se
constata, havia um interesse especial dos jesuítas pela expansão dessas terras, que
correspondia a maior número de índios para catequisar, contingente maior de mão As terras e o patrimônio territorial
de obra para cultivar e indiretamente, maiores possibilidades de comercializar as
terras através das concessões de posse aos colonizadores europeus. A testada de terras parece estender a sesmaria indígena do morro do Gra-
goatá até o porto de Maruí (Maraguhi). Uma demanda de terras que data de 1656
exigiu uma composição amigável entre os jesuítas e o procurador dos índios de um
A Igreja e a catequização Jesuíta lado, e seis ocupantes de terras pertencentes a Antônio Mariz de outro. Os domínios
indígenas iniciavam no termo da légua de testada medida a partir do marco das
O projeto de colonização foi bem sucedido nesses primeiros anos nos aldea- barreiras vermelhas. (FIGURA 1, desenho de Seixas).
mentos da capitania do Rio de Janeiro. O número de novos cristãos era expressivo Em 1866 este marco foi encontrado enterrado no Gragoatá pelo engenhei-
e chegava a três milhões de índios cristãos, segundo informações do padre José de ro José Maria de Almeida Portugal, encarregado de demarcar as terras do antigo
Anchieta e Fernão Cardim. Na Aldeia de Araribóia, em carta datada de 1570, o padre aldeamento. O patrimônio indígena foi objeto de venda, troca, arrendamento e in-
Gonçalo de Oliveira cita a existência de uma pequena capela em taipa, em honra a vasões intermediadas pelos procuradores jesuítas tornando necessário, na segunda
São Lourenço, que é substituída em 1586 por outra mais robusta, mas ainda modes- metade do século XVII, por solicitação das autoridades do Colégio, um levantamen-
ta, onde no dia do Santo Padroeiro, em 10 de agosto do ano seguinte, é representa- to das escrituras emitidas pelos cartórios de notas, confirmando o encolhimento
do pela primeira vez o “Auto de São Lourenço” do Padre Anchieta. O episódio revela desse patrimônio. Essa situação foi sistematicamente agravada, o que pode ser ve-
a importância que assume o projeto de catequização. Essa construção foi substitu- rificado pelo documento de 13 de janeiro de 1835 emitido pelo juiz de órfãos, na
ída por outra de pedra e cal em 1627, e reformada em 1769 com as características condição de juiz dos índios dirigido ao presidente da província: “As propriedades da
arquitetônicas dos jesuítas, conservadas até hoje. aldeia consistem em uma sesmaria de uma légua de testada e duas de sertão neste
A prioridade de catequização vai perdendo significado, pois no período da município (Niterói), na igreja de São Lourenço, e da casa onde reside o seu pároco,
construção da igreja o aldea- situados no morro de mesma denominação e dentro da sesmaria. Esta se acha
mento se torna de visita, condi-
ção que significa que a cada 15
dias os padres do colégio vão
administrar os sacramentos, e
a aldeia de São Lourenço está
excluída da categoria de aldeia
de Missão do Colégio do Rio de
Janeiro ( Abreu, 2010). Poucas
década depois, o governador
considera essa aldeia útil pela sua localização perto do Rio de Janeiro, mas peque-
na para poder contar com a ajuda deles. Se no século XVI a aldeia de São Louren-
ço aponta uma população de 800 almas, no século XVII a população diminui para
330 almas e no XVIII são pouco mais de 100 almas. Abreu (2010) aponta três causas
principais para a redução da população dos aldeamentos indígenas: a mortandade
causada pelas epidemias, fugas e vícios como o uso de aguardente, e, perda das
terras comercializadas pelos procuradores jesuítas. Apesar dessa decadência, refor- FIGURA 1 Desenho de Romeu de Seixas Mattos (desenhista da Prefeitura). Fonte: Acervo do Labo-
ratório de Pesquisa LDUB – Niterói

38 Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico Marlice Nazareth Soares de Azevedo 39
quase que totalmente usurpada por diversos avarentos, abastados preponderan- terras passou para a União e a municipalidade recebeu as terras devolutas, e no final
tes, que, pelo influxo de suas riquezas, conseguiram apossar-se das terras e tecer a dessa mesma década também o foro. Esses arrendamentos eram denominados “foro
enredada teia com que procuram mascarar sua usurpação com o mais escandaloso dos índios”, ainda que não pertencessem mais aos antigos donos. A República (1899)
manifesto dano aos infelizes índios.” (Maia Forte, 1935). Essa perda foi se dando ao veio sedimentar a localização e o desenho do centro da cidade de autoria de Pallière
longo do tempo e as iniciativas de regularização não tiveram êxito. (1819). O esquecimento de São Lourenço como origem está representado na tendên-
Segundo documentos citados por Abreu, no início do século XVII, os descen- cia que se observa a partir do início do século XX, expressa na tese de Attilio Correia
dentes de Araribóia buscaram as áreas litorâneas e planas das terras do aldeamento e Lima (1930) “Avant-Projet d’aménagement et d’extensione de la ville de Niterói”, que
começaram a invadir a sesmaria vizinha de Icaraí, o que foi alvo de litígios com os her- aponta a chegada das barcas, no centro, como primeiro local de referência na cidade.
deiros dessa sesmaria (Abreu, 2010). Quanto às terras do sertão foram pouco aprovei-
tadas pelos índios e invadidas por outros proprietários, o que gerou muitos conflitos.
Esses fatos se acumulam e os índios vão perdendo terras e direitos paulatinamente. 2. A enseada e o porto
A população indígena vai se rarefazendo, e, em 1820, Milliet de Saint Adolphe
estimava a população em 200 índios que viviam da venda do peixe que pescavam A primeira ideia de se intervir na enseada do bairro de São Lourenço, área de
e dos poucos víveres que cultivavam, e alguns como remeiros dos escaleres d’el mangue da cidade, data de 1886, quando se cogitou pela primeira vez a construção
Rei. Algumas mulheres fabricavam uma louça de barro, muito estimada no Rio de de um porto. Essa localização era respaldada por argumentos higienistas: aterrar o
Janeiro. Dessa mesma época, segundo a descrição do príncipe Maximilien: desem- manguezal e remover casebres (“ferida cancerosa da cidade”). Essa imagem mostra
barca-se a pouca distância de São Lourenço e se coloca a subir morro de altitude a deterioração que atinge o núcleo da aldeia indígena.
medíocre por um caminho sombreado de espécies de plantas elegantes. O texto Na época, parte da enseada era um extenso mangue que margeava os fundos
desse pesquisador europeu descreve a vegetação, o índio, seu trabalho, sua casa e das casas da rua limítrofe ao morro (atual rua Marechal Deodoro). Segundo o poeta e
seu aspecto físico, e, principalmente, o impacto da paisagem tropical. jornalista Luiz Antônio Pimentel, o mangue era reforçado pela existência de uma pe-
Outras descrições reiteram o aspecto de abandono que vai tomando essa quena Lagoa (a dos Passarinhos), formada pela água recebida do Rio dos Passarinhos
aldeia, sendo que em 1831 é extinta a capitania mor das aldeias indígenas, e o Impé- e de duas fontes existentes na Chácara do Vintém e na Praça da República (FIGURA 2).
rio coloca os índios sob a tutela do juizado de órfãos. As terras vendidas ou cedidas Apesar desse mangue, a partir da Rua Visconde de Sepetiba, ter sido quase
mediante o pagamento de foros tinham pagamentos irregulares ou não efetivados. todo aterrado no período de 1903 a 1911, a enseada de São Lourenço resistiu por
Apesar do número cada vez mais restrito de índios, que chegaram a 46 na conta- muito tempo e só veio a desaparecer com a construção do Porto (FIGURA 3).
gem de 1835, esses acontecimentos mostravam que a renda não dava conta das Em 1911, a ideia do porto volta a ser discutida quando o então prefeito da
despesas. O último capitão mor dos índios, José Cardoso de Souza, e também juiz cidade, Feliciano Sodré, encaminha projeto à Câmara Municipal. Somente em 1924,
de Paz, era considerado descendente de Araribóia e também vivia do comércio de é lançada a pedra fundamental das obras projetadas, que incluíam um aterro com
cerâmicas, praticamente a única atividade econômica da aldeia. Com a sua morte o lodo retirado da enseada e, com o material resultante do desmonte parcial de
em 1837, encerrou-se o pouco prestígio que a aldeia ainda detinha por conta da res- morros da cidade. No entanto, o projeto só é concretamente levado adiante quando
peitabilidade que ele exercia. O seu prestígio era considerável, pois participou dos Feliciano Sodré assume o governo do estado do Rio de Janeiro e, preocupado com a
atos comemorativos da instalação da Vila Real de Praia Grande em 1819, cuja locali- salubridade e aparência da capital do estado, viabiliza a construção do porto, que é
zação veio suplantar a aldeia de São Lourenço. Anos depois (1854), a sua viúva rece- aberto em 1929. As questões higienistas somavam-se a razões econômicas: terrenos
beu a visita de D. Pedro II e a pensão de 240 mil réis anuais do Império.. O primeiro ganhos ao mar, dinamização da circulação de mercadorias com a conexão com a rede
cemitério da cidade foi autorizado nesta freguesia em terreno próximo a igreja, mas ferroviária, descongestionamento do Porto do Rio de Janeiro, entre outras. Nesse mo-
ainda naquele ano essa freguesia foi extinta, constituindo mais um passo para o fim mento, a Estrada de Ferro The Leopoldina Railway cumpre os compromissos assumidos
do aldeamento em 1866. em 1911 com o governo estadual e prolonga suas linhas da estação de Maruí (existente
Os moradores remanescentes receberam lotes que passaram a ser de sua pro- desde 1827) até o novo cais, onde é construída uma estação de passageiros, aberta ao
priedade desde que neles morassem, e para administrá-los foi criada a Inspetoria público em 1930.
de Terrenos do Extinto aldeamento dos índios, que sobreviveu até 1880. O foro das Para a construção do porto foi criada a “Comissão Construtora do Porto de

40 Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico Marlice Nazareth Soares de Azevedo 41
situavam-se em meio a ruas circulares, predominou”1.
Do ponto de vista espacial, o aterrado proporcionado pela construção do
porto teve importante significado no traçado da cidade, como um novo espaço, ele-
mento de ligação interurbana. Do ponto de vista histórico, teve relevante interesse
por remontar à origem da cidade.
A aposta na construção do porto representava, além da promessa de unificar
o escoamento da produção agrícola e industrial do interior do Estado, a dinamização
da circulação de mercadorias. A taxação das mercadorias que passassem por Niterói
exigiria a instalação da alfândega, que possibilitaria, segundo argumentos políticos, a
geração de novos empregos, o desafogo do porto do Rio e a ligação com os trilhos da
Leopoldina Railway, capaz de chegar ao interior dos estados de Minas e Espírito Santo.
Na Enseada de São Lourenço, a nova estação ferroviária a 1,5 km da velha
estação de Maruí, estendia o ramal ferroviário até o porto e, dessa maneira, desviava
o fluxo de mercadorias que costumeiramente iam direto à Capital Federal.
A construção do porto teve como pressuposto a emancipação econômica do
FIGURA 2 Foto da Enseada de São Lourenço antes do aterro, no início da década de 1920. Série Cartão Estado e anunciou a possibilidade de se superar a “falta de identidade” que sofria o
Postal, Fonte: Acervo do Laboratório de Pesquisa LDUB – Niterói
município de Niterói, considerado “nada mais que uma zona rural do Rio de Janeiro”.
Foi uma tentativa de promover o estado fluminense e sua capital, Niterói.
O aterro da Enseada de São Lourenço ficou sob a responsabilidade do en-
genheiro Felipe dos Santos Reis, presidente da comissão construtora. A Praça Re-
nascença localizar-se-ia em frente à futura Estação Ferroviária e seria o tronco do
novo sistema viário. O novo espaço criado teria destinação institucional e industrial,
destacando-se, inicialmente, a construção de três edifícios: a Estação Ferroviária
Central, o Fomento Agrícola2, o Quartel da Polícia Militar e, posteriormente, o Mer-
cado de Niterói. No início de seu funcionamento, em 1927, o Porto de Niterói, com
mais de 30 mil metros quadrados de área, foi entregue à Companhia Brasileira de
Portos, passando em 1941 para o Estado, que o entregou, em 1960, ao Departamen-
to de Portos e Navegação do Rio de Janeiro. O movimento portuário de Niterói, no
entanto, esvaziou-se em quase 50% no período de 1964-1967, com a decadência
da economia cafeeira do Norte Fluminense. O setor têxtil, tradicional na economia
fluminense, também foi perdendo competitividade. Desde então, do ponto de vista
FIGURA 3 Perspectiva do arruamento projetado para o porto. Ilustração da Comissão Construtora do Porto, econômico, o porto se tornou um imenso fracasso.
Fonte: Livro da Comissão Construtora do Porto, 1927
Depois de 1964, com a expansão do sistema rodoviário, o Porto de Niterói
entrou em declínio, fato agravado também pelo assoreamento do canal e a proxi-
Niterói e Saneamento da Enseada de São Lourenço” e, entre as obras de natureza
midade do Porto do Rio de Janeiro. Em 1967, o canal que dá acesso ao porto ficou
portuária, estava previsto o aterro da enseada, a abertura de ruas e a conexão com
reduzido a uma profundidade de três metros e meio (dos 8 metros mínimos), contri-
a malha existente. O arruamento proposto seguia o traçado radial concêntrico, cujo
buindo para amedrontar os comandantes dos navios cujos porões vinham carrega-
ponto de confluência era a Praça da Renascença, tronco do novo sistema viário que
interligaria a recém-aberta Avenida Feliciano Sodré à Alameda São Boaventura, via-
1. MARY, 1988, p. 4.
bilizando a ligação do centro com o bairro do Fonseca. “Aqui, como na cidade do Rio
2. Atual prédio do Centro Cultural do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro – TCE-RJ. Em 1927, foi inaugurado
de Janeiro, a influência francesa que concebia desenhos de bairros, onde parques o primeiro trecho de cais com 120 metros e, em 1929, ficou pronto o cais de 562 metros e os dois armazéns.

42 Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico Marlice Nazareth Soares de Azevedo 43
dos, e forçando-os a optar por atracar no Rio. ano, iniciaram-se as obras de restauração da antiga Estação Ferroviária, que seria
O porto, em crise, passou a movimentar apenas trigo, trazido da Argentina, transformada em centro cultural. 5
Estados Unidos e Canadá pela empresa Moinho Atlântico, única usuária do terminal, A movimentação de trigo, única atividade do porto, definhou nos últimos anos
e a receber também sardinhas congeladas para as indústrias da região. até ser paralisada por completo em 2005. A retomada da operação portuária foi firmada
em agosto daquele ano, quando a área foi arrendada às empresas Nitporte Nitshore.6
“Sua linha de cais foi reduzida de 1700 para 465 metros em virtude da
ponte Rio-Niterói (inaugurada em 1974), que suprimiu a parte destinada
Para o setor portuário, a revitalização do Porto de Niterói, com 23.000 m² de
à atracação de navios de cabotagem. Também foi atingida a linha férrea, área aberta e 3.300 m² de área coberta, é estratégica ao desenvolvimento da pro-
que transportava diretamente para a plataforma de embarque os produ- dução industrial local, em especial a relacionada à indústria de construção e reparo
tos oriundos do interior. Então, um porto que tinha capacidade de receber naval, em franco crescimento.
oito cargueiros de 10 mil toneladas, passou a receber apenas dois de 6 mil Por outro lado, o Aterrado São Lourenço, destinado inicialmente a uma ocu-
toneladas, pois a bacia de evolução recebeu tanto detrito vindo do canal
pação institucional e industrial, que nunca se consolidou, teve como principais en-
da Alameda São Boaventura, e de outras partes da baía, que reduziu os 24
pés de profundidade para apenas 20”3. traves ao seu desenvolvimento, de um lado, a própria situação fundiária, na qual a
maioria dos lotes é público, e de outro, a morfologia. Neste primeiro aspecto, obser-
Em 1981, a falência do porto foi reconhecida e, sob o domínio da Companhia va-se que prevalecem os lotes públicos estaduais, herança de quando a cidade era
Docas do Rio de Janeiro, foi arrendado à Enavi Engenharia Naval e Industrial Ltda uma capital do estado do Rio de Janeiro, que se encontram atualmente subutilizados.
área equivalente a 75% de todo o porto. O contrato de aluguel da área, que incluiu Sobre o segundo aspecto, observa-se que a própria conformação das quadras, de
também os dois únicos armazéns, terminou em dezembro de 1991 e não foi reno- grandes dimensões, favoreceu um parcelamento interno irregular, de lotes em for-
vado. A Companhia Docas, com interesses na privatização, entrou com mandato de mato trapezoidal e com extensas testadas, nos quais as edificações ora ocupam as
reintegração de posse. divisas, ora o centro do terreno, gerando uma difícil leitura.
O sindicato dos portuários era contrário à privatização, alegando que resul- Somada à questão das quadras, a desintegração viária entre as ruas em se-
taria em desemprego para a categoria. No meio do fogo cruzado, a prefeitura ma- micírculo do Aterrado e as ortogonais do entorno sinaliza a ruptura entre esses dois
nifestava sua intenção em discutir o uso adequado do porto, mas se opunha à ideia tecidos da cidade. Em alguns casos, nos locais de intercepção dos dois tecidos, for-
de transformá-lo em terminal pesqueiro. Em 1998, Docas e o sindicato concordam mam-se pontos de inflexão; em outros casos, ocorrem situações em que uma via
que o melhor destino para o porto é o mercado offshore. Para o presidente da Com- interrompe o prolongamento da outra, induzindo o seu fechamento pela falta de
panhia Docas “foi uma falha de modelagem querer dar o mesmo destino aos dois uso. A indefinição fundiária deu margem à ocupação irregular em área do projeto
portos (Rio e Niterói). Em vez de competir com o Rio, Niterói pode investir em uma que se consolidou como a favela do sabão.
atividade que para o porto carioca não é vantajosa”. Segundo ele: Mais recentemente, certamente influenciado pela nova dinâmica do porto,
observa-se o retrofit de edificações existentes e a construção de prédios residenciais
“O Porto de Niterói tem peculiaridades que favorecem as atividades de na avenida principal, retomando uma vocação identificada nos anos de 1950, em que
apoio à indústria naval, como por exemplo, o calado (profundidade), consi-
se observa antigos casarões dessa época na Av. Feliciano Sodré, reutilizados para ati-
derado pequeno para suportar grandes embarcações, mas ideal para abri-
vidades de serviço. O que se constata oito décadas depois é um aterrado com projeto
gar os equipamentos da indústria naval e de petróleo”4.
bem definido se constituir ainda como área periférica ao centro da cidade.
Nesse sentido, em 2001, estava prevista a abertura de licitação para a entrega
do terminal à iniciativa privada através de concessão. No entanto, impasses políticos
adiaram os planos e enquanto não se aprovava nenhum projeto de revitalização, a
prefeitura e a Companhia Docas promoveram eventos na área, incluídos no calen-
dário oficial da cidade.
Além da ideia de ocupação dos armazéns com variadas atividades, no mesmo
3. Jornal O Fluminense, novembro de 1977. 5. Hoje a obra encontra-se parada sem definição sobre seu término.
4. O Fluminense, 16 e 17 agosto de 1998 6. O arrendando tem prazo de 10 anos, podendo ser estendido por igual período.

44 Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico Marlice Nazareth Soares de Azevedo 45
3. Ponte: Utopias, debates, propostas e realização da de 2700 m de comprimento entre as pontas de Calabouço e de Gragoatá. Em 1932,
Mello Marques propôs o mesmo traçado de P. W. Barlow, mas defendendo a cons-
ligação Rio – Niterói
trução de uma ponte como sendo a melhor opção. Mas, o túnel era mais bem visto
naquele momento, pois tinha o apoio das Forças Armadas por questões de ordem
A ligação das cidades do Rio de Janeiro e Niterói é um tema que remonta o
estratégica e de segurança nacional.
século XIX e dois pontos estiveram sempre presentes nos debates, como e onde:
Um projeto datado de 1937, de Leon D’Escoffier, destaca a ponte em concre-
ponte ou túnel e a possível localização dos acessos. A primeira questão permeou
to e composta por seis pavimentos, com 102 elevadores. A obra previa uma mini
as discussões até a decisão final pela ponte e a sua localização foi concretizada em
cidade: dois teatros dividindo o espaço com lojas e apartamentos e vias de tráfego
1974, Ponta do Caju e Ilha da Conceição/Enseada São Lourenço, preterindo a menor
com níveis diferenciados segundo o tipo de transporte. (PITTA, Luciano, 1998).
distância – Ponta do Calabouço e Gragoatá.
O tema voltou à tona em 1943, quando o engenheiro e deputado Duarte de
Entre a primeira iniciativa e a efetivação da ligação foram 100 anos de tentati-
Oliveira, embasado num estudo de vinte anos, levantou novamente a bandeira da
vas e propostas das mais diversas naturezas. Sabe-se que em 1875, o Imperador deu
ponte e mais uma vez as autoridades e as Forças Armadas a rejeitaram.
ao engenheiro inglês Hamilton Linsday Bucknall7 a concessão, através do decreto
Nove anos se passaram, quando em dezembro de 1952 a lei 1793 permitiu
Nº. 6138, para a construção de um túnel ferroviário submarino transpondo a Baía
a abertura de concorrência pública internacional para a construção do túnel que
de Guanabara. O projeto, de autoria do também engenheiro inglês P. W. Barlow,
transporia a Baía de Guanabara (VERRY, C., 1974). Études et Enterprises, empresa fran-
teria entre cinco e seis metros de diâmetro e cinco quilômetros e meio de extensão.
cesa, venceu a concorrência, adotando o traçado sugerido pelo governo do Rio de
O trajeto escolhido ligaria o Calabouço, no Rio de Janeiro, ao Gragoatá, em Niterói
Janeiro: Praça Mauá – Avenida Feliciano Sodré, com um túnel de 6.105 m de exten-
(DNER, 1984).
são. Um ano mais tarde, o Ministério de Obras Públicas assinou contrato com a em-
O tema era objeto de inspiração para os caricaturistas dos periódicos da Ca-
presa francesa para a execução da obra. A ligação entre o Rio de Janeiro e Niterói já
pital do Império. Ângelo Agostini, por exemplo, publicou em dezembro de 1871, na
parecia consumada sob a forma de túnel quando problemas de âmbito econômico
Vida Fluminense, uma caricatura em que era possível vislumbrar a ligação física entre
e de praticabilidade inviabilizaram o processo.
as duas cidades. Essa visão do artista era compartilhada pela sociedade, que consi-
Com a ruptura do contrato com a Études et Enterprises, a credibilidade da li-
derava uma verdadeira utopia tal projeto. A ponte metálica elevada dava passagem
gação entre as duas principais cidades da Baía de Guanabara parecia encontrar-se
a um trem, que de tão moderno, reciclava a sua própria fumaça (COTRIN, A., 1974).
abalada. Em 1959, nova concorrência internacional foi aberta através do decreto Nº.
Constata-se que efetivamente não houve nenhum outro projeto levado a discus-
47168. Havia a expectativa de dezenas de inscrições de firmas e consórcios, mas
sões durante o Império.
apenas uma concorreu: a Sailav. A empresa argentina era estranha à engenharia e à
indústria nacional e por isso a comissão julgadora pediu a anulação da concorrência
Debates e iniciativas no século XX e a consideração da construção de uma ponte.
As discussões intensificaram-se a partir de meados de 1962. A divisão de edifícios
Tem-se conhecimento através de Charles Dunlop, em sua publicação, “Meios públicos do D.A.S.P. promoveu um ciclo de conferências sob a tutela do engenheiro Al-
de Transportes do Rio Antigo”, que houve projetos datados de junho de 1903 e outro berto Lélio Moreira. A “Revista do Serviço Público” trouxe, de outubro de 1962 a março de
de 1920, prevendo o trânsito de veículos e de pedestre entre as duas cidades. 1963, reportagens mensais acerca dos debates realizados na cidade do Rio de Janeiro.
Mas, a partir de 1930, com o avanço tecnológico e experiências já concretiza- Ainda em março de 1963, o governo federal, através do Ministério de Viação
das em outros países, o tema toma uma dimensão mais concreta e consequente. A de Obras Públicas, criou um Grupo de Trabalho presidido pelo seu chefe de Trans-
tese do arquiteto Attilio Correa Lima, defendida em 1930 no IUP de Paris aborda a portes, o engenheiro Luis Augusto da Silva Vieira. Após dez meses, baseados em
ligação Rio-Niterói debatendo o dilema, túnel ou ponte? No caso de ponte recorre pareceres de ordem técnica e econômica, o grupo decide essa questão centenária:
a estudos do engenheiro Alpheu Diniz que propõe uma ponte suspensa metálica “O grupo de trabalho, após cuidadosos estudos de diversas soluções para a
travessia Rio-Niterói, optou pela ligação por meio de uma ponte entre a ponta do
7. Objetivando a obtenção de recursos, Linsday fez várias viagens à Inglaterra. Publicou, em 1878, o livro “A Search
for Fortune”, no qual concluía seus estudos de viabilidade do projeto e suas alternativas. Os seus esforços de nada
Caju e a ilha da Conceição – Feliciano Sodré”. (DNER, 1984).
adiantaram e o projeto, sem financiamento, não saiu do papel. Quinhentas mil libras, valor estimado da obra, era um
montante considerável em 1875.

46 Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico Marlice Nazareth Soares de Azevedo 47
A ponte se impunha como a melhor solução em razão do menor custo de financiamento se deu pelo convênio DNER – FINEP, tendo o BNDES como agente
construção, operação e manutenção; maior facilidade de construção; maior vazão financeiro e de repasse de recursos oriundos da USAID.
de tráfego em condições equivalentes; circulação livre a todos os tipos de carga, O relatório, concluído em meados do ano seguinte, traz em seu texto a ponte
constituindo a primeira vez na história que a solução através de ponte é cogitada como melhor solução técnica e econômica e sua construção amplamente justificá-
por um órgão oficial. vel. O trajeto Ponta do Caju – Ilha da Conceição foi considerado o mais conveniente.
No ano seguinte, o engenheiro Luiz Vieira é incumbido pelo ministro Juarez A forma de obtenção de financiamento, através de agências internacionais para o
Távora de estudar a questão e sugerir medidas a serem tomadas. Em dezembro de desenvolvimento também são apontadas, bem como sua amortização num prazo
1964, na sequência das investigações, o engenheiro relata sete possíveis traçados de 10 anos possibilitado pela cobrança de pedágio. A estimativa do tempo de cons-
através da Baía de Guanabara aos Estados Maiores da Armada e da Aeronáutica, das trução (e de carência) era de três anos.
quais apenas duas mereceram considerações. (Relatório do GT). A captação de recursos começou antes mesmo da entrega oficial dos estu-
A seguir, o Ministério de Viação e de Obras Públicas solicita estudos detalhados dos, baseada na estimativa inicial do custo total do empreendimento. O conjunto
e um novo Grupo de Trabalho, tendo à frente novamente o engenheiro Luiz Augusto de bancos ingleses, liderados pela Casa Rothschild, que viria a financiar parte da
da Silva Vieira, nomeado pela portaria nº 51, de 5 de fevereiro de 1965. Em 21 de julho obra, passou a figurar entre os possíveis financiadores. Outro Grupo de Trabalho,
de 1965, o engenheiro Sérgio Marques de Souza envia, como colaborador, um rela- com membros do Ministério dos Transportes, da Fazenda e do Branco Central, foi
tório ao presidente do Grupo de Trabalho, em que propõe uma nova abordagem de constituído através do Decreto nº. 62.303 de 22 de fevereiro de 1968, para pesquisar
projeto e outra solução. Baseado em dados estatísticos de fluxo de pedestres e de ve- as fontes para o financiamento da obra, baseado na estimativa inicial, que girava em
ículos da época propõe a ligação em dois eixos de travessia e duas soluções técnicas. torno de 141 bilhões de cruzeiros, moeda da época.
Uma ponte dando prosseguimento ao Plano Rodoviário Nacional, através da Com o relatório do Grupo de Trabalho responsável pela pesquisa das fontes
BR 101 e atendendo principalmente ao fluxo de caminhões de carga e de ônibus de recursos e o apoio das entidades envolvidas, os ministros do Transporte, do Pla-
intermunicipais e interestaduais, e um túnel submarino objetivando o atendimento nejamento e da Fazenda apresentam exposição de motivos ao então presidente da
da demanda do tráfego urbano. O GT concluiu que realizar duas obras seria inviável República Arthur da Costa e Silva, sugerindo “a inclusão do projeto de construção da
e que o traçado Caju-Ilha da Conceição seria mais conveniente por interferir menos ponte Rio-Niterói no programa governamental”.
no trânsito, e possivelmente mais aceito pela população, ainda respondia aos inte- A seguir, uma mensagem do presidente foi enviada ao Congresso solicitando a
resses das Forças Armadas e oferecia melhores condições de exequibilidade devido aprovação do projeto de lei autorizando a construção da ponte. Em 17 de outubro de
à tranquilidade das águas da baía naquele trecho. 8 1968, a Lei nº 5.512 foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente.
Seguindo recomendações do GT, o governo federal constituiu através
do decreto nº. 57.555/65, a Comissão Executiva da Ponte Rio-Niterói, com re-
presentantes do Ministério da Viação e Obras Públicas, do DNER, do Ministério Os contratempos da construção
do Planejamento, dos governos dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro.
A execução da obra da ponte sofreu diversos obstáculos, especialmente de
natureza técnica e jurídica, mas foi objeto de uma ação firme e autoritária do governo
O Estudo de Viabilidade federal, uma vez que correspondeu a um dos períodos mais duros da ditadura militar.
Em 1968, foi realizada a licitação para a construção da estrutura de concreto
O estudo de viabilidade foi promovido após a seleção internacional do con- armado. Foi vencida por um consórcio de empresas brasileiras, encabeçado pela
sórcio consultor. Duas firmas nacionais e duas firmas americanas foram escolhidas Companhia Construtora Brasileira de Estradas. Em segundo lugar foi escolhido outro
para a formação do consórcio. Howard Needles, Tammen&Bergendoff Inc., Wilbur consórcio nacional, liderado pela Construtora Camargo Correa, muito próxima das
Smith and Associetes Inc., Escritório de Engenharia Antônio Alves Noronha Ltda. e autoridades de Brasília. O prazo proposto era de 850 dias, inferior ao máximo previs-
Eletroprojetos – Consultores Técnicos. O contrato data de 17 de julho de 1967 e o to, satisfazendo uma das condições de viabilidade financeira da obra – era inferior
aos três anos correspondente a duração do empréstimo.
8. “(...) imprescindível sob muitos aspectos, inclusive militar, ligação esta prevista no Plano Nacional de Viação já apro-
vado pelo Senado e em tramitação na Câmara Federal e que tomará designação de BR-101”.(VON RANKE, Félix Ernest
– 1963).

48 Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico Marlice Nazareth Soares de Azevedo 49
No ano seguinte, foi lançada a licitação para a seleção de empresas inglesas
que deferiam realizar a superestrutura metálica das partes centrais, de acordo com
as condições do empréstimo. O controle técnico da obra foi confiado às empresas
que realizaram o projeto, empresas brasileiras especializadas e a uma comissão de
consultores para questões relacionadas à mecânica dos solos e fundações.
Os primeiros obstáculos surgem: atraso na liberação dos equipamentos im-
portados, defeitos técnicos exigindo o reforço de elementos estruturais e a substi-
tuição de outros elementos. Em consequência, a empresa responsável pelas obras
obtém uma prorrogação para 1070 dias e é autorizada a modificar a pressão ad-
missível para cada pilar, o que deveria ser confirmado pela realização de provas de
carga. No primeiro teste, um acidente mata mais de uma dezena de pessoas, enge-
nheiros e operários, o que cria um clima de desconfiança em relação aos aspectos
técnicos da obra. Aos problemas técnicos somam-se o descumprimento dos prazos
de execução dos trabalhos. O DNER tenta resolver a situação transferindo parte dos
trabalhos para outras empresas especializadas. O consórcio recusa essa solução e o
contrato é rompido unilateralmente, em dezembro de 1970. As obras são confiadas FIGURA 4 Situação atual da área da enseada. Fonte: Laboratório LDUB. Imagem elaborada por Gabriel Costa
com os dados levantados, com uso do Google, agosto de 2013
ao consórcio que ficou em segundo lugar, sem novo processo licitatório.9
A empresa desapropriada tornou-se uma empresa pública, ligada ao DNER século XX. Algumas hipóteses podem ser consideradas para essa aparente coinci-
e denominada “Empresa de Construção e Exploração da Ponte Presidente Costa e dência, a principal é a expulsão dos jesuítas do Brasil no final do século XVIII, ou
Silva” (ECEX), com o objetivo de realização e exploração da obra graças à cobrança ainda o abandono dos colonizadores portugueses do modelo de ocupação em áreas
de pedágio. elevadas. O que se observa é uma descida dos morros em favor das áreas planas no
O decreto presidencial de desapropriação (decreto n° 68 110 de 26/01/1971) século XIX, e podemos exemplificar com o papel relevante que a Praça XV tomou no
permitiu a continuidade das obras e previu seu final para o segundo semestre de Rio de Janeiro e da Praça. Araribóia em Niterói. A chegada da corte do Rei D. João VI
1973, mas as obras se estenderam até o início do ano de 1974, e a ponte foi inaugu- trouxe possivelmente outro modelo urbano que iria alimentar o traçado das cidades
rada em 4 de março deste mesmo ano. (FIGURA 4). no século XIX. A organização de alguns núcleos urbanos valorizaram localizações de
mais fácil acesso vinculadas diretamente a trocas comerciais mais sofisticadas, uma
vez que a economia local passava de uma categoria extrativista, como a exploração
Considerações finais
da madeira, para outro tipo de comércio baseado na produção agrícola.
Por outro lado, os gentios vão perdendo suas terras e se interiorizando. No caso
O texto foi desenvolvido no sentido de analisar o papel da enseada e do
exemplar de Niterói, as terras ganhas para constituir a aldeia, vão sendo transferidas ou
morro de São Lourenço, origem da cidade, lembrados especialmente pela sua re-
invadidas pelos europeus, especialmente as áreas litorâneas e planas, restando o morro
lação legendária com Niterói. A reflexão sobre o legado da aldeia indígena para a
de origem, de acesso mais difícil, para os moradores remanescentes. A área indígena
sua formação e a posterior reiteração da enseada de São Lourenço como porta de
neste final do século XIX estava distanciada do novo centro projetado para abrigar a Vila
entrada de Niterói, está ainda em curso.
Real da Praia Grande, que se firmou como centro da cidade e, com o passar do tempo
No que concerne ao morro de São Lourenço pode-se fazer um paralelo com
esse centro se confundiu com a própria cidade – ir a Niterói era sinônimo de ir ao centro.
o morro do Castelo no Rio também deixado abandonado e arrasado no início do
Quando a enseada foi escolhida para dar lugar ao aterrado do porto, a margem
9. O presidente Médici, conta o diálogo sobre o episódio: “Foi uma decisão pessoal, a obra demorava. As empresas já estava ocupada por casebres insalubres, como bem descreve o documento da Co-
construtoras estavam em situação insolvável. Chamei o Andreazza e disse: nós vamos retomar a obra, constituir uma
missão do Porto. Esse porto constituía uma promessa de reforma renovadora e revi-
empresa e terminá-la. Ele perguntou: Temos recursos? Eu respondi: eu posso. Eu tenho o decreto AI-5 na mão e com
ele posso fazer tudo. Se eu não posso, ninguém pode. Se nós não nos encarregássemos das obras da ponte, a questão talizadora da economia fluminense com seu traçado contemporâneo de forma radial
da insolvabilidade das antigas empresas teriam ido para os tribunais (...). O processo estaria ainda em curso, e a ponte
não existiria’’. (Veja, 16/05/1984).
concêntrica. O projeto inovador foi pouco ocupado restringindo-se a preencher a

50 Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico Marlice Nazareth Soares de Azevedo 51
avenida reta e diametral de ligação, a Avenida Feliciano Sodré, e a sua perpendicu- LIMA, Attilio Correa. Avant Projet d’Ámenagementet d’ Extension – Niterói au Brésil, IUUP, Paris,
lar Avenida Jansen de Melo, que constituíam os raios principais do desenho. Nessa 1932.
avenida principal em direção ao centro pode-se até hoje encontrar vestígios de ca- COSTA, Milena. Possibilidades e perspectivas de um espaço em transição: a área portuária de
sarões ecléticos, de elevado padrão construtivo, hoje ocupados por prestadores de Niterói e os vazios urbanos: Dissertação de mestrado. Niterói, 2010.
serviços variados. Esse projeto tinha como objetivo a criação de um setor dinâmico COTRIM, Álvaro. “Realização de um sonho centenário”, Jornal do Brasil, 3 de março de 1974,
de serviços, uma vez que o centro e os bairros como Icaraí e Fonseca já se distinguiam Caderno B.
por abrigar a classe média emergente. Constituindo uma área predominantemente DIRIGENTE CONSTRUTOR. “Os problemas da ligação Rio-Niterói vistos da ponte”. Volume XI –
pública não teve um plano urbanisticamente adequado para sua ocupação, e com a Nº 3, São Paulo, março de 1974.
perda do papel de capital da cidade as áreas tornaram-se mais ociosas. DNER – Departamento Nacional de Estradas e Rodagens. “Ponte Presidente Costa e Silva”.
Em 1974 chega à ponte superpondo-se com seus acessos em trevos e viadu- DNER, 1984.
tos, como centopeias viárias seccionam o antigo traçado radial, tornando o aterra- ENGENHARIA. “Rio-Niterói: Concluída a grande travessia”. Revista do Instituto de Engenharia,
do um local de passagem a grande velocidade e intensificando o papel da avenida nº 366, São Paulo, dezembro de 1973.
principal como corredor de ônibus, predominantemente intermunicipais, reiteran- FORTE, José Mattoso Maia,. Notas para a História de Niteroy, 1835 – 1935, Officinas Graphicas
do a pouca vocação da área para os planejados serviços públicos, e usos comercial do Diario Official, Niterói, 1935.
ou industrial. Mas, recentemente, parece que um novo papel lhe foi atribuído e o MARY, Cristina Pessanha. Porto de Niterói: uma promessa de autonomia: Tese de doutorado.
aterrado do porto começa a ser reutilizado como residencial para classe média (três Rio de Janeiro, UFRJ, 1988.
lançamentos imobiliários) e porto offshore de apoio à indústria da construção naval, MOREIRA, Alberto Lélio. “Considerações sobre a ligação Rio-Niterói”. Ciclo de Conferências
reabilitada para construir as plataformas petrolíferas, cuja utilização está se expan- promovido pela Divisão de Edifícios Públicos do D.A.S.P (Departamento Nacional de
dindo com a exploração do petróleo na costa norte fluminense. Esse movimento Imprensa), Rio de Janeiro, 1963.
recente não foi ainda capaz de resgatar a antiga enseada de São Lourenço de seu NEUWIED, Maximilien, Voyage au Brésil,dans les années 1815,1816,1817. Traduit de l’allemand
estatuto de periferia da área central, e certamente a sua valorização pode se dar par J.B. B. Eyriès, Tome Premier, Arthur Bertrand Libraire, Paris, 1821.
com amplos e substanciais estímulos públicos e investimentos privados. NITERÓI 400 ANOS. Revista Álbum. Rossijór Propaganda Ltda., Rio de Janeiro, 1973.
PREFEITURA MUNICIPAL DE NITERÓI. Programa Viva-Centro. Niterói, 2007.

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. Niterói Urbano: a construção do espaço da cidade. à faculdade de Arquitetura e urbanismo da Universidade de São Paulo, FAU-USP,
In: Cidade Múltipla: temas da história de Niterói. Organizadores: Ismênia de Lima 1986.
Martins e Paulo Knauss. Niterói, RJ: Niterói Livros, 1997. . Três momentos de um lugar: da enseada de São Lourenço à
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COMISSÃO CONSTRUTORA DO PORTO. Lembrança: a construção do porto de Niterói. Niterói, Engenharia, nº 319, Rio de janeiro, 1963.
1927.

52 Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico Marlice Nazareth Soares de Azevedo 53
Rio-Niterói: Do projeto de túnel à realidade da ponte. Revista do clube de Engenharia. Rio de
Janeiro. fevereiro de 1981, Edição especial. Memória e patrimônio na cidade:
o caso do Rio de Janeiro
SOUZA, Sérgio Marques de. “A ligação Rodoviária Rio – Niterói: uma solução racional, técnica e
econômica”. Revista do Clube de Engenharia, nº 374, julho/setembro, Rio de janeiro,
1965.
VERRY, Carlos. “Ponte Presidente Costa Silva: Extraordinário êxito da engenharia nacional”.
Revista do Clube de Engenharia, nº 392, janeiro/fevereiro, Rio de Janeiro, 1974.
Nireu Oliveira Cavalcanti
WEHRS, Carlos, Niterói, Cidade Sorriso, história de um lugar. Editora Vida Doméstica, Rio de
Janeiro, 1984.

Resumo | Iniciando com a imagem simbólica do bíblico Jardim do Éden, no qual a har-
monia entre o homem e a natureza era perfeita, buscamos verificar os momentos e ações
ocorridas na história da cidade do Rio de Janeiro que a fez afastar-se ou aproximar-se do
sonho de seu quadro paradisíaco. Vista sob perspectiva histórica, a cidade muito se trans-
formou em função de ações governamentais e da sociedade, desde sua fundação em 1565,
passando pelo período colonial, governos monárquico, imperial e republicano. De cons-
trução complexa, guarda importantes elementos da memória coletiva sob as mais diversas
representações. Teve seu belo patrimônio natural explorado por colonizadores europeus
que, entre conquistas de território aos índios e batalhas para a implantação da cidade por-
tuguesa assumiu configurações diferenciadas no meio construído e em sua relação com a
natureza, resultando na atual realidade de seus espaços públicos e privados. Este trajeto
a afasta daquela utopia em relação aos meios urbano e ambiental, ao passar por transfor-
mações fruto de uma sociedade de origem escravista, com privilegiamento de pequena
elite titulada, uma sociedade historicamente desigual, que foi composta por três principais
segmentos formadores – índios, negros e brancos de diferentes procedências. No decorrer
do século XIX, teve incentivada a imigração proveniente de outros países europeus, além
da de Portugal e países africanos, com o objetivo de se chegar ao “branqueamento” da
população e à substituição da mão de obra escrava e dos forros. Dos elementos que in-
fluenciaram transformações e morfologia da urbe, destacam-se as permanentes políticas
públicas excludentes, a desigual distribuição de renda e, em decorrência, uma população de
extrema pobreza, que se alojou precariamente em cortiços e favelas, ocupando as encostas
dos morros, margens de rios e lagoas, manguezais e áreas insalubres. Mesmo sob muitos
governos responsáveis por planos de ordenamento e contando com incalculáveis recursos
humanos, financeiros e técnicos, públicos e privados nela aplicados, o resultado não condiz
com o montante de investimentos, ações e obras realizadas. Hoje, o Rio de Janeiro tornou-
-se contraditório, com ilhas ambientalmente agradáveis ao viver humano, mas com espaços
fragmentados, desiguais, violentos e sumamente desconfortáveis. E é neste caleidoscópio
que se insere a questão do patrimônio histórico, artístico, arquitetônico, urbanístico, cultu-
ral, material e imaterial

54 Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico Nireu Oliveira Cavalcanti 55
Abstract | Our text begins with the symbolic biblical image Garden of Eden, where har- cios públicos y privados. Este trayecto le aleja de la utopía en relación a los medios urbano
mony between man and Nature was perfect; in order to observe in which historical mo- y ambiental, al pasar por transformaciones fruto de una sociedad de origen esclavista, con
ments and actions the city of Rio de Janeiro came nearer or more distant from a dream of a privilegios de una pequeña elite titulada, una sociedad históricamente desigual, que estaba
heavenly harmony. The city is visualized, in this paper, through an historical approach, it’s compuesta por tres principales segmentos formadores – indios, negros y blancos de dife-
changes due to actions of government and society ever since it’s foundation in 1565, and rentes procedencias. Durante el siglo XIX, se incentivó la inmigración proveniente de otros
running through the colonial period, the years of monarchy, and the imperial and republi- países europeos, además de la de Portugal y países africanos, con el objetivo de conseguir
can periods. Its complexity involves important elements of collective memory integrated by un “blanqueamiento” de la población y de la substitución de la mano de obra esclava. De
a diversity of representations. los elementos que influenciaron las transformaciones y la morfología de la urbe, destacan
Rio de Janeiro had it’s beautiful natural patrimony explored by European colonists and the las permanentes políticas públicas excluyentes, la desigualdad en la distribución de renta
conquests of native territories and battles for the establishment of a Portuguese city result- y, como resultado, una población de extrema pobreza, que se alojó precariamente en “cor-
ed in different configurations of the built and natural environment, which explains today’s tiços” y “favelas”, ocupando las laderas de los montes, márgenes de ríos y lagos, manglares
reality of its public and private spaces. However, the historical course led the city farther e áreas insalubres. Incluso bajo muchos gobiernos responsables por planes de ordenación
away from the Garden of Eden utopia, the city evolution was the product of a slave-oriented y contando con incalculables recursos humanos, financieros y técnicos, públicos y privados
society that privileged the titled few, a historical unequal society, unjust, and structured by aplicados en ella, el resultado no coincide con el montante de las inversiones, acciones y
three main social groups: natives, black and white men from different origins. During the XIX obras realizadas. Hoy día, Rio de Janeiro se volvió contradictorio, con islas ambientalmente
the century, migration from other European countries was encouraged with the objective of agradables para la vida humana, pero con espacios fragmentados, desiguales, violentos y
“whitening” the population and in order to substitute the slave labor. sumamente incómodos. Y es en este caleidoscopio que se inserta la cuestión del patrimonio
histórico, artístico, arquitectónico, urbanístico, cultural, material e inmaterial.
Among the important factors that influenced the urban transformations, including changes
in the city’s morphology, were the permanent public policies of social exclusion and an
extremely unequal distribution of wealth. This resulted in a population of extreme poverty
that lodged precariously in favelas and low rent tenements occupying the hillsides, rivers
and lagoons banks, mangroves and unhealthy areas in general. Even under some Govern-
Começo este texto com citação de trecho da Bíblia, livro fonte de sabedoria e
ments responsible for urban plans and counting with a great amount of human, financial
sagrado para os colonizadores portugueses.
and technical, public and private resources applied in the city, the results obtained did not
match the amount of investments and actions made. So nowadays, the city of Rio de Janeiro 1o Dia – No princípio Deus criou os céus e a terra, porém estava informe
presents contradictory aspects, with pleasurable “islands” to live insided by fragmentary, vi- e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as
águas.
olent and extremely uncomfortable areas. It is in this kind of “kaleidoscope” that is inserted
Deus disse: “Faça-se a luz!” E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa, e
the theme of our historical, artistic, architectural and cultural patrimony. separou a luz das trevas.
Resumen | Iniciando con la imagen simbólica del bíblico Jardín del Edén, en el cual la har- 6o Dia – Deus disse: “Produza a terra seres vivos segundo a sua espécie:
monía entre el hombre y la naturaleza era perfecta, buscamos verificar los momentos y ac- animais domésticos, répteis e animais selvagens, segundo a sua espécie.”
E assim se fez. Então Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem e
ciones ocurridas en la historia de la ciudad de Rio de Janeiro que la hace alejarse o aproxi-
semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre os pássaros dos
marse del sueño de su cuadro paradisíaco. Vista bajo la perspectiva histórica, la ciudad se céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os
transformo mucho en función de acciones gubernamentales y de la sociedad, desde su répteis que se arrastam sobre a terra!”
fundación en 1565, pasando por un período colonial, gobierno monárquico, imperial y re-
publicano. De construcción compleja, guarda importantes elementos de la memoria colec- O Senhor Deus tomou o homem e o colocou no jardim do Éden para que ele
tiva bajo las más diversas representaciones. Su bello patrimonio natural fue explorado por o cultivasse e o guardasse. Deu-lhe este preceito: “Podeis comer do fruto de todas
colonizadores europeos que, entre conquistas de territorio a los indios y batallas para la as árvores do jardim; mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do
implantación de la ciudad portuguesa asumió configuraciones diferenciadas en el medio mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente.” (grifo meu)
construido y en su relación con la naturaleza, resultando en la realidad actual de sus espa- Para que o homem pudesse multiplicar-se, Deus criou a mulher, à sua semelhan-

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ça, e ofereceu o ambiente apropriado do jardim do Éden. Mas o casal não soube “reinar” A cidade “cercada de muros” reflete a visão de que o maior tesouro de uma
o jardim e comeu do fruto proibido. Deus então falou para o homem e sua mulher: sociedade deve ser protegido contra a ganância de outros seres humanos. Isso
porque os homens e mulheres se multiplicaram sem harmonia entre si.
“Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu
te havia proibido comer, a terra será maldita por tua causa. Tirarás dela
Bluteau, ao definir as premissas do viver do ser humano urbano “com socie-
com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida. Ela te dade e subordinação”, nos oferece o caminho para entendermos o processo de for-
produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás erva da terra. Comerás o teu mação e transformação de uma cidade; buscando analisar que sociedade a formou
pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; e usufrui, as relações estabelecidas para o viver com urbanidade e as regras de su-
porque és pó, e em pó te hás de tornar.” bordinação vigentes e quem e como são cumpridas.
Podemos ainda, segundo Bluteau, dividir a cidade espacialmente em dois
A análise crítica deste trecho do livro do Gênesis poderá ser feita sob múlti- conjuntos: o dos espaços privados, formados pelo “amontoado de casas”, e os cole-
plos ângulos, até enfatizando suas contradições e preconceitos. Interesso-me aqui, tivos, ou públicos, pelas “ruas e praças”. Conjuntos indissociáveis para o sentido da
entretanto, pela constatação de que a Arquitetura se fez necessária para sanar os aglomeração urbana titulada como cidade.
problemas da perda do Éden – que era “uma arquitetura paisagística” de profunda O grau de equilíbrio e de harmonia entre esses dois conjuntos reflete a qua-
beleza – e, portanto, deve ser em sua essência, radical na busca da Utopia de regres- lidade estética, funcional, e espacial de cada cidade. Quanto mais ela for próxima à
so ao paraíso, de representação de sua essência ambiental, para que o homem e a utopia do Jardim do Éden, maior será a qualidade de vida da população e seu equi-
mulher possam “reinar” a terra com harmonia. líbrio com o meio ambiente.
A cidade, construção mais complexa e global da cultura humana, para que seja Quanto maior for a presença da história e da memória preservadas na cidade,
conceitualmente e espacialmente apropriada à vida de homens e mulheres, dos ani- maior será a identidade e viver de sua população “com sociedade e subordinação”.
mais da terra, dos peixes e das
aves, deve ser à imagem e se-
melhança do Jardim do Éden. A cidade do Rio de Janeiro
Isto porque, para o
equilíbrio do ser humano com O território em volta da Baía de Guanabara1 onde, em parte, situa-se a cidade
o universo em que vive, é ne- do Rio de Janeiro era dotado de extraordinária beleza natural, de terras férteis, de rios
cessário que tenha presente e riachos, de mar (da baía), de águas cristalinas e repletas de fauna variada e abun-
a energia das suas raízes e dante. Era, quase, a imagem do Jardim do Éden! Os homens e mulheres que viviam
consciência de seu espaço na nesse paraíso pertenciam a ramos da milenar família dos índios Tupis. Os grupos se
sociedade, e o respeito à natu- sucediam em função das lutas entre si. Ora eram os Temiminós, ora os Tupinambás.
reza e aos demais animais. Foi esse o belo patrimônio natural oferecido à exploração dos colonizado-
Daí a importância da res europeus.
cidade guardar elementos da A tribo que dominasse o território guanabarino tinha o privilégio de comer-
memória coletiva sob as mais ciar com os estrangeiros, principalmente franceses e portugueses, de quem, em
diversas representações – ma- troca de seus produtos coletados (pau-brasil, animais e pássaros, pimenta, goma
terial e ou imaterial. etc.), adquiriam objetos considerados exóticos e de grande aceitação ( espelhos,
Dom Raphael Bluteau, facas, facões, miçangas etc).
autor do primeiro dicionário enciclopédico a ser publicado em língua portuguesa Em abril de 1531, os indígenas comerciaram com a esquadra portuguesa
(1712-1725), define cidade como – “Multidão de casas, distribuídas em ruas e praças, comandada por Martim Afonso de Souza, auxiliado por seu irmão Pero Lopes de
cercada de muros, e habitadas de homens, que vivem com sociedade e subordi- Souza. Nessa oportunidade, foi permitido aos parceiros de negócios construírem
nação.“ (grifo meu)
1. Termo de origem indígena, goanã-pará ou guanã-mbará, designando “lagamar”, ou “seio semelhante ao mar”. SILVA,
1961, p. 51

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a primeira edificação com sistema construtivo desconhecido pelos indígenas: uma personagens dignos de serem preservados em sua memória: desde a paisagem na-
casa de pedra! Casa que, ao contrário da oca indígena, tinha parede (elemento des- tural e os primeiros sítios (na Urca, chamado de Cidade Velha – a Casa de Pedra-,
conhecido por eles, ao ponto de sua língua não conter a palavra referente), porta e o sítio e núcleo da Cidade Nova, no alto do morro, depois nomeado de Castelo,
janelas. Situava-se no sopé do morro hoje conhecido como da Viúva, no bairro do erigida em 1o de março de 1567) até o guerreiro Araribóia, considerado o funda-
Flamengo. Próximo, desembocava no mar o riacho de águas cristalinas que veio a dor da cidade de Niterói, e as águas e percurso do rio Carioca, origem gentílica de
se chamar Carioca. quem nasce na cidade, empregado pelos indígenas para designar “casa ou viveiro
Sinal de que aquele território seria o adotado quando da implantação da dos acaris” (acary-oca) 2.
cidade portuguesa na região.
Em 10 de novembro de 1555, chegou a esquadra francesa, comandada por
Nicolas Durand du Villegaignon, a fim de estabelecer uma cidade na Guanabara,
A questão das terras públicas e a
apoiado por seus aliados índios Tupinambás. Sonho que foi quase desbaratado especulação imobiliária
cinco anos após pelas forças portuguesas comandadas pelo governador-geral do
Brasil, Mem de Sá. Quase, porque alguns franceses e índios conseguiram fugir e se Estácio de Sá, ao fundar a cidade, destinou-lhe a sesmaria pública para admi-
reorganizaram logo após a retirada da esquadra lusa. nistração pela Câmara de Vereadores, a ser demarcada a partir e tendo como centro
Passaram-se mais cinco anos de domínio francês-tupinambá da Baía de Guana- a Casa de Pedra, construída em 1531. Nesse terreno público os vereadores deveriam
bara. Até que chegou nova esquadra luso-brasileira-temiminó, sob a direção do capi- destinar os rocios (para pastagens dos animais ), os lotes urbanos para as casas e
tão-mor Estácio de Sá, objetivando, além da expulsão dos invasores, fundar uma cidade. os sítios para agricultura e criatório, e arrendá-los para, com o seu rendimento, a
Os guerreiros temiminós eram comandados pelo cacique Araribóia, e vinham Câmara obter receita para administrar a cidade. Sobre as terras públicas dessa ses-
retomar o território guanabarino, dele expulsos pelos seus inimigos históricos, os maria, a administração municipal abriria as “ruas e praças” visando o embelezamen-
tupinambás. to, a funcionalidade, a comodidade e grandeza do Rio de Janeiro.
Estácio de Sá, provisoriamente, edificou a cidadela fortificada em estreita Inexplicavelmente, quando da realização da primeira medição das terras pú-
faixa de praia situada no sopé do morro Cara de Cão, no atual bairro da Urca. Cidade blicas, iniciada em 25 de maio de 16673 os vereadores e demais autoridades cons-
criada por decreto, em 1o de março de 1565, sem “ruas e praças”, sob o nome de São tataram que as dimensões e forma do território público haviam diminuído. Grande
Sebastião do Rio de Janeiro. área estava de posse da Companhia de Jesus e a área mais densa da cidade, inclusive
Após dois anos de violentos combates entre os grupos, na batalha de con- o morro do Castelo, pertencia a famílias importantes e a diversas ordens religio-
quista da fortificação francesa de Uruçumirim, situada no alto do morro conhecido sas como a dos beneditinos, dos franciscanos, jesuítas etc. Assim, para intervir na
hoje como da Glória, os portugueses e aliados foram vencedores, com o alto preço cidade, a Câmara teria que indenizar os proprietários dos imóveis quanto ao valor
da perda do fundador da cidade, Estácio de Sá. do terreno e as suas benfeitorias.
Mem de Sá e os “homens bons” decidiram que o núcleo provisório deveria Mesmo o terreno que sobrou da área da sesmaria de Estácio de Sá, foi afora-
ser localizado em outro sítio, que fosse estratégico para a sua defesa. Escolheram do a preços irrisórios pela Câmara de vereadores a seus apaniguados, que, por sua
um morro coberto de mata que do seu topo daria visão completa de embarcações vez, arrendavam pequenas parcelas de suas chácaras e sítios a terceiros, cobrando-
que se aproximassem da entrada da Baía de Guanabara. Entretanto este sítio apre- -lhes aluguéis altíssimos. O território da cidade do Rio de Janeiro tornou-se lucrati-
sentou alguns problemas para os primeiros habitantes: no alto do morro não tinha va mercadoria nas mãos dos proprietários titulados e dos arrendatários do poder
fonte de água potável abundante; o platô para crescimento da cidade era reduzido; público municipal. Essa mentalidade mercantilista sobre a terra urbana gerou sérios
a várzea em volta era baixa em relação ao nível do mar, dificultando o escoamento problemas de controle e planejamento da cidade.
das águas pluviais, era tomada de charcos, de lagoas e o solo muito úmido e de Para a construção da Catedral da Sé, obrigação real, o governador Gomes
difícil absorção das águas superficiais. Além de haver, na região do saco formado Freire de Andrada descartou localizá-la na área mais central da cidade, em função
pelo mar adentrando no território e pelos vários rios que nele desembocavam, um
extenso manguezal. 2. Também “caray-oca ou caraib-oca, expressando residência ou casa do branco, do cristão, dos astutos, do senhor, dos
mandões”. (SILVA, 1961, p. 43)
Contudo, a cidade do Rio de Janeiro nasceu com vários marcos, histórias e
3. Apesar da provisão real ser de 7 de janeiro de 1643),

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do valor altíssimo cobrado pelos proprietários. Optou por uma área fora da muralha, Os três principais segmentos formadores da
por ser terreno compreendido no interior das terras públicas, e que se encontrava
sociedade brasileira
sem arrendamento.
Quando da expulsão dos jesuítas do reino de Portugal, em 1759, os seus imó- Os índios
veis passaram ao patrimônio da Coroa. Os bens mais urbanos compreendiam quase
uma centena de prédios na área central da cidade, uma imensa fazenda que com- Os índios que habitavam a região do atual estado do Rio de Janeiro tiveram
preendia os atuais bairros do Rio Comprido (parte), São Cristóvão, Vila Isabel, Tijuca, dois tratamentos pelos colonizadores luso-brasileiros: os considerados inimigos,
Grajaú, Engenho Novo, Méier e outros. A opção da Coroa foi leiloar os prédios urba- foram escravizados, expulsos ou dizimados; os amigo, batizados e com outro nome,
nos e parcelas da fazenda a preços abaixo do mercado, ao invés de repassá-los ao aldeados em núcleos de morfologia arquitetônica semelhantes aos dos dominado-
poder municipal. Privatizou o território público e comprometeu o planejamento do res e sob administração de ordens religiosas e de funcionários do governo. Os que
crescimento da cidade no sentido Oeste e Norte, sem necessidade de investimentos não se diluíram na sociedade dos brancos (por casamento, por exemplo) mantive-
altíssimos pelo Erário... ram -se unidos em grupos tribais, receberam terras, (caso da aldeia de Araribóia), e
foram aquinhoados com áreas semelhantes às dadas aos brancos para abrir enge-
nhos de açúcar, por exemplo.
A sociedade e os sistemas de governo Como os índios não possuíam recursos, não tinham perspectivas ou conhe-
cimentos técnico-administrativos para serem senhores de engenho, utilizaram suas
Todas as pessoas que moravam na colônia brasileira faziam parte da cate- terras, parte para plantio de roças de subsistência, e parte para aforamento a tercei-
goria dos súditos do monarca português. Havia alguns poucos estrangeiros (todo ros em busca de alguma renda fixa. Os homens foram trabalhar como assalariados
aquele que não fosse de origem portuguesa ou naturalizado), protegidos por trata- nas obras públicas, e as mulheres dedicaram-se à produção de cerâmica utilitária
dos internacionais entre Portugal e países eventualmente amigos, geralmente a In- e de objetos de palha ou de tecido grosseiro na confecção de redes. Essa pequena
glaterra, Holanda e Espanha. Era permitido, por lei, a permanência de apenas quatro produção artesanal era vendida nas feiras da cidade, povoados e vilas. A maioria das
famílias de cada país conveniado, em cada capitania do Brasil. Portanto, esses es- aldeias terminou em estado de penúria total e os seus ex-moradores, sem as terras
trangeiros pouco podiam influenciar a sociedade colonial brasileira. de sua sesmaria e espalhados como serviçais nas casas da cidade do Rio de Janeiro,
Esses súditos pertenciam a dois blocos desiguais numericamente: uma mino- ou nas fazendas do interior, como se deu com a aldeia de São Lourenço, dos descen-
ria formada de fidalgos, nobres e pessoas privilegiadas com altos cargos na adminis- dentes dos índios Temiminós, do bravo cacique Araribóia (Martim Afonso de Souza).
tração pública, as representações locais nas Câmaras de Vereadores (privilégio dos A partir do final do século XVII foram estabelecidas leis protetoras dos índios
“homens bons”), os altos postos da hierarquia militar e eclesiástica e o domínio dos proibindo sua escravidão, exceção para os aprisionados em guerras.
meios de produção e comercial.
Entretanto, a grande maioria dessa sociedade, era constituída pelos plebeus. Os negros
Estes, por sua vez, eram divididos entre os livres (os que nunca foram escravos), e os
forros, isto é, os ex-escravos e a imensa população escrava. Os negros, oriundos do mercado escravo da África, foram inseridos no nível
Portanto, uma sociedade de origem escravista, excludente, de privilegiamen- mais inferior da sociedade, com violenta desagregação de suas relações familiares,
to aos membros da pequena elite titulada e, historicamente, distribuidora de forma culturais e sociais, e transformados num novo ser: batizados, com nome português,
desigual da renda produzida por todos. situados em lugar estranho sob o poder do seu senhor, a quem deveriam servir (até
O sistema colonial, gerido centralmente pelo governo monárquico, na Corte seus descendentes) enquanto fossem escravos, e que constituía a sua via de relação
de Lisboa, manteve-se até a sua transferência para a cidade do Rio de Janeiro, e o e inserção na sociedade. A escravidão no Brasil só veio a ser extinta, tardiamente, em
príncipe regente Dom João, promulgar a Carta de Lei (16.12.1815) elevando o Estado 13 de maio de 1888.
do Brasil ao nível e categoria de Reino unido ao de Portugal.
A partir daí, o sistema monárquico-imperial desenvolveu-se no país até ser
eliminado com a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889.

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Os demais sabrigados se alojassem precariamente em cortiços ou ocupassem as encostas dos
morros, as margens de rios e lagoas, os manguezais e áreas insalubres e doentias
Os demais segmentos formadores da sociedade nascente eram compostos como antigos aterros sanitários e charcos originando favelas. Estas representam
de portugueses oriundos do Reino, ou que já habitavam outra capitania brasileira, hoje, na cidade, mais de um milhão e 100 mil pessoas vivendo nas centenas de fave-
os nascidos aqui, descendentes de portugueses, com ou sem mistura com índios las registradas pela Prefeitura. Cerca de 20% do total de sua população.
(aceito pela sociedade) ou com negros, os chamados mulatos, pardos, e cabras.
No decorrer do século XIX, foi incentivada a imigração de outros países eu-
ropeus, além de Portugal, com objetivo de “branqueamento” da população e de Elementos influenciadores das transformações e
substituição da mão-de-obra escrava e dos forros. morfologia da cidade
Além do crescimento populacional de caráter endógeno, a cidade abrigou
parte significativa desses imigrantes, a qual lhe foi acrescida levas de deserdados do Neste ítem, optamos por fazer uma sintética listagem cronológica dos princi-
campo e de cidades interioranas. O fim do regime escravista (1888) veio sem que o pais elementos que, ao nosso ver, contribuíram para a formação da cidade.
governo implantasse programas de inserção desses forros no mercado de trabalho,
de educação, habitação e preparação da sociedade em geral para aceitação dessa Da fundação à chegada do governo monárquico na cidade (1565-
ruptura, gerando grande contingente de excluídos, embora livres.
1808)
As permanentes políticas públicas excludentes e de má distribuição de renda,
acopladas à reduzida oferta de postos de trabalho, com alta parcela de pobres e 1. A ocupação por ordens religiosas e da igreja secular, além do morro do Cas-
abandonados à própria sorte, levou, entre outros fatores, a que essas levas de de- telo, dos outros três morros formadores dos vértices do retângulo da área central da
cidade: os beneditinos (1590) no Morro
de São Bento; os franciscanos (1608)
no morro de Santo Antônio, e a capela
de Nossa Senhora da Conceição (1665)
depois transformada no palácio do
Bispo (1706), além de uma fortaleza,
no morro da Conceição. Unindo esses
quatro pólos, formaram-se ruas im-
portantes como as atuais: Primeiro de
Março, Quitanda, Uruguaiana, Acre,
São José, Assembléia, Teófilo Otoni etc.
Esse perímetro tornou-se o núcleo cen-
tral na cidade colonial.
2. A criação da Aula de Fortifi-
cações (1699), núcleo gerador de pro-
fissionais competentes nas áreas de
Arquitetura Militar e Civil. Essa Escola
funcionou ininterruptamente até se
transformar na atual Escola de Enge-
nharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ao longo de sua história dividiu
–se em escola militar e civil. Foram os engenheiros militares e arquitetos os dese-
nhadores e construtores das edificações, vilas e cidades no Brasil colonial.

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3. As invasões francesas: a) a de 1710, comandada por Jean François Duclerc, Séculos XIX e XX
que gerou um sentimento de orgulho nas autoridades e população local, pela co-
ragem de seu povo e eficiência de suas fortificações; b) a vitoriosa invasão de 1711, 1. A transferência da sede da monarquia portuguesa para a cidade do Rio de
sob o comando de René Duguay-Trouin, que destruiu parte da cidade com o intenso Janeiro foi o mais importante fato ocorrido no século XIX, para o Brasil e, especialmen-
bombardeio e os focos de incêndios, o saque das lojas, moradias, igrejas, navios te, para a sua antiga capital. Os portos brasileiros foram abertos a outros países (antes
e até a destruição de arquivos religiosos e públicos. Acima de tudo, o alto preço restrito a Portugal), ao comércio, a troca cultural, a vinda de estrangeiros. Foram sus-
que foi pago aos invasores para o resgate da cidade, e o dispêndio de particulares tadas as leis coloniais que proibiam a existência de fábricas no Brasil, de gráficas, de
para reaverem seus pertences. A cidade do Rio de Janeiro foi vítima de uma tragé- imprensa e de práticas religiosas diferentes da católica. São muitas as transformações
dia moral, patrimonial, financeira e de esgarçamento das relações entre os grupos políticas, econômicas, culturais e sociais advindas dessa presença na cidade.
sociais com acusações de traição, covardia, etc, e destes com os governantes e o 2. A fundação da Real Academia de Belas Artes, compreendendo curso formal
comando militar. Em consequência dessa violência, o governo construiu uma mu- de Arquitetura Civil, sob a responsabilidade do grupo de professores franceses que
ralha unindo o Morro do Castelo ao de Nossa Senhora da Conceição. Muralha que chegou em 1816.
representou um retrocesso urbanístico para a cidade e um entrave à sua expansão. 3. A localização de atividades e palácios na região suburbana da cidade, le-
4. A construção pela administração pública do sistema de abastecimento de vando-a a crescer e se desenvolver para além do seu antigo núcleo central: o Jardim
água potável, coletando-a na nascente do rio Carioca, levando-a por dutos pelo alto Botânico e a fábrica de Pólvora, na Zona Sul, o real palácio residencial da Quinta da
do morro de Santa Teresa e através de belo aqueduto construído em pedra, até um Boa Vista, em São Cristóvão, na Zona Norte e a sede do palácio rural, no longínquo
chafariz no atual largo da Carioca, inaugurado em 1723. subúrbio de Santa Cruz na Zona Oeste,.
5. O deslocamento do comércio negreiro da área central da cidade para a região 4. A volta, do rei Dom João VI para Portugal (1821) ficando na regência do
do Valongo, parte do seu arrabalde, a partir de 1758. Iniciativa da Câmara de Vereado- Reino do Brasil seu filho Dom Pedro. Coube a ele proclamar a independência do
res respaldada no parecer de médicos e cirurgiões recomendando a transferência para Brasil do reino de Portugal, em 1822, e assumir como imperador Dom Pedro I. A
evitar o surto de epidemias originário dos pretos novos que chegavam doentes. Além cidade do Rio de Janeiro passou a ser sede de um novo império.
disso, representou o princípio da hierarquia dos espaços da cidade, estabelecendo, os 5. A posse do imperador Dom Pedro II, em 1841, iniciou a sequência de gover-
vereadores, quais os tipos de comércio compatíveis com a zona urbana. nantes nascidos no país. Seu longo governo e o sistema imperial foram extintos, em
6. A elevação da cidade do Rio de Janeiro à categoria de capital do Brasil 15 de novembro de 1889, com a Proclamação da República.
e sede do vice-reinado, em 1763. Esse novo status representou a vinda de maior
6. A implantação do sistema ferroviário no Brasil, iniciado em 1853, com a
número de altos funcionários da monarquia, aumento da força militar, a necessi-
inauguração da Estrada de Ferro Mauá (ligando o porto de Mauá à Raiz da Serra, na
dade de novos prédios públicos e de moradia para as pessoas chegadas. Além de
baixada fluminense) e, em seguida, a Estrada de Ferro D. Pedro II (atual Central do
maior representatividade política na estrutura colonial.
Brasil), inaugurado o primeiro trecho (Campo de Santana, no centro da cidade, até
7. A construção do complexo urbanístico e paisagístico do Passeio Público,
Belém, em Queimados) em novembro de 1858. Além das grandes transformações
primeiro do gênero no Brasil, pelo vice-rei Dom Luiz de Vasconcelos, inaugurado em
urbanas na área central da cidade, as zonas suburbanas servidas pela linha férrea
1783. Primeira obra pública de caráter estético urbanístico e com o objetivo de cria-
foram ocupadas densamente por moradias, comércio, indústria etc., espraiando a
ção de nova centralidade na cidade e sua expansão para a direção Sul do território.
malha urbana pelo território municipal.
8. A urbanização da antiga chácara da família Paes Leme, pelo vice-rei conde
7. A criação de redes de transporte público urbano, inicialmente de bonde
de Resende (1790-1801), a partir de 1796, gerando área projetada para expansão do
puxado por animais, iniciado em 1838, ligando o centro da cidade aos subúrbios de
núcleo urbano. Atuais ruas do Lavradio, Resende, Senado, Inválidos etc.
Laranjeiras, Botafogo, na Zona Sul e Rio Comprido, São Cristóvão, Tijuca e Engenho
9. A instalação do sistema de iluminação pública (lampiões a base de azeite
Velho, na Zona Norte; depois sobre trilhos, e em 1878, substituídos os animais, por
de peixe), pelo mesmo Conde de Resende, nos principais logradouros da cidade.
força mecânica a vapor. Os percursos tornaram-se mais longos e rápidos. No final
do século, o sistema elétrico foi instalado em todas as linhas e levado até a zona de
Copacabana, graças ao túnel aberto dando acesso à região. A partir daí, toda a orla

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marítima, do Leme ao Leblon, foi ocupada gerando novos bairros residenciais para para proteção do patrimônio da cidade tem sido mais abrangente do que as demais
a cidade do Rio de Janeiro. congêneres, pois tem protegido, através do instrumento da Área de Proteção Cultu-
8. A implantação dos diversos serviços de infra-estrutura urbana como: ilu- ral – APAC, ambientes urbanos de morfologia e tipologia arquitetônica mais simples.
minação pública a gás (a partir de 1854), substituindo a de azeite de peixe, depois a 12. A perda do status de capital do Brasil para Brasília (inaugurada em
elétrica (a partir de 1879); a rede de água potável domiciliar (a partir de 1876); a rede 21.04.1960), no estado de Goiás, acarretando esvaziamento, em parte, de setores
de telefone (a partir de 1877); a rede de esgotamento sanitário (a partir de 1886). políticos, econômicos e culturais da cidade.
9. A Proclamação da República (1889), modificou a administração municipal. 13. A inauguração da primeira linha do metrô carioca, em 5 de março de 1979,
Antes cabia à Câmara de Vereadores o papel de legislativo e executivo. Sistema veio mudar o sistema de transporte coletivo então vigente, melhorando os serviços
mudado para dois poderes: o executivo, sob responsabilidade de um prefeito, e o le- e o fluxo de veículos na cidade.
gislativo, que continuou sob responsabilidade dos vereadores. O prefeito da cidade 14. O re-surgimento das organizações sociais urbanas, a partir da década
passou a ser nomeado diretamente pelo presidente da República, até a transferên- de 1970, principalmente as associações de moradores, sejam de favelas, sejam da
cia da capital brasileira para Brasília, ocasião em que o município passou a Cidade- cidade formal. Essas entidades da sociedade civil exerceram e ainda exercem em
-Estado e o governador eleito, em 1960. A fusão do Estado do Rio de Janeiro com muitos bairros da cidade importante papel na preservação do patrimônio local e
o da Guanabara (Lei de 1o de julho de 1974) fez com que a cidade do Rio de Janeiro reivindicatório de melhorias de seus bairros, e do bom atendimento dos serviços
voltasse ser a capital do estado e os seus prefeitos nomeados pelo governador. Só públicos essenciais como educação, saúde e lazer.
após o processo de abertura do Regime Militar (Lei da Anistia de 28 de agosto de 15. O surgimento dos movimentos ecológicos, a partir da década de 1960, em
1979) é que o governante municipal passa a ser eleito diretamente por voto univer- defesa da qualidade ambiental e proteção do meio ambiente natural, dos rios e baía
sal. O primeiro prefeito eleito tomou posse em 1o de janeiro de 1986. de Guanabara, do mar e praias da orla municipal e de sítios que ainda guardam re-
10. A regulamentação e criação de conselho profissional abrigando arquite- servas de manguezais, de floresta atlântica, sambaquis, de exemplares significativos
tos, engenheiros, geógrafos e técnicos, em 1933. Este conselho passou a o exercício de árvores, mesmo isolados numa rua ou no interior de um terreno.
profissional de seus filiados e a exigir que os projetos e obras de suas áreas fossem de 16. O crescimento assustador da violência em todos os níveis na cidade, pro-
responsabilidade desses profissionais formados. Isto, sem dúvida, melhorou o nível vocando transformações na sociabilidade urbana, e mudança dos hábitos da po-
técnico e estético dos imóveis urbanos, dos equipamentos e logradouros públicos. pulação no uso dos espaços públicos. Imóveis nas circunvizinhanças dos núcleos
11. A criação dos órgãos públicos voltados para a proteção do patrimônio geradores de violência foram desvalorizados, muitos receberam gradeamento e
arquitetônico, urbano, histórico, artístico, arqueológico e, cultural, sendo o primei- instalações de equipamentos de segurança, proliferaram empresas paramilitares
ro, a nível federal, em 1934:o Serviço de Proteção aos Monumentos Nacionais e às de segurança e houve aumento de fechamento de ruas públicas pelos moradores
Obras de Arte Tradicionais, embrião do atual IPHAN. O segundo órgão foi o Instituto locais, de construção de cabines e outros equipamentos ao longo de logradouros
estadual do Patrimônio Cultural – Inepac, que se iniciou como secretaria do antigo públicos, como paliativos ao grave problema que vitima as cidades brasileiras.
estado da Guanabara. Por fim, a Prefeitura do Rio de Janeiro criou o Departamento Muitos outros fatores, não citados, são importantes para entendermos como
Geral de Patrimônio Cultural – DGPC, e que recentemente (6 de março de 2006), chegou, hoje configurada, a cidade do Rio de Janeiro, mas nos parecem suficientes
foi elevado à Secretaria Extraordinária de Promoção, Defesa, Desenvolvimento e para a dimensão deste trabalho os destacados. Todos são geradores de elementos
Revitalização do Patrimônio e História-Cultural da Cidade do Rio de Janeiro – SE- que podem representar momentos e imagens da memória e patrimônio da cidade.
DREPAHC. Inúmeras leis foram estabelecidas visando operacionalizar os institutos
de tombamento, preservação e registro do nosso patrimônio. Tem sido meritório
o trabalho sistemático desses órgãos na preservação de nossa memória artística,
Planos e ações, públicas e privadas que influenciaram
histórica e cultural. Entretanto, os pioneiros profissionais que trabalhavam no IPHAN a “Cara do Rio”
negavam aprioristicamente qualidade da arquitetura, objetos e outras produções
Se o bloco anterior já foi difícil de sintetizar, este será mais desafiante, por sua
da linguagem eclética e não protegeram conjuntos belíssimos como os prédios e
variedade, especificidade, dimensão física e cultural. Tentaremos enfrentar o desafio.
equipamentos públicos da Avenida Rio Branco. Em menos de 50 anos, grande parte
desse acervo foi demolido pelos empreendedores imobiliários. A política municipal

68 Memória e patrimônio na cidade: o caso do Rio de Janeiro Nireu Oliveira Cavalcanti 69


1. O plano de fortificações da cidade e baía de Guanabara, considerado aqui a 8. A gestão do prefeito Henrique de Toledo Dodsworth (1937-1945) foi
partir de sua fundação, em 1565. Situados em lugares estratégicos para visibilidade também marcante na cidade do Rio de Janeiro. Destacamos a abertura da Avenida
dos inimigos marcaram a paisagem da cidade do Rio de Janeiro, tanto a voltada para Brasil (1941-1944), primeira via planejada com a função viária e estética de entrada e
o oceano, quanto para a baía, de tal forma a ela vinculada que é impossível apreciá- saída da cidade. Sua obra mais marcante e que interferiu na morfologia e memória
-la separada dessas belas obras de engenharia militar. Por sinal, são todas tombadas da área central da cidade foi a abertura da Avenida Presidente Vargas (1940-1944), a
por um ou mais órgão de proteção do patrimônio. Os fortes e fortalezas construídos mais larga e moderna da cidade, que deveria representar o símbolo da modernida-
no interior continental, também são de rara beleza, como o forte de São Clemente de do Estado Novo. A memória da cidade pagou alto preço com essa avenida: foram
e o de Campinhos. Infelizmente, o primeiro foi demolido e o segundo está sendo arrasados os largos do Capim e o de São Domingos, a Praça Onze, amputada parte
palco de aguerrida luta dos preservadores contra sua demolição e uso do terreno do Campo de Santana; demolidas quatro igrejas, centenas de prédios particulares
para empreendimento imobiliário. e até a sede da própria Prefeitura. Até o presente momento, a Avenida está incon-
2. O Plano de “Remodelação do Rio de Janeiro” realizado, pioneiramente, em clusa, com terrenos abandonados e outros usados como estacionamentos. Aliás,
1843, pelo engenheiro militar conde Henrique de Beaurepaire Rohan. Foi executado com a mesma finalidade de estacionamento, encontra-se um terreno na Avenida
parte do plano. Passos, que antes abrigara a sede da antiga Academia de Belas Artes (inaugurado
3. O Plano da “Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro”, de em 05.11.1826), projetado por Grandjean de Montigny, demolido em 1938.
1875. Foi executado parte do plano. 9. A urbanização da antiga área da Misericórdia, com a demolição de várias
4. A criação do bairro de Vila Isabel, a partir de 1873, planejado segundo as edificações históricas, inclusive o belo mercado em estrutura metálica, e a cons-
regras do urbanismo moderno de influência francesa, inclusive com a novidade da trução do elevado da Perimetral, inaugurado o seu primeiro trecho em 1960. Esta
avenida boulevard. Dotado de linha de bonde unindo o novo bairro ao centro da desastrada reurbanização danificou o espaço simbólico, histórico e da memória do
cidade, de jardim zoológico e de praças. Projeto do arquiteto Francisco Joaquim núcleo central da cidade: a Praça Quinze.
Bethencourt da Silva. 10. O período da Cidade-Estado da Guanabara (1960-1975) trouxe muitas ini-
5. A administração do prefeito Francisco Pereira Passos (1902-1906). Transfor- ciativas governamentais importantes para a cidade: a) a troca de bondes por ônibus
mou a cidade, abriu novas ruas e avenidas (Beira-Mar, Central, atual Rio Branco, Fran- elétricos, mais silenciosos e não poluentes; b) a conclusão da abertura dos túneis
cisco Bicalho, Rodrigues Alves, Mem de Sá, Salvador de Sá etc.), alargou e prolongou Santa Bárbara e Rebouças; c) a implantação de política habitacional para a popula-
muitas outras, remodelou praças, canalizou rios etc. Foi construído um novo porto ção residente em favelas, prioritariamente, com a vertente da remoção da popula-
sobre o aterro de parte significativa da baía, alterando radicalmente o antigo perfil ção para os subúrbios das Zonas Oeste e Norte; d) a conclusão do aterro da baía ao
da orla da área central, principalmente da região no sopé do morro da Conceição, longo das praias do Boqueirão, no centro da cidade, até o morro da Viúva, na divisa
dos bairros de Santo Cristo, da Saúde e da Gamboa. A cidade do Rio de Janeiro, após com a praia de Botafogo, implantando na área o belíssimo e vasto parque conhecido
as cirurgias passorianas dividiu-se em duas: a da malha urbana e tipologia arquite- como do Flamengo; e) a contratação do escritório do urbanista grego Constantinos
tônica de origem colonial e imperial, e a do urbanismo moderno de inspiração na Apostolos Doxiadis, que elaborou um Plano Diretor para o então Estado da Guana-
administração haussmanneana de Paris. bara (1963-1965), com participação de técnicos do governo, trazendo novas tecno-
6. A derrubada do morro do Castelo (1920-1922), marco territorial e histórico logias de planejamento e o conceito de ampliação da ação sobre a cidade inserida
da memória da origem da cidade, paradoxalmente para comemorar a “memória” do no contexto da Região Metropolitana, tendo algumas de suas propostas realizadas,
centenário da Independência do Brasil. Foi esta ação governamental a mais perni- principalmente as voltadas para o sistema viário; f) o “Plano-Piloto para a urbani-
ciosa contra o patrimônio da cidade do Rio de Janeiro. zação da baixada compreendida entre a Barra da Tijuca, o Pontal de Sernambetiba
e Jacarepaguá” do arquiteto Lucio Costa, elaborado em 1969, no qual propõe uma
7. O plano de “Remodelação, Extensão e Embelezamento da Cidade do Rio de
nova cidade para o Rio de Janeiro, dotada de novo Centro Metropolitano, voltada
Janeiro”, encomendado pelo prefeito Antonio Prado Junior (1926-1930), ao arquiteto
para as classes média e rica da sociedade, que se desloca em veículo particular. O
e urbanista francês Alfred Agache. Plano Diretor para o planejamento da cidade com
Plano não previa sistema de transporte coletivo, rede de coleta de esgoto (caberia a
propostas de ações imediatas, de médio e longo prazos. O Plano propõe a ocupação da
cada promotor imobiliário realizar estações próprias a cada empreendimento), nem
grande área resultante da demolição do morro do Castelo, existindo até hoje alguns dos
habitação para os mais pobres que trabalhariam na nova cidade. Menos de 50 anos
prédios construídos dentro dessas normas. Pouco foi realizado dessa proposta.

70 Memória e patrimônio na cidade: o caso do Rio de Janeiro Nireu Oliveira Cavalcanti 71


após, o Eldorado que os investidores imobiliários da Barra da Tijuca anunciavam aos e espírito carioca e do esporte brasileiro; e) o Museu de Arte Moderna (1953-1958);
compradores de seus imóveis mostra-se como imagem espelhada da velha cidade, f) o Teleférico do Pão de Açúcar (1912-1913), no bairro da Urca, e o monumento ao
as lagoas e trechos das praias poluídos, os mangues e a vegetação nativa deterio- Cristo Redentor (1924-1931), no alto do morro do Corcovado, são dois exemplares
rados. As favelas se espalham pela região e sua população pobre continua a sofrer que interferiram na silhueta das montanhas da cidade, mas que se integraram ma-
a histórica exclusão do poder público, sem se beneficiar dos investimentos volta- gistralmente à sua paisagem, hoje dela são indissociáveis, e existem como pontos
dos aos grandes empreendimentos para a região, por exemplo, na construção da focais para apreciação emocionada do conjunto natureza cidade do Rio de Janeiro.
“Cidade da Música” e para os Jogos Pan Americanos.
11. A criação do Banco Nacional de Habitação – BNH, que atuou por 20 anos
(1964-1984) e deixou marcas significativas na cidade com seus conjuntos habitacio-
Inquietações finais
nais, compostos de unidades unifamiliares, de um ou dois pavimentos, ou blocos de
edifícios multifamiliares. A cidade do Rio de Janeiro, ao
longo de seus anos de existência, as-
12. Os planos realizados em 1977: o “Plano Urbanístico Básico da Cidade do
sumiu sempre papel relevante político,
Rio de Janeiro – Pub-Rio“, de caráter geral para a cidade, e o Pit-Metrô com ênfase
econômico e cultural no país. Nasceu
no transporte metropolitano. Pouco se realizou desses dois planos.
predestinada a ser capital, a ser cosmo-
13. O programa de proteção do patrimônio e revitalização da área central
polita. Sucessivamente foi sede: a) da
da cidade denominado “Corredor Cultural”, iniciado em 1979, mas regulamentado
nascente capitania do Rio de Janeiro; b)
em 17.01.1984. Tem sido um instrumento eficaz na proteção do vasto patrimônio do
do governo geral da repartição Sul do Brasil; c) volta ao seu primeiro status de sede
ecletismo carioca.
da capitania; d) capital do Brasil (1763-1808) colônia; e) Corte do Reino de Portugal
14. A promulgação da Lei Orgânica do Município (1990) estabelecendo meca- (1808-1816); f) capital do Brasil imperial (1822-1889); g) sede do Brasil republicano
nismos importantes para o Planejamento Participativo da cidade, a obrigatoriedade (1889-1960); h) volta a ser capital do estado do Rio de Janeiro, com pequeno interva-
da elaboração do “Plano Diretor Decenal” e do “Plano Diretor Ambiental”; estabele- lo de cidade-estado (1960-1975).
ce, ainda, que “Os poderes Municipais, com a colaboração da comunidade, protege-
Foram muitos os governantes da cidade do Rio de Janeiro e muitos os Planos
rão o patrimônio cultural por meio de inventários, tombamentos, desapropriações
para seu ordenamento, embelezamento e desenvolvimento econômico, social e
e outras formas de acautelamento e preservação”;
cultural. Nela foram aplicados recursos humanos, financeiros e técnicos, públicos
15. As intervenções pontuais (dentro da linha do Planejamento Estratégico e privados, incalculáveis. O resultado não corresponde a tantos investimentos e
adotado pela Prefeitura) chamadas de “Rio Cidade”, para reabilitação dos logradouros planos, projetos, ações pontuais e obras realizadas.
principais de vários bairros da cidade e o programa Favela Bairro destinado aos assen- Trata-se uma cidade contraditória, com ilhas ambientalmente agradáveis
tamentos das populações de baixa-renda, sem a sua remoção, objetivavam a requalifi- ao viver humano, conflitando com espaços fragmentados, desiguais, violentos, de
cação ambiental, social e cultural das áreas que receberam esses benefícios. Esses pro- meio ambiente poluído e sumamente desconfortáveis.
gramas foram iniciados em 1994 e continuam a ser realizados até o presente momento. Sem dúvida, resultado da descontinuidade política, da mentalidade domi-
16. Da vasta relação de edificações isoladas que foram reconhecidas por suas nante dos governantes de abandonarem o que o governo anterior planejou e re-
qualidades estéticas, históricas, culturais e de importância para a memória e patri- alizou, de não se empenharem na continuação dos planos e obras em andamento,
mônio da cidade, portanto tombadas e preservadas, restringindo-me às construídas e não manter as concluídas. É o eterno recomeçar da estaca zero e desperdício de
no século XX, citarei algumas que mais se destacam: a) os prédios ecléticos que res- recursos! A ausência de políticas públicas.
taram da antiga Avenida Central (Rio Branco), Teatro Municipal, Biblioteca Nacional, Como agravante a essa descontinuidade, não há quadro administrativo está-
Museu de Belas Artes etc.; b) o prédio Gustavo Capanema (1937-1943) construído vel e com independência suficiente para planejar, aplicar, acompanhar e redimen-
para sede do antigo Ministério da Educação e Saúde, que tornou-se um ícone da sionar as políticas públicas, ao longo de vários mandatos políticos. Além da desqua-
arquitetura moderna no Brasil e recebeu o aval público para a nova linguagem ser lificação de parte dos técnicos e dos políticos que assumem determinado período
utilizada por todos; c) o aeroporto Santos-Dumont (1937-1944); d) o estádio de fu- da administração pública.
tebol inaugurado em 16 de junho de 1950 – famoso Maracanã –, símbolo da alegria

72 Memória e patrimônio na cidade: o caso do Rio de Janeiro Nireu Oliveira Cavalcanti 73


Inegavelmente, apesar dessas mazelas, devemos reconhecer que a cidade do Janeiro no Século XIX. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006.
Rio de Janeiro acumulou rico acervo histórico, artístico, arquitetônico-urbanístico, ANSAY, Pierre; SCHOONBRODT, René. Penser la ville: choix de textes philosophiques.
natural e cultural. Ultrapassa os bens tombados a casa dos 500, além das APAC que Bruxelles: AAM Editions, 1989.
preservam alguns milhares de imóveis, logradouros isolados ou conjuntos forman- ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão: ensaio sobre o barroco. Tradução: DIAS, Maurício
do malha característica do local, monumentos, jardins, árvores, elementos da pai- Santana. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
sagem e constituinte de sua natureza, como o espelho d’água da lagoa Rodrigo de BÍBLIA SAGRADA. Tradução do Centro Bíblico de São Paulo. São Paulo: Editora AVE MARIA,
Freitas, a praia da Moreninha, na Ilha de Paquetá etc. 1965, 7 ed.
Para reversão desse quadro são necessárias algumas mudanças nos homens BIERMANN, Verônica; et al. Teoria da Arquitetura: do Renascimento aos nossos dias.
e mulheres que usufruem a dadivosa e ainda Cidade Maravilhosa. Todos nós temos Tradução: BOLÉO, Maria do Rosário Paiva. Itália: TASCHEN, 2003.
que aprender a viver “com sociedade”, isto é, com urbanidade. Temos que buscar BLUTEAU, Dom Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino. Coimbra: Collegio das Artes da
cotidianamente a utopia do Jardim do Éden. Companhia de JESU, 1712.
Os políticos governantes e os servidores públicos precisam imbuir-se de que CAVALCANTI, Lauro. Quando o Brasil era moderno: guia de Arquitetura 1928-1960. Rio de
estão naqueles postos para servirem ao bem-comum, ao interesse coletivo, a todos os Janeiro: Aeroplano, 2001.
homens e mulheres da sociedade. Conscientizarem-se de que o saber especializado CAVALCANTI, Nireu Oliveira. O Rio de Janeiro Setecentista: a vida e a construção da cidade da
de cada um deve ser fundido para a correta elaboração dos projetos e sua realização. invasão francesa até a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
Os servidores públicos devem exercer suas funções dentro de um processo . Santa Cruz: uma paixão. Rio de Janeiro: Relume Dumará /
contínuo de práticas e de projetos, ser honestos, éticos, qualificados para a função Prefeitura do Rio de Janeiro, 2003.
que exerce, e, com eqüidade, oferecer os serviços públicos à população usuária da . Rio de Janeiro Centro Histórico (1808-1998): marcos da colônia.
cidade. Devem atuar de forma ampla e coerente com a complexidade urbana. Rio de Janeiro: Anima, 1998.
As normas devem ser claras, justas e aplicáveis de forma transparente, e ser . Construindo a violência urbana. Rio de Janeiro: Madana, 1986.
de plena aceitação pela sociedade.
. Urbanização no Brasil nos séculos XIX e XX. Boletin del Instituto
Por sua vez, a sociedade tem que se reeducar, aprender a viver com urbani- de Estudios Latinoamericanos de Kyoto, Kyoto – Japão, n. 5, p. 1-31, 2006.
dade, cada um sabendo respeitar seu semelhante, as normas públicas, e preservar
. O comércio de escravos novos no Rio setecentista. In:
o que de bom permanece na cidade, sabendo que foi obra de várias gerações ao FLORENTINO, Manolo. (Org.). Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos
longo de tantos anos. O “bom” originado da ação humana ou que vive e pulsa na XVII-XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 15-77.
dadivosa natureza, em sua diversificada complexidade na terra, no ar, nas águas. . Memórias de alegria: o Rio de Janeiro na folia dos ranchos (1893-
Contribuir para eliminar as desigualdades sociais econômicas e culturais vi- 1911). In: THIESEN, Icléia; BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti; SANTANA, Marco
gentes na sociedade e refletida na cidade. Portanto, participar na reconstrução e Aurélio. (Org.). Vozes do porto: memória e história oral. Rio de Janeiro, 2005, p. 81-110.
reabilitação dos espaços e sítios degradados para eliminar as diferenças e contradi- CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Tradução: MACHADO, Luciano Vieira. São
ções do viver urbano. Paulo: Editora UNESP, 2001.
A busca da volta ao Jardim do Éden deve ser o cotidiano de homens e mulhe- COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Tradução: REBELLO, Aurélio Barroso; ALVES, Laura.
res, no seio da família, na escola, no trabalho, no lazer, nas “ruas e praças”. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. (1a edição, Paris, 1903)
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São Paulo: Pini: Fundação Vilanova Artigas; Rio de Janeiro: RIOARTE, 1991. sulated the modernista atitude toward historic architecture in that country. To an extent
unprecedented in other countries with strong modernist movementes, the leading Brazilian
modernist architects were also the country’s leading preservationists, and, for modern in-
terventions within growing urban centres, and for modern interventions into historical cen-
ters. In both cases, the architects of SPHAN used preservation to create a dialogue between
colonial and modern architecture, and to reinforce the continuity between the distant past
and the future of Brazilian architecture.

76 Memória e patrimônio na cidade: o caso do Rio de Janeiro José Simões de Belmont Pessôa 77
Resumen | La preservación del patrimonio histórico y artístico en Brasil tuvo la singulari- A preservação na visão do grupo de arquitetos modernos brasileiros não de-
dad de tener como protagonistas de su nacimiento la vanguardia del movimiento moderno veria ser um empecilho ao desenvolvimento do país e à produção da nova arquite-
en el país. Esta dualidad señaló particularmente las estrategias de conservación de edificios tura. A conservação dos testemunhos do passado colonial servia para forjar a identi-
y centros históricos brasileño, así como influenció en una parte sustancial de la producción dade da nação, que se completava com a imagem de presente, ou melhor dizendo,
arquitectónica de vanguardia, responsable de un carácter regional del movimiento moder- de futuro que para eles a arquitetura moderna anunciava ao País. As primeiras dé-
no en Brasil. Analizar cómo los arquitectos modernos dentro del Patrimônio Histórico e Ar- cadas do século XX são marcadas na America Latina pela construção de identidades
tístico Nacional trataron edificios antiguos en nuevos centros y las nuevas construcciones nacionais que tem na difusão dos estilos neocoloniais a resposta arquitetônica ao
en los viejos centros es una excelente manera de entender la relación entre la arquitectura problema. A partir da década de 1920, o neocolonial brasileiro vai se firmando como
moderna y la conservación en Brasil. ?Quales los paradigmas que guiaran esta acción y es- a resposta arquitetônica à demanda de um estilo nacional. Os arquitetos modernos
tableceran un estándar responsable por la construcciones del paisaje de las ciudades brasi- no Brasil iriam, na década seguinte, contrapor essa ideia com o estudo e a conserva-
leñas contemporáneas. ção da verdadeira arquitetura colonial, e a produção de construções modernas que
teriam a “identidade” do futuro da nação.
Portanto, analisar como os arquitetos modernos dentro do Patrimônio His-
tórico e Artístico Nacional trataram os velhos edifícios nos novos centros e as novas
construções nos velhos centros é um excelente modo para compreendermos a rela-
A preservação do patrimônio histórico e artístico brasileiro teve a singula- ção entre arquitetura moderna e preservação no Brasil.
ridade de ter como protagonista do seu nascimento a vanguarda do movimento A imagem proposta pelo título foi usada por Lucio Costa numa carta redigida em
moderno do país. Esta dualidade marcou particularmente as estratégias de conser- 1939, em defesa do projeto moderno de Oscar Niemeyer para o novo Grande Hotel da
vação de prédios e centros históricos brasileiros, bem como influiu numa parte con- cidade colonial setecentista de Ouro Preto.4 A legislação federal brasileira de preserva-
siderável da produção arquitetônica desta vanguarda, responsável por um caráter ção do patrimônio histórico e artístico começara a vigorar dois anos antes, e o debate
regional do movimento moderno no Brasil. em torno da forma que deveria assumir um novo hotel dentro da antiga cidade vai esta-
A criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN)1 dá belecer as diretrizes iniciais para os novos projetos nas cidades tombadas.
inicio em 1937 a uma efetiva ação federal de proteção no Brasil. Pode-se atribuir ao A ideia de que o moderno telefone estivesse artisticamente integrado em
fato de os arquitetos integrantes do SPHAN serem modernos2, a opção pela prote- cima de uma mesa do século XVIII é o paradigma que vai caracterizar as intervenções
ção dos centros históricos brasileiros ter-se inicialmente restringido às pequenas ci- dos anos 1930 aos anos 1950 nas pequenas cidades coloniais brasileiras consideradas
dades coloniais que estavam de fora das zonas de maior desenvolvimento econômi- patrimônio histórico e artístico. Essa ideia nos remete ao ensaio escrito e publicado
co do país. Nas décadas de 1930, 40 e 50 foram protegidas onze pequenas cidades3 por Erwin Panofsky na Alemanha em 1930, intitulado The first Page of Giorgio Vasari’s
que tinham em comum uma paisagem marcada pela arquitetura do século XVIII e libro, e que será traduzido e publicado em inglês somente 25 anos depois. 5 Nesse
por se encontrarem economicamente estagnadas. Já nos grandes centros urbanos, texto que considero de fundamental interesse para o entendimento das questões
nas capitais regionais vistas por eles como o lugar da construção do “Brasil Moder- relativas ao desenvolvimento da restauração como disciplina, Panofsky analisa como
no”, só foram protegidos edifícios isolados, isso pelo menos até 1959 quando uma os artistas do Renascimento enfrentaram o problema da unidade estilística, diante
parte do centro histórico de Salvador, capital do estado da Bahia, foi reconhecida da necessidade de concluir os edifícios inacabados da arquitetura gótica.
como patrimônio nacional. Quando os humanistas dos séculos XV e XVI tomam a arquitetura da antigui-
dade clássica greco-romana como modelo, eles se distanciam da arquitetura gótica
1. Criado para reconhecer e proteger federalmente o patrimônio histórico e artístico teve vários nomes ao longo da sua
história: Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, SPHAN, de 1937 a 1946; Diretoria do Patrimônio Histórico até então produzida tornando impensável a prática com que na Idade Média se jun-
e Artístico Nacional, DPHAN, de 1946 a 1970; Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, de 1970 a
tavam estilos diversos.
1979; Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, SPHAN, de 1979 a 1990; Instituto Brasileiro do Patrimônio
Cultural, IBPC, de 1990 a 1994; Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, desde 1994. O estilo gótico não poderia ser mais admitido por se tratar de uma “arte bár-
2. A equipe técnica inicial era constituída de arquitetos e engenheiros integrantes da vanguarda modernista brasileira: bara”, mas era ainda menos admissível, para os artistas do Renascimento, a violação
Lucio Costa (1902-1998), Renato Soeiro (1911-1984), José de Souza Reis (1909-1986), Alcides da Rocha Miranda (1909-
2001), Luís Saia (1911-1975), Carlos Leão (1906-1983), Joaquim Cardozo (1897-1978).
3. São elas: Ouro Preto (1938), Mariana (1938), Tiradentes (1938), São João Del Rei (1938), Serro (1938), Diamantina (1938), 4. A esse respeito ver o ensaio de Lauro Cavalcanti Brazilian Modern Heritage.
Congonhas (1941), Alcântara (1948), Goiás Velho (1951), Pilar de Goiás (1954) e Parati (1958). 5. In: PANOFSKY E. Meaning in the Visual Arts. Papers in and on Art History, 1955.

78 O telefone sobre a mesa do século xviii José Simões de Belmont Pessôa 79


da regra de adequação harmônica entre as partes que compunham a arquitetura de Preto em 1946. Os dois funcionários do IPHAN eram também arquitetos atuantes da
um edifício chamada por Leon Batista Alberti de convenienza ou conformità. então vanguarda modernista brasileira. Em todos eles o procedimento era semelhan-
Ora Panofsky explica que este impasse gerado pelo principio da adequação te, como quando a comunidade batista de Ouro Preto apresenta o seu projeto para
foi resolvido de três modos: no primeiro as partes preexistentes seriam remode- edificar um templo religioso na cidade, este é negado pelo SPHAN com o argumento
ladas segundo os princípios da maneira moderna como no Templo Malatestiano que o mesmo afasta-se completamente dos princípios fundamentais da arquitetura. 6
de Alberti em Rimini ou na Basílica de Palladio em Vicenza, no qual as construções Junto com a negativa é apresentado à igreja batista um projeto alternativo, radical-
existentes são totalmente revestidas por uma fachada moderna; no segundo com- mente moderno no tratamento do telhado, do volume, dos vãos e que efetivamente
pletava-se a obra preexistente com elementos goticizantes como nas propostas de foi construído. O principal doutrinador da arquitetura moderna brasileira vai afirmar
Bramante para o tibúrio da Catedral de Milão; e no terceiro buscava-se uma solução ao longo da sua vida a ideia de uma afinidade espiritual entre a arquitetura funciona-
conciliatória das duas anteriores como na execução da fachada da Igreja de Santa lista do século XX e a singela arquitetura colonial brasileira, esta também funcional
Maria Novella por Alberti. na sua extrema simplicidade. Neste
Panofsky também chama a atenção para outra dimensão na solução da uni- sentido é bom notar que a mesa do
dade estilística. A partir de um desenho pertencente ao acervo da biblioteca do século XVIII a que se referia Lucio
Louvre e que ele identifica como tendo pertencido a Giorgio Vasari, que fez para Costa não seria um delicado móvel
o mesmo uma moldura em papel de gosto gótico porque considerava tratar-se de rococó europeu, e sim uma robus-
uma obra bizantina do século XIV, de autoria de Cimabue. Ora a solução empregada ta mesa colonial brasileira, assunto
por Vasari na sua moldura para o desenho não seria mais a busca de uma unidade que ele estava estudando e publi-
estética, mas sim histórica e de espírito. caria no mesmo período um ensaio
Não creio que o texto de Panofsky fosse nos anos 1930 ou 40 conhecido dos a respeito.7 Diversos estudos sobre
arquitetos modernos brasileiros, mas a idéia de uma adequação espiritual e histó- a arte e arquitetura brasileira dos
rica entre o moderno e o colonial foi o que prevaleceu na visão dos que atuavam séculos XVII e XVIII seriam patroci-
no SPHAN. Para Lucio Costa, o moderno era a verdadeira arquitetura do século XX, nados pelo Serviço do Patrimônio
assim como a arquitetura colonial era o moderno do século XVIII.  O principal dou- e publicados em sua revista. Em
trinador da arquitetura moderna brasileira vai afirmar ao longo da sua vida a idéia boa parte destes ensaios temos
de uma afinidade espiritual entre a arquitetura funcionalista do século XX e a singela uma leitura funcionalista da arte
arquitetura colonial brasileira, esta também funcional na sua extrema simplicidade. colonial que corrobora com a ideia
Neste sentido é bom notar que a mesa do século XVIII a que se referia Lucio Costa proposta por Lucio Costa de que a
não seria um delicado móvel rococó europeu e sim uma robusta mesa colonial bra- arquitetura moderna era a legítima
sileira, assunto que ele estava estudando e publicaria no mesmo período um ensaio herdeira da tradição dos mestres
a respeito.[6] Diversos estudos sobre a arte e arquitetura brasileira dos séculos XVII de obra dos séculos XVI a XVIII. O
e XVIII seriam patrocinados pelo Serviço do Patrimônio e publicados em sua revista. passado no Brasil passa a ser um
Em boa parte destes ensaios temos uma leitura funcionalista da arte colonial que FIGURA 1 Projeto apresentado para construção da nova argumento dos modernos para
corrobora com a idéia proposta por Lucio Costa de que a arquitetura moderna era a capela batista de Ouro Preto, 1946, acervo Arquivo IPHAN) legitimar sua arquitetura em detri-
e projeto alternativo do SPHAN construído, 1946, acervo
legitima herdeira da tradição dos mestres de obra dos séculos XVI a XVIII.   O passa- Arquivo IPHAN mento dos acadêmicos.
do no Brasil passa a ser um argumento dos modernos para legitimar sua arquitetura A experiência do Grande
em detrimento dos acadêmicos. Hotel de Ouro Preto em contrapor um projeto de edificação moderna a uma inten-
A experiência do Grande Hotel de Ouro Preto em contrapor um projeto de ção de realizar uma obra em estilo neocolonial foi repetida em projetos como os de
edificação moderna a uma intenção de realizar uma obra em estilo neocolonial foi re-
petido em projetos como os de Alcides da Rocha Miranda para uma escola na cidade 6. REIS José de Souza, Projeto de igreja batista, 1946, Obras, Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro
colonial do Serro em 1945 e de José de Souza Reis para a Capela Batista de Ouro 7. COSTA Lucio. “Notas sobre a evolução do mobiliário luso brasileiro”. In: Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, n. 3, Rio de Janeiro, 1939.

80 O telefone sobre a mesa do século xviii José Simões de Belmont Pessôa 81


Se olharmos para a escola projetada por Alcides da Rocha Miranda, verifi-
camos que o conceito de harmonia traduz-se aqui como um confronto “positivo”
entre obras de arte de diferentes épocas. Aqui também as janelas rasgadas em fita,
a ausência de telhado cerâmico, a vista e a volumetria distinta dos edifícios nos ar-
redores afirmam a modernidade da nova construção. Estes exemplos demonstram
que no Brasil a ação de preservação do Serviço do Patrimônio vai curiosamente se
tornar também instrumento para difusão e legitimação da arquitetura moderna no
país. O próprio Oscar Niemeyer realizaria uma série de projetos modernos – hotel,
escola e clube – no centro histórico tombado da cidade setecentista de Diamantina,
na década de 1950.
Todas essas intervenções são pensadas dentro da perspectiva de excepciona-
lidade dos pequenos centros históricos brasileiros que não viviam nem a destruição
da modernização que levou Buls, o burgomestre de Bruxelas, a promover no final
do século XIX a reconstituição da Grand Place da cidade, nem a destruição das duas
grandes guerras do século XX que levaram o debate europeu a discutir a recupera-
ção de seus centros históricos destruídos, expresso no com’era, dov’era, que teve em
Varsóvia o seu mais emblemático exemplo, mas também se disseminou na recons-
Figura 3 Escola no Serro, 1946, acervo Arquivo IPHAN
trução de várias cidades alemãs, francesas e italianas.
No entanto, o experimentalismo a que recorreram os modernistas nas pri-
Alcides da Rocha Miranda para uma escola na cidade colonial do Serro em 1945, e meiras décadas da atuação federal de preservação foi sendo gradativamente aban-
de José de Souza Reis para a Capela Batista de Ouro Preto em 1946. Os dois funcio- donado, diante do aumento extraordinário da demanda de novas construções nas
nários do IPHAN eram também arquitetos atuantes da então vanguarda modernista cidades históricas do século XVIII da antiga região da mineração. A partir de 1960
brasileira. Em todos eles o procedimento era semelhante, que o mesmo afasta-se a cidade de Ouro Preto vive um novo surto de desenvolvimento econômico, em
completamente dos princípios fundamentais da arquitetura. 8 Junto com a negativa função da exploração do alumínio e do ferro. Os vazios remanescentes na cidade
é apresentado à igreja batista um projeto alternativo, radicalmente moderno no tra- passam a ser objeto de interesse de uma renovada demanda habitacional. A inser-
tamento do telhado, do volume, dos vãos e que efetivamente foi construído. ção de prédios modernos na cidade antiga vai sendo substituída por regras que
O que todos esses projetos tinham em comum era o entendimento de que a fixam a linguagem arquitetônica das novas edificações sob forma de uma espécie
nova intervenção seria um elemento excepcional em um conjunto urbano já conso- de “falso colonial”. A ideia de inserir uma “obra de arte” moderna em uma cidade
lidado e que, portanto, não se repetiria. Eles também propõem um diverso conceito colonial pronta é substituída por um novo pragmatismo que deixa de lado a pre-
de harmonia, não baseado na busca de soluções plásticas comuns, e sim na existên- ocupação com a autenticidade do conjunto arquitetônico diante da necessidade
cia de um espírito comum, na paridade qualitativa dos objetos arquitetônicos de de manter a prevalência do ambiente colonial na paisagem urbana. São fixadas as
épocas diversas na paisagem urbana. características de fachada e proporções dos telhados em telha cerâmica canal e ar-
Este conceito foi claramente explicitado na diretriz estabelecida no parecer rematados com cimalha pintada de branco; dos vãos de esquadrias com as propor-
do Serviço do Patrimônio que negou o edifício neocolonial, projetado para ser a ções das casas coloniais sendo as janelas em guilhotina com caixilhos envidraçados
nova escola da cidade histórica mineira do Serro: “todas as construções novas exe- pintados a óleo nas cores tradicionais; e da caiação externa das paredes sempre em
cutadas nas cidades consideradas “monumento histórico” se devem harmonizar branco. A partir dos anos 1960 até 1980 essa regra iria garantir a unidade estilística
com as edificações existentes, sem contudo se confundir com as mesmas.”9 de centros históricos como Ouro Preto, em detrimento da perda parcial de autenti-
cidade dos mesmos.
8. REIS José de Souza. Projeto de igreja batista, 1946, Obras, Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro. Em paralelo à conservação integral das pequenas cidades coloniais setecen-
9. MIRANDA, Alcides da Rocha. A nova escola do Serro, Minas Gerais, 17/03/1945, Obras, Arquivo Central do IPHAN, Rio tistas, a proteção nos grandes centros urbanos iria se restringir aos monumentos iso-
de Janeiro, Brasil.

82 O telefone sobre a mesa do século xviii José Simões de Belmont Pessôa 83


lados nas duas primeiras décadas da ação federal de preservação. A proteção desses rítmica original a própria monumentalidade”11. A preservação do monumental
monumentos serviria de pretexto para o Serviço do Patrimônio intervir no desenho aqueduto aliava-se aos projetos de transformação viária do bairro, responsáveis pela
de várias das grandes cidades brasileiras. Essas intervenções priorizam uma leitura destruição da antiga malha urbana. Nos grandes centros a ação federal de proteção
estética da cidade, na qual o monumento antigo ora é exposto em destaque, pela privilegia as edificações monumentais que, à maneira do Plano Voisin de Le Corbu-
demolição do contexto construído à sua volta, sendo tratado como um fragmento sier, ficariam como marcos do passado na paisagem urbana moderna. A exceção é
do passado isolado da cidade contemporânea, ora era exposto ao confronto com as dada à Igreja da Lapa do Desterro, que estava também destinada à demolição para
edificações modernas na busca de uma valorização do mesmo pelo contraste com abertura de um novo eixo viário e seria preservada das transformações da cidade
a sua vizinhança. moderna, segundo Lucio Costa, não só pelo seu interesse arquitetônico, apesar de
A cidade do Rio de Janeiro, primeira capital do país independente e uma das ser despojada de valor monumental, mas principalmente “por se tratar de monu-
suas principais metrópoles brasileiras, é, para os intelectuais do Serviço do Patrimô- mento cuja feição arquitetônica está por demais vinculada à tradição urbana”12. A
nio, um dos palcos do projeto de construção de um país moderno. As metrópoles aparente contradição em se referir à tradição urbana no contexto de destruição da
eram vistas sempre como a cidade do presente, porém existiam ainda nelas alguns cidade tradicional para sua modernização explica-se pela preocupação de Lucio
trechos da cidade colonial para os quais o Patrimônio dedica especial atenção e Costa na preservação do caráter didático da arquitetura – fosse ela erudita ou po-
propõe um mesmo olhar. pular. A igreja deveria ser valorizada pela sua qualidade de vernáculo exemplar de
O conceito de paisagem urbana seria enunciado pela primeira vez no Brasil, uma língua não mais falada, que articularia na cidade moderna a imagem de uma
entre aspas, por Lucio Costa em 1943 num relatório destinado a definir as estra- paisagem do passado, servindo como conhecimento da própria cidade.
tégias para a recuperação de um pequeno trecho da paisagem colonial do século A ideia de preservar na paisagem da cidade o caráter didático da arquitetura
XVIII na metrópole do século XX. A igreja barroca de Nossa Senhora da Glória no inspirou também em 1962 a proteção de um conjunto de sobrados característicos
Rio de Janeiro, protegida pelo Serviço do Patrimônio, ficava no alto de um outei- do século XIX existentes na Rua do Catete, no Rio de Janeiro. Nesta rua há um palá-
ro que começava a ser circundado por arranha-céus, que gradativamente estavam cio neoclássico monumental que estava protegido desde 1938. Em 1962, o Serviço
fazendo desaparecer o pequeno morro. Lucio defende que a ação do Estado para do Patrimônio passa a discutir a necessidade de garantir também a preservação das
desapropriação e demolição das casas numa parte do sopé garantiria visualmente casas íntegras remanescentes na rua, para dar ao palácio neoclássico o ambiente
a manutenção de pelo menos um pequeno trecho de encosta. O objetivo não era urbano original. A proposta de Lucio Costa previa também um trabalho de recom-
tanto “beneficiar a igreja, como, principalmente, a ‘paisagem urbana’, num dos seus posição dos lotes vazios ou descaracterizados, que seriam refeitos com a possibili-
trechos mais caraterísticos e impregnados de tradição”.10 dade da “transferência integral de frontarias que se adaptem ao lugar”,13 e transfor-
Não há nos escritos de Lucio Costa nenhuma referência que possa permi- mariam aquele trecho da cidade em um “museu de arquitetura urbana carioca’ de
tir identificar influências nessa sua ideia de paisagem urbana, conforme descrita meados e da segunda metade do século XIX”.14 Um fragmento urbano composto
em 1943, e os pensamentos modernistas e de preservação debatidos na época em de um conjunto daquelas arquiteturas da boa tradição do “velho portuga”, sauda-
outros países. O conceito da legislação francesa de mies em valeur, valorização do do por Lucio Costa no seu texto, chave de leitura da continuidade entre o passado
monumento pela demolição das pequenas construções em torno dele, não era colonial e a arquitetura moderna, “Documentação Necessária”, que fora publicado
o que estava em causa. O objetivo não era valorizar a igreja, e sim recompor um em 1937 na Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico. Tratava-se aqui
trecho da paisagem da cidade, conforme havia sido registrado na iconografia de de pela primeira vez preservar, no Rio de Janeiro, um inteiro fragmento urbano do
finais do século XVIII e início do XIX. século XIX, composto de edificações não monumentais, e que é pensado como uma
Com o mesmo objetivo de recuperar uma paisagem perdida pelas transfor- espécie de museu da arquitetura urbana carioca no qual o passado é tratado não
mações da cidade, foram realizadas demolições no bairro da Lapa, também no Rio
de Janeiro, para dar ao grande aqueduto do século XVIII ali existente a possibilidade 11. COSTA, Lucio. Retirada de uma pilastra dos arcos do Aqueduto da Carioca. Parecer, Obras, 1949, Arquivo Central do
de ressurgir sem “as construções que o afogam e o impedem de ostentar na pureza IPHAN, Rio de Janeiro.
12. COSTA, Lucio. Convento e Igreja de Nossa Senhora da Lapa do Desterro. Parecer, Processo de tombamento, 08/07/1949,
Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro.
13. COSTA, Lucio. Conjunto arquitetônico da Rua do Catete. Parecer, Processo de tombamento, 15/05/1962, Arquivo
10. COSTA, Lucio. Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, Relatório, Obras, 26/07/1943, Arquivo Central do IPHAN, Central do IPHAN, Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro. 14. Idem.

84 O telefone sobre a mesa do século xviii José Simões de Belmont Pessôa 85


como lugar da saudade, e sim do co-
nhecimento. Lucio previa em alguns
terrenos, jardins e estacionamentos,
admitindo a divisão das quadras
mais profundas para a construção
de edifícios de gabarito alto, desde
que fosse deixada uma faixa de 20
metros necessária à percepção pelos
usuários do conjunto antigo sem a
interferência visual das novas cons-
truções.
Na realidade destruir a malha
urbana envoltória, ou estender às
edificações menores a preservação
dada aos edifícios monumentais
para garantir a ambiência destes,
não caracterizava a maioria das in-
Figura 4 Estudo de Lucio Costa, 1972 (Arquivo do IPHAN) e torre construída sobre fachada tombada, Rio
tervenções do Serviço do Patrimô- de Janeiro (foto José Pessôa)
nio, nas grandes cidades brasileiras.
Estas foram operações excepcionais. vazado cerâmico para criar um fundo neutro e, ao mesmo tempo, protegê-la do
A prática era acreditar no papel re- sol; e o melhor arranjo na paisagem urbana com o chanframento dos dois últimos
Figura 3 Projeto do novo convento arquivo IPHAN e dentor da boa arquitetura moderna tramos de cada extremo da fachada, de modo a obter visualmente um volume mais
estudo alternativo de Lucio Costa, arquivo IPHAN como instrumento para a qualifica- esbelto na perspectiva dos transeuntes. Foi a partir dessa proposta que o prédio foi
ção dos espaços urbanos das grandes metrópoles e valorização dos monumentos efetivamente edificado, seguindo todos os princípios estabelecidos, exceto a dimi-
antigos. Também nos grandes centros urbanos era a ideia do telefone sobre a mesa nuição do volume nas extremidades.
do século XVIII que funcionava como paradigma do confronto entre a arquitetura O papel transformador da arquitetura moderna nas grandes cidades vai se
moderna e a colonial. demonstrando uma quimera, diante da inexorável pressão do capital imobiliário.
O incêndio em 1958 do convento existente por detrás da igreja da Lapa do Lucio Costa tenta em várias situações escamotear com artifícios de projeto o crescer
Desterro repropõe, no contexto da cidade moderna, a relação entre o antigo e o continuado sobre o existente. A crença na arquitetura e nos detalhes arquitetônicos
novo. É um excelente exemplo para compreendermos a lógica de desenho com como qualificadores da paisagem urbana demonstra-se, pouco a pouco, impotente
que os arquitetos do Serviço do Patrimônio pensavam a cidade. Destruído pelas e a desilusão pela desigualdade das forças em campo fica explícita na avaliação feita
chamas, os proprietários apresentam ao Patrimônio um projeto moderno para a em 1962, do “processo anormal de crescimento das nossas cidades”.15 Fica cada vez
reconstrução do edifício do velho convento. Elaborado em 1959, o novo convento mais difícil compatibilizar a crença na metrópole com a preservação da boa arqui-
seria colado à igreja como o antigo edifício, seguia o padrão da arquitetura moderna tetura do passado.
brasileira da época: um prédio em fita marcado pelos panos de vidro na fachada e Em 1972 tenta-se proteger da demolição, através do tombamento, a última
os pilotis que deixavam livre o térreo. Lucio Costa rejeita o projeto e exige que a unidade remanescente de um conjunto de mais de sessenta casas neoclássicas,
nova construção deva recuar 4 metros da igreja. Ele apresenta também um estudo construídas no centro do Rio de Janeiro, em meados do século XIX. Os novos pro-
alternativo de sua autoria no qual se completam a preocupação com a qualidade prietários, um grande grupo empresarial, recorrem da decisão do Serviço do Patri-
arquitetônica do novo prédio, com a diminuição do número de pilotis; a harmo-
nia com a igreja existente no tratamento da fachada voltada para ela, com tijolo 15. COSTA, Lucio. Antigo Convento do Carmo (remanescentes). Parecer, Processo de tombamento, 10/02/1963, Arquivo
Central do IPHAN, Rio de Janeiro.

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mônio. Diante da perspectiva dos proprietários ganharem na justiça e ser efetiva-
da a demolição, é selado um acordo que procurou conciliar a construção da nova O Urbanismo Moderno
na Cidade do Rio de Janeiro:
torre prevista, com a preservação da casa neoclássica, sob o argumento de que o
fundamental era garantir a conservação da fachada. Lucio Costa elabora então um
estudo16 no qual, como num jogo lúdico, soltaria a casa da torre construída sobre
ela, pelo recuo da fachada na faixa imediatamente superior a platibanda da cons- dos princípios à oficialização1
trução antiga. Diante da força do capital imobiliário, que anula a eficácia do desenho
da paisagem, o antigo se transforma enfim em mero fragmento decorativo aposto
ao grande arranha-céu. Vera F. Rezende
Como vimos até aqui, a ação de proteção e conservação do patrimônio cultu-
ral no Brasil será, na sua fase inicial, legitimadora da produção dos arquitetos moder-
nistas. A presença destes arquitetos, que eram a totalidade dos técnicos do SPHAN, Resumo | Este artigo se orienta para o processo de irradiação e consolidação dos princípios
foi determinante para a filosofia de conservação dos centros históricos brasileiros, e propostas do urbanismo moderno na cidade do Rio de Janeiro, Capital da República. A
permitindo uma grande experimentação inicial nos projetos de nova construção, partir da década de 1930, circularam pelos principais periódicos técnicos, em que se destaca
que rompiam com a tradição disseminada na Europa de reconstituição dos conjun- a Revista Municipal de Engenharia, os ideais do urbanismo moderno, sob a forma de textos
tos antigos perdidos. De outra parte eles foram também protagonistas do paradoxal teóricos ou propostas relacionadas a projetos, em grande parte como resultado das visitas
uso, nos grandes centros, dos princípios urbanísticos modernistas para valorizar os de Le Corbusier à cidade em 1929 e 1936. Os princípios modernistas aproximaram arquite-
monumentos protegidos e até re-caracterizar, através de grandes cirurgias urba- tos, expressaram-se em projetos e ganharam os quadros da prefeitura do Distrito Federal,
nas, trechos da cidade colonial. Era a cidade funcionalista, vista também pelo seu ao mesmo tempo em que, a partir da década de 1940, esses arquitetos definiram e consoli-
valor estético. O acelerado crescimento das cidades brasileiras, a partir da década daram um campo de projeto dentro do campo maior do urbanismo, que nas décadas ante-
de 1960, irá reduzir o papel do SPHAN na construção de uma paisagem urbana de riores era ocupado por engenheiros-urbanistas. O processo de concretização desses ideais
qualidade. Os eventuais reveses não comprometeram o legado de Lucio Costa e dos modernistas na cidade, contudo, não se deu em curto prazo, evidenciando as dificuldades
outros arquitetos do Serviço do Patrimônio na paisagem de muitas das cidades bra- da passagem da escala da arquitetura para a escala do urbanismo, da mesma forma em que
sileiras. Era para eles fundamental preservar aquelas construções que expressavam demonstrou a incapacidade do Movimento Moderno de lidar com a cidade existente.
vontade de arte, vontade de beleza, vontade de forma, ou nas palavras de Lucio
Abstract | This article aims to analyze the process of diffusion and framing of the
Costa, intenção plástica, característica tanto dos antigos edifícios coloniais como da
principles and proposals of modern urbanism in the city of Rio de Janeiro, capital of
moderna arquitetura brasileira.
the Republic. From the 1930s, the ideals of modern urbanism were published in tech-
nical journals, especially the Revista Municipal de Engenharia [Municipal Engineer-
Referências bibliográficas ing Magazine], in the form of theoretical texts or proposals related to projects. In
large part, this was the result of the visits of Le Corbusier to the city in 1929 and 1936.
CAVALCANTI Lauro. “The role of modernists in the establishment of Brazilian Cultural Modern architects have been gathered around the ideas that were expressed in projects and
Heritage”. in Future Anterior. Journal of Historic Preservation. Volume VI, Number 2. have won the cadres of the Municipality of the Federal District. At the same time, from the
New York: Columbia University, 2009, pp 15-32.
1940s, the architects have defined and strengthened a design professional field within the
COSTA Lucio. “Notas sobre a evolução do mobiliário luso-brasileiro” in Revista do larger field of urbanism, which in previous decades was occupied by engineers. The process
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, N. 3. Rio de Janeiro: SPHAN, 1939, pp. 149- of implementation of these modern ideals in the city, however, did not occur in the short term,
162.
highlighting the difficulties of the transition from the scale of the architecture to the scale of
PANOFSKY Erwin. Significado das Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 2001.

1. Este artigo é resultado da pesquisa “Levantamento Documental do Urbanismo no Brasil-Sub-Projeto Rio de Janeiro
16. COSTA, Lucio. Tombamento do Prédio a Rua Mayrink Veiga, n. 9. Parecer, Processo de tombamento, 25/02/1972, –1900-1990”, parte da rede de pesquisa “ Urbanismo br “ que integra cidades brasileiras e é coordenada por Maria
Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro. Cristina da S. Leme – FAU-USP.

88 O telefone sobre a mesa do século xviii Vera F. Rezende 89


urbanism, in the same way that has shown the inability of the Modern Movement on dealing sistema viário, que não se consolida. Interrompe-se com a Revolução de 1930, mas
with the existing city. acaba por produzir um cenário favorável à circulação de propostas sobre a cidade.
Resumen | Este artículo se refiere al proceso de divulgación y consolidación de los prin- Em outras palavras, o Plano Agache não é implantado, mas cumpre a função
cipios y de las propuestas del urbanismo modernista en la ciudad de Río de Janeiro, ca- de orientar a discussão para os problemas da cidade e suas possíveis soluções,
pital de la República. Desde los años 1930, los ideales del urbanismo moderno circularan mesmo aquelas não previstas por Agache, fato reconhecido pelo Prefeito H. Do-
por las principales revistas técnicas, en las que se destaca la Revista de Ingeniería Muni- dsworth (1943) ao afirmar que o plano “...repercutiu no seio das Academias e das
cipal, en forma de textos teóricos o propuestas relacionadas con proyectos. Esto en gran Associações Técnicas, despertando curiosidade, interesse e gosto pelas coisas do ur-
parte ha ocurrido como resultado de las visitas Le Corbusier a la ciudad en 1929 y 1936. banismo”, ainda que decida por não aplicá-lo3. A partir dele, a discussão se amplia e
Los principios modernistas reunieron arquitectos, se expresaron en proyectos y ganaron buscam-se exemplos no exterior. Alguns anos mais tarde (1937), quando Dodsworth
la aceptación de los técnicos de la Municipalidad del Distrito Federal. Al mismo tiempo, acena com seu plano de obras viárias e realiza um conjunto expressivo de interven-
desde la década de 1940, los arquitectos han creado y consolidado un campo profesional ções voltadas para os melhoramentos da cidade, os ideais do urbanismo modernista
de proyecto dentro del campo más amplio del urbanismo, que en las décadas anteriores fue já haviam, então, atingido um número expressivo de profissionais, em especial ar-
ocupado por los ingenieros y planificadores urbanos. El proceso para alcanzar estos ideales quitetos, como veremos ao longo do artigo.
modernistas de la ciudad, sin embargo, no se produjo en el corto plazo, poniendo de relieve A produção sobre urbanismo no Rio de Janeiro, à época, tem como principais
las dificultades del paso de la escala de la arquitectura para la escala del urbanismo, de la veículos de divulgação dois periódicos técnicos: a Revista do Clube de Engenharia e a
misma forma que demostró la incapacidad de hacer frente a la ciudad existente. Revista Municipal de Engenharia4. As experiências em países da Europa, em especial
a França, na América do Sul, o Chile e a Argentina, e nos Estados Unidos despertam
o interesse dos estudiosos locais5 e são divulgadas nesses periódicos.
As ideias em circulação A tensão que antecede a Segunda Guerra Mundial, na década de 1930,
também se expressa em artigos publicados. Nesse caso, os países utilizados como
No final da década de 1920, enquanto D. Alfred Agache conclui o seu Plano de exemplos variam segundo o desenrolar do conflito. Com o transcorrer da guerra,
Remodelação, Extensão e Embelezamento para o Rio de Janeiro, Le Corbusier visita intensificam-se exemplos dos E.U.A., enquanto desaparecem os modelos de cida-
a cidade pela primeira vez (1929) a caminho de São Paulo. Sem nenhum interesse des alemãs6, que figuravam nos periódicos técnicos. No início da década de 1940,
em atuar na realização do plano, este último registra suas impressões sobre a cidade quando se aproxima a definição do governo brasileiro de apoio aos países aliados, a
(1930) e produz o croqui do edifício viaduto em forma de fita, sem compromisso com Alemanha deixa de representar um modelo a ser divulgado.
sua possível concretização, e que ficaria registrado como uma das utopias modernas Antes, durante e imediatamente após7 o período da guerra, o urbanismo é
no tratamento de uma cidade existente. Nesse momento, inicia-se uma mudança obrigado a apresentar respostas quanto à proteção ou à reconstrução das cidades
de direção no pensamento urbanístico, expressa mais claramente após alguns anos: na Europa, preocupação que é reproduzida pelos urbanistas locais. É, então, nesse
o enfraquecimento gradual do urbanismo de melhoramentos com as edificações ambiente propício à circulação de modelos de outros países, que circulam os ideais
projetadas dentro de critérios acadêmicos, como as propostas do Plano Agache, e modernistas, que parecem trazer respostas para questões estruturais da cidade.
o fortalecimento e a irradiação dos princípios do urbanismo moderno ancorado na
arquitetura também moderna.
3. DODSWORTH,,1943, p. 7. O Prefeito justifica no artigo: “Nunca houve Plano Agache. Houve esboço de plano de urba-
A realização do Plano Agache representa o ponto alto de um processo de nização sistemática da cidade elaborado pelo ilustre arquiteto urbanista de 1928 a 1930. O esboço elaborado não foi
discussão – que se acelera na década de 1920 – sobre a necessidade de um plano convertido, por ato oficial, em plano, razão pela qual não foi obedecido e muito menos desobedecido como é corrente
invocar-se. ”Trata-se de um equívoco de Dosdsworth, intencional ou não, já que Armando de Godoy registra o ato de
para a cidade e a sua forma de gestão2, o aproveitamento das áreas de aterro e de oficialização do Plano Agache.” (Godoy, 1943, p. 330).
desmonte de morros, as áreas de expansão, o saneamento básico, os transportes e 4. A Revista do Clube de Engenharia e a Revista Municipal de Engenharia foram, respectivamente, editadas a partir de
1887 e 1932.
5. GODOY, 1935, PORTINHO, 1933, ESTELITA, 1933,1936.
6. Com a ascensão da Alemanha no período anterior à guerra, Berlim é utilizada como modelo, destacando-se PENIDO
2. Agache trata da criação de uma Repartição  Permanente do Plano ( p. 321) e da questão da valorização da terra por (1937), que apresenta a Vila Olímpica para sede das Olimpíadas de 1936.
efeito das obras de urbanização, alertando que este aumento do valor dos terrenos não deveria ser apropriado pelos 7. Após a guerra, intensificam-se propostas relacionadas à reconstrução de habitações na Europa, em especial na Ingla-
proprietários. (Anexo, Art. VII,, p. XLIV). terra. Conferir HELLMEISTER, 1947 e CORREA LIMA, 1947.

90 O Urbanismo Moderno na Cidade do Rio de Janeiro Vera F. Rezende 91


O Plano Voisin (1925) de Le Corbusier para a cidade de Paris é apresentado blemas da cidade para uma nova sociedade – para todos os indivíduos das cidades
por Estelita (1934)8 como estratégico em caso de guerra, como exemplo de descon- modernas – e uma nova etapa da civilização, em que as decisões sejam tomadas de
gestionamento do centro e alargamento dos espaços vazios. O urbanismo moder- maneira mais racional10. A busca da racionalidade não poderia mais ser evitada, já
nista é vinculado à defesa de cidades em caso de bombardeios. Anos mais tarde, que se tornava necessária para impor ordem às cidades existentes.
Andrade e Silva (1942) utiliza a cidade de Paris como exemplo de dificuldade de O discurso modernista pauta-se, ainda, pela recorrência de determinados
proteção contra ataques aéreos, em face da concentração de edificações, e propõe temas. No nível simbólico, uma sociedade mais justa, em que os benefícios sejam
o aproveitamento da área vizinha à Av. Presidente Vargas por edificações verticali- distribuídos de forma igualitária, embora dentro dos limites impostos pelo capitalis-
zadas, espaços livres e pilotis dentro do repertório modernista. mo11. No nível espacial, uma cidade estruturada de forma diversa das tradicionais: a
ausência de lotes ou quadras, a separação entre pedestres e veículos, onde a verti-
calização é utilizada como estratégia para a concentração de áreas edificadas com a
Os Princípios Modernistas criação de áreas vazias. Mais ainda, um urbanismo que se apóia sobre a arquitetura,
esta realizada dentro de princípios também racionais. Esses fatores vão ganhando
“Na época nós todos estávamos convencidos que essa nova arquitetura corações e mentes, a adesão dos profissionais, principalmente dos arquitetos.
que estávamos fazendo, essa nova abordagem, era uma coisa ligada à O modelo é a cidade centralizada, a metrópole em oposição à cidade com
renovação social. Parecia que o mundo, a sociedade nova, a arquitetura os seus subúrbios. Le Corbusier (1937)12, em artigo publicado no Rio de Janeiro, O
nova eram coisas gêmeas, uma coisa vinculada à outra”. Problema das Favelas Parisienses, é crítico severo dos esquemas de descentralização:
“Nós os urbanistas modernos pensamos que se deve dar um fim a este desastre
Esse sentimento expresso por Lúcio Costa (1987), que coloca a arquitetura que são os arrabaldes e as cidades de extensões ilimitadas com seus gastos desen-
como elemento essencial da transformação social, é compartilhado pela geração de freados”. E reafirma o plano para Paris: “a superfície de Paris intra-muros comporta
arquitetos que, a partir do final da década de 1920 e no decorrer das décadas de 1930 oito milhões de habitantes, instaladas em uma cidade admirável, uma cidade de
e 1940, se torna adepta e defensora dos princípios do modernismo no Rio de Janeiro. parques. Porém nos contentaríamos com três milhões”(1937, p. 285).
Neste ponto, não podemos deixar de registrar o desagrado de Lúcio Costa Denuncia, ainda, as condições das habitações em seu país, propondo a de-
com a denominação urbanismo modernista, que colocamos abaixo. Consideramos, molição dos quarteirões insalubres e divulga os princípios do IV CIAM (1933), que
entretanto, que, em função da distância que nos separa dos acontecimentos que tem a habitação como ponto central. A arquitetura é o recurso para uma possível
estamos por analisar, esse aspecto apontado por Costa se encontra atenuado. Utili- reforma social. Dentro dessa linha, a Revista de Arquitetura (1938) transcreve um
zaremos as expressões “moderno” e “modernista”, para nos referirmos à produção projeto para Nova York, de autoria de Norman Bel Geddes, em que torres, acessadas
arquitetônica ou urbanística, específica desse movimento moderno. por vias elevadas, separadas por largos espaços acomodam uma população três a
“Moderno é o certo. Modernista tem um ar pernóstico e um sentido suspei- cinco vezes maior que a existente.
to. Parece que está se opondo ao que se fazia antes, a tradição, para fazer As transferências dos princípios modernistas se devem em grande parte às
uma coisa obcecadamente moderna. Eu não via diferença. A verdadeira visitas de Le Corbusier ao Rio de Janeiro (1929, 1936), que se tornam o principal veí-
arquitetura moderna não promove a ruptura com o passado, só a falsa”9. culo de tradução dos ideais do CIAM junto aos urbanistas locais13. Esse fato explica a
pequena influência de outras correntes ou outros arquitetos como Josep Lluís Sert
Os ideais propagados pelos Congressos Internacionais de Arquitetura Moder- (1902–1983), um dos influentes arquitetos modernos, que contribuiu com projetos
na – CIAM, que se realizam após 1928, trazem a possibilidade de solução dos pro- urbanos na Europa, Estados Unidos e outros países da América.

8. Na cidade ideal, as artérias têm a largura maior que a soma das alturas das edificações dos lados, para permitir em
caso de desmoronamento a passagem de turmas de salvamento. A orientação dos ventos auxilia na evaporação dos
10. Sobre esse conteúdo de universalidade e de verdade científica dos princípios dos CIAM, ver TSIOMIS, 1998.
gases. O modelo não permite centro comercial ou industrial para diluir os prejuízos de bombardeios, ESTELITA, 1934.
11. Sobre o assunto, ver SILVA PEREIRA et al, 1987.
9. COSTA, Lúcio. Entrevista para a Folha de São Paulo, São Paulo: 23/07/1995. O arquiteto, contudo, utiliza o termo
“modernista” ao se referir a Atílio Masieri Alves como o “primeiro modernista rebelado” em Muita Construção, alguma 12. LE CORBUSIER,1937, p. 284. A densidade proposta para Paris é de 1000 hab/ha, seis vezes a das cidades jardins e três
arquitetura e um milagre, Correio da Manhã, Rio de Janeiro: 15/06/1951. É interessante, ainda, observar a utilização por vezes a dos quarteirões parisienses. Este estudo se tornou mais preciso quando da construção do Pavilhão dos Tempos
Lúcio Costa de “modernístico” no sentido pejorativo (“grotescas feições modernísticas”) em Razões da nova arquitetura, Novos na Exposição de Paris de 1937.
Revista da Diretoria e Engenharia, Rio de Janeiro: nº 1, janeiro 1936. 13. Essa questão também é apontada por LEME, 2000.

92 O Urbanismo Moderno na Cidade do Rio de Janeiro Vera F. Rezende 93


Na primeira visita, que ocorre em 1929, curiosamente, nem todos os arquite- rando, estão prontos para criar esplendores desconhecidos e para propi-
tos brasileiros são tocados pelos ideais modernistas. Nessa ocasião, em que vai “a ciar as glórias de uma nova civilização”16, (1936, p. 243).
caminho do Prata”, nas palavras de Lúcio Costa (1951), às cidades de Buenos Aires,
Montevidéu e São Paulo, realiza uma palestra no Rio de Janeiro. Lúcio Costa (1987) é Coloca-se, portanto, como continuador de um urbanismo desenvolvido no
um deles: “Eu era inteiramente alienado nessa época, mas fiz questão de ir lá; Che- Século XX, com raízes em Haussmann no Século XIX, num discurso renovador que
guei um pouco atrasado e a sala estava toda tomada... Fiquei um pouco e depois anuncia uma nova era, desta vez para a cidade do Rio de Janeiro.
desisti e fui embora, inteiramente despreocupado, alheio à premente realidade”. Mas, esse urbanismo deve também dar as costas ao passado e voltar-se para
O seu interesse pelo modernismo se dá pouco depois, após o seu período o futuro. Le Corbusier propõe a negação das ideias e propostas de Agache17, por
como diretor da Escola de Belas Artes, nos anos de “chômage” de 1932 a 1935, atra- entender que representam aquilo com o que se deveria romper. Em 1936, assume
vés de livros, alguns por indicação do amigo Carlos Leão. uma posição diversa da adotada por ocasião da visita de 192918, quando não se opõe
No ano de 1936, Le Corbusier vem ao Rio de Janeiro por quatro sema- claramente à Agache, que se encontrava em vias de concluir o seu plano.
nas, em viagem motivada por solicitação de arquitetos brasileiros, em espe- Os princípios de Le Corbusier marcam os assistentes das palestras e a partir
cial Lúcio Costa14, ao ministro Capanema, com vistas a consultá-lo sobre o daí os urbanistas se manifestam apoiando os princípios dos Congressos Internacio-
projeto do Ministério da Educação e Saúde e sobre a Cidade Universitária. As nais de Arquitetura Moderna – CIAM, como a necessidade de se impor ordem às
suas cinco conferências se caracterizam por suas ideias inovadoras e por sua cidades e de criação de áreas vazias e espaços verdes. Adalberto Szilard (1936), dois
capacidade de exposição. meses mais tarde, já os utiliza e propõe soluções que parecem constituir a primeira
Nessa ocasião, é difícil ficar imune ao encanto de suas ideias que anunciam expressão aplicada a um projeto de adesão aos novos valores. Seu croqui se orien-
uma nova era, que aliam princípios arquitetônicos a decisões tomadas racionalmen- ta para a futura Av. Presidente Vargas, para a qual projeta, sem compromisso com
te. Uma racionalidade, que se manifestaria além da arquitetura ou da cidade, como dimensões, a separação de pedestres e veículos com vias no nível térreo das edifica-
décadas mais tarde justificaria Lúcio Costa (1962, p. 334): “O Novo Mundo não está ções, pedestres e lojas no primeiro nível. (FIGURA 1)
mais à esquerda ou à direita, mas acima de nós; precisamos elevar o espírito para al-
cançá-lo, pois não é mais questão de espaço, mas de tempo, de evolução e de matu-
ridade. O Novo Mundo agora é a Nova Era, e cabe à inteligência retomar o comando”.
Convém recordar, também, como Lúcio Costa justifica o seu interesse pelo
urbanismo e a importância devida a Le Corbusier no processo de seu comprome-
timento e adesão aos novos valores: “O Corbusier tratava o urbanismo como coisa
fundamental e a arquitetura como coisa complementar. Foi com ele que me apaixo-
nei por urbanismo. Não dá para separar arquitetura do urbanismo”15.
Mas a que urbanismo pretendia Le Corbusier dar continuidade? Em 1936, em
artigo publicado em periódico local, exaltava as obras do prefeito Pereira Passos e FIGURA 1 Proposta para Av. Presidente Vargas
Fonte: Szilard, A. Revista de Arquitetura e Urbanismo. Ano 1, Setembro/outubro, 1939
sua visão grandiosa:

“... caso se queira, a mesma grandeza de visão poderia reinar de novo. E,


O Rio de Janeiro é objeto de uma série de formulações concretas de inspi-
desta vez pelo esforço sincronizado entre a arquitetura e o urbanismo, os
ração modernista, produzidas pelos urbanistas locais. Na XIª Feira Internacional de
trabalhos de Passos poderiam ser continuados, dentro dos seus espíritos
e suas linhas com as técnicas modernas e com um sentimento cívico de Amostras da Cidade do Rio de Janeiro em 193819, realizada no aterrado do Cala-
responsabilidade bastante elevados para que o Rio de Janeiro traga ao 16. LE CORBUSIER,1936 (tradução livre da autora).
mundo a demonstração brilhante que os Tempos Modernos, em se prepa- 17. Em carta a Oswaldo Costa, em 22/04/1930, lamenta o fato de o plano ter sido conferido a um arquiteto à margem da
era maquinista. A correspondência está transcrita em SILVA PEREIRA et al, 1987.
14. A responsabilidade de Lúcio Costa na vinda foi inicialmente ignorada pelo próprio Le Corbusier, que considerava 18. Naquela ocasião (1929), Le Corbusier encontrava-se interessado em planejar a nova capital do Brasil. Sobre o tema,
o convite uma iniciativa do ministro Capanema e a presença dos arquitetos brasileiros, uma intromissão exagerada, ver MARTINS, 1994.
(Costa, 1987). 19. A Secretaria Geral de Viação, Trabalho e Obras Públicas na XIª Feira Internacional de Amostras, Revista Municipal de
15. COSTA, Lúcio. Entrevista a Mario César Carvalho. Folha de São Paulo, São Paulo: 23 de julho de 1995. Engenharia. Rio de Janeiro: nº 6, p. 670-693, novembro de 1938.

94 O Urbanismo Moderno na Cidade do Rio de Janeiro Vera F. Rezende 95


bouço, a prefeitura apresenta que em 1950 irá reavaliar. Propõe
os seus projetos de urbanização uma cidade com vias exclusivas
elaborados pela Comissão do para veículos, a urbanização do
Plano da Cidade20 na adminis- subsolo para transporte ferrovi-
tração de H. Dodsworth para ário, edificações sobre pilotis e
a Avenida Presidente Vargas, a a verticalização com criação de
área do desmonte do Morro de áreas livres.
Santo Antônio e do aterro no J. O. Saboya Ribeiro
bairro da Glória e Flamengo, e a (1943), em artigo denominado
Esplanada do Castelo. Embora a Os Núcleos Residenciais do Futuro,
maioria das propostas se relacio- propõe um projeto habitacional
ne com o sistema viário, as ma- FIGURA 2 Loteamento na área do Saco da Glória. para o bairro da Gávea dentro
quetes e desenhos demonstram Fonte: Fonte: Almeida, P. de Camargo, 1939. dos novos princípios, embora,
o aproveitamento dos terrenos por uma tipologia arquitetônica em série, onde já se FIGURA 3 Tipos de quadras. segundo ele, esses critérios não
encontram presentes edificações em “redent”, pilotis e a abertura de áreas livres. A Fonte: Andrade e Silva e Fusco, 1938. possam ser aplicados às cidades
arquitetura modernista produzida a partir da replicação de uma mesma edificação, “obsoletas”, mas àquelas que
exaustivamente, se antecipa ao urbanismo modernista. (FIGURA 2) fazem parte de um novo “surgimento urbano”. O que parece demonstrar a dificulda-
Por outro lado, os novos princípios fazem com que sejam questionados cri- de encontrada pelos urbanistas locais em aplicá-los em escalas maiores nas cidades
térios de ocupação de quadras propostos por D. A. Agache. Affonso Eduardo Reidy existentes.
(1938) discorda das propostas para a Esplanada do Castelo, quadras com áreas in- Em outro texto (1945) defende o aproveitamento da Esplanada do Morro de
ternas, segundo ele, um resíduo da rua corredor, com deficiências de ventilação e Santo Antônio sem divisão em quadras e lotes pela definição de massas arquitetônicas.
iluminação. Propõe o aproveitamento das quadras ainda vazias com a criação de Nesse momento, Saboya Ribeiro já é autor de projeto (PA nº 3612/41) para o local, em
espaços livres, a separação dos tráfegos rápidos e local, com autoestradas elevadas. que a aplicação dos ideais modernistas, ainda, está centrada na repetição de blocos
Nesse mesmo ano, são revogados pela Comissão do Plano da Cidade os projetos construídos dentro dos novos princípios, ao contrário de outros projetos posteriores.
de alinhamento para a Esplanada do Castelo feitos de acordo com as diretrizes do Plano Percebe-se que, ao final da década de 1930 e início da de 1940, os princípios
Agache. Esses vinham sendo aprovados desde 1928 e são, então, substituídos pelo PA do urbanismo modernista – a separação de vias para veículos e pedestres, a con-
nº 3085/38, contemplando as quadras abertas dentro dos novos princípios. Nesse mo- centração em torres e a ausência de divisão em lotes – não são ainda amplamente
mento, o ideário modernista se encontra estabelecido junto aos quadros da prefeitura. aplicados, mesmo em projetos, ao contrário dos princípios arquitetônicos. Encon-
Paulo de Camargo Almeida (1939), ao estudar o centro da cidade, afirma tram-se presentes os pilotis e os blocos de diferentes alturas. A busca dos elementos
orientar-se pelo Plano Agache quanto à destinação da maior parte dos espaços, mas centrais da “Ville Radieuse” (1934) de Le Corbusier, sol, ar, vegetação, já se torna
o aproveitamento dos terrenos retrata as composições modernistas das maquetes determinante nas propostas teóricas e nos projetos.
de 1938. Andrade e Silva e Rosário Fusco (1942) defendem, anos mais tarde, a redivi- Por outro lado, apesar da crescente adesão aos novos valores, na década de
são de quadras existentes na área central para o seu aproveitamento por edificações 1940, observa-se também a tentativa de se estabelecer uma síntese ou acordo entre
verticalizadas, com vistas ao aumento das áreas livres. Eles mostram graficamente as diferentes propostas. Szilard (1944) reitera os princípios do CIAM quanto à neces-
vantagens das quadras modernistas diante de outros tipos de ocupação. (FIGURA 3) sidade de se impor ordem às cidades existentes, mas baseando-se nas propostas
Determinadas propostas se dirigem para uma cidade ideal e não para uma de Eliel Saarinen21, que advoga uma descentralização racional, adapta o modelo à
cidade existente. A. Szilard (1943), em artigo denominado Cidades do Amanhã, reafir- cidade do Rio de Janeiro. Stephane Vannier (1945), por outro lado, reitera que o ur-
ma os princípios do Plano Voisin (1925) para Paris, defendendo-o de críticas, posição
21. Conceitos baseados no livro de Eliel Saarinen, A Cidade, seu desenvolvimento, sua decadência e futuro, de 1943. É
20. Em 1937 o Prefeito Dodsworth recria a Comissão que havia sido estabelecida em 1930 pelo Prefeito Adolfo Bergamini proposta uma descentralização orgânica, em que cada núcleo é razoavelmente complexo, com vistas a permitir uma
para avaliar o Plano Agache, extinta em 1931 pelo Prefeito Pedro Ernesto. vida coletiva próxima ao campo.

96 O Urbanismo Moderno na Cidade do Rio de Janeiro Vera F. Rezende 97


banismo deve contemplar as diversas funções – habitar, trabalhar, repouso e recreio
– mas cita, também, Agache e a necessidade do urbanismo interdisciplinar.
Posteriormente, na tentativa de preparar uma síntese sobre o urbanismo, Szi-
lard, em livro editado em 1950 (em coautoria com Oliveira Reis), traça o desenvolvi-
mento da teoria do urbanismo moderno, contemplando os modelos recomendados
pelos CIAM e outras propostas contemporâneas, porém mais orgânicas, como as
desenvolvidas por Eliel Saarinen e, ainda, por Gaston Bardet com seu método de
topografia social, com levantamentos sobre a cidade e os seus habitantes22.
Os conceitos presentes no Plano Voisin (1925) para Paris são aplicados por Szi-
lard na área central, ao mesmo tempo em que menciona as ideias de Lewis Munford, FIGURA 4 Diferentes representAções e quadras para a mesma Avenida do Mangue. Fonte: Revista Municipal
de Engenharia, 1938.
contrárias à centralização. Compara as propostas de Le Corbusier, concentração e
alta densidade, e Frank Loyd Wrigth, dispersão e baixa densidade, para concluir – A implantação da Avenida Presidente Vargas coincide com a consolidação
como uma tomada de posição – que constituem propostas radicais, tornando-se desses princípios na cidade, embora a intenção de prolongamento do antigo Cami-
necessário voltar para os urbanistas que propuseram melhoramentos nas cidades nho do Aterrado até o mar já datasse de meados do século XIX 25. O projeto inicial
existentes: Patrick Geddes, Lewis Munford e Werner Hegemann23. prevê a Avenida do Mangue, um importante eixo de ligação leste-oeste da cidade,
Szilard distancia-se, assim, do urbanismo modernista e reproduz a tentativa posteriormente Avenida Presidente Vargas, com o canal do meio em toda a sua ex-
dos estudiosos em compatibilizar a aplicação dos novos princípios com a realidade tensão, detalhe que é modificado pelo Plano Agache.
existente das cidades. A sua visão do urbanismo, além disso, considera os levan- Na administração H. Dodsworth, o projeto é reavaliado26 e apresentado na
tamentos que abrangem os diversos campos, afastando-se da rígida aplicação do XIª Feira Internacional de Amostras em 1938, como parte importante do conjunto
modernismo, e do seu artigo anterior Cidades do Amanhã (1943). de obras viárias propostas27, uma das radiais principais aprovadas pela Comissão do
A este propósito, cumpre-nos lembrar, que no período do pós-guerra, outros Plano da Cidade. Em 1937, reproduzem-se as condições favoráveis para a execução
fatores passam também a ser valorizados pelos CIAM24 e a cidade já é então en- de obras no Distrito Federal pela concentração de poder de decisão propiciada pela
tendida como uma categoria complexa, não mais abstrata e universal, e o seu ha- vigência do Estado Novo, com a atuação conjunta da prefeitura e do governo federal,
bitante um ser político e social, o que acarreta a necessidade de estudos para a situação semelhante presenciada com a Reforma Pereira Passos no início do século.
formulação de propostas. Trata-se do momento em que os novos ideais começam a ser absorvidos, res-
tritos ainda ao campo da arquitetura. O projeto do conjunto de obras viárias reuni-
das sob a denominação “Plano da Cidade”, de autoria de engenheiros urbanistas
O Urbanismo Moderno e seus projetos como José de Oliveira Reis, expressa os novos valores, ainda limitados à representa-
ção das edificações em desenhos ou maquetes. As representações contraditórias de
Nas décadas de 1930, 1940 e 1950 alguns projetos urbanos incorporam, parcial
mesma época (1938), para a mesma avenida, demonstram que os dois urbanismos
ou totalmente, os princípios modernistas. Destacamos, por sua interferência na área
– melhoramentos e modernista – coexistem. (Figura 4) Por vezes, o elemento novo
central, os projetos da Avenida Presidente Vargas e da Esplanada de Santo Antônio.
é uma espécie de galeria (“loggia” na arquitetura italiana), e não o pilotis. E as edi-
ficações ainda mantêm as áreas livres internas típicas do plano Agache. Em outras
22. Bardet advoga a urbanização das cidades para uma vida cristã e, desde a década de 1930, escreve livros e artigos 25. A ideia de ligar o centro histórico ao Paço de São Cristóvão provém dos tempos do Barão de Mauá (1857), quando foi
sobre urbanismo. A influência de Bardet, em nosso país, se dá mais intensamente em Belo Horizonte e São Paulo, onde executada a canalização do primeiro trecho do canal até a Praça 11 de Junho. REIS, 1977.
se manifesta através do padre dominicano Louis Joseph Lebret. Ver Urbanismo no Brasil, 1895-1965, LEME, Maria Cristina 26. A implantação da via, com largura de 80,00m, resulta na demolição de 525 edificações. REIS, 1994 e ALVES DE
(org.), 1999. BRITO, 1944.
23. Patrick Geddes (1865-1935) dedicou-se à biologia e ao estudo das atividades humanas. Lewis Munford, discípulo 27. Entre outras obras da administração H. Dodsworth, destacam-se a urbanização da Esplanada do Castelo, a Avenida
de Gueddes, crítico das idéias de Le Corbusier e das grandes metrópoles, era defensor da descentralização. Werner Brasil, a Avenida Tijuca, a duplicação do Túnel do Leme e o Corte do Cantagalo. Juntamente com o prolongamento
Hegemann (1882-1936) tornou-se famoso por sua campanha pela descentralização de Berlim em 1912. Foi editor, de da Avenida do Mangue são projetadas outras vias pela Comissão do Plano da Cidade, entre elas, a Avenida Diagonal,
1924 a 1933, da Revista Arquitetura e Urbanismo (Alemanha). cortando a área de desmonte do Morro de Santo Antônio e ligando a Lapa ao Campo de Santana, atual Praça da
24. Desde o VI CIAM (1947) e do VII CIAM (1949), são introduzidas novas reflexões sobre a cidade. Sobre o assunto, ver República. Ver na Revista Municipal de Engenharia: O plano Diretor, 1943; Plano de Melhoramentos da Cidade do Rio de
TSIOMIS, 1998. Janeiro, 1941 e PASSOS, 1941.

98 O Urbanismo Moderno na Cidade do Rio de Janeiro Vera F. Rezende 99


representações, as edificações com previsão de pilotis são dispostas em “redents” e pelo XXXVI Congresso Eucarístico Internacional, cujo sítio definido para a sua realização
criam espaços livres. é a área resultante do aterro proveniente do material retirado do morro.
Embora intenção antiga, a decisão de sua execução na vigência do Estado Desde o final da década de 1930, o aproveitamento da esplanada do Morro
Novo (1937) se dá pouco depois do emblemático projeto do Ministério da Educação de Santo Antônio é objeto de projetos32 da prefeitura, inclusive, de Saboya Ribeiro,
e Saúde (1936). Nesse momento, a solução parece ser a adoção do traçado viário já colaborando com a Comissão do Plano da Cidade, com as mesmas características da
amadurecido como proposta de Agache em 1930, dando-lhe um caráter modernista arquitetura modernista em série que se antecipa ao urbanismo modernista. E outros
na ocupação dos lotes resultantes. posteriores do Departamento de Urbanismo-DUR, em que figuram urbanistas como
Szilard, em 1936, propunha de forma esquemática o aproveitamento dos ter- José de Oliveira Reis, Affonso Eduardo Reidy, ambos diretores do Departamento de
renos com separação de pedestres e veículos, mas não é essa a solução adotada. Urbanismo –DUR em épocas diversas, e Hermínio de Andrade e Silva.
O projeto de urbanização acaba por ficar limitado à arquitetura modernista com É, contudo, o projeto de Reidy e Andrade e Silva33 de 1948 que expressa de
abertura de áreas livres, pilotis e edificações de diferentes alturas em lotes indivi- forma ampla os ideais modernistas (FIGURA 5). Uma via arterial, a Avenida Norte Sul,
dualizados. A Presidente Vargas é inaugurada em 1944 por Getúlio Vargas, como em dois níveis, separa a circulação de veículos leves e pedestres da de veículos pesa-
um marco do conjunto de realizações da administração da prefeitura apoiado pelo dos, propostas justificadas pela transcrição de trechos da Carta de Atenas. A densida-
governo federal. O seu projeto monumental, suas grandes dimensões simbolizam de, também baseada na Carta de Atenas, é de 1000 habitantes por hectare – a mesma
a busca pela construção de uma nova nação em oposição ao Brasil da República advogada por Le Corbusier para a cidade de Paris (1937). Presentes estão os princípios
Velha28 e, ainda, serve de palco para inúmeros desfiles cívicos, em consonância com modernistas, em especial, o atendimento das funções – habitar, trabalhar, circular e
o que ocorre em regimes totalitários fora do país. recrear-se – a concentração com a criação de áreas livres, o sol, o ar e a vegetação.
A ocupação concretizada demonstra, porém, que a sua implantação acaba O projeto, entretanto, ainda sofre
por não atender em toda a sua extensão aos novos princípios. Persistem em parte modificações, algumas de autoria de An-
dela – trecho mais próximo à igreja da Candelária – as edificações coladas nas divisas drade e Silva, e a urbanização iniciada na
com galerias térreas para pedestres. Nesse trecho, a harmonia é dada pela uniformi- década de 1960 e presente hoje no local
dade de alturas, que aliada à largura da via, dá ao espaço uma característica monu- não corresponde às propostas de Reidy.
mental nos moldes do Plano Agache, características que faltam aos demais trechos. Além da ausência da função residencial,
Constante também do conjunto de obras da Comissão do Plano da Cidade as diversas edificações verticalizadas di-
em 1938, encontra-se o desmonte do Morro de Santo Antônio29, ideia que data da ferem umas das outras, tendo o conjunto
mesma época da proposta do desmonte do Morro do Castelo – início do século XIX perdido o caráter de unidade. Embora o
– ambos, então, justificados por razões sanitárias30. urbanismo moderno tenha sido capaz
Entretanto, os primeiros projetos, no século XX, não preveem a sua demolição, de ser expresso como projeto pelas
mas a extensão de vias e a sua urbanização. No final da década de 1930, a ideia de des- mãos de Reidy e Andrade e Silva, ainda
monte e a sua urbanização já figura entre as intenções da Comissão do Plano da Cidade. assim não logrou a sua concretização
P. de Camargo Almeida, em 1939, apresenta um estudo detalhado sobre os desmontes plena naquele espaço.
e o aproveitamento da esplanada. Em 1941, um projeto de alinhamento é aprovado, O material retirado do morro de
que contempla a demolição e o consequente aterro da faixa litorânea entre o Aeroporto Santo Antônio dá lugar ao Aterro do
Santos Dumont e o Morro da Viúva. A impossibilidade de sua realização será lamentada FIGURA 5 Urbanização da Esplanada de Santo Flamengo. Para esse local, ao longo da
Antônio, projeto de REIDY E ANDRADE E SILVA Fonte:
por H. Dodsworth31, em 1943, em face de seus altos custos no período da 2ª Guerra década de 1950, são elaborados projetos
Reidy, 1948.
Mundial. Somente na década de 1950, as obras de desmonte são iniciadas, motivadas por parte do Departamento de Urbanis-

28. REZENDE, 2012.


32. PA 3612/41 (Saboya Ribeiro), PA 5028/49 (Reidy e Andrade e Silva), PA 6972/57 e PA 7214/58 (Andrade e Silva e
29. FARME D’AMOEDO, 1958, REIDY, 1948. outros). Ao aprovar o PA 5028/49, o prefeito Mendes de Moraes afirma não incluir na aprovação o elevado proposto,
30. José Maria Bontempo, médico de D. João VI, tendo em vista evitar enfermidades no Rio de Janeiro propõe o que, segundo ele, desfiguraria a cidade. REIS, 1977.
desmonte dos morros (1814). 33. Trata-se de blocos comerciais e de serviços, alguns de 26 pavimentos, e uma lâmina residencial de 780,00 m de
31. DODSWORTH, 1943. comprimento e 12 pavimentos, com a criação de áreas livres e outras edificações baixas para lazer.

100 O Urbanismo Moderno na Cidade do Rio de Janeiro Vera F. Rezende 101


mo34, em que a responsabilidade pelas definições fica entre José de Oliveira Reis modernos na arquitetura e no urbanismo ou seus projetos e realizações se dão inten-
para a parte viária (“park-way”), e Affonso Eduardo Reidy para a urbanização. É, con- samente no período compreendido entre os anos de 1930 e 1945, a Era Vargas37.
tudo, pelas mãos de Lota de Macedo Soares, que gerencia o projeto e execução na Ao longo da década de 1940 e 1950, os arquitetos, especificamente aque-
gestão do Governador Carlos Lacerda, assessorada por uma comissão de profissio- les comprometidos com o movimento moderno consolidam um campo de projeto
nais como Reidy e Burle Marx, que é finalmente implantado o Parque do Flamengo dentro do campo maior do urbanismo, que nas décadas anteriores era ocupado por
na década de 196035. engenheiros-urbanistas. Processo esse, coerente com o observado em outros países,
a respeito do qual nos lembra Choay: “Os membros do CIAM redefinem o papel do
arquiteto na nova sociedade tecnicista, cuja ordenação global reivindicam.”38
Urbanismo Moderno, um processo Enquanto no decorrer da década de 1930 e início da de 1940 engenheiros
como Saboya Ribeiro e José de Oliveira Reis são responsáveis pela urbanização
Na primeira metade do século XX, duas linhas de urbanismo se constroem36 de diversos bairros39, em que a ênfase se encontra na definição do sistema viário
e se tocam em determinados momentos. A primeira, que tem início nos planos de e praças, ao longo das décadas de 1940 e 1950, o profissional mais adequado para
melhoramentos com o prefeito Pereira Passos no início de século, manifesta-se no projetos de urbanização é aquele que domina o referencial modernista, que se
plano de remodelação e embelezamento de Agache em 1930 e tem continuidade apóia sobre a arquitetura, como Reidy e Lúcio Costa.
no conjunto de obras da Comissão do Plano da Cidade em 1938, na administração de As manifestações concretas do urbanismo modernista em nossa cidade se
H. Dodsworth. A segunda tem origem no movimento moderno e é divulgada pelos fazem sentir de forma gradual a partir da década de 1940, demonstrando que as
congressos do CIAM e pelas mãos de Le Corbusier. As duas linhas se tocam quando ideias contidas nos textos produzidos na década de 1930 precisavam ser assimiladas
as construções representadas nas propostas da Comissão do Plano da Cidade já antes de sua execução. Nesse processo, a execução do projeto do arquiteto Lúcio
possuem características modernistas, ou quando as obras viárias, como o corredor Costa para Brasília e sua inauguração em 1960 funcionam como marco e inspiração.
Norte-Sul da Esplanada de Santo Antônio ou o “park-way” do Aterro do Flamengo É possível dizer que é através da arquitetura que se dá a introdução concreta
são partes essenciais de projetos de urbanização. As diferenças entre as duas, con- – a realização – do urbanismo modernista em nossa cidade. Apesar da boa recepti-
tudo, ficam claras em determinados momentos como no período pós-conclusão do vidade das palestras de Le Corbusier, em 1936, algumas de suas propostas, como a
Plano Agache que coincide com a segunda visita (1936) de Le Corbusier. ausência de lotes e quadras, a separação de circulação de pedestres/veículos são de
Nessa ocasião, as divergências não são somente o fato de Agache olhar para difícil execução. Os princípios arquitetônicos são mais facilmente concretizados atra-
o passado e Le Corbusier, para o futuro, como expresso pelo arquiteto modernista. vés de construções isoladas, em que o prédio do Ministério da Educação e Saúde é um
Mas de diferentes visões de cidade e dos meios para obtê-la. O modernismo prome- exemplo aprovado por sua beleza e por suas qualidades de ventilação e iluminação.
te a solução dos problemas, a partir da criação de uma nova cidade – para uma nova Não só nos textos produzidos na década de 1930 estão presentes projetos urbanísti-
sociedade – negando a existente ou reconstruindo-se sobre o seu tecido – enquan- cos, em que as edificações representadas possuem características modernistas, como
to a primeira linha propõe a sua remodelação, preparando-a para o futuro. É dentro também no momento da realização de alguns projetos, como a implantação da Ave-
dessa vertente modernista que cresce e se consolida a contribuição dos arquitetos, nida Presidente Vargas, os princípios modernistas são utilizados na arquitetura.
em especial, Affonso Eduardo Reidy e Lúcio Costa. A intenção de execução da avenida é, como vimos, anterior ao envolvimento
Ao final do nosso período de estudo, em 1948, encontramos Reidy, um dos dos urbanistas locais com os princípios modernistas, mas a sua implantação coinci-
principais defensores do movimento moderno, à frente do recém-criado órgão de de com o período em que essas ideias são divulgadas de forma intensa, fato que se
urbanismo da prefeitura, a Diretoria de Urbanismo, o que nos leva a admitir que o mo- manifesta nas propostas de aproveitamento dos lotes resultantes da urbanização.
vimento moderno, como processo, já se encontra afirmado nos meios oficiais. Numa
perspectiva mais ampla desse processo, a irradiação e a consolidação dos princípios
37. O modernismo, entretanto, não pode ser considerado o estilo oficial da Era Vargas em seus diferentes níveis da
administração. Muitos dos projetos executados nesse período estão apoiados em valores tradicionais, produzindo,
especialmente na cidade do Rio de Janeiro, a coexistência de expressões distintas, tanto na arquitetura quanto no
urbanismo. Ver Rezende e Azevedo, 2009.
34. PA 5030/49, PA 5031/49, PA 5476/50, PA 6128/53, PA 7172/58 e PA 7500/59. 38. CHOAY, 2004. (tradução livre da autora)
35. Sobre o tema, cf. Oliveira, 2011. 39. Além de projetos viários, Saboya Ribeiro é responsável pelo projeto do Recreio dos Bandeirantes, parte do Leblon,
36. Sobre a questão, cf. LEME, Maria Cristina, 1999. do Jardim Botânico e de Laranjeiras, e J.O. Reis pelo do Bairro Peixoto, em Copacabana.

102 O Urbanismo Moderno na Cidade do Rio de Janeiro Vera F. Rezende 103


Por outro lado, ao longo da década de 1930, enquanto vão sendo assimilados os sitária (Lúcio Costa e Reidy, 1937 e Jorge Moreira, 1957); do Parque Guinle, projeto
novos princípios, vai sendo posto de lado o Plano Agache. O avião, imagem carregada habitacional precursor das super quadras de Brasília (Lúcio Costa, 1946) e no Plano
de significados para Le Corbusier, simbolizando a era maquinista, promove a substitui- Piloto para a Baixada de Jacarepaguá (Lúcio Costa, 1969). Cabe lembrar, contudo,
ção de um grande espaço público e livre – a entrada da cidade – de Agache, pelo Aero- que os projetos realizados no setor público contam também com a competente par-
porto Santos Dumont. Já vimos que na Esplanada do Castelo são aprovadas, a partir de ticipação de outros profissionais engenheiros como José de Oliveira Reis.
1938, as quadras abertas no lugar das quadras fechadas propostas por Agache. A Cidade Universitária é projetada a partir do final da década de 1940, para
Não podemos esquecer, embora não sejam objeto de nossa análise, dois o local de arquipélago do Fundão, 42 em que participam os arquitetos Lúcio Costa e
outros embates que travam o academicismo e o modernismo. O primeiro diz respei- Reidy e, finalmente, o Escritório Técnico da Universidade, chefiado por Jorge Moreira,
to às transformações propostas pelo arquiteto Lúcio Costa, quando diretor da Escola e demonstra a maior facilidade do movimento moderno em lidar com áreas livres.
de Belas Artes no início da década de 1930, função da qual se retira meses depois. O Contudo, o Plano Piloto para a Baixada de Jacarepaguá de autoria de Lúcio
segundo diz respeito ao concurso para o projeto do Ministério da Educação e Saúde, Costa, em 1969, é a oportunidade que o modernismo tem de se realizar em uma
cujo projeto vencedor de características acadêmicas acaba por ser substituído40 pelo área de expansão do Rio de Janeiro, desvencilhando-se das dificuldades impostas
projeto modernista da equipe de arquitetos brasileiros, a partir do risco de Le Corbu- em áreas parceladas e edificadas. Vários de seus aspectos, principalmente aqueles
sier para outro terreno. A discussão em relação a esse projeto que traz Le Corbusier ao relacionados à produção capitalista do espaço construído e a urbanização resultante,
Rio de Janeiro parece demonstrar que o clima era também favorável à outra discus- tem sido questionados.43 Apesar de corrermos o risco de minimizar outros aspectos
são. Desta vez, não relacionada a uma edificação, mas à cidade e seu destino. relevantes, parece claro que no momento de sua elaboração, após a inauguração de
No Rio de Janeiro, a partir da década de 1930, a prefeitura do Distrito Federal Brasília e de parte da Esplanada de Santo Antônio, o urbanismo modernista já havia
se estrutura de forma mais adequada para fazer frente aos problemas da cidade, incorporado algumas críticas quanto à certa rigidez funcional ou à presença “bruta-
passando a contar a partir de 1937 não só com a Comissão do Plano da Cidade, assim lista” da arquitetura44. Esse fato, aliado à beleza do sítio da Baixada de Jacarepaguá,
como com órgãos técnicos especializados. Em 1945, ela é transformada em Depar- parece contribuir para que Lúcio Costa opte pela valorização de aspectos paisagísti-
tamento de Urbanismo, vinculado à Secretaria Geral de Viação e Obras41. Inúmeros cos, preocupação já presente no projeto do autor para o Parque Guinle.
projetos passam a ser produzidos pela prefeitura a partir de 1937. Ainda na década de 1960, a cidade do Rio de Janeiro, então Estado da Gua-
José de Oliveira Reis, engenheiro, destaca-se por sua atuação a partir de 1938 nabara, é também objeto de um plano de desenvolvimento de autoria de Doxiadis
à frente da Comissão do Plano da Cidade e do Departamento de Urbanismo da pre- (1965), em que são definidas propostas para o período de 1960 a 2000. Embora o
feitura. No final da década de 1940, Affonso Eduardo Reidy assume a diretoria do plano se oriente para a identificação e a quantificação de necessidades gerais e seto-
Departamento de Urbanismo, momento em que os princípios modernistas passam riais, são apresentados projetos para alguns bairros da cidade, entre eles o de Copa-
a ser expressos com mais clareza, como no projeto da Esplanada de Santo Antônio. cabana. Esse projeto enquadra-se dentro do repertório modernista – concentração
Naturalmente, é preciso dizer que na defesa dos ideais modernistas estão em torres e separação de pedestres e veículos – e acarretaria, para a sua realização,
presentes os arquitetos pertencentes ou não aos quadros da prefeitura. Lúcio Costa, a demolição das edificações existentes nas quadras à época.
Affonso Eduardo Reidy, Jorge Moreira, Hermínio de Andrade e Silva e Edwaldo Vas- A dificuldade de concretização da proposta específica para o bairro de Copa-
concelos participam com projetos e consolidam a passagem do urbanismo realizado cabana faz com que ela não seja avaliada com profundidade, passando a fazer parte
por engenheiros, para o realizado por arquitetos. Destaca-se a participação desses do rol das utopias. O plano geral, por sua vez, não é implantado por outras razões,
arquitetos, isolada ou em equipe, nos projetos de urbanização da área de desmon- entre as quais, a sua baixa flexibilidade, a descontinuidade administrativa, a falta de
te do Morro de Santo Antônio (Reidy e Andrade e Silva, 1949 e Andrade e Silva, e recursos e, ainda, acidentes naturais como as chuvas que abalam a cidade em 1966 e
Edwaldo Vasconcelos, 1958); do Aterro do Flamengo (Reidy e Edwaldo Vasconcelos, 1967, questões que estão além de uma reflexão sobre o urbanismo moderno.
1953, Andrade e Silva e Edwaldo Vasconcelos, 1958 e Reidy, 1962); da Cidade Univer-
42. Diversas localizações são pensadas: a área da Praia Vermelha, que conta com outros prédios públicos e já havia sido
40. Segundo Gustavo Capanema: “... depois de concurso por mim mesmo promovido para escolher um projeto, antes indicada por Agache em seu plano, a área da Quinta da Boa Vista e, finalmente, o arquipélago do Fundão.
da vinda de Le Corbusier, mandei pagar o prêmio ao primeiro colocado (Arquimedes Memória) com a ressalva de que 43. Recentemente: LEITÃO, 1999. REZENDE e LEITÃO, 2004.
não aproveitaria o seu trabalho,...” Entrevista do ministro Capanema ao Jornal do Brasil. Revista de Arquitetura. Rio de 44. Cabe lembrar o impacto que a massa edificada da Unidade de Marselha (1948) produz em Lúcio Costa: ”O Ministério
Janeiro: julho 1963. da Educação não tinha essa estrutura brutalista... Pensando e exigindo dos calculistas (a respeito do MEC) que
41. Decreto-lei nº. 8305/ 1945, aprovado pelo Presidente da República José Linhares. reduzissem os diâmetros dos pilotis e, de repente, vieram os pilotis enormes”. COSTA, 1987.

104 O Urbanismo Moderno na Cidade do Rio de Janeiro Vera F. Rezende 105


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um ambiente onde as relações sociais se tornam possíveis e se “espacializam”. No movimen-
. Urbanização da Esplanada de Santo Antônio e suas adjacências. Revista
Municipal de Engenharia. Rio de Janeiro, p.6-13, janeiro 1945. to moderno, foram concebidos novos princípios imagéticos em busca de uma totalização
englobando a arte, a funcionalidade e a tecnologia, sendo estes responsáveis pela criação
SILVA PEREIRA, Margareth, et al. Le Corbusier e o Brasil. São Paulo: Tessela/Projeto, 1987.
da grandiosa narrativa da arquitetura do século XX. Nossa questão é: “há tantos estatutos
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de imagem quanto proliferam as imagens no mercado?”Daí a dificuldade do discurso crí-
Rio de Janeiro, p. 165–179, setembro e outubro 1936.
tico basear-se apenas em obras-primas da arte, com seus “valores universais” que podem
. Cidades de Amanhã. Revista Municipal de Engenharia. Rio de Janeiro: nº 3, p. 161-
representar uma espécie de “evolucionismo pictórico”​. É possível falar de uma “pequena
166, julho 1943.
estética” para se referir aos eventos artísticos na era digital, como aqueles característicos do
. Projetos Regionais. Revista Municipal de Engenharia. Rio de Janeiro: nº 1, p. 17-20,
kitsch híbrido de cultura erudita e popular? A imagética da arquitetura kitsch nos subúrbios
janeiro 1944.
do Rio de Janeiro, e até mesmo no Nordeste brasileiro, expressa uma estética mesclada aos
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e todo edifício atual deve aceitar que no mesmo território estão incluídos elementos meta-
Rio de janeiro, 1998.
-artísticos de arte e de não arte. A arte contemporânea combate o kitsch quando pretende
. Uma cidade de 1960. Revista de Arquitetura. Rio de Janeiro: nº 37, p. 16-17,
transcender o papel que lhe é dado pelo mercado, ao criar ou descobrir novos papéis, ten-
janeiro 1938.
tando se encaixar em outras áreas e, especialmente, para procurar negar sua participação
. Urbanismo no Brasil 1895-1965, LEME, Maria Cristina (org.), São Paulo, Nobel/
na indústria do entretenimento. O pós-modernismo foi definido como uma continuidade /
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ruptura com a modernidade. O arquiteto pós-moderno voltou a viver um novo ecletismo
VANNIER, Stephane. O Urbanismo no Estado do Rio de Janeiro. Revista do Clube de
típico do século XIX, com as correntes de retorno ao historicismo que revivem o passado e
Engenharia. Rio de Janeiro: nº 108, agosto 1945.
olham para trás para zombar da alta tecnologia. Este é o esteticismo extremo da descons-
trução como tentativa de dar autonomia ao repertório moderno, com a desmaterialização
da arquitetura formal. Constituiria então o moderno – e, portanto, também o pós-moder-
no–, uma ruptura com todos os elementos estéticos apontados? O “encontrado” (trouvé) na
obra do arquiteto surrealista norte-americano Frank O. Gehry revela um novo método de
projeto em arquitetura inspirado no método “crítico-paranóico” de Salvador Dalí, que pode

108 O Urbanismo Moderno na Cidade do Rio de Janeiro Dinah Papi Guimaraens 109
trazer a tona aspectos irracionais através de um procedimento técnico e criativo razoável. metaphor, to finally refuse it. If the dating of the vanguard and even futuristic surrealism
Ao contrário da “fantasmática” dos meios de comunicação audiovisuais, a “pintura meta- with totalitarian regimes is a notorious fact that composes the modernist avant-garde and
física” (1909-1919) de Giorgio De Chirico é contemporânea à “pintura pura” de Paul Klee, can be represented by the surrealist-inspired metaphysics of De Chirico, one can consider
pintor-músico que explora os limites da metáfora musical, para finalmente recusá-la. Se os here the case of the University within a cross-cultural dialogue. Rio de Janeiro calls “samba
namoros da vanguarda futurista e mesmo do Surrealismo com os regimes totalitários é um schools” their carnival institutions. Thus, it is possible that the academies can learn some-
fato notório, e se a vanguarda modernista pode ser representada pela inspiração surrealista thing new with the Rio samba schools?
e metafísica de De Chirico, pode-se considerar aqui o caso da universidade no seio de um Resumen | La relación entre la imagen y el ser como estructura social en el espacio-tiempo
diálogo transcultural. O Rio de Janeiro denomina de “escolas de samba” suas instituições de define las diferentes prácticas artísticas como la arquitectura. Visto como un todo, la arqui-
carnaval. Assim, será possível que as academias de ensino possam aprender algo de novo tectura es un ambiente donde las relaciones sociales son posibles y “espacializadas”. En el
com as escolas de samba cariocas? movimiento moderno, fueron concebidos nuevos principios basados en imágenes en bús-
Abstract | The relationship between image and being as social structure in space-time queda de una totalización que engloba el arte, la funcionalidad y la tecnología, que son los
defines the different artistic practices such as architecture. Seen as a whole, the architecture responsables de la creación de la gran narrativa de la arquitectura del siglo XX. Nuestra pre-
is an environment where social relations are possible and “spatialized. New imagery prin- gunta es: “¿Hay tantos estatutos de imagen como las imágenes proliferan en el mercado?”
ciples have been designed in modern movement, in search of a totalization encompassing De ahí la dificultad del discurso crítico basarse únicamente en las obras maestras del arte,
art, functionality and technology, which are responsible for creating the grand narrative con sus “valores universales” que puede representar una especie de “evolución pictórica.”
of twentieth century architecture. Our question is: “There are so many image statutes as Es posible hablar de una “pequeña estética” para referirnos a eventos artísticos en la era
images proliferate on the market?” Hence the difficulty of critical discourse based solely digital, como las propias de kitsch híbrido de la cultura erudita y popular? La imágen de la
on masterpieces of art, with their “universal values” that may represent a kind of “pictorial Arquitectura kitsch en los suburbios de Río de Janeiro, e incluso en el nordeste brasileño,
evolution.” It is possible to speak of a “small aesthetic” to refer to artistic events in the digital expresa una estética que combina los principios constructivos de la arquitectura moderna
age, as those characteristic of kitsch hybrid of classical and popular culture? The imagery de Niemeyer, que a su vez incorpora posturas barrocas al funcionalismo de Le Corbusier.
of architectural kitsch in the suburbs of Rio de Janeiro, and even in the Brazilian Northeast, Situaciones consumistas de una arquitectura kitsch están presentes, en cualquier momento,
expresses an aesthetic that had merged the constructive principles of modern architec- en la relación entre el objeto y el espectador, y todo edificio actual debe aceptar que en el
ture by Niemeyer, which in turn incorporates baroque postures with the functionalism of mismo territorio están incluidos elementos meta-artísticos del arte y del no-arte. El arte con-
Le Corbusier. Situations of a consumerist kitsch architecture are present at any time in the temporáneo combate lo kitsch cuando pretende trascender el papel que le es dado por el
relationship between the object and the viewer, and all current building must accept that mercado, mediante la creación o el descubrimiento de nuevos papeles, tratando de encajar
in the same territory are included meta-artistic elements of art and non-art. Contemporary en otras áreas y, sobre todo, tratando de negar su participación en la industria del entreteni-
art combat kitsch when it try to transcend the role given to it by the market, by creating miento. Lo posmoderno se ha definido como una continuidad / ruptura con la modernidad.
or discovering new roles, trying to fit in other areas and, especially, to seek to deny his in- El arquitecto posmoderno vuelve a vivir un nuevo eclecticismo típico del siglo XIX, con las
volvement in the entertainment industry. Postmodernism has been defined as a continuity corrientes de vuelta al historicismo que reviven el pasado y miran atrás para burlarse de la
/ rupture with modernity. The postmodern architect returned to live a new eclecticism typi- alta tecnología.
cal of the nineteenth century, with the currents return to historicism reliving the past and Este es el esteticismo extremo de la deconstrucción como intento de dar autonomía al re-
look back to mock the high technology. This is the extreme aestheticism of deconstruction pertorio moderno, con la desmaterialización de la arquitectura formal. Se constituiría en-
as an attempt to empower the modern repertoire, with the dematerialization of the formal tonces lo moderno – y por tanto, también lo posmoderno – una ruptura con todos los ele-
architecture. Would then constitute the modern – and therefore also the postmodern – a mentos estéticos señalados? Lo “encontrado” (trouvé) en la obra del arquitecto surrealista
break with all the aesthetic elements pointed? The “found” (trouvé) in the work of the sur- americano Frank O. Gehry revela un nuevo método de diseño de la arquitectura inspirado
realist American architect Frank O. Gehry reveals a new design method for architecture –, en el método “crítico-paranoico” de Salvador Dalí, que puede poner de manifiesto aspectos
inspired on the method “paranoiac-critical” by Salvador Dali, which can bring out irrational irracionales a través de un procedimiento técnico y creativo razonable. Al contrario de los
aspects through a reasonable procedure both technical and creative. Unlike the “ghostly” “fantasmas” de los medios de comunicación audiovisuales, la “pintura metafísica” (1909-
audiovisual media, the “metaphysical painting” (1909-1919) by Giorgio De Chirico is the con- 1919) de Giorgio De Chirico es contemporáneo de la “pintura pura” de Paul Klee, pintor-
temporary “pure painting” of Paul Klee, painter-musician who explores the limits of musical músico que explora los límites de la metáfora musical, para finalmente rechazarla. Si la rela-

110 Do kitsch à metafísica Dinah Papi Guimaraens 111


ción de la vanguardia futurista y del surrealismo con los regímenes totalitarios es un hecho o chamado estilo internacional. 2 Em
notorio y que la vanguardia moderna puede ser representada por la inspiración surrealista y geral, as notações gráficas, em todas
metafísica de De Chirico, se puede considerar entonces el caso de la Universidad en el seno as suas formas de expressão, são
de un diálogo transcultural. Río de Janeiro denomina “escuelas de samba” a sus institucio- consideradas como instrumentos
nes del carnaval. Por lo tanto, es posible que las academias de enseñanza puedan aprender fundamentais do desenho artístico.
algo nuevo con las escuelas de samba cariocas? “O pensamento visual” adota os con-
ceitos de “imaginação interativa” e
do “conceito figural” para reiterar sua
rejeição de qualquer dicotomia entre
a concepção do projeto e a gravação
“A casa da criança, uma árvore, flores, um quarto escuro. O gênio infantil nas- da imagem figurativa. Em outras pa-
cido em tal casa não será parecido com o homem de gênio nascido em um meio lavras, a notação gráfica empregada
diferente.” (Charles Baudelaire, Os Paraísos Artificiais, 1864: 2009), para desenhar diagramas e croquis
A relação entre a imagem e o ser enquanto estrutura social no espaço-tempo é entendida como sendo funda-
define as diferentes práticas artísticas como arquitetura, artes visuais, escultura, li- Jay Milder, Ark Journey 40, 2003-06 mental para a concepção do projeto
teratura, música e dança / performance. O conceito de “imagética” foi desenvolvido (Arnheim, in op. cit.).
por psicólogos como Rudolf Arnheim (1954: 1974) e se refere à produção de imagens A questão fundamental é se as notações gráficas do projeto podem constituir
relacionadas com o domínio do simbólico. a base do processo de concepção do arquiteto e do desenvolvimento da “ideia”
No caso da arte, as imagens distinguem-se por uma representação ou “ilusão” do projeto. A geometria do espaço arquitetônico concebida como um espaço de
(mimetismo ou cópia) do verdadeiro1, pois o fabrico da imagética artística depende- projeção do pensamento no espaço real envolve duas noções: a concepção e a per-
rá da estética dos diferentes períodos históricos, da criação de estilos de arte, e até cepção, representando uma abordagem “científica” da arquitetura. Para explicar o
mesmo da pessoa de cada artista, fazendo com que os artistas de um determinado espaço arquitetônico não é suficiente analisar o espaço físico, mas é preciso enten-
período e seus estilos individuais produzam diferentes estilos artísticos (cf. Arnheim, der a construção mental de um espaço de referência “arquiteturológico” que inte-
1995). A reprodução excessiva de imagens visuais na história contemporânea sim- gra o processo de concepção e a percepção que permite a “modelagem” do lugar
boliza a imagética típica, em termos estruturais e históricos, da civilização dos meios arquitetônico (cf. Barki, 2003).
de comunicação de massa, embora não represente o poder discriminatório de uma O emprego de eixos e formas triangulares como elementos de composição é
era. uma tradição na arquitetura. O eixo imaginário estabelece uma linha de suporte que
A propósito da especificidade da arquitetura baseada na imagética, deve- cria um tipo de relação entre as partes da composição, quando se define um tipo
-se conceituar suas formulações teóricas (apresentações orais) em termos de suas ideal de um “esqueleto” que apoia a concepção de valores primários de ordem, esta-
configurações espaciais (expressões plásticas ou visuais) para pensar o objeto, tais bilidade e dominação. Com esta ênfase nos eixos, a ideia geométrica se afirma pela
como: da arquitetura como um todo e sua apreciação na dimensão artística, a qual é redução da solução tradicional da rede reticulada em um sistema que determina
experimentada em sua dimensão estética e construída em sua dimensão funcional a organização e o layout dos elementos urbanos. O projeto, ao invés da expressão
e tecnológica. Vista como um todo, a arquitetura é um ambiente onde as relações artística de algo desenhado no papel, assume assim a forma de um meio ou a forma
sociais se tornam possíveis e se “espacializam”. de um pensamento arquitetônico. 3
No movimento moderno, foram concebidos novos princípios imagéticos em
busca de uma totalização englobando a arte, a funcionalidade e a tecnologia, sendo 2. Este sujeito moderno surgiu no Renascimento, época em que a arquitetura tornou-se o artefato (ars mechanica) na
arte liberal (ars liberalis), fazendo com que o arquiteto local de construção remota se tornasse o mestre do desenho,
estes responsáveis pela criação da grandiosa narrativa da arquitetura do século XX, com a invenção da geometria e da perspectiva (cf. Malard, 2006).
3. A geometria é fundamental para o projeto e reflete o arquiteto projetual. O que distingue o pensamento do arquite-
1. Como palavra grega que significa “imitação”, mimesis é usada na filosofia grega em dois contextos distintos. O pri- to do pensamento matemático do agrimensor é o seu tamanho: é, portanto, a noção de escala que constitui a diferença
meiro é um contexto narrativo de Platão, designando uma forma narrativa particular (oral): “por imitação”, o narrador fundamental entre as duas linhas de pensamento. O ato de papel “zero” pode ser uma forma de realização do “gesto”:
imita personagens adotando sua língua. A segunda é uma representação contextual em Aristóteles, em que a mimesis o movimento manual que é humano e comunica o que fazer no ato criativo que envolve a mão, os olhos e a mente do
representa uma imitação representativa (cf. Aumont, 1990). arquiteto (cf. Barki, in op. cit.).

112 Do kitsch à metafísica Dinah Papi Guimaraens 113


Na concepção do projeto, a conceituação do pensamento e o pensamento do
desenho podem ser indicados pelo aforismo de Lucio Costa (1962) de que “o risco
é um risco” – projeto. O “risco” de um arquiteto estimula a imaginação dita “ativa”,
ou seja, uma imaginação com “vontade” (Bachelard, 1979). A concepção do projeto
refere-se a uma atividade cuja notação gráfica aparece como um modo de discurso,
ou seja, o discurso de um estilo poético que simboliza um dos quatro níveis de pre-
cisão propostos por Aristóteles: poética, retórica, dialética e analítica. Caracteriza-
-se tal discurso poético como sendo parte da imagem em que o gosto por hábitos
convencionais se afirma como forma de ser que deve ser aceita como verdadeira,
temporariamente, ocasionando dessa maneira a suspensão da descrença sobre a
realidade imagética. Galeria Miguel Rio Branco, Inhotim, MG

A transição do mundo real, nas artes visuais, decorre do papel fundamen- eliminação da “alma anima, humana ou animal”, mas sob uma ordem de “proto-sub-
tal desempenhado pela atividade criadora do olho como órgão que estabelece um jetividade” que permite que se imprima uma função de coerência na máquina, tanto
espaço comum para a arquitetura, a escultura e a pintura artística. O essencial entre em relação a ela mesma quanto em uma relação de alteridade com o ser humano
as três artes da arquitetura, escultura e pintura encontra-se no elemento que o teó- (Guattari, 1993).
rico de arte e escultor alemão Hildebrand (apud Poulain, 2001) chama de impressões Se “a imagem poética é superior por sua facilidade transcendental” (Cany,
“arquitetônicas” e que representa a confluência da verticalidade, da horizontalidade 2012), é possível falar de arte maquínica no caso de artistas visuais como Nam June
e da profundidade como lei geral que constitui o espaço de composição. Tal lei geral Paik. É ele um artista coreano que discorre sobre a dualidade entre arte e ciência
pode ser descrita a partir da teoria de autores como Wölfflin (2000: 1915). 4 apropriando-se das invenções da Renascença, como a pintura de Leonardo da Vinci
Sobre a percepção visual, pode-se estabelecer uma conexão com o mundo “fresco secco” (“Última Ceia”). Além disso, Paik incorpora as invenções da biologia,
para responder a pergunta: o que é (re)apresentado pela imagem (real ou imaginá- da medicina e da engenharia para estabelecer um uso inovador da tecnologia da
ria)? (Cany, 2008, p. 47-48). A resposta clássica é que “o plano da consciência gráfica televisão e dos meios de comunicação de massa, de forma a “humanizar” a máquina
é que formaliza”, já a resposta tradicional afirma que “é o plano do inconsciente e discutir o novo ambiente criado pela “tecnologia maquínica” (cf. Ori, 2002). 5
que se materializa” (Bachelard, in op. cit.), enquanto a resposta filosófica diz que “é o A “política de despolitização” da globalização (Bourdieu, 2003) fez com que a
nível de consciência abstrata que conceitua.” A conclusão deste autor é que “a visão independência duramente conquistada da produção cultural – tanto no mundo de-
que pensa, ou o pensamento que vê, pode enxergar para além da presença do visí- senvolvido quanto no mundo subdesenvolvido – e a circulação das necessidades da
vel.” A imagem poética é, assim, a palavra como “a imagem do assombro invisível” economia fossem ameaçadas pela intrusão da lógica de negócios em todas as fases
(Cany, in op. cit., p. 49). da produção e circulação de bens culturais. A Escola de Frankfurt já discorrera sobre
Neste quadro antropológico que é “o pensamento que se pensa como visão”, a perda da “aura” da arte com a mecanização. Citando Paul Valéry, Walter Benjamin
a tese de Cany (2012) é que o moderno pensamento-artista é o pensamento visual. revela que a reprodutibilidade das obras de arte só recentemente mudou de fato a
Se o cinema iniciou uma revolução antropológica e civilizacional, a imagem poética noção da arte, na medida em que técnicas apropriadas começaram a emergir como
tem a vantagem de não estar presa na esfera técnica. Atualmente nos encontramos formas originais de arte representadas pela fotografia e pelo cinema. A função da
em uma inevitável encruzilhada, onde a máquina é tratada como um anátema a obra de arte (representada pela unicidade, evidência histórica, contemplação, ado-
uma situação de desumanidade e de ruptura com qualquer tipo de projeto ético. ração, etc) é incidental em relação à reprodutibilidade técnica, e o cinéfilo é “um
A reação à idade maquínica, de maneira a recomeçar novamente não a partir de examinador que se distrai” (Benjamin, 1994, p. 27). 6
uma “territorialidade primitiva” ou de um modo de pensamento “animista”, somen-
te torna-se possível se consideramos que a interface maquínica não existe enquanto 5. “Fluxofilmes” são curtas-metragens de artistas associados à Fluxus. Nam June Paik fez “Zen para o filme” (1962-64),
instalação de mesa com tela de cinema, com piano vertical e baixo em rolo de 1.000 pés de filme de 16 mm, em branco,
projetado na tela por 30 minutos.
4. Wölfflin (2000, 1915) estabelece cinco pares opostos de estilos da arte a partir daqueles estabelecidos nos séculos 6. O processo de “empoderamento” das áreas artísticas e literárias, emancipadas das regras financeiras e de interesse,
XVI e XVII, os quais são: 1) do linear ao pictórico; 2) do plano à profundidade; 3) da forma aberta à forma fechada; 4) da é destruído pela homogeneidade que traz novas plateias de todas as origens em todos os países para assistir filmes de
multiplicidade à unidade. Hollywood, novelas e best-sellers produzidos diretamente para o mercado global (Bourdieu, 1992).

114 Do kitsch à metafísica Dinah Papi Guimaraens 115


Se “nosso horizonte ético-político não é outro que a crítica da sociedade do Rio de Janeiro, foi impregnado por um
espetáculo, do todo comunicativo e consumista” (Cany, 2012) pode-se, então, detec- sabor tropical através da elegância e da
tar um viés ético e político na representação do espaço-cinema e das artes visuais, harmonia formais obtidas pela simplifi-
onde as imagens “neo-sequenciais” assumem tanto a forma de imagens estáticas cação dos volumes que Niemeyer articu-
como a de imagens em movimento (desenhos, fotografias, stills de filmes, pinturas lou, ao acrescentar pilotis bem mais altos
de pop arte, hiperrealismo de um lado, e imagens em movimento e televisão de no vão livre de entrada do MES. A equipe
outro). Nossa questão aqui é: “há tantos estatutos de imagem quanto proliferam as brasileira de arquitetos construiu, dessa
imagens no mercado?” Daí a dificuldade do discurso crítico basear-se apenas em forma, um espaço fluido e aberto que di-
obras-primas da arte, com seus “valores universais” que podem representar uma feria da “sofisticada elegância do mestre
espécie de “evolucionismo pictórico” ​​(cf. Schneiter, 1981, p. 3). francês” (apud Campello, 2001, p. 19) que
É possível, então, falar de uma “pequena estética” para se referir aos eventos realizou o primeiro desenho deste edi-
artísticos na era digital, como aqueles característicos do kitsch7 híbrido de cultura fício em uma visita ao Brasil, em 1930, a Terraço-jardim de Burle-Marx, Edifício do MES-RJ
erudita e popular? A imagética da arquitetura kitsch nos subúrbios do Rio de Janei- convite do então ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema.
ro 8, e até mesmo no Nordeste brasileiro, expressa uma estética mesclada aos princí- A arquitetura exige formas de beleza não apenas úteis. Como resultado de
pios construtivos da arquitetura moderna de Niemeyer, a qual por sua vez incorpora uma função estritamente utilitária, a arquitetura poderia se tornar apenas uma prática
posturas barrocas ao funcionalismo de Le Corbusier. A presença de uma corrente de asséptica para consumidores comerciais. Situações consumistas de uma arquitetura
influência barroca luso-brasileira na obra de Niemeyer é caracterizada pelo uso de kitsch estão presentes, a qualquer momento, na relação entre o objeto e o espectador,
elementos de linhas curvas e de forma livre (cf. Underwood, 1992), tal como ocorre e todo edifício atual deve aceitar que no mesmo território estejam incluídos elemen-
com a colunata do Palácio da Alvorada (1956-1958), em Brasília. Essas colunas foram tos meta-artísticos de arte e de não arte. Basta, portanto, em relação a uma maior
inspiradas em redes estendidas ou em velas de barcos e se tornaram ícones do estimulação causada pelo kitsch, colocar de quarentena todas as definições teóricas
poder político federal, tendo seus elementos construtivos caído no gosto popular de bom gosto e mau gosto (cf. Dorfles, 1969). Eco (1970) afirma que, sem o kitsch, a
e sido copiados em fôrmas de gesso, dispostos maciçamente como decoração nas arte não existe hoje, enquanto Portoghesi (2002) salienta que o resultado kitsch da
fachadas das casas das classes trabalhadoras em todo o país. Disneyland é mesmo superior, em termos estéticos, aos esforços da alta cultura dos
Outros elementos absorvi- arquitetos modernos, na medida em que tal estética cria “peças genuínas de cidades”
dos das obras estéticas e funcio- que se transformaram em “peças de xadrez” depois da arquitetura moderna.
nais de Le Corbusier e Niemeyer Robert Venturi é um crítico da arquitetura moderna, como revela seu livro-
foram o telhado plano e o telha- -manifesto Complexidade e Contradição em Arquitetura9 de 1966. Esta obra tem sido
do “borboleta” (teto em “v”, com considerada como uma das melhores conceituações sobre as mudanças que ocor-
uma calha central, onde a água reram na arquitetura, nos anos 1970 e 1980, enquanto Venturi ali apregoa a necessi-
da chuva é drenada), derivadas da dade de se criar uma arquitetura “complexa e contraditória”. Acredita este arquiteto
estética das “máquinas-de-mo- que a cultura contemporânea aceitou a contradição como condição existencial e,
rar” modernistas. O edifício do em todos os setores culturais e científicos, parece incapaz de chegar a uma síntese
Ministério da Educação e Saúde da realidade abrangente e completa. O texto é colocado em uma condição de com-
(1937-1943), marco modernista no Arquitetura kitsch em Santa Cruz, RJ plementaridade e de diálogo com os “mestres” da arquitetura moderna e, apesar
de haver rejeitado o lema “menos é mais” – uma frase do poeta Robert Browning
7. A palavra kitsch aparece na segunda metade do século XIX, quando turistas americanos em Munique, para comprar empregada por Ludwig Mies van der Rohe para definir um dos principais princípios
pinturas com preços mais baixos, exigem um esboço destas. A partir daí, o kitsch indica “bugigangas” para comprado-
res dispostos a uma experiência estética fácil. O verbo alemão kitschen designa o fato de se “limpar a lama e o lixo nas estéticos da arquitetura moderna da Bauhaus – Venturi busca elementos complexos
ruas”, ou “um mobiliário suave que parece velho”, enquanto verkitschen quer dizer “vender barato” (cf. Brock, 1970).
8. Os princípios de construção da estética kitsch na arquitetura residem nos símbolos da elite cultural disseminados
pelos meios de comunicação de massa e absorvidos pelas classes populares (kitsch passivo), opondo-se a uma atitude 9. Tal sentimento de “complexidade e contradição” se manifesta até mesmo nas arquiteturas “menores” ou espontâne-
crítica da cultura oficial (kitsch criativo), o que aproxima o kitsch de uma vanguarda de choque (Pignatari, 1968), na as, constituindo também a expressão típica de todas as fases do maneirismo italiano do Cinquecento com Palladio e
“criatividade de devorador antropofágico” da arquitetura moderna brasileira (cf. Guimaraens & Cavalcanti, 2007:1979). Borromini, Sullivan, e, mais recentemente, com Alvar Aalto, Le Corbusier e Louis Kahn (cf. Gusdorf, 1982).

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e contraditórios dentro das obras produzidas pelo Movimento Moderno, reconhe- ruptura com a “tradição artística”, ao remeter a suposições de rompimento da arte
cendo tais contradições no seio de um sentimento universal poético e expressivo. com a sociedade burguesa. Walter Benjamin (1994) lamenta o desaparecimento das
O fenômeno do kitsch tem sido visto de forma crítica, particularmente do arcadas parisienses do comércio, mostrando o layout de uma cultura de commodities
ponto de vista da sociedade de consumo, mas há pouca discussão estabelecida e do show na Exposição Universal de 1889, com a construção da Torre Eiffel como um
sobre ele, em termos da teoria da arte. Gilos Dorfles (1969) é uma exceção, tendo marco da arquitetura moderna e da engenharia industrial (cf.Schulz, 2008).
realizado a primeira tentativa de estabelecer uma teoria para analisar a visualidade O arquiteto pós-moderno voltou a viver um novo ecletismo típico do século
kitsch.10 Se a submissão da cultura à lógica esmagadora do mercado que se estabe- XIX, com as correntes de retorno ao historicismo que revivem o passado e olham
lece com o capitalismo passa a governar a partir dos anos 1970-1980 todos os as- para trás para zombar da alta tecnologia. Este é o esteticismo extremo da descons-
pectos da vida urbana, como demonstraram autores como Greenberg e Adorno, há trução como tentativa de dar autonomia ao repertório moderno, com a desmateria-
uma correspondência entre a estética kitsch e a reinvenção dos gêneros artísticos. lização da arquitetura formal. Tal neo-ecletismo pode ser um prenúncio de um novo
A interpenetração da estética kitsch na visualidade contemporânea tem sido discurso que inclui a arquitetura em toda a sua complexidade, liberando seu apego
realmente pouco explorada no campo teórico da arquitetura e da arte, que procu- estético e representando outra grande narrativa como foi aquela do movimento
ra quase sempre ler o kitsch em seus aspectos puramente formais.11 O espaço da moderno. Constituiria então o moderno – e, portanto, também o pós-moderno –,
arte contemporânea tem sido questionado pela transformação da estética em um uma ruptura com todos os elementos estéticos acima apontados?13
produto de consumo, caracterizando-se como o mercado da decoração, do entrete- A consciência pós-moderna pode se juntar à grande aventura da nova tra-
nimento e da indústria cultural. A reprodução em série, o marketing, a massificação dição moderna, abrindo o último dos motivos estéticos e não estéticos. A questão
e a homogeneização são temas que percorrem vários movimentos compostos por aqui é se a produção artística pode voltar sua transmissão para uma atividade estéti-
artistas pop e pós-pop, artesãos e designers que tomam posse do kitsch ou que são ca desinteressada, ao contrário da vanguarda modernista inventada pelos surrealis-
apropriados por ele. Artistas “românticos” ou “convencionais”, assim como membros tas, a qual acarretou naquela distância da arte que conduziu à deterioração e à “po-
da vanguarda combatem o kitsch. A arte contemporânea combate o kitsch quando lítica dos intelectuais.” Este retorno às concepções tradicionais de beleza representa
pretende transcender o papel que lhe é dado pelo mercado, ao criar ou descobrir uma volta à estética modernista, tal como foi definido por Baudelaire em O Pintor
novos papéis, tentando se encaixar em outras áreas e, especialmente, para procurar da Vida Moderna (1863: 2010). A operação crítica aqui descrita representa, então, a
negar sua participação na indústria do entretenimento.12 separação entre o novo e o presente, indicando o primeiro verdadeiro momento
O pós-modernismo foi definido como uma continuidade / ruptura com a mo- de modernidade para Baudelaire. O poeta-crítico descreve a arte moderna real que
dernidade (cf. Jameson, 2004). Baudelaire (2010) fala da transitoriedade do mundo combina a realidade fugaz do momento histórico com certo grau de compromisso
moderno com foco no papel de “espectador”, enquanto Marshall Berman (1986) com o mundo eterno e imutável de forma, assumindo assim o poder de “extrair a
define o “ser moderno” como pertencendo a um ambiente de aventura, poder, cres- transição eterna”.
cimento, alegria, autotransformação e transformação das coisas ao redor, mas que ao Com a delineação desta desconexão entre o “presente” e o “novo”, pode-se
mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos e tudo o que demarcar os estágios de decomposição de um modernismo inautêntico, não com-
somos. Os artistas de vanguarda do final do século XIX e início do século XX escolhe- prometido com o moderno clássico – enquanto a modernidade de Baudelaire é uma
ram Paris como a cidade por excelência “moderna”, indicando um falso problema de realização de certa “presença do antes dentro do mundo” –, com um futuro que
quer reinstalar o valor desacreditado do progresso burguês na estética.14 É uma his-
10. De acordo com Dorfles (1969), a primeira regra prova que “não pode ser considerado kitsch o desequilíbrio formal.”
Se a “vanguarda imitou o ato de imitação”, a pop arte kitsch empregou estilemas sem pecado em seu gosto. Assim, a tória da tradição ortodoxa moderna ilustrada por Clement Greenberg em sua rein-
segunda regra proposta por ele afirma que: “Não se deve deixar de considerar o uso de ornamentos kitsch e estilemas
em diferentes contextos”. 13. A arquitetura pós-moderna apresenta três hipóteses para o fracasso da arquitetura moderna: 1) esta não conseguiu
11. Theodor Adorno, Hermann Broch e Clement Greenberg foram unânimes em sua definição negativa do kitsch, si- aprender a interagir com as pessoas; 2) sua falha decorreu do fato de ter sido reduzida à sua dimensão espacial; 3) seu
tuando-o em direção contrária à vanguarda e, acima de tudo, como uma espécie de “falsa consciência”, ou seja, uma maior erro foi ser totalizadora. O pós-modernismo refere-se, portanto, ao esgotamento da vanguarda histórica elitista
sensibilidade específica do capitalismo, onde o indivíduo está longe de seus próprios desejos e vontades. e futurista, com sua obsessão com o futuro e sua narrativa de convicção sobre a morte de sua própria teoria modernis-
12. Abraham Moles (1986) define o kitsch como “a arte da felicidade”, apenas porque representa os valores da so- ta. (Compagnion apud Jameson, in op. cit., p. 79).
ciedade burguesa em ascensão durante a Revolução Industrial, assim como o princípio de “conforto”, um dos cinco 14. A superficialidade da produção cultural, do design e da mídia como um momento frívolo na história da arte e da
princípios enunciados por Walter Killy (1962): novos materiais e meios de produção, disponibilizados pelos avanços história da arquitetura, cuja missão foi a de desacreditar certas características da modernidade como tal. Esta é a crítica
tecnológicos, que foram tomados como símbolos de posição social privilegiada da classe dominante e como uma pós-moderna contra a sua própria história como uma história falsa e inautêntica. Não haveria nenhuma “teoria” de
forma de autoafirmação e demonstração de prosperidade, simbolizando um retrato da necessidade de abundância e Baudelaire ou Cézanne simplesmente porque eles não se consideravam “revolucionários”. (Compagnion, apud Jame-
de bem-estar material e social. son, in op. cit., p. 79).

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venção de um mito americano teleológico que visa quebrar o domínio do “estilo rápidos e livres, obtidos através da intuição e modelados em modelos formais.16 Os
internacional” em Paris, no período pós-segunda guerra, de modo a permitir que conceitos formais e espaciais da arquitetura pós-moderna, inspirados pelo Surrealis-
o campo artístico do expressionismo abstrato na América do Norte assuma uma mo, pelo high-tech e pelo desconstrutivismo, ilustram uma correspondência expres-
preponderância no mercado de arte internacional. siva alegórica ou simbólica, deixando-nos com o sabor de uma espécie de “nova
A vanguarda surrealista é criticada ao se enfatizar que sua narrativa ortodoxa natureza” dessas formas não específicas de caráter antinatural-corbuseanas.
esconde um aspecto de “apologética” para romper com a tradição. Para tentar con- Os edifícios projetados com essas premissas conduzem, espacial e esteti-
vencer o público sobre a relevância da miragem do vazio, Compagnion fala de uma camente, a uma espécie de metamorfose das categorias do modelo modernista
“história de voz do futuro”, encontrada na polêmica da retórica de André Breton formal, através da incorporação da dualidade do seu interior e do exterior. A forma
e seus discípulos. O nojo que a pós-modernidade tem da vanguarda é decorrente dessa arquitetura “incomensurável”, incorporada ao sentido formal pelo prosaico de
da intolerância de sua linguagem acadêmica escrita na forma de slogans típicos de sua forma incomum, nega os grandes projetos de Le Corbusier sobre a relação ex-
meta-narrativas de livros de história antiga, que sempre consegue parecer uma cul- pressiva da plástica obtida entre as linhas de paredes interiores e exteriores, aban-
minação de haver rompido com a tradição (cf. Jameson, in op. cit., p. 57). A apropria- donando sua rigidez e flexibilidade para suportar novas funções que combinam es-
ção de “Roda de Bicicleta” (1913) e “Urinol” (“Fountain”, 1917), de Marcel Duchamp, teticamente as realidades do “plano aberto” a partir do interior dos edifícios.17
é uma combinação de dois elementos antagônicos que parece muito familiar, pois As paisagens urbanas foram desenhadas por obras arquitetônicas que repre-
enquanto o primeiro objeto incorpora o movimento, o segundo constitui uma ideia sentam o teatro desde os tempos antigos. Vitruvius descreve três cenários corres-
de imobilidade. Duchamp fez ainda a “profanação” da “Mona Lisa” (LHOOQ, 1919), pondentes a cenas de teatro urbano: o trágico, o cômico e o satírico. Esses ambien-
adicionando um bigode e um cavanhaque nesta “obra-prima” de Leonardo Da Vinci. tes são modelos paradigmáticos da Renascença, onde dramas foram organizados
O artista brasileiro Nelson Leirner propõe o trabalho “Monalisas” (2003) como diariamente em áreas urbanas e rurais. Os espaços urbanos projetados por Alberti
uma paródia de “bens” e da venda de objetos de decoração para a concessionária estabelecem ligações com um teatro imaginário, onde foram realizadas cenas cômi-
que oferece caixas de luxo com recipientes para armazenar uma coleção kitsch feita cas nas ruas, em curvas sinuosas, enquanto as cenas trágicas foram feitas em cida-
de Mona Lisas – broches, brincos, pratos, canetas, isqueiros etc –, fazendo sua obra des nobres de plano normal, contando com a limpeza de ruas pavimentadas com
se tornar um mero “produto” vendido pela loja do Museu do Louvre, de onde o fachadas de altura idêntica e constante (cf. Schulz, 2008, p. 79-81).
artista retirou a maioria dos objetos que expôs posteriormente no Museu de Arte O teatro-enunciação de Beckett e o teatro-absoluto de Artaud, onde “a his-
Contemporânea de Niterói, Rio de Janeiro, Brasil (cf. Leirner, 2006, p. 45-50).15 tória se torna teatro e o mito se torna história” (Guattari, 2012, p. 183), fala sobre
Como Salvador Dalí (1956) notou, os críticos de arte “ditirâmbicos” foram ilu- uma nova territorialidade enquanto código de produção final da territorialidade
didos pela “feiura”, pela “modernidade” e pela “tecnização” da arte moderna, tendo e da vontade de poder, possibilitada pela produção de sinais de efeito de reinci-
sido enganados novamente pela “arte abstrata”. Para ele, o cubismo de Picasso era dência no sentido linearizado onde o signo linguístico recuperou o “inapropria-
uma farsa, uma vez que ainda ali permaneciam os objetos reais e anedóticos, com do”. O audio-visual é, assim, a normalização e a consumação do fantasmático. Ao
etiquetas coladas sobre eles revelando sua própria história sentimental. Baudelaire contrário da “fantasmática” dos meios de comunicação audiovisuais, a “pintura
(2010) conceitua o pensamento moderno baseado na imagética ao afirmar que é metafísica” (1909-1919) de Giorgio de Chirico é contemporânea à “pintura pura”
o pensamento abstrato que se desenvolve filosoficamente. A metáfora surrealista de Paul Klee, pintor-músico que explora os limites da metáfora musical, para final-
indica uma maneira diferente de pensar, contendo um retrovisor. É um pensamento mente recusá-la. De Chirico afirma que a crítica antropológica do estilo musical de
e uma visão da metáfora como imagem do pensamento abstrato (cf. Cany, 2012). pensar é o que desenvolve o seu próprio modelo de visualidade. A pintura metafí-
O “encontrado” (trouvé) na obra do arquiteto surrealista norte-americano sica constrói imagens de um ritmo além do visível e uma lógica de “vida universal”,
Frank O. Gehry revela um novo método de projeto em arquitetura inspirado no incorporando um retorno ao classicismo mesclado ao modernismo surrealista.18
método “crítico-paranóico” de Salvador Dalí, que pode trazer a tona aspectos irra-
16. Tais modelos são, então, transmitidos à mídia digital e criam formas curvas irregulares espaçadas, com luz e sobre-
cionais através de um procedimento técnico e criativo razoável. A maioria das obras carga natural, delimitadas por volumes de encadeamento irracional que rompem com os ângulos de luz e os limites do
espaço perceptivo para criar um novo tipo de espaço fluido, sonhador e sensual (cf. Montaner, 2002, p. 56).
de Gehry começa com uma escrita “automática” dos croquis para realizar esboços
17. Tal “incomensurabilidade” ocorre, por exemplo, na Biblioteca da França, em Paris, projetada pelo arquiteto Rem
Koolhaus e pelo OMA-Office for Metropolitan Architecture (cf. Jameson, in op. cit., p. 201-202).
15. A máquina de Duchamp em seus “ready-mades” simboliza o papel desempenhado pela indústria cultural, com 18. Pela revelação da pintura metafísica, De Chirico descobre a essência da arte “pura” inspirada pelo uso da faculdade
seu autor tendo afirmado que “obras de arte não são feitas por artistas, mas apenas por homens.” (cf. Cabanne, 1967). transcendental da sensibilidade, onde o exercício do “puro poder” de sentir é desfrutado a partir desse privilégio da

120 Do kitsch à metafísica Dinah Papi Guimaraens 121


Então, para transpor sua percepção metafísica na composição de um espaço O Parangolé (composto por vestidos, tops, banners ou bandeiras) foi criado
visual, o pintor vai tentar combinar o classicismo de arquitetura antiga com a au- por Hélio Oiticica para ser usado pelos dançarinos da favela da Mangueira. Constitui,
daciosa modernidade futurista dos primeiros anos do século XX. A ideia da obra portanto, uma forma de “antiarte” que visa iniciar uma nova visão de como os seres
de arte como enigma impossível de ser resolvido está presente no projeto de arte humanos e a arte podem ser integrados, causando a morte do espectador e o nas-
metafísica de De Chirico. A inquietante luz da noite é propícia para a revelação das cimento do participante. No Parangolé, o samba é o motor e a ação da necessidade
paisagens de aspecto metafísico que de repente as coisas podem assumir, enquanto ontológica, em que a roupagem está em contraste com o relógio que fala do tempo
os personagens humanos assumem a forma de modelos e de assemblages cubistas da máquina e da produção. 20 Como, então, a universidade pode escapar da postu-
(cf. Chalumeau, 2009).19 ra aristocrática de um conhecimento hegemônico e acadêmico e desfrutar de um
De Chirico lança um novo pensamento como crítica ao modelo antropológi- dialogismo transcultural entre os diferentes níveis de funcionários e alunos, e entre
co visual da modernidade, com a busca de um modelo semiótico em que ocorre a diferentes grupos étnicos e culturais?
solução simbólica para o seu imaginário poético e metafísico. Ele constrói essa ima- Como resposta a essa questão, Cany (2012) nos sugere que se “Pense a poesia
gética pela negação da unidade do tempo, superando a velha antinomia da pintura como parte de uma antropologia filosófica e um propósito ético-político”. Se o pen-
moderna com a pintura de “cidades metafísicas” da Itália e das arcadas reminiscen- samento poético pode permitir-nos superar uma caricatura universal menos “oci-
tes da arquitetura clássica (cf. Chalumeau, 2009). dentalizada” que estrutura o conhecimento escolástico de modelo europeu, a uni-
Em contraste a essa valorização da metafísica imagética e em um tom meio versidade deve estar aberta para a alteridade, abandonando uma ótica civilizacional
cínico e pós-moderno, Harvey (2008, p. 39) destaca o fato de De Chirico haver per- (Nietzsche), em favor de uma ótica transcultural (Artaud). Assim, a resposta para a
dido o interesse pela experimentação modernista após a Primeira Guerra, classifi- universidade, bem como para a arte, é o pensamento visual através da etnopoesia
cando de “arte comercial com raízes na beleza clássica combinada com vigorosos enquanto universal antropológico. Hélio Oiticica (H.O.), artista experimental, trans-
cavalos e desenhos narcisistas de si mesmo vestido com roupas históricas” e desta- formou o sistema global e criou uma série sensorial de expressão artística com a
cando o fato de que tal pintura recebeu uma merecida aprovação de Mussolini. Se Tropicália, ambiente multissensorial e microcosmo poético.
os namoros da vanguarda futurista e mesmo do Surrealismo com os regimes tota- Divisão feita na formalidade da casa, com a ligação orgânica entre as diver-
litários é um fato notório, e se a vanguarda modernista pode ser representada pela sas áreas funcionais dentro do interno-externo “penetrável”, seu trabalho simboliza
inspiração surrealista e metafísica de De Chirico, o qual combina elementos clássicos um projeto ambiental com imagens de experiência máxima, criando um ambiente
e modernos para criar uma nova estética, pode-se considerar aqui o caso da univer- tropical com plantas, papagaios, seixos, areia e barracos das favelas onde, no final
sidade no seio de um diálogo transcultural. O Rio de Janeiro denomina de “escolas de um labirinto escuro, chega-se a um receptor de televisão que dá a impressão
de samba” suas instituições de carnaval. Assim, será possível que as academias de de “devorar” o espectador, indicando uma experiência de “antropofagização”. A ex-
ensino possam aprender algo de novo com as escolas de samba cariocas? Valorizan- periência transcultural de H.O. na favela da Mangueira pode ser assim descrita por
do sua identidade social e trabalhando com novas audiências, a fim de estabelecer Wally Salomão (2003):
uma compreensão madura entre seus participantes e para se renovar esteticamen-
Ele vagou durante todo o ano na colina conhecida pelo nome da planta,
te, as escolas de samba no Brasil expressam a criatividade que parece estar faltando coberta de cabanas, biroscas e bocas (...) Designer obcecado de territórios
na educação universitária tradicional (cf. Pinto & Silva, 1997). desconhecidos de exceção, pareceu ter uma atitude como a de Rimbaud.
A única diferença que eu vejo é que eu declaro que a favela da Mangueira
não era para ele uma caricatura da Abissínia como foi esta para Arthur
“fruição estética”, como descreveu Kant, de acordo com Bourdieu (2007 p. 89-90). Tal fruição estética resulta de dois Rimbaud, porque Rimbaud, por conta de sua negociação, foi para a África
elementos: o primeiro refere-se à autonomia do campo artístico, livre de restrições econômicas e políticas, a qual é dos escravos e se tornou silencioso como o deserto, silencioso como o
guiada pelos padrões da “arte pela arte”; e o segundo trata da ocupação do espectador no mundo social, no qual as Saara. A Mangueira, onde o samba é a madeira, disse que H.O. falou dela!
posições em que o fornecimento de “disposição pura” é capaz de dar livre curso ao “puro prazer” (ou a estética) que é
formado principalmente pela família e pela educação “escolástica”.
19. A influência do Cubismo na obra de Le Corbusier pode ser revelada em sua frase mais famosa: “A casa é uma má-
quina de morar”, que foi proferida com a intenção de utilizar a máquina como modelo da obra de arte, cuja forma e es-
trutura foram determinadas pelo próprio direito. Essa ideia é considerada uma metáfora para a “teoria da opacidade”
que foi aplicada à vanguarda estética, falando sobre a visão do Cubismo como algo “orgânico” que flui do interior para 20. A ação é expressiva como pura manifestação da obra na qual o artista representa a experiência visual em sua pureza
o exterior. Assim, o Cubismo foi o primeiro movimento artístico que queria pintar um “objeto” destacado daquele da no que se refere à experiência do toque, do movimento e do prazer sensual de materiais no corpo. Este é apenas limita-
pintura antiga (cf. Colquhoun, 2004, p. 159). do pelas fronteiras visuais, as quais são superadas como fonte de sensualidade total (cf. Favaretto, 1992).

122 Do kitsch à metafísica Dinah Papi Guimaraens 123


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Cosac&Naify, 2002.
quadro de referência é tanto o Construtivismo Soviético de Tatlin, Malevich, Rodchencko e
VENTURI, Robert. Complexity and Contradiction in Architecture. New York: The Museum of Lissitsky quanto as obras de Palladio, Vredeman de Vries, Piranesi, Schinkel e Wagner. A força
Modern Art, 1966.
dessa arquitetura mostra-se nos desenhos que, com um virtuosismo exemplar (ao contrário
WOLLFLIN, H. Conceitos Fundamentais da História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2000: daquele usado como uma ferramenta a serviço da representação da materialidade da ar-
1915.
quitetura) não esperam nada do mundo da realidade exterior e exploram corajosamente o
mundo interior da fantasia. São desenhos que tentam exprimir o inexprimível: traços da me-
mória ou do sonho do desenhista, explosões de temperamento e humor, provocações ao ob-
servador, quebra-cabeças, evocações vagas, metáforas urbanas, cenários fantásticos e irreais
ou gestos e teses filosóficas. Desenhos desse tipo (desenhos poéticos) se relacionam com o
seu referencial só em um sentido muito limitado. Eles não se propõem a apresentar apenas
informações, mas sim persuadir ou encantar o observador. Eles encaminham o observador
a penetrar no espaço optativo, em paisagens fantásticas, em discursos de significado aberto
e flutuante, muitas vezes com qualidades borgeanas; sendo sustentados pela mágica do in-
definível. As transferências e interpretações resultantes movem-se não somente nas práticas
do exercício e das aptidões técnicas, mas em todos os níveis possíveis. A diferença entre as
virtudes poéticas da arquitetura de papel e a mimese construtiva do desenho arquitetônico
é o ponto nevrálgico dessa reflexão.
Abstract | A consideration about the designs that shape the architecture of paper. This
architecture maintains the greatest imaginable distance of all that is merely functional, in-
vading the illusory field of aesthetics and dipping into the realm of pure fantasy. Its frame
of reference is the Soviet Constructivism of Tatlin, Malevich, Rodchencko and Lissitsky as the
works of Palladio, Vredeman de Vries, Piranesi, Schinkel and Wagner. The strength of this
architecture is shown in the drawings, with an exemplary virtuosity – unlike the one used
as a tool in the service of representing the materiality of architecture – expect nothing from
the world of external reality and boldly explore the inner world of fantasy. They are draw-
ings they attempt to express the inexpressible: traces of memory or dreams of the designer,
outbursts of temper and mood, teasing the viewer, puzzles, vague evocations, urban meta-
phors, fantastic and unreal scenarios or gestures and philosophical theses. Drawings of this

126 Do kitsch à metafísica Eduardo Mendes de Vasconcellos 127


type – poetic drawings – relate your reference only in a very limited sense. They are not in- le permite dar fin a su porfia.
tended to present only information but to persuade and delight the viewer. They forward the En el preciso instante de la muerte
viewer to enter the optional space in fantastic landscapes, in speeches open and fluctuating descubre que esa vasta algarabía
meaning, often with qualities Borgean; being supported by an indefinable magic. Transfers de líneas es la imagen de su cara.1
and interpretations resulting move not only of prowess and technical skills, but on all pos-
sible levels. The difference between the poetic virtues of paper arquiiteture and the mimesis
Um dia, durante o tempo do meu doutoramento em Londres, enquanto dis-
and constructive role of architectural design is the crux of this discussion.
traidamente garimpava livros na Triangle, uma livraria especializada em arquitetura,
fui surpreendido pelo conteúdo de um catálogo de exposição que apresentava a
Resumen | Una consideración de los diseños que dan forma a la arquitectura de papel. Esta
produção de alguns jovens arquitetos russos. Essa mostra não era na forma de uma
arquitectura mantiene la mayor distancia imaginable de todo lo que es meramente funciona,
produção arquitetônica à qual estamos habituados, já que não se materializava em
invadiendo el campo ilusorio de la estética y la inmersión en el reino de la pura fantasía. Su
objetos arquitetônicos ou fatos urbanos (não existiam fotografias de edifícios, nada
marco de referencia es el constructivismo soviético de Tatlin, Malevich, Rodchencko y Lissits-
mostrava reluzentes acabamentos em aço, nada dos graves e poderosos detalhes
ky como las obras de Palladio, Vredeman de Vries, Piranesi, Schinkel y Wagner. La fuerza de
em granito, nenhuma superfície reflexiva ou espelhada, nenhuma corajosa estru-
esta arquitectura se muestra en los dibujos, con un virtuosismo ejemplar – a diferencia de la
tura de concreto, nem mesmo o menor vestígio de forma construída). Construir,
que se utiliza como una herramienta al servicio de la representación de la materialidad de la
mesmo sendo certamente um desejo comum, não estava entre as grandes preo-
arquitectura – no esperar nada del mundo de la realidad externa y con valentía explorar el
cupações exibidas por aqueles arquitetos enigmáticos. O esforço deles era, numa
mundo interior de la fantasía. Son dibujos que tratan de expresar lo inexpresable: huellas de la
primeira leitura, aparentemente dirigido para os muitos artifícios e estratagemas
memoria o el sueño del diseñador, los estallidos de ira y el estado de ánimo, las burlas al espec-
da representação arquitetônica nas suas mais extraordinariamente obsessivas,
tador, rompecabezas, evocaciones vagas, metáforas urbanas, escenarios o gestos fantásticos e
ricas, maravilhosas, assombrosas, sedutoras, misteriosas e inumeráveis apresenta-
irreales y tesis filosóficas. Dibujos de este tipo – los dibujos poéticos – relacionan su referencia
ções; preciosos desenhos executados a lápis ou nanquim, aqui e ali realçados com
sólo en un sentido muy limitado. No tienen la intención de presentar solamente información,
lápis de cor; cores; pasteis; aquarelas; guaches; gravuras reembrandtescas em cobre
sino para persuadir y deleitar al espectador. Se remiten al espectador a entrar en el espacio
e ferro, insuportavelmente intrincadas; xeroxes; origamis de papel; desenhos com
opcional en paisajes fantásticos, en los discursos de significado abierto y fluctuante, a menu-
lápis de cor; xilogravuras; colagens; pinturas a óleo; fotocópias; fotolitos em off-set;
do con cualidades borgeanas; siendo apoyado por una magia indefinible. Las transferencias y
maquetes em arame, vidro, compensado, plexiglass e espelho; sgraffitos em linóleo;
las interpretaciones resultantes movimiento no sólo de las habilidades técnicas y de negocio,
serigrafias e monotipias. Em síntese, todos os ‘mídias’ possíveis para representar a
sino en todos los niveles posibles. La diferencia entre las virtudes poéticas de la arquiitectura
ideia arquitetônica. E isso era tudo. Representações. Utópicas representações arqui-
de papel e la mimesis constructiva del diseño arquitectónico real es el quid de esta discusión.
tetônicas que excluiam a construção, alegorias, narrativas, talvez um drama ou um
poema gráfico, porém nada de estático ou sólido, nada que se identificasse com o
mundo real:

…o caráter estético destas arquiteturas como coerência fictícia e uma


Ante la cal de una pared que nada ordem inventada de eventos é enfatizado. Esta arquitetura mantém a
maior distância imaginável de tudo o que é meramente funcional; como
nos veda imaginar como infinita
uma narrativa ela invade o domínio ilusório da estética e rejeita a iden-
un hombre se ha sentado e premedita
tidade da arte e da vida para alcançar o reino da fantasia pura. A revolta
trazar con rigurosa pincelada contra uma arquitetura de funcionalismos ignora qualquer apelo para a
en la blanca pared el mundo entero: sua realização e se volta para a imagem do sonho, a invenção cerebral.
puertas, balanzas, tártaros, jacintos,
ángeles, bibliotecas, laberintos,
anclas, Uxmal, el infinito, el cero.
Puebla de formas la pared. La suerte,
que de curiosos dones no es avara,
1. Jorge Luis Borges, La Suma, Los Conjurados, em Obra Poética, Buenos Aires, Kodama – Emecé, 2005, p: 599.

128 A arquitetura de papel: os desenhos sedutores Eduardo Mendes de Vasconcellos 129


Isso está muito além dos fatos. A arquitetura de papel é um exercício de características, suas dimensões, sua locação, sua forma, seus métodos construtivos,
sobrevivência da imaginação livre das injunções estilísticas. O seu quadro os materiais usados no seu acabamento etc., ou usando semelhanças representa-
de referência é tanto o construtivismo Soviético quanto as obras de Palla-
cionais ou signos convencionados. No entanto, tal desenho, mesmo ostensivamen-
dio, Piranesi, Schinkel e Loos. 2
te feito para comunicar fins, pode ser bem composto: em princípio ele pode ser
convertido para outras escalas, outras técnicas, outras cores e assim por diante;
A arquitetura de (ou em) papel é um conceito nascido da resistência e do podendo preencher os seus propósitos, em certas fases e contextos de trabalho,
amor. Resistência à ditadura das práticas arquitetônicas estabelecidas, ossificadas mesmo quando impreciso, pouco claro, inacabado. O desenho representa a mediú-
junto com a ideologia funcionalista de uma vanguarda anciã que luta para permane- nica exploração do lado sombrio da razão e, contraditoriamente, o cenário de uma
cer no poder; resistência a uma abrangente crise econômica que impede o exercício paisagem ideal onde o arquiteto acredita que será feliz. Tal desenho não existe pelo
democrático da arquitetura. Amor à arquitetura, à beleza da criação arquitetônica, valor de sua qualidade material, seu valor especial não está em si mesmo. Como ver-
à poiesis da forma, à possibilidade de infinitas mudanças, à realidade do múltiplo. dade teórica, o desenho se institui independentemente da arquitetura. Superior à
A paixão pela realidade do múltiplo é a matriz da fantasia. A fantasia se as- arquitetura por ser uma ficção, o desenho apresenta-se como teatro da aparição da
semelha à utopia em muitos aspectos, mas é mais abrangente, porque envolve linguagem. Essencialmente antiperspéticos, os desenhos reduzem-se, em sua fron-
inumeráveis visões do mundo apesar de, diferentemente da utopia, a fantasia não talidade, a uma rápida e nua metáfora da página, enquanto se referem à escritura
exigir, para nenhuma de suas visões, a chave para a solução dos urgentes problemas como sua autêntica estrutura e necessária memória. Nascido de uma premeditação
da humanidade. A utopia, como caracterizada na teoria e na prática da arquitetura intensa, mas ao mesmo tempo causado por um abandono ao automatismo e aos
européia dos séculos XIX e XX, nega o pluralismo, e um projeto utópico se baseia prazeres da obscuridade, os desenhos buscam libertar-se por todos os meios pos-
em uma percepção universal do espaço que resulta em uma possibilidade geral de síveis. Neles, a mais explícita subjetividade, através de seus excessos, transforma-se
realização; as condições espaciais específicas (geográficas, territoriais, humanas) in- na ausência do desenhador, a sua remoção e reclusão nos úmidos e sonoros sub-
fluenciam o projeto, entretanto não podem mudá-lo fundamentalmente, estando terrâneos da arquitetura. Absolvidos da datação e subtraídos ao abraço salvador e
radicalmente comprometida com a ilusão do idêntico. Por outro lado, a fantasia, destrutivo da natureza, os desenhos de arquitetura se desvinculam da dinâmica do
procedendo da realidade do múltiplo, da visão de um mundo pluralístico com infini- tempo e se arranjam em um tratado imutável. Da mesma forma rejeitam as dimen-
tas possibilidades para as condições espaciais da vida humana, propõe inumeráveis sões, submetendo-se àquela de uma liberação final em uma contemplação alarma-
tipologias fantástico-teatrais embricadas somente com os poderes da imaginação, da, em uma atenção que ambiciona a crueldade. O branco e o negro se constituem,
que são válidos tanto para uma locação proposta imaginariamente quanto para no papel, como a tradição da alternativa stendhaleana, separada pela afiada lâmina
uma acordada pela razão. do heroísmo: o negro é construção, aquilo que pode ser pesado, medido, visualiza-
As diferenças entre a utopia e a fantasia em relação às categorias temporais são do; o branco é a transparência que dissolve, corrói e marca.
análogas. O tempo da utopia é ou o eterno para sempre (como exemplificado pela Esta situação é diferente para aqueles desenhos que tentam exprimir o inex-
Jerusalém Celestial), ou uma era passada, como a da Idade do Ouro, ou o futuro dis- primível: traços da memória ou dos sonhos do desenhista, explosões de tempera-
tante, “que não possui uma reversibilidade lógica”3. A fantasia, sendo arbitrária, pode mento e humor, provocações ao observador, quebra-cabeças, evocações vagas,
aparecer ou desaparecer à vontade, e o seu tempo é igualmente o agora ou o nunca, metáforas urbanas, cenários fantásticos e irreais ou gestos e teses filosóficas. Dese-
regulado pela vontade humana e novamente pelo ilimitado poder da imaginação. nhos deste tipo (desenhos poéticos) se relacionam com o seu referencial só em um
Um desenho de arquitetura é, acima de tudo, um instrumento de informação. sentido muito limitado. Eles não se propõem a apresentar apenas informações, mas
O seu propósito é apresentar um depoimento sobre uma determinada estrutura a sim persuadir ou encantar o observador. Eles encaminham o observador a penetrar
ser construída, descrever – tão fielmente quanto for humanamente possível – suas no espaço optativo, em paisagens fantásticas, em discursos de significado aberto e
flutuante, muitas vezes, com qualidades borgeanas; sendo sustentados pela mágica
2. Heinrich Klotz, Preface. In: Paper Architecture– New Projects from the Soviet Union, Rizzoli, New York, 1990, p: 8.
3. A arquitetura de Papel, em toda a sua abrangência, poderia cobrir também a produção dos grupos Archigram, Archi-
do indefinível. As transferências e interpretações resultantes movem-se não somen-
zoom, Superstudio, Ziggurat, etc.; os desenhos teóricos de Franco Purini, Gaetano Pesce, Paolo Soleri, Massimo Scolari; te os do expediente e das aptidões técnicas, mas em todos os níveis possíveis. Este
ou mesmo, num viés peculiar, os desenhos de Mário Chiattone e Antonio Sant’Elia, assim como os de Eric Mendelsohn
ou os de Le Corbusier (as propostas da cidade de três milhões de habitantes, os planos de Buenos Aires, Montevidéu,
é o ponto nevrálgico da arquitetura de papel.
São Paulo, Rio de Janeiro e Argel); os desenhos visionários de Hugh Ferris e, mais recentemente, de Lebbeus Woods,
Sacha Brodsky e Ilia Utkin; ou também as composições construtivistas da vanguarda artística soviética.

130 A arquitetura de papel: os desenhos sedutores Eduardo Mendes de Vasconcellos 131


As dificuldades que enfrentamos em relação à representação e o significado, de que a instrumentalidade possa simplesmente produzir sua própria forma de re-
que são muitas vezes citados de maneira sumária como uma crise da representação, presentação simbólica. Como consequência, nós não apropriamos que ainda existe
não podem ser caracterizados como uma falta de representação e sentido, mas sim um espaço da experiência que contém um resíduo da autêntica representação. Esse
como deslocamento e confusão. O deslocamento aponta para um dilema entre a é o espaço ao qual nos referimos quando usamos a expressão ‘caráter’. O significado
monotonia e a esterilidade na área das edificações e para uma super abundância e e sentido profundo do ‘caráter’ está aparente só indiretamente, por exemplo, em
complexidade na área da situação4. O deslocamento levanta a questão do ser apro- nossa preocupação com um bom relacionamento entre o propósito e a aparência
priado, que sempre esteve integralmente presente no pensamento arquitetônico, de um edifício, ou em nosso cuidado com a escolha da estrutura e dos materiais de
quase sempre sob o título de ‘décor’. A confusão é parcialmente condicionada pelo acabamento em relação à natureza de uma edificação ou de um espaço em parti-
deslocamento, mas o seu resultado é primariamente resultante do pensamento mo- cular. O que a ‘presença da representação’ no ‘caráter’ realmente significa é obscu-
derno, com sua ênfase na tangibilidade e certeza no conhecimento. As consequên- recido e parcialmente perdido na versão introvertida e altamente personalizada do
cias culturais do pensamento moderno podem ser encontradas nas transformações ‘caráter’ apresentada contemporaneamente para nós. Mesmo assim não podemos
da representação simbólica em representação instrumental. ignorar o fato de que é o principal (senão o único) elo ainda preservado com a mais
As representações simbólicas e instrumentais estão quase sempre em confli- autêntica tradição da representação. É a essa tradição – que emerge vitoriosa no
to. Enquanto a primeira é conciliatória e serve como um veículo de entendimento século XVIII, quando se tornou pela primeira vez no conceito dominante do pensa-
participativo e de sentido abrangente, a última é agressiva e serve como um instru- mento arquitetônico – que o ‘caráter’ pertence. A noção de ‘caráter’ no século XVIII
mento da autonomia, dominação e controle. derivou largamente da retórica e dos tratados sobre a pintura da época7. O reno-
No pensamento instrumental, o problema da representação tende a ser redu- vado interesse na expressão individual e na fisionomia foi provavelmente um dos
zido à relação identificável entre a representação e aquilo que é representado. Isso principais motivos por trás do estudo do ‘caráter’, que por mais de um milênio havia
encaminha inevitavelmente para a duplicação da realidade e, como consequência, sido tratado como uma questão secundária. A introdução do conceito de ‘caráter’
para uma tautologia onde a representação torna-se sem sentido5. A crença em que no pensamento arquitetônico não foi, entretanto, sem problemas.
o edifício diante de nós está representado pela referência a alguma coisa que não é Um conceito que emergiu de um vasto domínio cultural abrangendo a ar-
presente não leva em consideração o simples fato de que o único modo possível que quitetura, a retórica, a poesia e a pintura estava carregado de significados que a
podemos experimentar a referência é através de uma situação onde não somente arquitetura sozinha não poderia prontamente absorver. A simplificação da forma
o edifício, mas também nós mesmos fazemos parte. Gadamer é particularmente barroca de representação foi uma primeira consequência. A estetização do ‘caráter’
sensitivo para esse problema quando argumenta: “É um preconceito objetivista de foi uma segunda. Isso fica claro no depoimento de Germain Boffrand, que pode até
enorme primitivismo que a nossa primeira pergunta seja – o que representa este de- ser tomado como uma definição do que é ‘caráter’:
senho? – claramente, isto é parte da nossa compreensão do desenho. Tanto quanto
A arquitetura, apesar de o seu objeto parecer ser apenas o uso daquilo
sejamos capazes de reconhecer o que é representado, o reconhecimento é um mo- que é material, é capaz de diferentes gêneros que servem para animar
mento da nossa percepção do que é representado”. Na representação simbólica, “o suas soluções básicas através dos diferentes caráteres que pode expressar.
simbólico não aponta simplesmente para um significado, mas permite que ele se Um edifício se expressa através de sua composição, como se em um palco,
apresente a si mesmo”. Em outras palavras, “o que é representado está presente da seja a cena pastoral ou cômica, seja ele um templo ou um palácio… é o
única maneira possível”6. mesmo com a poesia: ali também se encontram gêneros diferentes, e o
estilo de um não contradiz o estilo do outro. Horácio nos ensinou alguns
Na nossa usual compreensão da representação, estamos mais ou menos de-
excelentes princípios para este fenômeno em seu ‘A arte da poesia’. 8
satentos para tais diferenças e suas consequências. Isso é confirmado pela crença,
universal entre os arquitetos, de que a instrumentalidade pode ser reconciliada com
A ambição de submeter a metafísica tradicional e a poética da arquitetura
o simbolismo, de que um equilíbrio entre tais categorias possa ser estabelecido, ou
à estética do ‘caráter’ criou uma ilusão temporária de ordem que, a longo prazo,
7. O caráter era conhecido pelos gregos particularmente em sua relação com o ethos. O caráter exerceu um importante
4. Existe uma estreita relação com o dilema entre o esteticismo da produção e a abundância do consumo, um dilema papel na Retórica e na Poética de Aristóteles, e seu conceito foi desenvolvido mais explícitamente por Teofrasto em Os
exaustivamente discutido por W. Rombart, M. Weber, e mais recentemente por J. Baudrillard. Caráteres, tendo uma grande influência no desenvolvimento da retórica de Cícero e Quintiliano, assim como da poética
5. A arquitetura se manifesta somente através da forma construida, do objeto arquitetônico acabado. Será mesmo? de Horácio.
6. H. G. Gadamer, The Relevance of the Beautiful, Cambridge University Press, Cambridge, 1986, pp: 33/38. 8. G. Boffrand, Livre d’Architecture, Paris, 1745, p. 16.

132 A arquitetura de papel: os desenhos sedutores Eduardo Mendes de Vasconcellos 133


provou ser a base do relativismo, da arbitrariedade e da confusão. A estetização o antigo equivalente da ‘bienséance’, era a tal ponto complementado por contribui-
geral do ‘caráter’ tornou-o vulnerável às operações da taxonomia, em que se fez ções de fontes não arquitetônicas (poéticas e retóricas em particular)12 que o seu
possível o isolamento das manifestações individuais do ‘caráter’ do contexto da tra- tratamento, como encontrado na maioria dos tratados de arquitetura, pode ser visto
dição e das normas culturais estabelecidas. Isso já era evidente para Jacques Fran- como fornecendo somente uma pequena parte do seu verdadeiro significado. Isso
cois Blondel, que escreveu: “Apesar de tudo, pouco importa se nossos monumentos era verdadeiro desde a primeira discussão sobre ‘decor’, em Vitruvius.
se aparentem com arquiteturas passadas, antigas, góticas ou modernas, desde que Os argumentos de Vitruvius sobre ‘decor’, na única parte do seu texto que
eles possuam um efeito satisfatório e um caráter apropriado para cada diferente se refere explicitamente ao contexto representativo da arquitetura, continua como
gênero de edifício.”9 um componente isolado. ‘Decor’ é definido, esperançosamente, como um “conjunto
O conteúdo simbólico do ‘caráter’, que foi obscurecido no final do século XVIII perfeito de trabalho composto de acordo com o precedente (auctoritas) de detalhes
pela autonomia estética dos vários caráteres específicos – tableaux – era ainda ex- aprovados”13, e é baseado na convenção (statio), nos costumes (consuetudo) e nas
plícito nos primeiros conceitos de ‘convenance’ e ‘bienséance’. Ambos os termos circunstâncias naturais (natura)14. A relação entre ‘decorum’ e os outros princípios
são inerentes a uma tradição originada no conceito clássico do ‘decorum’, de quem arquitetônicos mencionados no texto (ordenatio, dispositio, eurithmia, simmetria,
são apenas equivalentes mais recentes. Em um de seus primeiros escritos, Blondel distributio) é obscura, se é que pode ser estabelecida. É característico que mesmo
menciona esta correspondência: “A conveniência (convenance) pode ser entendida quando essas relações são discutidas mais explicitamente, o significado qualitativo
como o mais essencial aspecto da edificação. Através dela o arquiteto assegura a do ‘decor’ é subordinado ao seu equivalente quantitativo ou a alguma outra catego-
dignidade e o caráter de um edifício. O que aqui entendemos por ‘convenance’ é ria (quase sempre com a simetria, a euritmia ou a distribuição)15.
reconhecido por Vitruvius como ‘bienséance’ (decorum).”10 A insuficiência da definição de Vitruvius torna-se aparente quando compara-
A diferença entre ‘convenance’ e ‘bienséance’ não é tão importante para este da com os significados filosóficos e retóricos de ‘decorum’. A comparação é legítima
argumento como o é a distância que os separa do conceito de ‘caráter’11. Em uma porque sabemos que foi de tais fontes que Vitruvius tomou empestado a maioria de
leitura desatenta dos textos do século XVIII, ‘caráter’, ‘convenance’ e ‘bienséance’ seus termos teóricos16.
muitas vezes aparentam ser sinônimos sem nenhuma diferença evidente entre eles.
Aquilo que em Latim é chamado ‘decorum’ (propriedade), em Grego é
Entretanto, existe uma diferença e ela é fundamental. Com o ‘caráter’ podemos dis- chamado de ‘prepon’. Tal é a sua natureza essencial que o conceito é in-
tinguir claramente a tendência do movimento em direção à superfície do edifício, separável da bondade moral, porque aquilo que é próprio é moralmente
de um interior ou de um jardim; em direção à experiência das aparências, enquanto certo, e o que é moralmente certo é próprio. A natureza da diferença entre
que, por meio da ‘convenance’ e da ‘bienséance’ existe uma tendência do movimen- a moralidade e aquilo que é próprio pode ser mais facilmente sentida do
to em direção à profundidade da realidade arquitetônica, em direção a uma ordem que explicada. Pois qualquer que seja a propriedade, ela é manifesta so-
mente quando preexiste a retitude moral.17
ainda compreendida em termos de ‘ethos’.
A mudança em direção ao ‘ethos’ trouxe a arquitetura para o território da
Com a transição desde o ‘decor’ e o‘decorum’ até o ‘prepon’, chegamos muito
cultura humanística, da qual até o século XVII foi uma parte invisível. A evidência da
perto da essência da cultura clássica grega, assim como à essência da representação.
proximidade entre a arquitetura e a cultura humanística pode ser observada pela
A tensão entre o significado ético e estético da representação que vimos no ‘caráter’
ênfase no ‘ethos’ da representação, e mais ainda pela ênfase no entendimento co-
e no ‘decor’ não existe em ‘prepon’. Somente aquilo que é bom pode ser próprio e,
municativo entre áreas individuais do conhecimento e da habilidade (arquitetura,
neste sentido, o que é moralmente bom não é nada mais do que um preenchimento
pintura, poesia, retórica, música, matemática, literatura, teatro, ciências naturais
harmonioso da natureza humana, que faz parte do belo, manifestado em particular
etc.). O problema da representação não pode ser discutido sob estas condições com
a mesma facilidade como seria possível sob o viés do ‘caráter’ e, num grau limitado,
sob a ótica da ‘convenance’ e da ‘bienséance’. O conceito de ‘decor’, historicamente 12. De particular importância era a tradição expressa em ‘ut pictura poiesis’. Ver R. W. Lee, Ut Pictura Poiesis – The
Humanist Theory of Painting, Mack Graw Hill, New York, 1987.
13. Vitruvius, De Architectura, 1. 2. 5.
9. J. F. Blondel, Cours d’Architecture, Vol I, Paris, 1771/ 1778, p. 318. 14. Vitruvius, op. cit., 1. 2. 5-7.
10. J. F. Blondel, L’Architecture Française, Vol II, Paris, 1752/ 1756, p. 22, nota ‘a’. 15. No livro VI, 2. 5., Vitruvius fala sobre o ajustamento da simetria às necessidades do ‘decor’.
11. Para uma discussão mais recente sobre o conceito de ‘convenance’ e ‘bienséance’, ver W. Szambien, Symmetrie, Gout, 16. J. J. Politt, The Ancient view of Greek Art, Yale University Press, Boston, 1974, p. 343.
Charactère, Plon, Paris, 1986. 17. Cícero, Orator, 72 e 73, Edição bilingue, Oxford University Press, Oxford, 1978.

134 A arquitetura de papel: os desenhos sedutores Eduardo Mendes de Vasconcellos 135


como ‘prepon’. Em sentido primário, ‘prepon’ pertence ao mundo das aparências, sig- nome que deveríamos chamar a todas as artes. Entretanto esta é a única
nificando apenas “ser visto claramente, ser conspícuo”. Em seu sentido maior, significa forma de arte que chamamos de poesia; e aos que a praticam, nós os cha-
mamos poetas.19
uma participação harmônica na ordem da realidade, a expressão visível da ordem.18
Essa expressão visível não se refere à mera imitação ou representação da
ordem que já nos é familiar. Ela sugere, entretanto, que a ordem é representada de A natureza ambígua da ‘poiesis’, claramente aparente neste diálogo, reflete
tal maneira que se torna conspícua, estando abundante e sensualmente presente. É uma ambiguidade mais profunda, característica da época em que pela primeira
óbvio que este tipo de representação não é diferente da ‘mimesis’, ‘prepon’ (conve- vez a tradicional cultura oral torna-se literária e, mais ainda, também pela primeira
niência) por si mesmo não é uma representação, mas é uma condição e um critério vez, filosófica. Alguns dos conceitos tradicionais tais como ‘poiesis’ e ‘mimesis’, por
decisivo da autenticidade e verdade da representação. É neste sentido que ‘prepon’ exemplo, tornaram-se objetos de novas interpretações filosóficas, que produziram
pertence ao mundo da representação e da ‘mimesis’. Esse significado particular de valiosas percepções, assim como conclusões problemáticas e unilaterais. Uma das
‘prepon’ foi bastante preservado na tradição do ‘decorum’ na poética e na retórica, mais particularmente desafortunadas foi a que criou a distinção entre artes mimé-
mas foi praticamente perdido no conceito vitruviano de ‘decorum’. Não é difícil de- ticas e não miméticas, em parte porque foi formulada de uma maneira polêmica,
monstrar que a maioria das possibilidades de representação entre a era clássica e o sendo por isso unilateral; e parte porque teve a mais trágica influência no posterior
fim do Barroco foi desenvolvida em torno do princípio do ‘decorum’, mais do que do entendimento do conceito de ‘mimesis’ e da representação em geral. Essas são algu-
‘decor’. Muito pouco foi o que pode ser construído sobre o conceito do ‘decor’ por mas das razões porque eu escolhi como referência seminal a Poética de Aristóteles,
si mesmo. E isto nos remete à desagradável, porém inevitável conclusão de que a em que a interpretação de ‘mimesis’ é menos parcial e, mais importante, ainda ba-
doutrina vitruviana do ‘decor’ é mais um obstáculo do que uma ajuda para qualquer seada numa tradição pré-filosófica.
entendimento genuíno da questão da representação. O fato de a arquitetura não ser discutida explicitamente no texto não é sig-
O segundo e mais formidável obstáculo é a apresentação distorcida e parcial nificativo e não deve ser motivo para nossa preocupação. O papel da ‘mimesis’ e da
do conceito de ‘mimesis’ na tradição platônica. Este é um obstáculo que ainda te- ‘praxis’ humana, a formação do ‘mitos’ poético e da natureza da representação são
remos que ultrapassar. A relação entre ‘prepon’ e a representação mimética revela discutidos no texto, constituindo uma eficiente corroboração para os meus propó-
o quanto a representação arquitetônica é próxima da ‘mimesis’. Ao mesmo tempo, sitos. No entendimento da representação baseado no conceito de ‘prepon’, como já
nós não consideramos que a arquitetura seja uma arte mimética. Isso se relaciona foi visto, a arquitetura – além de ser uma arte (‘tekne’) por suas próprias qualidades
com a bem estabelecida tradição em que a mimesis arquitetônica foi reduzida à – está profundamente imersa no ethos da vida, assim como está também ligada es-
imitação de precedentes reificados (a cabana primitiva, o templo Salomônico, edifí- treitamente com as outras artes, particularmente com a pintura e a poesia20. Tanto a
cios exemplares etc.) ou a conceitos generalizados tais como ‘imitação da natureza’. pintura quanto a poesia são discutidas explicitamente no texto que, como Aristóte-
‘Mimesis’ não é a mesma coisa que imitação. No pensamento clássico a ‘mimesis’ les argumenta claramente no começo, não trata de artes individualmente, mas sim
era compreendida como uma forma particular da ‘poiesis’. A afinidade entre a ar- da ‘poiesis’ (‘poietikes autes’)21. A ‘poiesis’, que encontra seu apogeu na ‘mimesis’ está
quitetura e as artes, e o papel da ‘poiesis-mimesis’ como o seu terreno comum em também por trás da bem conhecida definição do mundo da arte como uma ‘mime-
potencial estão questionados de uma maneira provocativa no Simposion de Platão: sis ton praxis’, por Aristóteles. “E é principalmente porque uma peça é uma repre-
sentação (‘mimesis’) da ação (‘praxis’) que é também por esta razão que representa
Você irá concordar que, no verdadeiro sentido da palavra, existe mais de alguém fazendo ou experimentando alguma coisa (‘prattontes’)22. O que é a ‘praxis’?
um tipo de poesia – quer dizer, dando existência a alguma coisa que antes
Em termos genéricos, é viver e agir de acordo com princípios éticos. Para um entendi-
não existia, de tal forma que todo o tipo de criação artística é poesia e
mento mais específico, é melhor que vejamos a ‘praxis’ não como uma situação onde
todo o artista é um poeta.
as pessoas estão somente fazendo ou experimentando alguma coisa, mas que essa
É verdade.
situação também inclua coisas que contribuam para a plenitude da vida.
Mas nós não chamamos todos os artistas de poetas, chamamos? Nós
damos diferentes nomes para as várias artes, e somente chamamos a
aquela particular forma de arte que lida com a música e a métrica pelo 19. Platão, Symposium, 205/206.
20. Ver nota 11.
21. Aristóteles, Poética, 1447 a.
18. Platão, Greater Hippias, 229 e. 22. Aristóteles, Poética, 1450 b.

136 A arquitetura de papel: os desenhos sedutores Eduardo Mendes de Vasconcellos 137


As situações representam uma das mais complexas maneiras de entendimen- como dos eventos que sedimentam um significado neles mesmos, não somente
to da condição de nossas experiências do mundo que nos circunscreve assim como como resíduos ou como sobrevivências, mas como um convite para um desenrolar
das qualidades humanas desse mundo. As situações também proporcionam dura- de experiências futuras. Este aspecto receptivo das situações é quase sempre pré-
bilidade à experiência, em relação à qual as outras diferentes experiências podem -reflexivo e sinestésico. Não existem diferenças claras entre os fenômenos visuais,
adquirir um sentido e formar uma memória e uma história. A dimensão temporal auditivos ou táteis, isto se constituindo numa importante condição para a existên-
faz com que os processos de diferenciação e estabilização das situações tornem-se cia das metáforas. É quase sempre devido à estrutura metafórica das situações e,
mais compreensíveis. Quanto mais nos aprofundamos na história, mais as situações mais especificamente, devido à natureza mimética das metáforas que se formam os
dividem os seus precedentes comuns, até atingirmos o nível do mito, que é a sua paradigmas; paradigmas que representam um papel não somente sintético, como
última fundação compreensível. O mito é a dimensão da cultura que abre o caminho também receptivo. A unidade do espaço barroco, por exemplo, é estabelecido pela
para uma unidade da nossa experiência e para a unidade do nosso mundo. Em sua estrutura metafórica do espaço, que tem a capacidade característica de manter
essência, o mito é uma interpretação de símbolos primários que são formados es- juntas as diferentes artes e, ao mesmo tempo, satisfazer todas as condições da vida
pontaneamente, e que preservam a nossa memória de nossos primeiros encontros prática: ‘decorum’ e ‘ethos’.
com a condição cósmica da existência. A persistência dos símbolos primários, par- O fato de que a síntese de uma situação seja consumada quase sempre atra-
ticularmente no território da arquitetura, contribui decisivamente na formação dos vés das metáforas da linguagem não precisa ser enfatizado. O que, por outro lado,
símbolos secundários e, finalmente, para a formação de situações paradigmáticas. A deve ser enfatizado é o papel da metáfora nos gestos significantes, nos rituais, no
natureza dessas situações é similar à natureza dos fenômenos descritos em diferen- drama e, mais ainda, na imaginação espacial na escultura, na pintura ou literatu-
tes terminologias como instituições, estruturas profundas ou arquétipos. ra como uma contribuição complementar para o papel sintético da linguagem. A
O papel da estrutura paradigmática de uma situação especial é comparável natureza do relacionamento existente entre a linguagem, a metáfora e a situação
ao papel do ‘mithos’ poético em um poema. Ambos têm o poder de organizar even- espacial é melhor ilustrada pelo desenvolvimento do drama antigo.
tos individuais e elementos da ‘praxis’ em uma síntese e dá-los um sentido mais uni- A linguagem do drama tem a sua origem no canto do ‘corus’, e o ‘corus’ por
versal. A formação de um mito poético ou paradigma representa somente a metade sua vez emergiu da unidade ritual entre lugar e evento. A palavra corus refere-se não
do ciclo criativo, de que a interpretação inovadora do mito poético ou paradigma é somente ao grupo de dançarinos e cantores, mas também ao palco da dança, tem
a segunda metade. Isto é claramente o significado deste argumento de Aristóteles uma etimologia comum; Tanto corus e cora referem-se à mesma situação do ‘vir a
(Poética): “O poeta não deve ser um criador de versos, mas sim de mitos, já que ele é ser’, do tornar-se, criação e renascimento. A dimensão do lugar (espaço) na dança
um poeta em virtude de sua ‘mimesis’, sendo a ‘praxis’ aquilo que ele imita.”23 mimética torna-se mais clara se nos recordarmos que ela não se refere somente à
A posição proeminente que damos ao mito poético ilustra o quanto é impor- dança dos dançarinos, mas também à dança das estrelas, que representam as regu-
tante o conteúdo da representação no processo criativo, e assim até que ponto o laridades matemáticas e as proporções da ordem cósmica.
mito poético “é o primeiro princípio e, desta maneira, a verdadeira alma da tragédia. É também devido à possibilidade metafórica da linguagem que foi possí-
O caráter vem em segundo. Em pintura isso se repete da mesma maneira.”24 Será vel relacionar a experiência de simples movimentos e rituais com a experiência de
que não acontece a mesma coisa em arquitetura? Caso não aconteça, como podem ritmo, regularidades e conceitos. A linguagem transforma-se no meio onde os para-
a pintura e a arquitetura encontrar-se? digmas mais abstratos do processo criativo (‘poiesis’) podem ser formados. Os para-
Nos espaços barrocos e maneiristas, por exemplo, a relação entre pintura e digmas conceituais tornaram-se depois uma fonte da tensão e conflito com o mito
arquitetura está baseada até certo ponto no conteúdo, no decor e no sentido geral poético tradicional. O papel poético do mito foi assim desafiado pela primeira vez
que critérios formais tais como a perspectiva, as ilusões óticas ou a composição ge- durante o período da cultura orientada filosoficamente, e principalmente durante
nérica não nos ajudam a compreender. Qual então será o território onde a arquitetu- o Iluminismo grego do século V ac. O passo que produziu o efeito mais duradouro
ra, a arte e a vida prática podem encontrar-se de uma maneira que constituam uma foi a filosofia da ‘poiesis’ em Platão, formulada em resposta a esta crise, completa-
unidade significativa? Quando discutimos acima a natureza das situações, enfatiza- mente consciente da especificidade do conflito entre ‘poiesis’ e filosofia– em outras
mos seu papel sintético e a sua capacidade de estruturação da experiência, assim palavras, consciente de que “existe há muito tempo uma disputa entre a filosofia e a
poesia”25. Nesta situação, a mais decisiva contribuição para a transformação do mito
23. Aristóteles, Poética, 1451 b. 10.
24. Aristóteles, Poética, 1450 b. 21. 25. Platão, Republic, 607 b.

138 A arquitetura de papel: os desenhos sedutores Eduardo Mendes de Vasconcellos 139


poético tradicional em um sofisticado paradigma que tinha o poder de preservar, objeto da ciência da percepção ou estética.”28 A palavra estética, que foi usada aqui
não somente a verdade da poesia, mas também a verdade do mito tradicional no pela primeira vez como uma referência a uma disciplina do conhecimento, perten-
confronto com a verdade filosófica foi a de Platão. Desta nova posição, a confiança ce, como argumentado em outro ponto, ao domínio da representação instrumen-
com que ele discursa aos poetas tradicionais não era inteiramente injustificada. tal. 29 No domínio da representação instrumental, a arte não está somente sujeita
aos critérios da ciência, mas como consequência está também separada da ética, e
Respeitáveis visitantes, somos nós mesmos os autores de uma tragédia, a
melhor e mais bela que soubemos fazer. De fato, toda a nossa trajetória
isso, como já foi visto, transforma-se na principal origem da ‘crise da representação’.
foi construída como uma dramatização de vida nobre e perfeita; o que Enquanto o primeiro confronto entre a poesia e a filosofia resultou numa reconci-
acreditamos ser a mais real das tragédias. Assim vocês são poetas, e nós liação, o segundo confronto, que ocorreu entre a poesia e a ciência, resultou em
também o somos, no mesmo estilo, artistas rivais e atores rivais, partici- uma subordinação, onde a poesia tornou-se uma forma inferior de conhecimento
pantes do melhor de todos os dramas, um que somente pode ser produzi- (Gnosiologia inferior). No entanto, esta não é a última palavra e, certamente, muito
do por um código de leis verdadeiras – ao menos esta é a nossa fé. 26
menos será o fim do debate. O paradigma poético da arte está ainda presente no
fundo da nossa cultura. Isto é bem demonstrado por suas manifestações através
Esta passagem representa o clímax do argumento em um dos seus últimos
do Romantismo, do Simbolismo e do Surrealismo – e agora na arquitetura de (em)
diálogos. Ela mostra como se estabeleceu o conflito entre a poesia e a filosofia e
papel, que originou esta reflexão – onde “toda obra de arte sempre parece ser uma
como esse conflito pode ser resolvido dentro do contexto da trajetória ‘polithia’, a
coisa como tinha sido anteriormente tanto quanto a sua existência a ilumine e ateste
mais realizada situação espacial que conhecemos. O que é, neste caso, a diferença
a ordem como um todo. Talvez esta ordem não seja uma que possamos harmonizar
entre mito poético e o paradigma situacional? Em termos de conteúdo e significa-
com nossas particulares noções de ordem, mas sim aquela que uma vez uniu as
do da representação, existe uma óbvia diferença relacionada com as características
coisas familiares de um mundo familiar”30. É encorajador perceber que a presença
específicas de cada arte em particular. Mas em termos das suas naturezas, essa dife-
do paradigma poético é reconhecida não somente pelos humanistas ou pelos ar-
rença é negligenciável até tal ponto que podemos justificavelmente falar dos mitos
tistas, mas também pelos cientistas contemporâneos. W. Heisenberg refere-se a ele
poéticos como sendo a alma de todas as artes criativas, inclusive a arquitetura.
quando argumenta sobre a linguagem ainda ligada aos fenômenos, ou quando fala
Esta conclusão demonstra também que a arquitetura, como muitas outras
sobre o ‘um’ que é somente outro nome para o papel unificador da praxis.
artes, é uma representação da ‘praxis’ humana, e não uma representação da natu-
reza ou das ideias. A ‘praxis’ está sempre situada entre a natureza e as ideias e serve Em último caso, até a ciência pode apoiar-se sobre a linguagem ordinária,
como veículo desta unidade. Foi somente muito tempo depois que o paradigma já que ela é a única linguagem na qual podemos estar seguros de real-
mente elaborar os fenômenos… a linguagem das semelhanças e das ima-
poético foi substituído pela ‘ideia conceitual’, e como consequência a imitação de
gens é provavelmente o único caminho de aproximação para o “um” à
ideias foi complementada pela imitação da natureza (idealismo, naturalismo). Esta partir de casos mais gerais. Se a harmonia em uma sociedade apoia-se
dicotomia foi uma característica do helenismo, do maneirismo e do século XVIII, mas numa interpretação comum do “um”, o princípio unitário por trás do fe-
não era um ponto crítico antes do fim do Barroco. A natureza do paradigma poético nômeno, então a linguagem da poesia pode ser mais importante aqui do
tornou-se o sujeito de uma nova interpretação crítica na tentativa da formulação que a linguagem da ciência.31
de um equivalente racional da poética tradicional. Esta tentativa bastante infeliz foi
descrita da maneira mais lúcida no trabalho de A. G. Baumgarten em um conjunto Londres, 1993 / Rio das Ostras 2014.
de definições simples, como se seguem: “Por poema entendemos um discurso sen-
sato e perfeito; por poética, o conjunto de regras das quais depende o poema; por
poética filosófica, a ciência da poética.”27 A natureza da nova ciência da poética é de-
finida na última parte do texto como uma ciência da percepção: “As coisas conheci-
das devem ser conhecidas por uma inteligência superior como um objeto da lógica;
as coisas percebidas devem ser conhecidas por uma inteligência inferior como o 28. A. G. Baumgarten, op. cit., parágrafo 116.
29. Sobre este assunto, ver Dalibor Vesely, Architecture and the Conflict of Representation.
In: AA Files, nº 8, Architectural Association Editions, London, 1985.
26. Platão, Laws, 817 b. 30. H. G. Gadamer, op. cit., pp: 103.
27. A. G. Baumgarten, Meditationes Philosophicæ de Nonullis ad Poema Pertinentibus, Halle, 1735, parágrafo 9. 31. W. Heisenberg, Across the Frontiers, Keegan Paul, New York, 1974, p. 120 – 121.

140 A arquitetura de papel: os desenhos sedutores Eduardo Mendes de Vasconcellos 141


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ampla escala na cidade. Propõe uma abordagem para identificar os efeitos da forma arquite-
SZAMBIEN, W. Symmetrie, Gout, Charactère. Paris: Plon, 1986.
tônica, de modo a distingui-los dos efeitos de outros aspectos da estrutura urbana como a
VASARI, Giorgio. Abrége de la Vie des plus Fameux Peintres (4 vols). Paris: De Bure l’Ainé, 1762. acessibilidade, e verificar de fato sua existência e, se confirmada, sua extensão. A abordagem
VESELY, Dalibor. Architecture and the Conflict of Representation. AA Files, nº8. London: é aplicada em um estudo empírico em 24 áreas no Rio de Janeiro. Finalmente, o artigo lança
Architectural Association Editions, 1985. os fundamentos de uma teoria probabilística dos efeitos da arquitetura que visa contribuir
VITRUVIUS, M. P. Lês Dix Livres D’Architecture. Paris: Pierre Mardaga, 1979. para uma resposta mais precisa a uma questão que captura a imaginação espacial: o quanto
a arquitetura importa para a vitalidade urbana?
Abstract | From Jacobs’ seminal insights to recent works in urban economics, one of the
most emphasized – and least closely examined – notions in urban studies is the role of ar-
chitectural and urban form in the “vitality” of our cities, a set of social and microeconomic
qualities. However, can buildings really affect their urban surroundings? Would distinct
architectural morphologies have distinct effects over local socioeconomic processes? The
paper unfolds a theory of tensions between built forms manifested upon the body, as a con-
dition for co-presence and social activity in urban space as local socioeconomic factors with
potential large scale effects in the city. It advances an approach able to identify precisely
the existence and extension of effects of architectural morphology on local socioeconomic
processes, with potential large-scale effects, in a way to disentangle them from the effects
of urban structures such as the street network. We apply the approach in an empirical study
in twenty-four areas in Rio de Janeiro. Finally, the paper establishes the grounds for a proba-

1. Este texto é uma versão reduzida do artigo publicado em Netto, Vargas e Saboya (2012). Para a versão integral, veja
http://www2.pucpr.br/reol/index.php/urbe?dd1=7400&dd99=view

142 A arquitetura de papel: os desenhos sedutores Vinicius M.Netto | Julio Celso Vargas | Renato Saboya 143
bilistic theory of the social effects of architecture, an approach proposed to help answer- ciado ao tema da interatividade e inovação, enfatizado recentemente na economia
ing more precisely a question that puzzles the spatial imagination: how does architecture urbana – de modo contraditório – por Glaeser (2010), Gordon e Ikeda (2011) e Florida
matter to urban vitality? (2012). 2
Resumen | Una de las ideas más centrales y tal vez más claras en arquitectura y estudios Entretanto, teria a forma da edificação algum papel na vitalidade? Ou, mais es-
urbanos – sobre todo desde el trabajo seminal de Jacobs hasta los recientes énfasis de la pecificamente, teriam morfologias arquitetônicas distintas efeitos também distintos
economía urbana – habla sobre el papel de la forma arquitectónica en la “vitalidad urbana”, sobre o que ocorre nos espaços públicos? Se há tal influência, qual sua extensão? O
un conjunto de cualidades sociales y microeconómicas de nuestras ciudades. Sin embar- quanto a arquitetura impacta seus entornos urbanos?
go, ¿Los edificios pueden realmente afectar a su entorno urbano? ¿Distintas morfologías O presente trabalho desenvolve uma abordagem para identificar os efeitos
arquitectónicas tendrían también efectos diferentes sobre lo que ocurre en los espacios da forma arquitetônica sobre processos socioeconômicos locais com implicações de
públicos? El articulo explora la tensión entre formas construidas manifestadas fundamental- ampla escala – de modo a distingui-los dos efeitos de outros aspectos da estrutura
mente sobre el cuerpo, como condición para la copresencia y actividad social en el espacio urbana como o sistema viário, e verificar de fato sua existência e extensão.
urbano – dinámicas locales con implicaciones de amplias escalas en la ciudad. Propone un Entender os impactos de diferentes morfologias arquitetônicas sobre a vita-
abordaje para identificar los efectos de la forma arquitectónica, de modo que se distingan lidade de entornos urbanos significa entender as implicações entre essa morfologia
de los efectos de otros aspectos de la estructura urbana, como accesibilidad, verificar su e dinâmicas mais amplas. Está no cerne de uma definição mais precisa e consistente
existencia y, si se confirma, su extensión. El abordaje se aplica en un estudio empírico de 24 do termo “sustentabilidade urbana”. Essa preocupação ganha maior sentido no con-
aéreas de Rio de Janeiro. Por último, el artículo establece las bases para una teoría probabi- texto brasileiro, uma vez que podemos observar em nossas cidades a reprodução
lística de los efectos de la arquitectura, un enfoque propuesto para ayudar a responder con de tipos de arquitetura e padrões de urbanização fixados por modelos espaciais e
mayor precisión a una pregunta que captura la imaginación espacial: ¿cómo la arquitectura preceitos de produção imobiliária, a partir de critérios usualmente limitados à otimi-
importa a la vitalidad urbana? zação dos processos construtivos e sua rentabilidade.
Há, entretanto, desconhecimento da real extensão das possíveis influências
da tipologia e configurações urbanas sobre as condições da apropriação social do
Introdução espaço. Gravemente, temos observado ainda uma dissolução do tecido urbano em
cidades brasileiras – uma substituição progressiva de tipos de edifícios tradicionais
por um tipo predominante no mercado de produção, de ligações mais frágeis com
...há dois tipos de densidade [...] A “densidade crua” é encontrada em
o espaço público. Essa crescente rarefação urbana, suspeita-se, seria acompanhada
áreas repletas de edifícios mais e mais altos que, sozinhos, não geram
inovação ou desenvolvimento econômico. Diferentemente, a “densida- do aumento das distâncias intraurbanas, diluição do movimento de pedestres e da
de Jacobs” estimula a interação ao nível da rua e amplia o potencial de vida microeconômica local, problemas de segurança pública e novas formas de se-
contato informal entre pessoas em espaços públicos a qualquer momen- gregação socioespacial.
to. Ela torna encontros e a construção de redes [sociais] mais prováveis. Buscamos examinar se a dissolução do tecido urbano implicaria em uma dis-
(Richard Florida, For creative cities, the sky has its limits, 2012). solução da apropriação do espaço público – e retornar a uma questão que tem cap-
turado a imaginação arquitetônica e urbana: o quanto a arquitetura importa para a
Uma das ideias mais centrais e talvez menos esclarecidas em arquitetura e nos vitalidade urbana?
estudos urbanos diz respeito ao papel da forma arquitetônica e urbana na “vitalida-
de” de nossas cidades. A vitalidade dos espaços urbanos é um fenômeno que vem
sendo abordado com ênfase, sobretudo desde o trabalho seminal de Jane Jacobs
(2000 [1961]). Um número de autores se dedicou a refletir sobre quais aspectos das
edificações e dos espaços públicos teriam a capacidade de estimular vitalidade, en-
tendida como um conjunto de condições encontradas em espaços em que há inten-
sa presença de pessoas nas ruas, grupos em interação e trocas microeconômicas. O
2. Embora todos esses autores concordem sobre a importância da densidade, Glaeser afirma que a verticalização é o
papel das densidades e da forma urbana retorna agora à atenção, sobretudo asso- fator chave de cidades interativas e criativas, o que os estudos empíricos de Gordon e Ikeda apontam como não sendo
o caso: apoiados por Florida, insistem no papel das densidades horizontais que chamam “jacobianas”.

144 (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica Vinicius M.Netto | Julio Celso Vargas | Renato Saboya 145
Vitalidade urbana como efeito da demonstrável empiricamente. 4 É o que buscamos fazer neste trabalho: desenvolver
um caminho teórico e metodológico para verificar se há e, em caso positivo, qual a
morfologia arquitetônica
extensão dos efeitos da morfologia edificada sobre o que ocorre em seus entornos.
Uma nota sobre a definição de “efeitos” e “vitalidade urbana”, o recorte social
A possibilidade da arquitetura ter efeitos refere-se aos impactos da edificação
e espacial e a metodologia aqui adotados. A possibilidade e natureza dos efeitos
para além do estético e perceptivo – sobre as ações que ocorrem fora do seu períme-
sociais da arquitetura são temas mais intuídos que problematizados explicitamente.
tro, mas atreladas a ela, tais como o movimento e acesso a atividades, a intensidade
São de longe menos tematizados que os aspectos estéticos. Sua captura é difícil:
variada de apropriação do espaço público e a densidade de encontros no âmbito da
terminam rejeitados em interpretações pejorativas como sendo “subjetivos” (e, por-
rua. Esses fenômenos são ancorados na interface espaço aberto-construído, entre a
tanto, supostamente descartáveis quando conveniente) quando na verdade se re-
pele do edifício e a rua. São componentes elementares na relação espaço urbano-vida
ferem a fatores que envolvem as pessoas em suas interações mediadas pelo espaço
social, no status do espaço como condição para a produção dos fatores basilares da
e não apenas suas percepções. Por envolver o que ocorre fora de nossas mentes,
vida social. Ao envolver encontros no espaço público e a possibilidade de acesso ao
podemos, contudo, reconhecer seus traços, evidenciar sua existência. É o que de-
espaço construído, essa relação envolve também potencial de comunicação e a consti-
sejamos fazer neste trabalho. Mas precisamos capturar esses traços do modo mais
tuição de trocas sociais, políticas e microeconômicas que se manifestam localmente.3
direto possível – e mostrar objetivamente sua importância. Usaremos um caminho
As relações entre ação, espaço público aberto, espaço interno da edificação
estatístico para tentar reconhecer os efeitos da arquitetura, na forma de possíveis
e as atividades que esta abriga consistem na verdade na ponta visível de uma rede
regularidades das coincidências entre fatores espaciais e sociais presentes em áreas
de alta complexidade, conectada a uma infinidade de atores cujas ações são reali-
urbanas e diferentes cidades e contextos.
zadas em outros lugares e tempos – uma rede de ações e circulação de informação
Aqui reside um primeiro mal-entendido frequente no campo dos estudos
e artefatos que se completa no momento da interação e troca final no interior da
arquitetônicos e urbanos: o entendimento da análise “quantitativa” de fenômenos
arquitetura e na sua relação com oscanais do espaço público. A escala do edifício
como uma redução do simbólico e experiencial, o descarte de tudo o que não é
e suas imediatas relações em complexos urbanos colocam-se por extensão como
visível e mensurável como não existente ou irrelevante – uma visão dessa análise
uma das forças estruturantes da cidade, sobre as quais as relações macroscópicas
como menos “humana” que, digamos, os métodos interpretativos ou “qualitativos.”
tornam-se reconhecíveis e onde dinâmicas cotidianas reproduzem processos sociais
Na verdade, a análise estatística é tão humana quanto uma interpretação subjeti-
e microeconômicos geograficamente mais amplos.
va. Nem mais, nem menos. Mas ela tem especificidades: é útil para lidarmos com
A atenção a essa escala da constituição das estruturas urbanas e seus impac-
duas coisas com as quais temos natural dificuldade usando palavras. A linguagem
tos não é exatamente nova. Jacobs (2000) já atentava para a importância dos ele-
discursiva é poderosa para definir significados conotativos e denotativos, mas seu
mentos de “constituição”, os componentes da forma arquitetônica diretamente liga-
léxico é surpreendentemente pequeno e impreciso para lidar com o problema das
dos à rua, como aberturas e fachadas. Gehl (2011) defende a conexão visual e física
intensidades (palavras como “muito”, “pouco”, etc. são muito vagas). A natureza
entre edificação e espaço público através de espaços de transição. Aborda também
sequencial da fala e escrita ainda nos coloca dificuldades para capturar cognitiva-
a posição da edificação no lote, diferenciando edificações afastadas das ruas da-
mente as teias de relações em fenômenos complexos como cidades, onde aspectos
quelas diretamente conectadas a elas. No Brasil, a atenção a essa problemática tem
e eventos influenciam outros em várias direções, de modo sincrônico (ocorrem ao
aparecido sob forma de observações empíricas como a relação entre ocasiões de
mesmo tempo), processual (transcorrem no tempo) e em lugares distintos – tramas
contato face a face, o uso de grades e a distância entre a casa e a rua em Santos,
impossíveis de serem descritas discursivamente. Precisamos do complemento de
Vogel e Mello (1985). Holanda (2002) aponta a ligaçãoentre o número de portas
outras linguagens para incorporar completamente o problema das intensidades e
voltadas para o espaço público e a relação fachada-rua necessária à sua animação.
das relações – sob pena de não entendermos a riqueza e a extensão das relações
Vargas (2003) trata da forma do quarteirão e ruas de alta centralidade como fatores
entre espaço e prática social.
de vitalidade, ao passo que o papel do tipo e seus efeitos sociais sobre o entorno são
conceituados em Netto (2006). Entretanto, essas leituras do papel da forma arqui-
tetônica-urbana não formulam o problema em um enunciado teórico sistemático e 4. A ideia de que a arquitetura tenha impactos sociais, apesar de vista em certos autores menos ou mais sistematica-
mente, não é um pressuposto no campo: a ênfase na prática e no ensino segue nos aspectos da funcionalidade interna
e estética externa. De fato, não temos verificação empírica dessa relação e sua extensão, com exceção ao nível das
3. Veja Netto (2013). densidades de trabalhos como de Gordon e Ikeda (2011).

146 (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica Vinicius M.Netto | Julio Celso Vargas | Renato Saboya 147
Buscaremos estudar a vitalidade urbana em um recorte específico. Esse re- Agora uma nota sobre o recorte espacial. Reconhecemos que a vitalidade
corte não incluirá nesse momento as formas de sociabilidade em si, mas aspectos urbana inclui formas de interação e proximidade entre atores e geração de comu-
sociais anteriores a elas, que as subjazem: a presença dos corpos no espaço urbano. nidades que certamente podem se manifestar mesmo em espaços de diferentes
Reconhecemos que a riqueza das particularidades simbólicas, seus aspectos inter- formas e tipologias, como os subúrbios e os espaços rurais. Focaremos, entretanto,
pretativos, as formas de relacionamento e afetos serão dimensões da vitalidade. em áreas urbanas com a presença (não exclusiva) de tipologias arquitetônicas mul-
Entretanto, essas dimensões estão além do foco jacobiano do presente trabalho, tifamiliares, analisadas em diferentes níveis de densidade – de modo a evitarmos
ligado, sobretudo, ao problema das intensidades da copresença no espaço urbano morfologias e tipologias radicalmente diferentes.
como condição para produção das interações sociais e microeconômicas – dinâmicas
que só podem emergir quando há intensidades mínimas de presença humana e que
têm a diversidade como consequência. Queremos destacar que a dimensão das in-
Identificando diferenças na morfologia arquitetônica
tensidades de fenômenos como a copresença é certamente tão relevante quanto a
dimensão hermenêutica das trocas sociais e suas motivações. A primeira é condição Investigamos os impactos da morfologia arquitetônica por meio do reconhe-
para a vida social emergir plenamente, em sua diversidade. cimento de diferenças ao mesmo tempo profundas e evidentes no tecido urbano
É curioso notar como tradições de pesquisa são assentadas em uma dicoto- (FIGURA 1).
mia epistemológica – o “qualitativo” e o “quantitativo” – que implica em trazer des- Tecidos urbanos apresentam diferentes graus de continuidade e desconti-
continuidades a coisas que são, na verdade, profundamente ligadas. Tal dualismo nuidade, proximidades e afastamentos entre edificações, implicando diferentes
se relaciona a uma limitação em reconhecer a posição da teoria frente ao mundo: relações entre espaços construídos e o espaço livre público. O elemento essencial
intensidades são parte dos fenômenos à volta e operam em conjunção com suas nesse tecido é o próprio edifício e suas relações. A imensa variedade da forma edi-
diferenças, incluindo aquelas de natureza simbólica. Ele evidencia uma dificuldade ficada encontra,entretanto,
da epistemologia (o modo como entendemos as coisas) mais do que descontinuida- reduções usuais na literatura
des ontológicas (na natureza das coisas em si). Essa é uma dicotomia a ser superada. e no planejamento urbano,
Precisamos reconhecer essas diferenças como dualidades e não como dualismos. A como a dos tipos arquitetô-
dimensão das intensidades das presenças e interações, e a dimensão dos conteú- nicos, entre eles:(a) o edifício
dos simbólicos da interação e valores subjetivos são complementares e igualmente cujos limites coincidem com
importantes para a vitalidade urbana. Aqui, trataremos do aspecto presencial que as divisas do lote urbano, es-
subjaz processos comunicativos e intersubjetivos. pecialmente na parte lateral
Diferenças espaciais e sociais entre áreas em uma cidade são parte funda- (chamado aqui “contínuo”);
mental deste estudo, dado que desejamos detectar efeitos arquitetônicos que (b) o edifício livre no lote,
possam estar presentes e ativos mesmo em diferentes contextos. Entendemos que caracterizado por afasta-
diferentes formas de sociabilidade ocorram e possam intensificar ou reduzir a pre- mentos laterais, explorado
sença no espaço público. Certamente, diferenças de valores, cultura e classe podem sobretudo a partir do Mo-
afetar hábitos de uso do espaço público. Mas como Jacobs, entendemos que a co- dernismo (“isolado”); e (c)
presença e a interação social e microeconômica são fatores que atravessam diferen- um terceiro tipo, “híbrido”,
tes campos sociais e emergem em diferentes contextos. São efeitos que se referem composto por uma justapo-
a relações entre arquitetura, corpo e dinâmicas sociais profundas,constitutivos de dife-
renças sociais e desdobramentos psicossociais. Nosso objetivo é verificar se o efeito FIGURA 1 Diferenças morfológicas
da arquitetura sobre a copresença pode ser reconhecido mesmo com todas essas teriam impactos sobre a apropriação
social do espaço? Áreas na cidade
diferenças em jogo. Por outro lado, os impactos dessas diferenças sobre o presencial do Rio de Janeiro: trechos do Centro,
podem e devem ser tema de outros trabalhos. Botafogo e Barra da Tijuca. (Fonte:
Google Street View e Google Maps)

148 (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica Vinicius M.Netto | Julio Celso Vargas | Renato Saboya 149
sição dos dois anteriores apresentando um volume basal horizontalizado colado nas Aspectos arquitetônicos, como o grau de porosidade das fachadas (densida-
divisas, e um volume superior isento de contato lateral.Essestrês tipos de formas ar- de de aberturas), fechamento do lote, densidade construída etc. se colocariam como
quitetônicas, definidos pela posição no lote, o grau de continuidade de suas fachadas itens que intensificariam ou não as tensões entre formas construídas, e entre estas e o
e suas relações de permeabilidade com o espaço público, representam uma grande corpo, potencialmente relevantes para a copresença nas ruas e a atividade social e
parte das formas produzidas em nossas cidades, contempladas e mesmo prescritas econômica urbana.
pelos planos diretores municipais. Buscaremos evidências da existência dessas tensões em um estudo empíri-
Agora tentemos relacionar essa diferenciação inicial entre edifícios a fenôme- co, em queconfrontaremos estatisticamente as distribuições de diferentes arranjos
nos sociais reconhecíveis em seus entornos. Nossa hipótese é que, mantidas relati- dessas características espaciais e a presença da atividade social nesses espaços.
vamente constantes propriedades como acessibilidade e densidade, o tipo contínuo
(a) ampararia mais adequadamente a vida social e microeconômica na escala local,
ao relacionar-se mais diretamente aos espaços públicos e permitir uma relação in-
Caminhos para encontrar os efeitos
tensa entre atividades e pedestres, por meio das fachadas contíguas (FIGURA 2). sociais da arquitetura

Entretanto, se nosso objetivo é chegar aos impactos sociais de um compo-


nente urbano particular – a morfologia arquitetônica – precisamos de uma forma
de isolar seus efeitos dos de outros componentes do sistema urbano. Entre esses
outros componentes, aquele considerado isoladamente como o mais influente por
grande parte da literatura urbana é a relação entre posições no espaço urbano, a aces-
sibilidade (cf. Hansen, 1954; Anas et al., 1998; Hillier; Hanson, 1984; Hillier et al., 1993).
Outros aspectos que tendem a influenciar o potencial de uso dos espaços públicos
são as densidades populacional e arquitetônica. Em condições de neutralidade em
outros componentes, ambientes urbanos mais densos tendem a ter movimento de
pedestres mais intenso, por implicarem mais atividades para a mesma quantidade
de espaços públicos e mais pessoas em potencial.
Precisamos definir um método para isolar a influência desses fatores da confi-
guração arquitetônica dos da estrutura urbana sobre a vitalidade dos espaços públi-
cos, representada por (i) intensidade de movimento de pedestres, (ii) presença de
FIGURA 2 A hipótese dos efeitos sociais da arquitetura. grupos e indivíduos em uso estático da rua, e (iii) presença de atividades comerciais
e de serviços, como indicadores de trocas microeconômicas. Entre possibilidades
Por outro lado, o tipo isolado (b) teria efeitos opostos a (a) emfunção do quão metodológicas, optamos por uma forma bastante simples. Propomos a seguinte
amplos são seus afastamentos em relação à rua e aos edifícios laterais. As caracterís- ideia: pesquisar áreas urbanas de níveis similares de acessibilidade. Confrontaremos
ticas de (b) ainda implicariam em aumento de distâncias entre edificações, trariam as variações na morfologia arquitetônica com as variações nos aspectos da vitalidade
dificuldades à implantação de atividade comercial e à passagem entre o interior das urbananessas áreas. Essa ideia é amparada ainda numa observação. Há uma relação
edificações e os espaços públicos, afetando a apropriação destepelos pedestres, linear entre acessibilidade e movimento amplamente encontrada empiricamente
com efeitos potenciais de larga escala quanto ao desempenho urbano, tais como o (e.g. Hillier et al., 1993; Penn et al., 1998): quando a acessibilidade proporcionada
aumento da dependência veicular. Assim, quanto mais dominante for (b) em uma pela malha viária aumenta, fatores-chave da vitalidade (como o movimento pedes-
área urbana, mais rarefeita seria a presença de pedestres e a atividade microeconô- tre) tendem a aumentar (FIGURA 3).
mica. Entre esses dois conjuntos de efeitos opostos, um tipo (c) híbrido teria efeitos Podemos ver que há variações nessa relação: o aumento gradual da acessi-
intermediários, sendo pouco positivos ou negativos, a depender do modo como a bilidade não é perfeitamente replicado em um aumento do movimento pedestre:
base é tratada na sua relação com o espaço público. duas ruas de mesma acessibilidade apresentam com frequência volumes pedestres

150 (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica Vinicius M.Netto | Julio Celso Vargas | Renato Saboya 151
das, obviamente, pela eficácia do método empregado para avaliar a acessibilidade,
assim como pela consideração das diferentes escalas de acessibilidade ativas simul-
taneamente em um mesmo lugar. Ao minimizarmos os efeitos da configuração do
sistema viário em áreas sob estudo, poderemos comparar as variações nos aspectos
sociais e econômicos locais com as variações nas características arquitetônicas, e exa-
minar se correlações entre elas podem ser encontradas. A consideração das densi-
dades pode fazer uso da mesma lógica.

Descrevendo e controlando a acessibilidade

Apesar da lógica desse método ser simples, ela implica em outras questões
metodológicas. Controlar a influência da acessibilidade na vitalidade urbana é uma
tarefa difícil, dado que ela é penetrante, potencialmente combinada com a de outros
padrões urbanos e imersa em contingências. Medidas de acessibilidade topológica
parecem ferramentas adequadas para esse propósito, por terem sido bem-sucedi-
das em prover descrições detalhadas de diferenciação espacial em cidades em uma
variedade de contextos e culturas urbanas. Entretanto, a descrição da acessibilidade
FIGURA 3 Relação acessibilidade-vitalidade: quando a acessibilidade aumenta, fatores de vitalidade urbana implica em mais questões, como (i) qual a medida a ser utilizada para representar
como o movimento pedestre tendem a aumentar. Mas não tão simplesmente. Ruas (pontos no gráfico) a acessibilidade proporcionada pela malha (como as medidas de integração ou es-
de mesmo nível de acessibilidade podem ter substancial diferença em fatores de vitalidade. A relação não
pode ser explicada, portanto, apenas pela acessibilidade. colha); (ii) o entendimento de distância como caminhos mínimos (métrica, geomé-
trica ou topológica); (iii) o raio de acessibilidade a ser considerado (dos raios mais
distintos. E nem poderia ser o caso de uma equivalência perfeita: cidades têm inú- globais da cidade aos mais locais); e (iv) a unidade espacial usada para representar
meros fatores intervindo no movimento pedestre, incluindo fatores imprevisíveis as ruas e espaços públicos (linhas axiais ou segmentos).Selecionamos neste estudo
como as decisões de cada pedestre. (Na verdade, considerando tantos outros veto- o conjunto composto pela combinação: Integração + Distância Topológica + Raio
res urbanos, é surpreendente que haja uma relação consistente entre acessibilidade Global (RR)5 + Linhas Axiais, representando trechos retilíneos de ruas e segmentos. 6
e movimento pedestre, como de fato é encontrada empiricamente). Estaremos atentos ao papel de outras escalas de acessibilidade fazendo uso de um
Assim, nem toda variação no movimento é explicada pela acessibilidade pro- monitoramento estatístico – correlacionando-as com os aspectos socioeconômicos.
porcionada pela malha. Podemos ver isso claramente ao selecionarmos uma faixa Uma última questão sobre acessibilidade: falamos em olhar para a variação
bastante estreita de variação de acessibilidade, e ver que ela corresponde a uma arquitetônica nas ruas de uma mesma faixa de acessibilidade como modo de iden-
faixa nem tão estreita de intensidades de movimento (veja a figura 2 novamente). tificarmos os possíveis efeitos dela sobre os fenômenos socioeconômicos que ocor-
Essas variações no movimento não são explicadas pela acessibilidade. Mesmo as rem nessas ruas. Mas será que o nível de acessibilidade em si não influenciaria esses
distribuições das atividades na cidade se mostram com variações similares. fenômenos? Ruas de alta acessibilidade poderiam ter naturalmente mais pedestres
Aqui está o ponto central do problema que queremos capturar. Propomos do que ruas de baixa acessibilidade, independentes da morfologia arquitetônica,
que exatamente nessas diferenças “mais que proporcionais” entre acessibilidade e quem sabe interferindo assim na possível influência da arquitetura? Pode haver li-
movimento pedestre estaria o lugar ativo da arquitetura e das diferenças na morfo- miares de acessibilidade a partir dos quais a arquitetura pode estimular a vitalidade,
logia arquitetônica. Nessas diferenças estariam “os efeitos da arquitetura”. ou não. Para verificarmos essas possíveis interferências, analisaremos áreas e ruas
Vejamos como podemos verificar se esse seria de fato o caso. Nosso método em três faixas distintas de acessibilidade (baixa, média e alta) – e, seguindo o mesmo
implica que, se analisarmos um conjunto de ruas em uma cidade dentro de uma
5. Entendido como equivalente à profundidade média da linha axial mais integrada do sistema, utilizado para minimi-
mesma faixa de acessibilidade, as diferenças de movimento pedestre encontradas zar o efeito de borda (Hillier, 2007).
nessas ruas estariam aproximadamente livres dos efeitos da acessibilidade – limita- 6. Para detalhes sobre as razões desta seleção de medida, propriedade e entidade, veja Netto et al. (2012).

152 (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica Vinicius M.Netto | Julio Celso Vargas | Renato Saboya 153
raciocínio, em três faixas de densidade. Devemos buscar áreas que atendam às com- lares. Entendemos que a razão para tal divergência seja a rápida expansão urbana,
binações de acessibilidade e densidade, de modo a termos áreas de características que impacta a hierarquia de acessibilidade sem o acompanhamento imediato da
distintas e garantir a representatividade dessas diferenças face ao conjunto morfo- densificação, visível especialmente em áreas na zona norte do Rio. 8
logicamente diverso da cidade em estudo. É importante analisar áreas diferentes entre si para verificarmos se tais di-
Não há condição – ou necessidade – de estudar todas as áreas de uma cidade. ferenças são ativas, e o quão basilar é o papel da morfologia arquitetônica para a
Mas as áreas que atendam essas combinações devem ser selecionadas de forma intensidade da copresença e atividade emergindo nesses espaços. As 24 áreas sele-
aleatória e não arbitrariamente, para reduzir riscos de indução das conclusões. Cada cionadas aleatoriamente no Rio de Janeiro incluem 250 segmentos e cerca de 3800
uma das combinações, entretanto, deve conter um número de ruas grande o bas- edifícios. Observamos pedestres nesses segmentos em seis horários durante um dia
tante para permitir: (i) uma análise estatisticamente significante; (ii) certa concen- de semana. Um mapa final mostra sua localização (FIGURA 4).
tração dos trechos de ruas a serem analisados para facilitar o levantamento; e (iii)
boa presença dos tipos arquitetônicos de interesse para o estudo.

O Rio de Janeiro como estudo de caso

Aplicamos essa abordagem em um estudo empírico de larga escala, buscan-


do identificar os efeitos sociais da forma arquitetônica na cidade do Rio de Janeiro.
Analisamos a acessibilidade do Rio em 20 faixas, da menor a maior, das quais sele-
cionamos as faixas 7 (baixa), 11 (média) e 17 (alta acessibilidade).7 Acompanhamos
ainda a densidade nessas áreas, distinguindo três grandes faixas (baixa, média e alta).
Este recorte permitirá examinar o quanto a acessibilidade geral de uma área pode
interferir no potencial da forma arquitetônica no estímulo da vitalidade urbana. No
caso do Rio de Janeiro, em função do seu porte, fizemos ainda uma última setoriza-
ção em três zonas (centro e zona norte, zona sul e zona oeste).
Devemos definir quantos segmentos de rua analisar. Esse número depende
do número de segmentos nas áreas selecionadas aleatoriamente, de modo a chegar-
mos a uma amostra representativa e possível de ser levantada. A análise estatística é
o meio para essa definição. No caso do Rio, em cada combinação de acessibilidade
e densidade, e em cada zona, deveríamos ter 12 segmentos de rua (trechos entre as
esquinas do quarteirão) – ou seja, 36 segmentos para cada combinação. Talvez nem FIGURA 4 As 24 áreas selecionadas aleatoriamente dentro das três faixas de acessibilidade e densidade sob
todas as combinações possam ser plenamente atendidas: áreas de alta acessibilida- estudo, atendendo a condição da variedade tipológica de interesse aqui
de com baixa densidade, por exemplo, tendem a não ocorrer (a economia urbana
Nessas áreas foram contados e medidos os lotes (dimensões e área) e verifi-
nos explica que áreas de alta acessibilidade tendem a ser mais procuradas para lo-
cado seu tipo de fechamento em relação ao alinhamento do passeio público. Já as
calização de atividades e produção arquitetônica). Contudo, este não é o caso do
edificações foram levantadas com grande grau de detalhe: dimensões, áreas, altu-
Rio: áreas de alta acessibilidade frequentemente não possuem alta densidade, o que
ras, número de unidades (economias), portas, janelas, garagens e algumas relações
limita a amostragem. Encontramos dentro das áreas selecionadas nas faixas apenas
convencionalmente estabelecidas entre essas medidas básicas na área da arquite-
nove segmentos com alta densidade e alta acessibilidade – um sinal de interessante
tura, tais como a taxa de ocupação, o índice de aproveitamento, um novo índice de
“divergência” entre padrões urbanos que tenderiam de outro modo a ter níveis simi-
continuidade de fachadas e outros. Confrontamos as distribuições dessas variáveis

7. Usamos a medida de acessibilidade “integração” adotando o raio equivalente à profundidade do sistema de ruas
(linhas axiais) a partir da linha axial mais acessível ou integrada (RR). 8. Veja Netto et al. (2012).

154 (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica Vinicius M.Netto | Julio Celso Vargas | Renato Saboya 155
e suas intensidades (cerca de 50 variáveis arquitetônicas e urbanas e 15 variáveis ASPECTOS VARIÁVEIS
socioeconômicas resumidas na tabela 1) com as ferramentas da estatística: colidi- Atividade Pedestre Movimento de Pedestres (médio no segmento)
mos variáveis e observamos o comportamento desses confrontos, por vias gráficas Grupos de pessoas paradas
e correlações numéricas. Indivíduos parados
Atividade Microeconômica Residencial
ASPECTOS VARIÁVEIS
Comercial
Tipologia Arquitetônica Tipo Contínuo (a)
Serviço
Tipo Isolado (b)
Comércio e Serviço
Tipo Híbrido (c)
Índice de Diversidade Tipológica Institucional / Índice de Diversidade de Atividades

Permeabilidade das Garagens/m TABELA 1 Principais variáveis utilizadas no estudo.


edificações Garagens/edificação
Indícios da relação entre aspectos da arquitetura e
Portas/m
Portas/edificação
das dinâmicas sociais locais
Janelas/m
Considerando a complexidade e número de fatores urbanos que interferem
Relação da Edificação com Afastamento Frontal (médio no segmento de quadra)
o Lote na geração dos fenômenos socioeconômicos locais, as correlações encontradas entre
Largura do Lote
este conjunto de fatores espaciais com componentes da vitalidade socioeconômica
Largura da Fachada da Edificação
são bastante expressivas. Detalhamos em seguida apenas os resultados das áreas de
Afastamento Lateral
baixa acessibilidade (faixa 7), que apresentam em geral as correlações mais elevadas.
Índice de Continuidade de Fachadas
As correlações das áreas de média e alta acessibilidade têm variações intrigantes,
Fechamento dos lotes Grade
seguindo, contudo, a mesma tendência geral (veja Netto, Vargas e Saboya, 2012).
Muro
Nossos achados são preocupantes. Lembrando que correlações baseadas no
Aberto
coeficiente de Pearson variam entre zero e -1 ou +1 (correlação perfeita negativa
Altura das Edificações Pavimentos/m
ou positiva), verificamos que características arquitetônicas tendem a ter correlações
Pavimentos por Edificação
consistentes e expressivas com a presença – ou ausência – de pedestres e atividades
Densidades Arquitetônica (área construída por área do lote)
microeconômicas. Gravemente, o estudo empírico de larga escala no Rio de Janeiro
Economias/m
indica ainda que os tipos arquitetônicos se comportam de modo inverso em rela-
Economias por Edificação / Índice de Aproveitamento
çãoà vitalidade: o tipo (a) contínuo correlaciona positivamente, enquanto o tipo (b)
Áreas Área do Lote (média no segmento de quadra)
isolado correlaciona negativamente com praticamente todos os fatores de vitalida-
Área do Térreo
de urbana considerados. Uma seleção de confrontos entre fatores arquitetônicos e
Área da Edificação
socioeconômicos e seus graus de correlação simples são apresentadas na tabela 2 .
Taxa de Ocupação
Vejamos o que as correlações, como indicadores da coincidência entre fato-
Parcelamento do Solo Lotes/m
res, nos dizem:
Acessibilidade Integração RR
Integração RN
Integração R3
Escolha RR

156 (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica Vinicius M.Netto | Julio Celso Vargas | Renato Saboya 157
Variáveis Pedestres Atividades socioeconômicas Tipo Arquitetônico Investigamos ainda a relação entre diversidade de atividades  (residencial, co-
nos Térreos mércio, serviços e institucional) tanto em térreos quanto em pavimentos superiores,
Mov. Grupos Indiv. Resid. Comerc. Comerc + Diversid Contín. Isolado Híbrido e variáveis pedestres como movimento e presença de grupos estáticos no espaço
Pedestres Estat. Estat. Serviçoes
público da rua. A correlação entre diversidade de atividades em térreos e movimen-
Tipo Contí- 0.327 0.447 0.407 -0.413 0.293 0.422 0.428 1 -0.983 -0.054
arq. nuo
to pedestre é positiva, assim como com grupos estáticos. Fora da tabela – resumo
Isolado -0.342 -0.469 -0.415 0.446 -0.318 -0.449 -0.456 -0.983 1 -0.128
acima, nossos dados mostram que a diversidade de atividades em pavimentos supe-
Híbrido 0.094 0.140 0.060 -0.200 0.146 0.163 0.172 -0.054 -0.128 1
riores também é um fator que coincide com movimento pedestre (0,345) e, de modo
Ind. 0.418 0.430 0.462 -0.316 0.353 0.380 0.276 0.460 -0.436 0.017
mais marcante, com a presença de grupos estáticos na rua (0,475),11 dando suporte à
Cont. hipótese jacobiana da associação urbana entre diversidade de atividades e vitalidade.
Afast. -0.424 -0.393 -0.394 0.2275 -0.386 -0.290 -0.217 -0.317 0.339 -0.129 E quanto às relações entre diversidade de atividades e tipos arquitetônicos?
Front.
Encontramos correlações bastante positivas entre diversidade no térreo e o tipo con-
Lote: Muro -0.477 -0.506 -0.460 0.472 -0.454 -0.496 -0.449 -0.428 0.423 0.012 tínuo, e negativas para o tipo isolado. Temos assim outra reversão entre o compor-
Limite Grade -0.196 -0.096 -0.113 0.150 -0.272 -0.199 0.078 0.227 -0.207 -0.099 tamento apontando a redução drástica de diversidade para áreas de predominância
Rua
Lote 0.627 0.589 0.554 -0.592 0.657 0.650 0.410 0.286 -0.295 0.055 do tipo (b). A correlação entre diversidade de atividades em pavimentos superiores e
aberto
tipos intensifica essa tendência.
Portas e Dens. 0.683 0.446 0.499 -0.533 0.610 0.577 0.408 0.551 -0.567 0.111
janelas Portas A porosidade da fachada é um dos itens clássicos da ideia jacobiana de vitali-
Dens. 0.725 0.512 0.677 -0.466 0.486 0.524 0.338 0.298 -0.301 0.028 dade urbana. Nossos dados confirmam isso. A densidade de portas tem fortes corre-
Janelas lações com movimento de pedestres (MP), grupos estáticos, comércios, comércio e
Densida- Dens. 0.517 0.473 0.508 -0.223 0.326 0.284 0.216 0.428 -0.436 0.060 serviços e diversidade de atividades no térreo. A densidade de janelas também apre-
de Arq
senta altíssimas correlações com movimento de pedestres, altas com grupos estáti-
Dens. 0.652 0.369 0.498 -0.360 0.390 0.427 0.256 0.173 -0.172 0.003
Econ
cos, atividades comerciais e serviços, e em menor grau com diversidade de ativida-
Vari- Mov. 1 0.553 0.628 -0.682 0.796 0.839 0.336 0.327 -0.342 0.094 des no térreo. A correlação entre a densidade de janelas dos pavimentos superiores
áveis Pedest. e MP é 0,420. As janelas do térreo, sozinhas, pouco estimulam o pedestre (0,158). Mas
pedes- Grupos 0.553 1 0.776 -0.646 0.669 0.658 0.510 0.447 -0.469 0.140 em associação, fazem muita diferença: a correlação com MP somando as janelas de
tres Estat.
todos os andares é das mais altas encontradas. O pedestre parece preferir caminhar
Indiv. 0.628 0.7763 1 -0.563 0.599 0.616 0.459 0.407 -0.412 0.060
onde há janelas presentes nos dois níveis. Ainda, a densidade de janelas coincide
Estat.
fortemente com lotes abertos (0,674) e com a continuidade de fachadas (0,549).
TABELA 2 Correlações de Pearson entre variáveis arquitetônicas e variáveis socioeconômicas (faixa de acessibi-
lidade baixa): a graduação de cinzas mostra diferenças na intensidade das correlações. Agora vejamos como itens de fachada se relacionam aos tipos arquitetônicos.
A correlação da densidade de portas com o tipo contínuo é expressivamente positiva, e
Temos correlações positivas entre edifícios do tipo (a) contínuo com o movi- o inverso para o tipo isolado. Já entre densidade de janelas e tipos temos ligeira queda.
mento pedestre e com a presença de térreos com comércios ou serviços. Já a correla- A combinação de correlações entre variáveis socioeconômicas, fatores de fa-
ção entre o edifício tipo (b) isolado e movimento pedestre e comércios ou serviços em chada e tipos mostra que o tipo contínuo favorece a porosidade entre arquitetura e
térreos é significantemente negativa,9 revertendo quase diametralmente o tipo (a). espaço público, e que essa porosidade é associada positivamente com a presença
Também dando suporte às hipóteses que apontamos, o tipo (c) híbrido apresenta de pedestres e atividades – em proporção inversa a do tipo isolado.
correlação quase nula ou ligeiramente positiva com movimento pedestre e ativida- Tal tendência é similar para a interface edifício x espaço público sob forma
des comerciais e serviços.10 dos afastamentos frontais e das bordas entre lote e passeio. As correlações entre
9. Todas as correlações tem significância com valor p<0,001. O teste de significância estatística (o “valor p” de cada muros e movimento de pedestres e muros e grupos estáticos na rua são bastante
correlação) examina a probabilidade de um resultado observado se repetir ou surgir por mera coincidência. Valores negativas, assim como entre muros e atividades comerciais e serviços de térreo e
p iguais ou maiores que 0.05 não têm significância estatística, segundo o parâmetro convencionalmente adotado de
95% de confiança. diversidade. Grades apresentam correlações negativas, mas em menor grau com
10. As correlações de fatores socioeconômicos com o tipo híbrido não obtiveram significância estatística (os valores p
encontrados foram superiores a 0.05) em função de sua baixa presença nas 24 áreas examinadas. 11. Todas as correlações com p<0,05 exceto onde indicado.

158 (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica Vinicius M.Netto | Julio Celso Vargas | Renato Saboya 159
movimento pedestre, grupos estáticos na rua, comércio e serviços de térreo e di- àquele encontrado nas áreas de acessibilidade alta com os mesmos fatores, um R2
versidade. Já as correlações entre lotes abertos, movimento de pedestres e grupos ajustado de 0,497.
estáticos são fortemente positivas, assim como em atividades comerciais e serviços O resultado para a amostra agregada (todas as faixas) traz um R2 ajustado de
de térreo e diversidade. 0,585, bastante alto, com significância estatística atestada e capacidade preditiva
Essas observações confirmam a impressão do senso comum de que muros e dos fatores arquitetônicos analisados sobre a intensidade do movimento pedestre.14
grades impactam negativamente o uso de pedestres no espaço público e as ativi- Essencialmente, essa análise mostra que um número pequeno de fatores arquitetô-
dades comerciais ao nível do térreo, sendo mais intensos os impactos do primeiro. nicos pode responder por parte substancial das distribuições do movimento pedes-
As correlações entre muros e tipos mostram forte associação entre recuos,muros e o tre no Rio de Janeiro. Uma das utilidades da análise é entender o quanto um fator
tipo isolado – hoje o preferido pelo mercado imobiliário –, fatores de permeabilida- não apenas coincide com outros, mas tem potencial preditivo em relação ao seu
de entre arquitetura e rua que terminam por apresentar estatisticamente uma rela- comportamento e intensidades, mesmo em outras situações.
ção problemática com aspectos sociais e econômicos locais. Contrariamente, lotes Alguns fatores reunidos parecem explicar grande parte do movimento pe-
abertos correlacionam positivamente com tipos contínuos. destre. Como podemos entender o peso de cada um deles, e todos no conjunto,
Como as características das edificações se relacionam entre si? As correlações entre si? Há ferramentas interessantes capazes de mostrar exatamente o grau de
entre tipos e densidade arquitetônica são consideravelmente positivas com o tipo contribuição de arranjos de características arquitetônicas na explicação do movi-
contínuo e negativas com o isolado. Os dados mostram uma combinação positiva mento pedestre. Utilizamos de forma experimental um tipo de regressão múltipla
para a vitalidade entre densidades, lotes abertos e proximidade de fachadas entre si (PLS) que, à maneira de uma análise de componentes principais, reconhece agrupa-
e com a rua. (veja Netto, Vargas e Saboya, 2012) mentos de variáveis altamente correlacionadas entre si, e com elas gera construtos
capazes de representar a quase totalidade das variáveis independentes. Essa análise
mostra graficamente as intensidades das variáveis em seus papéis no movimento
Quais os aspectos arquitetônicos mais relevantes no pedestre a partir da distribuição de eixos (gráfico 1), fatores positivos à direita, ne-
movimento pedestre? gativos à esquerda.

Buscamos, a seguir, identificar os fatores arquitetônicos mais relevantes para


a explicação da vitalidade urbana explorando regressões lineares múltiplas, um con-
fronto de todos os fatores entre si.12 Neste momento, usamos apenas o movimento
pedestre como aspecto da vitalidade. Selecionamos em seguida um conjunto de
fatores arquitetônicos amplo o bastante para responder pelo movimento pedestre
– as densidades, atividades e componentes da forma arquitetônica.
Nas áreas de baixa acessibilidade examinadas, a regressão múltipla entre mo-
vimento pedestre e quatro fatores arquitetônicos (densidade de economias, ativi-
dades de comércio e serviço no térreo, lote aberto e densidade de portas no térreo)
apresenta um coeficiente de determinação ajustado13 (R2) de 0,703, bastante elevado,
apontando que apenas esses fatores responderiam por grande parte da movimen- Gráfico 1
tação pedestre. Esses fatores podem ser substituídos e estimados novamente. Nas Análise de regressão
áreas de acessibilidade média, mantendo três desses fatores e substituindo a den- com capacidade pre-
ditiva: a extensão dos
sidade de portas pelo tipo contínuo, temos um R2 ajustado menor, de 0,482, similar eixos mostra o grau de
importância de cada
12. A modelagem por regressão visa interpretar e prever uma ou mais variáveis dependentes (resposta) por meio de
fator na predição do
variáveis independentes (preditoras).
movimento pedestre.
13. Coeficiente de determinação (R2) é a proporção de variação em um fator que é explicada pelo comportamento de
outros fatores estudados conjuntamente. O R2ajustado é uma modificação do R2 usada com o intuito de compensar
pela adição de novas variáveis ao estudo, penalizando-o quando essas novas variáveis não contribuem para o poder
explicativo do modelo. 14. Veja a análise detalhada em Netto, Saboya e Vargas (2012).

160 (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica Vinicius M.Netto | Julio Celso Vargas | Renato Saboya 161
A análise confronta o papel de todos os fatores entre si, inclusive as próprias Esses resultados sugerem que a arquitetura faz diferença nos fenômenos so-
variáveis “respostas” – movimento pedestre, indivíduos e grupos estáticos e em in- cioeconômicos locais: aspectos como a proximidade entre edifício e passeio, entre
teração – para a explicação de qualquer outra variável. Lotes abertos, comércios edifícios, sua permeabilidade e atividades da forma parecem adicionar tensão entre
e serviços, diversidade, densidade de janelas, a continuidade de fachadas e o tipo espaço construído e aberto, entre arquitetura e corpos usando o espaço público – as
contínuo aparecem agrupados em um componente com papel claramente positi- condições materiais do potencial de copresença e interação social e microeconômi-
vo. Muros, uso residencial exclusivo, afastamentos lateral e frontal e o tipo isolado ca. Por outro lado, arranjos caracterizados por espaçamentos entre edifícios e entre
aparecem no componente com impactos negativos sobre o movimento pedestre. estes e os canais da rua enfraquecem-se como suporte e atração para a manifesta-
O que essa informação significa em termos das relações entre características ção da copresença. As distribuições encontradas são assim consistentes com nossa
arquitetônicas e estímulos ou danos à vitalidade urbana? Do ponto de vista de uma teoria das tensões entre espaços e corpo. Esses achados permitem que se possa
busca por um arranjo de características que melhor responda à vitalidade, encontra- avançar também na teoria probabilística dos efeitos sociais da arquitetura. O fato
mos concentrações em torno de um tipo contínuo, aberto e bastante permeável em de que, entre todas essas complexidades, encontramos regularidades e relações não
sua fachada:15 a continuidade da linha de interface edifício-rua é a chave da tipologia deixa de ser surpreendente – fortes indícios do papel da morfologia arquitetônica, e
enquanto elemento ativo na vitalidade. A queda da presença de pedestres e ativida- fortes traços da existência de relações não contingenciais entre sociedade e espaço
des microeconômicas aparece consistentemente associada a arquiteturas que apre- operando já na escala do edifício e seu entorno.
sentam descontinuidade de fachadas, afastamentos, lotes de maior largura e muros. Mas esses achados colocam outra pergunta chave: eles seriam os mesmos em
Em outras palavras, ainda que itens como muros possam ser encontrados em dife- diferentes contextos sociais e geográficos? Encontramos relações marcantes entre
rentes tipos arquitetônicos, a análise mostra sua associação mais frequente com um aspectos sociais e espaciais em diferentes contextos em uma mesma cidade, ainda
tipo particular. A combinação dessas análises de regressão nos leva a concluir que que com diferentes intensidades. Um segundo momento desta pesquisa buscará
“pacotes” de características arquitetônicas aparecem bastante distinguíveis entre si, entender se diferenças contextuais em outras cidades, bem como diferenças de
e ambos têm relacionamentos também bastante distintos com o uso pedestre do grupo social, hábitos e valores e formas de sociabilidade podem afetar a extensão
espaço público. dos efeitos sociais da arquitetura.
Mais importante, esses resultados sugerem a necessidade da urgente atenção
à tipologia sendo hoje produzida em nossas cidades – predominantemente isolada,
Cidade: contingência, causalidade, contexto: conclusão empiricamente associada a condições de diluição da vitalidade urbana – na esfera
do planejamento urbano e seu debate franco na esfera pública.
Cidades são fenômenos onde há um enorme número de fatores ativos, com
implicações e interdependências e efeitos mútuos. Reconhecendo os cuidados do
argumento antideterminismo, devemos rejeitar a tese de implicações simples de Referências bibliográficas
causa e efeito entre fatores. Processos urbanos têm particularidades e diferenças as-
sentadas em condições contingenciais, como em contextos distintos e nas implica- FLORIDA, R. For Creative Cities, the Sky Has Its Limit. Wall Street Journal, 27 jul. 2012.
ções de ações cujas trajetórias são impossíveis de prever. A morfologia arquitetônica GEHL, J. Life between buildings: using public space. Washington, DC: Island Press, 2011.
é colhida em emaranhados dos quais reconhecemos apenas parte. GLAESER, E. (2010) The triumph of the city: how our greatest invention makes us richer, smarter,
Entretanto, o estudo das relações entre certos fatores espaciais e sociais apon- greener, healthier and happier. New York, Penguim
tam para a possibilidade de termos ao mesmo tempo indeterminação e causalidade GORDON, P.; IKEDA, S. Does density matter? In: ANDERSSON, D.; ANDERSSON, A.; MELLANDER,
nas relações entre arquitetura e a vitalidade urbana. Nosso método de confrontos C. (Eds.). Handbook of Creative Cities. [S.l.] Edward Elgar Pub, 2011. 
entre aspectos urbanos via o rigor da estatística tem mostrado que fluxos pedestres HILLIER, B. et al.Natural movement: or, configuration and attraction in urban pedestrian
e a presença de atividades econômicas variam acompanhando em extensão consi- movement. Environment and Planning B: Planning and Design, v. 20, n. 1, p. 29-66,
derável as variações de componentes da arquitetura. 1993.
HILLIER, B.; HANSON, J. The social logic of space. Cambridge: University Press, 1984.
HOLANDA, F. DE. O espaço de exceção. Brasília: Editora da UNB, 2002.
15. Veja Saboya, Netto e Vargas (2013).

162 (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica Vinicius M.Netto | Julio Celso Vargas | Renato Saboya 163
JACOBS, J. Morte e Vida de Grandes Cidades. Martins Fontes, São Paulo, 2000 [1961].
NETTO, V.M. “O efeito da arquitetura: impactos sociais, econômicos e ambientais de
Espaços livres públicos:
uma análise multi dimensional
diferentes configurações de quarteirão”Arquitextos079.07, 2006.
NETTO, V.M. Cidade e Sociedade: As Tramas da Prática e seus Espaços. Porto Alegre: Editora
Sulina, 2013.
NETTO, V.M., VARGAS, J.C., SABOYA, R.T. “(Buscando) Os efeitos sociais da morfologia de apropriações e conflitos
arquitetônica”. Revista Brasileira de Gestão Urbana (Brazilian Journal of Urban
Management), v. 4, n. 2, p. 261-282, 2012.
PENN, A. et al.Configurational modelling of urban movement networks. Environment and Lucia Capanema Alvares
Planning B: Planning and Design, v. 25, n. 1, p. 59-84, 1998.
SABOYA, R., NETTO, V.M.; VARGAS, J. C. “Tipologias edilícias e vitalidade urbana: um estudo
de caso em Florianópolis.” In: Anais do XV Encontro da Associação Nacional de Pesquisa
Resumo | O conceito de espaços livres públicos (ELPs) está ainda em aberto e estrutura-
e Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional. Recife: UFPE, 2013.
-se nas vertentes do estudo da paisagem e das ciências sociais, da prática físico-ambiental,
SANTOS, C. N.; VOGEL, A.; MELLO, M. (1985) Quando a rua vira casa. São Paulo: Projeto.
da prática social e transdisciplinar. É no encontro de tais estudos e práticas que o conceito
VARGAS, J. C. “Densidade, paisagem urbana e vida da cidade: jogando um pouco de luz em construção surge: num primeiro momento significam aqueles espaços de livre acesso
sobre o debate porto-alegrense.” Arquitextos, v. 039, 2003.
do povo, e que recaem na maioria das vezes nos espaços livres de edificações, mas não
estão restritos a eles. É onde se podem observar as relações entre elementos construídos e
livres, os fluxos de pessoas e mercadorias, as interações sociais, conflituosas ou não. Serão
mais relevantes ambientalmente quando forem espaços vegetados ou residuais, economi-
camente quando se sobrepuserem à infraestrutura ou forem alvo da cobiça imobiliária, cul-
turalmente quando se associarem às identidades dos cidadãos e socialmente quando forem
espaços onde se conforma a esfera de vida pública. Este estudo propõe uma releitura das
representações, imaginários, apropriações e conflitos existentes nos ELPs, tomando-se por
base três dimensões não exaustivas e suas relações com os aspectos políticos e externos:
socioambiental, socioeconômica e sociocultural.
Como estudo de caso, escolheu-se uma comparação entre o Centro do Rio de Janeiro, por
sua riqueza identitária e como lócus principal da vita activa da cidade, e São Cristóvão, pela
disponibilidade de dados físico-ambientais coletados em estudos anteriores. Consideran-
do-se cada dimensão em seus aspectos principais, o estudo revela o que o projeto institu-
cional propõe histórica e atualmente para os espaços livres públicos do Centro do Rio e do
bairro de São Cristóvão e o que resulta das apropriações populares na realidade cotidiana.
Tanto no bairro como na região central o que se vai ler é uma apropriação que passa ao largo
do pretendido pelo poder público; a esfera pública se faz em ambos os espaços, em escalas
diferenciadas e diante de possibilidades também diferenciadas.
Abstract | The concept of open public spaces (OPS) is itself open and structured within
landscape studies, the social sciences, environmental and social practice and transdisci-
plinary. It is in the convergence of such studies and practices that the concept arises mean-
ing, at first, free access spaces, which fall mostly in spaces free of buildings, but are not
restricted to them. It is where one can observe the relationships between built elements

164 (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica Lucia Capanema Alvares 165
and flows of people and goods, social interactions, conflicting or not. They will be more Introdução
environmentally relevant when they are vegetated, economically relevant when overlap-
ping infrastructure lines or at real estate valued areas, culturally relevant when associated to Aos urbanistas parece ainda faltar uma metodologia de compreensão da pai-
local identities and socially relevant when they support a public sphere. This study proposes sagem urbana como lócus da vita activa, como produtora e produto da sociedade
a fresh look at representations, imaginaries, appropriations and conflicts in OPS taking on da diferença, como vêm demandando estudiosos da categoria de Milton Santos
three non-exhaustive dimensions and their relations to political and externalaspects: socio- – com sua abordagem de conteúdo socioespacial – e vêm tentando responder
environmental, socioeconomic, and sociocultural. alguns pesquisadores. Nessa perspectiva, este ensaio procura analisar sob a lógica
As a case study, we present a comparison between the Center of Rio de Janeiro, due to its do conflito urbano e das apropriações dos espaços livres públicos, como os cida-
identity as the mainlocus for vita activa in the city, and São Cristóvão, due to the availability dãos conformam a cidade e como esta última conforma as desigualdades de luga-
of physical and environmental data collected in previous studies. Considering each dimen- res, possibilidades e comportamentos. A desigualdade, marca inexorável da cidade,
sion in their main aspects, the study reveals 1) what, historically and up to this date, the é demonstrada e enfrentada de diversas formas, seja por caminhos institucionais,
institutional project proposes for the public spaces in both areas and 2) what follows from como nos Conselhos Populares ou no Ministério Público, seja através de manifesta-
popular appropriations in everyday reality. Both in the district and in the central region what ções em espaços urbanos ou de movimentos sociais organizados.
can be seen is an appropriation far from the desired by the government; the public sphere Como e onde são gerados e manifestos os conflitos? Que reivindicações, anseios
realizes itself in both areas, in different scales and under different possibilities. e frustrações emergem? É possível determinar as desigualdades socioespaciais criado-
Resumen | El concepto de espacios libres públicos (ELPs) todavía está abierto y se estructu- ras e criaturas dos conflitos através dos estudos de qualidade ambiental e urbanística?
ra en las áreas de estudio del paisaje, de las ciencias sociales, la práctica físico – ambiental, Como os conflitos se relacionam a essas qualidades da cidade? Como os múltiplos usos
la práctica social y transdisciplinar. Y en el encuentro de tales estudios y prácticas se deriva reais e potenciais estão ou estariam em conflito entre si e com as instituições? De que
el concepto en construcción: en un primer momento vale decir aquellos espacios de libre maneira a desigualdade socioespacial se expõe? Eis algumas das questões que este pro-
acceso del pueblo, y que recaen la mayoría de las veces en los espacios libres de edificacio- jeto procurou elucidar, aprofundar e contextualizar territorialmente.
nes, pero no se limita a ellos. Es el lugar donde se puede observar la relación entre los ele- A adoção de uma perspectiva crítica requer ainda a contextualização das prá-
mentos construidos y libres, flujo de bienes y personas, interacciones sociales conflictivas ticas políticas para e no espaço público urbano sob a ótica do capital e do trabalho;
o no. Serán más relevantes ambientalmente cuando sean espacios con vegetación o resi- melhor dizendo, e lançando mão das ideias de Lefébvre, Harvey e outros, a luta que se
duales, económicamente cuando se superpongan a la infraestructura o sean objetivos de la trava no espaço urbano é, em última instância, entre o capital em suas diversas formas
codicia inmobiliaria, culturalmente cuando se asocien las identidades de los ciudadanos y e o trabalho. Grandes empreiteiras, sistema financeiro, conglomerados multinacionais,
socialmente cuando sean espacios donde se conforma la esfera de vida pública. Este estu- especuladores imobiliários e todo um conjunto de atores capitalistas têm e exercem in-
dio propone una relectura de las representaciones, imaginarios, apropiaciones y conflictos teresses diretos e indiretos na cidade e, por conseguinte, nos espaços públicos urbanos.
existentes en los ELPs tomando como base tres dimensiones no exhaustivas y su relación Do outro lado está o trabalho, que tem no espaço não só seu meio de produção, mas
con los aspectos políticos y externos: socio ambiental, socioeconómica y sociocultural. também seu meio de reprodução, dependendo dele para exercer grande parte de suas
atividades e delas sobreviver. O terceiro grande componente da equação é o Estado,
Como estudio de caso, se optó por una comparación entre el Centro de Río de Janeiro, por
que embora teoricamente possa se aproximar de qualquer um dos lados, tem se colo-
su riqueza de identidades y como principal locus de vita activa de la ciudad, y el barrio de
cado sistematicamente junto ao capital – oscilações no caso brasileiro, consideradas em
São Cristóvão, por la disponibilidad de datos físicos y ambientales obtenidos en estudios
seus objetivos e consequências, serão foco de absoluto interesse.
previos. Considerando cada dimensión en sus aspectos principales, el estudio revela 1) lo
Como estudo de caso, escolheu-se uma comparação entre o Centro do Rio de
que propone históricamente y en la actualidad el proyecto institucional a los espacios públi-
Janeiro e o bairro de São Cristóvão. O primeiro, por sua riqueza identitária e como
cos del centro de Río y al distrito de San Cristóbal y 2) lo que resulta de las apropiaciones po-
lócus principal da vita activa da cidade, como atesta o Mapa de Conflitos Urbanos do
pulares en la realidad cotidiana. Tanto en el barrio como en la región central se va a leer una
Rio de Janeiro (www.observaconflitos.ippur.ufrj.br); o segundo, pela disponibilidade de
apropiación que está lejos de ser el deseado por el poder público; la esfera pública se hace
dados físico-ambientais, dada a já longa pesquisa realizada pelo Laboratório Qualida-
en ambos espacios, en diferentes escalas y delante de posibilidades también diferentes.
de do Lugar e Paisagem.

166 Espaços livres públicos Lucia Capanema Alvares 167


Para sua realização contou com o apoio da Universidade Federal de Minas Bauman (2007) descreve os espaços livres públicos a partir da dicotomia
Gerais, através da liberação para estágio de pós-doutoramento, do Laboratório gerada pelo medo e seu contraponto, as possibilidades sociais de encontro com o
Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN), do Instituto de Pesquisa e Plane- outro. Enquanto a ambição modernista propunha o aniquilamento e o nivelamento
jamento Urbano e Regional (IPPUR), coordenado pelos professores Carlos B. Vainer das diferenças, sem jamais realizar tal façanha, a tendência pós-moderna aprofunda
e Henri Acselrad – onde foram baseados os estudos, e do Laboratório Qualidade e as ‘calcifica’, através da separação e estranhamento mútuos. No entanto, se por
do Lugar e Paisagem, do Programa de Pós Graduação em Arquitetura – PROARQ um lado os espaços livres públicos conduzem a sensações de repulsa, por outro, a
da UFRJ, coordenado pelos professores Doutores Paulo Afonso Rheingantz e Vera atração que exercem sobre os indivíduos tem chance de superar ou neutralizar tal
Regina Tângari, que abriu seu banco de dados para a pesquisa. repulsão: “uma reunião de estranhos é um lócus de imprevisibilidade endêmica e
incurável. [S]em suprimir as diferenças, de fato ele (o espaço público) as celebra”
(Bauman, 2007, p. 102-103).
1. Marco teórico Tal como Bauman, Simmel (1903) destaca a importância das interações so-
ciais, ou seja, do espaço que obriga os indivíduos a formarem uma unidade – uma
O conceito mesmo de espaços livres públicos está ainda em aberto e estru- sociedade; o filósofo entende a sociabilidade como a autorregulação do indivíduo
tura-se nas vertentes do estudo da paisagem e das ciências sociais, da prática físico- em suas relações com os outros. A vida humana manifesta-se no cotidiano em que
-ambiental, da prática social e do desejo transdisciplinar. Nos estudos da paisagem, se revelam os conflitos e as contradições de cada sociedade em seus diferentes mo-
os espaços livres urbanos são definidos por Magnoli (1982) como os espaços livres mentos históricos.
de edificação; todos eles, quintais, jardins públicos ou privados, ruas, avenidas, De uma perspectiva durkheimiana ou organicista, o conflito constituir-se-
praças, parques, rios, matas, mangues e praias urbanas, ou simples vazios urbanos; -ia como uma espécie de “anticorpo” ou mecanismo de defesa da coesão social,
tais espaços podem formar também um tecido pervasivo, sem o qual não se con- impedidor da doença social; ainda que sua existência possa parecer uma afronta
cebe a existência das cidades; estão por toda parte, mais ou menos processados e à ordem e um incitamento ao caos, esse fenômeno agiria no sentido de evitar o
apropriados pela sociedade; constituem, quase sempre, o maior percentual do solo caos e o desmantelamento do sistema social. Em Simmel (1903), o conflito, forma
das cidades brasileiras, mesmo entre as mais populosas (MAGNOLI, 1982). Já a prá- elementar de socialização entre indivíduos, é parte indissociável da dialética anta-
tica físico-ambiental aponta que os sistemas de espaços livres urbanos constituem gonismo – unidade que levará à significância sociológica do sujeito na cooperação
um sistema complexo, dada a interrelação com outros sistemas que podem se justa- com o outro. Para o autor, o homem traz consigo a hostilidade e a simpatia a outrem
por a eles (circulação, drenagem urbana, atividades do ócio, imaginário e memória como formas de transcendência. As lutas sociais seriam como conflitos contratados
urbana, conforto, conservação e requalificação ambiental). ou legais, quando a personalidade e a luta são apartadas e o processo pode resul-
Nos estudos sociais, o espaço público toma a característica de lugar de en- tar em decisões puramente objetivas, ainda que as pessoas estejam subjetivamente
contro, de manifestação individual e coletiva, de embate, de conflito, de apropria- enredadas. O agravamento pessoal dentro do conflito diminui sem que se reduza
ções simbólicas. A prática social traz intrinsecamente o problema da esfera pública a sua intensidade; ao contrário, o conflito torna-se mais consciente, concentrado e
– esfera própria da vita activa, que somente tem lugar no espaço público. Aqui se pró-ativo, pois o indivíduo vê-se lutando por uma causa vasta e suprapessoal.
chamam de espaços públicos os lugares de uso comum do povo, como ruas, praças, A compreensão da conflitualidade acerca dos problemas urbanos é fonte pri-
parques, imóveis públicos e todos os lugares de apropriação pública, onde se rea- mária e abrangente para o conhecimento das múltiplas realidades urbanas em suas
lizam ações da esfera pública, de propriedade pública ou privada. Prescindem de dinâmicas sociais e espacialidades. A cidade se mostra de maneira múltipla e através
estrutura física, tangível. dos seus conflitos, suas fendas, seus anseios. É na manifestação cotidiana dos con-
É no encontro de tais estudos e práticas que o conceito em construção, aberto, flitos que nossas sociedades criam e recriam a esfera pública e na qual podem ser
surge: num primeiro momento significam aqueles espaços de livre acesso do povo, encontradas e lidas as dinâmicas sociais nos espaços livres públicos.
e que recaem na maioria das vezes nos espaços livres de edificações, mas não estão A partir da sistematização proposta por Mario Beni (2002) para o turismo, este
restritos a eles. É onde se podem observar as relações entre elementos construídos e estudo propõe uma releitura das relações manifestas nos espaços livres públicos,
livres, os fluxos de pessoas e mercadorias, as interações sociais, conflituosas ou não. tomando-se por base o conjunto das relações locais, ancorado em três dimensões
não exaustivas e suas relações com a dimensão política e com as influências ex-

168 Espaços livres públicos Lucia Capanema Alvares 169


ternas (em seus aspectos de maior relevância atual). Segundo o autor, os lugares ção de espaços verticalizados; espaços livres (%) x verticalização (%); áreas livres por
são necessariamente estruturados por relações locais nos âmbitos social, econômi- habitante por bairros; evolução da população por bairros; taxa de arborização por
co, ambiental e cultural; relações estas permeáveis e superposicionáveis até certo rua do bairro; caracterização dos espaços livres mais relevantes; croquis de fluxos,
ponto, gerando um conjunto indissociável. O conjunto das relações locais estaria fixos e atividades dos espaços livres mais relevantes e seu entorno imediato; análise
em constante troca com o meio externo e sob influência de uma superestrutura do uso e apropriação de praças, parques e largos.
dada pela dimensão político-administrativa. Desta forma, buscamos compreender Uma área de aproximadamente 750 ha, incluindo os bairros de Benfica, Man-
representações, imaginários, apropriações e conflitos nos espaços livres públicos gueira, São Cristóvão e Vasco da Gama, que abrigava em 2000 cerca de 70.000 ha-
considerando o Quadro 1. bitantes1, tem como elementos físicos predominantes as áreas planas, os morros,
ainda visíveis em meio à massa construída, e os ramais ferroviários. Realizando uma
Dimensão socioambiental
análise em nível local, o laboratório caracterizou as condições urbano-paisagísticas,
Áreas verdes, eixos infraestruturais e espaços residuais (fringe belts)
classificando as áreas verdes e os espaços livres segundo uma hierarquia ou nível de
Preservação, conservação, restauração e intervenção
abrangência da metrópole à vizinhança, passando pelo bairro. No nível metropoli-
Justiça socioambiental
tano estariam a Quinta da Boa Vista, por seu caráter de lazer e cultura, e o Obser-
Pressões sociais sobre o ambiente natural
vatório Nacional, polo de ciência e tecnologia regional. No nível do bairro, por seu
Dimensão socioeconômica
atendimento e acessibilidade, estariam os pontos focais no sistema viário e as refe-
Uso do solo e especulação imobiliária
rências históricas e identitárias, como o Largo da Cancela e a Praça Santa Edwiges.
Eixos de transportes, eixos de expansão
No nível de relevância para a vizinhança, estariam os espaços de alcance comunitá-
Direitos humanos (moradia, acessibilidade, ir e vir, mobilidade)
rio, como os equipamentos do Conjunto do Pedregulho e a Praça Carmela Dias, na
Dimensão sociocultural
entrada da favela Barreira do Vasco.
Sociabilidade e esfera pública – Apropriações e usos
Os dados cadastrais revelaram que as praças, parques e largos constituem
Lazer e amenidades
7,5 % do total da área da R.A. e se concentram junto aos complexos institucionais
Aspectos simbólicos e identitários (paisagens, praças, parques, grandes eixos e
e equipamentos públicos de São Cristóvão e Vasco da Gama, que possuem 17,1 m2
espaços centrais urbanos)
de área verde por habitante, contra 0% da Mangueira. Esses espaços têm idade
Dimensão político-administrativa
média de mais de 50 anos de criação, com crescimento lento e contínuo desde o
Políticas higienistas
século XIX até os anos 1970. Ainda, menos de 20% desses espaços encontram-se
Marketing político
em bom estado de conservação e manutenção, considerados sua pavimentação,
Empresariamento das cidades
equipamentos, mobiliário urbano e vegetação. Uma análise do uso e apropriação
Dimensão externa
de praças, parques e largos encontrou grande diversidade de espaços com múlti-
Capital global e grandes corporações
plos usos funcionais na R.A., atendendo à população adulta (80% da frequência) em
Interescalaridades
maior escala que aos idosos e crianças (20% da frequência). Constatou-se também
Turismo
predominância da população masculina – no mercado informal ou temporário –.
Quadro 1 Conjunto das relações locais e externas
Ainda segundo os estudos, os espaços hierarquizados como de bairro são mais fre-
quentados no final do dia, e os de vizinhança, mais comumente localizados junto a
2. Estudos e saberes estabelecidos acerca do bairro de comunidades com menor poder aquisitivo, são frequentados durante todo o dia.
São Cristóvão (SC) e do Centro do Rio de Janeiro Para os autores há um forte desequilíbrio hierárquico entre os espaços livres
do bairro de São Cristóvão:
O Laboratório Qualidade do Lugar e da Paisagem produziu e coletou, desde
2000, uma enormidade de dados acerca da Região Administrativa (R.A.) de São Cris- Os espaços da Quinta da Boa Vista, Jardim Zoológico e Campo de São Cris-
tóvão, assim como as linhas expressas Linha Vermelha e Avenida Brasil,
tóvão, que assim podem ser elencados: mapa geral e vista aérea do bairro; histórico
atuam como polos de atração trazendo para a região fluxos, usos e usu-
e análise das condições urbano-paisagísticas; proporção de espaços livres; propor-
1. Em 2010 já eram 85.000, segundo dados do IBGE.

170 Espaços livres públicos Lucia Capanema Alvares 171


ários flutuantes, sazonais e de diferentes regiões da cidade e do estado. 32% foram em praça pública e 22% em confronto direto com forças policiais; já em
Esses espaços pontuam o sistema de forma intensa e concentrada, levan- S.C., 39% se deram em praça pública, com outros 39% através de denúncia via Minis-
do a uma distribuição não uniforme de espaços livres [...] no território da
tério Público ou abaixo-assinados, cartas e solicitações. Dos conflitos registrados no
região (SILVA e TÂNGARI, 2008, p. 17).
Centro, 55% referem-se ao governo municipal (incluindo-se aí a Guarda Municipal) e
apenas 10% aos governos estadual e federal, cada, enquanto em SC, 50% foram diri-
O Observatório Permanente de Conflitos Urbanos já fichou desde 2004 mais
gidos diretamente à prefeitura, com 17% ao governo federal e à Polícia Militar, cada.
de 2100 conflitos, montando um retrato bastante aproximado dos conflitos urbanos,
Dos 166 conflitos originados no Centro, apenas oito (menos de 5%) foram
suas causas e motivações, agentes envolvidos, tipologia, distribuição espacial, de-
manifestos em outras regiões, sendo cada uma delas em Copacabana, Laranjeiras,
mandas sociais e problemas urbanos que se encontram à sua origem. As fontes utili-
Leblon, Maracanã e Cidade Nova e três que percorreram várias regiões. Dos confli-
zadas para a coleta de dados são os jornais locais de grande circulação e o Ministério
tos originados em São Cristóvão, oito ou 44% foram manifestos em outras regiões,
Público Estadual. A coleta empreendida pelo ‘Observatório’ não expressa a totalidade
incluindo o Centro, que recebeu sete (39%). Esses dados confirmam o Centro como
dos conflitos que ocorrem na cidade, mas representa um mapeamento possível, a
alvo privilegiado de manifestações, como já demonstramos em outros estudos. Ali
partir das fontes selecionadas. O Observatório também fornece dados básicos acerca
é maior a visibilidade e ali se concentram muitos dos escritórios institucionais contra
dos bairros em que há conflitos que nos permitem perceber a similaridade socioeco-
os quais se vai manifestar.
nômica entre os dois bairros foco deste estudo. Apresentam, grosso modo, o mesmo
Quanto a um perfil geral dos conflitos originados no Centro, considerando-
padrão de tamanho, de serviços básicos domiciliares, de população e alfabetização.
-se a moda matemática, pode-se dizer que são organizados por camelôs, feirantes
Apesar da enorme diferença no volume de conflitos – do total de 1999 confli-
e artesãos que se manifestam contra o governo municipal, em praça pública e rei-
tos fichados no período estudado para a cidade, 166 foram originados no Centro da
vindicando maior acesso e uso do espaço público, enquanto os conflitos originados
cidade, a maior incidência com 8,3% do total, e dezoito foram originados no bairro
em SC (muitas vezes manifestos no Centro) são manifestos em praça pública por
de São Cristóvão (SC), vigésimo sétimo em ordem de incidência com 0,9% do total;
moradores e associações de moradores contra o governo municipal reivindicando
as similaridades não parecem terminar aí quando se analisa o total de conflitos ma-
melhores condições de segurança, o que revela algum nível de despolitização, já
nifestos em quartis no tempo (18 anos de estudo): a conflitualidade é distribuída si-
que a segurança pública é de responsabilidade do governo estadual. Ali há também
milarmente para ambas as regiões estudadas, com o período mais conflituoso entre
um grupo significativo de camelôs, feirantes e artesãos que, como no Centro, se
janeiro de 2002 e junho de 2006 (35% no Centro e 44% em SC), e o menos conflituoso
manifestam contra o governo municipal, em praça pública e reivindicando maior
entre janeiro de 1997 e dezembro de 2001 (9% e 11%, respectivamente). As questões
acesso e uso do espaço público.
mais conflituosas são as que se referem a acesso e uso do espaço público em ambas
Dos 64 conflitos protagonizados por camelôs, feirantes e artesãos no Centro,
as regiões, destacando-se que em São Cristóvão essa questão empata em conflitos de
apenas quatro tiveram como objeto a segurança pública e casos relacionados ao
segurança pública (22%), enquanto no Centro é protagonista (40%), com o segundo
seu trabalho nas ruas; os demais casos, num total de 60, envolvem o acesso e o uso
lugar, também para a segurança pública, registrando apenas 19%. As semelhanças
do espaço público (e o direito ao trabalho): são manifestações contra a retirada dos
param aí, pois a maioria dos problemas geradores de conflitos nem sequer aparecem
vendedores de algum ponto, protestos contra as ações da fiscalização e da polícia,
nos dados de São Cristóvão, enquanto somente as questões relativas a parques, jar-
contra a venda de terrenos ou destruição de equipamentos onde trabalham. Dos
dins e florestas não foram objeto de conflitos manifestos no Centro.
158 conflitos originados e manifestos no Centro, há uma maior concentração na Av.
No Centro, os conflitos organizados por camelôs, feirantes e artesãos somam
Presidente Vargas entre a Central do Brasil e a Rua Uruguaiana com 24 casos, entre o
39% contra outros coletivos com 12%, moradores ou vizinhos com 10% e sindica-
Camelódromo e o Largo da Carioca exclusive com 21 casos, entre o Largo da Carioca
tos e associações profissionais com 8% das manifestações. Enquanto isto, em São
(inclusive) e a Assembleia Legislativa com 19 casos, e entre a Praça da Candelária e a
Cristóvão (S.C.) os moradores ou vizinhos correspondem a 22%, que se somando
Rua Uruguaiana com sete casos.
a associações de moradores (33%), vão conformar a maioria dos conflitos; também
Em São Cristóvão os conflitos já não aparecem de forma temática tão clara-
no bairro, camelôs, feirantes e artesãos organizaram 28% dos conflitos. Quanto à
mente, mas apontam para questões específicas locais: O Campo de São Cristóvão é
forma de manifestação do conflito, 27 ou 16,3% dos ocorridos no Centro não foram
o mais comum palco e alvo de manifestações, com ambulantes e feirantes reivindi-
manifestos em espaços livres públicos propriamente ditos, o que ocorreu em sete
cando também o direito ao trabalho ali, seja contra a transferência da feira, seja para
casos em SC, representando 39%. Dos quase 84% manifestos nos ELPs do Centro,

172 Espaços livres públicos Lucia Capanema Alvares 173


utilizar os espaços externos a ela. Já na Barreira do Vasco, as questões são relacio- percepção do usuário sobre o objeto. Utiliza-se também de conceitos como a legibi-
nadas à ação da polícia, ora protestando contra a morte de moradores, ora contra o lidade do espaço, de Kevin Lynch (1999), para desconstruir as sensações experimen-
fechamento do Posto de Policiamento Comunitário. Dos dez conflitos originados e tadas pelos usuários do espaço e reconstruir uma percepção coletiva do território; 4)
manifestos em SC, as maiores concentrações foram junto ao Campo de São Cristó- o comportamento ambiental, ou a investigação das interrelações entre o ambiente
vão com quatro casos e junto à entrada da favela Barreira do Vasco com três casos. e o comportamento humano, complementar à percepção territorial.
Foram preenchidos doze conjuntos de formulários contendo cada um: a) le-
vantamento de recursos locais, b) morfologia do território, c) percepção do meio
3. Expandindo o conhecimento prévio ambiente, d) análise visual e e) comportamento ambiental (em três horários dife-
rentes cada) para os locais focos de conflitos: Central do Brasil, Praça da República
O conhecimento acumulado indicava algumas necessidades para atingir os – Campo de Santana, Camelódromo (praça central), Largo da Carioca, Av. Nilo Peça-
objetivos do estudo, entre elas: a) o complemento dos dados físico-ambientais do nha com Rua São José e Avenida Presidente Antonio Carlos próximo à Assembleia,
Centro através de pesquisa documental, de modo a construir um panorama nivela- no Centro; Rua do Campo de São Cristóvão próximo ao Corpo de Bombeiros, área
do com aquele apresentado sobre São Cristóvão, b) a observação sistemática e dos verde do Campo de São Cristóvão, Rua do Campo de São Cristóvão próximo ao Colé-
locais foco dos conflitos em ambos os bairros, c) a realização de entrevistas com os gio Pedro II, Largo da Cancela, Rua Fonseca Teles próximo ao Largo Pedro Lo Bianco,
usuários desses locais para se ter uma noção geral de seu perfil e percepções, e d) Praça Carmela Dutra, em São Cristóvão.
estudos de percepção territorial e comportamento ambiental para construir a ponte
entre os dados sociais e os físico-ambientais.
Foram realizadas 200 entrevistas com usuários, uma centena em cada bairro, 4. Novas compreensões
estruturadas em formulário, nos locais focos dos conflitos urbanos para mapeamen-
to das atividades exercidas nos locais, motivações, frequências e permanências, Segundo os critérios sócio-demográficos e do comportamento dos usuários
meios de transporte utilizados, opiniões e perfis. Definiu-se também por uma ob- (conforme método proposto por Claude Kaspar apud DENCKER, 2003) do Centro, o
servação sistemática não participante, individual, em campo e fazendo uso de ano- perfil predominante alia uma maioria adulta em idade ativa (25 a 64 anos) à escolari-
tações e fotografias in loco. Ocasionalmente, e de modo a completar a observação dade entre oito e 11 anos de estudo (ciclo básico completo a médio completo), com
sistemática, foram feitas entrevistas focalizadas não estruturadas. O foco das obser- moradia na própria região central ou nas regiões Norte e Oeste. Este grupo se utiliza
vações e entrevistas não estruturadas foi compreender a dinâmica das relações a dos transportes públicos como forma de acesso e trafega pelo Centro a pé algumas
partir das observações e proposições de Bourdieu n’O Poder Simbólico e enfocaram: vezes por semana para usufruir dos seus serviços ou a trabalho, permanecendo ali
1) hierarquias, autoridades e posições relativas dos sujeitos; 2) propriedades mate- geralmente por mais de 8 horas; classifica a região (97%) e a rua específica (73%)
riais e capital; 3) prestígio, reputação e fama; 4) filiação étnica, religiosa; 5) localida- onde foi entrevistado como ótima ou boa, e considera a insegurança o seu pior as-
de de moradia; 6) princípios de divisão social; 7) coletividades presente e futuras. pecto, enquanto os serviços e o comércio são considerados os melhores aspectos.
A percepção territorial (DEL RIO, 1999), advinda do campo do planejamento Os mesmos critérios em São Cristóvão apontam para um perfil predominante
urbano e regional, é uma somatória de metodologias utilizadas para a apreensão similar àquele do Centro, que alia uma maioria adulta em idade ativa (25 a 64 anos)
do caráter do território sob a ótica do usuário e engloba: 1) a morfologia territorial, à escolaridade entre oito e 11 anos de estudo (ciclo básico completo a médio com-
que pode ser compreendida através de mapas históricos e atuais, bem como outras pleto), com moradia em S.C. ou no Centro. Eles vêm a pé ou de transporte público e
formas de registro, em especial a fotografia de visadas dos quarteirões e dos vazios; sua principal motivação para estar ali, o que ocorre algumas vezes ao dia, são os ser-
2) a análise visual – um dos métodos fundamentais para a compreensão da dimen- viços (alimentação, educação, serviços públicos e outros), que os detêm na região
são afetiva, ou das concepções e imagens, explora os efeitos emocionais a partir da por intervalos de 1 a 4 horas, 4 a 8 horas, ou até mais de 8 horas. O grupo classifica a
experiência visual e das qualidades estéticas do objeto percebido; 3) a percepção do região (62%) e a rua específica (73%) onde foi entrevistado como boa, e considera as
meio ambiente – pensada a partir da teoria gestáltica, entende que a forma só tem áreas verdes e praças o seu melhor aspecto, enquanto a insegurança é considerada
sentido a partir da identificação coletiva do seu significado. Para apreender imagens o pior aspecto.
públicas, bem como a memória coletiva dos objetos, seria preciso compreender a

174 Espaços livres públicos Lucia Capanema Alvares 175


O perfil relativo a anos de estudo revela um usuário de nível mais alto em S.C.; “fecha” o espaço da paisagem, configurando-se também como o caminho mais claro
diferentemente do Centro, que obteve conceito “ótimo” de 19% dos entrevistados, seu da área. O Pavilhão toma as características de marco, setor e nó, com os viadutos ope-
usuário padrão o avalia apenas como “bom” e a característica mais valorizada é a pre- rando como limites. O conjunto oferece bom grau identitário e de imageabilidade.
sença de áreas verdes e praças, enquanto o dados comportamentais acusam menor Foram observadas as pessoas que faziam uso da parte interna da área, desde
uso do transporte público e maior proporção de deslocamentos a pé ou de bicicleta desabrigados, moradores a funcionários locais desenvolvendo atividades como se
(em consonância com uma maior parcela moradora do bairro), várias vezes ao dia. deslocar, conversar, esperar, ler, comer, jogar dama, e até realizar atividades esporti-
Os estudos de percepção territorial relatados aqui enfocam os locais de maior vas e uso de drogas leves. A maior parcela é de jovens moradores da região e estudan-
conflitualidade e importância em São Cristóvão – Campo e Barreira do Vasco – e tes que já têm uma relação com seu contexto físico, mas o descanso de trabalhadores
aqueles, dentre os pesquisados por sua conflitualidade no Centro, com os quais se é um comportamento padrão na área ajardinada, em contraste com o território dos
pode traçar alguns paralelos: desabrigados e jovens. A utilização da área como atalho para pedestres é uma das
Campo de São Cristóvão – Os jardins tiveram a sua última obra de reforma em sequências comportamentais que pode ser percebida, exceto à noite quando o lazer
1996 resultando em uma grande alteração no seu uso, devido ao fluxo de pessoas (inclusive as rodas de repentistas de rap) é uma das atividades especificas.
com a inauguração do Centro de Tradições Nordestinas. A maior parte da ativida- Sob dois viadutos, a área entre o Corpo de Bombeiros e a entrada provisória
de econômica está compreendida no comércio interno do Pavilhão – que ganha do pavilhão é utilizada como atalho por pedestres que evitam a extensão de toda a
notoriedade devido à sua escala e à atividade única de grande identidade, respon- rua ao redor do campo. Território de veículos a frete e taxistas, o espaço é dividido
sável pelo espírito nordestino instalado de terças-feiras a domingos, e acaba por com trabalhadores que aproveitam a sombra e a calmaria. Sob o viaduto Agenor de
ser referência de consumo também para as três escolas tradicionais (Colégio Pedro Oliveira a segurança pública é deficiente, fazendo com que os moradores evitem o
II, Escola Municipal Gonçalves Dias e Educandário Araújo). Hoje, a área ajardinada trecho, liberando-o para a ocupação desordenada de veículos em todos os espaços
vizinha ao Pavilhão de São Cristóvão – um dos símbolos do bairro – está cercada por e criando um cenário composto por carros, lixo, usuários de drogas e flanelinhas, a
viadutos de acesso à Linha Vermelha, quadras ortogonais irregulares, edificações área é cercada também pelas grades do pavilhão e a exposição de cartazes na entra-
com afastamentos diferenciados e arquitetura do século XIX conservada em certos da principal, definindo a baixa qualidade ambiental.
edifícios de uso comercial e residencial. Bares, restaurantes, edifícios residenciais, Nos ambientes externos aos jardins, as sequências comportamentais apre-
prédios públicos, o Teatro Mário Lago, a igreja e até uma filial de apostas do Jockey sentam alguns comportamentos padrão, como a não utilização das escadas que se-
Club Brasileiro compõem os quarteirões que envolvem a grande área ajardinada param as vias, a aglomeração de estudantes e funcionários locais na estreita calçada
configurando o entretenimento na região, servida de boa pavimentação do sistema do Colégio Pedro II até o Largo Pedro Lobianco, e a agitação à entrada principal do
viário e transportes coletivos satisfatórios com linhas que ligam o bairro a diversas pavilhão, palco de ação local.
localidades do Centro e da zona norte da cidade. Praça Carmela Dutra – Localizada na confluência das ruas Ricardo Machado e
A julgar pelo grande fluxo de veículos em determinados horários, a qualida- General Américo de Moura – onde tem presença predominante o estádio do Vasco
de do ar e ambiental é moderada no trecho que sofre com a poluição sonora; já no da Gama, a pequena praça semicircular é ladeada pelos acessos à favela Barreira do
interior do campo, apesar da boa iluminação, depara-se com a falta de segurança Vasco, onde se localizam o 4º Batalhão da PMRJ, a Escola João de Camargo, o Espaço
pública, apesar da presença contínua da Guarda Municipal – destaque na opinião de Desenvolvimento Infantil, a sede da associação do bairro e um comércio local,
de moradores e funcionários locais que o evitam à noite em razão dos assaltos e composto por vários bares, padaria e farmácia; só é possível ver as vielas que dão
uso de crack – e a ação das chuvas, com alagamentos em alguns pontos. A limpeza acesso à favela e pequenos trechos de ruas comerciais. À sua frente há dois vazios,
de toda a parte interna, vias e calçadas é feita diariamente pela Comlurb, mas o uso um aberto e asfaltado que serve de estacionamento ao estádio, e um grande lote
local – território de desabrigados – e a diversidade de árvores de médio e grande vago tapado por um muro em ruínas e quiosques do comércio informal. As quadras,
porte a tornam insuficiente. sob este ângulo, são regulares, ortogonais e servem de suporte a lotes e edificações
Com relação ao espaço existencial e níveis de percepção, os equipamentos regulares de dois pavimentos.
mais acessíveis da área observada são as diversas árvores, bancos, coretos, grades, A sua área é 100% pavimentada, o que lhe confere uma sensação de secura
lixeiras, brinquedos infantis, quadras e um skate park. A representação dos espaços e dureza, e possui pontos de ônibus, táxis, vãs e motocicletas de aluguel, adicio-
urbanos dá-se nos prédios, vias e serviços de transporte, enquanto a Rua do Campo nando um caráter movimentado e desorganizado. Por outro lado, a boa qualidade

176 Espaços livres públicos Lucia Capanema Alvares 177


dos serviços de iluminação pública, drenagem, coleta de lixo e comércio trazem à juntos, causam movimentação intensa, inclusive de policiais que tentam reprimir o
memória as praças de bairro. Se um primeiro nível de percepção nos aproxima do comércio. O quarteirão da Rua Bento Ribeiro vizinho à Central é um palco de ação
mobiliário urbano abundante e sobreposto, um segundo nível nos oferece maior que vem sendo inteiramente ocupado por camelôs vitimados pelo incêndio no
conforto nas sombras das árvores, nos brinquedos infantis, bancos e mesas e nos camelódromo local em abril de 2010. O atrito entre os ambulantes e o choque de
pequenos quiosques de serviços; o que define o espaço urbano são os edifícios à ordem é constante nesses locais.
sua volta, com o Maciço da Tijuca ‘fechando’ a paisagem ao fundo das grandes áreas Além do próprio prédio da Central, o Palácio Duque de Caxias é a principal re-
abertas. O grande marco local é a sede do Vasco da Gama, com imponente edifício, ferência construída do lugar. A vista para a grande área verde do Campo de Santana
para o qual contribui o caminho principal (Av. General Américo de Moura), que tem é ofuscada pela movimentação da Avenida Presidente Vargas e da Praça Procópio
seu fim na Praça-nó Carmela Dutra. Para ‘trás’ da praça está o limite representado Ferreira, ocupada de maneira mais esparsa por camelôs de mercadorias mais refi-
pelos imóveis comerciais entrecortados pelas vielas do morro. nadas e jovens com trajetória de rua, e onde também há vários pontos de ônibus.
A presença de crianças e avós da comunidade é mais marcante no interior Com relação ao espaço existencial, é definido pelo mobiliário urbano e de
da praça, onde há também uma ocupação adolescente na quadra de esportes; nas acessibilidade das plataformas, pelos prédios e paredões de camelôs e pelo vazio da
calçadas circulam policiais e moradores em busca de transporte público enquanto Av. Presidente Vargas, que oferece como escape o espaço da paisagem, que parece
grupos de aposentados jogam dama, dominó, cartas. No entorno imediato, mulhe- infinito na direção oeste e verde na direção sul. O edifício da Central e o Palácio
res fazem compras e grupos de amigos se sentam à mesa dos bares – que nos finais Duque de Caxias possuem boa imageabilidade, assim como o Campo de Santana,
de semana ficam repletos. Mais além, e na direção oposta à PM, o território da milí- qualidade pouco percebida pelo pedestre que se vê mais envolvido com a movi-
cia, que subcontrata motoboys, supervisiona os feirantes locais, fecha acordos para mentação da estação e da avenida.
obtenção de serviços como TV a cabo. Trata-se claramente de uma praça de bairro Praça da Republica/Campo de Santana – O Campo de Santana, com projeto
periférico do Rio de Janeiro. Nos dias de futebol, no estádio a cena se transforma e a de Glaziou, foi inaugurado em 1880, servindo como marco entre a área central e os
lógica do consumo que este esporte engendra se sobrepõe aos costumes cotidianos. subúrbios do Rio durante décadas. Em sucessivas reformas urbanas foi perdendo área
Central do Brasil – Principal terminal metro-ferroviário do Rio, localizado em e hoje se restringe a um quarteirão. Atualmente o campo é uma área ajardinada em
uma das principais avenidas da cidade, caracteriza-se como o ponto nevrálgico de meio ao centro urbano do Rio de Janeiro, situada em frente à Central do Brasil; possui
toda a região, cuja reurbanização nos anos 1940 criou quadras ortogonais e triangu- quatro entradas (Av. Presidente Vargas, Pça. da República-leste e duas na Pça. da Re-
lares regulares, vias largas e pequenas praças, que se anulam diante da rotina feéri- pública-oeste) e é conservada pela Fundação Parques e Jardins da prefeitura, com
ca. Possui intensa movimentação durante todo seu horário de funcionamento, com o apoio da PM e da Guarda Municipal. À sua volta está o que se chama oficialmente
todos os tipos de gente, advinda em sua maioria das zonas norte e oeste da cidade Praça da República, hoje reduzida a duas avenidas paralelas (faces leste e oeste do
e da região metropolitana; as áreas internas ao edifício são tomadas por trabalha- campo) e à Rua Frei Caneca, faceando o campo ao sul. O mobiliário para lazer con-
dores ansiosos em frente aos telões de marcação das linhas nas plataformas (numa templativo em harmonia com sua diversa fauna, formada por cotias, pavões, gatos e
sequência comportamental clara), gerando grande tumulto nos horários de pico e outros animais soltos, entre espécies exóticas da flora, conforma uma bela área verde
correria desordenada pelos trens e plataformas, principalmente quando ocorrem separada por grades em todo seu perímetro. O jardim, em estilo inglês de grande
alterações nas telas. O pátio de saída lateral do terminal para a Rua Bento Ribeiro efeito paisagístico, com suas espécies exóticas, dá o principal contraste com as edifi-
conforma-se num território dos trabalhadores de rua – entre biscateiros, vendedo- cações à sua volta.
res ambulantes de pequenos objetos e prostitutas, que aproveitam o grande espaço Já a Praça da República recebe este nome por ter sido palco da proclamação
para descansar, dormir e pedir dinheiro em meio à multidão de passantes. da República e abriga edifícios, em sua maioria da época imperial, de baixa volume-
As ruas adjacentes, geralmente ladeadas por filas ininterruptas de camelôs, tria, mas largos e regulares com afastamentos heterogêneos, como o Arquivo Nacio-
exercem também o papel de terminal rodoviário, com os pontos de parada dos co- nal, a Rádio MEC, o Corpo de Bombeiros e a Faculdade de Direito da Universidade
letivos lotados durante o horário comercial. A entrada da Fundação Leão XVIII Hotel Federal do Rio de Janeiro.
Escola Popular, que serve refeições a preços populares, fica na mesma calçada es- Utilizado prioritariamente por passantes apressados que entram pela Praça
treita da Delegacia do Idoso à Rua Senador Pompeu, que abriga também pontos da República–leste em direção à Central do Brasil – conformando uma sequência
finais de ônibus e o mais efêmero camelódromo da região, conhecido como ‘varal’; comportamental, a área lhes fornece um microclima mais agradável que o entorno.

178 Espaços livres públicos Lucia Capanema Alvares 179


Frequentado por moradores mais antigos do bairro e por alunos da Escola Muni- com a plácida concordância do Estado. Sob a dimensão socioeconômica há o as-
cipal Campos Sales ali localizada, conta com uma territorialização típica de gran- pecto da regulação dos usos do solo, mecanismo de exclusão dos menos privilegia-
des centros urbanos: há o território dos viciados em drogas leves (pelo menos nos dos dos espaços formais que enseja o enfrentamento da desigualdade estabelecida
momentos em que ali estão), bem próximo à entrada da Presidente Vargas, onde pelo Estado em nome do capital nos espaços livres públicos; a grande maioria dos
desfrutam de uma bela paisagem à beira do riacho e podem também dormir sob conflitos registrados na Central do Brasil, bem como no Campo de São Cristóvão,
os olhos da Guarda Municipal. Há os desabrigados andarilhos que permeiam várias diz da necessidade dos ELPs como suporte para a produção e a sobrevivência. O
áreas e comumente se aproximam do território das garotas de programa, distribuí- encontro que se conforma em todos esses espaços não é o dos diferentes, mas das
das pelos caminhos mais utilizados pelos transeuntes; ali se encontram mulheres de parcelas alijadas do trabalho formal. O que muda é a escala.
todas as idades e localidades do Rio e até de outros estados, que dividem vagas nas É preciso pensar então, sob a dimensão sociocultural, que esfera pública está
edificações mais precárias da área; há também as garotas de programa de menor se desenhando nos ELPs quando amenidades são utilizadas pelo Estado como sa-
poder aquisitivo que dormem nas ruas. O comportamento padrão é o da aborda- natórios de outrora; quando este mesmo Estado, simbolizado por suas forças poli-
gem profissional do transeunte, mas muitas delas utilizam o local também para se ciais, fecha os olhos ao que não se vê e criminaliza a pobreza ao reprimir a atividade
drogarem livremente. Outro território marcante é o do crack, mais ao fundo, em de trabalho e ao matar favelados da Barreira do Vasco; que identidades se forjam
direção à Frei Caneca (onde não há saída), mais frequentada por homens adultos. Há quando a inconsciência das drogas é vista com complacência, as milícias são atu-
ainda uma pequena parcela de visitantes (turistas ou locais) que se sentam ao redor radas nas áreas pobres e a luta pelo direito à cidade (e ao trabalho) é reprimida
dos lagos, aproveitam a paisagem para fotografias, passeios familiares, enfim, para o violentamente.
lazer e descanso. Diante de frequências tão díspares há, naturalmente, os pequenos Considerando-se a dimensão externa, fica claro que o papel estatal é ditado
assaltos e furtos. por uma coalizão interescalar do capital: o Estado não pretende ser mediador de in-
O espaço existencial, dado pelos níveis de percepção da área, contém em teresses, é subjugado pelo mercado – não há ação educativa, recuperadora, de inte-
primeira instância o mobiliário urbano e a vegetação, juntamente com os elemen- resse público; não há tampouco mediação política, pois é a economia quem manda,
tos paisagísticos mais expressivos, como pedras, monumentos e o riacho. Num como sintetizou Torres Ribeiro (apud CÂMARA, 2006).
nível mais abrangente, o verde predomina entremeado por caminhos e nós. Todo Repensando Bourdieu, as autoridades se fazem violentamente presentes
o espaço do campo é paisagístico. Tomando-se a área externa, há então um grande quando as lutas dos desfavorecidos por propriedades materiais e capital estão em
contraste, mais evidente pelo diferencial de conservação e poluição sonora, com o evidência; as divisões sociais são aprofundadas quando parcelas da mesma classe
caminho proporcionado pela Presidente Vargas e o setor encapsulado do campo são tratadas diferentemente pelo Estado, ameaçando os laços sociais e as coletivi-
servindo como limite ou divisor de duas realidades. dades futuras. O Baile Internacional é para poucos e os barrados que se droguem
em locais de baixa visibilidade, ou tomem cacetadas para desimpedir os espaços
livres públicos de maior visibilidade. As tentativas de se contrapor a esta ordem, de se
5. À guisa de uma análise ideológica dos apropriar dos espaços citadinos, de gerar conflitos e propor papeis antitéticos (como
barrados no baile deseja Simmel) devem ser, mais do que nunca, objeto de estudo e publicidade.

Buscando refletir sobre os diversos conhecimentos amealhados, retomamos


as dimensões propostas teoricamente para explorar alguns dos aspectos de nosso Referências bibliográficas
interesse e incidência neste estudo.
Sob a dimensão socioambiental será preciso pensar os Campos de São Cris- BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

tóvão e de Santana, áreas verdes conservadas em meio a regiões 100% urbanizadas BENI, Mário Carlos. Análise Estrutural do Turismo (7ª Ed.). São Paulo: Senac, 2002.
e valorizadas, que se prestam mais como refúgio de outcasts que como amenidades BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz (14ª Ed). Rio de Janeiro:
para a reprodução do sistema lazer-trabalho. Parece-nos que as áreas de lazer sob Bertrand Brasil, 2010.
o reinado neoliberal tomam uma nova função, para além das já conhecidas e en- CÂMARA, Breno P. Insegurança pública e conflitos urbanos na cidade do Rio de Janeiro (1993-
gendradas pelo capital: a possibilidade higienista de esconder os não trabalhadores 2003). Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado, UFRJ, 2006.

180 Espaços livres públicos Lucia Capanema Alvares 181


DEL RIO, Vicente. Introdução ao Desenho Urbano no Processo de Planejamento. São Paulo: PINI,
1999. O passado tem futuro?
Um estudo sobre a persistência
DENCKER, Ada F. Maneti. Métodos e Técnicas de Pesquisa em Turismo. São Paulo: Futura, 2003.
MAGNOLI, Miranda M. E. M. Espaços livres e urbanização: uma introdução a aspectos
da paisagem metropolitana. São Paulo: Tese de Livre-docência, Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, USP, 1982. dos espaços públicos1
SILVA, Jonathas Magalhães Pereira da; TÂNGARI, Vera Regina. Requalificação de paisagens
centrais: o plano de integração dos espaços públicos livres de edificação da região
administrativa de São Cristóvão – Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.fau.
ufrj.br/prolugar/arq_pdf/diversos/artigosvera%20tangari/requalif_saocristovao_ Thereza Christina Couto Carvalho
magalhaesetangari_2008.pdf>. Acesso em 25/10/2011. Aline Lima Santos
SIMMEL, Georg. “The Sociology of conflict”; In American Journal of Sociology (1903) 490-525.
Disponível em: <www.brocku.ca/MeadProject/Simmel/Simmel_1904a.html> Acesso
em 25/10/2014 Resumo | A constituição de espaços públicos, aqui entendidos como largos, praças e eixos
viários de ligação, tem na sua forma física e inserção na malha da cidade, relações recíprocas
de intercomplementaridade. Da mesma forma, a localização desses elementos no tecido
urbano, materializando a interseção entre o público e o privado, o individual e o coletivo,
entre “movimento e lugar, os âmbitos distintos do espaço edificado e aberto, entre arquite-
tura e planejamento”, entre o simbólico e o utilitário e – demanda a atenção simultânea às
pessoas, ao ambiente fisco e às suas numerosas relações.
Essas relações definem combinações particulares (que as distinguem como um DNA) e que
tendem a perdurar ao longo da permanência daqueles espaços na malha, e das relações
que constroem herdadas e novas, entremeadas no tecido urbano da cidade. As condições
históricas, sociais, econômicas, morfológicas e ambientais que caracterizaram os contextos
em que foram gerados, influíram na definição daqueles elementos assim como também
nas suas combinações. A sua percepção não pode, todavia, prescindir da perspectiva fun-
cionalista que trate daquelas condições, sem deixar de reconhecer que a inércia das formas
urbanas lhes confere certa autonomia que as simplificações funcionalistas costumam negli-
genciar. A importância e a necessidade da análise histórica, por outro lado, não podem se
ater ao estudo da cidade do passado pretendendo ignorar as relações que as formas urbanas
pré-existentes têm com o presente, com outros elementos da cidade, reforçando combi-
nações herdadas ou recentes. É nesse sentido que a cidade do presente se afirma, onde as
formas urbanas, as ruas, as praças, os largos são muito mais do que simples tradições ou tra-
duções de intenções políticas do presente ou do passado, e estão em permanente processo
de sedimentação dinâmica com perspectivas de futuro, a despeito dos que profetizam a sua
extinção por obsolescência.
A partir de pesquisa em andamento, esta comunicação busca apresentar algumas perspec-
tivas que possam contribuir para o estudo das relações e das combinações que formam a

1. Este texto foi publicado nos Anais do I Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo. Simpósio Temático: Espaço Público, Cidade e Equidade.

182 Espaços livres públicos Thereza Christina Couto Carvalho | Aline Lima Santos 183
sedimentação do referido capital genético da paisagem, com foco nos espaços públicos. simultánea de la gente, do medio ambiente físico y com sus numerosas relaciones. Estas
Para demonstrar o argumento, um conjunto de largos, praças e eixos viários foram selecio- relaciones definen combinaciones particulares (que se distinguen como un DNA) y que tien-
nados em Juiz de Fora, Minas Gerais, são eles o Parque Halfeld, a Av. Rio Branco, a Praça do den a persistir a lo largo de la permanencia de esos espacios en la malla y las relaciones que
Riachuelo, a Av. Getúlio Vargas, a Praça António Carlos, a Rua Independência e a Praça da se construyen, heredadas y nuevas, intercaladas en el tejido urbano de la ciudad. Las condi-
Estação. Todos localizados no Centro de Juiz de Fora. A gênese de cada um desses espaços ciones históricas, sociales y econômicas, morfológicas y ambientales, que caracterizan los
está relacionada a diferentes contextos específicos da formação da cidade, e a seus dife- contextos en los que se generaron, influíran en la definición de esos elementos, así como em
rentes agentes, tendo em comum o papel estruturador do tecido urbano que cada um dos sus combinaciones. Su percepción no puede prescindir sin embargo, de la perspectiva fun-
eixos de acesso então configurados desempenhou. A persistência dos largos e praças está cionalista que aborda esas condiciones sin dejar de reconocer que la inercia de las formas
associada à vitalidade daqueles eixos viários e das redes de ligação que construíram entre urbanas les da cierta autonomía que las simplificaciones funcionalistas tienden a descuidar.
si, com as pessoas que atraíram para a sua apropriação e com a cidade. La importancia y la necesidad de análisis histórico, por outro lado, no se adhiere al estudio
Abstract | Public spaces, meaning squares and streets in the environment – “intersecting de la ciudad del pasado para ignorar las relaciones que la preexistente formas urbanas tie-
public and private, individual and society, movement and place, the built and the unbuilt, nen con el presente, con otros elementos de la ciudad, reforzando combinaciones herdadas
architecture and planning”, the symbolic and the utilitarian – demands that simultaneous o recientes. És en este sentido que la ciudad de ló presente se afirma, donde las formas
attention be given to people, to physical environment, and to their numerous interrelations. urbanas, las calles, las plazas, el ancho, son mucho más que simples tradiciones o las traduc-
Roads turned into high streets, and open public spaces have been made useful, in differ- ciones de intenciones políticas del presente o pasado y están en constante proceso diná-
ent historic periods, for multiple economic purposes establishing, when certain conditions mico de sedimentación con perspectivas de futuro, a pesar de que profetizan su extinción
were preserved, new functional spatial links between different urban areas, and allowed new por obsolescencia. A partir da la investigación en curso, este artículo pretende presentar
social practices of survival. algunas perspectivas que pueden contribuir al estudio de las relaciones y las combinaciones
que conforman el capital genético de la sedimentación del paisaje con un enfoque en los
Changes that were made have, in some circumstances, helped to aggregate new uses,
espacios públicos. Para demostrar el argumento, un conjunto de plazas, plazas y carreteras
and to consolidate them, allowing necessary links between the existing grid – with all its
fueron seleccionados en Juiz de Fora, Minas Gerais. Estos son el parque Halfeld, AV. Rio Bran-
multiple functions, shapes and values, and new urban expansions. In other circumstances,
co, la Plaza del Riachuelo, AV. Getúlio Vargas, Praça Antônio Carlos, calle Independencia y
other changes have helped to condemn and to lose functional urban tissue and related
Plaza de la estación. Todos ellos situados en el centro de Juiz de Fora. La génesis de cada uno
networks of uses, meanings and values and social related constructions and expectations.
de estos espacios se relaciona con diferentes contextos específicos de la formación de la ciu-
This chapter adopts a network view to the matter of how humans relate to space as it ad-
dad y sus diversos agentes, y tienen en común el papel estructurador del tejido urbano que
dresses the role that the physical environment plays intertwining our lives to places and to
cada uno de los ejes de acceso configurados configuró. La persistencia de ancho y plazas
place-making.
están asociados con la vitalidad de lós ejes de vias y de las redes de conexión que construyó
Based on this perspective and on the preliminary results of the ongoing research the pro- uno con el otro, con gente atraída para La su apropiación, y con la ciudad.
posed chapter identifies on selected public spaces and routes in the city of Juiz de Fora, a
set of spatial and functional patterns of linkage, linking different genetic (qualitative) di-
mensions. It takes on board six here called genetic dimensions of the cultural heritage of a Introdução
city and its grid, how they are intertwined in the landscape. They are the economic, social,
morphological, environmental, and organizational dimensions together with accessibility A constituição de espaços públicos, aqui entendidos como largos, praças e
as a determinant condition. eixos viários de ligação, tem na sua forma física e inserção na malha da cidade, rela-
Resumen | La Constitución de espacios públicos, entendida acá como plazas amplia y eje ções recíprocas de intercomplementaridade. Da mesma forma, a localização desses
de conexión de vías, en su forma física e inserte en el tejido de la ciudad, las relaciones re- elementos no tecido urbano, materializando a interseção entre o público e o pri-
cíprocas de inter-complementaridade. El mismo fueron la ubicación de estos elementos en vado, o individual e o coletivo, entre “movimento e lugar, os âmbitos distintos do
el tejido urbano, materializando la intersección entre público y privado, lo individual y lo espaço edificado e aberto, entre arquitetura e planejamento”, entre o simbólico e o
colectivo, entre “movimiento y lugar, los diferentes ambitos del espacio construído y abier- utilitário e – demanda a atenção simultânea às pessoas, ao ambiente fisco e às suas
to, entre arquitectura y planificación”, entre lo simbólico y la utilidad y demanda atención numerosas relações.

184 O passado tem futuro? Thereza Christina Couto Carvalho | Aline Lima Santos 185
Essas relações definem combinações particulares (que as distinguem como Rio Janeiro (RJ), com a BR-267, que vai de Leopoldina (MG), passa pelo estado de São
um DNA) e que tendem a perdurar ao longo da permanência daqueles espaços na Paulo, indo até o Mato Grosso do Sul, na fronteira do Brasil com o Paraguai.
malha, e das relações que constroem herdadas e novas, entremeadas no tecido Ocupando uma área de 1.429,875 Km² e com uma população de 509.125 habi-
urbano da cidade. As condições históricas, sociais, econômicas, morfológicas e am- tantes3, Juiz de Fora é o município mais extenso e populoso da Zona da Mata. É consti-
bientais que caracterizaram os contextos em que foram gerados, influíram na defini- tuído por quatro distritos: Juiz de Fora – distrito sede, Torreões, Rosário de Minas e Sa-
ção daqueles elementos assim como também nas suas combinações. A sua percep- randira, e cerca de 99 % de sua população reside na área urbana (PREFEITURA, 2007).
ção não pode, todavia, prescindir da perspectiva funcionalista que trate daquelas A sua mancha urbana abrange aproximadamente 93,5 km², que correspon-
condições, sem deixar de reconhecer que a inércia das formas urbanas lhes confere dem a pouco mais de 23% da área urbana legal do município, deixando livres quase
certa autonomia que as simplificações funcionalistas costumam negligenciar. A im- 77% do espaço legalmente considerado urbano. Ainda assim, nem toda a mancha
portância e a necessidade da análise histórica, por outro lado, não podem se ater ao urbana está ocupada ou homogeneamente ocupada, fundamentalmente por conta
estudo da cidade do passado pretendendo ignorar as relações que as formas urba- da natureza geográfica da topografia do sítio.
nas pré-existentes têm com o presente, com outros elementos da cidade, reforçan- O município também se destaca no contexto regional pelo alto índice de de-
do combinações herdadas ou recentes. É nesse sentido que a cidade do presente se senvolvimento humano, de 0,828 (PREFEITURA, 2007). Em relação à economia, apre-
afirma, onde as formas urbanas, as ruas, as praças, os largos são muito mais do que senta significativa representatividade no setor de serviços e indústria, com ênfase
simples tradições ou traduções de intenções políticas do presente ou do passado, para as atividades de ensino superior, siderurgia, produção alimentar e têxtil4 (FUN-
e estão em permanente processo de sedimentação dinâmica com perspectivas de DAÇÃO João Pinheiro, 2006).
futuro, a despeito dos que profetizam a sua extinção por obsolescência.
A partir de pesquisa em andamento, este artigo2 busca apresentar algumas
perspectivas que possam contribuir para os estudos das relações e das combinações Área analisada – as praças escolhidas
que formam a sedimentação do referido capital genético da paisagem, com foco
nos espaços públicos. Para demonstrar o argumento, um conjunto de largos, praças Em 1854, o Largo da Câmara, atual Parque Halfeld, surge com o traçado da Es-
e eixos viários foram selecionados em Juiz de Fora, Minas Gerais, são eles o Parque trada Nova do Paraibuna, próximoà Câmara Municipal e Cadeia. A Companhia União
Halfeld, a Av. Rio Branco, a Praça do Riachuelo, a Av. Getúlio Vargas, a Praça Antônio e Indústria aparece como segundo agente de formação da cidade com a construção
Carlos, a Rua Independência e a Praça da Estação. Todos localizados no Centro de Juiz da Rodovia União e Indústria, a partir da qual se configura o Largo da União e Indús-
de Fora. A gênese de cada um desses espaços está relacionada a diferentes contextos tria, atual Praça do Riachuelo, na mesma época. A Praça Antônio Carlos, antigo Largo
específicos da formação da cidade, e a seus diferentes agentes, tendo em comum o da Alfândega Seca (alfândega ferroviária), surge de um aterro e da singularidade e
papel estruturador do tecido urbano que cada um dos eixos de acesso então confi- importância estratégica dessa função. Por fim, o Largo da Estação, atual Praça da
gurados desempenhou. A persistência dos largos e praças está associada à vitalidade Estação, que a chegada da Estrada de Ferro do Brasil, em 1875, define pontuando
daqueles eixos viários e das redes de ligação que construíram entre si, com as pessoas uma nova área de expansão da cidade.
que atraíram para a sua apropriação e com a cidade.
Morfologia – algumas dimensões
Contexto
Os caminhos de acesso criados por iniciativas voluntaristas de diferentes em-
A cidade de Juiz de Fora possui uma localização privilegiada, por conta da preendedores transformaram-se em corredores estruturadores da cidade de Juiz de
proximidade com as principais metrópoles do Sudeste brasileiro, no entroncamen- Fora. A época em que esses espaços foram configurados corresponde à segunda
to da BR-040, que liga o município às capitais Brasília (DF), Belo Horizonte (MG) e metade do século XIX. Faziam-se sentir no Brasil de então as repercussões da indus-
trialização de processos produtivos que tinham lugar na Europa, particularmente na
área da geração de energia e dos transportes de longa distância. A região da Zona
2. Este artigo sintetiza alguns dos resultados e reflexões que serviram de base para a criação da Rede de Cooperação
para o Urbanismo em Escala Regional e Ordenamento Territorial, da qual hoje fazem parte um conjunto de professores, 3. De acordo com a estimativa do IBGE, em 01 de julho de 2006.
pesquisadores e alunos da UFF, UFRJ e UFRV no Rio de Janeiro. 4. Dados referentes ao ano de 2004.

186 O passado tem futuro? Thereza Christina Couto Carvalho | Aline Lima Santos 187
da Mata, onde as mencionadas repercussões materializavam mudanças significati- minhos de desenvolvimento e de crescimento econômico que diferentes empreen-
vas na morfologia urbana da cidade de Juiz de Fora, destacava-se pela força da sua dedores buscaram para si naquele território, literalmente, ou seja, rotas e percursos,
economia agrícola. Principal produtora e exportadora de café no estado de Minas com tipologias de parcelamentos distintos direcionados para diferentes propósitos.
Gerais, responsável por 60% da arrecadação provincial na década de 1870 (Pinheiro, O “motor” da industrialização imprime maior velocidade aos fluxos de mercado-
2005), os padrões espaciais de uso e ocupação do seu território representam uma rias que a rodovia em primeiro lugar, e a ferrovia depois, passam a permitir sobre o
ruptura com o passado histórico de Minas Gerais, marcado pelo ciclo do ouro. Apre- eixo que liga a Praça do Riachuelo ao Largo da Alfândega Seca. Essa nova dinâmica
senta características do século XIX como o liberalismo, a iniciativa privada, a crença marca a paisagem com novos padrões relacionais arquitetura/ funções produtivas/
no progresso, a evolução trazida pela máquina a vapor e pela eletricidade, o ecletis- novas comunidades de trabalhadores migrantes.
mo do estilo arquitetônico e outras manifestações de um pensamento com tendên- A Estrada Nova, posteriormente renomeada Av. Rio Branco, apresenta uma ti-
cia a romper com o estabelecido. Essa mesma mentalidade vai também repercutir pologia de quarteirões e lotes pequenos traçados pelo engenheiro Heinrich Halfeld.
sobre a morfologia urbana de Juiz de Fora sob as formas de novas tipologias urba- A doação de áreas em locais estratégicos para a destinação de funções públicas sin-
nísticas e arquitetônicas. gulares na cidade proporciona a Halfeld as condições para transformar a Estrada Nova
A fragilidade do Poder Público, associada ao empreendedorismo ‘voluntario- em Rua Direita, organizadora do espaço urbano da vila e alavanca da valorização do
so’ dos três agentes privados – H. Halfeld, Mariano Procópio e Bernardo Mascare- assentamento que passa a ser reconhecido como cidade de Paraibuna, em 1856. Apa-
nhas, reforçou as condições que permitiram aquelas variadas formas de apropriação rentemente o propósito do investimento era a valorização imobiliária que a nobreza
do território. arquitetônica dos prédios remanescentes, hoje, indica em contraste com a simplicida-
Contextos tão distintos de geração de riquezas têm diferentes “pegadas” de da tipologia arquitetônica constatada à época da abertura da estrada.
no território, aqui entendidas como matrizes espaciais relacionais que marcam a A constituição de outro caminho desviando aproximadamente 45 graus da
morfologia da cidade, abrangendo um conjunto de fatores de diferentes dimen- Estrada Nova, iniciativa capitaneada por Mariano Procópio, faz a primeira rodovia
sões qualitativas. Emergem da pesquisa as seguintes dimensões – legal ou institu- da America Latina – chamada Estrada União Indústria e marca no território um novo
cional nas regras de permissão dos usos e apropriações do território ali praticadas; eixo de evolução. Inaugurada em 1860, cria uma tensão entre as duas tendências
a dimensão ambiental nas formas de exploração do potencial geo-morfológico do de expansão e adensamento com a formação de outro Centro, de natureza bem di-
local e dos recursos naturais demandados pelos processos de produção; a dimen- versa, com a convergência de fábricas de tecido, de cerveja, entre outras, e introduz
são morfológica nas tipologias e padrões de ocupação do solo, nas redes formadas outra tipologia com lotes e quarteirões grandes para atrair indústrias. Os migrantes
pelas intercomplementaridades funcionais e contiguidades espaciais; a dimensão alemães trazidos para a construção da primeira rodovia da América Latina também
da acessibilidade nos caminhos definidos e nos fluxos que se seguiram de matéria contribuem para o enriquecimento daquela morfologia.
prima, de pessoas e de mercadorias; a dimensão econômica dos processos de produ- A rede ferroviária construída posteriormente em área próxima e paralela à ro-
ção escolhidos para a geração de riquezas e sua distribuição entre poderes públicos dovia concorre e reforça, ao mesmo tempo, a atração que as inovações tecnológicas
e privados; a dimensão social percebida nas respostas da população à atração que que para ali convergem, aplicadas em novos processos de produção, exerciam. Essa
aquelas novas iniciativas exerciam, na apropriação e na agregação de novas funções concentração estimula a expansão da produção industrial, da comercialização e da
e padrões de ocupação que geraram, e a dimensão cultural que o reconhecimento circulação de mercadorias, ao mesmo tempo em que repercutem sobre a atração
social do conteúdo simbólico atribuído às práticas de uso e apropriação do território de novas apropriações correspondentes do território da cidade, que se agregam e
anteriormente descritas imprimiram. consolidam um novo Centro, de predominância fabril, com dinâmica própria.
A convergência das singularidades nas várias dimensões econômica, insti-
tucional, morfológica, ambiental, social, cultural e de acessibilidade que passam a
Morfologia e Gênese – repercussões sobre as tipologias distinguir a cidade, atrai outros interesses que imprimem àquele território, novos
saberes, novos valores e novas expectativas. A primeira hidrelétrica da América
A Praça do Riachuelo, situada na divisão do caminho original de acesso à Latina é ali construída em 1889, chamada de Usina de Marmelos, fato que por sua
cidade que a Estrada Nova indicava, marca na paisagem a atração e a convergência vez amplifica ainda mais a atração de novas apropriações e agregações associadas,
de interesses que se seguem, ao mesmo tempo em que sinaliza a disputa pelos ca- consolidando-se a identidade e o valor dos processos industriais de produção.

188 O passado tem futuro? Thereza Christina Couto Carvalho | Aline Lima Santos 189
O triângulo composto pela Estrada Nova (Av. Rio Branco), pela União Indústria constituem, hoje, aproximadamente 3.000m de caminhos pedonais, em sua grande
(Av. Getúlio Vargas) como direção e pela linha ferroviária paralela fechava a tercei- maioria concentrados no triângulo menor constituído pelas praças Riachuelo, Parque
ra aresta com um dos braços do Rio Paraíbuna, aterrado em 1890, dando lugar ao Halfeld e Antônio Carlos.
Largo da Alfândega Seca. Esta função de cobrança das taxas sinaliza a presença do
Poder Público e a sua participação na configuração daquela área.
O Córrego Independência foi parcialmente canalizado em 1934, data que marca Gênese 1 – Os agentes produtores do espaço no tempo
a mudança de nome, de forma e de função do Largo da Alfândega – que passa a ser a
Praça António Carlos, em meio a quarteirões grandes industriais – a quem ela serve? Halfeld constitui-se como o primeiro agente no processo de origem dos espa-
Uma intervenção realizada pelo Poder Público em 1960 aterra o restante do córrego ços públicos estudados. A Companhia União e Indústria, representada por Mariano
e faz a Rua da Independência, e com ela introduz outra tipologia no território. Rua Procópio, aparece como segundo agente, em 1861, ao propiciar a construção da Ro-
com escala de desenho maior que as anteriores, parâmetros distintos de ocupação dovia União e Indústria, a partir da qual se forma o Largo da União e Indústria – atual
e destinação mista – residência, comércio e serviços – liga o Centro a vários bairros Praça do Riachuelo. O terceiro agente é constituído pela Estrada de Ferro D. Pedro
da zona sul e serve, também, como um dos caminhos de entrada e saída da cidade, II, em 1875, investimento privado com o beneplácito do Poder Público que estabe-
chegando até a BR-040, que liga o município às capitais Brasília (DF), Belo Horizonte lece outro eixo de crescimento demarcando outra área de expansão da cidade em
(MG) e Rio Janeiro (RJ). Equipamentos de maior porte como a Universidade Federal direção ao Rio Paraibuna, proporcionando o surgimento do Largo da Estação – atual
de Juiz de Fora (na cabeceira da rua), várias escolas, supermercados e hospitais sina- Praça da Estação. Dessa maneira, assim como nos casos anteriormente citados, a
lizam a significativa mudança dimensão acessibilidade dispara mais um eixo/vetor de formação do espaço.
N
de escala do desenho urbano
e na tipologia. A inserção do
Shopping Independência, o
maior da cidade, marca a pai- Praça do Riachuelo

sagem da via com viadutos e


grandes obras de terraplena-
gem reforçando a diversida-
de morfológica.
Mais uma tipologia Praça da Estação

distinta é introduzida na
cidade com a primeira galeria Praça Halfeld

comercial que dá passagem a Praça Antônio Carlos

pedestres, ao comércio e ao
consumo, por dentro de edi-
ficações privadas. Inaugurada
em 1925 por migrantes ita-
lianos (muito provavelmente
segundo modelo Milanês de
referência), permite e promo-
ve a densificação do uso co-
mercial com menores custos Planta do Centro de Juiz de Fora, com a marcação dos espaços Vista do Parque Halfeld, no início do século XX; Vista da Praça da Estação, na década de 1930; Vista da Praça
0 100 250 500
adicionais. Foi seguida de públicos do estudo. 0 do Riachuelo, em 1934 e Vista da Praça Antônio Carlos, em 1934

muitas outras que somadas

190 O passado tem futuro? Thereza Christina Couto Carvalho | Aline Lima Santos 191
Por fim, a construção da Alfândega Seca do Estado, iniciada por volta de 1893, 3. Relações entre eixos, largos e praças e a grande escala física de espaços/
deu origem à constituição do último largo do núcleo histórico da cidade, o Largo da edificações monofuncionais – na Rua da Independência e Praça Antônio Carlos.
Alfândega Seca – atual Praça Antônio Carlos, para o exercício da cobrança mencio-
nada. Porém, antes da edificação da Alfândega, a instalação da Companhia Têxtil
Bernardo Mascarenhas e da Companhia Mineira de Eletricidade impulsionaram o As Praças – as transformações e as persistências
desenvolvimento da área. Dessa forma, Bernardo Mascarenhas, junto com o Poder
Público, pode ser considerado o quarto agente de formação dos espaços analisados. Por conta das singularidades em termos de localização (em frente à Estação
Ferroviaria), funções econômicas e o reconhecimento social e político, o comércio
logo se desenvolveu ao redor da praça. Esta passou a assumir, por agregações su-
Gênese 2 – Largos, eixos e praças, escalas de transição e cessivas, a função centralizadora de diversas atividades produtivas e de serviços.
de permissão No final do século XIX, foi construído o Grande Hotel Renascença, famoso em todo
o país pelo requinte e luxo. Várias personalidades em visita a Juiz de Fora, como os
Cabe aqui uma breve explanação sobre largos e como estes estão sendo aqui presidentes Getúlio Vargas e Arthur Bernardes, além de Rui Barbosa e o Rei Alberto,
entendidos. Um grande número dos largos visitados na etapa da pesquisa realizada da Bélgica, hospedaram-se no hotel. A praça tornou-se ponto de referência e palco
em Lisboa parece constituir espaços intersticiais de transição entre distintas morfo- de grandes acontecimentos públicos da cidade, como a chegada de autoridades, os
logias e suas respectivas lógicas de configuração. A permissividade é característica comícios e as manifestações políticas e sociais. A obsolescência permitida do trans-
fundamental e necessária dos espaços de transição.5 Percebida como condição obri- porte ferroviário gerou repercussões negativas sobre as áreas que anteriormente
gatória de evolução, a relativa leniência pode proporcionar as condições necessárias ‘irrigou’.
para abrigar diferentes formas e propósitos de apropriação (assim como as variadas A Praça Antônio Carlos, como foi renomeado o Largo da Alfândega Seca,
funções que abrigaram) que, em muitos casos, se consolidam em ritmos distintos constitui um exemplo da anulação da centralidade por eliminação de singularida-
para reconhecimentos e valorizações futuras. Ao Poder Público caberia reconhecer e des atrativas. Uma vez polo de atração pela singularidade da função pública estra-
valorizar o mencionado patrimônio genético, ainda vivo no presente, e as múltiplas tégica que desempenhava para a dinâmica econômica da região, o Largo apresen-
relações de intercomplementaridades que este exerce e abriga, e nas quais os usu- tava relativa fragilidade na sua ligação com a cidade, uma vez que tangenciava um
ários e residentes se apóiam para estabelecer suas relações com a cidade. Portanto, córrego não navegável e parcialmente canalizado. Duas forças de transformação se
neste artigo, contesta-se a definição de largo como “espaço residual” (Lamas, 2004), colocam em campo. A eliminação gradativa da centralidade se dá em decorrência
uma vez que o significado de ‘sobras’ não corresponde ao papel articulador de mu- da “morte” da ferrovia e das suas repercussões sobre as atividades econômicas que
danças e transformações que os largos exercem. ela apoiava e vice-versa, e, consequentemente, a obsolescência da Alfândega Seca e
Os eixos, largos e praças encontrados em Juiz de Fora apresentaram relações a sua absorção por outra função pública, esta, no entanto, com muito menor poder
espaciais e funcionais distintas com as áreas onde estavam inseridos. de atração – o quartel do exército, que ocupa toda uma aresta da Praça, de formato
1. Relações entre eixos, largos e praças e atributos físico-morfológicos distin- aproximadamente triangular. Essa aresta e sua interface com os fluxos da cidade
tos: tipologias de quarteirões, de ruas e de passeios distintas; escalas de diferentes deixam de ser atrativas e a inércia em trechos de um tecido urbano não significa
grandezas que caracterizavam esses elementos, os espaços abertos e as edificações neutralidade, mas sim estagnação e sua repercussão imediata – a deterioração. Em
lindeiras – na Praça Riachuelo e na Av.Presidente Vargas. termos de dinâmica dos processos de configuração urbana, não importa quão bem
2. Relações de atributos físico-morfológicos e múltiplas funcionalidades atra- pintado esteja o muro que a cerca, quando deixa de atrair funções socialmente re-
ídas pelas singularidades morfológicas dos eixos, largos e praças: o pequeno, o conhecidas como legítimas, começa a atrair as outras, as negativas.
médio e o grande comércio, rótulas viárias, equipamentos de serviços públicos com
diferentes patamares de atração – no Parque Halfeld e na Av. Rio Branco.

5. Em alguns casos essas apropriações temporárias se manifestavam sob a forma de estacionamentos na área integral
do espaço público aberto.

192 O passado tem futuro? Thereza Christina Couto Carvalho | Aline Lima Santos 193
Linha-do-tempo zamento da cidade, prometendo fazer doações de terra aos proprie-
tários da Rua Direita que construíssem jardins gradeados em frente às
Século XIX Com o fim do ciclo do ouro e a expansão da economia cafeeira, o go- suas casas.
verno de Minas Gerais contrata o engenheiro prussiano Heinrich Wi- 1856 A cidade recebe a primeira leva de imigrantes alemães, para constru-
lhelm Halfeld para construir uma nova estrada em 1836. ção da Estrada.
1838 Inaugurada a Estrada Nova do Paraibuna, que agregou em grande 1860 A Câmara Municipal solicita ao engenheiro alemão Gustavo Dodt a
parte o trajeto já existente do Caminho Novo, ampliando-o. Começa elaboração da primeira planta cadastral da cidade e de um plano para
a se formar o povoado de Santo Antônio do Paraibuna, que em seu ordenar a expansão da cidade, no qual as ruas perpendiculares à Rua
trecho de reta, consolidar-se-ia como um dos principais eixos de ocu- Direita deveriam ser abertas até a Serra adjacente à cidade, o Morro do
pação da localidade, provocando o abandono progressivo da região à Imperador. Tanto as ruas existentes quanto as novas deveriam adequar-
margem oposta do Rio Paraibuna, onde se situava o sobrado do juiz de -se ao novo percurso entre Juiz de Fora e o Rio de Janeiro constituído
fora. pela União e Indústria.
1840 Halfeld se casa com Cândida Carlota, filha de Antônio Tostes, e imple- 1861 Inauguração da Rodovia Companhia União e Indústria, que ligava Juiz
menta um processo de desenvolvimento para a ocupação das terras do de Fora a Petrópolis, encurtando o caminho entre Minas e a Corte, com
sogro, inclusive com a doação de terrenos. o objetivo de facilitar o transporte de mercadorias e, principalmente,
1850 O povoado é elevado à categoria de vila, ainda com a denominação de do café. É considerada a primeira rodovia da América Latina.
Santo Antônio do Paraibuna. Por conta de um erro na publicação da lei, 1863 É formada a Colônia Dom Pedro II, nas terras de Mariano Procópio, onde
a instalação da vila só ocorreu em 1853. No início da década de 1850 a foram construídas casas para as famílias alemãs. É estabelecido outro
malha urbana da localidade foi se constituindo a partir de um desenho Centro urbano (conhecido como Estação de Juiz de Fora) por Mariano
de ruas riscado por Halfeld, que se apropriou da Estrada do Paraibuna, Procópio, independente e distante daquele desenhado por Halfeld.
tornando-a a principal rua da localidade – Rua Direita, atual Avenida
1865 A cidade é nomeada, por lei provincial, como Juiz de Fora.
Rio Branco.
1868 Início das obras de abertura e calçamento de ruas, de escavação e ca-
1855 De acordo com a planta desenhada por Halfeld, o engenheiro traçou
peamento de canais para a evasão de esgotos e drenagem das águas
uma perpendicular, que deu origem às ruas da Califórnia e da Câmara
pluviais.
(as duas formam a atual Rua Halfeld) e a um largo (atual Parque Hal-
feld), onde doou terrenos para a construção da Câmara Municipal e 1870 – 1920 A cidade assistiu a um crescimento de 277 % em relação aos estabeleci-
do Fórum. Também previu loteamentos para casas e uma área para a mentos industriais e comerciais. O capital acumulado na cidade, com as
localização da Igreja Matriz – atual Catedral Metropolitana. Começa atividades agroexportadoras, permitiu direta ou indiretamente, o surto
a ser desenvolvido outro eixo de expansão urbana, incentivado pelo de industrialização local.
Comendador Mariano Procópio Ferreira Lage: a Rodovia Companhia
1875 A Ferrovia Dom Pedro II chega à cidade, que se tornou um relevante
União e Indústria, cujo desenho foi orientado pelo curso do Rio Parai-
centro ferroviário de Minas Gerais.
buna e que propiciou a formação da Praça ou Largo da União e Indús-
tria, onde hoje é a Praça do Riachuelo. 1877 É inaugurada a Estação de Juiz de Fora, que permitiu o surgimento
do Largo da Estação e consolidou as ruas Halfeld e Marechal Deodoro
1856 A vila passou a ser a cidade do Paraibuna e para comemorar o fato
como eixos comerciais. Com o desenvolvimento da lavoura cafeeira, o
também foram abertas, perpendiculares à Rua Direita, as ruas Imperial
eixo ferroviário se expande e a cidade passa a ser servida também pela
(ou da Imperatriz, atual rua Marechal Deodoro) e do Cano (rua Sam-
Estrada de Ferro Leopoldina, que a atravessa no sentindo norte-sudes-
paio), e paralelas, as ruas Santo Antônio e Formosa (rua do Comércio,
te, enquanto a Estrada de Ferro Dom Pedro II segue no sentido leste-
atual rua Batista de Oliveira). A Câmara Municipal incentiva o embele-

194 O passado tem futuro? Thereza Christina Couto Carvalho | Aline Lima Santos 195
-oeste. O estabelecimento da ferrovia, ainda mais próximo às margens um largo – atual Parque Halfeld, ao longo dos quais alguns terrenos foram apropria-
do rio Paraibuna, se comparado com o da União e Indústria, salientou dos para a construção dos prédios públicos com funções singulares como a Câmara
o avanço tecnológico sobre a sinuosidade do rio, considerando que as Municipal e o Fórum. Também previu loteamentos para casas e uma área para a
inundações no local já podiam ser controladas. localização da Igreja Matriz – atual Catedral Metropolitana. Em 1856, a vila passou
a ser a Cidade do Paraibuna e para comemorar o fato, também foram abertas, per-
1881 Foram inaugurados os bondes à tração animal na cidade, cujas linhas
pendiculares à Rua Direita, as ruas Imperial ou da Imperatriz – atual Rua Marechal
iam da Rua Direita à Estação, servindo as ruas Halfeld, da Imperatriz, do
Deodoro – e do Cano – atual Rua Sampaio –, e paralelas, as ruas Santo Antônio e For-
Comércio e Espírito Santo.
mosa – Rua do Comércio, atual Rua Batista de Oliveira (PASSAGLIA, 1983). A Câmara
1888 Montagem da Tecelagem Bernardo Mascarenhas. Municipal incentiva o embelezamento da cidade, prometendo fazer doações de
A instalação da fábrica, junto à União Indústria e em um ponto perifé- terra aos proprietários da Rua Direita que construíssem jardins gradeados em frente
rico da malha urbana, no desaguadouro do córrego da Independên- às suas casas. Nove anos depois, a cidade é nomeada, por lei provincial, como Juiz
cia, trouxe mudanças significativas para o local, pela necessidade de de Fora (OLIVEIRA, 1966).
retificação do Rio Paraibuna para evitar inundações e para permitir a
expansão posterior da tecelagem.
Considerações finais
1889 Construção da primeira usina hidroelétrica do país, a Usina de Marme-
los, que possibilitou a iluminação da cidade e a atracão de novas indús- Desde a sua implantação, os espaços públicos analisados sofreram inúme-
trias, por iniciativa e com investimentos do industrial Bernardo Masca- ras intervenções, mas é possível perceber que alguns aspectos marcantes da sua
renhas. gênese continuaram refletindo no seu uso, até os dias de hoje.
Os pensamentos dos agentes de formação dos espaços – Halfeld, Mariano
1893 Instalação da Alfândega Ferroviária, cujo pátio fronteiro definiu a con-
Procópio e Bernardo Mascarenhas – deixaram marcas e influências no território. O
formação do último largo na área central histórica da ciade, o Largo da
Parque Halfeld, estabelecido a partir de um traçado regular de ruas proposto por
Alfândega.
Halfeld, com seu desenho que buscava uma identificação com o paisagismo inglês,
1906 Foram instalados bondes elétricos, que utilizam os mesmos trilhos dos apesar das formas um tanto rígidas, diferencia-se das outras praças que tinham a
antigos movidos à tração animal. modernidade e a industrialização trazidas por Mariano Procópio e Bernardo Masca-
Década 1920 Limitações do setor industrial e o declínio da economia cafeeira contri- renhas como referência.
buíram para a modificação do perfil da cidade, que passou de Centro A questão do transporte acompanha a Praça do Riachuelo desde a sua cons-
comercial atacadista para um polo prestador de serviços. tituição até as modificações de trânsito e a incorporação das ilhas da Praça, para
orientar o tráfego. A união dessas já está sendo implementada pela prefeitura para
1925 Inaugurada a Galeria Pio X, primeira galeria de Juiz de Fora, idealizada
impedir o estacionamento na área.
e executada por imigrantes italianos – Rosino Baccarini e a Construtora
A Praça Doutor João Penido carrega desde a sua gênese até a atualidade sua
Pantaleone Arcuri.
ligação com a ferrovia, que é expressa inclusive em sua denominação, sendo mais
A transformação da antiga fábrica de tecidos do Bernardo Mascarenhas em conhecida pela população como Praça da Estação. O fator transporte também apa-
Centro Cultural, e a subsequente apropriação da Praça como extensão do Centro, rece nas alterações sofridas na Praça Antônio Carlos, quando ela se tornou uma ro-
começa a reverter essa tendência, ainda que parcialmente, pela falta de “dialogo” tatória, na década de 1960, com a conclusão das obras da Avenida Independência.
com a face integralmente murada correspondente ao quartel. Ao longo da Av. Getú- Apesar da última intervenção realizada, que buscou a integração do Centro Cultural
lio Vargas, próximo à Praça, subsistem lojas e usos comerciais diversificados, alimen- Bernardo Mascarenhas com a Praça, seu esvaziamento reflete até hoje o isolamen-
tados, também, pela parada de ônibus. to característico de uma rotatória, sem ligação com o entorno, servindo apenas de
Com base na Rua Direita, o engenheiro traçou uma perpendicular, que deu passagem para os pedestres.
origem às ruas da Califórnia e da Câmara – as duas formam a atual Rua Halfeld – e a

196 O passado tem futuro? Thereza Christina Couto Carvalho | Aline Lima Santos 197
O declínio das áreas do entorno e das três praças – Riachuelo, Doutor João ção e facilidade de acesso, um número maior de usuários do que a Praça Antônio
Penido e Antônio Carlos – aparece relacionado com a redução da primazia da Carlos. Essa Praça, com a transformação da antiga Fábrica Bernardo Mascarenhas
Rodovia União Indústria e com a decadência do transporte ferroviário e da indus- em Centro Cultural e com a intervenção nela realizada, teve grande parte do seu uso
trialização. condicionado à ocorrência de eventos, permanecendo praticamente vazia durante
A dimensão da acessibilidade aparece como a dimensão de formação e de- quase todo o tempo.
senvolvimento que une os quatro espaços, já que, além das modificações ocorridas Com poucas opções de lazer e de atração, esses locais abrem espaço para
ao longo do tempo nas praças, o Parque Halfeld foi implantando dentro da regula- a ocupação por moradores de rua, expondo a apropriação seletiva e diferencia-
ridade do esquema de ruas feito a partir do traçado da Estrada Nova do Paraibuna, da de territórios. A prefeitura tenta atrair novo público, através de eventos cultu-
que ligava a Vila Rica ao Rio de Janeiro. rais, solução paliativa que vem sendo empregada também na Praça do Riachuelo,
Apesar da proximidade entre os quatro espaços, o Parque Halfeld é o que onde os moradores de rua se estabelecem na área em volta e nas proximidades do
possui a localização mais privilegiada, sendo que seu entorno se destaca pela diver- Monumento em homenagem aos pracinhas, que permanece fechado por grades
sidade de usos. A Praça do Riachuelo, por conta de sua localização, com intenso uso e vazio durante a maior parte do tempo. O que esta pesquisa também questiona
comercial e de prestação de serviços existente ao redor, privilegia as classes mais é qual a frequência dos acontecimentos culturais a ser adotada para que ocorra a
populares. Os pontos de ônibus existentes no entorno do Parque Halfeld e da Praça mudança desejada, e se é realmente possível alterar o uso diário desses espaços
do Riachuelo contribuem efetivamente para a movimentação das pessoas nesses apenas com eventos.
espaços, ao contrário do que acontece nas Praças da Estação e Antônio Carlos, onde Nos quatro espaços são apontados problemas relacionados à presença de
os pontos das proximidades pouco interferem na concentração de usuários. As duas moradores de rua, que ocupam, nos espaços públicos, áreas de menor articulação
últimas praças mencionadas apresentam características comuns quanto ao entorno, com o entorno, gerando sensações de insegurança, desordem e desconforto, preju-
com um rico conjunto arquitetônico que, entretanto, não está integrado às mesmas, dicando a manutenção e vitalidade desses espaços e afastando muitos usuários. No
em termos de atividades. Parque Halfeld, os moradores de rua destacam-se pela sua quantidade e se situam
Os usos e apropriações podem servir tanto para atrair, como também para em sua margem posterior, menos movimentada, voltada para a Igreja de São Se-
afastar as pessoas dos espaços. As áreas nesses espaços, onde as condições de uso e bastião, cujo uso é restrito aos dias e horários de celebração, demonstrando como o
abandono foram encontradas, reafirmaram as etapas do processo de sedimentação entorno interfere no uso ou esvaziamento dos espaços.
dinâmica (Carvalho e Dias Coelho, 2009). Além disso, foi possível constatar como o
conforto físico, psicológico e social podem reduzir as ameaças ao convívio público
(CARR et al., 1992). Referências Bibliográficas
Dos quatro espaços analisados, o Parque Halfeld é o que apresenta a maior
CARVALHO SANTOS, T. C. Espaço Público, Morfologia e Fragmentação – Rupturas e Mutações
diversidade de equipamentos e atividades para seus usuários, assim como a maior
no Ordenamento do Território. In: 6º Fórum de Pesquisa FAU – Mackenzie, Anais...,
possibilidade de usos e apropriações. Além disso, é o espaço que foi melhor adap- outubro de 2010, CD – Rom.
tado, de acordo com as mudanças de comportamento da população, apesar das
DIAS COELHO Carlos. A Praça em Portugal. Lisboa: DGOT, 2007.
inúmeras críticas recebidas depois de cada intervenção que sofreu. Em seguida,
ESTEVES, Albino. Álbum do Município de Juiz de Fora. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1915.
aparece a Praça do Riachuelo, que apesar de não apresentar grande diversidade do
seu mobiliário urbano, possui uma relação muito forte com o entorno e comporta FUNDAÇÃO João Pinheiro. PIB Minas Gerais – Municípios e Regiões 1999 – 2004. Informativo
CEI – Centro de Estatística e Informações. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro,
diversos usos e apropriações.
2006.
As duas Praças que apresentam menor uso são aquelas que sofreram grandes
GIROLETTI, Domingos. A industrialização de Juiz de Fora: 1850 a 1930. Juiz de Fora: Editora da
intervenções mais recentes, o que traz de volta o questionamento da compatibili-
Universidade Federal de Juiz de Fora, 1988.
dade dos critérios de desenho urbano nessas reformas com as ações e atividades
LESSA, Jair. Juiz de Fora e seus pioneiros: do Caminho Novo à Proclamação. Juiz de Fora: UFJF/
da população anteriormente ali realizadas. A Praça da Estação, essencialmente ca-
FUNALFA, 1985.
racterizada como local de passagem e cenário para seu conjunto arquitetônico, não
oferece variedade de atividades. Mesmo assim, recebe, por conta da sua localiza-

198 O passado tem futuro? Thereza Christina Couto Carvalho | Aline Lima Santos 199
MANGIN David; PANERAI Philippe. Projet urbain. Marseille: Éditions Parenthèses, 2005. 4. CIDADE CONTEMPORÂNEA: IDEOLOGIA E MERCADO
OLIVEIRA, Paulino de. História de Juiz de Fora. Juiz de Fora: Gráfica Comércio e Indústria LTDA,
1966.

Arquitetura da violência:
PREFEITURA MUNICIPAL DE JUIZ DE FORA. Atlas Social: Diagnóstico. Juiz de Fora: Editora
Biblioteca Municipal de Juiz de Fora, 2007.

segurança e mercado numa


cidade transparente
Sonia Maria Taddei Ferraz
Bruno Amadei Machado
Juliane G. Baldow

Resumo | Este trabalho atualiza as observações e análises referentes às alterações formais e


funcionais da arquitetura em nome da segurança patrimonial e suas repercussões no âmbito
da sociabilidade urbana. O universo de análise se desloca para Niterói, como reflexo do
crescimento das cidades de médio porte e seus desdobramentos em nível nacional. O foco
privilegiado se volta para o aumento da violência e o crescimento do mercado imobiliário
na cidade, fenômenos simultâneos observados no noticiário recente, e nos leva a investigar
como ambos conciliam a demanda por segurança patrimonial, que tem sido marcada pela
transparência como um símbolo da atualidade. Ao considerar a arquitetura como um reflexo
da realidade, a estética contemporânea redesenha também a paisagem urbana, incorporada
pelo mercado imobiliário. As formas atuais da arquitetura e da cidade impostas pelo merca-
do revelam e permitem observar como o espaço público tem sido “estreitado”, não só no seu
sentido essencial como também fisicamente, dado o avanço dos interesses e dos espaços
privados, apontando para a intensificação de uma sociabilidade urbana excludente, como
mais uma expressão da arquitetura da violência.
Abstract | This article updates the remarks and analysis on formal and functional changes
of architecture on behalf of property security and its effects on urban sociability. The analysis
moves to the city of Niterói, as a reflection on the growth of medium sized cities and its reper-
cussions on a national level. The privileged focus turns to the increase of violence rates and
to the expansion of the real estate market in the city, simultaneous phenomena observed
on the recent news, leading us to investigate how both reconcile the demand for property
security, often marked by “transparency” as a symbol of the present times. In considering
architecture as a reflection of reality, contemporary aesthetics also redesign the cityscape,
itself incorporated by the real estate market. Present-day forms of architecture and city im-

200 O passado tem futuro? Sonia Maria Taddei Ferraz | Bruno Amadei Machado | Juliane G. Baldow 201
posed by the market unveil and allow one to note how public space has been “narrowed”, minares, de como o mercado tem conciliado a demanda por segurança patrimonial
not only on its essential meaning, but also physically, given the advance of private interests com as tendências estéticas da atualidade, particularizadas nas edificações residen-
and spaces, pointing to the intensification of an excluding urban sociability, as an expression ciais multifamiliares.
of the architecture of violence.
Resumen | Este artículo actualiza el análisis y las observaciones sobre los cambios forma-
1. Niterói: “uma cidade rica é uma cidade sem pobreza”1
les y funcionales de la arquitectura en el nombre de la seguridad y sus repercusiones en la
sociabilidad urbana. El universo de análisis se desplaza hacia Niterói, lo que refleja el creci-
Em posição privilegiada no Índice de Desenvolvimento Humano, Niterói é
miento de las ciudades de tamaño médio y sus desarrollos a nivel nacional. El enfoque pri-
também a cidade com o maior número percentual de ricos no país. De acordo com
vilegiado se convierte en el aumento de la violencia y el mercado inmobiliário en la ciudad,
um estudo da Fundação Getúlio Vargas, datado de 2011, 30,7% da população do
fenômenos similares y simultâneos observados en noticias recientes, y nos lleva a investigar
município se insere na classe A2. A proximidade com o Rio de Janeiro implica não
cómo ambos concilian la demanda de seguridad patrimonial, que se he caracterizado por la
somente na facilidade de acesso à infraestrutura construída para receber os jogos
transparência como unsímbolo de la actualidad. Cuando se considera la arquitectura como
de 2014 e 2016 que serão realizados na capital, mas faz de Niterói destinatária de
un reflejo de la realidad, la estética contemporánea también vuelve a dibujar el paisaje ur-
investimentos e movimentos populacionais na metrópole. A condição de vizinha da
bano, construído por el mercado inmobiliário. Las formas actuales de arquitectura y de la
sede dos megaeventos, no entanto, exige recursos públicos para atrair benefícios à
ciudad que impone el mercado revelan y nos permiten observar cómo el espacio publico se
cidade. No campo urbanístico, o “horizonte de oportunidades” que se produz com
ha “reducido”, no solo en su significado esencial, así como fisicamente, como la promoción
vista aos megaeventos tem servido de pretexto para flexibilizar a legislação muni-
de los intereses y espacios privados, que apunta a la intensificación de la sociabilidad urbana
cipal. O jornal O Globo, de 17 de junho de 2012, noticiou o projeto de lei em vias de
excluyente, como otra expresión de la arquitectura de la violencia.
aprovação que altera o gabarito construtivo de determinadas áreas de Niterói para
até 30 andares, visando “atrair investimentos de olho no turista que visitará o Rio de
Janeiro durante a Copa do Mundo e as Olimpíadas”.
Introdução
Via de regra, a política para esses megaeventos tem sido marcada pelo em-
belezamento e limpeza da cidade, com ênfase nas políticas de segurança pública
O presente trabalho tem por objetivo atualizar as observações e análises re-
capitaneadas pela instalação de UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), prometen-
ferentes às alterações formais e funcionais da arquitetura em nome da segurança
do extirpar a violência das favelas e, consequentemente, do Rio. O noticiário jorna-
patrimonial e suas repercussões no âmbito da fragmentação espacial e sociabilida-
lístico, paulatinamente, passa a revelar o destino da “sujeira” carioca indesejável e
de urbana. O universo de análise da pesquisa se desloca das grandes cidades – Rio
sua expulsão das áreas mais valorizadas da cidade, elucidando a transferência da
de Janeiro e São Paulo – para aquelas de médio porte como reflexo do crescimen-
criminalidade para cidades de médio porte.
to apontado pelos dados do IBGE, divulgados pela Folha de São Paulo em matéria
Como efeito colateral dessa expulsão, nos últimos dois anos Niterói tem vi-
publicada no dia 1 de setembro de 2012. No período entre 2000 a 2010, as cidades
venciado a migração da criminalidade. A partir de fevereiro de 2011, a mídia noti-
médias – de 100 mil a 500 mil habitantes – registraram no Brasil as maiores taxas de
ciou indícios de “fracassos” da ação das UPPs pelo aumento do número de roubos e
crescimento populacional.
assaltos em cidades menores da região metropolitana. A situação atinge seu ápice
A escolha recaiu sobre Niterói, situada na região metropolitana do Rio de
quando, em 12 de abril de 2012, o secretário estadual de segurança, José Mariano
Janeiro. A localização da Universidade Federal Fluminense na cidade também nos
Beltrame, confirma a migração de bandidos para Niterói, oficializando o fenôme-
motiva a deslocar as atenções dos grandes centros para a sua dinâmica cotidiana
no e garantindo o aumento do efetivo policial no combate à violência. Nos meses
e seus problemas, como uma responsabilidade acadêmica e cidadã em relação à
cidade que nos acolhe.
Assim, o trabalho se divide em duas partes. A primeira caracteriza a cidade
1. A expressão foi extraída do vídeo-divulgação da “Operação Urbana Morro do Estado”. Proposta pela Secretaria de
de Niterói no contexto metropolitano contemporâneo, com foco no aumento da Urbanismo de Niterói, o projeto prevê a remoção de duas favelas entre as mais populosas da cidade e, como alternati-
violência e no crescimento do mercado imobiliário, fenômenos observados simulta- va, a realocação da população em conjuntos habitacionais.

neamente no noticiário recente. A segunda apresenta o resultado das análises preli- 2. (Online) Disponível em: <http://oglobo.globo.com/economia/niteroi-lidera-lista-da-riqueza-segundo-fgv-2757154>.
(Acesso em: 24 de outubro 2012).

202 Arquitetura da violência Sonia Maria Taddei Ferraz | Bruno Amadei Machado | Juliane G. Baldow 203
de 2012, a criminalidade aumenta, e a população protesta. Esse processo pode ser sensação de insegurança contra a delinquência e a percepção de que Niterói está
exemplificado pelas extrações jornalísticas abaixo: mais vulnerável e mais perigosa intensificam a adoção de estratégias novas e tradi-
cionais de segurança e proteção no redesenho da cidade.
O GLOBO Rio 10/02/2011: Prisão confirma migração de bandidos de favelas
Paralelamente, Niterói tem crescido e recebido vultosos investimentos imo-
ocupadas para pacificação. Traficante do Morro de São Carlos é capturado
biliários, como no caso do Jardim Icaraí, bairro de classe média situado na zona sul.
pela PM de São Gonçalo.
Segundo a Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário (ADEMI),
O GLOBO Rio 12/04/2012: Beltrame admite: bandidos migraram para Niterói. o bairro teve um incremento de 58% no número de unidades lançadas no período
O GLOBO 16/04/2012: Denúncias sobre ação de bandidos no Morro do Pre- de 2010-2011. Sob o título “Contrariando previsões negativas, mercado imobiliário
ventório (Niterói) crescem mais de 1.400% segue aquecido”, O Fluminense noticiou, em 10/06/2012, a valorização constante dos
imóveis em Niterói. No site Zapmoveis, de 2008 a 2012, a valorização imobiliária nos
PM decidiu instalar até a próxima segunda-feira um posto de comando bairros nobres do Rio de Janeiro e nos bairros nobres de Niterói girou em torno de
móvel na comunidade. O Morro do Preventório, antes local pacato, en-
100%. A dinâmica urbana do Jardim Icaraí, conhecida até 2009 pela presença pre-
frenta um crescimento da violência: comunidade concentra 70% da po-
pulação de Charitas. (...) Apontado como um dos destinos de traficantes dominante de residências unifamiliares de baixo gabarito, tem sido alterada, signifi-
que fugiramda Mangueira (RJ) após o início da pacificação, o Preventório cativamente, nos últimos dois anos. Os engarrafamentos constantes e a interrupção
experimenta um aumento do número de denúncias sobre a ação de ban- na distribuição de água sentidos no local são indícios da saturação na infraestrutura
didos. (...) Do fim de 2011 para o início deste ano, o clima se tornou ainda que não está preparada para receber tamanha quantidade de novos moradores.
mais tenso. As denúncias que chegam dão conta de que traficantes da
A divulgação de índices de violência influi não somente na sensação de in-
Rocinha (RJ), de uma facção rival à que domina o Preventório, estariam
segurança dos moradores, mas também nas decisões do mercado imobiliário. Se,
tentando invadir o local. (grifos nossos)
por um lado, o Estado tem tentado tranquilizar a população aumentando o efetivo
policial, como revela a matéria publicada pelo jornal O Globo, em 13/04/2012, inti-
O GLOBO 16/04/2012: Niterói protesta contra a escalada de violência. Mora- tulada “Niterói: mais 244 PMs para tentar frear violência”, a iniciativa privada reser-
dores fazem nova manifestação pedindo segurança, em fim de semana que va gastos ascendentes na adoção de novas tecnologias e estratégias de segurança
teve mais dois mortos na cidade. patrimonial. O Sindicato das
O GLOBO 13/10/2012: Cidade tem uma queixa Empresas de Segurança Pri-
por dia sobre ação do tráfico. Comunidades mais vada, Vigilância Patrimo-
afetadas são as ocupadas por criminosos do Rio. nial e Sistema de Segurança
(Sindesp-RJ) estima que, no
“As comunidades mais citadas são exata-
último ano, a venda de pro-
mente aquelas em que há denúncias da presença
dutos de segurança privada
de traficantes que migraram do Rio, após a im-
tenha aumentado 15% no
plantação das Unidades de Polícia Pacificadora
município, como aponta a
(...) 2.436 denúncias só este ano – uma média de
FIGURA 2 Divulgação de lançamentos imobiliários recentes no notícia publicada pelo jornal
270 por mês”. Jardim Icaraí (fotos de publicidades imobiliárias) O Fluminense, em 06/05/2012,
A onda de violência, o aumento de assaltos
intitulada: “Segurança privada e eletrônica em alta”.
e a intensificação dos protestos apontados acima
FIGURA 1 Protesto contra Protesto Nesse quadro, inquestionavelmente, o mercado imobiliário enfrenta o cons-
são reflexos da crescente sensação de inseguran-
contra violência em Niterói. O Globo, tante desafio de conciliar a volumosa oferta de imóveis residenciais, que precisam
16/04/2012 ça em determinadas áreas e passam a constituir
ser vendidos, com a inquestionável oferta de segurança residencial patrimonial que
Legenda da notícia: “Com cartazes pedindo uma ameaça à boa imagem da “Cidade-sorriso”3.
policiamento, moradores de Niterói fazem, represente ao mesmo tempo modernidade, atualidade e desenvolvimento.
na orla de São Francisco, mais uma manifes- Uma vez que a frequência de notícias aumenta, a
tação contra a onda de violência”

3. Niterói é conhecida como “cidade sorriso”.

204 Arquitetura da violência Sonia Maria Taddei Ferraz | Bruno Amadei Machado | Juliane G. Baldow 205
2. Segurança, mercado e transparência do, seus desenhos orgânicos, ou geométricos, os transformavam em elementos
também decorativos; os acabamentos, quase sempre em forma de lanças, reprodu-
O noticiário sobre as migrações da criminalidade do Rio para Niterói e o con- ziam simbolicamente a proteção, a defesa e o limite territorial da propriedade.
sequente aumento do medo da violência nos colocam frente ao crescimento das A proposta da arquitetura moderna subtraiu esse tipo de limites territoriais,
medidas de segurança, e, como decorrência, frente a três tipos de transparência: a caracterizando, grosso modo, os edifícios residenciais multifamiliares, no auge do
transparência ética proposta pelos movimentos sociais, a transparência dos muros período modernista, que exibiam elementos arquitetônicos como paredes de vidro,
de vidro que limitam os territórios da classe média e a transparência digital, tal qual planta livre e pilotis que liberavam o solo para usos coletivos, circulação e ventilação
nos apresenta Virilio (1993): – no Rio de Janeiro o Ed. Finúsia & Dona Fátima, o Ed. Angel Ramirez e Ed. João M. de
Magalhães, dos arquitetos MMM Roberto e o Ed. Jarau, do arquiteto Firmino Salda-
(...) não se trata mais, como no passado, de isolar pelo encarceramento nha, em São Paulo o Ed. Prudência, do arquiteto Rino Levi e o Ed. Louveira, do Arqui-
o contagioso ou o suspeito, trata-se, sobretudo, de interceptá-lo em seu
teto Vilanova Artigas. O uso dos pilotis permitia ainda a permeabilidade urbana e o
trajeto a tempo de auscultar seus trajes e bagagens, daí a súbita prolife-
ração de câmeras, radares e detetores nos locais de passagem obrigatória livre trânsito, ampliando o espaço da cidade, já que não interpunha barreiras físicas.
(VIRILIO, 1993, p.8). A implantação progressiva, nas últimas décadas, de altos muros e grades
(complexas, agressivas e sequenciais) de proteção e segurança tornou os espaços
A primeira transparência é expressa nos convites enviados pelo CCOB – Con- dos pilotis “impenetráveis”, como um retorno “à estrutura espacial dos mundos do
selho Comunitário da Orla da Baía de Niterói, para duas reuniões em 31/10/2012 passado”, como afirmou Norberg-Schulz (2005 p.):
sobre segurança e transparência política, como revelam os temas: “Fórum de trans- Entendendo que a arquitetura é, de modo peculiar, reflexo da realidade,
parência e controle social de Niterói” e “Conselho Comunitário de Segurança Públi- como constata Duayer (2008), é possível afirmar que na sua contemporânea subor-
ca de Niterói”; a segunda transparência é expressa pelos muros de vidro instalados dinação à perversa lógica do mercado, a arquitetura residencial multifamiliar, como
em praticamente todos os novos empreendimentos imobiliários; a terceira transpa- qualquer mercadoria, “advém antes de tudo da necessidade de valorização do capi-
rência, através das câmeras, vigia as ruas, dispensa políticas públicas de segurança tal e do seu instrumento de inovação estética que se expressa com a utilização de-
e “oficializa” o abandono dos espaços públicos, na medida em que as imagens cap- corativa repentina, sob a qual objetos de uso não guardam nenhuma estabilidade
turadas por elas oferecem confiabilidade suficiente para, por exemplo, desvendar rotineira e racional”, como afirma Haug (1997, p. 127).
crimes que ali acontecem, dada a sua incontestabilidade de registro imagético. O mesmo autor evidencia ainda que “cada nova tendência estética leva auto-
A análise das relações entre segurança, mercado e transparência na arquitetu- maticamente a um mercado”, e assim:
ra da violência contemporânea implica na percepção de que o redesenho urbano se (...) “uma mercadoria puxa outra mercadoria e uma compra puxa outras
dá pela renovação de elementos e equipamentos de proteção residencial. As grades compras. Essa dinâmica tem uma tendência totalitária; ela ambiciona to-
de ferro, por exemplo, têm sido substituídas, extensivamente, por muros de vidro talidades dirigidas respectivamente por gerações de mercadorias. Estas
e complementos digitais, evidenciando a preferência por determinada concepção mostram a dinâmica pretendida por meio de conceitos tais como ‘moda
entre espaços públicos e privados. O consubstanciamento dessa análise sugere um total’ e ‘design total’, oriundos das linguagens dos agentes do capital e
que são alcançados somente de modo insuficiente. Pois esses conceitos
voo por formas pretéritas de arquitetura que implicavam de modo relevante em
atingem primeiramente determinados grupos de mercadoria, por exem-
outra concepção das relações entre espaços públicos e privados da cidade. plo, a ‘moda feminina’ (roupas, perucas, acessórios) ou a ‘cultura habita-
Apesar das resistências iniciais à subordinação das artes e da arquitetura aos cional’ (móveis, tapetes, cortinas, luminárias, vasos, quadros, etc.). Se no
processos de produção industrial, o uso do ferro na arquitetura, ainda no século XIX, mundo humano as gerações coexistem, o mesmo ocorre no mundo das
começou com experimentações determinadas pela produção industrial e em série mercadorias com os ‘estilos’, cada qual cobrindo respectivamente um
que procuravam se adequar à estética da época, subordinando as propriedades na- segmento do mercado e no âmbito dos quais as gerações de mercadoria
se sucedem” e “a única coisa determinada nessa configuração é que eles
turais do material à criação de elementos construtivos orgânicos florais, incorpo-
precisam ser novos e homogêneos estimulando a compra”. (HAUG, 1997,
rando beleza à sua função. No Brasil, a evolução da ocupação dos lotes nas cidades p.124 e 126)
introduziu o uso de gradis de ferro nos limites e acessos aos terrenos residenciais.
Além de sua função reguladora e explicitadora das relações entre público e priva-

206 Arquitetura da violência Sonia Maria Taddei Ferraz | Bruno Amadei Machado | Juliane G. Baldow 207
Assim sendo, a estética dos elementos e equipamentos de proteção e seguran- vidro vem se popularizando nas cidades, no mesmo período. Em segundo lugar, o
ça residencial tem sido progressivamente substituída pela moda dos muros ou panos muro de vidro, que em 2007 chamava atenção pelo seu caráter singular em contras-
de vidro combinados com grades tubulares de alumínio, associadas a equipamentos te com o gradeamento convencional dos edifícios entorno, agora é, via de regra, a
digitais e tecnológicos, como que inaugurando uma nova cultura habitacional. solução mais “rotineira” observada nos novos edifícios da elite e da classe média
Portanto, na perspectiva da “moda total” e do “design total”, oriundos da lin- niteroiense.
guagem do capital, a transparência, como moda e design, aliada à transparência da Ao considerar a transparência como propriedade fundamental do vidro, sua
Era Digital, da qual fala Virílio (1993), significa a constante conexão, vendo e ouvindo aplicação na cidade e na arquitetura residencial poderia então ser entendida como
tudo o tempo inteiro, e traz para o campo do consumo todo tipo de transparên- uma resposta física do mercado à tendência da transparência na era digital. Mas,
cia. No campo ético, o Portal da Transparência do Governo Federal e as revelações para que o vidro se viabilize como barreira, sua fragilidade e devassamento devem
do Wikileaks; na moda feminina, o Fashion Rio 2013 apresentando bolsas, sapatos e ser complementados por um aparato digital e tecnológico altamente sofisticado.
roupas transparentes; no campo da cultura habitacional, de que fala HAUG, pode- Tamanha sofisticação, tida como diferencial nos anúncios publicitários de
riam ser ainda incorporados os revestimentos, os estilos de fachadas, de muros e condomínios residenciais da década de 1990, já deixou de ser um privilégio para se
seus materiais. À independência das estruturas espaciais dos “mundos do passado”, tornar requisito essencial nos novos empreendimentos, que incluem, “obrigatoria-
poderia ser acrescentada a ampliação dos limites dos lotes numa apropriação indé- mente”, sistemas de monitoramento remoto 24h, interfones, portões automáticos,
bita dos espaços públicos. alarmes e serviços privados de segurança. Comprovadamente, as visitas ao Jardim
No que concerne à proteção e segurança, na arquitetura contemporânea de Icaraí confirmam que nenhum empreendimento de classe média e alta tem sido
habitações multifamiliares, o vidro surge como o dernier cri na confecção dos muros, entregue sem esse sistema.
inaugurando um redesenho urbano marcado pela transparência. Sem dúvida, a sofisticação do mercado de segurança permite, cada vez mais,
Já na cidade do Rio de Janeiro, o uso do vidro como barreira tem se popu- que os muros sejam transparentes e que as cidades sejam de vidro. A necessidade que
larizado nos últimos cinco
anos. Em 2007, o fenômeno
foi noticiado pelo jornal O
Globo, que em matéria intitu-
lada “Fortalezas de vidro” (O
GLOBO, 22/04/2007), revelou
a substituição que se iniciava
nos prédios da orla carioca, em
especial em Ipanema.
No mesmo ano, levanta-
mentos fotográficos do acervo
do grupo de pesquisa registra-
ram os primeiros empreendi-
FIGURA 4
mentos com características si- Transparência
milares em Niterói, um conjunto e aparatos de
segurança ob-
multifamiliar de alto padrão em servados nos
frente ao Museu de Arte Con- novos edifícios
multifamiliares
temporânea.
no Jardim Icaraí
O registro e observa- (acervo da pes-
FIGURA 3 Grade de ferro (fonte: Google Earth) substituída na ções empíricas já nos levam a quisa)
2ª imagem por painel de vidro na Rua Presidente Pedreira. concluir, primeiramente, que o
(acervo da pesquisa)

208 Arquitetura da violência Sonia Maria Taddei Ferraz | Bruno Amadei Machado | Juliane G. Baldow 209
o vidro cria na ampliação do mercado de equipamentos de segurança vai ao encontro com reflexos do público. Tal reflexo não amplia a importância do espaço público
da notícia publicada pelo jornal O Fluminense, citada anteriormente, a qual divulgou o como campo de trocas e interações, ao invés disso, ajuda a reduzi-lo de significação,
aumento de 15% em um ano do mercado de segurança no município. De certa forma, como aponta Chauí5: “Uma das características mais impressionantes do neolibera-
a consolidação do uso de novas estratégias de segurança fecha um ciclo, pois insere lismo é que ele opera pelo encolhimento do espaço público, do alargamento do
produtos que valorizam a transparência e nos induzem a crer que estamos mais co- espaço privado, seja o espaço privado do mercado, seja o espaço da vida privada”.
nectados com o exterior – o público, e que o público está mais conectado conosco. Observa-se assim um tipo de redesenho urbano que retraça os caminhos dos
O uso do vidro tem sido vendido sob a justificativa de que o material pro- pedestres e corrobora para a afirmação de que o espaço público tem encolhido,
porciona integração. Contudo, as barreiras urbanas continuam presentes e mais não só fisicamente como também do seu sentido ético essencial. A hostilidade do
intransponíveis, fazendo com que a dita integração seja estritamente visual, se li- mercado às estéticas dos “mundos do passado” certamente se funda na sua corres-
mitando a uma simulação. A permeabilidade visual que o vidro oferece contrasta pondência à outra ética.
com a definitiva separação física, que impossibilita qualquer contato real entre os Nota-se também que a aplicação do vidro encontra um campo fértil na au-
dois lados, pois, como afirma Bernadette Panek (2010), o que se forma é “um espaço sência de normatização, em todas as escalas de poder. A despeito da Lei Municipal
acessível apenas à tentação do olhar”. A autora, complementarmente, afirma ainda Carioca de nº 5119/2009 que determina a “instalação de sinalização nas vitrines e
que “a fronteira concretizada pelas enormes vidraças impõe um território, enquanto portas de vidros translúcidos nos imóveis”, e abre precedente para a regulação, ainda
pretende deixar a vista tudo o que ali se passa – a transparência mostra-se como a que tímida, do uso de portas de vidro de edifícios residenciais multifamiliares, o mu-
própria simbologia da hipocrisia”. nicípio de Niterói não dispõe de qualquer legislação que trate do tema. A cartilha,
Essa tamanha ambiguidade do vidro tem sido também explorada no campo recentemente publicada pela Secretaria Municipal de Urbanismo, que traz diretrizes
das artes, como por exemplo, na obra recente do artista americano Robert Morris, de projeto e trata da ocupação de passeios públicos, em nenhum momento men-
exposta na Praça Cinelândia da cidade do Rio de Janeiro, onde o visitante é con- ciona o uso do vidro como muro. O método “caso-a-caso”, adotado pela secretaria
vidado a penetrar num labirinto de vidro. O comentário de Ryan Roa sobre a obra na aprovação de projetos de instalação de elementos de delimitação dos lotes, e as
em que chama atenção para a qualidade refletiva do vidro e pela desorientação no observações empíricas levam a questionar até onde a segurança do pedestre e o
espaço que ele provoca nos ajuda a melhor perceber o significado do uso dos muros respeito ao dimensionamento do passeio público têm sido levados em consideração.
de vidro na cidade: Conclusivamente, o conjunto de ideias aqui apresentado leva a crer que a
substituição das grades por vidros desvela, mais uma vez, o papel do mercado imo-
Um aspecto realmente legal do vidro é a sua boa qualidade refletiva. Além
disso, obtem-se uma espécie de filtro, por ter uma peça de vidro aqui,
biliário como lugar de representação simbólica e de imposições da sociedade de
depois outra peça ali e a próxima peça de vidro aqui, e isso começa a criar mercado, apontando para a intensificação de uma sociabilidade urbana excludente
um pouco de desorientação no espaço. A ideia por detrás de um labirinto como mais uma expressão da “arquitetura da violência”.
é que, ao caminhar por ele, você está vivenciando o espaço. Mas com a
transparência você não apenas vivencia o espaço, com também vivencia
todo o espaço ao redor do labirinto. 4 Referências bibliográficas
A fala expõe o enorme potencial oferecido pelo uso do vidro em um contexto Davis, M.: A escobazo limpio, 2005. Disponível em: <http://www.sinpermiso.info/textos/
artístico e experimental, mas também os riscos inerentes à sua aplicação em um index.php?id=277> (Acesso em: 25 de outubro 2011).
contexto urbano, que não se limita à experiência singular da obra de arte, conside- Duayer, J.: Lukács e a Arquitetura, Niterói, Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008.
rando aspectos referentes à legibilidade urbana, clareza e facilidade de orientação, Featherstone, M.: Cultura de consumo e pós-modernismo, São Paulo, Studio Nobel, 1995.
como nos lembra Kevin Lynch. Ferraz, S. M., Brondani, D.& Guimarães G.: Arquitetura da violência: Medo individual e nova
Quando observamos um lote envidraçado, aquilo que percebemos é uma coletividade, resumo publicado nos Anais do 13º Seminário de Iniciação Científica e
imagem distorcida do real. O que se forma é um espaço que sobrepõe o privado Prêmio Vasconcellos Torres, Niterói/RJ, 2003.

4. (Online) Disponível em: <http://www.thecreatorsproject.com/blog/agenda-creators-%E2%80%93-as-boas-de-arte- 5. (Online) Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=KrN_Lee08ow> (Acesso


-e-tecnologia-para-o-fim-de-semana-21-2309> (Acesso em: 25 de outubro 2012). em: 8 de novembro 2012).

210 Arquitetura da violência Sonia Maria Taddei Ferraz | Bruno Amadei Machado | Juliane G. Baldow 211
Ferreira, L. P. & Cardoso N. P.: Arquitetura da violência: cidade limpa e segura para turista
ver, resumo publicado nos anais do III Seminário Internacional de Derechos Humanos, Projeto, ideologia e hegemonia
Violencia y Pobreza, Montevidéu, 2010.
Ferraz, S. Furloni, C. & Madeira, C.: Arquitetura da Violência – Os (des)caminhos da
arquitetura moderna, resumo publicado nos Anais do 16º Seminário de Iniciação
na cidade brasileira contemporânea
Científica e Prêmio Vasconcellos Torres, Niterói/RJ, 2006.
. & Possidônio, E. dos R.: Violência, medo e mercado: uma
Pedro da Luz Moreira
análise da publicidade imobiliária. RevistaImpulso, 15, 87-97, 2004.
. & Santiago A., Gonçalves C. & Miranda F.: Arquitetura da
Violência: A cidade é uma casa. A casa é uma cidade. Resumo publicado nos Anais do
17º Seminário de Iniciação Científicae Prêmio Vasconcellos Torres, Universidade Federal Resumo | O presente artigo se utiliza dos conceitos de plano, projeto, ideologia e hege-
Fluminense, Niterói, 2007. monia para construir uma proposição concreta para as cidades brasileiras. O texto preten-

Lynch, K. A imagem da cidade, São Paulo, Martins Fontes, 2006. de apontar a necessidade de reversão dos condicionantes que hoje determinam a maneira
como a cidade brasileira vem sendo construída, notadamente: dispersão urbana, constru-
Muñoz, J. A. J. & Massera, C. A.: La transparencia y la exclusión: ver pero no estar. Revista
arquitetura, 6, 27-36, 2010. ção de novas habitações sem mistura de classes, mobilidade baseada no automóvel e des-
consideração com relação a biomas naturais complexos próximos ou inseridos nas malhas
Norberg-Schulz, C.: Los Principios de la Arquitectura Moderna: Sobre la nueva tradición del
urbanas. Pretende-se dar protagonismo ao plano e ao projeto a partir da sua caracterização
siglo XX, Barcelona, Editorial Reverté, 2005.
como o instrumental mais apropriado para avaliar custos e benefícios.
Panek, B.: Estética dos reflexos: a amplitude mas também a hipocrisia da transparência.
Palíndromo, 3, 171-189, 2010. Abstract | This article uses the concepts of: plan, design, ideology and hegemony to build
Sennet, R.: O declínio do homem público: as tiranias da intimidade, São Paulo, Ed. Companhia a concrete proposal for Brazilian cities. The paper aims to highlight the need for reversing
das Letras, 1988. the conditions that now determine how the Brazilian city has been built, notably, urban
Severiano, M. de F. V. & Benevides, P. S.: A lógica do mercado e as retóricas de inclusão: sprawl, new housing construction without mixture of classes, mobility-based on automo-
articulações entre a crítica Frankfurteana e a Pós-Estruturalista sobre as novas formas tive and disregard in relation to complex natural biomes next or inserted in urban networks.
de dominação. Estudos e Pesquisas em Pscicologia, 11, 2011, 103-124. It is intended to give prominence to the plan and the project from its characterization as the
Virilio, P.: O espaço crítico e as perspectivas do tempo real, Rio de Janeiro, Editora 34, 1993. most appropriate instrument to assess costs and benefits.

Haug, W. F.: Crítica da estética da mercadoria, São Paulo, Fundação Editora da UNESP, 1997. Resumen | En este artículo se utilizan los conceptos de plan, proyecto, ideología y hege-
Jornais diários monía para construir una propuesta concreta para las ciudades brasileñas. El texto tiene
como objetivo poner de relieve la necesidad de revertir los condicionantes que ahora deter-
Folha de São Paulo, O Globo e O Fluminense – diversas edições impressas e online.
minan la forma en que la ciudad brasileña viene siendo construida, en particular, la expan-
sión, la construcción de nuevas viviendas sociales sin mezcla de clases, la movilidad basada​​
en el automóvil y desconsideración en relación a complejos biomas naturales próximos o
insertados en redes urbanas. Se pretende dar protagonismo al plan y al proyecto a partir de
su caracterización como el instrumento más adecuado para evaluar los costes y beneficios.

212 Arquitetura da violência Pedro da Luz Moreira 213


1. Projeto, ideologia e hegemonia1 nas Ciências Sociais. Essa variação está vinculada à construção específica do conhe-
cimento social por um grande número de autores que se utiliza de acepções parti-
Num primeiro momento é preciso destacar a presença do projeto, da ideologia culares para suas estruturações. No campo mais específico da atividade profissional
e da hegemonia em nossa sociedade contemporânea, no meu entendimento essas do arquiteto, Tafuri dedicou-se ao termo qualificando muitas vezes essa atuação
três dimensões determinam a forma como a cidade brasileira vem se construindo. como uma ordenação ideológica que aponta para um esforço de cooptação social
Em sua origem, a palavra projeto é composta pelo prefixo pro, que denota das ideias, de modo que estas ganhem permeabilidade social ou aceitação geral.
antecipação, previsão e por jactar, que significa lançar, arremessar. O projeto, por- Realmente o termo ideologia possui uma das mais complexas evoluções no campo
tanto, pretende ser a antecipação de uma ação concreta, uma obra, buscando da sociologia, ele pode ser definido: de forma negativa, como uma distorção do real,
prever as complexas relações entre os benefícios e os custos de uma determinada a partir da perspectiva da inserção social dos indivíduos, ou de forma positiva, como
ação, transformação, reforma, construção, etc. Importante aqui assinalar a distinção um sistema de ideias, crenças e pensamentos que estruturam nossas práticas coti-
existente entre as ações de projeto e do plano2, que apesar de algumas semelhan- dianas. O mundo moderno tendeu a uma valorização da ideologia, pois os sistemas
ças se referem a um tempo distinto e a um grau diferente de precisão. O projeto se de crenças e discursos já instalados tenderam a ser desacreditados e reconstruídos
refere e descreve um objeto concreto e preciso com uma previsão de realização de a partir da interpretação do indivíduo3. O reconhecimento da presença da ideologia
mais curto prazo, enquanto o plano possui maior grau de imprecisão e pretende é um ato de modéstia diante da complexidade da totalidade e da parcialidade de
alcançar objetivos mais difusos, com uma definição de tempo mais longa. O projeto nossas visões condicionadas por nossas formações limitadas.
e o plano podem ser encarados como a crítica operativa do real, pois pretendem A hegemonia é a dinamização do conceito de ideologia, é o objetivo destas
não apenas uma simples descrição de um problema, mas sua mudança. Em sua formulações de conquistar o metabolismo social, transformando-se em hipóteses
busca por operatividade, o plano e o projeto pretendem a materialização de suas teóricas com capacidade de modificar o real, por serem amplamente aceitas. A he-
proposições, adequando e conciliando interesses diferenciados. O projeto e o plano gemonia é uma ideologia com ampla aceitação social. O conceito de hegemonia
são, portanto, discursos que visam convencer a sociedade de que aquela é a melhor foi elaborado por GRAMSCI4 e se referia, na perspectiva histórica, à capacidade de-
direção, intervenção ou proposta a ser empreendida naquele contexto específico. monstrada pela ideologia burguesa de valorização do individualismo, da meritocra-
Importante salientar que o projeto e o plano, apesar de críticos, não refundam de cia, da supressão da hereditariedade na definição dos governos, em ser aceita por
forma completa o meio construído pelo homem, mas consideram e trabalham com outras classes e se generalizar como objetivo e ideal generalizado. O mesmo autor
pré-existências, que são valoradas e consideradas. Isto é, o projeto e o plano não fazia uma importante distinção entre ideologias arbitrárias e ideologias historica-
tratam o real como uma tábula rasa a ser fundada ou inventada, mas consideram as mente orgânicas. As ideologias arbitrárias pretendiam a manutenção do status quo,
pré-existências humanas ou naturais como presenças a serem consideradas. sendo representações da manutenção das formas de operar já instaladas e meca-
Sendo um discurso que pretende a operatividade, isto é, atuar sobre o real, nizadas. Enquanto as ideologias historicamente orgânicas buscavam a superação
podemos vinculá-lo à questão da ideologia, pois esta pode ser encarada como uma das formas de operar do mundo mecânico, realizando avanços da ciência e da ob-
teoria com capacidade de transformar o real. Aqui definimos ideologia como um jetividade. Na sua perspectiva revolucionária, o conceito de hegemonia se referia
conjunto de crenças, ideias, pensamentos, doutrinas de um indivíduo ou grupos so- à ideologia do operariado de valorizar o trabalho, socializar os meios de produção,
ciais que estruturam sua prática, seu agir, sua concepção de bem viver. Qual o senti- conquistar outras classes para suas causas. Há na hegemonia uma complexa relação
do desse termo que, invariavelmente, perpassa nosso cotidiano de forma, ao mesmo dialética entre coerção e consenso, uma vez que os variados agentes aceitam seus
tempo, marcante e dissimulada? O conceito de ideologia encerra uma grande po- preceitos como dados concretos, com os quais operam na vida cotidiana.
lissemia e uma variedade de sentidos que poucos termos na história da sociologia Portanto, o projeto e o plano são discursos persuasivos que pretendem con-
moderna carregam. Autores como Michael Löwy, Norberto Bobbio, Marilena Chauí, vencer a sociedade da melhor relação entre custo e benefício das transformações
Vilfredo Pareto e Leandro Konder destacam essa imprecisão ou variação do termo propostas, como tal, estes muitas vezes manipulam preceitos e proposições que se
envolvem com a temática da ideologia e da hegemonia. Portanto, o arquiteto e ur-
banista seria um ideólogo do habitar que possui propostas para a cidade e a casa
1. MOREIRA, Pedo da Luz. Projeto, Ideologia e Hegemonia, em busca de uma conceituação operativa para a cidade brasilei-
ra – Tese de doutorado defendida em 2007 na UFRJ/FAU/PROURB.
2. PORTAS, N. Urbanismo e Sociedade: construindo o futuro em Cidade e Imaginação – org MACHADO, D. P.Rio de Janeiro: 3. HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade –São Paulo: Martins Fontes, 2002.
UFRJ/FAU/PROURB, 1996. Nuno discute os tempos e os graus de precisão do projeto e do plano. 4. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere volume 4 –Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

214 Projeto, ideologia e hegemonia na cidade brasileira contemporânea Pedro da Luz Moreira 215
de forma convincente e persuasiva para a sociedade, convencendo-a de que suas antes depois

propostas pretendem a materialização de ideologias, que buscam se tornar hege-


mônicas. O arquiteto Manfredo Tafuri5, crítico italiano atuante nos anos de 1980, já
acreditava que a profissão tende a ser um ordenamento ideológico, que busca con-
vencer a sociedade de suas proposições referentes à construção do espaço humano.

2. O ofício e a cidade

A arquitetura e o urbanismo é uma profissão única, o arranjo institucional


do ofício no Brasil tendeu a abarcar as duas atividades. Neste ofício generalista, a
dimensão propositiva é uma presença constante. O arquiteto estuda para propor. O
diagnóstico se estrutura para construir um prognóstico, numa linguagem médica.
Os arranjos formais nascem da análise de como está estruturado o real, a mudança
sempre leva em conta o existente e o já construído. A cidade, horizonte de atuação
do arquiteto, é o contexto que forma, informa e conforma o projeto. Como no exem-
plo da Praça do Campidóglio em Roma desenhada por Michelangelo em 1538. As
adições e supressões são pensadas de forma a se atingir a melhor relação de custo
e benefício, a autonomia do indivíduo renascentista pretende convencer a socieda-
FIGURA1 Praça do Campidóglio em Roma desenhada por Michelangelo em 1538
de que a construção do futuro programado e controlado é possível. A praça renas-
centista, com artifícios de perspectiva emerge do mundo medieval que o precede, de, nasce a dimensão simbólica da cidade de preservação da história comunitária.
querendo acabar com a desconexão e a irracionalidade da construção do ambiente Muito tempo transcorreu para que as cidades passassem a abrigar uma variedade
humano. O ofício de arquiteto e urbanista possui uma dimensão operativa, na qual o de atores e profissões, mas a estrutura da cidade antiga já apresenta a mesma or-
habitar e o habitat humano são pensados de forma integrada, a casa e a cidade são denação de nossas cidades contemporâneas, o espaço da intimidade da família e
matéria de estudo e proposição. o espaço público, onde se dão as trocas, a convivência e a noção de comunidade,
A cidade é uma das mais brilhantes invenções humanas. Ela na verdade é capaz de garantir a reprodução. A cidade da antiguidade clássica, grega ou romana,
consequência da própria constituição do homem enquanto espécie, um ser frágil onde se destacam edifícios públicos como o fórum, o teatro, as termas, onde a vida
quando isolado, mas poderoso quando articulado comunitariamente. Desde tempos social ganha intensidade e sofisticação. A cidade obriga o indivíduo em seu cotidia-
imemoriais, o homem enquanto espécie buscou adaptar o meio em que vive às suas no a conviver com a diversidade de pensamentos, de forma de agir e de crenças.
condições. O homo sapiens desde sua constituição como espécie se demonstrou Nesse sentido ela domestica a individualidade humana, adquirindo um caráter di-
como ser incompleto ou separado do natural, propenso a criar outra natureza que dático inequívoco que fortalece a humanidade.
o abrigue. A cidade, por exemplo, nasce do horror sentido pelo homem primitivo, A cidade sofre um desenvolvimento histórico linear até a emergência da Re-
que observa animais violarem túmulos de seus antepassados. A cidade dos mortos volução Industrial, que reforça a capacidade da coletividade de autodeterminar seu
precede a dos vivos6. Os primeiros assentamentos humanos são partes do territó- futuro. A cidade industrial explode a dimensão do urbano7, não existe mais uma só
rio, onde essa espécie enterra seus antepassados, edificando e protegendo contra comunidade, mas um universo de comunidades variadas. A partir deste momento
a violação de animais silvestres. O primeiro habitante vivo dessas aglomerações é se materializa na prática a diferenciação entre comunidade e sociedade. Na cidade
o sacerdote, que abandona o nomadismo e se fixa para proteger a memória dos industrial, o território explode em extensão e a dimensão entre oferta e procura da
que morreram. Nesta primeira divisão social do trabalho, o sacerdote e a comunida- habitação se problematiza, surge uma massa significativa de pessoas pobres, ávidas
por empregos e oportunidades, que se concentram em bairros específicos. Emer-
5. TAFURI, Manfredo.Teorias e História da Arquitetura – Editorial Presença Lisboa, 1979. Tafuri identifica numa parte da
crítica uma dimensão propositiva, que a aproxima da projetação.
6. COULANGES, Fustel de.A Cidade Antiga –São Paulo: Martins Fontes, 1987. 7. LEFEBVRE, Henry.A revolução urbana.Belo Horizonte: UFMG, 2004.

216 Projeto, ideologia e hegemonia na cidade brasileira contemporânea Pedro da Luz Moreira 217
gem também os bairros ricos e sofisticados, onde a presença de infraestrutura varia- A ideologia do morar moderno contamina todas as partes do mundo, de-
da garante padrões de vida urbana adequada e salubre. Há nesse desenvolvimen- senvolve-se a ideia de um progresso unidirecional, capaz de superar o arcaísmo.
to um problema de escala, tamanho e de tempo de desenvolvimento. As cidades A ideologia modernista torna-se hegemônica, colonizando mentalidades em todas
perdem seu caráter comunitário e assumem o caráter de federação de comunidades. as partes da terra. A redenção propiciada pela padronização, estruturada pelo de-
Desenvolvem-se padrões de salubridade que determinam o substancial declínio da senvolvimento de uma indústria moderna e autônoma contamina as vanguardas
taxa de mortalidade infantil e a ampliação da expectativa de vida, desenvolvem-se modernistas no Brasil. Desenvolve-se a crença de que a industrialização do país pos-
diferentes concepções do que é o bem viver. A cidade aumenta numa escala popu- sibilitará a ruptura com um passado recente colonial e escravagista impulsionando
lacional jamais vista, numa aceleração cada vez mais intensa. Manchester cresce em uma mudança estrutural. A presença dessa ideologia pode ser sentida no texto do
90 anos de 12 mil para 400 mil habitantes no século XIX. São Paulo cresce no espaço então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, a respeito do novo bairro
de 70 anos, de 900 mil para 20 milhões de habitantes no século XX. Nos próximos 20 da Pampulha em 1944, no qual fica claro o compromisso de construir o “domínio
anos está previsto que a China terá um êxodo rural de 800 milhões de pessoas, ou do homem sobre a natureza”. O texto também é testemunho da constante melan-
seja, o correspondente a quarenta São Paulos. colia mineira que vive apartada do mar, pois faz uma analogia da Pampulha com
um “sonho Atlântico entre as montanhas”, que ao final também denota esta mesma
capacidade de transformar a natureza em favor dos desígnios humanos...
3. A ideologia modernista
“Centro geográfico de Minas, Belo Horizonte condensa a vida econômica,
política e social do Estado. Entre menina e moça, caracteriza-se pela mo-
Para enfrentar este cenário que se iniciara na Inglaterra do século XIX, mas que
dernidade de suas linhas e relevos. Com efeito, delineada há quarenta e
se generalizara pela Europa na passagem do século XIX para o XX, e na Europa Central
cinco anos, à beira do sertão virgem, é tão nova que ainda se lhe percebe
assumira uma dinâmica particular, emerge um conjunto ideológico de proposições o cheiro da terra lavrada de pouco. Mas já exubera em realizações: grande
que pode ser caracterizado como a síntese modernista. A síntese inteligente da ide- cidade povoada de cerca de duzentos e cinquenta mil habitantes, agita-
ologia modernista, gestada pelas vanguardas no centro da Europa, notadamente na -se, produz, estuda, diverte-se, amplia-se e prospera.
Alemanha, proclamam que a arquitetura não deve mais se restringir aos monumen- Obra de audácia e tenacidade, Belo Horizonte assenta-se no  domínio do
tos, mas deve projetar a casa do operário, o conjunto habitacional, a casa anônima. A homem sobre a natureza, que a emoldura de híspidas montanhas de ferro. Os
arquitetura e o urbanismo devem se voltar para a produção do cotidiano, da cidade elementos essenciais, de que já dispõe a fartar a cidade azul e verde, foram
extensiva, da moradia, e não mais apenas ao edifício monumento, da exceção. A lin- acumulados e disciplinados pela energia de suas administrações,e não re-
presentamumadádiva fácildas circunstâncias naturais.
guagem empostada do ecletismo, que havia se reduzido a um conjunto de receitas
automáticas, numa mera montagem mecanicista da história, pretende ser substituída A dez quilômetros do centro da cidade, a Pampulha corresponde a uma
por uma nova objetividade que deixe transparente as formas do construir. Desenvol- destas concepções do gênio e do esforço dos homens que a edificaram:
um lago artificial circundado por uma avenida de quase vinte quilômetros
ve-se uma crença ingênua na capacidade produtiva da indústria como redentora das
de extensão, ali rebrilha, como uma placa de cristal, à luz do céu – espelho
mazelas da humanidade, que passa a ser agrupada em tipos padronizados. O discurso do mar longíquo – com uma dupla função utilitária e decorativa.
das vanguardas mais radicalizadas determina que a prioridade do projeto passe a ser
Reserva de milhões de litros d´água para a cidade que se agiganta, a Pam-
as periferias intermináveis, um homem tipo, um standart, um padrão. O monumento
pulha realiza, ali, um sonho do Atlântico entre as montanhas. O Cassino, o
passa a ser o túmulo da arquitetura8, os padrões mínimos de existência passam a ser Baile, o Iate Golfe Clube e o Parque em construção, em meio das viven-
estudados, o canteiro de obra passa a ser encarado como o local da montagem de das que se debruçando sobre o lago, completam, no soberbo conjunto,
uma série de componentes pré-fabricados. A construção passa a ser a possibilidade o núcleo turístico, em função do qual os homens submetem, por fim Belo
de reunião de todas as artes. Há uma crença desmedida no industrialismo e sua capa- Horizonte, integralmente, ao seu signo de modernidade”.9
cidade de tornar acessível uma série de bens e confortos, generalizando seu acesso.
Esta nova esperança do Brasil acaba mudando a capital federal de lugar no
final da década de 1950, cravando no coração do país uma cidade moderna, onde a

8. LOOS, Adolf.Ornamento y Delito.Barcelona: Gustavo Gilli, 1989. 9. KUBISTCHECK, Juscelino. Pampulha. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1944.

218 Projeto, ideologia e hegemonia na cidade brasileira contemporânea Pedro da Luz Moreira 219
que chega e chegará às nossas metrópoles. Agora as principais metrópoles procu-
radas estão localizadas no Terceiro Mundo, dominadas pela autoconstrução e pelas
favelas. Portanto, os desafios colocados para os arquitetos – ideólogos do habitar
humano – são a customização da casa urbana, uma ideia de interação mais positiva
com o meio ambiente, certa consciência da diversidade e da multiplicidade de pos-
sibilidades do desenvolvimento, que deixou de ser unidirecional.
Aqui cabe também uma pequena consideração sobre as formas tradicionais
de operar da política e da própria arquitetura contemporânea, em que se perce-
be nos últimos tempos uma clara hegemonia da sociedade do espetáculo10, frente
ao cotidiano. As revistas especializadas consagraram um time de arquitetos do star
sistem, que agem como pop star, repetem-se em formulações consagradas, diante
de contextos locais que demandam pensamentos particularizados. Os megaeven-
tos globais, que estão para ser realizados em nosso país nos próximos anos, pre-
cisam ser geridos a partir da busca de uma infraestrutura urbana transformadora
FIGURA 2 Getulio Vargas, Benedito Valadares e Juscelino Kubitcshek sobem a rampa do Iate Clube na Pam-
pulha e planta e imagem da superquadra em Brasilia do cotidiano das nossas cidades. Os interesses da macro escala global, e da micro
escala comunitária podem ser acomodados no projeto e no plano, desde que os
superquadra idealizada por Lucio Costa é a nova referência do morar brasileiro.
agentes dessas vertentes atuem de forma transparente, com a premissa da nego-
O progresso parece assumir uma dimensão unidirecional, uma sucessão linear de
ciação incansável. Esses megaeventos globais estão no âmbito do espetáculo de-
etapas, que alinham práticas e países arcaicos e modernos num etapismo linear.
mandando a construção de monumentos. O habitar, o trabalho, a mobilidade das
pessoas, o lazer, a educação e a cultura estão no âmbito do cotidiano. Ambas as
4. Sociedade contemporânea esferas demandam a construção do bem viver. Um faz parte do excepcional e está
vinculado à economia global, o outro conforma o corriqueiro e está vinculado à
Ao final da Segunda Guerra Mundial, essa crença desmesurada na capaci- economia local. Em nosso mundo há uma constante tensão entre as formas de es-
dade redentora da industrialização começa a demonstrar certo esgotamento. As truturação dos estados nacionais, a emergência de comunidades étnico-locacionais
bombas de Nagasaki e Hiroshima demonstram a enorme capacidade destrutiva e, ainda, uma forma de operar impulsionada pelas novas tecnologias de informação
dessa mesma lógica industrial. Os desequilíbrios ambientais e variados acidentes e comunicação e que se utiliza de vínculos transnacionais. Uma tensão clara entre
ecológicos começam a provar a limitação dos recursos do planeta. A padronização universalismo e culturalismo, que só poderá ser superada na medida em que os dois
é substituída pela emergência da especificidade de cada ser humano, uma maior polos sejam vistos como funcionais, como mutuamente inerentes para sua própria
valoração da alteridade. Há um declínio do vanguardismo e a emergência de uma definição, como contrapontos mútuos que devemos apreender na medida em que
sociedade de massas, onde o acesso à cultura e informação se generaliza de forma postulamos o seu oposto. O universalismo é um importante fórum para reafirmar a
marcante. Portanto, a sociedade contemporânea sofre algumas mudanças de para- absoluta centralidade da sustentabilidade do planeta e da vida, é a única possibi-
digmas, notadamente a descrença na industrialização, a emergência da alteridade lidade de todas as comunidades garantirem a permanência da espécie. Enquanto
e da sociedade de massas. Desenvolve-se a consciência da finitude dos recursos da o culturalismo, além de fornecer o sentimento de pertença, é a forma de regular o
terra, um impulso no tema da sustentabilidade, uma descrença com relação à pa- macro poder, desenvolvendo vínculos orgânicos entre comunidade e suas repre-
dronização, uma emergência da ideia de alteridade, um incrível desenvolvimento sentações. O legado mais importante é a construção da ponte de interligação entre
da acessibilidade à cultura e informação. Apesar dessas mudanças, a cidade perma- universalismo e culturalismo.
nece sendo o destino de grande parte da humanidade, que se urbaniza rapidamen-
te, conserva-se ainda que de maneira perplexa o reconhecimento da incompletude
do projeto moderno. Essa imcompletude se manifesta principalmente na incapaci-
dade da arquitetura contemporânea de responder a imensa demanda populacional, 10. DEBORD, Guy.A sociedade do espetáculo.Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

220 Projeto, ideologia e hegemonia na cidade brasileira contemporânea Pedro da Luz Moreira 221
5. Princípios luntarista, que privilegia a empreitada não dirigida pelo plano ou pelo projeto. As
obras para a Copa do Mundo foram realizadas a partir de planilhas orçamentárias
A crítica da jornalista americana Jane Jacobs11 da década de 1960 ainda per- que geram projetos, quando deveriam ser projetos de arquitetura e urbanismo que
manece operando, talvez por que estejamos diante de um mundo pós-hegemônico, geram planilhas. É papel da universidade a crítica dessa forma de operar, para rever-
onde os modelos únicos não são mais possíveis. Ganhamos a consciência de que ter essa dimensão perversa da prática de nossas construções e das nossas cidades.
nossas realidades são particulares e exigem formas de pensar independentes, em A partir dessas reflexões e no contexto da cidade brasileira, torna-se de suma
que o projeto busca uma autojustificativa que seja socialmente compartilhada. A importância definir para o campo do projeto e do plano uma série de objetivos
partir da crítica da jornalista americana, identificamos princípios norteadores que claros a serem atingidos. A explicitação desses objetivos coloca-os sobre debate,
nos auxiliam a formular uma agenda contra as formas de operar das cidades brasi- confrontando formas de habitar particulares, que devem ser constratadas com
leiras. Um conjunto ideológico de princípios capaz de fazer frente ao modus operan- interesses gerais. A habitação representa um papel fundamental, uma vez que a
di tradicional da cidade brasileira, que procura romper com sua inércia construtiva cidade é constituída em sua maioria pelo morar. Quais ordenações ideológicas his-
instalada. toricamente orgânicas possuem capacidade para se transformarem em hipóteses
1. A dimensão do cotidiano, sua concretude na determinação da nossa quali- convincentes e persuasivas? Quais as hipóteses de caráter científico que podem ser
dade de vida, a práxis como critério da verdade. verificadas pelo estágio atual de desenvolvimento das nossas cidades, e que pos-
2. A convivência entre classes sociais, como valor, como fator de segurança e suem potência para assumir um caráter educativo inequívoco para mudar a inércia
de aprendizado efetivo, que restaura o sentido da cidade como oportunidade didá- instalada? Os nossos projetos e planos para a cidade precisam ser claros e objetivos
tica de perceber a diferença. oferecendo à sociedade um discurso sintético, capaz de convencer esta mesma so-
3. A compreensão do valor da mobilidade, como possibilidade de acessar ciedade de sua operacionalidade. No meu entendimento quatro princípios claros e
novas oportunidades que transformam nossos condicionamentos e pré-diposições. objetivos devem nortear o projeto da cidade brasileira no século XXI:
A noção de que a emergência da hegemonia do carro a partir da década de 1950/60 Cidade compacta e densa, que inicie o combate a sua dispersão interminável,
pode determinar a congestão completa de nossas cidades. enfatizando o papel articulador do antigo Centro da cidade.
4. A cidade onde a convivência de funções e usos demonstra sua vitalidade Cidade baseada na convivência da diversidade de classes, que combata a ten-
econômica e de acessos à oportunidades. Habitar junto a uma diversidade de usos, dência de gerar guetos da cidade brasileira.
comerciais e industriais, muitas vezes significa a ampliação do horizonte de oportu- Cidade de mobilidade ampliada, que combata a exclusão determinada a
nidades. partir da ausência ou tarifação cara do transporte público.
5. A cidade densa, onde o solo urbano – isto é, solo infraestruturado – adota Cidade que amplie a visibilidade e a aproximação dos seus biomas naturais
padrões de vizinhança que compense os investimentos da sociedade em infraestru- particulares com seus cidadãos.
tura. Portanto, a mística da casa urbana isolada deve ser combatida de forma siste- Acredita-se, portanto, que a ordenação do espaço urbano pode garantir
mática, porque ela é a forma de operar que privilegia a especulação da terra urbana maior acessibilidade à cultura, às infraestruturas, à educação e ao emprego, pro-
e, além disso, gera contínuos urbanos onde o controle social é impossível. vocando transformações efetivas no social, melhorando inclusive a distribuição de
6. Por último, o projeto e o plano precisam ser utilizados como forma de renda. É claro também que a cidade em seu estágio atual está conformada pelo
debate, em que acesso diferenciado às vantagens e desvantagens do construído, e que é papel do
os agentes atingidos tomam consciência das transformações. poder público equilibrar estas no seu território. Portanto, o que se pretende neste
Neste quesito, precisamos reconhecer que a sociedade brasileira ainda misti- debate é formular uma imagem/mensagem simples do vir a ser das cidades brasilei-
fica o improviso. Ainda não temos o plano e o projeto como protagonistas de nossas ras, que seja capaz de ser compreendida pelo conjunto da sociedade.
obras, como formas privilegiadas de avaliação da adequação entre transformações, Existe nessa construção uma clara vinculação com uma premissa operativa,
benefícios e custos. As transformações só podem ser corretamente avaliadas onde que reconhece que os instrumentos atuantes sobre as cidades brasileiras são evolu-
opera o protagonismo do plano e do projeto, únicos instrumentos capacitados para ídos e eficientes, isto é, não há necessidade de criação de novas leis. O desafio neste
avaliar os benefícios e os custos. Ainda estamos governados por uma vertente vo- momento é colocá-los em operação, convencendo a sociedade com exemplos con-
cretos da sua capacidade de construir o bem viver. Na dimensão do plano temos
11. JACOBS, Jane.Morte e Vida de Grandes Cidades.São Paulo: Martins Fontes, 2000.

222 Projeto, ideologia e hegemonia na cidade brasileira contemporânea Pedro da Luz Moreira 223
de emprego, lazer, cultura não sejam acessíveis. Os modais de grande capacidade
como trens, barcas e corredores de ônibus articulados devem estar implantados de
forma a construir uma rede interdependente, que possibilite a população transi-
tar entre eles de forma articulada, rápida e segura. Há necessidade de se promover
ações de glamourização do transporte coletivo, pois este possui um potencial ci-
vilizatório inestimável, que demonstra o esforço de promover maior equidade de
oportunidades.
Por último, no campo da aproximação positiva com diferenciados biomas é
muito importante garantir visibilidade dos arranjos ecológicos próximos ou inseri-
dos na cidade. Pois, na medida em que se promove essa aproximação, a população
passa a lutar por sua conservação e a compreender as dinâmicas ali instaladas. A
cidade do Rio de Janeiro certamente é um exemplar único neste tema e com um
potencial demonstrativo inesgotável. A presença de complexos biomas inseridos
FIGURA 4 A malha de trilhos da cidade do Rio de Janeiro, em cinza Metrô e em preto trens metropolitanos.
e a cidade metropolitana do Rio de Janeiro e sua convivência com biomas diferenciados dentro de sua malha, como a Floresta da Tijuca, a Floresta da Pedra Branca, a Flores-
ta do Tinguí em Nova Iguaçú, as lagoas de Jacarepaguá, Rodrigo de Freitas e Pira-
como instrumentos os Planos Diretores. Na experiência, tanto no município quanto tininga em Niterói, a Baía de Guanabara mostram como essa aproximação é capaz
no estado do Rio de Janeiro, esses planos têm se revelado como instrumentos bu- de promover a sensibilização para a preservação de diferenciados sistema de vida.
rocratizados, desvinculados de sua base regional, elaborados a partir de uma par- Portanto, há com relação ao futuro das cidades brasileiras uma ausência de
ticipação instrumentalizada. Além disso, vêm sendo realizados no nível municipal, clareza com relação aos objetivos que queremos alcançar, que cidade pretendemos
de forma extremamente fragmentada, quando deveriam assumir uma dimensão re- construir? Que tipo de assentamento humano estamos construindo? A metodologia
gional, abarcando de forma completa nossas cidades metropolitanas. Deveriam ser que envolve os conceitos de ideologia, hegemonia, projeto e planejamento coloca
pensados de forma articulada os eixos dos modais de transporte público e a locação de forma clara e objetiva para o conjunto da sociedade, e não só para os arquitetos
da habitação, a contenção da mancha urbana, o reforço da antiga centralidade e e urbanistas, o desenho das nossas cidades que queremos. Esse desenho precisa
sua reocupação pela habitação. E, por último, a aproximação de biomas comple- se comunicar com o conjunto da sociedade brasileira, garantindo para essa mesma
xos como a Baía de Guanabara, ou as lagoas de Jacarepaguá ou as matas do Tinguí instância a melhoria do seu cotidiano, no que se refere a mobilidade, saneamento,
em Nova Iguaçu. É importante que busquem ações concretas demonstrativas, que habitação, acesso a natureza, comodidades e serviços urbanos. A cidade brasileira
ganhem a população para suas formulações. De certa forma, o plano deve se deixar precisa passar a ter um caráter inclusivo, que garanta as amplas faixas da sua po-
contaminar pelo projeto, buscando implantar transformações que demonstrem as pulação o acesso às comodidades urbanas, pois essas garantem a possibilidade de
direções pretendidas. melhora das vidas particulares de várias famílias.
No âmbito do projeto surge uma série de ações que devem ser desenvolvidas
de forma coordenada com os quatro princípios descritos. Nos campos da promoção
da cidade densa e compacta e da cidade da convivência de classes sociais, o tema da Referências Bibliográficas
habitação emerge de forma inequívoca. A urbanização de favelas, a regularização
Coulanges, Fustel de. A Cidade Antiga, São Paulo, Martins Fontes, 1987
de loteamentos clandestinos, a produção de novas unidades, o morar no centro, os
cortiços e a reforma de conjuntos habitacionais são ações primordiais, que devem Debord, Guy. A sociedade do espetáculo, Rio de janeiro, Contraponto, 1997

estar orientadas para a obtenção de uma cidade densa e com diversidade de classe. Gramsci, Antonio. Cadernos do cárcere volume 4, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001
No campo da mobilidade precisamos de maneira veemente determinar o fim Habermas, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade, São Paulo, Martins Fontes, 2002
da hegemonia do automóvel particular, criando redes de transportes públicos que Jacobs, Jane. Morte e Vida de Grandes Cidades, São Paulo, Martins Fontes, 2000
garantam deslocamentos rápidos e com tarifas acessíveis. O grau de imobilidade das Kubistcheck, Juscelino. Pampulha, Rio de Janeiro, Imprensa Oficial, 1944
populações das cidades brasileiras é alto, determinando que muitas oportunidades
Lefebvre, Henry. A revolução urbana, Belo Horizonte, UFMG, 2004

224 Projeto, ideologia e hegemonia na cidade brasileira contemporânea Pedro da Luz Moreira 225
Loos, Adolf. Ornamento y Delito, Barcelona, Gustavo Gilli, 1989 5. HABITAÇÃO: POLÍTICAS, GESTÃO E REPRESENTAÇÕES
Moreira, Pedo da Luz. Projeto, Ideologia e Hegemonia, em busca de uma conceituação
operativa para a cidade brasileira, Tese de doutorado defendida em 2007 na UFRJ/
FAU/PROURB
Portas, N.: Urbanismo e Sociedade: construindo o futuro em Cidade e Imaginação – org
MACHADO, D. P. UFRJ/FAU/PROURB, Rio de Janeiro 1996. Nuno discute os tempos e
Reconfiguração territorial urbana
os graus de precisão do projeto e do plano.
Tafuri, Manfredo. Teorias e História da Arquitetura, Lisboa, Editorial Presença, 1979. Tafuri
em tempo de grandes projetos
identifica numa parte da crítica uma dimensão de propositiva, que a aproxima da
projetação. regionais: o caso do leste
metropolitano do Rio de Janeiro
Regina Bienenstein
Eloisa Helena Barcelos Freire
Natalia Oliveira
Daniela Amaral

Resumo | Este trabalho se concentra na reflexão sobre os processos de reconfiguração ter-


ritorial urbana resultante da instalação do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Com-
perj), no município de Itaboraí, região do Leste Metropolitano do estado do Rio de Janeiro.
A análise está circunscrita aos municípios de Itaboraí, Niterói, São Gonçalo e Maricá, onde
os impactos desse grande projeto regional se manifestam, por um lado, na elitização do
ambiente construído e, por outro, no crescimento da informalidade habitacional. Frente a
esse contexto, discute-se a atuação do gestor municipal em relação a essas questões. Lan-
çado em 2006 e com previsão de início de funcionamento em 2014, as repercussões do
Comperj já podem ser sentidas na região, com rupturas importantes no padrão de urba-
nização, crescimento da informalidade habitacional e incremento na precariedade deriva-
da da ausência/deficiência de saneamento ambiental. Nesse cenário, as municipalidades
se encontram desestruturadas e incapazes de controlar, conduzir e orientar o processo de
uso e ocupação do solo, abrindo mão de sua prerrogativa de planejar o desenvolvimento
urbano no que se refere à função social da propriedade e da cidade. Observa-se que as
ações voltadas para a habitação de interesse social têm progressivamente se concentrado
na produção de novas moradias, relegando as ações de recuperação dos assentamentos
populares a números desprezíveis. As iniciativas formais de organização regional parecem
ser o caminho de construção de agendas efetivas para o enfrentamento das desigualdades
e da exclusão socioespacial.

226 Projeto, ideologia e hegemonia na cidade brasileira contemporânea Regina Bienenstein | Eloisa Helena Barcelos Freire | Natalia Oliveira | Daniela Amaral 227
Abstract | This paper deals with the processes of urban territorial reconfiguration as a Introdução
result of the implementation of the Petrochemical Complex of Rio de Janeiro (Comperj), in
the city of Itaboraí, Rio de Janeiro east metropolitan area. The analysis is circumscribed to Este trabalho se concentra na reflexão sobre os processos de reconfiguração
the cities of Itaboraí, Niterói, São Gonçalo and Maricá, where the impacts of this large scale territorial urbana resultante da instalação do Complexo Petroquímico do Rio de Ja-
regional project have already occurred, on one hand, linked to the gentrification of some neiro (Comperj), no município de Itaboraí, região do Leste Metropolitano do estado
urban upper income neighbourhoods and, in the other, in the increasing the number of do Rio de Janeiro, discutindo a atuação do gestor municipal no enfrentamento da
informal settlements. Thus, it discusses the main challenges which local governments have questão habitacional. A análise está circunscrita aos municípios de Itaboraí, Niterói,
been facing due to the implementation of the Comperj. Announced in 2006 and predicted São Gonçalo e Maricá, onde os impactos desse grande projeto regional se manifes-
planned for starting in 2014, the repercussions of the Comperj can already be felt in the tam, de um lado, com a elitização do ambiente construído e, de outro, com o cresci-
region, with important ruptures in the standard of urbanization, growth of the housing in- mento da informalidade habitacional (Mapa 1).
formality and the increasing of the precariousness linked to the lack of environmental sani-
tation. In this scene, local administrations have been incapable of controlling, leading and
guiding land use process, giving up their role and their prerogative to plan the urban devel-
opment taking into account the social function of the property and the city. As to housing
policies, the actions are concentrated on building new housing, relegating the urbanisation
os less-favoured regions to worthless numbers. The formal initiatives of regional organiza-
tion seem to be the way of building an effective agenda for confronting the inequalities and
the social and spatial exclusion.
Resumen | Este trabajo se centra en la reflexión sobre los procesos de reconfiguración
del suelo urbano derivados de la instalación del Complejo Petroquímico de Rio de Janeiro
(Comperj) en Itaboraí, ciudad de la región Este Metropolitana del estado de Rio de Janeiro.
En el análisis se incluyen las ciudades de Itaboraí, Niterói, São Gonçalo y Maricá, donde los
impactos de este proyecto de gran envergadura regional revelan, por un lado, la gentrifi-
cación del entorno construido y por otro, el crecimiento de la informalidad urbana. En este Mapa 1 Localização do Comperj e municípios estudados Fonte: Arquivo NEPHU, 2013.

contexto, se plantean discusiones sobre el funcionamiento del gobierno municipal con res- O texto está estruturado em quatro partes: a primeira recupera os principais
pecto a estos asuntos. Anunciado en 2006 con el propósito de su operación en el año 2014, traços e características da urbanização local; a segunda discute os impactos do Com-
las repercusiones del Comperj ya se pueden sentir en la región, con importantes interrup- perj no padrão de urbanização e na informalidade habitacional; a terceira aborda
ciones en el estándar de la urbanización, del crecimiento de la informalidad y la precariedad a estrutura municipal disponível para o tratamento da informalidade habitacional,
urbana, este último derivado de la ausencia o deficiencia de saneamiento. En este escenario, debruçando-se sobre a atuação do gestor municipal em termos de planejamento ha-
los municipios siguen no estructurados e incapaces de completar y dirigir el proceso de uso bitacional; e a última apresenta algumas considerações à guisa de conclusão.
de la tierra, renuncian a sus prerrogativas para planificar el desarrollo urbano en desacuer- O Comperj é aqui entendido como um Grande Projeto Regional (GPR), a que
do con la función social de la propiedad y de la ciudad. Acciones se han concentrado en se associam diversos níveis de rupturas. Efetivamente, a literatura se refere ao tema
la producción de viviendas progresivas, destacando los números y sin valorar las acciones como um conjunto de intervenções que envolvem a articulação de expressivos inves-
dirigidas a los asentamientos populares. La formalización de la construcción de una agenda timentos financeiros, institucionais, políticos, simbólicos, urbanísticos e logístico-ter-
regional parece ser eficaz para equiparar la informalidad y la exclusión socioespacial. ritoriais e promovem rupturas e impactos em múltiplas dimensões (econômicas, ur-
banístico-territoriais, políticas, fundiárias, simbólicas e escalares) (Novais et al., 2007).
Lançado em 2006 e com previsão de início de funcionamento em 2014, as re-
percussões do Comperj podem ser sentidas na região, já aparecendo rupturas impor-
tantes no padrão de urbanização, no crescimento da informalidade habitacional e da
precariedade derivada da ausência ou deficiência do saneamento ambiental.

228 Reconfiguração territorial urbana em tempo de grandes projetos regionais Regina Bienenstein | Eloisa Helena Barcelos Freire | Natalia Oliveira | Daniela Amaral 229
A partir de seu anúncio em 2006, os municípios do entorno se organizaram margem do processo de desenvolvimento e de industrialização em curso no país.
em um consórcio (Consórcio Intermunicipal de Desenvolvimento – Conleste)1, evi- No lugar da agricultura, a economia passa a se basear nas olarias que geram em
denciando um redesenho das articulações políticas e sociais do território, em prol seu entorno novos aglomerados populacionais. É um ciclo de rápida duração, pois
de uma nova estratégia para fazer frente aos impactos antevistos. No entanto, essas das 82 empresas existentes em 1978, restavam somente 45 em 1994. Mesmo assim,
municipalidades permanecem desestruturadas e incapazes de controlar, conduzir e apesar da crise decorrente da falta de modernização, da concorrência com a cidade
orientar o processo de uso e ocupação do solo. Frequentemente abrem mão dessa de Campos dos Goytacazes e da escassez de energia (lenha), a cerâmica artesanal
prerrogativa e facilitam a implantação de novos empreendimentos, que pouco ou resiste e se mantém presente nas margens da BR-101 até os dias de hoje.
nada dialogam com essas cidades. No tratamento da moradia de interesse social, Entre as décadas de 1970 e 1990, a região foi afetada por grandes obras, volta-
as ações têm se restringido quase que unicamente à produção de novas unidades, das para facilitar o acesso entre a cidade do Rio de Janeiro e os municípios do Leste
sempre em número insuficiente para atender ao déficit habitacional, geralmente Metropolitano, Região dos Lagos e Norte Fluminense, resultando na aceleração da
implantadas em locais sem prévio planejamento. Os esforços para o tratamento do urbanização. A inauguração da Ponte Presidente Costa e Silva (Ponte Rio-Niterói),
estoque de moradias (representado pelos assentamentos populares precários, uma em 1974, provocou um fluxo migratório intenso em direção aos quatro municípios
das bandeiras do movimento popular e alternativa importante reconhecida no Plano estudados e facilitou o movimento pendular trabalho (Rio de Janeiro) e casa (Leste
Nacional da Habitação) parecem ter sido abandonados, sendo desprezível o número Metropolitano), com destaque para Maricá, cujo acesso já havia sido facilitado pela
de experiências realizadas nesses municípios. rodovia RJ-106. A construção do novo traçado da BR-101, no trecho Niterói-Manilha,
na década de 1980, gerou surpreendente crescimento urbano em Itaboraí, passan-
do de 23.645 para 147.249 pessoas (IBGE, Censo 1980 e 1991). Surgem inúmeros lo-
1. O Comperj e o Processo de Urbanização no teamentos, gerando um fabuloso estoque de lotes, dos quais parcela significativa,
Leste Metropolitano cerca de 80 mil lotes, permanece desocupada (SMP-ITA). Em menor grau, Maricá
também foi uma vez mais impactado, apresentando um aumento da população
A região de Itaboraí, que hoje abriga o Comperj, teve grande importância do urbana de 67% à época e percentuais ainda mais expressivos nas décadas de 1990
século XVII até o XIX, entrando em seguida em acentuado declínio. e 2000 (94% e 98%, respectivamente). Enquanto isso, Niterói e São Gonçalo, os mais
A região foi destaque como fornecedora de mercadorias nos períodos áureos populosos, tiveram percentuais menores de crescimento, mas que correspondem a
da cana-de-açúcar, da citricultura e da indústria cerâmica, e importante porto de um número muito superior de habitantes.
escoamento da produção regional para a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. O ano de 2006 marca o início de um período de
Configurou-se, assim, sua importância geopolítica, como influente entreposto co-
[...] grande mudança e refuncionalização, a partir do lançamento do Com-
mercial (Bienenstein et al., 2008, p.12).
plexo Petroquímico do Rio de Janeiro – COMPERJ, bem como de uma nova
Em 1940, a população de Itaboraí havia alcançado 15 mil habitantes e as ex-
logística de mobilidade e fluidez, associada a grandes obras de engenha-
posições agroindustriais refletiam a influência da agricultura na vida social do mu- ria, dentre as quais se destaca o Arco Metropolitano, ligando o porto de
nicípio. No decorrer das décadas de 1950 e 1960, a agricultura tornou-se a principal Sepetiba a Maricá. Essa nova onda que sinaliza “desenvolvimento” e “pu-
atividade econômica de Itaboraí, ao lado da manufatura cerâmica, marcando de jança” recai sobre essas mesmas terras [Itaboraí] com uma curiosa coinci-
forma irreversível a identidade local. Os laranjais, com elevada produtividade, con- dência: a nova atividade econômica, que anuncia grandes transformações
na região, acena com um recomeço no mesmo lugar aonde “tudo come-
verteram o município no maior exportador de laranja do Brasil, período em que a
çou” (Bienenstein et al., 2008, p.17).
população dobrou, passando para aproximadamente 30 mil habitantes.
A partir da década de 1970, Itaboraí sofreu os efeitos da eclosão sucessiva de
Tudo indica que irá se repetir na região mais um ciclo de monocultura, agora
pragas agrícolas, das dificuldades de financiamento da produção e da concorrência
direcionado para a cadeia petroquímica. Mas os efeitos dessa nova dinâmica cer-
dos laranjais paulistas, o que levou a citricultura à decadência. Dada a proximidade
tamente não serão uniformes, na medida em que se trata de região com situações
com a cidade do Rio de Janeiro, o município se afirma como cidade dormitório, à
extremamente diversificadas, desigualdades intra e intermunicipais importantes e
1. Inicialmente eram onze municípios, a saber, Cachoeiras de Macacu, Casimiro de Abreu, Itaboraí, Guapimirim, Magé, desafios de natureza e proporções também diferenciadas, em termos, entre outros,
Maricá, Niterói, Rio Bonito, São Gonçalo, Silva Jardim e Tanguá. Mais recentemente se agregaram os municípios Araru-
ama, Nova Friburgo, Saquarema e Teresópolis. do nível de pobreza e riqueza e do índice, ritmo e características da urbanização.

230 Reconfiguração territorial urbana em tempo de grandes projetos regionais Regina Bienenstein | Eloisa Helena Barcelos Freire | Natalia Oliveira | Daniela Amaral 231
Em 2000, Niterói, um município urbanizado, já aparecia com o melhor Índice nização e o redirecionamento de investimentos públicos para áreas até o momento
de Desenvolvimento Humano do estado do Rio de Janeiro (IDH de 0,886). Segundo não contempladas sequer com serviços básicos. Por outro lado, poderá se transfor-
estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV, 2010), é o mais rico município do país, mar em indutor de problemas sociais, como os vinculados aos limites de absorção da
com 30,7% de sua população inserida na classe “A” (renda familiar de R$ 14.400,00) mão de obra pelo mercado de trabalho, ao aumento exacerbado do valor da terra e à
e 42,9%, nas classes A e B (renda entre R$ 14.400,00 e R$ 8.100,00). No outro ex- facilitação do acesso e da ocupação do solo, seja ela formal ou informal, com o agra-
tremo, Itaboraí aparece em 660 lugar (0,737 de IDH), tendo 31,74% dos domicílios vamento da precariedade das condições de saneamento ambiental, especialmente
urbanos ocupados por famílias da classe “C1” (renda de R$ 1.400,00) e apenas 0,25% no que se refere à disponibilidade hídrica da região.
pertencente à classe “A1”. Em posição média encontram-se Maricá e São Gonçalo, Por outro lado, as expectativas associadas ao projeto tendem a desencadear
respectivamente com 0,786 e 0,782 de IDH, em que predominam domicílios ocu- um processo de grande atração de uma população com diversos níveis de carência,
pados por famílias com renda mensal entre R$ 1.400,00 e R$ 950,00 (50,22% e 51%, acirrando as contradições já presentes na área. Análises pretéritas das repercussões
respectivamente). de outros empreendimentos ligados à produção de petróleo indicam que agera-
Neste cenário de estagnação econômica, permeado pela pobreza, se instala ção de postos de trabalho, desde a etapa das obras, é sempre inferior ao fluxo de
o Comperj. O discurso oficial do empreendimento aponta para a criação de cerca de mão de obra. Inicialmente, trabalhadores com pouca ou nenhuma qualificação são
212 mil postos de trabalho diretos, indiretos e por efeito de renda. A construção do atraídos por postos de trabalho ligados à construção civil. Quando não se inserem
Comperj vem associada à renovação tecnológica, à busca de qualificação da força nesta fase, porque as vagas são insuficientes ou por falta de capacitação mínima,
de trabalho, às tecnologias de comunicação, bem como à logística das infraestrutu- essa mão de obra entra na informalidade. Além disso, as obras geralmente atraem
ras viárias, capazes de permitir rápida movimentação de mercadorias. Nesse senti- homens jovens, alterando a estrutura populacional, o que resulta no aparecimen-
do, passa a ser prioridade a construção do novo eixo rodoviário estruturante, o Arco to de problemas sociais como a favelização, prostituição e criminalidade (Serra e
Metropolitano, há 30 anos projetado (Mapa 2). Piquet, 2006, p. 292-294).
Relevante projeto para a logística regional e a mais expressiva das muitas in- Na fase seguinte, de operação do empreendimento, esses grandes projetos
tervenções previstas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para o Estado, geram contradições ainda mais profundas. De um lado, por empregarem altas tecno-
o Arco Metropolitano articula rodovias, facilita o transporte de cargas para os portos logias, exigem uma mão de obra qualificada, que raramente é encontrada no local.
do Rio de Janeiro e de Itaguaí e a ligação a diversos projetos, como a Siderúrgica do Apesar da oferta de cursos de capacitação, o número de vagas nunca é suficiente para
Atlântico (zona oeste do Estado) e as novas instalações da Companhia Siderúrgica toda a massa de trabalhadores da região e os benefícios do empreendimento não
Nacional (Itaguaí). Este investimento do governo federal, da ordem de U$14 bilhões, chegam a atingir amplamente a população local, agora acrescida por novos contin-
anunciado em 2006 e aplicado entre 2007 e 2010, é certamente um potencializador gentes. Nessa mesma etapa, uma nova classe social passa a transitar na região, for-
do crescimento das atividades econômicas, podendo provocar a expansão da urba- mada pelos técnicos do empreendimento principal e das indústrias que se instalam
no seu entorno. Isso provoca a modernização, diversificação e ampliação de serviços
e o lançamento de novos objetos imobiliários com padrão urbano superior. Na outra
ponta, o pessoal de baixa qualificação aumenta as fileiras dos desempregados e o
quadro geral de pobreza. Os resultados desse processo são, entre outros, a valoriza-
ção fundiária, acompanhada da tendência à expulsão “branca” da população mais
pobre para uma periferia cada vez mais distante e desprovida de recursos.

2. Elitização e informalidade no processo de urbanização


no Leste Metropolitano

Dos quatro municípios estudados, São Gonçalo e Niterói eram praticamente


urbanos desde o início da década de 1970, enquanto o índice em Maricá e Itaboraí

232 Reconfiguração territorial urbana em tempo de grandes projetos regionais Regina Bienenstein | Eloisa Helena Barcelos Freire | Natalia Oliveira | Daniela Amaral 233
era de menos de 30%, quadro que rapidamente se alterou em função das grandes nísticas, com a implantação de grandes objetos arquitetônicos, que contrastam com
obras viárias ocorridas no período. No ano 2000, somente Maricá ainda apresentava o padrão atual (ocupação horizontal em lotes individuais habitadas por famílias de
mais de 10% de sua população classificada como rural, enquanto Itaboraí não pas- renda média baixa). São enclaves como resorts, shopping centers, condomínios resi-
sava de 5%. denciais de alto padrão, como os recém-lançados, principalmente em Maricá e Ita-
Essa urbanização se manifesta em formas e padrões diversos, que expressam boraí, que fragmentam as cidades e começam a disputar espaço com a urbanização
com nitidez a desigualdade e disparidade social aí presentes. A ocupação em Niterói que prevaleceu nas últimas décadas. Esse modelo de ocupação do solo aumenta
e São Gonçalo é mais densa, enquanto em Itaboraí e Maricá é esgarçada e permeada bruscamente a densidade, forçando a adoção de novos parâmetros urbanísticos e
de lotes vazios, o que demanda uma ampliação excessiva da infraestrutura. Enquanto ambientais que atendem aos interesses das empresas que aí se instalam e se insta-
Niterói apresenta mais de 90% dos domicílios permanentes urbanos com acesso à larão. Eles respondem também a novos padrões de consumo resultantes da atração
rede de abastecimento de água, Itaboraí tem pouco mais de 20%. São Gonçalo chega de outra classe social formada pelos técnicos de alto nível que irão ocupar os postos
a 60%, porém com qualidade bastante precária (sistema totalmente obsoleto, tubu- superiores de trabalho. Essa tendência pode ser observada nos anúncios dos lança-
lações perfuradas e sangradas, abastecimento intermitente ou inexistente, perda ex- mentos imobiliários voltados para a faixa de clientes de alta renda, que destacam,
cessiva). A situação da rede de esgotamento sanitário é ainda mais precária. Itaboraí e com uso ostensivo da língua inglesa, a proximidade ao empreendimento e à infra-
São Gonçalo, por exemplo, têm menos de 10% dos domicílios com acesso ao serviço. estrutura de suporte a ele conectada.
Repete-se aí o padrão brasileiro de urbanização, em que espaços de riqueza,
plenos de infraestrutura e serviços, convivem lado a lado com espaços de pobreza à
margem de direitos, com evidente precarização das condições de vida, informalida- Foto 2 Urbanização
de habitacional e quase nenhuma infraestrutura urbana (Lago, 2007, p. 22). inacabada e local de
veraneio da classe
Por influência da instalação do Comperj, a configuração urbana no Leste Me- média São Gonçalo e
tropolitano começa a se modificar. Já se manifestam tendências de rupturas urba- Maricá
Fonte: Google Earth,
2012

No cenário atual surgem lançamentos imobiliários respaldados por discursos


que apelam para a proximidade do Comperj e do Arco Metropolitano, utilizando
inclusive jargões como crescimento e desenvolvimento com sustentabilidade. No ma-
terial de divulgação, por exemplo, Itaboraí é descrita como apresentando uma ex-
pansão que está apenas começando e a expectativa é de que as oportunidades cresçam
ainda mais no futuro, quando o Comperj entrar em plena operação (correspondência
da Brasil Brokers, 25.10.2012). No caso de Maricá, apesar da precariedade do sane-
amento ambiental, a urbanização vem se reconfigurando, com um padrão seletivo
e desigual, expresso em condomínios e resorts de luxo voltados para uma popula-
ção de renda mais elevada. Os lançamentos imobiliários se referem à logística a ser
instalada na região, em seu material de divulgação, como elemento de valorização.
Assim, Maricá é descrita como a cidade que também está na rota do progresso e [que]
vai ganhar um empreendimento de ponta, o Porto do Pré-Sal, que abrirá um imenso
leque de oportunidades no setor imobiliário. A ampliação do Aeroporto de Maricá está
nos planos do governo para atender executivos que estarão prestando serviços para o
Comperj e o novo Porto do Pré-Sal (Idem, 2012) (grifo do autor). São lançamentos de
Foto 1 Espaços de pobreza e espaços de riqueza /Niterói alto padrão que além de oferecer amplo espectro de equipamentos de lazer, apelam
Assentamentos Morro Lazareto e Monan Pequeno, Bairro da Boa Viagem e Pendotiba, Niterói.
Fonte: Acervo NEPHU-UFF.
para projetos de grife, assinados por arquitetos “famosos”, autores de empreendi-

234 Reconfiguração territorial urbana em tempo de grandes projetos regionais Regina Bienenstein | Eloisa Helena Barcelos Freire | Natalia Oliveira | Daniela Amaral 235
Foto 3 Novos padrões de empreendimentos imobiliários, lançamentos imobiliários em São Gonçalo, Ita- gráfico 1 Número de domicílios em assentamentos precários
boraí e Maricá. Fonte: IBGE, Censo 2000 e 2010.
Fonte: Google Earth, 2012.

mentos residenciais nos EUA, por exemplo (prospecto da Brasil Brokers, novembro pp. 53-57), este é um cenário propício para a geração de um círculo vicioso onde,
de 2012). Esses novos espaços contrastam fortemente com a urbanização atual, ca- por um lado, incorporadores imobiliários e novas empresas, atraídas pelo bom clima
racterizada pela horizontalidade das construções e precariedade do saneamento de negócios, pacotes favoráveis, legislações flexíveis, ofertas irrecusáveis, pré-condições
ambiental, onde vive uma população de renda média baixa e baixa, conforme apon- para um investimento lucrativo, tendem a conduzir o Estado para a aplicação do re-
tado anteriormente. Esses investimentos representam um evidente fator de conflito, ceituário por elas estabelecido. Por outro lado, os gestores locais passam a governar
expresso, entre outras formas, pela valorização da terra, pressão por deslocamentos para atrair esse capital para suas cidades e competir por esses investimentos.
populacionais e alterações introduzidas nas normativas urbanísticas. Essas novas re- Frente à urbanização acelerada e às antigas e agora crescentes demandas
ferências permitem ao capital e seus agentes redefinirem maneiras e estratégias de por serviços, esses municípios, cujos gestores públicos não têm tradição de tratar
produção do espaço social e de organização do território, conforme seus interesses. a questão da habitação e, historicamente, não têm exercido seu papel de controle
Simultaneamente, tem ocorrido a expansão de ocupações não planejadas do uso e ocupação do solo, dificilmente conseguirão resolver os graves problemas
nas beiras de rios, margens de estradas, encostas etc., isto é, o crescimento de bol- sociais presentes na região e atender a esta nova população que aí se instala.
sões de pobreza urbana, repetindo a exclusão socioespacial presente na maior
parte das cidades brasileiras. A análise de dados referentes ao período entre 2000 e
2010 mostra que a média de aumento do número de domicílios em assentamentos
3. Atuação do gestor municipal
nos quatro municípios foi de 57%, os maiores índices ocorrendo em São Gonçalo
Habitação, saneamento, mobilidade e desenvolvimento urbano voltam à
(101%) e Maricá (95%), seguidos de Itaboraí (79%).
pauta política em âmbito nacional, após longo período de esquecimento, passando
A imagem urbana dessas cidades tem se alterado e sua população passa a
a serem vistos como um dos pilares estratégicos para a economia nacional. Tratar
disputar os recursos destinados para a melhoria da infraestrutura da região, na es-
das questões urbanas prementes, dotando as cidades de infraestrutura, significa
perança de ser beneficiada pela transformação urbana. Isso tende a gerar grandes
propiciar novos ambientes de negócios e ampliar a possibilidade de crescimento
expectativas e até mesmo orgulho cívico nos habitantes, facilitando a aceitação de
econômico. Nesse contexto, o Plano Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU) e
possíveis efeitos negativos da instalação do empreendimento, na esperança de que
o Plano Nacional de Habitação (PLANHAB) objetivam formular estratégias e orientar
as políticas públicas adotadas possam beneficiá-los. Conforme alerta Harvey (1996,

236 Reconfiguração territorial urbana em tempo de grandes projetos regionais Regina Bienenstein | Eloisa Helena Barcelos Freire | Natalia Oliveira | Daniela Amaral 237
os diferentes níveis de governo para o equacionamento, a médio e longo prazos, da fato, não está sendo aproveitado seu potencial para coibir a retenção de terras com
exclusão socioespacial e das necessidades habitacionais que agora compreendem fins especulativos e facilitar a regularização urbanística e fundiária de assentamen-
também o direito à infraestrutura, saneamento ambiental, mobilidade e transporte tos informais precários.
coletivo, equipamentos e serviços urbanos (Política Nacional de Habitação, 2004). O Plano Local de Habitação de Interesse Social tinha por função preencher as
Com a adesão dos municípios ao Sistema Nacional de Habitação (SNHIS), lacunas do Plano Diretor, aprofundando o conhecimento sobre as demandas quan-
prefeituras e governos de Estado se comprometeram a contribuir para o Fundo titativa e qualitativa por habitação. Nos quatro municípios, esses planos estão em
Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), a criar seus respectivos Fundos fase de conclusão, mas não chegam a propor, delimitar e regulamentar os instru-
e Conselhos e elaborar seus respectivos Planos Locais de Habitação de Interesse mentos voltados para garantir espaço nas cidades para as parcelas mais pobres da
Social (PLHIS), marcos necessários para a formulação de políticas públicas voltadas população. Em nenhum deles são atualizadas as Zonas Especiais de Interesse Social
para o enfrentamento do déficit habitacional no país. Esse arcabouço institucional, já ocupadas, e nos casos das ZEIS anteriormente identificadas, como em parte do
somado ao instrumental jurídico representado pela Constituição Federal de 1988 e município de Niterói e Itaboraí, elas não foram regulamentadas. Na verdade, até
pelo Estatuto da Cidade (2001), ofereceria a base necessária e suficiente para a estru- 2007, apenas esses dois municípios conheciam a extensão e as características da
turação de ações nos municípios. ocupação informal em seu território. Assim, adia-se, uma vez mais, o desafio de exer-
No caso do Leste Metropolitano, esse novo contexto provocou a criação da cer a função social da propriedade e da cidade.
estrutura técnica, administrativa e financeira voltada para o trato da questão da ha- A adoção do conjunto de instrumentos de planejamento e os possíveis avan-
bitação de interesse social. Cumprindo as exigências básicas que lhes habilitam aos ços em sua implementação encontram, no quadro institucional desses municípios,
recursos federais, esses municípios criaram seus fundos municipais e respectivos um obstáculo difícil de ser transposto. O levantamento de suas estruturas político-
conselhos gestores e passaram a inserir o tema da habitação em suas respectivas -administrativas aponta uma situação precária e de grande fragilidade. Em todos os
estruturas institucionais. No entanto, apesar dessa resposta imediata, a análise mais municípios foram definidas instituições responsáveis pela política pública de habi-
detalhada da situação em cada um dos quatro municípios revela uma realidade ra- tação. No entanto, as frequentes mudanças no organograma das administrações,
ramente favorável para o efetivo enfrentamento dos desafios do déficit e da infor- aliada à insuficiência e/ou falta de quadros técnicos permanentes, a uma infraes-
malidade habitacional. trutura inadequada, a informações inexistentes e/ou desatualizadas conformam o
Apesar de os quatro municípios estudados terem cumprido todas as deter- quadro em que as políticas de habitação são geradas e desenvolvidas, evidenciando
minações do Ministério das Cidades, a falta de recursos persiste, pois, ao criarem o ainda presente descaso com o tema. De fato, pesquisa realizada nesses municí-
seus Fundos, não indicaram suas respectivas fontes, exceto Niterói que destina os pios permitiu observar formas variadas de associação desses órgãos. Ora aparece
recursos gerados pelo solo criado ao Fundo. No entantocomo os recursos são desti- como Secretaria de Habitação, autônoma para implementar a política de habitação,
nados para qualquer obra descrita como urbanização, mesmo neste caso, a habita- ora como uma subsecretaria ou diretoria, com menor poder na escala do governo.
ção é mantida sem os recursos necessários para o enfrentamento do desfio presen- O resultado é o tratamento da questão habitacional de forma fragmentada, seus
te no município. Quanto ao Conselho Gestor, como sua composição é definida por elementos (questão fundiária, produção de novas moradias e a recuperação de as-
proposição do prefeito e aprovação pelo Legislativo Municipal, em Niterói resultou sentamentos) distribuídos entre diferentes setores da administração, que raramente
na presença majoritária de técnicos do Executivo Municipal, o que tem impedido o se integram. Em Niterói e Itaboraí, a questão fundiária é descolada da produção de
efetivo controle social da aplicação dos recursos. Nos demais municípios, a compo- moradias e da recuperação dos assentamentos populares, algumas vezes com parte
sição aprovada tem maior representação social, mas seus membros não chegaram de sua atribuição ligada diretamente ao gabinete do prefeito (Niterói).
a ser designados. A composição da equipe técnica do setor da habitação é outro ponto que
No que se refere ao principal instrumento de planejamento, o Plano Dire- merece ser detalhado. Nos municípios estudados, o corpo técnico é insuficiente
tor Participativo (PDP), em 2011, apenas Maricá havia concluído sua revisão. Em São frente aos desafios presentes na região e antevistos com a instalação do Comperj,
Gonçalo e Itaboraí, os planos estavam em processo de revisão e em Niterói, o PDP, exceto em Maricá cuja equipe contava com dezessete profissionais. Em Itaboraí, a
datado de 1992, foi apenas adaptado, em 2002, ao Estatuto da Cidade. No entanto, equipe é formada apenas por três técnicos, além dos secretários; em São Gonça-
em nenhum dos quatro municípios, os instrumentos de democratização da cidade, lo, não havia qualquer técnico alocado na subsecretaria e Niterói possuía somente
apesar de citados nas respectivas leis do Plano Diretor, foram regulamentados. De quatro técnicos, além da subsecretária, mas contava com a estrutura da Secretaria

238 Reconfiguração territorial urbana em tempo de grandes projetos regionais Regina Bienenstein | Eloisa Helena Barcelos Freire | Natalia Oliveira | Daniela Amaral 239
de Urbanismo. Mas esse não é o único obstáculo a ser enfrentado. Outro elemen- A observação das ações voltadas para recuperar os assentamentos precá-
to que dificulta uma ação de médio e longo prazos, e a própria continuidade dos rios evidencia que o gestor público nesses municípios continua a dar pouca ou ne-
projetos e captação de recursos hoje disponíveis nos diferentes programas do Mi- nhuma atenção para as regiões da cidade onde se concentra a população de baixa
nistério das Cidades, é o fato de a maioria dos técnicos não pertencer ao quadro renda. O número de famílias beneficiadas por processos de regulação fundiária e
permanente, predominando cargos comissionados que, por sua natureza, têm alta por urbanização é irrisório. Na verdade, apenas Niterói e Maricá realizaram regu-
rotatividade. Soma-se a isso a falta de informações atualizadas sobre a realidade larização fundiária, beneficiando, respectivamente, 17 de um total de 38.621 e 30
municipal e regional e de investimentos em estrutura física, capacitação de pessoal de 3.909 moradias em assentamentos precários, além da urbanização de um único
e equipamentos necessários para o desenvolvimento do processo de planejamento. assentamento com 1.653 famílias, em Niterói.
Esse cenário institucional obstaculiza e dificulta a ação dos governos locais no Outros dois aspectos que merecem destaque nos processos de regularização
sentido de garantir condições adequadas de moradia para a população mais pobre. fundiária e de urbanização referem-se à sua lentidão e à sua abrangência. O acom-
Mesmo assim, é possível observar que, com a aprovação do Programa Nacional de panhamento desses projetos mostra que eles têm se estendido por cerca de cinco
Desenvolvimento Urbano e do Plano Nacional de Habitação de Interesse Social e a dez anos. São exemplos disso, os assentamentos Palmeiras (2009), Vila Esperança
com as exigências colocadas pelo Ministério das Cidades, a situação de completo (2007), Araçatiba, Bananal, Marquês (2005), São José do Imbaçaí (2007) e Alecrim
descaso em relação ao tema vem lentamente se alterando, pelo menos no sentido (2010), todos em São Gonçalo, onde a elaboração dos projetos foi concluída, mas
da produção de novas moradias, aliás, como tem sido enfatizado pelo governo fede- em nenhum deles as obras foram iniciadas. Em Itaboraí, a situação não é diferente,
ral, a partir do lançamento do Programa Minha Casa Minha Vida. alguns projetos vêm sendo recorrentemente apresentados ao Ministério das Cida-
No período entre 2000 e 2011, as ações empreendidas por esses municípios des, sem resultados efetivos. Este é o caso dos assentamentos Rato Molhado e En-
têm enfatizado e se concentrado quase que exclusivamente na produção de novas genho Velho, este último com projeto de urbanização e processos de regularização
moradias. São Gonçalo e Niterói foram os que produziram mais habitações (3.701 e fundiária totalmente prontos desde 2009 e reinscritos no PAC 2, em 2010. Em Nite-
992 unidades habitacionais, respectivamente), reduzindo em 17,53% e 9,22%, res- rói, existem também processos em andamento, desde 2010, em três assentamentos,
pectivamente seus déficits habitacionais. A produção em Itaboraí e Maricá foi mais Capim Melado, Morro da Cocada e Vila Ipiranga.
tímida, somando apenas 271 e 24 unidades habitacionais, com uma também peque- Os poucos exemplos de urbanização realizados na região têm ocorrido fora
na redução dos seus déficits (5,96% e 1,34%, respectivamente), situação que tende dos padrões exigidos pelo Ministério das Cidades, se restringindo a intervenções
a ser modificada em Maricá, onde foram iniciadas 1.636 unidades no último ano. pontuais. Em Maricá, por exemplo, obras de construção de quadra poliesportiva,
Importante ressaltar a demora na conclusão das unidades habitacionais, o que re- ponte e pavimentação nos assentamentos Araçatiba, Zacarias, Mambuca são des-
presenta um agravante, devido à rapidez das transformações na região, em especial critas como urbanização.
a atração de mão de obra assalariada.

Município Unidades Unidades em Unidades necessárias Atendimento 4. Considerações finais


Produzidas andamento para o incremento e do déficit até
(2000-2011) (2011-2012) reposição do estoque 2010 (%)
de moradias O acompanhamento das repercussões da instalação do Comperj sobre os pa-
drões de urbanização na região do Leste Metropolitano aponta para a tendência de
Itaboraí 271 425 3.849 5,96
acirramento da exclusão socioespacial. De um lado, começa a acontecer uma elitiza-
Maricá 24 1.636 134 1,34
ção da ocupação de áreas tradicionalmente habitadas por população de média e baixa
Niterói 922 624 8.458 9,22
renda. São lançamentos imobiliários de grande porte que contrastam com o padrão do
São Gonçalo 3.701 3.492 13.918 17,53
ambiente construído em que se inserem. De outro, percebe-se a progressiva ampliação
Total 4.918 4.116 26.359 13,13
da informalidade habitacional, com o adensamento e expansão dos assentamentos po-
Produção Habitacional e Déficit Habitacional (2000-2012) pulares precários, associado à atração exercida por esse novo polo econômico.
Fonte: FJP, 2006, NEPHU e prefeituras.
Trata-se de uma região com preocupantes indicadores sociais e de saneamen-
to ambiental onde, apesar do aparato jurídico e da existência de programas e linhas

240 Reconfiguração territorial urbana em tempo de grandes projetos regionais Regina Bienenstein | Eloisa Helena Barcelos Freire | Natalia Oliveira | Daniela Amaral 241
de financiamento federais, não se tem conseguido dar conta do passivo habitacional das Cidades: Secretaria Nacional de Habitação, 2009. Disponível em: <http://www.
e de serviços. Essas municipalidades permanecem desestruturadas e incapazes de cidades.gov.br/images/stories/ArquivosSNH/ArquivosPDF/Publicacoes/Publiicacao_
PlanHab_Capa.pdf> [Acesso em5 de novembro de 2012].
controlar, conduzir e orientar o processo de uso e ocupação do solo. Frequentemente
abrem mão dessa prerrogativa e facilitam a implantação de novos empreendimentos, Bienenstein, R., Sanchez, F., Amaral, D., Barros, D., Gomes, F., Gutterman, B., Pandiá, E..
Vila Santo Antônio de Sá: as heranças de um território em transformação. Niterói:
que pouco ou nada dialogam com essas cidades e que têm perfil excludente.
Universidade Federal Fluminense, 2008 (inédito).
No tratamento da moradia de interesse social, a recuperação dos assentamen-
tos populares precários continua negligenciada, sendo desprezível o número de ex- Bienenstein, R., Sánchez, F., Amaral, D., Reis, E. 2009. Urbanismo e Habitação nos Municípios
do Conleste, 2000-2008. In: Seminário Internacional Direito à Cidade nos Municípios
periências aí realizadas. Na verdade, percebe-se que esse tipo de ação não chega a
do Conleste e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – (ODMs), 2009, Niterói-
fazer parte da pauta dos gestores locais. A atuação municipal, quando acontece, tem RJ, Objetivos de Desenvolvimento do Milênio Municípios do Conleste 2000-2008,
se restringido à produção de novas unidades, sempre em número inferior ao déficit Relatório de Acompanhamento. Niterói: ONU HABITAT, 2009. v. 02, pp. 28-44.
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são socioespacial. Os municípios estudados (e outros) constituíram o Consórcio Inter- 2012].
municipal de Desenvolvimento (Conleste), como forma de buscar respostas comuns Cardoso, A. L. 2011. Habitação de Interesse Social: Política ou Mercado? Reflexos sobre a
para os desafios gerados pela presença deste grande projeto regional, o Comperj. construção do espaço metropolitano.Anais do Encontro Nacional da ANPUR [Em linha],
Também o governo do estado criou o Forum Comperj, que reúne diferentes insti- ano XIV. Disponível em: <http://www.observatoriodasmetropoles.net/download/
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governos municipais, representantes da sociedade civil, entre outros) que periodica- Corrêa, R. L. O Espaço Urbano, São Paulo: Ática, 5ª edição, 2000.
mente acompanham a evolução da situação na região. Essas articulações, ainda que Feema-Serla-PDBG. Plano diretor de recursos hídricos da região hidrográfica da baía de
não tenham avançado o suficiente até o momento, parecem ser o caminho para a Guanabara. Consórcio Ecologus – Agrar, 202, 2005.
construção de uma realidade diferente da observada em outros locais que também Harvey, D. O trabalho, o capital e o conflito de classes em torno do ambiente construído nas
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Serra, R. Economia Política da Distribuição dos Royalties Petrolíferos no Brasil, 2006. Ciclo de Resumo | O presente artigo tem o objetivo de discutir os programas de urbanização de fa-
Palestras de História, Universidade Salgado de Oliveira; Campos dos Goytacazes, RJ,
velas que têm sido desenvolvidos nas últimas décadas no Rio de Janeiro, com destaque para
2006.
o Programa Morar Carioca, apresentado pela Prefeitura Municipal em 2011. Em um primeiro
Silveira, D. Contradição Espacial na Região Metropolitana do Rio de Janeiro/Brasil: o rural e o
momento, são expostas as mudanças ocorridas nas relações entre o Estado e as comunida-
urbano no município de São Gonçalo. Publicações EasyPlanners, 2009. Disponível em:
des faveladas, entre as décadas de 1960 e 1990. Posteriormente, são expostos e analisados
<http://egal2009.easyplanners.info/area05/5545_Silveira_Debora_Mendonca.pdf>
[Acesso em 7 de novembro de 2012]. os programas Favela-Bairro – implementado durante a segunda metade da década de 1990
–, e Morar Carioca – que foi anunciado em 2011 e pretende integrar o conjunto de inves-
Vainer, C.; Arantes, O; Maricato; E. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos.
Petrópolis-RJ, Vozes, 3ª Edição, 2002. timentos que estão sendo realizados na cidade do Rio de Janeiro, em função da Copa do
Mundo, em 2014, e das Olimpíadas, em 2016. Por último, é realizada uma reflexão sobre os
Vetter, D. M. A apropriação dos benefícios das ações do Estado em áreas urbanas: seus
determinantes e análise através de ecologia fatorial. Revista Espaços e Debates, 1981, desafios deste programa, que parte da consolidação da favela como um habitat legítimo da
ano 43, n. 4, pp. 457-477. cidade, e que deveria ser alvo de projetos urbanísticos e de promoção social.
Abstract | This article intends to discuss the programs of slum upgrading that have
been developed in recent decades in the city of Rio de Janeiro, with emphasis on the
“MorarCarioca”program, launched in 2011. Changes in the relationship between State and
slum communities, between the 1960’s and 1990’s, will be exhibited at first. Afterwards, it
will be presented the Favela Bairro program, which was developed during the 1990’s, and
the Morar Carioca program, which would be implemented from 2011 on, and will integrate
the efforts to prepare the city of Rio de Janeiro for the 2016 Olympics and the 2014 World
Cup Championship. Finally, it will be presented a conclusion considering the challenges of
this program, which represents a consequence of the slum’s consolidation as a legitimate
dwelling in the city, and must be target of urban projects and social improvement programs.
Resumen | Este artículo tiene como objetivo discutir los programas de mejora de las favelas
que se han desarrollado en las últimas décadas en Río de Janeiro, destacando el programa
Morar Carioca, presentado por el Ayuntamiento en el año 2011. Al principio, son expuestos los
cambios en las relaciones entre el Estado y las comunidades marginales, entre las décadas de
1960 y 1990. Posteriormente, se exponen y analizan los programasFavela-Bairro – implemen-
tado durante la segunda mitad de la década de 1990 – y el Morar Carioca – que fue anunciado

244 Reconfiguração territorial urbana em tempo de grandes projetos regionais Gerônimo Leitão | Jonas Delecave 245
en 2011 y que pretende integrar el conjunto de inversiones que están siendo realizadas en la militares (1964-1985), o combate às favelas mostrou-se bastante forte, resultando
ciudad de Rio de Janeiro en función del Mundial de Futbol en 2014 y de los Juegos Olímpicos daí a erradicação forçada de muitas delas, enquanto que, por outro lado, “o advento
en 2016. Por último, se realiza unareflexión sobre los retos de este programa, que parte de la das fases de liberdade política (1946-1964 e 1985 até hoje) deram ensejo (...) às lutas
consolidación dela favela como un hábitat legítimo de la ciudad, y que debería serel objetivo pela permanência dessas áreas da cidade, e valorizaram a principal arma com que
de los proyectos urbanísticos y de promoción social. contam os favelados para melhorar a sua sorte: o voto”.
Na primeira metade do século XX, as favelas eram vistas como um fenôme-
no transitório, cuja erradicação seria um processo natural do desenvolvimento da
1. Introdução cidade. Posteriormente, nas décadas de 1960 e 1970, as favelas passaram a ser com-
preendidas como assentamentos “subnormais”, sendo sua erradicação promovida
As favelas constituem um fenômeno urbano contemporâneo associado aos ativamente pelo Estado através de políticas de remoção, com a transferência de sua
processos de segregação socioespacial impostos pela ausência de mecanismos população para conjuntos habitacionais situados em áreas periféricas. Essas políti-
de redistribuição da riqueza, e de políticas habitacionais que garantam o acesso à cas, porém, foram se revelando ineficientes, sobretudo quanto ao atendimento das
moradia para as camadas mais pobres da população. No Rio de Janeiro, as favelas necessidades das populações removidas, bem como pela carência de recursos para
encontram-se fortemente incorporadas à paisagem urbana, representando uma das dar continuidade aos programas de remoção.
mais graves questões sociais enfrentadas pela cidade. A partir de meados da década de 1970, porém, surgem programas habita-
Embora compondo um quadro extremamente complexo e diversificado, de- cionais alternativos que, implementados pelo Estado, têm em comum o reconhe-
corrente dos condicionantes históricos, socioeconomicos e geográficos, as favelas cimento e a parcial adoção das práticas de produção do ambiente construído das
cariocas podem ser genericamente caracterizadas como assentamentos informais favelas. A maioria dos programas se voltava para a construção de moradias pelos
que apresentam precariedade de redes de infraestrutura urbana, como acessibili- regimes de mutirão e/ou de ajuda mútua, porém, é possível observar também que
dade, esgotamento sanitário e drenagem, e de serviços públicos, como educação, alguns se destinavam, inclusive, a promover a efetiva urbanização de comunidades
saúde e lazer, além da posse irregular da terra. Em função de sua lógica de localiza- faveladas, como é o caso da intervenção urbanística realizada na favela de Brás de
ção, que busca áreas desocupadas próximas aos mercados de trabalho e serviços, Pina, na cidade do Rio de Janeiro, iniciada no final dos anos 1960.
as favelas acabam por ocupar regiões impróprias para habitação, como as encostas No final da década de 1970, o esgotamento do regime autoritário e o crescen-
de morros ou as margens de rios e lagoas. Essa localização precária potencializa as te movimento pela redemocratização do país determinaram mudanças na atitude
carências de infraestrutura e de serviços, criando péssimas condições de habitabili- oficial do governo federal em relação à população favelada dos grandes centros
dade e fragilizando socialmente a população desses assentamentos. urbanos – o fim da política de remoções é um desdobramento desse quadro político
Do surgimento das primeiras favelas, no início do século XX, à estruturação (Valladares, 1980). Na primeira metade da década de 1980, com as primeiras eleições
de grandes núcleos favelados, quase oitenta anos depois, as relações entre a popu- livres desde 1964, observa-se um novo discurso político que considera necessário
lação que vive nestes assentamentos e o Estado têm passado por diferentes fases. resgatar a dívida social existente junto às comunidades faveladas.
Sobre essas relações, Davidovich (1997) comenta: “A preocupação oficial com a pro- No estado do Rio de Janeiro, uma das propostas de Leonel Brizola, eleito
blemática da favela tem se associado a momentos de abertura política”, enquanto para o governo do estado em novembro de 1982, era transformar as favelas em
que “situação oposta tem caracterizado fases de “fechamento” do regime, quando bairros populares. Destaca-se, nesse período, a intervenção urbanística nas favelas
prevalecem medidas de remoção acopladas à construção de conjuntos habitacio- Pavão-Pavãozinho e Cantagalo – localizadas em área de encosta, entre os bairros de
nais de baixo custo, financiados pelo governo e localizados em periferias distantes Copacabana e Ipanema –, que foram “escolhidas para um ‘projeto demonstração’,
do núcleo central da metrópole”. concentrando os principais programas de urbanização anunciados pelo governo”,
Abordando a mesma questão, Abreu afirma que “(...) a história recente das segundo Treiger e Faerstein (1988). Esse projeto, iniciado em 1984 e concluído em
favelas demonstra que (...) estabeleceu-se uma nítida correlação entre a vigência do 1986, pretendia contemplar 12mil pessoas, prevendo obras de infraestrutura, aces-
regime democrático e a permanência das favelas na cidade” (Abreu, 1994). Por essa sibilidade e transporte, além de unidades habitacionais para as famílias desalojadas
razão, prossegue esse autor, “em tempos de fechamento político”, como ocorreu pelas obras de urbanização.
na ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945) e no período de vigência dos governos

246 O Programa Morar Carioca Gerônimo Leitão | Jonas Delecave 247


As ações do poder público em comunidades faveladas ganhariam uma tável – estes serviços devem ser mantidos pelas agências governamentais; reordenar
maior expressão quando, em 1992, o Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro a favela espacialmente, conectando suas ruas com as ruas da cidade e criando áreas
consolida a proposta de implementação de um programa global de integração de uso coletivo; fornecer serviço social; legalizar a propriedade da terra”.
das favelas à cidade, como afirma Pasternak Taschner (1998): “O Plano Diretor, nos No balanço dos projetos de urbanização empreendidos pelo Programa Fave-
seus artigos 148 a 151, recomenda a inclusão das favelas nos mapas e cadastros la-Bairro, no que se refere à regularização fundiária, Cavallieri destaca um aspecto
da cidade, enfatiza a participação dos moradores no processo de urbanização, re- interessante e revelador. Esse autor afirma que esse “foi o componente que menos
comenda “preservar a tipicidade da ocupação local e o esforço para integrar as chegou a bom termo, embora os primeiros passos tenham sempre sido dados”.
favelas aos bairros”.
(...) Começava-se pela regularização administrativa, ou seja, pela acei-
Essa autora destaca, ainda, que com a Constituição de 1988 toda a questão tação (pela Administração Pública) das obras e serviços implantados.
referente às invasões de terra passou à alçada do município, e, nesse sentido, o Eram então editadas normas de controle de uso e ocupação do solo que
programa municipal de desfavelamento, estabelecido pelo Plano Diretor de 1992, permitiam a regularização urbanística, possibilitando, a expedição, in-
“reafirmou a ideiada integração das favelas, como parte efetiva do tecido urbano clusive, dos habite-se das edificações – o que chegou a acontecer numa
formal”, buscando promover a “melhoria das condições de vida da população fave- meia dúzia de casos. A partir disso, seria possível inscrever as edifica-
ções no cadastro imobiliário e cobrar (ou não, dependendo das regras
lada e integrá-la no resto da cidade”.
de isenção) o imposto predial urbano. A titulação dos terrenos e/ou edi-
O Plano Diretor criava, assim, as bases para que fosse formulada uma política ficações seria o passo final, mas praticamente não chegou a acontecer
pública de urbanização dos assentamentos informais da cidade do Rio de Janeiro. (Cavallieri, 2003).

Cavallieri (2003) atribui os resultados insatisfatórios da regularização fundiária


O Programa favela/bairro: um passo na integração das
do Programa Favela-Bairro ao desinteresse dos moradores das comunidades aten-
favelas à cidade oficial didas, que “talvez mesmo não a desejassem”, uma vez que poderia representar res-
trições à “liberdade de construir e de ocupar o solo, de que os favelados desfrutam
A partir das diretrizes contidas no Plano Diretor de 1992, foi criado, em 1994,
de forma muito mais ampla do que os moradores das áreas formais”. Essa afirmação
o Programa Favela-Bairro, que teria por objetivo viabilizar “a implementação de me-
parece ser confirmada por pesquisa realizada em 1999, com 2070 moradores de 11
lhorias urbanísticas, compreendidas as obras de infraestrutura urbana, a acessibili-
favelas urbanizadas pelo programa, que procurava identificar o que seria necessário
dade e a criação de equipamentos urbanos que visam através destas ações obter
realizar, concluídas as obras de urbanização. Nessa pesquisa verificou-se que a prio-
ganhos sociais, promovendo a integração e a transformação da favela em bairro”.1
ridade para a população atendida era a melhoria das condições de segurança e po-
De acordo com as diretrizes do Programa Favela-Bairro – iniciado com a reali-
liciamento (14%). Em último lugar – com 1% das respostas – estava a regularização
zação de um concurso público de metodologias para intervenção em comunidades
fundiária dos imóveis existentes nas favelas urbanizadas (Cavallieri, 2003).
faveladas, promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ) –, as principais
Davidovich (1997) questiona a visão da favela assumida por esse programa –
ações destinadas a promover a integração das favelas ao tecido urbano da cidade
definida como uma “entidade homogênea e sem conflitos” –, o que impossibilitaria
formal deveriam: “complementar ou construir a estrutura urbana principal; oferecer
a percepção de “importantes diferenciais” existentes dentro das comunidades fave-
condições ambientais para a leitura da favela como um bairro da cidade; introduzir os
ladas. Esse caráter plural e diversificado das favelas, revelando a existência de uma
valores urbanísticos da cidade formal como signo de sua identificação como bairro:
grande heterogeneidade interna, tanto em relação à apropriação da moradia (tipo,
ruas, praças, mobiliário e serviços públicos; consolidar a inserção da favela no pro-
local dentro da favela), como no que diz respeito à renda dos moradores, é, igualmen-
cesso de planejamento da cidade; implementar ações de caráter social, implantando
te, apontado por outros autores – dentre os quais destacamos Pasternak Taschner
creches, programas de geração de renda e capacitação profissional e atividades es-
(1982) e Valladares (1998).
portivas, culturais e de lazer; promover a regularização fundiária e urbanística”.
José Arthur Rios, por outro lado, em entrevista publicada em Capítulos da Me-
Dentre os objetivos inovadores desse programa de urbanização, Pasternak
mória do Urbanismo Carioca2, questiona o programa por considerá-lo uma “maquia-
Taschner (1998) aponta os seguintes: “Fornecer saneamento básico com padrão acei-
gem urbanística” (2002). Embora ressaltando que “não conhece o programa em pro-
1. Programa Favela-Bairro – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1998. 2. Edições Folha Seca, Rio de Janeiro, 2002.

248 O Programa Morar Carioca Gerônimo Leitão | Jonas Delecave 249


fundidade”, Rios diz que só compreende um programa em favela “com uma dimensão O Programa Morar Carioca
social, ou seja, levantamento do nível de vida da população, mediante uma série de
técnicas e recursos, e participação” (2002), o que, acrescenta, não existiria no Progra- Dando continuidade ao processo de urbanização dos assentamentos infor-
ma Favela-Bairro. Para Rios, as principais lacunas desse programa de urbanização mais na cidade do Rio de Janeiro, destacam-se, na primeira década do século XXI, as
seriam a ausência de uma efetiva participação popular, organizada no processo de intervenções realizadas nos chamados complexos de favelas, como Alemão, Man-
planejamento e implementação dos projetos, e a pouca ênfase dada aos programas guinhos e Rocinha – esta última objeto de uma proposta pioneira de urbanização
de promoção social dos moradores das comunidades atendidas. em grandes favelas, promovida pelo governo estadual em 2006, através de concurso
Em 2003, um estudo realizado pelo Instituto Pereira Passos, em conjunto com o nacional promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil. Essas grandes interven-
Instituto de Pesquisa e Planejamento da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com- ções – inseridas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), promovido pelo
parando dados de sete favelas onde foi implementado o Programa Favela-Bairro e os governo federal – ocorrem num cenário marcado por dois diferenciais significativos,
de outras cinco, nas quais não foram realizados projetos de urbanização, revelaramre- quando comparadas com outras realizadas no passado recente: a articulação entre
sultados diferenciados3. Na avaliação desses resultados, afirma Pedro Abramo, coor- as diferentes esferas administrativas (municipal, estadual e federal), no planejamen-
denador da pesquisa: “A avaliação sobre a situação da comunidade dez anos depois é to e execução da urbanização proposta, e a perspectiva de garantia de segurança
bem melhor onde foi feito o Favela-Bairro. De uma forma geral, os indicadores sociais aos cidadãos que vivem nas favelas, através da gradual implantação das Unidades
melhoraram em todas as comunidades. Mas, nos índices de infraestrutura, a melhora de Polícia Pacificadora (UPPs).
foi mais significativa onde houve o programa”. Em Julho de 2010, a Secretaria Municipal de Habitação da Prefeitura do Rio
Contudo, a implementação das obras de urbanização não trouxe alterações de Janeiro lançou o Programa Morar Carioca, com o objetivo de urbanizar todas as
significativas no que diz respeito à situação econômica dos moradores das favelas favelas da cidade até o ano de 2020, incorporando os conceitos de sustentabilidade
beneficiadas pelo programa de urbanização implementado pela prefeitura carioca: ambiental, moradia saudável, bem como a ampliação das condições de acessibili-
“Nas comunidades incluídas no programa, os chefes sem renda passaram de 7,1% em dade. Até 2012, de acordo com a prefeitura carioca, seriam investidos dois bilhões
1991, para 15,1% em 2000. Sem o programa, o percentual subiu de 5,8% para 11,2%”. de um total de oito bilhões de reais destinados ao programa, que integra o plano
Sobre essa questão, comenta Abramo: “Houve uma piora nesse sentido. E uma me- de metas da cidade para a realização das Olimpíadas de 2016. Para viabilizar esse
lhoria na faixa de dois a dez salários. Ou seja, quem estava mais preparado, conseguiu ambicioso programa de ação, a prefeitura firmou uma parceria com o Instituto de
avançar, mas piorou a situação dos mais pobres. Não vejo impacto do Favela-Bairro Arquitetos do Brasil (IAB-RJ), promovendo um concurso de metodologias de urbani-
nesse índice”. zação de favelas, no qual se inscreveram 86 escritórios com equipes multidisciplina-
Por outro lado, os dados da pesquisa realizada pelo IPP/IPPUR-UFRJ apontam res, obrigatoriamente lideradas por arquitetos urbanistas.
o crescimento expressivo – mais de 200% – do número de domicílios nas sete favelas Em janeiro de 2011, o concurso foi homologado, qualificando 40 escritórios
onde o Programa Favela-Bairro atuou, o que significa que as obras de urbanização como aptos a conduzir os processos de urbanização e regularização fundiária das fa-
realizadas estimulou o crescimento destes assentamentos. velas cariocas. Parece abrir-se, assim, um novo capítulo nas experiências de urbani-
Na avaliação do arquiteto e urbanista Sérgio Magalhães – secretário municipal zação de favelas no Rio de Janeiro que, apesar de, sob certos aspectos, representar a
de Habitação, responsável pela estruturação do Programa Favela/Bairro – há ainda continuidade de um processo em curso, há pelo menos 30 anos, apresenta algumas
outro importante aspecto a ser considerado no programa de urbanização de assenta- particularidades que se pretendem inovadoras.
mentos informais, criado pelo poder público municipal em 1994: A primeira particularidade do Morar Carioca se refere à escala de atuação do
Com a integração da favela à cidade, podemos evitar a quebra das re- programa. Com o objetivo de urbanizar todas as favelas cariocas em 10 anos, e com
lações socioeconômicas dos moradores, que podem, assim, manter o oito bilhões de reais de orçamento, o programa expandiu, de modo significativo, as
mesmo trabalho, suas relações familiares e suas amizades. Para os pobres, metas de seu antecessor, o Favela/Bairro. De acordo com o prefeito carioca Eduardo
a proximidade imediata da família e dos amigos é essencial para a manu- Paes, na ocasião da diplomação das equipes, este programa pretende ser um dos
tenção de suas redes de ajuda-mútua (BIDExtra, 1997).
maiores legados dos megaeventos que a cidade irá sediar nos próximos anos.
A implementação de um programa deste porte deve enfrentar, inevitavel-
3. “Favela-Bairro: mais infraestrutura e renda pior” – O Globo, 22 de fevereiro de 2004.
mente, um conjunto significativo de desafios. Inicialmente, há que se considerar as

250 O Programa Morar Carioca Gerônimo Leitão | Jonas Delecave 251


questões referentes à permanência dessas intervenções, que dependem de um in- de favelas. Havia, no pas-
vestimento contínuo, após a realização dos eventos, e da articulação da Secretaria sado recente, entre os ar-
de Habitação com as demais secretarias municipais, outras esferas do poder público quitetos urbanistas, quase
e, inclusive, com agentes do setor privado, além – e sobretudo – das entidades de que um consenso sobre
representação comunitária. Na visão de técnicos da Secretaria Municipal de Habi- o respeito à permanên-
tação e de profissionais com larga experiência no campo da habitação social, outro cia do habitat da favela,
grande desafio é a coordenação dos 40 escritórios selecionados, que devem manter construído pelos mora-
comunicação constante com a SMH e entre si. dores ao longo de anos e
Além dessas mudanças de caráter operacional, referentes à escala do progra- com recursos e esforços
ma previsto pela prefeitura, é possível perceber, ainda, algumas diferenças significa- próprios. Contribuíam
tivas no perfil das propostas de intervenção apresentadas para o concurso Morar Ca- para essa perspectiva, os
rioca, quando comparadas com aquelas selecionadas pelo Programa Favela Bairro, conceitos fundamentados
em 1994. Neste último, as intervenções eram praticamente restritas à qualificação em teóricos (Turner, 1977)
dos espaços públicos e à melhoria de serviços de infraestrutura nas favelas, além que reconheciam a favela
da construção de equipamentos comunitários. Essas intervenções, de modo geral, como a resposta possí-
procuravam alterar o mínimo possível a estrutura espacial da favela, sendo as rea- vel, diante da ausência
locações de moradia propostas somente quando se tratava de reassentar famílias de políticas habitacionais
que ocupavam áreas de risco ou para viabilizar melhores condições de acessibilida- FIGURA 1 e 2 Unidades habitacionais multifamiliares verticalizadas adequadas, sendo assim
liberam espaços para recreação e lazer no interior da favela. Im-
de. Os projetos eram assim desenvolvidos por um conjunto diversificado de razões. plantação de planos inclinados garantem melhores condições de
muito mais uma “solução”
Inicialmente, há que se considerar que o cenário econômico no país, na ocasião do acessibilidade. Concurso Morar Carioca promovido pelo Instituto do que um “problema”.
lançamento do programa Favela/Bairro, em 1995, era significativamente distinto da- de Arquitetos do Brasil – IAB-RJ, em 2010. Equipes Sérgio Sampaio e A morfologia irre-
Armando Mendes.
quele do final da primeira década do século XXI. O Plano Real recém-lançado dava, gular da favela traduzia,
então, os primeiros passos no sentido de reduzir os índices inflacionários e promo- portanto, as limitações e possibilidades de produção do habitat pela população mais
ver a estabilização da economia, o que não permitia, no âmbito municipal, o aporte pobre, na luta pelo direito à cidade. Essa perspectiva ganhava ainda maior respaldo
de recursos mais substanciais do que aqueles previstos pelo programa – que con- quando se fazia uma avaliação dos conjuntos habitacionais da época, que frequen-
tava, ainda, com financiamento externo. Esse quadro restringia a possibilidade de temente se encontravam degradados ou abandonados pelas famílias originalmente
projetos urbanísticos mais ousados, sobretudo no que diz respeito à acessibilidade, assentadas, já que localizados em áreas periféricas, sem transporte público e equi-
devido aos custos mais elevados dessas soluções. Nesse sentido, a quase totalidade pamentos comunitários adequados, além de projetados sem participação popular.
dos projetos apresentados no concurso, em 1994, desconsiderava a possibilidade de Dessa forma, seria uma atitude autoritária promover cirurgias urbanas significativas,
implantação de teleféricos ou elevadores para acessar as comunidades localizadas que colocassem por terra o ambiente construído ao longo de anos pela população
em áreas de topografia mais acidentada, solução que seria prevista em quase todas local, impondo novas soluções morfológicas (FIGURA 3 e 4).
as propostas apresentadas no concurso Morar Carioca, passados quase vinte anos. Nesse sentido, demolições eram previstas exclusivamente para viabilizar
Do mesmo modo, contrapondo-se ao número reduzido de unidades de reassen- condições mais adequadas de acessibilidade, além da retirada de famílias que ocu-
tamento previsto nas soluções urbanísticas implementadas pelo programa Favela/ pavam áreas de risco. Acrescente-se a este quadro a associação feita muitas vezes
Bairro, o concurso Morar Carioca estimulava as equipes participantes a apresenta- pelos moradores entre os eventuais reassentamentos propostos pelos projetos de
rem propostas que “desadensassem” o tecido urbano das favelas, com a construção urbanização, e as práticas de remoção promovidas pelo poder público no passa-
de unidades habitacionais multifamiliares verticalizadas em vazios gerados pela re- do recente, ainda presentes na memória dos moradores das favelas cariocas. Por
tirada de habitações existentes (FIGURA 1 e 2). último, há que destacar um condicionante orçamentário: o Programa Favela/Bairro
Pode-se afirmar que existem, também, motivações ideológicas no que diz previa um número máximo de famílias a serem reassentadas pelo projeto de urba-
respeito a essa alteração nas abordagens conceituais dos projetos de urbanização nização, no interior das próprias comunidades contempladas.

252 O Programa Morar Carioca Gerônimo Leitão | Jonas Delecave 253


No concurso Morar Carioca, por sua vez, as equipes propuseram interven- força de trabalho, além do estímulo à atividade industrial dos setores vinculados
ções mais ousadas, com significativas reestruturações da malha urbana da favela, direta e indiretamente à construção civil.
seja em termos de reconfiguração espacial, seja no que diz respeito às questões de Ainda no que diz respeito às referências conceituais de projeto, observa-se
acessibilidade/mobilidade. Nesse sentido, são propostas aberturas de vias de maior outra percepção do espaço construído da favela, que agora tem reconhecidos seus
porte, a construção de teleféricos e de planos inclinados. Conjuntos habitacionais graves problemas de habitabilidade, ao mesmo tempo em que é legitimada a sua
verticalizados, com a liberação de área para construção de espaços de recreação e inserção na cidade oficial. Desse modo, as novas intervenções vão, simultaneamen-
lazer, são apresentados em diferentes versões, com a justificativa de assegurar assim te, propor expressivas cirurgias no tecido da favela e reconhecer as formas parti-
melhores condições de habitabilidade para a população local. culares de habitar dessas comunidades, tendo por objetivo assegurar melhores
Essas novas propostas podem ser consideradas um dos desdobramentos da condições de habitabilidade. Em vista disso, é prevista a melhoria das unidades ha-
mudança no quadro econômico do país e das referências projetuais, como apontado bitacionais existentes, através de investimento e assessoria técnica, pela implemen-
anteriormente. O volume de recursos previstos no Programa Morar Carioca somente tação de soluções que contemplem os problemas de salubridade e estabilidade das
seria possível em um cenário, apontado por indicadores diversos, como de expansão edificações. Essa proposta está em consonância com a Lei 11.888, sancionada em
da atividade econômica do país e de maior capacidade de investimento do Estado. dezembro de 2008, que assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pú-
Por outro lado, contribui, também, para a execução desse programa, a reali- blica e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social.  Em
zação na cidade do Rio de Janeiro de megaeventos internacionais, como a Copa do termos de projeto de urbanização de favelas, essa iniciativa constitui um avanço,
Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 – que exigirão especial atenção do poder pois reconhece a moradia individual como parte integrante do habitat a ser objeto
público, diante da visibilidade expressiva da cidade do Rio de Janeiro no cenário de intervenção.
internacional. Não pode ser ignorado, Outra questão que permeia a grande maioria dos projetos apresentados no
ainda, que essa mudança na aborda- concurso Morar Carioca, e que não era considerada relevante no Programa Favela/
gem projetual da urbanização de fa- Bairro, diz respeito à sustentabilidade ambiental e às possibilidades de introdução
velas vai ao encontro, também, das de dispositivos que assegurem redução do consumo de energia, captação de águas
demandas do setor empresarial da pluviais para reuso, manejo seletivo de resíduos sólidos e utilização de componen-
construção civil para a ampliação de tes construtivos reciclados, para citar alguns exemplos.
suas atividades, tendo como respaldo Outro significativo desafio a ser enfrentado está relacionado à participação
a geração dos empregos formais para popular organizada no desenvolvimento e implementação dos projetos de urbani-
os segmentos menos qualificados da zação a serem realizados. Se durante o Programa Favela/Bairro havia explicitamen-
te, em todos os documentos oficiais, a exigência de que fosse garantida a ampla
participação comunitária em todas as fases do projeto, diversos fatores impediram
que esse objetivo fosse plenamente alcançado. A ausência de metodologias par-
ticipativas mais adequadas, a exiguidade dos prazos contratuais e a pouca repre-
sentatividade de diversas associações de moradores acabaram por transformar essa
participação em elemento meramente formal de todo o processo, tornando-se,
assim, um mero instrumento de legitimação dos projetos urbanísticos desenvolvi-
dos através de consultas de alcance limitado. No Morar Carioca, por sua vez, há a
continuidade tanto das exigências por parte do poder público municipal, como da
intenção das equipes em promover a participação comunitária na elaboração dos
FIGURA 3 Pavimentação, infraestrutura sanitária e rede de drenagem nas vias existentes. Fonte: Projeto da projetos – o que pode ser observado nos memoriais dos trabalhos apresentados no
equipe 102. Favela, Um Bairro: Propostas Metodológicas para Intervenção Pública em Favelas do Rio de Janeiro. concurso realizado pelo IAB-RJ. Porém, somente a existência de um cenário políti-
FIGURA 4 Intervenções que valorizam espaços consolidados no interior da favela. Fonte: Projeto da equipe
co efetivamente favorável permitirá que sejam desenvolvidas soluções mais ousa-
102. Favela, Um Bairro: Propostas Metodológicas para Intervenção Pública em Favelas do Rio de Janeiro.
das de inserção dos moradores no processo de planejamento, acompanhamento

254 O Programa Morar Carioca Gerônimo Leitão | Jonas Delecave 255


da execução das obras de urbanização e posterior monitoramento das melhorias de mais de vinte anos – em projetos de urbanização de assentamentos informais,
implantadas – e esse cenário político diz respeito não apenas à vontade política da porém há dúvidas quanto à capacidade desse corpo de profissionais responder ade-
prefeitura carioca, mas, principalmente,da capacidade de organização das entida- quadamente às tarefas de fiscalização e acompanhamento de um programa tão am-
des representativas dos moradores das favelas que deveriam ser contempladas na bicioso em termos de metas – a urbanização de todas as favelas cariocas até 2020.
primeira fase do Programa Morar Carioca. No que diz respeito à contratação dos escritórios privados, responsáveis pela
No desenho desse novo cenário de urbanização das favelas cariocas, deve-se elaboração dos projetos de urbanização, é imprescindível a compatibilização dos
observar, ainda, o impacto gerado pela política de segurança implementada pelo prazos contratuais com a dinâmica particular do processo de participação comu-
governo do estado do Rio de Janeiro, que tem na implantação das Unidades de Polí- nitária no desenvolvimento dos projetos de urbanização. Ao longo das distintas
cia Pacificadora (UPP) um dos principais elementos. Há, nesse sentido, a expectativa etapas do Programa Favela/Bairro, a questão da participação comunitária foi objeto
de que, ao contrário do que ocorreu em algumas comunidades onde o Programa de críticas, não apenas de profissionais envolvidos, como também de estudiosos –
Favela-Bairro foi implantado, em que a elaboração dos projetos e/ou execução de Cardoso (2002) destaca, nesse sentido, que“a participação popular é (no Programa
obras foram comprometidas pela presença ostensiva do narcotráfico, a melhoria Favela/Bairro) extremamente tímida, com fortes indícios de constituir-se mais como
das condições de segurança nas comunidades onde serão realizadas as interven- prática de legitimação das ações do que propriamente de democratização da polí-
ções urbanísticas possa contribuir para um alcance de resultados mais satisfatórios. tica”. Para reverter esse quadro será preciso que as equipes estruturem processos
Embora a instalação das UPPs tenha contribuído significativamente para a redução de planejamento efetivamente participativos, o que pressupõe o desenvolvimen-
do quadro de violência cotidiana nas favelas ocupadas, há críticas de diferentes se- to de metodologias apropriadas a essa maior participação popular. Cabe ao poder
tores quanto a alguns aspectos dessa política de segurança, como, por exemplo, os público, por último, reconhecer a validade dessa efetiva participação organizada
critérios de escolha das favelas a serem atendidas, que teriam privilegiado aquelas dos moradores, não como um elemento complicador para o desenvolvimento dos
localizadas na zona sul e na área central do Rio de Janeiro – uma ação que privile- trabalhos, mas como um fator absolutamente necessário para que o programa de
giaria apenas as áreas onde serão realizados os eventos esportivos de 2014 e 2016. urbanização sejabem sucedido.
Outros apontam a necessidade de que sejam implantados programas de promoção A proposta de ampliação das atividades dos Postos de Orientação Urbanísti-
social nas comunidades faveladas onde foram criadas as UPPs, ampliando, assim, o ca e Social (POUSOs), presente no edital do concurso Morar Carioca e nos projetos
alcance da intervenção promovida pelo Estado. Contudo, não há duvidas de que da maioria das equipes selecionadas, pretende contribuir para a resolução de outro
esse quadro de “pacificação” de favelas favorece amplamente a atuação das equipes desafio: o de promover o cumprimento de uma legislação urbanística adequada às
que desenvolverão projetos de urbanização. características particulares da favela – ordenando o uso e ocupação do solo – e,
também, de garantir aos moradores assessoria jurídica e social. O sucesso dessa ini-
ciativa depende de investimentos contínuos em infraestrutura e em equipes multi-
Conclusões disciplinares especializadas, porém, este é, sem dúvida, um importante passo para
que os investimentos realizados pelas obras de urbanização tenham eficácia.
Concretizar as propostas contidas no Programa Morar Carioca – e materializa- A questão da promoção social a ser implementada através da realização de
das nos projetos apresentados pelas equipes técnicas no concurso promovido pelo projetos diversos nas comunidades urbanizadas, é, por sua vez, outra relevante
IAB-RJ – é algo que depende do que se convencionou chamar de “vontade política” questão a ser considerada. O desenvolvimento – e a implantação – de projetos que
daqueles que estão à frente do poder público municipal e, também estadual, uma efetivamente contribuam para elevação da renda familiar dos moradores das comu-
vez que essa interação é absolutamente necessária, considerando as características nidades urbanizadaspoderia impedir a ocorrência daquilo que os estudiosos defi-
das intervenções urbanísticas previstas. nem como “remoção branca”: uma vez que a urbanização da favela é acompanhada
Inicialmente, é fundamental ampliar a capacidade de acompanhamento téc- por uma elevação dos valores pagos em aluguéis, bem como na compra e venda de
nico das diferentes etapas de desenvolvimento do referido programa, sobretudo imóveis, moradores que não dispõem dos recursos necessários para fazer frente ao
no que diz respeito ao dimensionamento da equipe de profissionais da Prefeitura novo quadro de melhorias poderiam ter que abandonar a comunidade onde vivem,
da Cidade do Rio de Janeiro. A equipe de técnicos da Secretaria Municipal de Habi- comprometendo o alcance social do projeto de urbanização.
tação é qualificada, possuindo, ainda, uma larga experiência – acumulada ao longo

256 O Programa Morar Carioca Gerônimo Leitão | Jonas Delecave 257


No que diz respeito aos aspectos de sustentabilidade que deverão estar pre- Referências bibliográficas
sentes nos projetos desenvolvidos no Programa Morar Carioca, o conceito de tec-
nologia apropriada parece ser o mais adequado para adoção, no sentido de que re- Abramo, P. (Org.). A Cidade da Informalidade: O desafio das cidades latino-americanas. Rio de
conhece a relevância dos aspectos culturais, econômicos e sociais na formulação de Janeiro: Editora Sette Letras, 2003.
soluções tecnológicas. A proposição de soluções que, embora adequadas em outro . Favela-Bairro: mais infraestrutura e renda pior. EntrevistaJornalO Globo,
contexto, não contemplam as práticas locais da comunidade, tem grande possibili- 22de fev, 2004.
dade de serem mal sucedidas. Um exemplo desse quadro é a proposição de “tetos Abreu, M. de A. Reconstruindo uma história esquecida: origem e expansão inicial das favelas
verdes” nas moradias, presente em algumas das propostas apresentadas no con- do Rio de Janeiro. Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio de
curso, que, embora adequada no que diz respeito aos aspectos de conforto térmico Janeiro. Rio de janeiro. Cópia xerográfica, 1994.
e impermeabilização, vai de encontro à apropriação usual das lajes de cobertura Cardoso, A. L. O Programa Favela-Bairro: Uma avaliação. Anais do Seminário de Avaliação
como espaços de serviço, convívio e recreação, além de constituírem áreas de pos- de projetos IPT em habitação e meio ambiente: assentamento urbanos precário.
sível ampliação vertical das unidades habitacionais. Reconhecendo a dificuldade na Coordenadores: Ros Mari Zenha e Carlos Geraldo Luz de Freitas. São Paulo: IPT, 2002.

adoção imediata de soluções não convencionais, outras equipes participantes do Cavallieri, F. Favelas Cariocas: Mudanças na Infraestrutura. In: 4 Estudos. Rio de Janeiro:
concurso as restringiram aos equipamentos públicos, na expectativa de uma difu- IPLANRIO, 1986.
são gradual desses novos elementos junto aos moradores. . Favela-Bairro: Integração de Áreas Informais no Rio de Janeiro. In: Abramo, P.
Deve ser ressaltada, ainda, a relevância da real incorporação dos moradores (Org.). A Cidade da Informalidade: O desafio das cidades latino-americanas. Rio de
Janeiro: Editora Sette Letras, 2003.
das comunidades faveladas, atendidas pelo novo programa de urbanização apre-
sentado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, às diferentes etapas do proces- Coelho, F. D. Projetos Habitacionais do Setor Público e Iniciativa Popular: a construção
de uma esfera pública politicamente ativa. In: Anais do Seminário sobre a questão
so de desenvolvimento e execução dos projetos urbanísticos anunciados. Somente
habitacional no Brasil. Rio de Janeiro: Universidade Santa Úrsula, 1992.
assim, será possível afirmar que foi construído um “morar carioca”, que traduz a in-
Davidovich, F. Programa Favela-Bairro e as tendências de restruturação da metrópole – o
tegração das favelas à cidade oficial, através da extensão de infraestrutura e de ser-
caso do Rio de Janeiro. In: Anais do 7° Encontro Nacional da ANPUR, Recife, 1997.
viços públicos aos que vivem nessas comunidades – e isto só será possível através
Duarte, C. R.; Silva, O; Brasileiro, A. (Orgs). Favela, Um Bairro. Rio de Janeiro: Propostas
de projetos de urbanização que reconheçam o que é comum e o que é particular em
Metodológicas para Intervenção Pública em Favelas Cariocas. Rio de Janeiro: Pro
cada favela da cidade do Rio de Janeiro.
Editores, 1996.
Os desafios para o desenvolvimento do Programa Morar Carioca são muitos
Freire, A.; Oliveira, L. L. (Orgs). Capítulos da memória do urbanismo carioca. Rio de Janeiro:
e de diversas naturezas, desafios técnicos, teóricos e políticos que deverão ser supe-
Fundação Getúlio Vargas, 2002.
rados a fim de implementar um programa amplo e participativo de urbanização de
Frossard, E. Housing the Urban Poor – The Loteamentos populares in Rio de Janeiro, Boston,
favelas no Rio de Janeiro. A conjuntura municipal específica dos anos 2010, desen-
1984.
cadeada pela Copa Mundial da FIFA e pelos Jogos Olímpicos, parece favorecer um
Lago, L. C. do; Ribeiro, L. C. de Q. A casa própria em tempo de crise: os novos padrões de
direcionamento de esforços no sentido de viabilizar esse importante legado para a
provisão de moradia nas grandes cidades. In: Ribeiro, L. C. de Q.; Azevedo, S. de
cidade. Caso algum desses desafios se mostre insuperável, será uma oportunidade (Orgs.). A Crise da Moradia nas Grandes Cidades: da questão da habitação à reforma
que, possivelmente, tardará a ressurgir. urbana. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1996.
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não é próprio, o que é?1
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Valladares, L. do P. (Org.). Habitação em Questão.Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
Maria Laís Pereira da Silva
João Paulo Oliveira Huguenin

Resumo | O presente texto deriva de pesquisa realizada em 2010 e enfoca algumas impor-
tantes representações dos moradores dos Bairros Laboriaux e Barcelos, na Rocinha, Rio de
Janeiro, sobre a questão fundiária e de ocupação. Argumenta-se que, embora as represen-
tações se diferenciem com relação às condições de sítio do histórico da ocupação e das tra-
jetórias dos moradores, pode-se identificar categorias gerais que as articulam. Parte-se da
premissa de que embora as favelas tenham sido, em geral, vistas como “informais” dentro dos
processos urbanos, pode-se verificar que existe certa “formalidade” dentro da informalida-
de. Essa formalidade reporta-se à existência de códigos que se estruturam de forma paralela
à ordem jurídica, e cujo entendimento é fundamental tanto para a compreensão da ordem
urbana, quanto para a elaboração e gestão de políticas públicas. A metodologia baseou-se no
levantamento das histórias fundiárias e entrevistas com moradores e lideranças locais.
Abstract | This articlewas developed during a research implemented in 2010, and deals
with some important urban and social representations about ownership, rent, and other
concepts, by residents of the localities of Barcelos and Laboriaux, at Favela da Rocinha, in
Rio de Janeiro. Although the localities differ in physical conditions, historical land occupa-
tion, and the resident’s particular stories, there can be identified general categories that
articulates them. On the other way, although favelas have been generally considered infor-
mal settlements within the urban processes, it’s possible to verify a certain “formality” in
the informal. This formality refers to the existence of unwritten/invisible rules /codes paralel
to the legal urban order, that have to be aknowledged not only for the understanding of
the urban order, but also in regard to the planning and management of public policies. The
methodology employed was grounded on the survey of land histories and interviews with
residents and local leaders.
Resumen | Este artículo es fruto de la investigación llevada a cabo en 2010, y se centra en al-
gunas representaciones importantes de los residentes de los barrios Laboriaux y Barcelos, en

1. Este texto foi apresentado pelos autores no XIV Encontro Nacional da ANPUR em 2011, no Rio de Janeiro, e consta
dos Anais do Encontro. Para a presente publicação alguns ajustes foram realizados principalmente através de notas
ao texto.

260 O Programa Morar Carioca Maria Laís Pereira da Silva | João Paulo Oliveira Huguenin 261
Rocinha, Rio de Janeiro, sobre la cuestión fundiaria y de ocupación. Se argumenta que aun- rados informais, e a necessidade de ajustar os instrumentos legais a estas3; por outro
que las representaciones se diferencian con respecto a las condiciones del sitio, la historia de lado, também existem trabalhos recentes que discutem os aspectos econômicos e
la ocupación y las trayectorias de los residentes, se pueden identificar categorías generales as formas com que se apresentam as informalidades nas favelas, discutindo as carac-
que se articulan. Se parte de la premisa de que aunque las favelas hayan sido generalmente terísticas de um mercado imobiliário “informal” e seus desenvolvimentos recentes4.
vistas como “informales” dentro de los procesos urbanos, se puede verificar que existe cierta Há que se observar, entretanto, que existe uma abordagem que escapa do
“formalidad” dentro de la informalidad. Esta formalidad se refiere a la existencia de códigos enfoque referente ao aparato jurídico legal, bem como não se atém ao aspecto eco-
que se estructuran de forma paralela al orden legal y cuya comprensión es fundamental nômico. Esta abordagem, que ora propomos, vincula-se à forma como os morado-
tanto para la comprensión del orden urbano, como para la elaboración y gestión de políticas res dessas áreas representam as principais categorias da questão: o que significa a
públicas. La metodología se basó en el levantamiento de las historias de las historias fundia- propriedade? A posse? A cessão? Essas perguntas aparentemente simples remetem-
rias y entrevistas con algunos residentes y líderes locales. -se a um dos pressupostos deste trabalho: o de que as formas de ocupação nessas
áreas relacionam-se, entre outros aspectos, às representações e percepções dos
moradores acerca daqueles conceitos referentes à posse, à propriedade e às diver-
Introdução sas condições de ocupação de terrenos e imóveis (além da propriedade, também a
cessão, o aluguel, a invasão, entre outros). Esses aspectos têm um importante papel
Há algum tempo, tanto a prática em assentamentos precários como os es- não só no conhecimento particular da “ordem urbana” das favelas, e nas suas rela-
tudos teóricos sobre as favelas vêm mostrando que a questão fundiária se coloca ções mais gerais como parte da cidade, como também no conhecimento necessário
como um obstáculo para as intervenções nessas áreas. Nas palavras de Carlos Nelson para as práticas de intervenção voltadas para a regularização fundiária e políticas
Ferreira dos Santos, o acesso à terra se constitui no maior dos problemas urbanos: mais abrangentes de habitação, que, via de regra, baseiam-se nos conceitos do apa-
De vez em quando me perguntam qual o maior problema urbano brasilei-
rato jurídico-legal.
ro. Nem é preciso pensar duas vezes: é terra! Todo mundo precisa morar, Assim é que o trabalho proposto vincula-se, de um lado, às particularidades
inclusive a massa predominante dos que não têm recursos (...) No que diz fundiárias e de ocupação das favelas, e de outro, às representações que delas fazem
respeito à urbanização, o essencial é terra. Uma redefinição nos conceitos seus moradores. Centramos nosso estudo em relação a favelas do Rio de Janeiro.
de propriedade, ainda impregnados de visões rurais e remontando a eras Como referência empírica principal utilizamos a favela da Rocinha, pelas suas di-
manuelinas, já bastaria (SANTOS, 1988, p.100).
mensões, diversidade interna de sítio – o que pode permitir comparações inter-
-favela –, pela sua consolidação histórica e por estar sendo objeto, atualmente, de
Do ponto de vista das políticas públicas, há de certa forma um avanço. Em
um projeto de Regularização Fundiária5. A pesquisa de origem trabalhou com ma-
épocas recentes vem sendo mais visível a importância e a abrangência da questão
terial levantado pela Fundação Bento Rubião, em que se consultou 836 históricos
fundiária focada nas áreas ditas informais, em especial as favelas, através de debates
de posse do bairro Barcelos, 177 do Laboriaux e com entrevistas semi-estruturadas
de significativa produção científica e de programas concretos no campo das políticas
realizadas em campo nestes bairros, com moradores e lideranças locais. Trabalhou-
públicas. Na verdade a questão é antiga, e talvez o que seja mais inovador, atualmen-
-se também com documentação relativa às políticas fundiárias, especialmente com
te, refira-se à estruturação, em nível nacional, de programas e projetos de regulari-
programas de regularização.
zação para tais áreas e, em algumas cidades, as suas tentativas de implementação2.
Observamos que os trabalhos têm se intensificado na questão relacionada às
favelas, especialmente na dimensão jurídico-legal, no bojo do desenvolvimento do
direito urbanístico. Neste sentido, boa parte dos autores acentua a necessidade de
se considerar a especificidade das áreas faveladas e outros assentamentos conside-
3. Referimo-nos a alguns autores como Edésio Fernandes e Betânia Alfonsín, que têm uma reflexão profundamente
inserida na questão urbana.
4. Este é o caso do professor Pedro Abramo, que vem desenvolvendo uma série de trabalhos no campo da informali-
2. Na verdade registram-se, pelo menos desde o início da década de 1980, alguns programas no nível municipal, e dade. Observe-se que o projeto que ora apresentamos relaciona-se à mesma temática. Lembramos, ainda, a linha de
mesmo no estadual, que já avançavam na questão. Destaca-se, neste sentido, a criação da Procuradoria de Terras trabalho do professor Nelson Baltrusis, que também está focado nas particularidades de um mercado informal, em
do Rio de Janeiro, considerada uma iniciativa pioneira, juntamente com programas em Belo Horizonte, Porto Alegre, especial nos assentamentos de São Paulo.
Recife, entre outros, que se iniciaram ou estavam em elaboração neste período. 5. “Rocinha Mais Legal”, projeto desenvolvido pela Fundação Bento Rubião para o Ministério das Cidades.

262 Significados e representações em favelas Maria Laís Pereira da Silva | João Paulo Oliveira Huguenin 263
As políticas de regularização fundiária – que garantisse a função social da propriedade, o direito à moradia e a segurança da
uma breve indicação posse e, portanto, o direito à cidade e à sua gestão democrática (FERNANDES, 2009).
Outras importantes leis foram aprovadas posteriormente, entre elas a Lei Fe-
deral de 2007 (Lei Nº 11.481, de 31 de maio de 2007) que facilitou a transferência de
As áreas de favelas são partes integrantes da dinâmica das cidades, no entan-
terras públicas da União para que os municípios pudessem regularizar a situação
to, no que se refere à questões legais, ficaram à margem do direito oficial, não pos-
dos ocupantes de terrenos e imóveis pertencentes a ela, e a Lei Federal de 2008 (Lei
suindo, os moradores, qualquer segurança jurídica. Os programas de regularização
Nº 11.888, de 24 de dezembro de 2008) que reconheceu o direito das comunidades
fundiária visam, a princípio, solucionar essa situação, garantindo a seguridade da
à assistência técnica para o avanço dos programas de regularização.
posse dos moradores juntamente com uma integração socioespacial dessas áreas
No plano governamental, destaca-se ainda a criação do Ministério das Ci-
com o restante da cidade.
dades, em 2003. Através desse ministério foi posto em ação o Programa Nacional
Segundo Fernandes “o princípio jurídico subjacente básico das políticas de
de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável, que se propõe a criar as bases ju-
regularização fundiária é garantir (por razões pragmáticas, financeiras, sociopolíti-
rídicas, institucionais, urbanísticas e financeiras para que os municípios e estados
cas e jurídicas) que as comunidades fiquem onde estão, naturalmente em condições
possam atuar, além de dar apoio às comunidades para que tenham seus direitos
melhores, e que tenham seus direitos reconhecidos” (FERNANDES, 2009, p. 68).
reconhecidos pelos juízes nos casos de ocupações de terras privadas (via usucapião
Mesmo sendo tratadas como algo novo, as políticas de regularização fundiá-
especial urbano), ou de concessão de uso especial para fins de moradia (nos casos
ria já são empregadas no Brasil há algum tempo, como é o caso dos programas pio-
de terras públicas).
neiros Pró-Favela, de Belo Horizonte, e Prezeis, do Recife, ambos de 1983. É impor-
Apesar das muitas dificuldades que os projetos de regularização fundiária
tante ressaltar que esses programas ocorreram antes mesmo de existir um marco
encontram para sua efetivação, é inegável que o quadro institucional federal tem
legal federal que desse suporte a essa política, o que só veio a existir em 1988, com
avançado de maneira muito significativa. Por exemplo, com os recursos do PAC na
a promulgação da Constituição Federal. Deve-se ressaltar que existiu também no
implementação de infraestrutura urbana, espera-se avanços maiores na urbaniza-
estado do Rio de Janeiro uma iniciativa pioneira, que foi o programa “Cada Família
ção de assentamento informais e que venham a se somar a projetos de legalização
1 Lote” e a Constituição da Procuradoria de Terras, durante a primeira gestão de
desses assentamentos.
Leonel Brizola.
Após receber críticas, o programa Minha Casa Minha Vida, que inicialmen-
Apesar da promulgação da Constituição Federal em 1988, não houve a regu-
te só considerava a construção de novas unidades habitacionais, passou a realizar
lamentação do seu capítulo sobre Política Urbana. Sendo assim, durante a década
também projetos de regularização fundiária através da Medida Provisória nº 459.
de 1990 houve dificuldades para efetivar programas dessa natureza em razão de,
Com essa MP espera-se que seja possível avançar na legalização dos assentamentos
entre outros, fatores políticos e mesmo de inadequação jurídico-legal (uso da Legis-
informais de interesse social6.
lação de Direito Privado para solucionar os problemas de Direito Público).
Finalmente, cabe observar que dentre os projetos de regularização fundiária
Essa situação levou certa insegurança às iniciativas municipais, que inclusive
em andamento está o “Rocinha Mais Legal”, em realização pela Fundação Centro
não possuíam preparo para lidar com um objeto interdisciplinar de forma integrada,
de Defesa dos Direitos Humanos Bento Rubião. O projeto foi iniciado em 2004, com
e para estabelecer diálogo com outras esferas governamentais e atores importantes
recursos do Orçamento Geral da União, no bairro Barcelos. Em etapas seguintes, foi
como o Ministério Público, o Poder Judiciário e os cartórios de Registro de Imóveis.
iniciada a regularização de outros setores como o do Laboriaux e Vila Cruzado.
Nesse período, como exceções, destacam-se as experiências dos municípios do Rio
Atualmente, o projeto está desenvolvendo uma experiência piloto, utilizando
Grande do Sul, que através da Legislação Municipal criou instrumentos para a regu-
o Auto de Demarcação e a Legitimação da Posse, instrumentos inovadores para a
larização fundiária, e de Diadema (SP), que conseguiu uma maior interação adminis-
regularização fundiária previstos na Medida Provisória 4597.
trativa agilizando os projetos.
Em 2001 começa a se desenhar novas possibilidades, não só para os progra-
mas de regularização fundiária como para toda a gestão das cidades brasileiras. Essa
mudança no cenário deu-se com a promulgação do Estatuto das Cidades (Lei Nº 6. Mais recentemente, têm sido levantadas críticas por vários autores sobre como a questão fundiária foi inicialmente
situada. Para uma análise mais completa, ver ANDRADE, Eliana (2011), entre outros.
10.257, de 10 de julho de 2001), que fez uma ruptura pragmática com a Ordem Jurídi-
7. No período em que foi elaborado este texto, no projeto inicial estava previsto o benefício para os seguintes bairros:
ca Brasileira ao trazer diretrizes e instrumentos para uma política urbana inovadora, Cachopa, Cachopinha, Pastor, Almir, Trampolim, Vila Verde e Vila União/Paula Brito e parte da Dionéia.

264 Significados e representações em favelas Maria Laís Pereira da Silva | João Paulo Oliveira Huguenin 265
A Rocinha e a questão da terra uma vez o loteamento do local não atendia às normas urbanísticas municipais, fi-
cando também irregular. Cabe ressaltar que alguns dos moradores que compraram
A ocupação do território da Rocinha seus lotes conseguiram registrá-los no Registro Geral de Imóveis.
Em trecho de entrevista realizada por Gerônimo Leitão (LEITÃO, 2009), José
A ocupação do território da Rocinha iniciou–se na década de 1920, anos em
Martins de Oliveira, uma importante liderança local, ex-presidente da Associação de
que gradualmente a área foi perdendo suas características rurais devido a um lote-
Moradores do bairro Barcelos e o primeiro administrador regional, aponta fatores
amento feito pela Companhia Castro Guidão, proprietária das terras, em especial
que tornam o bairro Barcelos distinto dos demais da favela:
entre os anos de 1927 e 1930. Esse empreendimento comercializou lotes de aproxi-
madamente 270 metros quadrados ao longo da Estrada da Gávea (LEITÃO, 2009). A Quando vendeu aqueles terrenos, a Companhia de terrenos Cristo Reden-
ocupação foi relativamente rápida, sendo que em 1933 o levantamento das edifica- tor passou essa ideia para os moradores: vocês são diferentes, são me-
lhores do que o restante da Rocinha. O segundo ponto é que, bem ou
ções do Distrito Federal já assinala para a Estrada da Gávea cerca de 450 casebres.
mal, existia esgoto no bairro Barcelos (...) As casas do bairro Barcelos eram
Contudo, esse loteamento nunca foi completamente regularizado pelo poder
todas em alinhamento, o arruamento era bom. O pessoal de cima tinha
público, visto que o parcelamento das terras não atendia às exigências da legisla- raiva do pessoal de baixo, que queria ser diferente.
ção urbanística vigente. A companhia tentou promover a legalização do loteamento
junto a Prefeitura do Distrito Federal, entretanto essa legalização não ocorreu por Um fato marcante na história local foi a canalização do valão localizado entre
uma série de fatores, entre os quais problemas financeiros da Companhia Castro o Largo do Boiadeiro (centro comercial da área) e a Rua II em 1981. A canalização
Guidão, que declarou falência em 1937, e, mais tarde, pelas intenções da Prefeitura do acabou por provocar a retirada de algumas casas aí localizadas. Ao todo eram 76 fa-
Distrito Federal de implementar nesse local outro tipo de urbanização. (SILVA, 2005) mílias que foram relocadas para casas construídas pelo poder público no Laboriaux.
De acordo com Leitão, a falência da companhia, a melhoria da infraestrutura Tal relocação levou à ocupação de áreas impróprias para o uso, tanto por estarem
da Estrada da Gávea, que passou a contar com iluminação e pavimentação, junta- dentro da área de proteção permanente da Floresta da Tijuca, como por serem áreas
mente com os boatos de que estas seriam “terras do governo” ou “terras sem dono” consideradas de risco geotécnico.
foram determinantes na ocupação informal da área, tendo como origem as ruas pre- Essa ocupação de áreas impróprias também ocorreu nas vertentes do Morro
vistas no parcelamento feito pela Companhia Castro Guidão (Ruas I, II, III e IV). Dois Irmãos, como o bairro da Macega, que está localizado parcialmente em área
As lembranças dos moradores citadas no Varal de Lembranças: Histórias e considerada de risco e de preservação ambiental, e só não se expandiu mais devido
Causos da Rocinha (1983) expressam com clareza a forma de ocupação que veio ao enorme afloramento rochoso do sítio.
acontecendo: Nos anos 1990, a expansão da Rocinha prosseguiu tanto pela verticalização
Primeiro era mais sossegado, depois foi enchendo, foi enchendo, e hoje tá dos setores já consolidados quanto pela ocupação de áreas vizinhas da favela, que
aí o que a senhora tá vendo. Tudo diferente. Virou bagunça. Não obede- acabaram por constituir novos setores, como Vila Verde e Vila Cruzado. Podemos
ceram mais alinhamento nem coisa nenhuma. Fizeram assim uma espécie sintetizar a ocupação do território da Rocinha através do mapa. (página 270)
de dominó. Assim taí, difícil de urbanizar, derruba três partes, porque ge- A década de 2000 é fortemente marcada pela mudança morfológica das edi-
ralmente nunca pega uma casa em alinhamento (depoimento de Bernar-
ficações da favela, que vão gradualmente se transformando de unidades térreas e
dino Francisco de Souza – 30/06/81).
assobradadas em prédios destinados a apartamentos e quitinetes. São muitos os
prédios que surgiram na área, e em 2009 a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
Nas décadas de 1940 e 1950 as diferentes áreas da favela vão se adensan-
demoliu o chamado “Minhocão”, um edifício de quitinetes que estava sendo cons-
do cada vez mais e esse adensamento passa a se dar de forma muito mais intensa
truído próximo à Estrada da Gávea, fato amplamente divulgado pela imprensa.
na década seguinte, com a abertura do túnel Dois Irmãos (atualmente Túnel Zuzu
Essa década também está sendo marcada por grandes investimentos do
Angel) em 19718. Já nos anos de 1960 começara a comercialização generalizada dos
poder público na favela9. Além da regularização fundiária de alguns setores que
lotes do bairro Barcelos (parte plana da Rocinha), feita pela Companhia Cristo Re-
estão sendo realizadas pelo governo federal juntamente com a Fundação Bento
dentor, que parcelou a área já inicialmente ocupada ainda na década de 1930. Mais

8. Na contagem do IBGE para o censo de 1960, a favela já se situava como a segunda de maior população na cidade, 9. A Rocinha contabiliza inúmeras intervenções pontuais, inclusive remoções parciais, entretanto a marca mais recente
contando com cerca de 14.000 habitantes, apenas superada pelo Jacarezinho (SILVA, 2005). é a de ações em maior escala.

266 Significados e representações em favelas Maria Laís Pereira da Silva | João Paulo Oliveira Huguenin 267
Mapa representativo da maioria através do presidente “Zé do Queijo”, importante liderança local no início
ocupação dos setores da
Rocinha
dos anos de 1980.
Concurso de Ideias para Além da Associação de Moradores, outras importantes instituições fizeram
Urbanização da Rocinha doações de imóveis na Rocinha, em especial as igrejas. Estas doaram principalmente
– Escritório Mayerhofer &
Toledo terrenos em seu entorno direto, como é o caso da Igreja Católica no bairro Barcelos,
mas, principalmente, a Igreja da Restauração no mesmo bairro. É de se notar que
também é comum a doação de lajes ou quartos para parentes.
Rubião, em 2005 No Laboriaux, por sua vez, a maioria das residências foram obtidas através de
houve um concurso um “Termo de Cessão” dado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro quando da
para a urbanização da relocação das famílias que viviam no Valão da Rocinha.
área, promovido pelo Por outro lado, os dados indicaram que o aluguel vem ganhando grande im-
governo do estado portância dentro da Rocinha, que por suas dimensões e por sua peculiar localização
em parceria com o na cidade do Rio de Janeiro, ocupa lugar de destaque no mercado imobiliário “in-
Instituto de Arquite- formal”. Esse mercado interno gerou, inclusive, o surgimento de algumas agências
tos do Brasil do Rio imobiliárias no interior da favela.
de Janeiro. O projeto No que se refere à invasão, a grande parte dos moradores não declara que
vencedor é de autoria do escritório Mayerhofer & Toledo e vem sendo executado ocupa terreno invadido, e até mesmo condena esta prática. Um fato interessante de
desde 2008 com recursos do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento. se destacar é que aqueles que obtiveram permissão para ocupar, ou que compra-
ram um terreno invadido não consideram que sua casa esteja em área de invasão.
As formas de acesso à moradia na Rocinha – Ou seja, a negociação ou a transação de um terreno ou imóvel acaba por legitimá-lo
A complexidade fundiária frente às regras da favela.
Essas diferentes formas de acesso à moradia acabaram por gerar uma grande
Analisando os históricos de posse de moradores do bairro Barcelos e do La- fragmentação no que o urbanismo trata como lote. Em um mesmo lote podemos en-
boriaux, encontra-se uma grande diversidade na forma de acesso à moradia por contrar um sem número de situações, desde proprietários de andares inteiros, a famílias
parte dos entrevistados. que possuem uma única quitinete. Sendo assim os programas de regularização fundi-
A forma de acesso mais simples é a compra de um terreno ou um imóvel. ária encontram uma grande dificuldade de interpretar essas diferentes realidades, e de
Nesses casos as pessoas sentem-se proprietárias, pois a conquistaram como qual- as enquadrarem dentro dos conceitos empregados pela ordem jurídica vigente.
quer outro bem do mercado, através do seu pagamento. Essa é uma situação que As situações descritas acima formaram o quadro em que se destacou algu-
ocorre, sobretudo, no bairro Barcelos, que, conforme visto, foi resultante de um pro- mas representações sobre posse/propriedade e aluguel.
jeto de parcelamento que comercializou os lotes.
No entanto a simples compra do imóvel ou terreno sofreu grandes variações
As representações da questão fundiária
ao longo do desenvolvimento da comunidade. A vertiginosa verticalização do bairro
Barcelos, e em menor escala do Laboriaux, levou à intensa comercialização imobi- Dentre as construções sociais que mais marcaram a formação das represen-
liária de “partes” como lajes, andares de uma casa, quitinetes e frações de terrenos tações estigmatizadas sobre a favela, encontra-se a que coloca a sua origem, ou
entre outras. Um aspecto que impressiona é, por exemplo, caminhar pela favela e melhor, situa sua característica principal como resultante de invasão de terra alheia,
observar em vários pontos o anúncio de venda de lajes. seja pública ou privada, portanto caracterizando uma transgressão a uma das bases
Outra forma recorrente de acesso à moradia é pela doação de casas e, prin- do regime, que é o da propriedade.
cipalmente, de terrenos. Essa prática foi observada no Laboriaux, já nas áreas pró- A generalização mais intensa da caracterização da favela enquanto “invasão”
ximas ao limite da Floresta da Tijuca, onde muitos moradores declararam que o ter- parece começar a ser mais insistente e publicizada entre os anos de 1940 e de 1950,
reno onde construíram suas casas foram doados pela Associação de Moradores, a quando, efetivamente, começa a se transformar o mercado imobiliário e de terras na

268 Significados e representações em favelas Maria Laís Pereira da Silva | João Paulo Oliveira Huguenin 269
cidade, com o desenvolvimento das incorporações e a formação cada vez maior de da forma de perceber e dar significado a fatos, objetos e, no caso deste trabalho, a
um mercado de compra e venda, em detrimento do aluguel (RIBEIRO, 1997; SILVA, conceitos que se originaram no campo jurídico (propriedade) e de outras formas
2005). Nos anos de 1960, o sentido do aluguel será praticamente desestruturado, de acesso ao morar. Para indicar alguns desses aspectos, registramos, no capítulo
quando o aparato estatal do Banco Nacional da Habitação estabeleceu e consoli- anterior, as categorias que surgiram da análise das histórias fundiárias nos bairros
dou, como quase que a única forma de acesso oficial à habitação pública, a “casa Barcelos e Laboriaux da favela da Rocinha, mostrando a sua complexidade. As si-
própria”. Esta é colocada como aspiração máxima. As gerações seguintes, portanto, tuações encontradas, bem como as representações sobre a posse e a propriedade
crescerão no que se chamou de “ideologia da casa própria”. Este é um dos aspectos diferenciam-se segundo as especificidades de cada localidade como sítio, condição
importantes que (juntamente com a vulnerabilidade social dessas áreas)10 explica inicial de ocupação e histórico da população residente, entre outros.
por que, na experiência de campo de muitos pesquisadores, e no grande número No entanto, também foi possível perceber que, embora sejam distintas as
de pesquisas e estudos que se desenvolveram desde os anos de 1950 até hoje11, a representações sobre a casa/morar, a posse/propriedade, as formas e condições de
questão de considerar como própria a moradia e mesmo a terra é, muitas vezes, rea- ocupação (invasão, aluguel, cessão, etc.) e a sua legitimação, essas representações
firmada por moradores das áreas favelizadas, independente de sua forma de acesso. também se articulam a partir de significados relacionados a planos diferentes de
Em questionários e enquetes essa é uma resposta comum de ser encontrada, dualidades, entre as quais destacamos: estabilidade x instabilidade (no plano da
sendo, muitas vezes, pressuposta pelos próprios pesquisadores. Quais os significa- segurança percebida quanto à permanência no local), a casa como endereço: “lugar
dos que podem ocorrer em torno dessas respostas? Quais as noções e demais concei- no mundo” x casa / “mundo privado”, (a percepção quanto ao campo das relações
tos relacionados, e quais os seus desdobramentos no cotidiano dos moradores e nas socioespaciais). Por outro lado, na contraposição da posse/propriedade com o alu-
demais formas encontradas de ocupação do terreno e do imóvel? Como vem sendo guel, surgem representações diferenciadas segundo o ator o qual se está referindo:
construída essa noção? São indagações que parecem ter sua importância nas repre- o poder público ou os agentes do mercado imobiliário. Nesse sentido, uma dualida-
sentações intermediárias entre o que é atribuído pela sociedade, o que é delimitado de importante é a visibilidade x invisibilidade dos inquilinos.
no quadro jurídico-legal, o que é efetivamente a questão fundiária para o morador Finalmente surgiram diferentes aspectos no significado do próprio aluguel.
e qual a representação que está informando a ocupação, a ação deste morador. Este Esses são os pontos que serão comentados nos próximos itens.
último aspecto foi o enfoque principal desta pesquisa. Por outro lado, embora não
seja o direcionamento principal neste momento, deve-se assinalar como consequên-
Estabilidade x Instabilidade
cia, e fazendo parte do quadro geral, que a percepção dos moradores rebate-se na
forma como ocupa a terra e nas inúmeras e cotidianas delimitações que realizam – Nos locais pesquisados verificou-se que a representação da estabilidade atri-
no caso de vizinhanças, por exemplo – e as práticas daí decorrentes. buída à casa própria contrapõe-se à percepção da vulnerabilidade nas situações de
Finalmente deve-se observar que no que se refere ao significado de “repre- aluguel e invasão. Quando perguntados sobre a melhor e a pior situação de mora-
sentações” como vem sendo indicado, considera-se, numa primeira aproximação, dia, os moradores foram enfáticos em destacar a importância da casa própria e da
que este significado está relacionado, de um lado ao imaginário dos grupos sociais, sensação de segurança que ela traz consigo:
e de outro lado, através deste imaginário, à memória individual e coletiva. De qual- “Se fosse para escolher o melhor, claro, seria ser proprietário... O melhor é
quer forma, e seguindo Georges Gurvitch (conforme Henri Lefebvre), “as represen- a questão da segurança, você está morando em um lugar que é definitiva-
tações vêm de dentro, contemporâneas da constituição do sujeito, tanto na história mente seu.” M. P., moradora do bairro Barcelos.
de cada individuo, como na gênese do indivíduo em escala social” (LEFEBVRE, 1983,
p. 20). Por outro lado, e ainda conforme especialmente Lefebvre, as representações A percepção acima se contrapõe a do aluguel, que muitos moradores entre-
não podem se reduzir nem “ao seu veiculo linguístico (...) nem a seus suportes so- vistados quase sempre o identificaram como algo instável, pois somente em imó-
ciais” (LEFEBVRE, 1983, p. 24). Trata-se, na nossa concepção e simplificando bastante, veis próprios não haveria risco de remoções:

“A pessoa não se sente segura. O senhorio pode pedir a casa a qualquer


10. Historicamente os segmentos sociais mais pobres estiveram sempre vulneráveis às demolições, proibições e, a
partir do início dos anos 1960 até por mais 20 anos, a uma política sistemática de remoção dos moradores de favelas hora... já vi muitos casos assim por aqui.” M. C. O, moradora do bairro Bar-
para conjuntos mais longínquos. celos.
11. Para uma excelente bibliografia analítica dos trabalhos sobre as favelas do Rio de Janeiro, ver VALLADARES e ME-
DEIROS, 2003.

270 Significados e representações em favelas Maria Laís Pereira da Silva | João Paulo Oliveira Huguenin 271
De fato, encontramos indícios mais antigos da representação de estabilidade reconhecimento do direito de propriedade é determinante na condição cidadã dos
da casa própria na década de 1930, quando, conforme já indicado, há uma mudança moradores:
na abordagem do problema habitacional para a baixa renda. Até 1930, sem qualquer
“Eu não me sinto cidadã se o solo em que eu deito e habito não é meu
questionamento das formas de acesso à habitação, enfatizava-se a “salubridade da ainda de direito, se ele não está documentado.”
moradia”. Em torno dessa data, com a política do Estado Novo “a questão principal
passou a ser viabilizar o acesso à casa própria” (Bonduki, 1998:88), sendo difundido É importante observar que este direito está relacionado a estar “documenta-
o ideal da casa própria como forma de ascensão social, que assumirá especial impor- do”, ou seja, ao “papel” que garante para a ordem urbana a sua propriedade.
tância nos anos de 1960, conforme já indicado. Outro aspecto intimamente ligado Assim a casa, além de demonstrar um posicionamento geográfico, possui um
à representação de estabilidade é a questão da garantia contra as remoções, que valor simbólico de posicionamento do indivíduo perante à sociedade:
voltam sempre com intervalos históricos muito significativos12.
Além do significado de estabilidade atribuído ao “morar em casa própria”, “É um sonho realizado a gente ter o título de posse da nossa casa. Pelo
menos posso dizer assim: Eu tenho um endereço!”
os entrevistados ressaltam como importante a estabilidade financeira, na medida
em que a moradia passa a constituir um bem que possui valor no mercado, poden-
do servir de garantia em várias situações como necessidades emergenciais, como Por outro lado, ao mesmo tempo em que a casa é o posicionamento do cidadão
bem a ser hipotecado, como garantia para empréstimos e compras em geral, entre no mundo e também o mundo particular do indivíduo, as coisas que ali acontecem
outros. Além disso, a casa própria é um bem que pode ser transmitido aos seus des- pertencem ao universo privado de cada um, particularizando-o das demais pessoas.
cendentes, constituindo também uma segurança futura para a família: A casa não é só um abrigo para o homem, mas também um porto seguro
para seus sonhos e devaneios, é um canto do mundo onde ele se reen-
“Isso sempre vai me garantir que o dia que eu não tiver dinheiro eu vou ter
contra com sua intimidade. Morar não se restringe às circunstâncias de
pelo menos um lugar para morar.” S., morador da Rocinha.
alojar o corpo. Uma casa quando se revela habitável é sempre um pedaço
de universo, construído de singularidades onde seu morador se sente à
Por isso mesmo, percebemos no discurso dos entrevistados que ser dono de vontade (BACHELARD, 1989).
um imóvel é algo desejável, e que os moradores buscam essa estabilidade assim que
têm condições de compra, nem que seja um terreno para construir: O resguardo da privacidade encontra-se, por exemplo, na frase tão recorren-
te que se diz ao mostrar a sua casa: “é aqui que me escondo”...
“Cheguei no Laboriaux em 1994, morando de aluguel. Em 97 comprei o
terreno do Sr. Francisco Barbosa” (A. V. S., morador do Laboriaux).
Visibilidade x Invisibilidade
Por outro lado, discutindo a questão do aluguel, percebe-se a existência de
A casa “lugar no mundo” x A casa “mundo particular” representações onde o locatário é “visível” para o mercado imobiliário interno, mas
A representação da casa como um “lugar no mundo” refere-se muitas vezes é “invisível” frente às políticas públicas. Embora as políticas públicas habitacionais,
ao plano da cidadania e posicionamento social, um tipo também de visibilidade sobretudo as de regularização fundiária, tenham desconsiderado os locatários, o
frente aos outros no mundo dos direitos que compõem a cidadania, contrapondo- mercado imobiliário interno confere uma posição de destaque a eles, como forma
-se ao mundo particular (privado). Possuir um endereço consiste em algo que po- de potencializar o lucro do imóvel, e da parte dos locatários como a possibilidade do
siciona a pessoa no mundo, e isso não é diferente nas situações relacionadas ao acesso à moradia, sempre aumentando o número de ofertas para aluguel, e sendo
campo da ocupação em favelas. sinal de uma dinâmica imobiliária que em determinados momentos é identificada
Para a líder comunitária Maria Helena, militante que se sobressai na imple- como especuladora:
mentação do projeto de regularização fundiária na favela da Rocinha, a questão do “Aqui ninguém empresta, só aluga. Virou especulação imobiliária” (A. O.
N., Laboriaux).
12. Boa parte dos moradores de favela tem uma experiência própria, ou de alguém da família que foi removido. Esta
memória “de desespero” permanece viva. Observe-se que, entre 1968 e 1973, a população removida atingiu mais de
100 mil pessoas (VALLADARES, SILVA 2005; LEEDS e LEEDS, 1978).

272 Significados e representações em favelas Maria Laís Pereira da Silva | João Paulo Oliveira Huguenin 273
“Nos prédios que tem perto de onde eu moro é assim: o proprietário mora cidade. É interessante observar que o aluguel adquire sentidos muito diversos: res-
em um andar e divide os outros para alugar” (M.P., bairro Barcelos). ponde à liberdade do deslocamento e do trabalho, e pode representar uma “explo-
ração” aprisionadora.
Mike Davis, em seu livro Planeta Favela (DAVIS, 2006), afirma que os locatários Finalmente observa-se que a legitimidade da condição de ocupação é confe-
de imóveis em favelas são, em todo o mundo, os moradores mais invisíveis e impo- rida, na visão dos moradores, por meios formais dentro da informalidade: o registro
tentes dessas localidades. Porém o autor não considera a visibilidade do locatário pe- na associação de moradores, ou declarações de próprio punho e ainda o registro
rante um mercado interno, apesar de afirmar que o aluguel se constitui no “principal em cartório com documento particular, entre outros, são os procedimentos formais
modo para os pobres urbanos gerarem renda com seu patrimônio, mas com frequên- mais utilizados no quadro da informalidade. Segundo Boaventura de Souza Santos
cia, numa relação de exploração de pessoas ainda mais pobres”. (DAVIS, 2006, p. 52) (1999), “pode detectar-se a vigência não oficial e precária de um direito interno e in-
É importante ressaltar que o pagamento de alugueis ou taxas é recorrente formal, gerido, entre outros, pela associação de moradores, e aplicável à prevenção
na história das favelas cariocas. De acordo com o primeiro censo das favelas do Rio e resolução de conflitos no seio da comunidade decorrente da luta pela habitação”.
de Janeiro, em 1948 38 % dos domicílios pagava aluguel pela casa e 6,4% pela terra Relembrando o que já foi assinalado, é interessante observar que nas áreas
(Prefeitura do DF, 1949). No censo de favelas do IBGE em 1960, ainda contabilizava- pesquisadas que possuem uma estrutura interna consolidada, os entrevistados, em
-se 21% de domicílios alugados (SILVA, 2005). sua maioria, consideram a invasão um modo de transgressão do direito de proprie-
Na Rocinha essa representação de visibilidade dos locatários levou, junta- dade, condenando, portanto, o ato. No entanto, esses mesmos entrevistados de-
mente com outros fatores, a uma transformação das tipologias habitacionais de monstram que muitas vezes a posse de terrenos invadidos legitima-se através da
barracos de madeira a prédios de quitinete (LEITÃO, 2009). No Laboriaux, por exem- permissão para ocupação do imóvel / terreno ou, para o novo morador, pela compra
plo, as tipologias iniciais vêm sendo gradualmente modificadas, sendo comuns as do mesmo, como já indicado.
situações abaixo:
Analisando a questão do aluguel por outro aspecto, temos a sua representa-
ção relacionada ao plano da mobilidade. Segundo entrevistados na favela da Maré13, Palavras finais
um complexo de favelas marcado pela violência entre facções criminosas rivais, o
aluguel, para alguns entrevistados, pode significar uma maior mobilidade nos casos Como parte de uma pesquisa mais ampla, trabalhamos neste texto com
de ameaça de violência no interior da favela(invasão de casas, expulsão de famílias); alguns aspectos dos temas tratados e que nos pareceram mais significativos, tendo
também pode significar a possibilidade de novos empregos em diferentes partes da em vista, conforme assinalado, certo avanço com relação às políticas habitacionais,
do viés da regularização fundiária. Nesse sentido, identificamos propostas de pro-
gramas que pelo menos chegaram a uma formulação (mas não necessariamente
a uma implementação), e centramos nosso trabalho de campo no programa que
efetivamente vem sendo implementado no complexo da Rocinha, Rio de Janeiro.
A evidência empírica mostrou um complexo de situações fundiárias que escapam
ao enquadramento jurídico-legal, e que oferecem, segundo os planejadores e exe-
cutores do programa, dificuldades até mesmo de entendimento de determinadas
situações. Numa das entrevistas realizadas, o representante do programa na área
Casa térrea com um Esse proprietário vende a Quando possui renda o
indicou que a escolha do bairro Barcelos como fase inicial da regularização fundiária
proprietário laje a outro. Muitas vezes, a proprietário do térreo baseou-se no fato de sua aparente regularidade, espacial e urbanística. Entretan-
condição de venda e de que constrói um terceiro to, logo no começo, percebeu-se que ali, contrariamente ao esperado, havia uma
a laje que venha a ser cons- pavimento para locar
truída continue pertencendo complexidade de situações com alta consolidação, o que tornou lento e custoso o
ao proprietário de antes desenvolvimento da pesquisa fundiária.
Por outro lado, ao problematizarmos a questão da “casa própria”, aparente-
13. Na pesquisa origem deste texto, a segunda etapa previa a comparação com outras favelas. Neste sentido chegou-se
a realizar entrevistas no complexo da Maré, zona norte do Rio. Na época a continuidade foi inviável, devido às condi-
mente tão óbvia, e certamente a ideologia predominante no discurso dos entrevis-
ções de insegurança que se desenvolveram.

274 Significados e representações em favelas Maria Laís Pereira da Silva | João Paulo Oliveira Huguenin 275
tados, até como projeto de vida, sua colocação é desafiada pela crescente situação processo de segregação espacial no Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século
de aluguel encontrada. No caso do aluguel, por sua vez, pode-se hipotetizar que XX. In: Anais do VIII Seminário de História da Cidade e do Urbanismo. Niterói: UFF/
ANPUR/UFRJ, 09 a 12 de Novembro de 2004 – CD ROM.
seu significado tem certa ambiguidade. De uma avaliação bastante negativa – nas
entrevistas na Rocinha – ao se buscar outras favelas (no caso o complexo da Maré) CARVALHO, Eduardo Guimarães. O negócio da terra. A questão fundiária e a Justiça. Rio de
Janeiro: editora UFRJ, 1991.
começaram a ocorrer outros significados e representações, mesmo algumas positi-
vas. Uma possível explicação – dentro inclusive do quadro em que se desenvolveu CASTRO, Celso. Uma viagem pelos mapas do Rio. In PREFEITURA DA CIDADE DO Rio de
a pesquisa – é de que essas avaliações positivas são bastante conjunturais, mas que Janeiro. Do Cosmógrafo ao Satélite. Mapas da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
CAU/UFRJ, 2000, p 8-15.
podem, de certa forma, comprometer ou mesmo exigir um trabalho mais apurado
com relação a programas que propugnam a locação social, por exemplo. CONN, Stephen. The squatters rights of favelados. Ciências Econômicas e Sociais,

O que fica finalmente patente é, mais uma vez, a importância de se desen- v.3, n.2, São Paulo, 1968, pp. 50-142.
volver uma compreensão das complexidades (e ambiguidades) nos significados e CORREIA, Telma de Barros. A construção do habitat moderno no Brasil-1870-1950. São Carlos:
representações sociais, no sentido de aperfeiçoar de forma mais adequada os pro- RiMa/FAPESP, 2004.
gramas de regularização fundiária. Buscar uma observação “de dentro para fora”, CORRÊA, Ricardo Gouvêa (coord e texto). Direito à terra e à habitação: uma experiência no Rio
ou seja, as regras/representações sociais como principais bases para a conformação de Janeiro. Rio de Janeiro: FUNDAÇÃO CDDH BENTO RUBIÃO, 2006.
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vestigação sobre o fenômeno da expansão urbana na “Região dos Lagos”, no li-
SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Está na hora de ver as cidades como são de verdade. In: toral do Rio de Janeiro. Passaram-se dez anos desde que começamos a desen-
Revista Projeto (113), São Paulo: Ed Projeto, 1988, pp. 99-102. volver este projeto: o primeiro passo foi avaliar qualitativamente o processo de
.(1984 A) Rio de Janeiro, O que transforma e em que é urbanização em áreas de restinga, em seguida, pesquisa sobre a aplicação de instrumen-
transformado. In: TURKIENICZ, Benamy (org). Desenho urbano 1. I Seminário sobre tos de intervenção urbana nessas áreas; finalmente, hoje, ampliando a escala do enfo-
desenho urbano no Brasil. Cadernos Brasileiros de Arquitetura (volune 12), São Paulo:
que, o estudo deste fenômeno mundial relativamente recente da urbanização dispersa.
Projeto/CNPq/FINEP, pp. 100-115.
Neste artigo se pretende apresentar um estudo de caso no município de Maricá, área peri-
.(1984 B) Em 30 anos passou muita água sob as pontes
-urbana da Região Metropolitana do Rio de Janeiro – com uma população predominan-
urbanas. In: Revista espaço e Debates (11), ano IV, São Paulo: Núcleo de Estudos
Regionais e Urbanos, pp. 28-40. temente agrícola na década de 1970 – que tem altos níveis de parcelamento da terra e o
aumento anual de população mais de 5%.
SILVA, Jailson de Souza e; BARBOSA, Jorge Luiz. Favela. Alegria e dor na cidade. Rio de
Janeiro: Editora SENACRIO: [X]BRASIL, 2005. Esta cidade pode ser considerada um caso exemplar do fenômeno da expansão urbana no
SILVA, Maria Lais Pereira da. Favelas Cariocas(1930 – 1964). Rio de Janeiro: editora Estado do Rio de Janeiro, e passou por todas as etapas da subdivisão especulativa: a frag-
Contraponto, 2005. mentação das propriedades rurais, com a abolição da escravatura; a subdivisão das áreas
SOUZA, Flávio A. M. Esta casa é minha. Posse (in)segura e mercado habitacional informal em agrícolas em lotes após a Segunda Guerra Mundial; a construção de segunda residências nas
Recife e Maceió. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia. A lei e a ilegalidade na décadas de 1970 e 1980, a subdivisão em condomínios na década de 1990. Este processo de
produção do espaço urbano Representações e Belo Horizonte: Del Rey, 2003. desenvolvimento tornou-se cada vez mais sofisticada nas últimas décadas.
PAULA, Tainá Reis de; SILVA, Maria Lais Pereira da. A Iconografia das favelas cariocas, uma Há muitos atributos locais Maricá. Recursos naturais como a expressiva cobertura de Mata
história de Omissão e recuperação. In: Anais do XI Encontro Nacional da ANPUR, Atlântica, o sistema lagunar com cerca de 40 km² e uma vasta faixa costeira.
Salvador, 2005.
VALLADARES, Lícia do Prado; MEDEIROS, Lídia. Pensando as favelas do Rio de Janeiro 1906-
2000. Rio de Janeiro: Relume Dumará/FAPERJ/URBANDATA, 2003. 1. Nesse texto estão condensadas as contribuições do Prof. Jorge Crichyno (que compõe o Grupo de Pesquisa desde
sua criação), das bolsistas de iniciação científica CNPq, todas já graduadas em Arquitetura e Urbanismo: Alice Caba-
.A invenção da Favela. Do mito de origem à nellas Pires, Flávia Maria Scali, Natália Lopes Antônio, Gabriela Coelho Borges de Campos.; dos monitores da disciplina
de Projeto de Urbanismo III Marcos de Castro Martins Bahiense, Rubens Moreira R. de Carvalho e Bruno Teixeira de Sá
favela.com. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2005.
(os dois últimos meus orientandos e mestres pelo PPGAU) e os orientandos (Já mestres) do PPGAU Michele Abuche
Coyunji, Virgínia Palhano de Alcântara e Rovane Domingues que se dedicaram a abordar as questões aqui discutidas.
2. Arquiteta e Urbanista (UFF, 2014). Bolsista CNPq/PIBIC na pesquisa “Urbanização Dispersa na Região dos Lagos Flu-
minense” (2010-2013).

278 Significados e representações em favelas Werther Holzer | Camila Quevedo dos Santos 279
O texto pretende apresentar os dados coletados o parcelamento de terras nesse município elincremento anual demás de 5%. Este municipios y puede considerar un caso ejemplar
com o apoio das ilustrações e tabelas, delimitando as tendências de urbanização dispersa, del fenómeno dela urbanización dispersa en el Estado de Rio de Janeiro, ya que ha pasado
no contexto da “Região dos Lagos” e da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. por todas las fases de la subdivisión especulativa: la fragmentación de las propiedades ru-
Abstract | The purpose of this paper is to report preliminary results of a research on the rales, con la abolición de la esclavitud; parcelación de las zonas agrícolas en lotes posterio-
phenomenon of Disperse Urbanization in “Região dos Lagos”, on the seacoast of the State res a la Segunda Guerra Mundial; lanzamientos que se volvieron hacia la segunda residen-
of Rio de Janeiro. It has been ten years since we started to develop this project: the first step cia en las décadas de 1970 y 1980, la subdivisión en condominios en la década de 1990.
was evaluating qualitative urbanization process on sand bank areas; afterwards, investigat- Este proceso de urbanización es cada vez más sofisticado a lo largo de las últimas décadas.
ing the application of urban intervention instruments on those areas; finally, at present, Existen muchos atributos locales en Maricá. Recursos natural es expresivos com o gran cubier-
extending the approach scale, studying this worldwide and relatively recent phenomenon ta de Floresta Atlántica, el sistema lagunar de unos 40 km² y una amplia banda en el litoral.
of Disperse Urbanization. El texto tiene la intención de mostrarlos datos recopilados sobre la división de la tierra en
For this text we intend to present a case study on the Municipality of Maricá, peri-urban este municipio, con el apoyo de las ilustraciones y tablas sobre su aplicación, la delimitación
area of the Rio de Janeiro Metropolitan Region – with a predominantly agricultural popula- de la tendencia de la urbanización dispersa en el contexto de la “Região dos Lagos” y la
tion in the decade of 1970 – which presents high taxes of division of the ground and annual Región Metropolitana de Río de Janeiro.
increase of more than five per cent.
This municipality can be considered an exemplary case of the phenomenon of the dis-
1. Aspectosconceituais e metodológicos
persed urbanization in the State of Rio de Janeiro, because it has passed for all the phases of
the speculative subdivision: fragmentation of the rural properties with the abolition of the
Porque “urbanização dispersa”? Há dez anos, como Grupo de Pesquisa3 regis-
slavery; parcel out of the agricultural areas into lots after World War II; undertaking launch-
trado, pesquisamos o parcelamento do solo nas áreas periurbanas do leste do Rio
ings turned towards second residence in the decades of 1970 and 80; subdivision into con-
de Janeiro, em especial Maricá, que vem, desde a década de 1990, atingindo taxas
dominiums from 1990. This urbanization process is getting more sophisticated throughout
de crescimento anual maiores do que cinco por cento4.
the last decades.
O que ocorre em toda esta região, como pudemos constatar em nossas pes-
There are many local attributes in Maricá. It has expressive natural attributes such as large quisas de campo, não pode ser tratado como um processo de suburbanização clás-
covering of Atlantic Rain Forest, a lagoon system of about 40 km² and extensive littoral band. sico. Por exemplo, o município de Maricá, nosso estudo de caso neste artigo, teve
The paper intends to show the collected data about the division of the ground in this mu- grandes áreas de seu território parcelado na década de 1950, eram extensas áreas de
nicipality, with the support of illustrations and tables on its implementation, delineating its restinga e de brejo, com limitadas possibilidades de acesso. Estes loteamentos não
tendency of disperse urbanization in the context of the “Região dos Lagos” and the Rio de foram efetivamente ocupados e, ainda hoje, a percentagem de lotes com edifica-
Janeiro Metropolitan Region. ções é baixo (dados levantados pelos bolsistas do grupo em meados da década de
1990 indicavam que essa taxa não passava da média de trinta por cento do total da
Resumen | El propósito de este trabajo es informar sobre los resultados preliminares de
áreas parceladas).Por este motivo, o município enfrenta os novos modos de urbani-
una investigación sobre el fenómeno de la urbanización dispersa en la “Região dos Lagos”,
zação com um estoque de lotes vagos avaliados, por nosso Grupo de Pesquisa, em
en la costa del estado de Río deJaneiro. Han pasado diez años desde que comenzamos a
torno de 100.000 unidades5.
desarrollar este proyecto: el primer paso fue evaluar de forma cualitativa el proceso de urba-
nización sobre las áreas de banco de arena, posteriormente, la investigación de la aplicación
de los instrumentos de intervención urbana en esas áreas y, por último, en la actualidad, 3. Grupo de Pesquisa Avaliação Pós-Ocupação da Urbanização (EAU/ UFF)
4. Taxa média de crescimento anual da população residente entre 1991 e 2000 de 5,71 % a.a. (a título comparativo, em
ampliando la escala de enfoque, el estudio de este fenómeno de todo el mundo y relativa-
Mangaratiba, a segunda maior, foi de 3,72% a.a. (Fonte: Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal. IPPUR/
mente reciente de la urbanización dispersa. UFRJ FASE, 2003, disponível em http://www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br/metrodata/ibrm/ibrm_rj_tca.htm.
Entre 2000 e 2010 de 5,21% a.a., novamente a maior da Região Metropolita e a segunda maior do estado após Rio das
En este texto se pretende presentar un estudio de caso en el Municipio de Maricá, zona pe- Ostras, com 11,25% a.a. (Fonte: Ribeiro, M. A.; O’Neill, M. M. V. C. Contrastes entre a Metrópole e o Interior Fluminense a
partir da Dinâmica Populacional. Geo UERJ – Ano 14, nº. 23, v. 1, 1º semestre de 2012 p. 262-301).
riurbana de la Región Metropolitana de Rio de Janeiro – con una población predominante-
5. Esses dados estão sendo reavaliados, mas a tendência é que esses números se mostrem estáveis, devido ao número
mente agrícola en la década de 1970 –, que presenta altos niveles de división de la tierra y crescente de novas unidades lançadas no mercado e ao crescimento anual da população que se manteve em torno de
5% ao ano nos últimos vinte anos.

280 Notas sobre a dispersão urbana: o exemplo de Maricá – RJ Werther Holzer | Camila Quevedo dos Santos 281
As tendências de ocupação deste enorme estoque são de difícil avaliação Seguindo o proposto pelo autor, estudamos o fenômeno da dispersão urbana
quando nos remetemos a uma escala regional. Até meados da década de 1990 o a partir da escala metropolitana e, também, na escala do tecido urbano.
vetor principal de crescimento e, por isso, indutor dos parcelamentos de terra, foi a O fenômeno que observamos na região ao leste da Baia de Guanabara, e que
RJ-106, que liga o Rio de Janeiro à Região dos Lagos. Após o lançamento do COM- se estende à Região dos Lagos Fluminense, possui muitas analogias com os observa-
PERJ outros eixos vão se delineando, como o da RJ-114, que liga Maricá à Itaboraí dos por Reis (2006, 80-81) no Vale do Paraíba Paulista. Aqui os extremos são Niterói
(este com um número expressivo de novos parcelamentos sendo lançados prati- e Macaé, tendo como eixo principal de dispersão a Rodovia Amaral Peixoto (RJ-106).
camente todos os meses), e do distrito de Ponta Negra onde seria implantado um Esta dispersão se acentuou com a duplicação de alguns trechos, implantada
empreendimento portuário de grande porte (o que, no entanto, ainda não se reflete de forma gradual há cerca de dez anos. A superfície total desta mancha de dispersão
em novos parcelamentos). Hoje, o eixo principal ainda é constituído pela RJ-106, é muitas vezes maior que a ocupada pelos núcleos urbanos tradicionais dos muni-
se observarmos essa região que se se estende de Niterói a Cabo Frio constatamos cípios envolvidos (Niterói, Maricá, Saquarema, Araruama, Iguaba Grande, São Pedro
uma mancha difusa, ao longo da rodovia na qual temos dificuldade de encontrar os da Aldeia e Cabo Frio, Arraial do Cabo, Armação dos Búzios, Rio das Ostras e Macaé).
centros tradicionais das cidade por ela cortada. Aqui, diversamente do que ocorreu no Vale do Paraíba Paulista, apesar de um esfor-
Maricá é um caso típico, com população de 127.461 habitantes, segundo o ço estatal inicial, na década de 1950, para implementar indústrias, como a Alcalis, em
censo do IBGE de 2010, dos quais 125.491na área urbana, apenas 40.058 no distrito Arraial do Cabo, que potencialmente poderiam gerar uma dispersão urbana, foram
sede. O distrito sede ocupa 40% da área total do município,sendo subdividido em os loteamentos destinados a residências de veraneio que alavancaram o processo.
22 bairros6, entre eles o Centro, ou seja, não se compõe apenas do que hoje os mora- Neste caso, as vantagens locacionais são avaliadas pelos possíveis compra-
dores chamam de Maricá,onde estão concentrados todos os órgãos administrativos dores a partir de critérios bem mais subjetivos dos elencados por Reis (2006, 90),
municipais, cartórios e agências bancárias, se configurando como um centro. Esta que atribui a dispersão urbana em São Paulo principalmente ao deslocamento e a
área central, até meados da década de 1990, era denominada pelos moradores de flexibilidade de realocação das unidades produtivas.
“Vila de Maricá”, em contraposição aos núcleos urbanos dos outros distritos: Itaipu- No caso do Leste Fluminense foram a beleza da paisagem, a tranqüilidade
açú, Inoã e Ponta Negra. do entorno, a acessibilidade restrita, os aspectos compartilhados e valorizados pela
Quando nos remetemos ao nível intra-urbano, observamos um complexo segunda, e mais importante, leva de compradores, a dos que se afastam dos proble-
processo de urbanização. O parcelamento do solo está baseado em diversos arran- mas vivenciados cotidianamente na grande metrópole
jos jurídicos e formais: condomínios fechados; condomínios rurais; privatização de Nestas áreas o parcelamento, desde o início de sua implantação, manifesta
ruas, às vezes de parcelas consideráveis de bairros ou mesmo bairros inteiros; des- um esgarçamento da malha urbana, sendo Maricá, atualmente, o melhor exemplo
membramento de lotes com a construção de diversas unidades que adensam áreas deste fenômeno. Uma área praticamente sem centro urbano definido, com muitas
ainda vazias; dispersão do comércio ao longo de vias estruturais; entre outros. As in- tipologias de ocupação interrompendo e interpenetrando as áreas rurais e de re-
terações, nestas novas “comunidades”, são determinadas pela acessibilidade e pelo serva florestal.
controle, como definidos por Lynch (1999) Acreditamos que o estudo da urbanização dispersa deve se deter na história
Estas observações nos levaram a optar pela delimitação de nosso objeto de do uso e ocupação do solo e nas diversas configurações morfológicas resultantes.
estudo utilizando o conceito de “urbanização dispersa”, baseado nos estudos de Exercicio que realizaremos sucintamente no próximo item, que se refere ao nosso
Reis Filho para o estado de São Paulo: estudo de caso: o município de Maricá.
Formação de um número maior de centros de escala média, ligados entre si
por sistemas ágeis de transporte e de comunicação. Em lugar da gigantesca loja de
departamentos, uma série de shopping centers, com variedade de lojas, oferecendo 2. Área de estudo
os mesmos produtos em diversas regiões.
Nesse esquema descentralizado, o foco de interesse já não é o centro tradi- Como observa Figueiredo (1952), não há no Estado do Rio de Janeiro muni-
cional mas o sistema de vias, que dá acesso a várias regiões. [...] A metropolização cípio que, devido ao seu sistema orográfico, esteja mais isolado do restante de seu
passa a ser caracterizada pela dispersão (2006, 89-90). território do que Maricá. O município é todo cercado por elevações consideráveis
(altitudes médias de 300 m, máximas de mais de 900 m) que correm ora perpendi-
6. Lei Complementar 207, de 16 de junho de 2010. Publicada no Jornal Oficial de Maricá no. 207, de 28 de junho de 2010.

282 Notas sobre a dispersão urbana: o exemplo de Maricá – RJ Werther Holzer | Camila Quevedo dos Santos 283
culares, ora paralelas à costa. O espaço por elas delimitado se configura como ex- improdutivas, mas a abundância de terras livres tornava desnecessário um maior
tensa baixada, para onde são drenados todos os cursos d’água que formam extenso rigor na aplicação desta cláusula.
complexo lagunar (cerca de 40 km²). Este complexo é, por sua vez, delimitado por No entanto, já no final do século XVIII o descontrole na demarcação e ocupação
extenso cordão arenoso, a restinga, que constitui uma única praia voltada para o da terra no Brasil expunha a dificuldade em qualificar seus legítimos proprietários. Ao
mar aberto (cerca de 35 km de extensão). mesmo tempo, a terra começava a ganhar um caráter mais comercial, passando de
O município possui área de 362, 5 Km² (SEBRAE, 2011, 5), 42.223 domicílios na meio produtor para o status de mercadoria. Com a independência do país, em 1822,
área urbana e 623 na área rural (IBGE, 2010).A sede urbana situa-se praticamente no já estava evidente que era necessário estabelecer-se uma nova política de terras.
centro geométrico do município, distando, em linha reta,30 km de Niterói e 40 km O jogo de forças culminou com a institucionalização da propriedade privada
do Rio de Janeiro (SEBRAE, 2011, 6). da terra no país pela Lei n° 601 de 1850. A “Lei de Terras”, como ficou conhecida,
A ocupação, pelos portugueses, do território que hoje é denominadode estabelecia regras para a revalidação de sesmarias e outras concessões do governo,
Maricá remonta ao final do século XVI. Desde o início se delineia uma vocação agrí- proibindo, a partir de então, toda e qualquer aquisição de terras devolutas que não
cola apenas periférica. Os religiosos em suas sesmarias implantadas na restinga con- fosse por compra. Porém, a definição e demarcação das terras devolutas, a cargo do
centram suas atividades na criação de gado e no cultivo de subsistência. Nos vales governo imperial, eram distorcidas de acordo com a conveniência dos poderosos la-
situados entre as lagoas e as montanhas os sesmeiros empreenderam o cultivo, tifundiários. Assim sendo, a Lei de Terras representou a ratificação da concentração
principalmente, da cana-de-açúcar. da propriedade no Brasil, dificultando aos pequenos sitiantes e imigrantes o acesso
Com a queda da produção de açúcar, a grande propriedade dá lugar a um legal à terra (Sochaczewski, 2004).
crescente número de pequenos proprietários e lavradores. A abolição da escravatu- A crise que se abateu sobre a agricultura maricaense no final do século XIX
ra modificou o modo de cultivar a terra no município, com incentivo ao cultivo de obrigou muitos fazendeiros a hipotecarem suas terras, que passaram às mãos de
limão e laranja chegando-se a implantar destilaria para o beneficiamento do óleo bancos e capitalistas da cidade do Rio de Janeiro, pouco interessados em seu apro-
das cascas de laranjas. veitamento agrícola. Com o fim do curto ciclo da fruticultura este processo se inten-
O momento posterior à segunda guerra mundial foi marcado pela queda sificou, assim como o interesse do capital imobiliário no município.
na produção de cítricos, provocada por doenças e pela concorrência dos produ- O rápido crescimento urbano-industrial da metrópole do Rio de Janeiro,
tores paulistas. É o fim da agricultura como fator de dinamização econômica. A registrado a partir de 1945, foi acompanhado pela expansão da malha urbana em
partir daí a terra, primeiramente nas áreas menos valorizadas da restinga, depois direção às suas periferias. Ao contrário do que se observou em algumas áreas da
para o interior passa a servir a outros interesses: do parcelamento de áreas para a Baixada Fluminense, onde a suburbanização representava o deslocamento de uma
urbanização especulativa. massa trabalhadora de baixa renda para longe do valorizado núcleo metropolitano,
a faixa litorânea que se estende de Maricá a Cabo Frio foi destinada ao veraneio da
emergente classe média urbana do Rio e de Niterói.
3. (Sub)urbanização: antecedentes Influenciado por novos padrões culturais, esse grupo social foi responsável
pela massificação do consumo da segunda habitação, fenômeno que se refletiu na
No Brasil, durante o período colonial, a exploração econômica da terra base- urbanização da Região dos Lagos fluminense na segunda metade do século XX. As
ada no latifúndio monocultor e escravagista fundamentou-se no sistema de con- qualidades paisagísticas da região aliadas à facilidade de acesso rodoviário definia o
cessão de sesmarias, na verdade uma transposição de uma norma reguladora do novo uso econômico da terra em substituição à atividade agrícola.
processo de distribuição de terras em Portugal para os solos coloniais. A intenção Em Maricá, o capital ligado à especulação imobiliária favoreceu-se, ainda, dos
inicial era que os sesmeiros ocupassem suas concessões e as tornassem produtivas, trabalhos de saneamento executados neste período pelo governo federal no com-
consolidando, assim, o domínio português sobre o território. Como observou So- plexo lagunar do município, que permitiram o aproveitamento de consideráveis ex-
chaczewski (2004), a plena exploração de grandes extensões de terra demandava tensões de terra antes sujeitas a inundação.
ampla utilização de mão-de-obra escrava, de modo que, nessa época, a proprie- Os primeiros loteamentos residenciais no município, lançados ainda nos anos
dade de escravos podia ser considerada ainda mais valiosa que a da terra em si. O 40, eram de pequeno porte e se limitavam à periferia imediata da Vila de Maricá.
sistema previa que a Coroa retomasse as áreas que considerasse abandonadas ou Na verdade, como identificou Martins (1986), o primeiro boom de parcelamento da

284 Notas sobre a dispersão urbana: o exemplo de Maricá – RJ Werther Holzer | Camila Quevedo dos Santos 285
terra em Maricá ocorre no período de 1950-55. Apenas nestes cinco anos, registrou- No início dos anos 80 o município passava por uma nova fase de estagna-
-se o parcelamento de uma superfície de quase 29 km² (Martins, 1986). Eram lote- ção no processo de parcelamento da terra, o mercado de compra e venda de lotes
amentos de grandes extensões (alguns com mais de 2.000.000 m²), localizados em havia sido atingido pela crise econômica que vivia o país. Os loteamentos lançados
áreas pouco valorizadas na época, às margens das lagoas e junto à praia, pelos três já não apresentam grandes superfícies parceladas como os das décadas anteriores.
distritos do município. Porém, a função de subúrbio residencial reforçava-se cada vez mais, fato registrado
Nesta primeira fase, a transformação de áreas rurais em loteamentos urba- no crescimento da população urbana do município. O ritmo de ocupação dos lotes
nos era feita por grandes empresas loteadoras e sem qualquer estabelecimento de tornou-se mais intenso em razão da escolha de trabalhadores do Rio, Niterói e São
regras pelo Estado, para quem eram repassados os custos relativos à infra-estrutura Gonçalo em fixar residência em Maricá. É nesta fase que os problemas oriundos da
e serviços básicos. Este processo resultou numa malha dispersa de lotes envolvendo infra-estrutura e serviços urbanos deficientes começam a mobilizar os novos mora-
os núcleos propriamente urbanos de Maricá, sem provocar o crescimento destes dores na reivindicação de melhores condições de urbanização junto ao Estado.
núcleos tradicionais (Martins, 1986). Apesar do sucesso nas vendas, a imensa maioria
dos lotes não foi ocupada de imediato, e assim permaneceria por décadas. Muitos
lotes haviam sido comprados como investimento, seus proprietários ainda não pre-
4. Urbanização dispersa
tendiam ou não tinham condições de construir.
Os anos seguintes foram marcados pelo declínio nas atividades de parcela- Diversamente da proposta de Reis Filho (2006), que analisa as diversas possi-
mento em Maricá, reflexo do esvaziamento econômico da cidade do Rio de Janeiro bilidades de urbanização dispersa a partir de especializações funcionais, neste tra-
e da concentração de recursos para a criação de Brasília. Essa fase de depressão no balho vamos apresentar algumas configurações de especializações morfológicas.
setor imobiliário se seguiu até o fim dos anos 60, quando a recuperação econômica Consideramos como novas configurações morfológicas, algumas formas recentes
nacional permitiu que a produção de loteamentos urbanos em Maricá recuperasse de parcelamento da terra como os condomínios, que em Maricá, apresentam diver-
um ritmo mais acelerado. sas formas de implantação resultantes das imposições mercadológicas e de aspec-
A década de 1970 foi marcada por um novo boom de especulação sobre a tos jurídicos. Deste modo, encontramos pequenos condomínios em áreas centrais,
terra no município. Martins (1986) registrou o lançamento de 63 loteamentos no pe- dotados de pouca infra-estrutura de apoio; condomínios de porte médio dispersos
ríodo de 1970 a 1978, representando uma área fracionada de mais de 36 km², predo- pelo território onde a infra-estrutura de apoio é implantada segundo uma estraté-
minantemente na região de Itaipuaçu e Inoã. Este ciclo de parcelamento atingiu seu gia de venda; e, condomínios rurais, que são implantados no INCRA não passando
auge no ano de 1974, com a inauguração da Ponte Rio-Niterói, responsável também pela aprovação da Prefeitura Municipal.
pelo aumento no número de construções de residências de veraneio nos lotes até Contribui para este fenômeno da dispersão no município o enorme estoque
então vazios. Boa parte da orla marítima começou a ser mais rapidamente ocupada de áreas vagas. Apesar desta disponibilidade de áreas para a construção, a prefeitu-
devido também à construção da Ponte do Boqueirão que, a partir de 1976, passou a ra municipal tem aprovado, nos últimos doze anos, o reparcelamento destes lotes,
permitir a ligação viária direta da Vila de Maricá à restinga. que tem em média área de 360 m² a 450 m². Esta interpretação errônea da legisla-
Grande parte da receita municipal nesse período era derivada do imposto ção vigente vem sendo aplicada de modo indiscriminado, em todo o município. A
territorial urbano. Apesar de ainda resistir na faixa norte do município, a agricultura principal conseqüência é um adensamento das áreas mais valorizadas, com pouca
ia aos poucos sendo substituída pela criação de gado, de forma a aguardar uma consideração quanto as áreas livres disponíveis no lote e para o impacto sobre a
futura valorização dessas terras. infra-estrutura existente, e mesmo, a que possa vir a ser oferecida no futuro.
Comparativamente a outros municípios da Região dos Lagos (como Cabo O Plano de Desenvolvimento Urbano (PDU) de Maricá, aprovado em 1984,
Frio), Maricá era até então uma região de veraneio de menor status, freqüentada, substituído por nova lei de uso do solo em 2008 (Lei Municipal 2272/2008), não
em geral, por uma população de poder aquisitivo relativamente mais baixo. A dimi- previa a construção de mais de uma residência por lote, ou melhor, no artigo 34
nuição do tempo de viagem até o Rio de Janeiro, via Ponte Rio-Niterói, para aproxi- permitia a construção de edículas, desde que não ocupassem mais de 10% do total
madamente quarenta minutos em carro próprio, permitiu que Maricá passasse a ser do lote e que tivessem apenas um pavimento. Outra situação prevista no PDU era
considerada uma opção de moradia para esses veranistas. a formação de condomínios fechados através do remembramento de lotes, no en-
tanto para a ZR2 (por exemplo) sua área mínima seria de 3.000 m², respeitadas as

286 Notas sobre a dispersão urbana: o exemplo de Maricá – RJ Werther Holzer | Camila Quevedo dos Santos 287
normas de para o Parcelamento de Terra, ou seja, deveriam ser doadas áreas para a particular, registrado em cartório, onde o fracionamento da propriedade é produto
Prefeitura e previstos percentuais mínimos para áreas de uso comum. de um acordo entre o empreendedor e os compradores.
Em consulta a funcionários da Prefeitura, feitas em meados da década 2000, Estes parcelamentos, essencialmente com características urbanas, em áreas
fomos informados da inexistência de legislação específica que regulamentasse este rurais talvez sejam os que, por sua morfologia, se enquadrem formalmente no que
tipo de implantação. Na verdade a Análise Técnica da PMM considerava se tratarem pode ser definido como urbanização dispersa, apontando para novas configurações
de residências multifamiliares. Tecnicamente residências multifamiliares são com- urbano-rurais do território metropolitano.
postas por unidades residenciais e áreas comuns agrupadas em uma única edifica-
ção, quando o que ocorre na prática é um processo de remembramento de lotes, em
geral dois ou três, e seu posterior parcelamento com testadas menores, em torno de
5. Três modelos de Parcelamento
oito metros, com a construção de unidades unifamiliares, de um ou dois pavimen-
tos, coladas na divisa e com acesso individual a partir do logradouro público. A forma dos assentamentos, que podemos dizer genericamente estarem so-
Este tipo de interpretação da lei beneficia um pequeno grupo de especuladores frendo um processo de urbanização dispersa, pode ter causas bastante diversas que
locais em detrimento de todos os cidadãos que habitam no município, que terão que devem ser analisadas em suas especificidades.
conviver com as conseqüências de uma atitude que vai contra a boa técnica do urbanis- Destas constatações surge a necessidade de estudamos os modelos de par-
mo contemporâneo. O registro de imagens e aerofotogrametrias mostra que a Prefei- celamento classicamente utilizados na ocupação do litoral. O padrão brasileiro de
tura vem aprovando, ou legalizando, grande número deste tipo de empreendimento. parcelamento do solo nas áreas litorâneas, segue, pelo menos a partir da década de
Aparentemente este procedimento favoreceria a concentração de áreas 1940 — quando começa a valorização social das áreas praianas, e consequentemen-
adensadas em pontos privilegiados, em termos de comércio e serviços ofereci- te o custo da terra aumenta progressivamente — um padrão uniforme, que atende
dos no entorno. Um tipo de implantação que atenuaria a urbanização dispersa. Na principalmente aos interesses dos especuladores imobiliários. Este padrão, do par-
verdade o que pode se observar é que este procedimento vem potencializando a celamento em “tabuleiro de xadrez”,com quadras retangulares, os lados menores
urbanização dispersa no município. Diversos fatores parecem contribuir para este voltados para o mar, lotes habitualmente com 360 m², ocupa todo o nosso litoral.
quadro de dispersão: o estoque de lotes está disperso pelo município, com maior Nesta concepção de parcelamento não se valoriza a paisagem em toda a sua
densidade de concentração ao longo da rodovia Amaral Peixoto e da praia, o que complexidade: restinga com diversos extratos de vegetação se justapondo e se su-
pode ser percebido pelos potenciais compradores com uma vantagem locacional; perpondo; diversos ambientes, lagunares, de brejos, dunas, se interconectando de
o custo da terra além de baixo em relação a outros municípios da Região Metro- forma complexa, costões rochosos e mangues. Na verdade adota-se um tipo de par-
politana, apresenta um certo equilíbrio por todo o território; os compradores em celamento que reduz a área a uma forma geométrica simples, se possível um imenso
potencial não trabalham no Município, o que os leva a avaliar vantagens locacionais retângulo, subdividido em retângulos menores, onde a paisagem que viabiliza a
a partir de seus locais de trabalho, e muitas vezes da rotina escolar das crianças, em venda do produto também é simplificada: a faixa da praia (a areia apenas) e o mar.
detrimento de uma lógica locacional onde a residência é o centro. Nesta paisagem a praia seria de domínio coletivo, o restante seria de domínio
Outra forma de parcelamento que vem sendo implantada no município de privado, sujeito a fantasia e ao desejo intervencionista de seus proprietários, o resul-
Maricá é a dos denominados condomínios rurais. Estes condomínios, implantados tado coletivo: uma mera superposição dos desígnios e projetos individuais. Como o
em extensas áreas rurais bastante próximas a áreas urbanas (de 1 km a 5 km), são poder público procura controlar estes empreendimentos? Regulamentando tama-
parcelados em lotes com metragem entre 5.000 m² e 10.000 m². Utilizando-se deste nho mínimo de lotes, taxas de ocupação, afastamentos e número de pavimentos.
procedimento os empreendedores imobiliários ficam isentos de submeter o parce- Não se interfere na concepção da ocupação da terra, apesar de ser atribuição exclu-
lamento à prefeitura municipal, assim como os proprietários dos lotes são desobri- siva do município regulamentar o uso do solo urbano.
gados de submeter os projetos deresidência à aprovação pelos órgãos municipais. Estes instrumentos de regulamentação do uso do solo estão ligados a dois
Este tipo de parcelamento vem apresentando variantes bastante curiosas grandes modelos teóricos do urbanismo: o Modelo Culturalista, nos moldes da pro-
como, por exemplo, a venda de áreas de reserva incorporadas aos lotes, o que isenta posta de Howard para as Cidades-Jardim (c. 1900), configurando um núcleo urbano
o empreendedor de doar áreas públicas e repassa ao proprietário a manutenção de concentrado, com parcelamento de terra intensivo, apesar de prever baixa densida-
áreas não edificáveis. Existe também a fórmula de parcelamento por instrumento de de ocupação. Instrumentos de Intervenção Urbana usualmente utilizados: afas-

288 Notas sobre a dispersão urbana: o exemplo de Maricá – RJ Werther Holzer | Camila Quevedo dos Santos 289
tamentos, taxas de ocupação, gabaritos; o Modelo Progressista, segundo os parâ- se amoldar um parcelamento onde se estimula a concentração e a alta densidade
metros de Le Corbusier (c. 1930), Este modelo, com a exceção de Brasília, vem sendo urbana, em benefício da manutenção de grandes áreas livres, onde a vegetação
aplicado em soluções voltados para a implantação no âmbito lote. Instrumentos pode ser efetivamente preservada, a partir de seu agenciamento como uma das
de Intervenção Urbana freqüentemente utilizados: Índices de aproveitamento de variáveis mais importantes do projeto urbanístico.
áreas, Zoneamento e hierarquização de funções. Uma terceira alternativa, a aventada por Portzamparc, como uma superação
Surpreendentemente a proposta que mais afeta o ambiente natural com a dos modelos anteriores. O arquiteto nos convida a refletir sobre o papel da moder-
sua concepção de parcelamento é a de Howard. Este problema foi constatado por nidade hoje, sem voltar-se para os ideais modernistas, ou mais para o passado,mas a
Silvio Macedo (2001), que atribui a este modelo a degradação ambiental de nossas partir”...de uma atitude de pesquisa e questionamento sobre as exigências de nossa
áreas litorâneas. A baixa densidade não garante a preservação de áreas naturais, ao época, pensar a arquitetura a partir dessa dupla herança.” (Portzamparc, 1995). A
contrário, ao dispersar a ocupação por uma grande parcela de terras ela estimula a cidade é enfocada como uma mistura de arquitetura vernácula e moderna, os pré-
humanização excessiva do espaço, entregando as iniciativas individuais a manuten- dios produzidos pelos modernistas integrando-se ao tecido urbano tradicional.
ção de suas características naturais. Para agravar a questão, o comércio está concen- Deste modo a arquitetura não pode ser equacionada separadamente do urbanismo.
trado entorno de um único espaço verde central, o que evidentemente implica em As edificações devem ser pensadas como uma parcela da cidade, um elemento na
uma área livre de uso intensivo que dificilmente poderá ter preservada qualquer de construção coletiva da cidade.
suas características ambientais; o comercio atacadista, por outro lado, se concentra Este modelo exige que o parcelamento urbano seja integrado aos projetos
no anel urbano externo, já que se trata de um modelo radiocêntrico, o que impli- das diversas edificações que o compõe. Neste desenho não se dependeria apenas
ca numa ruptura bastante radical entre o urbano e o rural. Neste modelo as áreas de indicadores urbanos genéricos a serem seguidos, mas de instrumentos muito
verdes se limitariam a delimitar os diversos espaços urbanos, grandes ilhas constru- mais específicos que regulariam a relação espacial, formal e funcional entre os di-
ídas, o que parece comprometer a sua utilização por grande parcela da população. versos edifícios, de modo que as fronteiras, e as interações, entre o espaço natural e
Este modelo, no entanto, apresenta, ainda que embrionariamente, a idéia de o construído poderiam ser rigorosamente determinadas.
áreas de amortecimento, e de transição, entre o ambiente construído e o ambiente
natural. Esta idéia poderia ser aplicada, com bastante sucesso, no controle à expan-
são ilimitada dos espaço urbanizados, seja a partir de zoneamentos macroescalares, 6. O Caso de Maricá – muitas questões e possíveis
como os ecológico-econômicos, seja nos de escala municipal, como os planos dire- conclusões
tores ou planejamentos para grupos de bairros. No entanto ele só garante a manu-
tenção da vegetação nas franjas não urbanizáveis, sendo previsível o seu fracasso na No caso de Maricá o ano de 2000 demarca o momento em que o processo de
escala do parcelamento quanto à proteção da vegetação ali existente. dispersão começou a tomar mais visibilidade, a cidade possuía um total de 76.737
O modelo corbusiano é mais flexível. Seu problema é a pouca adaptabilidade habitantes, sendo que 17% destes habitavam a zona rural.
ao conceito de “lote” tradicional. Se aplicarmos os conceitos corbusianos, voltados Total Homens Mulheres Urbana Rural
para as soluções de problemas arquitetônicos apenas no que se refere ao lote, seja 76.737 38.285 38.452 63.399 13.338
colocando o prédio sobre pilotis ou trabalhando com terraços-jardim, por exemplo,
não teremos mais sucesso que no parcelamento tradicional, ou seja o âmbito limi- A porção de solo mais valorizada nesse ano era o centro, local onde Maricá
tado do lote não garante que os espaços livres e, presumidamente verdes do lote, enquanto cidade começou – como Vila de Santa Maria de Maricá – e onde se con-
garantam a preservação da vegetação nativa. centravam as atividades urbanas, comerciais e prestação de serviços diversos,
Para que a aplicação do modelo corbusiano realmente atinja seus objetivos sendo, portanto, o espaço mais acessível e dinâmico da cidade.
torna-se necessário que se desenvolvam instrumentos de controle urbano que ex- No ano de 2010, a população de Maricá já havia quase dobrado, com a popu-
trapolem as limitações urbanísticas do loteamento tradicional. No caso de Corbu- lação rural reduzida para menos de 2000 habitantes
sier os instrumentos desenvolvidos para o controle da cidade pós-liberal, já citados Total Homens Mulheres Urbana Rural
acima, assim como os chamados “instrumentos de intervenção urbana”, de cunho 127.461 62.695 64.824 125.532 1.987
neo-liberal, previstos pelo Estatuto da Cidade, por exemplo, são inadequados para

290 Notas sobre a dispersão urbana: o exemplo de Maricá – RJ Werther Holzer | Camila Quevedo dos Santos 291
Seus novos habitantes vinham das zonas urbanas consolidadas das cidades As interações sociais no centro da cidade vem se reduzindo gradativamen-
mais próximas (Niterói, São Gonçalo e Rio de Janeiro) e já não se instalavam mais no te fazendo com que Maricá possua novas centralidades: Percebe-se, então, que o
centro da cidade. centro de Maricá sequer está dentro dos seus limites territoriais. Os atuais espaços
Durante a pesquisa pudemos determinar três possíveis causas para o proces- destinados às atividades urbanas e sociais são principalmente Niterói, São Gonçalo
so de dispersão da população em Maricá. e, ainda em formação, o centro de Itaboraí.
A primeira foi a duplicação da RJ 106, no trecho que liga Maricá a Niterói As entrevistas, realizadas durante a pesquisa, mostraram que o novo habitan-
que fez com que a cidade ficasse mais acessível em relação à capital do estado e te de Maricá se locomove de carro para qualquer trajeto que efetue dentro ou fora
às outras cidades maiores e de atividades urbanas mais intensas. A ampliação fez, da cidade, uma vez que sua residência está distante em relação aos serviços que
por exemplo, com que o com que o tempo de viagem de Maricá à Niterói, que an- busca, e expressa a ineficiência nos transportes coletivos e na pavimentação.
teriormente podia ser de até uma hora e meia, em um dia sem congestionamento, Os entrevistados demonstram insatisfação em relação espaços e atividades
usando veículo de passeio, fosse reduzido para 40 minutos. de lazer. Como consequência, temos o esvaziamento do centro da cidade, sobre-
Um segundo fator, está relacionado à escassez de terrenos disponíveis nas tudo nos finais de semana, e uma mudança completa na paisagem e na cidade en-
áreas concentradas do Rio de Janeiro e de Niterói. A supervalorização dos imóveis quanto lugar dos antigos moradores, já que, para estes os atores que participavam
e do solo urbano, intensificado pela pressão do turismo resultou num êxodo demo- da vida urbana de Maricá qualificavam o cenário. O fato de conhecer, ainda que
gráfico em direção a zona oeste do Rio de Janeiro e à região oceânica de Niterói e de apenas de vista, todos os que circulavam pelos cantos e ruas da cidade, davam a
Maricá, com a intensificação da procura por lotes em condomínios e a transforma- ela as características que eram reconhecidas como típicas do lugar de nascimento.
ção de segundas residências em primeira residência. Além disso, é possível ver que o crescimento de megacondomínios, bem equipados
Uma terceira razão, está relacionada à questão subjetiva da “qualidade de com uma completa estrutura de lazer e toda infraestrutura urbana – e serviços – que
vida”. A supersaturação dos espaços urbanos consolidados, o aumento da violência se pode precisar, reduz as áreas públicas disponíveis carentes de intervenções de
e o próprio ritmo de vida do século XXI levou as pessoas a uma busca pela vida “no infraestrutura por parte da prefeitura.
campo”. Razão que conduz um determinado segmento da população a escolher ci- Este foi o aspecto da urbanização e da dispersão da população em Maricá
dades fora dos limites das grandes metrópoles, mas relativamente próximas a estas. que se encerra no ano de 2011. A cidade agora entrou em um novo momento de
Essa última causa ficou muito evidente depois de uma série entrevistas que ocupação. Está prevista para 2015 a conclusão do porto do pré-sal e de parte do
foram feitas com os novos moradores dos espaços condominiais de Maricá, onde Comperj. Surge assim uma nova motivação para migrações e o aumento populacio-
68% dos entrevistados enunciaram como motivo principal para se mudarem para a nal da cidade, e com isso, novas características de parcelamento, habitação e usos.
cidade a segurança e a tranquilidade. Possivelmente também trará novas centralidades em áreas ainda pouco parceladas.
A partir da observação dessa demanda, há 10 anos, começaram a surgir em- A tendência é que esse novo público inclua investidores de altíssima renda e funcio-
preendimentos imobiliários nos espaços da cidade onde havia disponibilidade de nários do Comperj.
grandes áreas desocupadas. As transformações já começaram, com mudanças no plano diretor da cidade,
Foram implantados condomínios de alta renda surgidos do parcelamento novos decretos para parcelamento de solo do município e inclusão de áreas desti-
das antigas propriedades rurais, nas zonas periféricas, e hoje pode se encontrar por nadas ao programa Minha Casa Minha Vida, do Governo Federal. A pesquisa entra,
toda a cidade, e também no Rio de Janeiro e em Niterói, anúncios como os que se portanto, numa nova etapa com novas questões.
seguem: “Torne sua vida mais feliz”, “Segurança e tranquilidade” “novo modo de Não faltam instrumentos para que se possa reverter esta situação. O poder
vida”, “volta à natureza”. público municipal tem plenos poderes para legislar sobre o uso do solo e pode
Esse público alvo dos empreendimentos, mesmo depois da migração, utilizar a seu favor o “Estatuto da Cidade”, o “Gerenciamento Costeiro”, o gerencia-
mantém estreitas relações com suas cidades de origem, através de família, do tra- mento de bacias a partir da “Lei das Águas”, as leis que tratam da preservação am-
balho, ou de hábitos culturais e de lazer. Ao mesmo tempo, possui cada vez menos biental. Todos estes instrumentos podem gerar um novo tipo de parcelamento em
relação com a nova cidade onde moram, já que seus condomínios oferecem uma áreas ainda não ocupadas e a adequação das áreas já parceladas às necessidades do
infraestrutura que a cidade em si não oferece e faz com que ele não necessite ou não século XXI. No entanto, em nossa pesquisa constatamos um descompasso entre um
queira usar a cidade além dos portões de sua casa. discurso que pretende tratar algumas questões urbanas a partir de um tratamento

292 Notas sobre a dispersão urbana: o exemplo de Maricá – RJ Werther Holzer | Camila Quevedo dos Santos 293
mais “global” e a ação local, que muitas vezes ignora este tratamento voltando-se
para as demandas bastante restritas dos agentes e mercados locais. Neste embate, Niterói e a ponte: transformações
urbanas e impactos produzidos:
que costuma gerar nítidas distorções no uso e ocupação do solo, saem perdendo os
moradores e usuários do espaço, que não tem garantida a sua sustentabilidade am-
biental, em grande parte devido a um modelo de urbanização dispersa que ignora
outras desígnios que não sejam os do mercado imobiliário uma avaliação à luz da
Referências bibliográficas percepção ambiental
Figueiredo, E.R. Notas para a história de Maricá. Anuário Geográfico do Estado do Rio de
Janeiro nº. 5, p. 11-77, 1952. Lelia Mendes de Vasconcellos
Lynch, K. A boa forma da cidade. Edições 70, Lisboa,1999.
Macedo, S.S. Paisagem, modelos urbanísticos e áreas habitacionais de primeira e segunda
residência. Paisagem e Ambiente nº 11, 1997. Resumo | Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa realizada entre 1993 e 1994.
Martins, A.M.M. O parcelamento da terra no município de Maricá, estado do Rio de Janeiro, O seu objetivo foi o de avaliar as diversas percepções da população sobre as transformações
Dissertação de Mestrado, IPPUR, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996. urbanas e os impactos sofridos pela implantação da ponte Rio-Niterói nesta última cidade

Portzamparc, C. A terceira era da cidade. Óculum, nº9, 1997. e regiões vizinhas. O período da pesquisa representou os 20 anos de existência da ponte
(inaugurada em 1974). A metodologia empregada levou em conta autores como Kevin
Reis Filho, Nestor Goulart. Notas sobre urbanização dispersa e novas formas de tecido urbano.
Via das Artes, São Paulo, 2006. Lynch, Amos Rapoport, Yi-Fu-Tuan, entre outros, os quais ajudaram no suporte teórico ne-
cessário à construção da pesquisa. Por meio de entrevistas realizadas com moradores, usuá-
SEBRAE. Informações Socioeconômicas do Município de Maricá. Rio de Janeiro, SEBRAE,
rios da ponte e profissionais em assuntos urbanos, buscou-se aferir as diferentes apreensões
2011.
quanto à configuração espacial decorrente da construção da ponte junto à sua cabeceira,
Sochaczewski, J. Contexto do desenvolvimento adotado pelo município de Maricá, RJ,
assim como dos impactos sofridos no uso do solo, na população, na infraestrutura, na cir-
Dissertação de Mestrado em Ciências Ambientais, Universidade Federal Fluminense,
2004. culação viária e no meio ambiente natural e construído de Niterói e regiões vizinhas. Para
tanto, três “contornos” espaciais foram determinados: o das imediações da ponte (ou sua
cabeceira), o da cidade de Niterói como um todo e a região compreendida pelos municípios
vizinhos, incluindo algumas observações sobre a então conhecida região dos Lagos (hoje
Baixadas Litorâneas), uma vez que esta também foi de certa forma afetada em sua dinâmica
urbana. O conjunto de percepções obtidas traduziu-se em “imagens” do meio ambiente
construído, termo aqui empregado no sentido da imagem mental do espaço percebido.
Através das respostas obtidas chegou-se a um grupo de indicadores perceptivos, os quais
são descritos e interpretados ao longo do texto. As considerações gerais são apresentadas
de forma a evidenciar os mitos e os fatos reais obtidos pelas respostas dos depoentes e as
indicações mais recorrentes sobre as percepções aferidas.
Abstract | This article presents the results of a research which was realized between 1993
and 1994. Its aim consisted in evaluating the different perceptions of the population about
urban transformations and impacts resulted by Rio-Niteroi bridge implementation in the
latter city and its neigh borough region. The research period embraced the 20 years old of
the existence of the bridge(inaugurated in 1974). The employed methodology has taken in

294 Notas sobre a dispersão urbana: o exemplo de Maricá – RJ Lelia Mendes de Vasconcellos 295
account authors as Kevin Lynch, Amos Rapoport, Yi-Fu-Tuan among others, who’s helped in Niterói e a ponte: transformações urbanas e impactos
the necessary theoretical support to the research structure. It was inquired by means of in-
produzidos – uma avaliação à luz da percepção ambiental1
terviews realized with inhabitants, bridge’ users and experts in urban subjects, the confron-
tation of the different apprehensions in terms of spatial configuration, due to the construc-
Este artigo trata da análise da percepção dos impactos e transformações ur-
tion of the bridge as well as the suffered impacts about land use, population, infrastructure,
banos ocorridos após a implementação da ponte Rio-Niterói. A análise foi dirigida
road system, built and natural environment in Niteroi and neighborhood regions. In order
para esta última cidade e sistematizada em três diferentes contornos físicos deli-
to reach a better evaluation, three spatial contour lines have been determined: the immedi-
mitados da seguinte forma: junto à cabeceira da ponte, na cidade de Niterói como
ate neighboring of the bridge (head bridge), the Niteroi city as a whole and the comprised
um todo, e finalmente nos municípios vizinhos a esta. Algumas notas abrangeram
region of neighbor municipalities, as well including some notes about “Região dos Lagos”,
ainda a antiga região dos Lagos (hoje região das Baixadas Litorâneas). Com base
known nowadys by “Baixadas Litorâneas”, once this region also appeared in a way as af-
num “survey” realizado entre 1993 e 1994, foram entrevistadas 81 pessoas, entre
fected in their urban dynamic. The acquired set of perceptions was expressed in “images” of
moradores e usuários da ponte. Somaram-se a esse grupo os depoimentos de 11
the built environment, here employed in the sense of the “mental image” of the perceived
profissionais em assuntos urbanos – arquitetos urbanistas, geógrafos e outros afins
space. Throughout the attained answers it was reached a group of perceptual indicators
–, a maioria deles desempenhando funções em órgãos públicos ou indiretamente
which are described and interpreted in the text. Final considerations are presented in a way
ligadas a estes. A divisão dos dois grupos foi necessária para estabelecer a distinção
to show evidences including myths and real facts which were obtained by the depositions
entre o que era percebido pela experiência do cotidiano de pessoas que utilizavam
and the most recurring indications about the appraised perceptions.
a ponte e a cidade, e o que era observado por profissionais dedicados à prática de
Resumen | Este artículo presenta los resultados de una investigación llevada a cabo entre projetos e de planejamento urbanos.
1993 y 1994. Su objetivo fue evaluar las diferentes percepciones de la población sobre las O conjunto de percepções obtidas traduziu-se em “imagens” do meio am-
transformaciones urbanas y los impactos sufridos por la implantación del puente Rio-Nite- biente, termo aqui empregado no sentido da configuração mental do espaço perce-
rói en esta última ciudad y regiones vecinas. El período de la investigación considera los 20 bido. Lançou-se mão da premissa colocada por LYNCH (1997) de que a “imagem am-
años de existencia del puente desde su inauguración en 1974 hasta el año 1994. La metodo- biental” seria a relação entre o objeto percebido (o meio ambiente) e o observador2.
logía tomó en cuenta autores como Kevin Lynch, Yi-Fu Tuan y Amos Rapoport entre otros, A montagem do questionário para as entrevistas teve como ponto de partida
que colaboraron en el soporte teórico necesario para la elaboración de la investigación. A a pesquisa elaborada pelo autor acima citado. Todas as cinco categorias de imagem
través de entrevistas con los residentes, los usuarios del puente y profesionales en asuntos urbana – caminhos, “nós”, limites, bairros e marcos referenciais – por ele definidas
urbanos, se trató de evaluar las diferentes percepciones acerca de la configuración espacial – constituem categorias de análise da percepção visual. Os caminhos (ou percur-
resultante de la construcción del puente en sus extremos, así como los impactos sufridos en sos), os marcos referenciais e os limites (ou barreiras) foram avaliados como os mais
el uso del suelo, en la población, en la infraestructura, en la circulación vial y en el medio importantes na análise proposta. Os itinerários de percurso e os marcos referenciais
ambiente natural y construido. Para esto, se determinaron tres espacios o “contornos”: las definiram o movimento até a ponte, ela mesma considerada um percurso. As bar-
inmediacionesjunto al puente, la ciudad de Niterói como un todo y la región comprendida reiras, os bairros e os “nós” (ou cruzamentos) emergiram dos próprios depoimentos
por los municipios vecinos e incluyendo también algunas observaciones la región enton- dos entrevistados. Procurou-se ainda aferir a percepção quanto à “legibilidade” (ou
ces conocida como Región de los Lagos (hoy Baixadas Litoraneas), que de alguna forma clareza dos elementos visualmente percebidos) de cada lugar, bem como o grau de
también fue afectada en su dinámica urbana. El conjunto de las percepciones adquiridas se “identidade” (grau de singularidade dos elementos percebidos no meio ambiente
tradujo en “imágenes” del medio ambiente construido, un término que aquí se utiliza en el analisado), conceitos também discutidos pelo autor.
sentido de “la imagen mental” del espacio percibido. A través de las respuestas obtenidas, Outras questões, além das mencionadas acima, também foram importantes
se llegó a un grupo de indicadores de percepción que se describen y se interpretan en el para a análise pretendida, entre as quais se destacaram a memória do lugar onde
texto. Las consideraciones finales se presentan con el objetivo de poner de relieve los mitos a ponte foi implantada e as transformações urbanísticas registradas em Niterói e
y conceptos obtenidos por las respuestas de los entrevistados y las indicaciones más fre- territórios vizinhos. O cunho afetivo estabelecido pela população com seu lugar de
cuentes en las percepciones medidas.
1. Este texto constitui uma versão parcial do capítulo de tese de doutorado (FAU-USP, 1997) da autora que contou com
o apoio da Capes.
2. The Image of the city, 1977

296 Niterói e a ponte: transformações urbanas e impactos produzidos Lelia Mendes de Vasconcellos 297
moradia também foi levado em conta, pois uma das premissas assumidas na pesqui- No questionário propriamente dito, as perguntas foram dispostas de forma
sa foi a de que a identidade cultural de um cidadão com o seu lugar está relacionada a entremear questões fechadas – tais como a frequência de viagens, preferências
exatamente aos laços afetivos que o ligam a ele (o lugar) Tuan(1980)3. quanto à modalidade de transportes ou quanto à opinião sobre a facilidade de
As três etapas do processo perceptivo (percepção, cognição e avaliação) acesso – com questões abertas, de livre associação quanto à percepção do entrevis-
apresentadas por RAPOPORT (1978)4 foram igualmente incorporadas à pesqui- tado sobre a ponte Rio-Niterói e o ambiente construído de seu entorno. Foram feitas
sa, partindo-se da sua afirmação de que a imagem urbana não é formada apenas também perguntas relativas à memória do lugar e à percepção dos impactos ambien-
pela percepção dos sentidos (visual, táctil etc.), mas também pelos processos de tais surgidos a partir da implantação da ponte. Nas entrevistas realizadas com o se-
cognição e avaliação, nos quais muitas vezes a imagem é idealizada pelo desejo de gundo grupo (profissionais afetos a assuntos urbanos), nem sempre as perguntas do
um ambiente perfeito. Assim, foi considerado o cunho ideológico impresso na(s) questionário foram suficientes. Procurou-se ir além delas, deixando os entrevistados
imagem(ns) percebida(s). Tomou-se emprestado desse mesmo autor o conceito de livres para responder e acrescentar dados que julgassem necessários ou importantes.
“filtros”, que atuariam no meio ambiente como “seletores” da percepção. No que diz respeito às perguntas de natureza aberta, o questionário foi dividi-
do basicamente em quatro grupos de indagações, assim disposto: a) as que convida-
vam o entrevistado a expressar-se por livre associação sobre a ponte e seus acessos;
Metodologia5 b) as que consideravam questões diretamente ligadas à percepção sensorial (visual,
auditiva, olfativa) sobre os percursos até a ponte e na ponte propriamente dita; c)
Levando em conta as premissas dos referidos autores6, o primeiro passo foi as que indagavam sobre a percepção quanto aos impactos não só nos respectivos
a observação direta em campo e a coleta de dados secundários, que foram de fun- locais onde a entrevista era realizada, como também nas respectivas cidades ou
damental importância para a preparação das entrevistas. Após essa primeira ida a municípios; e d) as que indagavam sobre a memória do local antes da ponte.
campo e já de posse do levantamento preliminar de alguns dados secundários, foi Ressalve-se, porém, que respostas semelhantes foram encontradas simul-
elaborado um primeiro questionário, o qual, depois de testado, avaliado e corrigido, taneamente em mais de um desses itens. Por essa razão, procurou-se trabalhar as
foi reformulado até a sua forma definitiva para aplicação – 13 perguntas e uma ficha categorias representativas da percepção dos entrevistados, considerando sempre
de dados para cada entrevistado. O critério de seleção dos entrevistados foi deter- os possíveis relacionamentos entre as várias respostas. Além disso, procurou-se re-
minado a partir dos locais considerados dentro da área de estudo em seu primeiro lacioná-las com os dados obtidos no perfil do entrevistado e com as respostas forne-
contorno (adjacências da cabeceira da ponte). Na época em que esta etapa da pes- cidas ao grupo de perguntas fechadas constantes do questionário. Como exemplo,
quisa foi realizada, a visão sobre a extensão territorial dos impactos e a sua nature- pode-se citar a relação entre o número de entrevistados por faixa etária e a frequên-
za ainda não era muito clara, razão pela qual se procurou circunscrever o território cia de viagens pela ponte. Ao longo dessa análise, procurou-se ainda selecionar
das entrevistas apenas ao referido contorno. Ainda assim foi inevitável e, ao mesmo frases ou termos significativos que viessem a representar as diferentes percepções e
tempo, enriquecedor encontrar e entrevistar pessoas de outros bairros ou mesmo constituir diferentes imagens do ambiente urbano pesquisado.
de outras cidades nos locais escolhidos. Foram feitas também algumas entrevistas
na cidade do Rio de Janeiro.
As perguntas foram formuladas de forma a obter uma avaliação qualitativa. Interpretação dos resultados
Os dados objetivos limitaram-se a definir o perfil do entrevistado (faixa etária, sexo,
profissão, grau de escolaridade, local da entrevista e local de moradia) e foram pre- Concluída a pesquisa, se verificou que os resultados obtidos poderiam ser
enchidos na ficha mencionada. divididos em quatro tipos de indicadores perceptivos. O primeiro dizia respeito às
significações quanto ao quadro urbano da cidade de Niterói, incluindo aí as acep-
ções quanto à circulação viária da cidade, à configuração espacial, mudanças de uso
3. TUAN.Topofilia – um estudo de percepção, atitudes e valores do meio ambiente, 1980.
4. RAPOPORT.Aspectos humanos de la forma urbana, 1978.
e de tipologias de construções, ao meio ambiente, à infraestrutura e à composição
5. A metodologia empregada merece uma nota de agradecimento às professoras doutoras Maria Laís Pereira da Silva de sua população. A ponte seria aí percebida como um objeto “detonador” de mo-
(EAU-UFF) e Élide Monzeglio (FAU-USP) pelas grandes contribuições prestadas ao longo da pesquisa dificações do quadro urbano em função de uma ou mais categorias de indicadores
6. Autores como Aymonino, Gregotti, Hillier, Rossi, entre outros também fizeram parte do embasamento teórico ne-
cessário, mas devido ao espaço disponível para esteartigo não foi possível expor suas ideias mais relevantes; optou-se
dessa natureza. Incluíram-se nessa tipologia os referenciais de memória, dos quais
apenas pela indicação das referências bibliográficas encontradas no final do texto.

298 Niterói e a ponte: transformações urbanas e impactos produzidos Lelia Mendes de Vasconcellos 299
se retiraram importantes indicadores para se analisar o contexto da cidade e bairros através de um dos seus viadutos. Foram numerosas as observações sobre o fenô-
vizinhos à cabeceira da ponte antes de sua implantação. meno da verticalização do bairro, a presença de muitos postos de gasolina e uma
O segundo tipo remete-se aos marcos referenciais de percursos feitos em “maior animação”, em virtude não apenas dos novos serviços, como também do
direção à ponte. Nesse caso, a ponte representaria o alvo central de interesse dos tráfego intenso existente na referida alameda. Outros entrevistados, embora per-
entrevistados, que descreviam seus itinerários referindo-se a uma série de “objetos” cebessem mudanças, expressaram avaliações negativas quanto à presença de uma
componentes da paisagem urbana durante os diversos percursos. O terceiro tratou enorme quantidade de prédios novos e ao fato de o Fonseca “ter se tornado um
das sensações experimentadas pelos usuários durante o trajeto que os levavam até grande bairro-dormitório”, em função da proximidade com a ponte e com o Rio de
a ponte, ou ainda ao longo da sua própria travessia. Nesse caso, a ponte passou a re- Janeiro, numa direção, e na outra, com Alcântara, em São Gonçalo e Maricá, municí-
presentar um indicador de percepções ligadas aos sentidos (visual, olfativo, auditivo) pios vizinhos à Niterói. As mudanças ocorridas na área portuária (setor norte da área
e de sensações que variavam desde o medo provocado pela travessia vivenciado por central) e nos bairros de São Lourenço e Santana foram bem menos denunciadas.
alguns, à paz e tranquilidade experimentadas por outros. Esses dois tipos de indica- Os moradores dos bairros adjacentes à cabeceira da ponte pareciam não ter
dores estavam de tal forma interligadas que se optou por reuni-las em um só bloco. uma apreciação muito positiva quanto ao passado do local, correlacionando-o à
Finalmente, o quarto tipo de indicadores diz respeito aos impactos perce- miséria em razão da existência de uma enorme favela, conhecida pelos nomes de
bidos nos três contornos estabelecidos para área de estudo (cabeceira da ponte, “favela do Sabão” ou “Maveroi”, nomes de fábricas que ali existiram antes da cons-
cidade de Niterói e região), estando presentes, em todos eles, grandes distorções trução da Avenida do Contorno 8 e da ponte. Um “local plano”, “espécie de terreno
em relação ao contorno real. baldio”, “construções baixas”, “casarios muito velhos”, “casas antigas e ruas estreitas”,
lugar “muito feio”; “era tudo favela, muito buraco, não tinha ruas, só beco... barracos
de madeira e zinco, às vezes de plástico; o tipo mais pobre que se pode imaginar...
As significações do quadro urbano de Niterói era uma coisa horrível...” – foram algumas das imagens associadas à área onde pos-
1. Memória do local: mudanças de uso e de tipologia de construções teriormente foi implantada a ponte.
Uma antiga fábrica de sardinhas, localizada na área junto ao porto; o Ponto
A memória do local antes da ponte foi referenciada por muitos depoentes, Cem Réis9 e o bonde; o trem, com a estação ferroviária conhecida como estação da
moradores antigos dos locais onde esta se assentou. A configuração do local era Leopoldina foram imagens igualmente lembradas por antigos moradores. O per-
expressa como uma área visivelmente degradada. Expressões como “velharia”, “ca- curso que o trem fazia até o porto era também associado à presença da grande
sario pobre”, “favela”, foram bastante frequentes. Curiosamente, as alterações ocor- favela já acima referida: “o trem passava dentro da favela até o Moinho” (referência
ridas junto à sua cabeceira como as várias alças dos viadutos de acesso não fizeram ao Moinho Atlântico). Apesar de estar sendo utilizado como escritório do porto, na
parte, em sua maioria, da percepção desse grupo de entrevistados. época em que foram feitas as entrevistas, o prédio da estação era sempre mencio-
Pouquíssimas foram as indicações quanto à memória da antiga estrutura nado simplesmente como a “estação velha”, ou a “antiga estação”.
viária. Alguns entrevistados referiram-se ao alargamento da Avenida Marquês do Essa porção da cidade era identificada, sobretudo, como uma área pobre,
Paraná7 e à presença do bonde. A avaliação do serviço de transportes coletivos, “sem desenvolvimento”, estagnada. A igreja de Santana de São Lourenço, por exem-
como a integração entre bondes e barcas, foi feita apenas nas entrevistas do segun- plo, considerada pelos arquitetos como um marco da paisagem dessa parte de Ni-
do grupo, dos técnicos em assuntos urbanos que atuavam em Niterói. terói, era profundamente ignorada pelos seus moradores, que a ela se referiam, na
Em relação aos bairros adjacentes à ponte, registraram-se percepções quanto melhor das hipóteses, como “aquela igrejinha”, ou apenas como um ponto de refe-
à mudança de uso, antes exclusivamente residencial. Nesse registro, o Fonseca foi o rência no percurso até a ponte – a “igreja do Ponto Cem Réis”.
mais mencionado. Seus moradores mostraram ser os mais sensíveis às mudanças do O grande incêndio ocorrido em um circo (1961), localizado junto à estação
bairro, referindo-se às transformações de residências e colégios em estabelecimen- ferroviária, parece ter marcado profundamente a vivência dos moradores dessa
tos comerciais ou de serviços, assim como ao aumento de tráfego na Alameda São área. A catástrofe, um dos poucos fatos mencionados dessa época, serviu como um
Boaventura, principal via de acesso ao bairro e conectada diretamente com a ponte
8. Avenida construída na década de 1960 provendo um acesso mais direto ao Barreto; hoje é ligada à BR 101, pela
7. Uma das principais avenidas da cidade, alargada e conectada a um dos viadutos da ponte; liga esta ao cento da rodovia Niterói-Manilha.
cidade e à zona Sul. 9. Local onde se trocava a tarifa do bonde, cujo valor na época era de 100 réis (moeda corrente).

300 Niterói e a ponte: transformações urbanas e impactos produzidos Lelia Mendes de Vasconcellos 301
marco histórico imediatamente anterior à construção da ponte: “a minha mãe disse nostálgicas de que “a Ilha era cheia de praias e tudo foi destruído...”. Esses comen-
que antes de fazerem a ponte, era um circo; o circo que tinha pegou fogo, depois tários atestam a diminuição das atividades pesqueiras e da oferta de emprego nos
acabou o circo e fizeram a ponte....”. Essas e outras alusões parecem ter marcado de- estaleiros, muitos deles fechados, segundo os depoentes, em virtude da chegada
finitivamente a “limpeza” da área para a futura construção da ponte e consequente da ponte. Cabe ainda a observação feita por uma das lideranças da Ilha sobre o des-
eliminação de parte da favela ali localizada. locamento para lá de muitos pescadores que antes moravam na região Oceânica.
Outro incêndio de grandes proporções registrado na memória dos morado- Os acidentes ocorridos durante as obras foram uma forte referência entre os
res foi o das barcas, ocorrido em 1959. Segundo um depoente, “do Ponto Cem Réis moradores: “Muito buraco, muita lama durante a sua construção”, informou uma
via-se o fogaréu das barcas”, o que permite depreender que os edifícios da área antiga moradora da Ilha. Outros se recordavam de acidentes que provocaram a
eram mais baixos, a ponto de permitir a visão de algo ocorrido a uma distância rela- morte de vários operários e engenheiros. Um morador da Ilha da Conceição referiu-
tivamente grande. -se à morte de 67 operários. Um comerciante de São Lourenço afirmou que, durante
Pode-se ainda mencionar a presença da estação das barcaças que faziam a uma pescaria, recolheu restos de ossos partidos, provavelmente de operários viti-
travessia de veículos entre o Rio de Janeiro e Niterói. Essa era a lembrança mais forte, mados nos acidentes. Tais histórias iam passando oralmente para as gerações mais
muitas vezes a única, entre os cariocas. Desse trajeto, alguns retinham na memória novas, fazendo com que muita gente tivesse medo de atravessar a ponte.
a imagem de “uma rua com canal no meio”, referindo-se possivelmente à Alameda Fora do local selecionado para as entrevistas, o foco das percepções concen-
São Boaventura, única via de acesso na época às outras regiões do Estado. trou-se no bairro de Icaraí e nos novos bairros da região Oceânica. A verticalização
Os moradores da Ponta da Areia não parecem ter experimentado nenhum im- de Icaraí11 foi frequentemente mencionada. Muitos destacaram que esse bairro era
pacto mais forte em relação à área propriamente dita. De uma maneira geral, esses constituído “somente de casas”. A ocupação da região Oceânica – considerada “bu-
impactos foram sentidos com mais intensidade no Centro da cidade, a partir da Ave- cólica”, também foi relacionada com os impactos da ponte.
nida Feliciano Sodré que faz limite com o bairro. A percepção desses entrevistados
confirma a observação de que a Ponta da Areia, apesar de contígua ao setor central 2. Circulação viária
da cidade, permanece isolada e pouco afetada pelos impactos trazidos pela ponte.
Quanto aos habitantes da Ilha da Conceição, a principal referência de memó- O tráfego era tão presente na percepção das pessoas que muitas delas, ao
ria apareceu na alusão ao fato de o bairro ter deixado de ser ilha, após a construção serem solicitadas a descrever o que observavam em seu trajeto até a ponte, não
da ponte. Os antigos moradores revelaram como era difícil chegar ao Centro de Nite- conseguiam dar nenhuma referência quanto à arquitetura do lugar, da paisagem,
rói antes da ponte, pois a travessia só era possível por barco. Somava-se a isso o fato, ou mesmo de algum polo de serviços ou comércio. Respostas como “só consigo ver
já mencionado, da presença da favela. Dentro das categorias propostas por LYNCH, o engarrafamento” ou “só vejo o movimento dos carros” foram bastante frequentes.
ela significaria uma “barreira” (ou limite)10 entre os bairros adjacentes à ponte. Ainda que o engarrafamento fosse uma indicação de mais peso entre os que
A memória desses moradores mostrou-se muito ligada à construção da trabalhavam ou tinham compromissos no Rio, muitos preferiam a travessia pela
ponte, pois o seu canteiro de obras foi instalado exatamente na Ilha da Conceição. ponte ao trajeto feito pelas barcas, pelo fato de o ônibus ser um meio de transporte
Parte das pedras utilizadas foi extraída de pedreiras do local. A praça do pedágio direto, sem baldeações. As barcas, porém, ainda se apresentaram como o meio de
encontra-se no local onde antes era mar. O aterro feito serviu como “sapata” para transporte preferido para aqueles que moravam no Centro de Niterói ou nas suas
a ponte, ao mesmo tempo em que uniu a Ilha ao continente. Nesse sentido, verifi- proximidades e cujo destino, no Rio, também era a área central.
caram-se apreciações mais positivas. Além de associarem a ligação carroçável com O engarrafamento provocado pela ponte foi percebido de forma intensa
a cidade à sua construção, a presença de mais comércio e serviços e o “asfalto” – é mesmo por pessoas que não se utilizavam dela, ou a utilizavam pouco (uma a duas
vista como consequência direta da sua chegada. vezes por mês), mas enfrentavam o dia a dia do trânsito em Niterói. O impacto no
Duas referências, porém, contestaram em parte os benefícios trazidos pela tráfego foi denunciado principalmente no Centro, em Icaraí e no Fonseca. Há quem
ponte: a perda da tranquilidade – “era um lugar muito simples, muito amoroso, tenha feito observações quanto à falta de capacidade da estrutura viária da cidade,
muita paz” – e a redução da oferta de empregos – “antes nós tínhamos o Lloyd, a que não comportava mais a quantidade de veículos trazidos pela ponte. Alusões
Metal Nave”. Houve também referências à “falta de peixes na baía” e lembranças
11. Na realidade esta verticalização teve início antes da construção da ponte, mas a ela foi atribuída por muitos entre-
10. “Edge”, em inglês. vistados.

302 Niterói e a ponte: transformações urbanas e impactos produzidos Lelia Mendes de Vasconcellos 303
ao número de carros de “cariocas” e ao aumento do volume de tráfego nos fins de fins de semana”, foi sentida principalmente nas praias da região Oceânica, que pode
semana também foram representativas. ser ilustrada pela já citada frase sobre os cariocas.
As avaliações críticas em relação à imensa frota de coletivos que atravessa a
cidade e à irracionalidade de seus itinerários só apareceram nos depoimentos feitos
pelos técnicos. Em que pese, porém, o elevado número de veículos que hoje em dia Indicadores de percurso e percepções multissensoriais
trafega pelas ruas de Niterói, a oferta de transporte, com as numerosas linhas de
ônibus que acessam a ponte, foi percebida como um ganho para o primeiro grupo A descrição do percurso muitas vezes foi feita apenas com indicações de
de entrevistados e não como um fator negativo. placas, ruas, direções. As referências variavam naturalmente do local onde a pessoa
se encontrava durante a entrevista ou morava.
Foram referências frequentes os supermercados localizados em pontos pró-
3. População ximos aos viadutos de acesso, a “perspectiva da alameda” (São Boaventura), a rodo-
viária na Avenida Feliciano Sodré e o hospital Antônio Pedro. A imagem forte deste
Os “cariocas” — que, na realidade, representavam todos aqueles que proviam do
pode ser explicada não só pela sua fachada peculiar, configurada por um pórtico
outro lado da baía, tanto do município do Rio de Janeiro como os da Baixada Fluminen-
grego, como também pela enorme importância desse equipamento para os nite-
se – foram sempre citados como grandes responsáveis pelo aumento dessa população.
roienses. Ele é ainda um ponto de passagem obrigatório para quem vem da zona sul
Frases como “a ponte trouxe muita gente de fora para a cidade” foram bastante comuns.
ou do centro em direção à ponte. A antiga estação ferroviária e o prédio do Moinho
Essas respostas denotam uma apreciação quase sempre negativa dos que vinham de
Atlântico completaram as indicações de edificações, cujo caráter arquitetônico pode
fora. “Não sei de onde vem tanta gente” ou “os cariocas enchem a praia de porcaria e
ser interpretado como marcos referenciais do percurso.
não têm o menor respeito pela natureza” foram percepções bastante frequentes.
Dos que procediam de São Gonçalo, as referências mais constantes eram
sobre a Avenida do Contorno, do mau cheiro dos manguezais situados à beira da
4. Redes de infraestrutura “estrada”, do cemitério de Maruí, no Barreto, e do Carrefour, supermercado loca-
lizado perto da Niterói-Manilha. Muitos moradores de São Gonçalo referiam-se
Nesse item há também uma variação entre o que era percebido positiva ou
também à “feiura” do trajeto. Moradores de Itaboraí, Alcântara e outras localidades
negativamente, ou até do que era uma percepção real sobre as consequências que
mais afastadas queixavam-se da distância a ser percorrida e da má qualidade dos
a ponte trouxe à cidade. Mencionou-se, por exemplo, a melhoria das enchentes do
transportes coletivos. O mau cheiro na orla da baía, principalmente na zona norte da
rio Vicência, canalizado ainda no princípio do século para a construção da Alameda
cidade e em São Gonçalo, foi um indicador comum nas referências dos percursos de
São Boaventura. Esse rio, com seus pequenos afluentes, e mais a precariedade dos
quem vinha dos municípios periféricos a Niterói. O mesmo, porém, já não acontecia
serviços de drenagem pluvial e esgotos causaram transtornos, durante muitos anos,
com os entrevistados residentes na região Oceânica. Apesar de também se quei-
às áreas próximas à ponte. O fato de essas áreas serem, em parte, fruto de aterro
xarem dos congestionamentos, referiam-se sempre aos locais de moradia como a
também deve ter contribuído significativamente para esse quadro. Mencionaram-
parte mais bonita do trajeto.
-se também os esgotos rompidos no Centro, consequência da sobrecarga de veícu-
Os entrevistados, ao que parece, também perceberam as melhorias feitas
los pesados. A melhoria da iluminação pública, tanto da própria alameda como da
na cidade. O plantio de árvores sob os vazios dos viadutos da ponte, iniciado pela
Praça dos Expedicionários, também foi citada como uma “benfeitoria”.
Prefeitura de Niterói12, em 1993 foi mencionado por alguns entrevistados: “deve-se
tomar todo o cuidado para melhorar o aspecto da cidade – a ponte é a entrada da
5. Meio Ambiente cidade”. Esta observação explicita ainda a importância da ponte como uma nova
porta de acesso à cidade.
Os indicadores desse item concentraram-se nos efeitos da poluição das águas
As observações sobre o percurso, quando já se estava sobre a ponte, foram
da baía, principalmente junto à Ilha da Conceição: “não há mais peixes no mar”. Refe-
bastante contraditórias, oferecendo um leque de percepções que iam das aprecia-
rências gerais à poluição da baía pelas fábricas de sardinha foram bastante comuns.
ções mais negativas às mais positivas. A Baía de Guanabara foi a campeã em referên-
Mais uma vez, alguns dados foram equivocadamente atribuídos à presença da
ponte. A poluição do meio ambiente, provocada pelos contingentes de “turistas de 12. Prefeito João Sampaio (1993-1996).

304 Niterói e a ponte: transformações urbanas e impactos produzidos Lelia Mendes de Vasconcellos 305
cias positivas, geralmente admirada pela sua beleza que a visão da ponte proporcio- Pode-se concluir que a percepção dos percursos feitos pelos usuários da ponte
nava. Mas houve também quem se referisse à poluição das águas ou ao “mau cheiro”. ou da própria cidade parece estar altamente comprometida pelos enormes congestio-
Os elementos vistos da ponte eram, em geral, mais percebidos pelos usuá- namentos do tráfego. Ou na ponte, pela sensação de medo que esta provocava em
rios dos ônibus, talvez pelo plano visual, mais alto que o do automóvel, oferecido muitos. A percepção dos usuários da ponte seria “filtrada”14 (RAPOPORT, 1978, op.cit.).
por esse meio de transporte. As referências mais citadas, além da baía e sua “vista A escala da ponte também pode ser mencionada entre as categorias de per-
linda”, foram o Pão de Açúcar, a vista do Rio de Janeiro, os aviões que sobrevoavam cepção, assumindo diversas conotações: sua extensão e as relações espaciais de
a ponte, as embarcações, a “pequena Manhatan” (referência ao centro do Rio de altura, largura das pistas, a massa volumétrica formada pelos pilares e viadutos da
Janeiro visto da ponte) e o mar. ponte etc. Um operário, morador do bairro de São Francisco, na zona sul de Niterói,
Outra percepção sempre presente dizia respeito ao precário estado de con- que só utilizava a ponte duas vezes por mês, assim se expressou: “eu penso... é só
servação das pistas e de toda a estrutura da ponte. Essa constatação provocava em nos quilômetros que ela tem...”. Outro depoente manifestou-se desse modo: “tenho
muitos entrevistados a sensação de medo, ou pelo menos de certa tensão, sobretu- horror à ponte, tenho medo de altura, lá em cima não tem nenhum apoio...”; “...
do nos motoristas de veículo particular. Entre os entrevistados com nível superior ou aquela altura toda, aquela fundura...”.
estudantes universitários, notou-se que a riqueza quanto à percepção dos elemen-
tos variava conforme o tipo de profissão. Os que forneceram referências mais deta-
lhadas foram sem dúvida os arquitetos urbanistas, seguidos de perto por psicólogos
A percepção quanto aos impactos
e profissionais voltados para carreiras artísticas.
Constataram-se dois tipos de medo: o que correspondia ao risco de acidentes Conclui-se pelos indicadores acima analisados que a percepção da popula-
e o pânico gerado pela imaginação, pela informação popular que trazia referências ção entrevistada quanto aos impactos na cabeceira da ponte não foi significativa,
a uma possível insegurança quanto à estabilidade da ponte. Se no primeiro caso pelo menos no que diz respeito às transformações na forma urbana. Verificou-se
as relações estabelecidas entre o tipo de resposta e o perfil do entrevistado não uma grande rejeição ao que era velho, ao passado. Apesar de não ser unânime a
revelaram nenhuma associação quanto à escolaridade, no segundo o pânico vinha apreciação positiva quanto à sua presença, a idéia de que a ponte trouxe desenvol-
geralmente associado a um baixo grau de instrução. Um morador da Ilha da Con- vimento e progresso a Niterói pareceu prevalecer. Tal idéia também reforça a ausên-
ceição, por exemplo, assim se expressou: “...um dia essa ponte vai cair, vai haver um cia de ligação afetiva com os locais que foram transformados pela ponte.
grande desastre: os pilares estão dentro da água salgada: muita corrosão, um peso A rejeição à ponte parece estar centrada no trânsito intenso, nos enormes
desgraçado, trepidação, carros, caminhões, carretas”. Esse tipo de pânico também congestionamentos de tráfego, na violência urbana (trazida pelos “de fora”) etc. Mas
estava associado à construção da ponte: “dizem que ela flutua, não é?...”. não foi identificado nenhum sentimento saudosista em relação à aparência, à antiga
Esta observação, assim como outras de natureza semelhante, parece ter forma urbana das adjacências da ponte. Tal ausência pode ser resgatada ao se falar
origem em histórias elaboradas ao longo dos mais de 20 anos de existência da no ambiente natural transformado, mas não em relação ao ambiente construído.
ponte13, que contêm um misto de realidade e imaginação. Esses depoimentos foram O seccionamento da Praça dos Expedicionários, a quebra de continuidade
mais frequentemente encontrados nos bairros localizados próximos à ponte (São entre as principais vias – a Alameda São Boaventura ou o eixo viário Feliciano Sodré
Lourenço, Fonseca, Ilha da Conceição). Foram as entrevistas de moradores desses e Jansen de Melo/Marquês do Paraná –, ou ainda a barreira provocada pelo viaduto
bairros que mais ofereceram material sobre fatos (reais ou imaginários) relacionados que passa em frente à igreja de Santana de São Lourenço, no Ponto Cem Réis, não
à sua construção. parecem ter sido significativas. Tampouco incomodavam visualmente.
O vão central constituiu o trecho onde “o medo da ponte cair” era o mais Nos depoimentos prestados pelos poucos entrevistados residentes no Rio de
experimentado. Em contrapartida, registrou-se admiração pelo seu imenso horizon- Janeiro, a percepção dos entroncamentos ocorridos em Niterói não se mostrou pre-
te ou ainda pela beleza de sua estrutura. Verificou-se aí a admiração pela obra da sente. A travessia de balsa pela baía, que transportava automóveis, e as imensas filas
ponte, sua monumentalidade, em que mais uma vez o vão central demonstrou ser o que se formavam por ocasião dos fins de semana prolongados com feriados foram
grande protagonista desse majestoso cenário na paisagem da Baía de Guanabara– as únicas lembranças que a maioria deles guardava sobre o ambiente construído da
“o mais bonito é depois daquela subida, na hora que desce”. cidade de Niterói e do local onde hoje se situa a cabeceira da ponte.

13. Período correspondente à realização da pesquisa. 14. RAPOPORT, 1978, op.cit.

306 Niterói e a ponte: transformações urbanas e impactos produzidos Lelia Mendes de Vasconcellos 307
Todavia, o reconhecimento das transformações urbanas foi bem mais claro Os profissionais que trabalhavam nas prefeituras de Niterói e São Gonçalo ex-
quando se ampliou o território para a escala da cidade, onde a área central e o pressaram uma opinião praticamente unânime: o maior problema trazido pela ponte
bairro de Icaraí mereceram a maior quantidade de referências, seguidas de perto foi o da circulação viária da cidade, não só pelo aumento do volume de tráfego como
pelo bairro do Fonseca. A região Oceânica foi também mencionada em virtude do pela falta de capacidade suporte das vias de circulação. A ponte passou a representar
aumento de população e da sua progressiva ocupação. “uma das artérias da estrutura viária niteroiense”. Ela era, porém, considerada um
Os resultados da pesquisa revelaram igualmente que a população percebia fato consumado e sua presença inevitável. Mas os seus impactos na cidade de Niterói
não apenas os grandes impactos ocorridos no sistema viário, como também o au- poderiam ser minimizados através de algumas medidas, entre as quais uma melhor
mento da população migrante. A percepção deste último fenômeno denotava um adequação dos itinerários dos transportes coletivos ao longo da sua malha urbana.
nítido sentimento de rejeição aos “de fora”, não importa de que região. “A cidade cres- Quanto à arquitetura da cidade, esse segundo grupo apresentou dois tipos
ceu muito, veio muita gente para cá” ou “A cidade não estava preparada para receber de visão. Para alguns, não houve mudanças significativas na configuração espacial,
tanto fluxo de veículos” foram frases típicas para expressar os impactos ocorridos. principalmente junto à cabeceira da ponte. Instrumentos de legislação, que não
A violência urbana foi outro fenômeno relacionado à ponte, geralmente atribu- permitiam a ocupação em altura, explicariam as poucas mudanças. Já a intensa
ído à população advinda de fora de Niterói. Grande parte dos depoentes afirmou que verticalização do centro da cidade e em especial a de Icaraí e a rápida ocupação
Niterói era uma cidade mais tranquila antes da ponte. Numa comparação entre o Rio e da região Oceânica foram apontadas como consequências da chegada da ponte.
Niterói, a antiga capital fluminense foi apontada como a que, de longe, mais sofreu os Outros, ao contrário, referiram-se enfaticamente às enormes rupturas ocorridas no
impactos ocasionados pela sua implantação, embora as visões nem sempre fossem tecido urbano da cidade, principalmente junto ao local onde a ponte foi construída.
coincidentes. Muitos, porém, admitiram que a ponte não só facilitou os acessos ao Rio Tudo teria acontecido de forma repentina: caminhões chegando, pilares sendo er-
de Janeiro, como também trouxe progresso e desenvolvimento para Niterói. guidos, sem que ninguém soubesse exatamente o que se passava. Foi assinalado o
Quanto aos impactos regionais, a região dos Lagos (Baixadas Litorâneas) foi a fato de a ponte ter sido obra do governo federal, numa época em que as decisões
mais citada. O aumento da atividade de turismo, do tráfego nas estradas e da densidade eram inteiramente centralizadas e sem nenhuma divulgação.
de ocupação foi uma referência expressa com frequência pelo conjunto de usuários. As visões dos profissionais do Rio de Janeiro em relação à ponte apresen-
São Gonçalo liderou as referências entre os municípios vizinhos a Niterói, mas taram conotações diferentes. A percepção dos impactos por ela provocados tinha
existiram também indicações quanto a Itaboraí, Maricá e ainda Magé, no fundo da como cenário a escala regional, incluindo aí os municípios da Baixada Fluminense,
baía. Este último município foi especialmente citado pela perda de comércio e conse- os quais, com a fusão dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, perderam seus
quente declínio em seu desenvolvimento, pois antes toda a frota de caminhões tinha vínculos com Niterói, antes existentes em função de esta cidade ser a capital do
obrigatoriamente de fazer a travessia pela estrada que contornava a baía. Outros en- antigo Estado do Rio. Foi também destacada a acelerada ocupação da região dos
trevistados, em contrapartida, fizeram alusão ao alívio de não ter mais de contornar a Lagos (Baixadas Litorâneas), desde Maricá até Cabo Frio, bem como os enormes vo-
baía ou de atravessar seus veículos na balsa, que demandava um tempo muito maior. lumes de tráfego na ponte e nas estradas de acesso à região. Admitiam ainda que os
municípios periféricos – como São Gonçalo, o mais lembrado deles – “incharam” em
consequência da facilidade de acesso ocasionado pela ponte.
A percepção vista pelo grupo de profissionais em O contraste entre a “artificialidade e a natureza”, referência à ponte enquanto
assuntos urbanos um novo elemento construído no espaço natural e o “gigantismo” de seus viadutos
de acesso, em oposição ao restante do tecido urbano de ambas as cidades, foram
O conhecimento do que representava a ponte, quais os seus impactos e onde comentários presentes nesse grupo de entrevistados. Para eles, a referência quando
estes se davam por outra ótica, baseada em fatos reais. Mesmo assim, os entrevista- observavam a ponte era naturalmente o Rio de Janeiro. “Niterói está mais próximo
dos deste grupo apresentaram visões distintas, que não se opunham uma a outra, do Rio, faz parte da área metropolitana do Rio”, “Muitos cariocas mudaram-se para
mas se complementavam. Como exemplo, podem-se comparar as percepções dos Niterói, preferem morar lá e trabalhar no Rio” foram alguns comentários surgidos
profissionais residentes em Niterói e envolvidos com os problemas urbanos dessa nos depoimentos.
cidade com as do grupo de entrevistados no Rio de Janeiro. As transformações provocadas na cabeceira da ponte do lado do Rio de Ja-
neiro também fizeram parte dos comentários desse grupo. Embora a percepção não

308 Niterói e a ponte: transformações urbanas e impactos produzidos Lelia Mendes de Vasconcellos 309
estivesse presente em todos os entrevistados, pois alguns não tinham sequer lem- A percepção quanto aos impactos traduziu-se também por apreciações dis-
brança de como era a configuração dessa área antes da ponte, atribuiu-se à conexão tintas, que variavam desde escalas territoriais diversas até as suas diferentes signifi-
dos viadutos com os demais elevados de acesso à cidade as grandes rupturas ocor- cações. A ponte era vista, no entanto, como extremamente importante para a vida
ridas na estrutura viária próxima. Ressalvavam sempre, porém, o fato das conexões dos niteroienses, e isso pôde ser verificado não só pelas entrevistas realizadas pelo
da ponte no Rio de Janeiro terem acontecido, sobretudo, em áreas de uso predomi- primeiro grupo, mas também pelos depoimentos de profissionais diretamente liga-
nantemente industrial. dos às questões urbanas da cidade.
Outro ponto constante das entrevistas feitas com os profissionais residentes Realidades e mitos misturavam-se nas percepções dos vários entrevistados.
no Rio de Janeiro dizia respeito aos acessos à ponte, considerados em geral difíceis, Ainda que não se tenha obtido a riqueza de imagens esperada inicialmente, eram
tanto pelo lado de Niterói como pelo lado do Rio de Janeiro. Embora não tenham muitas as fantasias a respeito dos impactos e do histórico da construção da ponte.
entrado em detalhes sobre os problemas viários decorrentes da ponte, ficou claro Sua imagem foi idealizada por um lado e estigmatizada por outro. Atribuíam-se con-
que o seu impacto na circulação desta última cidade era eventual, circunscrito à sequências na vida urbana de Niterói cuja causa não estava nela, ou pelo menos
ocorrência de acidentes realmente graves. Ainda assim, eles não comprometiam a não somente nela. Por outro lado, não se perceberam coisas “óbvias” para a visão de
circulação viária de toda a cidade, ao contrário do que acontecia em Niterói. qualquer arquiteto urbanista, como as barreiras visuais provocadas pelos viadutos
Referências à fusão dos dois estados (Guanabara e Rio de Janeiro) também se fi- de acesso ou pela transformação do ambiente construído junto à ponte.
zeram presentes, principalmente no grupo de profissionais: “A ponte pro estado do Rio Finalmente, cabe destacar que as percepções e imagens traduzidas da ponte
não foi boa porque as melhorias do lado de cá passaram tudo pro lado de lá por causa e de seu ambiente construído variaram quanto à formação profissional do entrevis-
da fusão. Aqui o estado do Rio tinha mais valor; a renda vai pro outro lado da baía...”. tado e quanto ao seu nível social. As diferenças se acentuaram quando comparados
os depoimentos expressos pelos profissionais afetos aos assuntos urbanos.

Considerações finais
Referências bibliográficas
Progresso, desenvolvimento, modernidade e violência foram imagens asso-
ciadas muitas vezes entre si. A facilidade de acesso trazida pela ponte foi apontada AZEVEDO, Marlice N. A política urbana – a prática de um discurso e sua inscrição no espaço
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bolizando a “entrada da cidade”, “fazendo parte da estrutura viária da cidade”, a
ponte era na realidade uma imagem associada a Niterói, mais talvez do que ao Rio BRASILEIRO,A.M. A Fusão – Análise de uma política pública. IPEA/IPLAN, vol. 21. Brasília, 1979.
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Constatou-se que a imagem percebida é fundamentalmente autocentrada, CHOAY, Françoise & MERLIN, Pierre. Dictionaire de l’Urbanisme. Paris, Presses Universitaires de
pois depende do local onde se encontra o entrevistado ou do seu conhecimento France, 1988.
sobre ele. Não se percebe aquilo que não se conhece (PENNA, 1968)15 e tal consta- CULLEN,Gordon. The concise townscape. London, W.& Mackay Ltd, 1971.
tação ficou evidente. Não existe, por outro lado, uma única imagem sobre a ponte. DIRIGENTE CONSTRUTOR.Os problemas da ligação Rio-Niterói vistos da ponte. Rio de Janeiro,
Seus significados são contraditórios: da violência trazida de fora, da beleza da paisa- vol. XI, nº 3, março/ 1974.
gem desfrutada ou do orgulho de sua modernidade. FERRARA, Lucrecia D’Alessio. A estratégia dos signos – Linguagem/Espaço/Ambiente urbano.
Conforme exposto acima, as percepções visuais do entorno da ponte ou dos São Paulo, Perspectiva, 1980.
diversos trajetos que dão acesso a ela são pobres de detalhe. Shoppings, mercados, FORTE, J. Mattoso Maia. Notas para a história de Niterói. Instituto Niteroiense de
hospitais, postos de gasolina, rodoviária, quartel oferecem um elenco de fragmen- Desenvolvimento Cultural, PMN. Niterói, Rio de Janeiro, 1973.
tos observados ao longo do percurso, geralmente associados tão somente à utiliza- GOODEY, Brian. Percepção, participação e desenho urbano, (org. Vicente del Rio), FAU-UFRJ,
ção dos serviços disponíveis. coleção Módulo-Universidade, volume 1, Avenir ed., 1985.
GOODEY, Brian, GOLD, John – Behaviour and Percentual geography. Progress in Human
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TUAN, Yi Fu. Topofilia – um estudo de percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Rio/São ser construído na Ilha do Fundão, no Rio de Janeiro. Este foi realizado pela equipe do La-
Paulo, Difel, 1980. boratório de Conservação de Energia e Conforto Ambiental – LABCECA da Universidade
. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo, DIFEL, 1983. Federal Fluminense – UFF. O texto retrata como esse objeto de estudo foi desenvolvido e
aperfeiçoado ao longo de atividades de ensino, extensão e pesquisa do LabCECA. O proje-
VALVERDE, L.F. Salandia et all. São Lourenço: um resgate da história viva de Niterói. Trabalho
apresentado para a premiação anual do IAB/RJ, Rio de Janeiro, 1992. to do edifício levou em consideração os princípios da arquitetura bioclimática, com apro-
veitamento racional dos recursos passivos para obtenção de conforto ambiental. São des-
VASCONCELLOS, Lelia M. Percepção, Imagem e Significado do espaço urbano. 1º trabalho
programado. Doutorado em Arquitetura e Urbanismo FAU-USP. São Paulo, 1994. critos os princípios gerais para obtenção de conforto ambiental em clima tropical quente
e úmido. Na sequência, são apresentadas as características da arquitetura do prédio que
. Estudo sobre o impacto ambiental decorrente do sistema de circulação
entre as cidades do Rio de Janeiro e Niterói. 4º trabalho programado. Doutorado em privilegiaram o aproveitamento dos recursos naturais. São realizadas avaliações financei-
Arquitetura e Urbanismo. FAU-USP São Paulo, 1994. ras de algumas estratégias bioclimáticas. O Regulamento Técnico da Qualidade do Nível de
. Dinâmica da configuração espacial urbana: uma análise dos impactos Eficiência Energética de Edifícios Comerciais, de Serviços e Públicos, RTQ-C (Inmetro, 2009)
provocados pela ponte na cidade de Niterói. Tese de Doutorado em Arquitetura e pelo método prescritivo foi aplicado no projeto do edifício, como parte das atividades de
Urbanismo. FAU-USP. São Paulo, 1997. pesquisa para avaliação e aprimoramento dessa regulamentação. Os resultados da avalia-
VIANA, Humberto. Barreto, recuperação da paisagem urbana. Trabalho final de graduação. ção por esse método avalizam a eficiência energética deste projeto bioclimático.
Escola de Arquitetura e Urbanismo – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1995. Abstract | The paper discusses the design and evaluations of building Information Center
ZISEL, John.Inquiry by design: tools for environment – behaviour research. USA, Cambridge CRESESB – Reference Center for Solar Energy and Wind Sérgio de Brito Saved – to be built
University Press, 1984. 250p. on Fundão Island, in Rio de Janeiro. This was done by the staff of the Laboratory for Energy
Conservation and Environmental Comfort – LABCECA Universidade Federal Fluminense –
UFF. The text shows as the object of study was developed and detailed over the teaching,

Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da
312 Niterói e a ponte: transformações urbanas e impactos produzidos Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 313
extension and research activities of LabCECA. The building design took into account the O CRESESB foicriado em 1994 com o objetivo de promover o desenvolvimen-
principles of bioclimatic architecture, with rational use of resources to achieve passive envi- to das energias solar e eólica através da difusão de conhecimentos, da ampliação do
ronmental comfort. Inicially it describes the general principles for obtaining environmental diálogo entre as entidades envolvidas e do estímulo à implementação de estudos
comfort in hot and humid tropical climate. Next, we present the characteristics of the ar- e projetos.
chitecture of the building that favored the use of natural resources. Financial assessments A construção da nova sede Centro de Informações do CRESESB é uma de suas
are made of some bioclimatic strategies. The Technical Regulation on Quality Level Energy metas. A operação deste Centro de Informações visa promover com maior eficiência
Efficiency of Commercial Buildings, and Public Service, RTQ-C (INMETRO, 2009) by the pre- atividades de treinamento e divulgação técnico-científica e, ao mesmo tempo, am-
scriptive method was applied in the design of the building, as part of research activities for pliar o efeito de demonstração já conseguido com a Casa Solar Eficiente, construída
evaluation and improvement of this regulation. The results of the evaluation by this method no mesmo local, nos seus oito anos de funcionamento, mas com uma arquitetura de
endorse the energy efficiency of this bioclimatic design. inegável simplicidade.
Resumen | El artículo analiza el diseño y evaluación de información de edificios CRESESB Cen- O novo projeto, concebido com uso preponderante dos recursos bioclimá-
ter – Centro de Referencia para la Energía Solar y Eólica Sérgio de Brito Guardado – que se ticos, tem o objetivo de ser um espaço aberto ao público, destinado a aplicar e di-
construirá en la isla de Fundão, en Río de Janeiro. Esto fue hecho por el personal delLaborato- fundir tecnologias alternativas em energia, principalmente de fontes alternativas,
rio de Conservación de Energía y Confort Ambiental – LABCECA Universidade Federal Flumi- e apresentar de que forma a arquitetura influencia no uso da energia e, principal-
nense – UFF. El texto describe como el objeto de estudio se ha desarrollado y perfeccionado mente, na garantia do conforto higrotérmico, acústico, lumínico e a qualidade do ar
en la docencia, extensión e investigación LabCECA. El diseño del edificio se tuvieron en cuenta empregando pouco insumo energético.
los principios de la arquitectura bioclimática, con el uso racional de los recursos para lograr Neste contexto, o projeto do Centro foi avaliado segundo o Regulamento
confort ambiental pasivo. Inicialmente se describen los principios generales para la obtención Técnico da Qualidade do Nível de Eficiência Energética de Edifícios Comerciais, de
de confort ambiental en el clima tropical cálido y húmedo. A continuación, se presentan las ca- Serviços e Públicos, o RTQ-C (Inmetro, 2009), cujo objetivo é classificar o nível de
racterísticas de la arquitectura del edificio, que favoreció el uso de los recursos naturales. Eva- eficiência energética de edifícios em três quesitos: envoltória, iluminação artificial e
luaciones financieras se hicieron de algunas estrategias bioclimáticas. El Reglamento Técnico ar condicionado.
de Calidad Nivel de Eficiencia Energética de Edificios Comerciales y de Servicios Públicos, RTQ- O quesito envoltória tem destaque neste artigo, visto que as estratégias bio-
C (INMETRO, 2009) por el método prescriptivo se aplicó en el diseño del edificio, como parte climáticas adotadas no projeto foram responsáveis pela classificação A, segundo
de las actividades de investigación para la evaluación y mejora de la regulación. Los resultados a metodologia adotada no RTQ-C (Inmetro, 2009). Confirmando a importância do
de la evaluación de este método avalan la eficiencia energética de este diseño bioclimático. projeto arquitetônico bioclimático que, aliado a materiais adequados e tecnologias
apropriadas, pode aumentar os níveis de conforto e reduzir, em paralelo, os desper-
dícios de energia.
1. Introdução A avaliação foi realizada pela equipe do Laboratório de Conservação de Ener-
gia e Conforto Ambiental – LABCECA da Universidade Federal Fluminense – UFF, sob
Em 2004 o CRESESB (Centro de Referência para as Energias Solar e Eólica a coordenação da Professora Louise Land Bittencourt Lomardo.
Sérgio de Salvo Brito) lançou um desafio aos alunos da graduação da disciplina de
Projeto de Arquitetura 5: elaborar uma edificação de divulgação do uso da energia
solar usando técnicas ativas e passivas de eficiência energética. Assim, realizamos
2. Objetivo
um estudo ao longo do semestre, que culminou com concurso de ideias entre os
Este artigo visa apresentar o estudo de caso de um edifício projetado a partir
alunos da turma, com a orientação da Profª. Louise Land B. Lomardo. O trabalho
das premissas bioclimáticas para o clima quente e úmido da cidade do Rio de Ja-
selecionado, de autoria de Estefânia Neiva e Lana Carmona, foi posteriormente de-
neiro, e a aplicação da metodologia de avaliação de eficiência energética do RTQ-C
senvolvido, detalhado e simulado, tendo obtido o 1º lugar no Prêmio PROCEL 2007,
(Inmetro, 2009) no mesmo, indicando um resultado positivo da etiquetagem em
categoria edificações. Em diferentes pesquisas do LabCECA este trabalho foi objeto
edifícios bioclimáticos.
de elaborações teóricas como na dissertação de SILVA, V. Em sua pesquisa para sub-
sidiar avaliações da eficiência energética predial com a aplicação do RTQ-C.

Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da
314 conforto ambiental e eficiência energética Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 315
3. Princípios de bioclimatismo aplicados à arquitetura em O diagrama indica ainda a elevada umidade relativa presente no Rio de Ja-
clima tropical quente e úmido neiro, que, somada às altas temperaturas, constituem grande fonte de desconforto.
Neste contexto, temos traçadas as principais estratégias para o conforto. Uma vez
Segundo o Anuário Estatístico da Eletricidade (EPE, 2013), as classes comer- que o desconforto por frio assume segundo plano, e visto que o desconforto pelo
cial, residencial e o poder público que abarcam tipicamente o uso da energia em calor ocorre na maior parte do ano, as estratégias para o conforto se resumem a um
edificações representam cerca de 47% do consumo final de energia elétrica no país projeto de arquitetura que vise o aproveitamento eficiente da ventilação natural,
em 2010, sendo estimado que cerca da metade deste valor seja consumido proven- incrementando as perdas por convecção e, logo, corrigindo as condições do excesso
do conforto aos usuários dos edifícios. de umidade.
A preocupação com a sustentabilidade do desenvolvimento das nações, Segundo a NBR 15220-3 (ABNT, 2005), o terreno encontra-se na Zona Biocli-
dentro de um cenário de mudanças climáticas, provoca entre os arquitetos e ur- mática 8, devendo ter especial atenção para ventilação como estratégia de condicio-
banistas uma tendência de desenvolver as suas tarefas usando todos os recursos e namento térmico passivo, reforçando as conclusões traçadas a partir do Diagrama
conhecimentos, no sentido de reduzir impactos ambientais e maximizar o aprovei- de Givoni. As aberturas devem ser amplas e sombreadas. As paredes e coberturas
tamento dos recursos naturais disponíveis. devem ser leves e refletoras, o que avaliza e complementa a bibliografia citada.
Logo, a arquitetura bioclimática em clima tropical quente e úmido represen- Ao projetar uma edificação visando atender os conceitos do bioclimatismo
ta uma grande ferramenta nas ações que visam a melhoria do conforto térmico e na arquitetura, observa-se a importância de definir estratégias bioclimáticas nos es-
lumínico nos ambientes construídos e a consequente diminuição do consumo de tágios iniciais do projeto, uma vez que à medida que as etapas de projeto vão sendo
energia e do impacto ambiental. realizadas, reduzem-se a liberdade de escolhas e de reelaboração, pois aumentam,
A metodologia para analisar a quantidade de horas de desconforto do arqui- inversamente, as restrições oriundas das interfaces com os demais projetos comple-
vo de dados climáticos horários (temperatura e umidade do ar) do ano climático de mentares. Por exemplo, a orientação da edificação deve ser planejada para receber
uma cidade sobre a carta bioclimática de Givoni (1992) foi usada para identificar as o vento fresco dominante e associada à ventilação cruzada já no estudo preliminar,
estratégias bioclimáticas para o projeto. No caso do Rio de Janeiro, cidade onde se pois nas etapas subsequentes, o projeto já se encontra estruturado.
localiza o CRESESB, a análise de horas de desconforto foi sistematizada na Tabela A ventilação cruzada deve adequar-se às necessidades dos usuários, através
1 e obteve-se que, em 20,8% das horas, o clima externo experimenta o estágio de da correta localização e dimensionamento das aberturas. Tais decisões devem ser
conforto. Das demais horas, que totalizam 6937 horas, 15% são desconfortáveis por complementadas pela escolha de esquadrias capazes de direcionar o fluxo de ar,
frio (total de 1314 horas), em sua maioria resolvidos com massa térmica para aque- seja por retirada de ar quente da camada mais alta do ambiente com direciona-
cimento, e 64,2% são desconfortáveis pelo excesso de calor (total de 5623 horas), mento de fluxo para o usuário, ou somente visando a ventilação higiênica. O uso
sendo 61% solucionáveis com o incremento da ventilação natural. Apenas 3% das de elementos direcionadores do fluxo do ar para o interior da edificação pode ser
horas anuais do Rio de Janeiro, segundo a análise bioclimática, realmente deman- uma opção, quando o vento dominante e as aberturas possuem direções distin-
dam o uso de ar condicionado. tas. Ambientes fluidos permitem que a brisa percorra o maior número de espaços
da edificação. Existe ainda o efeito chaminé capaz de fazer a retirada de ar quente
Zona % horas total % horas
e,consequentemente, forçar a entrada de ar frio.
Conforto 20,8
Elementos externos à edificação como pergolados, brises, varandas e mar-
Desconforto Ventilação 61 64,2
quises garantem o sombreamento e a diminuição da incidência de radiação solar,
por calor
Massa térmica para resfriamento 0,1 permitindo somente a entrada de luz natural. O tratamento do entorno do edifício
Resfriamento evaporativo 0,1 também pode favorecer a diminuição da temperatura do ar que entra nos ambien-
Ar condicionado 3 tes, por exemplo, utilizando-se árvores, arbustos e forrações.
Desconforto Massa térmica para aquecimento 14,8 15
por frio
Aquecimento solar passivo 0,2

Tabela 1 Horas de conforto e desconforto para o Rio de Janeiro. Fonte: Mello, 2006 a partir de Lamberts et
all.,1997.

Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da
316 conforto ambiental e eficiência energética Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 317
4. Descrição do prédio com aplicação dos princípios de Cada parte representa um bloco distinto, todos articulados em torno de um
bioclimatismo que favorecem o conforto ambiental e a jardim: uma área de estar provedora de conforto térmico e visual. Partindo do jardim
em direção à Casa Solar estará o parque de exposições, que abriga equipamentos de
eficiência energética
energia solar e eólica.
4.1. A Localização A FIGURA 2 , a seguir, mostra a planta baixa do projeto de arquitetura, e a
FIGURA 3 uma perspectiva.
O terreno do Centro de Informações do CRESESB localiza-se na cidade do Rio O acesso à edificação é feito pela recepção que, junto com a sala de exposições,
de Janeiro, na Ilha do Fundão, Cidade Universitária, Brasil, Latitude: 22º 51’ S, Lon- forma o bloco central. A partir deste o público tem acesso à sala de aula e à sala de
gitude: 43º 14’ O, nas margens da Baía de Guanabara, conforme mostra a FIGURA 1 estudos, assim como ao jardim externo, para o qual está voltada a copa. O acesso aos
a seguir. escritórios e depósitos é restrito aos funcionários.
Esse bloco central localiza-se
longitudinalmente ao eixo norte-sul.
As fachadas leste e oeste são cegas,
enquanto a norte é composta por
portas pivotantes opacas que funcio-
nam como brises soleil móveis. A facha-
da sul tem grande percentual de área
de abertura, composta por esquadrias
com vidro e aberturas para ventilação
e para acesso externo ao jardim. Essa
FIGURA 1 Localização do município do Rio de Janeiro no estado do Rio de Janeiro e Foto aérea da Cidade grande área de abertura transparente
Universitária com marcação do terreno do projeto. Fonte: Fundação CIDE e Instituto Pereira Passos. é protegida da radiação solar direta,
incidente no mês de dezembro, pelo
4.2. Partido Arquitetônico avanço do beiral da cobertura, com-
plementado pelo sombreamento ofe-
Conforme citado anteriormente, o partido arquitetônico visou a concepção
recido pela árvore (ipê rosa) localizada
de uma edificação que tire partido do meio em que se insere, o que teve início na
na frente desta fachada.
escolha de sua implantação no terreno, privilegiando a orientação desejada e arti-
O segundo bloco abriga a sala
culando os espaços internos de maneira que recebam a insolação e a iluminação
de aula e foi projetado para ser iso-
adequadas.
lado. Para isso, os fechamentos late-
O terreno abriga outros edifícios do Cepel e o Centro será construído nos FIGURA 2 Planta de arquitetura do Centro de Informa- rais foram feitos com paredes duplas
fundos da sede, próximo à Casa Solar Eficiente. O local escolhido para implantação ções do CRESESB.
com colchão de ar, enquanto a co-
do conjunto preserva a vegetação existente, valorizando um frondoso ipê rosa, ao FIGURA 3 Maquete do prédio vista a partir do norte.
bertura foi composta por uma laje
passo que o resguarda da sombra das demais edificações, importante para a capta-
de concreto com camada vegetal. Esta cobertura tem inclinação acentuada, que,
ção e utilização da energia solar através de painéis fotovoltaicos.
conjugada com o nível semienterrado da sala de aula, resulta em um jardim suspen-
O programa fornecido pelo CRESESB foi dividido em três partes funcionais,
so que toca o chão, permitindo acesso ao público. A iluminação natural da sala é
que caracterizam três blocos distintos, porém interligados:
garantida pela esquadria em linha localizada na fachada norte, que contém também
1. Recepção, exposição, copa e sanitários;
portas de acesso independente e/ou escape.
2. Sala de aula;
O terceiro bloco é compartilhado entre o público e os funcionários do Centro,
3. Escritórios, sala de estudos, depósito e sala de utilidades. cuja área de trabalho tem acesso restrito. Essa divisão é feita por um grande armário

Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da
318 conforto ambiental e eficiência energética Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 319
de depósito, que separa os escritórios da sala de estudos. Esta tem uma empena de 8. Uso de tecnologias sustentáveis;
caixilhos de concreto com vidro fixo orientada para Nordeste e, por isso, foi protegi- 9. Utilização de produtos com certificação ISO 14001.
da por uma colmeia de brises. A fachada noroeste, de grande extensão nesse bloco,
tem parede de tijolo deitado e é externamente protegida por vegetação.
4.3. Recursos Bioclimáticos e Tecnologias Eficientes/Inovadoras
Os três blocos têm diferentes alturas e formas, que se unem em um interior
único, centralizado pelo volume que abriga a sala de exposições e o acesso ao con- Foram utilizadas no projeto diversas tecnologias construtivas com o objetivo
junto. É a partir deste espaço que o público tem acesso ao Parque de Exposição, que de tornar a edificação mais sustentável, seja do ponto de vista energético ou ambien-
liga o Centro à Casa Solar existente. tal. Todas elas se relacionam e se complementam de uma forma holística. São elas:
Os espaços de uso frequente e permanente durante o dia – os escritórios – 1. Cobertura naturada;
foram orientados na direção sudeste. Em razão da planta alongada desses espaços,
2. Ventilação cruzada;
foi projetada uma prateleira de luz sobre as janelas para otimizar a distribuição uni-
3. Laje e parede duplas, com colchão de ar;
forme da iluminação natural. A sala de exposição, cujas aberturas localizam-se na
4. Utilização das águas de chuva;
fachada sul, também recebe boa contribuição da luz natural sem ganho de carga
térmica, pois a radiação solar não incide nesta diretamente. 5. Uso racional de água potável com especificação de equipamentos eficientes;
Como ponto de partida, o projeto ficou restrito a uma área de construção pre- 6. Elementos de proteção solar;
viamente estabelecida além de limites orçamentários para a sua construção. Ado- 7. Iluminação artificial eficiente e integrada à natural;
tando critérios de bioarquitetura, o projeto apresenta linhas arquitetônicas diferen- 8. Fontes alternativas de energia – energia solar;
ciadas com soluções criativas para a integração do sistema fotovoltaico conectado 9. Emprego de materiais e equipamentos que garantam conforto ambiental
a rede à edificação (BIPV – Building Integrated Photovoltaics). Os painéis fotovoltai- com eficiência energética: esquadrias, luminárias e ar condicionados.
cos foram integrados à arquitetura em suas condições ótimas de funcionamento,
quanto à orientação e inclinação.
4.3.1. Cobertura naturada
O período de ocupação do Centro de Informações do CRESESB é de 8:00h
às 17:00h, que é o seu horário de funcionamento. Para calcular as horas de descon- Sobre a sala de aula está previsto um jardim visitável instalado sobre uma
forto do período de ocupação da edificação, foram utilizadas as temperaturas BIN laje de concreto com uma camada de drenagem que protege a impermeabiliza-
anuais para o Rio de Janeiro (GOULART et all., 1998). Considerando os intervalos ção. Os objetivos desta cobertura são: reduzir o aporte de águas pluviais à rede
de 7:00h às 12:00h e de 13:00h às 18:00h teremos o total de 4.368 horas anuais, de drenagem urbana, contribuindo para redução de enchentes; aumentar a eva-
das quais 83,77% encontram-se dentro da zona de conforto estabelecida na NBR potranspiração nas áreas urbanas, contribuindo para redução das ilhas de calor;
15220-3. Das horas de desconforto, 1,72% são por frio e 14,51% são por calor. Isso diminuir o aporte de carga térmica no pavimento inferior; utilizar as águas das
justifica a adoção de recursos bioclimáticos do projeto em prol da redução do chuvas; aumentar a vida útil da impermeabilização, já que funciona como exce-
ganho térmico da edificação. lente proteção mecânica.
As diretrizes gerais do projeto foram: O investimento excedente para tornar uma cobertura de laje de concreto
1. Aproveitamento passivo dos recursos naturais; simples em uma cobertura com naturação (vegetal) é relativamente pequeno.
2. Racionalização no uso de energia; O custo de realização de um jardim com drenagem própria sobre a laje exis-
3. Uso de fontes renováveis de energia, transformada na própria edificação; tente foi orçado na época pelo sistema EMOP em R$2.200,00. Adotando-se uma
4. Racionalização do uso da água; vida útil para tal sistema de 20 anos, uma taxa de juros de 12%a.a, chega-se a um
custo anualizado de R$294,50 para a data zero. Por outro lado, o benefício anual ou
5. Qualidade do ar e ambiente interior;
o custo da redução de demanda e de consumo de energia elétrica para o mesmo
6. Conforto termo-acústico;
ano é de R$963,70, considerando-se a redução de energia de 1,13kWh e de demanda
7. Uso da luz natural;
de 2180W, estimativas realizadas por SILVA, 2001; e ainda as respectivas tarifas de
108,00R$/MWh e 442,00R$/kW.

Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da
320 conforto ambiental e eficiência energética Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 321
Para o cálculo dos custos anualizados foi utilizada a Fórmula 1, a seguir, da generalizadas para todas as tipologias arquitetônicas, visto que foram elaboradas
matemática financeira, que transforma um valor inicial em uma série de n pagamen- para determinado tipo de edificação. No caso do Centro buscou-se empregá-las
tos a uma taxa j, pela metodologia do Prêmio PROCEL, 2007. devido à premissa de projeto que valorizou o condicionamento passivo para garan-
tia das condições de conforto do usuário – premissa também comum às edificações
j x (j + 1)n unifamiliares de interesse social. Os sistemas ativos de manutenção do conforto – ar
Assim: Ca = C0 x ____________ (Fórmula 1)
(1+j)n – 1 condicionado e iluminação artificial – foram projetados para serem usados em situ-
ações climáticas extremas ou específicas.
Onde:
Ca – Custo anualizado 4.3.3. Laje e parede duplas, com colchão de ar
C0 – Custo na data zero
Sobre o bloco dos escritórios e sala de estudos foi projetada uma laje dupla
j – Taxa de juros
com colchão de ar ventilado, diminuindo o ganho térmico e também possibilitando
n – Vida útil
testar esta tecnologia construtiva. Já no bloco da sala de aula, foi feita uma parede
dupla também com colchão de ar que, além da redução de ganho térmico, permite
Fazendo então: Ca =_______________________
2200,00 x 0,12 x (0,12 +1) 20 = R$ 294,50
a facilitação da instalação e manutenção dos equipamentos de áudio, vídeo e ilumi-
(1 +0,12)20 – 1 nação deste ambiente.

Uma estimativa da demanda média mensal de energia elétrica foi extraída de


pesquisa realizada por Silva Filho, V. P. (2001), que simulou o comportamento do edi-
fício para diversas opções de cobertura usando o software Visual DOE e está apresen-
tada na FIGURA 4. O resultado obtido comprova que a proposta de uso da cobertura
naturada no projeto permitirá um menor consumo de energia ao longo do ano e iden-
tifica cobertura de telha cerâmica como a proposta de maior consumo de energia.

4.3.2. Ventilação cruzada


De acordo com a Carta Bioclimática para o Rio de Janeiro, a ventilação é uma
estratégia bioclimática indicada em 61% do tempo (ABNT, 2004). Sendo assim, o pro-
jeto utilizou como principal estratégia de ventilação – a ventilação natural cruzada,
que irá viabilizar o conforto térmico na maior parte das horas de desconforto por
calor do ano (64,4%) e, consequentemente, a redução do consumo de energia elé-
trica pelo não uso de ventiladores e outros equipamentos.
FIGURA 4 Gráfico comparativo entre as alternativas de cobertura. Fonte: Silva Jr, V. P., 2007.
A ventilação cruzada permite a circulação do ar dentro do ambiente da sala
de exposição e recepção, renovando o ar e melhorando a sensação térmica no in-
terior da edificação. Os vãos projetados promovem correntes de circulação de ar 4.3.4. Utilização das águas de chuva
na altura do usuário, proporcionando a sensação de frescor pela convecção do ar e
O projeto do Centro de Informações do CRESEB incluiu em seus recursos bio-
evaporação do suor da pele.
climáticos a captação e uso da água da chuva para a rega da cobertura naturada,
A área de ventilação definida respeitou a recomendação de 40% da área do
diminuindo o custo de manutenção extra, decorrente da adoção dessa solução
piso constante na NBR 15220-3: Desempenho Térmico de Edificações Parte 3: Zonea-
construtiva. Assim, foi projetada uma cisterna especial ligada a um filtro de água
mento bioclimático brasileiro e diretrizes construtivas para edificações unifamiliares
que descarta a primeira chuva. Desta há uma ligação de água diretamente com os
de interesse social. Cabe ressaltar que as recomendações da norma não devem ser
pontos de rega.
Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da
322 conforto ambiental e eficiência energética Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 323
De acordo com o Manual de Conservação e Reuso de Água em Edificações custos da água tendem a ser crescentes, na medida em que é esperado o aumento
(2005), produzido pela Agência Nacional de Águas (ANA) e pela Federação das In- do stress hídrico local.
dústrias do Estado de São Paulo (FIESP), a utilização de água da chuva para bacias
sanitárias, limpeza de pisos e rega de jardim deve atender aos padrões de água de
4.3.5. Uso racional da água potável com especificação de
reuso das classes 1 e 3, afim de garantir a saúde do usuário, a vida útil dos sistemas
equipamentos eficientes
envolvidos e a integridade das plantas.
Para o estudo da viabilidade climática e adoção desta tecnologia, observou-se O sistema de abastecimento de água convencional do projeto adotou medidas
os dados das médias mensais de precipitação para o Rio de Janeiro fornecido pelo de conservação de água através de aparelhos eficientes, como bacia de caixa acopla-
Instituto Nacional de Meteorologia. Mesmo para o mês com menor precipitação (até da de baixo consumo (6 litros por descarga) e arejadores para torneiras que mantêm a
40mm), ainda foi possível manter o reservatório de água da chuva abastecido.  vazão constante de 6 litros por minuto. Essa escolha acarreta em grande economia de
O cálculo da viabilidade financeira do uso da água de chuva considerou o água mensal (vide Tabela 2), quando comparada ao emprego de aparelhos conven-
volume da cisterna para irrigação de 25 m3. Esta foi previamente calculada para oti- cionais, com estimativa de retorno de investimento em cerca de 84 dias.
mizar o aproveitamento dos 402 m2 de cobertura do edifício para as pluviosidades Aparelho convencional Aparelho eficiente Economia (%)
mensais do Rio de Janeiro. No período de verão o volume de água captado poderá Bacia sanitária de caixa Bacia sanitária de caixa acoplada com dois 336 litros (35%)
exceder a capacidade de armazenagem da cisterna e será descartada na rede de acoplada: fluxos:
águas pluviais, mas com isso o reservatório não ficará extremamente ocioso nos 160 usuários 160 usuários
6 litros de água por descarga 6 litros de água por descarga (30% dos
meses de estiagem.
casos)
A tarifa da água fornecida pela CEDAE, na época, era de R$ 2,58/1000 l. Uma Total: 960 litros 3 litros de água por descarga (70% dos
vez que a área da cobertura é de 402,00 m2, um reservatório de 25 m3 foi estimado casos)
para otimizar o aproveitamento da água com o melhor dimensionamento, conside-
Total: 624 litros
rando-se a pluviosidade média para o Rio de Janeiro. Os custos englobaram uma
cisterna extra (R$3.000,00), um prolongamento das tubulações pluviais – que existi- Torneira sem arejador Torneira com arejador 800 litros (40%)
200 usuários 200 usuários
riam, de qualquer forma, mesmo sem a instalação do sistema de captação da água
10 litros por minuto 6 litros por minuto
pluvial – (R$100,00) e um filtro (R$800,00). Foram consideradas as respectivas vidas
úteis para estes equipamentos: 50 anos, 50 anos e 20 anos. Total: 2000 litros Total: 1200 litros

Aplicando-se a Fórmula 1, anteriormente apresentada, para obter-se o valor Total geral de economia 1136 litros (38%)
atualizado anual da cisterna, cuja vida útil é de 50 anos, com taxa de juros anual, faz-se: Tabela 2 Consumo de água em aparelhos convencionais e eficientes.

Ca =______________________
3000 x 0,12 x (0,12 +1) 50 = R$ 361,20
4.3.6. Elementos de proteção solar
(1 +0,12)50 – 1
Os brises são reconhecidos por seus benefícios à redução do ganho térmico
O mesmo raciocínio se fez para o filtro, cuja vida útil é menor e para a adap- nas edificações. Neste projeto, eles foram utilizados na fachada nordeste, onde a ra-
tação da tubulação de águas pluviais, chegando ao total anualizado de R$480,40. diação solar incide diretamente durante a maior parte do ano. Uma malha de brises
Já para o cálculo dos benefícios, estes se referem a não utilização da água soleil verticais e horizontais foi disposta à frente da empena construída com caixilha-
potável fornecida pela concessionária (CEDAE), habitualmente usada para irrigar um ria de concreto e vidro, que delimita a sala de estudo, garantindo conforto térmico
grande jardim existente na cobertura e na área adjacente. O benefício anualizado é deste espaço, com pouca redução de luminosidade natural. Também as portas pi-
então o volume economizado em um ano (300 m3), multiplicado pela tarifa da água votantes da entrada principal, voltadas para norte, funcionam como brises verticais
(R$2,58/m3), o que totaliza R$774,00. Usando esta tarifa como constante ao longo móveis, controlando facilmente a incidência solar sobre o interior da recepção.
dos anos, o investimento se pagará em 0,6 anos. Porém, convém lembrar que os

Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da
324 conforto ambiental e eficiência energética Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 325
Ainda visando a otimização do uso da luz natural foram instaladas prateleiras Equipamentos Quant. Vida Útil Custo Custo Energia eco- Redução da Benefício
de luz nas janelas dos escritórios, cuja volumetria alongada dificultaria uma distri- (anos) Inicial anualizado nomizada demanda em
(MWh/ano ) kW
buição homogênea da luz proveniente das aberturas.
Outra medida adotada no projeto foi o emprego de grandes aberturas na facha- Luminária 21 10 2.520 446 0,00 0,00 0,00

da sul, devidamente protegidas da radiação solar direta, tanto pela presença de vegeta- Lâmpada 40W 42 2 179 108 0,00 0,00 0,00

ção no exterior – um frondoso ipê rosa – quanto pelo grande beiral da cobertura. Reator 21 4 420 138 0,00 0,00 0,00
convencional
TOTAL (R$) 3.118,5 692,2     0,00
4.3.7. Iluminação artificial eficiente e integrada à natural    
O partido adotado para a iluminação prevê a complementação da luz natural  Equipamentos Quant. Vida Útil Custo Custo Energia eco- Redução da  Benefício
(anos) Inicial anualizado nomizada demanda em
com a luz artificial obtida com conjuntos de iluminação constituídos de luminárias
(MWh/ano ) kW
refletivas, lâmpadas de alta eficiência luminosa (28 W) e reatores eletrônicos, todos
Luminária 21 6 4.620 1.124     0,0
atendendo à especificação de 70% de rendimento, seguindo recomendações do
Lâmpada 42 4 344 113 1,58 0,50 393,2
Cepel.
28W-16000h
A Relação Custo Benefício para uma situação de substituição do sistema de
Reator eletrônico 21 20 374 50 0,16 0,05 39,3
iluminação convencional – luminárias simples e lâmpadas de 40 W – por sistema TOTAL (R$)   5.338 1.287     432,6
mais eficiente – luminárias reflexivas e lâmpadas de 28 W, considerando o tempo
Tabela 3 Dados para o cálculo da relação custo-benefício (RCB) com uso de equipamentos mais eficientes:
de uso diário para dias úteis de 12 h/dia em 312 dias por ano, o tempo de retorno
tempo de retorno e economia de energia no CRESESB. Fonte: Lomardo e Carneiro, Mello, Rosa, 2007.
do investimento previsto, nessas condições, seria de 1,4 anos ou 17 meses apenas,
considerando-se como benefício o gasto evitado com energia elétrica em termos de ainda considerada distante da realidade brasileira, deverá ter uma importância
consumo e de demanda. Apresentamos na Tabela 3, ao lado, os dados para os cál- mundial crescente num futuro próximo. O prédio será totalmente monitorado por
culos da anualização dos custos dos equipamentos, que foram calculados usando a meio de um sistema de aquisição de dados, que aferirá parâmetros ambientais e de
Fórmula 1, anteriormente apresentada, e a taxa de juros igual a 12% a.a. consumo/geração de energia.
A tecnologia empregada no novo sistema se baseia em painel fotovoltaico
4.3.8. Fontes Alternativas de Energia – energia solar de c-Si (Silício cristalino) e inversores para conexão à rede tipo SunnyBoy, incluindo
uma otimização no dimensionamento do painel fotovoltaico.
A energia solar será convertida em energia elétrica por coletores fotovoltai- Isto indica que a geração de energia total anual será de 5262kWh, e que a média
cos que ocupam uma área de 40 m2. A energia necessária para o prédio será gerada diária anual de geração de energia será de 14,4 kWh. A fração solar desta geração
por células fotovoltaicas, instaladas na cobertura. Foi previsto um sistema sincroni- corresponde a aproximadamente 23% do consumo anual previsto para a edificação.
zado com a rede elétrica local para atendimento dos períodos em que a radiação
solar for insuficiente.
Os sistemas fotovoltaicos conectados à rede geralmente são associados a
uma edificação e realizam a injeção direta de toda a energia excedente na rede elé-
trica, sem qualquer armazenamento em baterias.
O consumo máximo diário de energia elétrica estimado para o Centro é da Gráfico 1
ordem de 95,3 kWh/dia. O consumo anual estimado é de cerca de 22.850 kWh. Para Geração solar
uma previsão mais detalhada do consumo de energia elétrica para iluminação e ar mensal.
condicionado, foi preparada uma simulação com a utilização do programa Visual- Previsão do total
de energia gerada
DOE e os resultados obtidos são mostrados no Gráfico 1 a seguir. (kWh) a cada mês.
O Centro de Informações do CRESESB possuirá um sistema fotovoltaico co- Fonte: Galdino,
2005.
nectado à rede elétrica com potência instalada de 4 kWh. Esta tecnologia, embora
Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da
326 conforto ambiental e eficiência energética Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 327
Faltam dados a respeito dos benefícios ambientais e sociais – emissões evita- Uma vez cumprido todos os pré-requisitos, foi possível manter este nível A.
das, áreas não alagadas, etc. – que também deveriam ser considerados na avaliação Por fim, com a aplicação da equação geral, concluiu-se que o edifício atingiu nível
do custo-benefício desta proposta. global A de eficiência energética.

4.3.9. Materiais e equipamentos utilizados: esquadrias, luminárias Ambiente Iluminância Área (m2) Coef. de DPIA EqNumDPI Nível Resultado

e ar condicionados. (lux) ponderação (W/m2) ponderado

Sala de 300 58,34 0,19 13,58 1 E 0,19


As alvenarias projetadas são duplas e de blocos de concreto para vedação, estudos
cujo colchão de ar garante pouco ganho térmico para as edificações no Rio de Janei- Utilidades 200 3,07 0,01 10,42 3 C 0,03
ro (Mello, 2006). Os vidros especificados para as janelas são do tipo verde, também Circulação 100 13,95 0,04 7,31 1 E 0,04
mais indicados para o clima local quanto à redução do ganho térmico. Escritório A 1000 13,48 0,04 14,69 5 A 0,20
Todas as luminárias especificadas apresentam refletância mínima de 70%, Escritório B 1000 13,48 0,04 14,69 5 A 0,20
seguindo as recomendações do Cepel/Eletrobrás, e todos os aparelhos de ar con- Escritório C 1000 13,48 0,04 14,69 5 A 0,20
dicionado especificados são do tipo split e classificados, na época do projeto, na Cabine de 300 3,37 0,01 14,24 3 C 0,03
categoria A, logo com o Selo Procel. As unidades condensadoras foram sombreadas controle
para criar um ambiente que otimize seu funcionamento e seu consumo energético. Tablado 500 10,81 0,03 22,57 5 A 0,15
Sala de 300 59,17 0,19 16,49 1 E 0,19
aula
5. Avaliação da eficiência energética do edifício através da WC feminino 150 3,07 0,01 12,70 1 E 0,01

aplicação do regulamento técnico da qualidade, RTQ-C WC 150 3,07 0,01 12,70 1 E 0,01
masculino
(INMETRO, 2009) Copa 300 7,85 0,02 13,38 4 B 0,08
Área de 500 50,57 0,16 9,00 5 A 0,80
Com o objetivo de verificar a eficiência energética do edifício projetado, a exposições
equipe do Laboratório de Conservação de Energia e Conforto Ambiental da Univer- Circulação 100 5,02 0,02 13,15 1 E 0,02
sidade Federal Fluminense (LabCECA/ UFF) aplicou o RTQ-C (Inmetro, 2009) pelo banheiros
método prescritivo. Para obtenção da etiqueta global, foram avaliados os três que- Recepção 500 52,52 0,17 12,28 4 B 0,68
sitos isoladamente: a envoltória e seus pré-requisitos específicos, o sistema de ilumi- Total 311,25 C 2,75
nação artificial e seus pré-requisitos específicos e, por fim, o sistema de condiciona-
Tabela 4 Determinação do EqNumDPI do sistema de iluminação dos ambientes.
mento de ar com seus pré-requisitos específicos. Então, foi verificada a possibilidade
da pontuação de bonificação. 5.1. Determinação do nível de eficiência energética da envoltória
O sistema de iluminação artificial atingiu o nível C, com equivalente numérico
igual a 2,75, conforme a Tabela 4 a seguir. Com base nos desenhos de arquitetura já mostrados anteriormente foram
Todos os ambientes de permanência prolongada são condicionados artifi- calculadas as áreas necessárias para a avaliação da eficiência da envoltória, que são:
cialmente e o sistema alcançou o nível A, com EqNnumCA igual a 5, conforme a área de projeção do edifício, área total de piso, área de projeção da cobertura, todas
Tabela 5, na página 332. com o mesmo valor, uma vez que o edifício possui apenas um pavimento com co-
bertura que abrange toda a área ocupada. Com isso, definiu-se o fator de altura,
A envoltória atingiu nível A de eficiência, com correspondente equivalente nu-
com valor igual à unidade.
mérico igual a 5 e este artigo dá destaque à avaliação deste quesito, uma vez que ele
Em seguida, foi calculada a área da envoltória como o somatório das áreas de
está diretamente ligado às decisões de arquitetura do edifício, assim como a ênfase
fechamento opaco, envidraçados e cobertura. Para obtenção do fator de forma, foi
é dada ao quesito de bonificação relacionado às soluções de projeto arquitetônico.
calculado o volume total do edifício, do qual foi excluída a área interna não ocupada,

Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da
328 conforto ambiental e eficiência energética Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 329
Ambiente Área (m2) Coef. de EqNum CA Nível Resultado
ponderação ponderado Onde:
Recepção, área de 111,98 0,37 5 A 1,85 FA = 1, uma vez que a área de projeção da cobertura é igual à área total de piso;
exposições e copa
FF = 0,44
Sala de estudos 58,34 0,19 5 A 0,95
PAFT = 0,18
Circulação 13,95 0,05 5 A 0,25
FSponderado = 0,64
Escritório A 13,48 0,05 5 A 0,25
AVSponderado = 24,16
Escritório B 13,48 0,05 5 A 0,25
Escritório C
AHSponderado = 37,59
13,48 0,05 5 A 0,25
Sala de aula e 76,47 0,25 5 A 1,25 Em seguida, os limites máximo e mínimo dos indicadores de consumo foram
cabine de controle obtidos, alterando-se os parâmetros de percentual de abertura nas fachadas total,
TOTAL 301,18 A 5 fator solar e ângulos de sombreamento vertical e horizontal. Seus valores estão
Tabela 5 Determinação do EqNumCA do sistema de condicionamento de ar dos ambientes. apresentados na Tabela 6, a seguir:
Eficiência A B C D E
conforme ilustra o Esquema 1. Valor este adotado no cálculo do índice de consumo
Lim Mín – 462,23 466,38 470,52 474,67
da envoltória (ICenv), mesmo sendo inferior ao limite estabelecido para etiquetagem
de edifícios, definido como área de projeção mínima de 500m2. Tabela 6 Limites dos intervalos dos níveis de eficiência do edifício analisado.

Para o cálculo do percentual de aberturas nas fachadas, foi calculada inicial-


Lim Máx 462,22 466,37 470,51 474,66 –
mente a área total de fachada, que inclui a área de fechamento opaco somado à área
de envidraçado. Valor este adotado no cálculo do índice de consumo da envoltória O ICenv obtido determinou a classificação A para a envoltória do edifício, garan-
(ICenv), já que o edifício não possui aberturas na fachada oeste, o que minimiza o tindo-lhe o equivalente numérico (EqNumEnv) igual a 5, ilustrado na FIGURA 5 a seguir:
ganho térmico pelos envidraçados.
Para determinação do potencial de
sombreamento do edifício, foram calcula-
dos os ângulos de sombreamento vertical
FIGURA 5 Indicação do nível A de efici-
e horizontal. A preocupação com o som-
ência energética da envoltória (Inmetro,
breamento proporcionado pelos brises 2009).
da fachada noroeste, pela cobertura em
balanço, pela prateleira de luz (lightshelf) 5.1.1. Verificação do atendimento aos pré-requisitos
na fachada sudeste e pelo próprio prédio específicos da envoltória
(auto-sombreamento) auxilioua redução
Esquema 1 Indicação do volume do prédio Após este cálculo, foi verificado o cumprimento aos pré-requisitos específi-
dos ganhos de calor no interior e é uma
calculado. cos – transmitância da cobertura, transmitância das paredes, absortância das pare-
vantagem contabilizada neste quesito.
des e cobertura e percentual de aberturas zenitais.
Uma vez que o edifício possui diversos tipos de vidro – incolor 4mm que per-
O projeto de arquitetura prevê a construção de diversos tipos de cobertura.
mite maior ganho térmico, verde 4mm e temperado verde 6mm que permitem me-
Aquela sobre os escritórios é composta por materiais isolantes térmicos sobre a laje
nores ganhos – os valores de fator solar foram ponderados pelas áreas e o resultado
de concreto, combinadas à câmara de ar ventilada sobre segunda laje de concreto
foi usado na fórmula para calcular o índice de consumo da envoltória (ICenv):
e, internamente provida de rebaixo em gesso, que forma uma segunda câmara de
ar, esta não ventilada.
ICenv = 454,47 . FA – 1641,37 . FF + 33,47 . PAF T + 7,06 . FS + 0,31 . AVS – 0,29 . AHS –
A cobertura sobre parte central do prédio, que abriga a área de exposições
1,27 . PAF T . AVS + 0,33 . PAF T . AHS + 718 = 454,11
e recepção, é provida de isolamento térmico sobre laje de concreto e rebaixo em

Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da
330 conforto ambiental e eficiência energética Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 331
gesso internamente. Por fim, a cobertura do bloco onde se situa o auditório é na- O prédio prevê a instalação de painéis fotovoltaicos, uso de energia eólica e
turada, o que garante bom isolamento térmico, reduzindo os ganhos de calor no captação de águas pluviais, o que confere pontos de bonificação.
interior, inclusive pelo incremento da perda de calor pela cobertura e evapotrans- De acordo com Lomardo et all.(2007), a simulação realizada com o software
piração das plantas. Deste modo, as características das coberturas possibilitaram o VisualDOE comprovou que a fração solar (que corresponde à fração do consumo
cumprimento do pré-requisito transmitância térmica das coberturas, comprovadas coberta pela geração solar) da geração de energia com os painéis fotovoltaicos cor-
através dos cálculos realizados. responde a aproximadamente 21% do consumo anual previsto para a edificação. A
Para cálculo da transmitância das paredes, sua capacidade térmica foi pon- geração de energia eólica pode ser considerada irrisória para o prédio (sua fração
derada, uma vez que são compostas por diversos materiais, assim como suas trans- corresponde a cerca de 0,2%). Mas os 21% correspondentes à energia fotovoltaica
mitâncias, obtendo-se um valor final enquadrado nos limites permitidos para esta garante ao edifício o ponto de bonificação.
Zona Bioclimática. O uso de aparelhos eficientes (bacia de dois fluxos e arejadores) permitirá
As absortâncias, diretamente dependentes das cores das coberturas e pare- uma economia de 38% no consumo de água, o que ultrapassa a economia mínima
des, foram também ponderadas por suas áreas e, desde que as coberturas – exceto de 20% para a bonificação de racionamento de uso de água.
a naturada – sejam pintadas com cores claras – o que não é definido em projeto –,
estarão dentro dos valores permitidos para a Zona Bioclimática em questão. 5.3. Classificação final
Por fim, uma vez que o percentual de abertura zenital é baixo, com o valor
de 0,07%, a envoltória poderá manter sua classificação A, desde que o fator solar Após a avaliação dos sistemas de iluminação e condicionamento artificiais e
máximo do elemento transparente das aberturas zenitais localizadas nos banheiros somado o ponto de bonificação, o projeto do edifício atingiu nível A de eficiência
seja 0,87, o que é atendido com a utilização de vidro comum. Porém, vale reforçar energética, conforme demonstrado na equação a seguir:
que a utilização de vidros com espessura de 3mm não é indicada.
A Tabela 7 apresenta os valores obtidos para o edifício: PT = 0,3 x {(EqNumEnv x AC/AU) + (APT/AU x 5 + ANC/AU x EqNumV)} + (0,3 x EqNu-
Nível Transmitância térmica da Cores e absortância de Iluminação
mDPI) + 0,4 x {(EqNumCA x AC/AU) + (APT/AU x 5 + ANC/AU x EqNumV)} + b01 = 5,326
cobertura e paredes exteriores superfícies zenital

A Ucobmáx = 0,86 W/m2K Coberturas: PAZ = 0,07% Onde:


< Ucobmáx permitido (1,0 W/m2K Para ZB8, αmáxcoberturanãoaparentes OBS: Para EqNumEnv 5
para condicionadas e 2,0 W/m2K para = 0,4 cumprir este
EqNumDPI 2,75
não condicionadas) pré-requisito,
OBS: Para cumprir este pré- EqNumCA
o FS máximo 5
Upar = 2,3 W/m2K requisito, as superfícies
deve ser 0,87 AU (m²) 310,39
< Uparmáx (3,7 W/m2K para devem ter cores claras,
ZB8 com capacidade térmica > 80kJ/ exceto a cobertura verde, AC (m²) 301,18
m2K que é permitida ANC (m²) 0
αparede = 0,2 APT (m²) 9,21
< αmáxparedes (0,4 para ZB8)
Para manutenção deste nível foram avaliados os pré-requisitos gerais, que
Tabela 7 Pré-requisitos específicos da envoltória.
exigem circuito elétrico com possibilidade de medição centralizada por uso final
5.2. Bonificações (iluminação, sistema de condicionamento de ar e outros); o uso de sistema eficiente
para aquecimento de água, caso haja demanda; bombas de água centrífugas eti-
Quanto às bonificações, o RTQ-C (Inmetro, 2009) define que: quetadas Inmetro; e controle inteligente de tráfego. No caso deste edifício, apenas
1. sistemas que racionalizem o uso da água devem proporcionar economia o pré-requisito de bombas etiquetadas deverá ser obedecido e especificado em
mínima de 20% no consumo anual, o que equivale a um ponto de bonificação. projeto, uma vez que o prédio não apresenta demanda para aquecimento de água
2. energia eólica ou painéis fotovoltaicos devem proporcionar economia nem elevadores.
mínima de 10% no consumo anual de energia.

Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da
332 conforto ambiental e eficiência energética Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 333
6. Conclusões Referências bibliográficas

A elaboração deste trabalho serviu à integração da graduação com a pós- AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS, FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SÃO PAULO.
-graduação, enriquecendo e sendo enriquecido por atividades de diferentes pes- Manual de Conservação e Reuso de Água em Edificações, São Paulo, 2005.

quisas, o que provê uma sinergia muito interessante aos trabalhos de extensão, ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICASNBR 15220-3: Desempenho térmico de
ensino e pesquisa. edificações – Parte 3: Zoneamento bioclimático brasileiro e diretrizes construtivas
para habitações unifamiliares de interesse social, Rio de Janeiro, 2005.
A principal função do Centro de Informações do CRESESB é difundir o uso de
tecnologias energeticamente eficientes, notadamente a solar e a eólica, com efeito FONSECA, I.; CAMINHA, T.; SOARES, I.; SOUZA, J. ; LOMARDO, L.B.L – Relatório científico
“Pesquisas para conservação de energia elétrica”: aplicação do Regulamento Técnico
multiplicador de demonstrar como construir aproveitando os recursos naturais dis-
da Qualidade do Nível de Eficiência Energética de Edifícios Comerciais, de Serviços e
poníveis e as tecnologias eficientes, o que será alcançado com esteprojeto. As técni- Públicos no prédio do CRESESB, Convênio Eletrobrás n.º ECV280/2008, LABCECA – UFF/
cas apresentadas são todas replicáveis nas residências, escolas, unidades comerciais Eletrobrás, 2009.
e industriais e a oportunidade será dada pelo acesso à informação disponibilizada GALDINO, M. A. et al.Implantação do Centro de Informações do CRESESB. In: I CBENS – I
pelo projeto. Congresso Brasileiro de Energia Solar. Fortaleza: ABENS – Associação Brasileira de
Algumas tecnologias aplicadas no Centro já são financeiramente viáveis pela Energia Solar, 2007.
ótica da sociedade. Outras, só o serão em um futuro próximo dado os custos cres- GIVONI, B. Man, Climate and Architecture. London:Applied Science Publishers Ltd., 1976.
centes dos recursos ambientais.
GOULART, S.; LAMBERTS, R.; FIRMINO, S. Dados climáticos para projetos e avaliação energética
O estudo de conforto ambiental e eficiência energética do projeto compro- de edificações para 14 cidades Brasileiras. 2ª edição. Florianópolis: Procel, 1998.
vou a eficáciade um bom projeto de arquitetura, que, mesmo com restrições orça-
LAMBERTS, R.; DUTRA, L.; PEREIRA, F. O. R. Eficiência Energética na Arquitetura. São Paulo: PW, 1997.
mentárias, alcançou um excelente resultado plástico e levou em conta as caracterís-
LOMARDO, L.; MELLO, E.; GALDINO, M.; SILVA, P.; MIDÃO, F.; VALLIM, A. Análise Energética do
ticas climáticas locais, constituindo um bom exemplo de arquitetura bioclimática.
Prédio do Centro de Informações do CRESESB.In: Seminário Nacional de Produção e
Decisões de arquitetura em fases iniciais de projeto, como implantação, uso Transmissão de Energia Elétrica, 2007.
de áticos ventilados, instalação de brises e demais elementos de sombreamento nas
MELLO, E. N. Desempenho térmico de blocos para vedação – avaliação comparativa de células-
fachadas, poucas aberturas na fachada oeste, grandes envidraçados com controle teste em Niterói – RJ.Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Programa
do ganho térmico, cores claras em fachadas e coberturas, cobertura naturada e ma- de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal Fluminense,
teriais de construção que proporcionem baixa transmitância térmica, somadas ao Niterói. 2006.
bom projeto de aberturas proporcionando ventilação cruzada interior, são alguns LOMARDO, CARNEIRO, MELLO, ROSA, 2007 – Memorial justificativo do Prêmio PROCEL 2007
dos recursos que põem em prática as recomendações de Givoni (1992) – a impor- – Projeto do CRESESB.
tância da ventilação e do sombreamento – para o clima tropical quente e úmido do Ministério de Minas e Energia/Comitê Gestor de Indicadores e Níveis de Eficiência
Rio de Janeiro e que garantem a eficiência energética de um projeto de arquitetura. Energética/ Grupo Técnico Edificações do MME/Secretaria do Grupo Técnico de
Somadas às tais decisões, a previsão de instalação de painéis solares, o uso Edificações – GT Edificações/Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e
racional de água e a captação de água da chuva para reuso em irrigação se somam Qualidade Industrial/ Eletrobrás/Procel/Equipe do Procel Edifica/Laboratório
de Eficiência Energética em Edificações. Etiquetagem de Eficiência Energética de
como medidas que enfatizam que a sustentabilidade pode ser um diferenciador na
Edificações, volume 1, 2009.
qualidade final do produto arquitetônico.
. Regulamento Técnico da Qualidade do Nível
A aplicação do RTQ-C (Inmetro, 2009) evidencia a importância da especifica-
de Eficiência Energética de Edifícios Comerciais, de Serviços e Públicos, Anexo da Portaria
ção em projeto de pequenos detalhes e quesitos que devem ser atendidos, e por INMETRO n° 163 /2009, volume 2, 2009.
isso devem fazer parte de licitações a partir de então, como: definição de cores claras
para a envoltória, indicação de fator solar baixo para grandes áreas envidraçadas,
dentre outras informações relevantes para garantir os níveis máximos de eficiência.

Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da
334 conforto ambiental e eficiência energética Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 335
Empresa de Pesquisa Energética/ EPE – Anuário Estatístico da Eletricidade 2013. ­ . PLANEJAMENTO E GESTÃO DO TERRITÓRIO:
7
SILVA FILHO, V. P. Simulação Computacional do Projeto – Centro de Informação CRESESB:
avaliação do desempenho termoenergético e da relação custo x benefício do elemento PERSPECTIVA URBANA E REGIONAL
cobertura. Dissertação (Mestrado em Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo) – Universidade Federal Fluminense, Orientador: Louise Land Bittencourt
Lomardo, 2007.
1 Globalização e metrópole.
A relação entre as escalas global
e local: o Rio de Janeiro
Glauco Bienenstein

Resumo | Este artigo trata da reconfiguração de processos econômicos globais e suas reper-
cussões nos espaços metropolitanos brasileiros, tendo o Rio de Janeiro como campo empíri-
co. Argumenta-se que o padrão contemporâneo de gestão e realização da riqueza, orientado
por uma lógica expansiva caracteristicamente seletiva (somente alguns setores da econo-
mia) e excludente (apenas alguns segmentos sociais nela envolvidos), tem determinado um
padrão de gestão, investimento e produção do espaço urbano, também seletivo (somente
algumas parcelas da cidade) e excludente (apenas algumas poucas classes são beneficiadas),
conformado pela superimposição do critério de viabilidade econômica capitalista vigente
desde o final do Século XX. Assim sendo, o trabalho encontra-se dividido em três partes. A
primeira, de cunho teórico-conceitual, verifica-se a pertinência e o estatuto teórico do termo
globalização, enquanto expressão do novo regime de acumulação, calcado numa dinâmica
econômica predominantemente seletiva e excludente. Em seguida, discute-se a nova geo-
grafia do mundo, tendo em vista o atual regime de acumulação, e suas repercussões sobre
o mundo e a vida, concentrando a atenção nos desdobramentos de tais repercussões nas
cidades, especialmente no que se refere ao fenômeno do “empresariamento” urbano. O Rio
de Janeiro é então tomado como caso referência. O recorte temporal delineado é a década
de 1990, notadamente a partir do primeiro governo do Sr. César Maia (1993-1997), quando as
formas de planejamento e gestão da cidade foram modificadas de forma contundente, repo-
sicionando a referida metrópole no mapa da competitividade urbana brasileira e mundial,
Agradecimentos
resgatando, inclusive, a centralidade da referida metrópole no contexto da urbanização bra-
Á Eletrobrás, que vem apoiando o Laboratório de Conservação de Energia e Conforto Ambiental – LABCECA na aplica-
ção do RTQ-C em prédios, com bolsas de Iniciação Científica e de Professor Especialista. sileira, cuja posição havia sido perdida e/ou obscurecida para a cidade de Curitiba (período
Ao CNPq, que igualmente vem apoiando o LABCECA, com bolsas DTI-2. Jaime Lerner como prefeito da cidade (1971-1974, 1979-1982 e 1989-1992).
Aos bolsistas de Iniciação Científica que colaboraram durante a aplicação do RTQ-C, Tom Caminha e Igor Soares.
Abstract | This paper deals with the reconfiguration of the global economic processes
Ao engenheiro mecânico Jairo Francisco R. P. de Souza, autor do projeto de ar condicionado do CRESESB e consultor na
aplicação do RTQ-C e ao engenheiro Vitor Carneiro da Silva, pelos cálculos financeiros. and their impact in the Brazilian metropolitan areas, taking Rio de Janeiro city as an empiri-

336 conforto ambiental e eficiência energética Glauco Bienenstein 337


cal object. We argue that the impact of this regime can already be felt in the urban space of el Sr. César Maia asumió su primer mandato como alcalde de la ciudad. Desde entonces, la
peripheral capitalism. It is identified, on the one hand, in the discourse and practices of an metrópoli carioca ha sido colocada en el mapa de la competitividad urbana mundial, resca-
urban administration that can be seen as an expression of competitive integration. On the tando, inclusive, la centralidad de la referida metrópoli en la urbanización brasileña, cuya
other hand, it is also present in the manufacturing of objects that, due to the complexity of posición había sido perdida para la ciudad de Curitiba desde los anos 1970, a lo largo de las
their programs and functions, express the selectivity (of investments) and the segmenta- administraciones del arquitecto Jaime Lerner (1971-1974, 1979-1982 e 1989-1992).
tion (social-spatial) which characterize these times of recognized exclusionary development.
Thus, the paper is divided in three parts. In the first part, delineating the theoretical construct
of the article, the importance and theoretical status of the term globalization is analyzed as Globalização e metrópolea relação entre as escalas
an expression of the new regime of accumulation grounded on an economic dynamic which global e local: o Rio de Janeiro
is predominantly selective and exclusionary. Thus, delineating the empirical procedure it is
first pointed out the new world geography as a result of the present accumulation regime No presente trabalho, parte-se da orientação oferecida por Harvey (1996, p.
and its main effects in the cities, highlighting the so-called urban entrepreneurialism. As it 48) de que é necessário investigar o papel exercido pelo processo urbano no atual
was mentioned before, Rio de Janeiro is here taken as a case study, focusing the last decade redesenho da “distribuição geográfica das atividades humanas e da dinâmica políti-
of the former century, when the city had passed through a radical change in the ways of co-econômica do desenvolvimento geográfico desigual.” Esta proposta se inscreve
being managed. That period was inaugurated in 1993, when Mr. César Maia first took office na compreensão da importância e da centralidade assumidas por espaços e lugares
as Rio’s mayor (1993-1997). Since then, the ways of dealing with a complex city such as Rio de de diferentes escalas geográficas nos processos sociais e econômicos, que, por sua
Janeiro have been considerably changed in order to insert it in the world city competition vez, podem não somente redefinir a importância e o papel de escalas historicamen-
market as well as in the Brazilian urbanization process given that it was surpassed by Curitiba te construídas, como criar outras (Swyngedouw, 1997).
(capital city of Paraná state) during the seventies and eighties, under the terms of architect Assim sendo, argumenta-se que o padrão contemporâneo de gestão e realiza-
Jaime Lerner (1971-1974, 1979-1982 e 1989-1992). ção da riqueza, orientado por uma lógica expansiva caracteristicamente seletiva (so-
Resumen | El artículo trata de la reconfiguración de los procesos económicos globales y mente alguns setores da economia) e excludente (apenas alguns segmentos sociais
sus impactos en los espacios metropolitanos brasileños, tomando la ciudad de Rio de Ja- nela envolvidos), tem determinado um padrão de gestão, investimento e produção do
neiro como campo empírico del estudio. La principal argumentación de la reflexión es que espaço urbano, também seletivo (somente algumas parcelas da cidade) e excludente
el patrón contemporáneo de la gestión y de realización de la riqueza capitalista actual es (apenas algumas poucas classes são beneficiadas), conformado pela superimposição
orientado por una lógica expansiva característicamente selectiva (solamente algunos secto- do critério de viabilidade econômica capitalista vigente neste final de milênio.
res de la economía) y excluyente (apenas algunos segmentos sociales han sido beneficiados), O referido padrão realiza-se através de um regime de acumulação específico
ha determinado un patrón de gestión, inversión y producción del espacio urbano, también – de caráter financeiro – cuja dinâmica econômica apoia-se, predominantemente, na
selectivo (solamente algunas parcelas de la ciudad han sido beneficiadas) y excluyente (ape- apropriação de riqueza por meio de atividades especulativas “baseadas em posições
nas algunas clases sociales han sido incluidas), que, a la vez, ha sido conformado por inter- nos mercados imobiliário, financeiro e nas transações comerciais” (Chenais, 1997a,
medio de una inaudita imposición del criterio de viabilidad económica capitalista presente p.4), no contexto de uma paradoxal articulação entre as circulações financeira e in-
en el mundo desde el fin del siglo pasado. El trabajo es dividido en tres partes. La primera, dustrial. Desse modo, destaca-se a emergência da financeirização (Braga, 1997),1
de carácter teórico-conceptual donde se verifica la pertinencia y el estatuto teórico de la enquanto padrão sistêmico de riqueza do capitalismo contemporâneo, globalmente
globalización, como expresión del actual régimen de acumulación, que ha sido basado en dominante.
una dinámica económica predominantemente selectiva y excluyente. Después se hace una Este quadro tem repercutido nas diversas escalas sócio-geográficas, promo-
reflexión sobre la nueva geografía del mundo contemporáneo, con miras al actual régimen vendo diversas transformações e constrangimentos nas formas de administrar e
de acumulación y sus repercusiones en el mundo y en la vida, con especial atención al fe- produzir as aglomerações humanas, especialmente aquelas localizadas nos países
nómeno del “empresariamiento” urbano. La ciudad de Rio de Janeiro es entonces tomada do capitalismo periférico.
como un caso referencia. El recorte temporal es la década de 1990, cuando las formas de
planeamiento y gestión urbana han sido bastante cambiadas, reposicionando la ciudad en 1. Essa noção é aqui compreendida na perspectiva de Braga (1997: 195), para quem “A dominância financeira – a fi-
nanceirização – [constitui-se na] expressão geral das formas contemporâneas de definir, gerir e realizar riqueza no
el mapa de competitividad mundial de ciudades. Este periodo se inauguró en 1993, cuando
capitalismo”.

338 Globalização e metrópole Glauco Bienenstein 339


As novas formas de gestão – empresarial – de cidades, a crescente privatiza- através do “esforço estratégico bem-sucedido de restauração da hegemonia [capi-
ção da vida cotidiana – interiorizada em complexos objetos urbano-arquitetônicos talista] mundial dos EUA, posta em xeque durante os anos 1970” (Tavares, 1997),
(Santos, 1997, p.170) – e o aumento da miséria, da exclusão e da violência urbana em cujos reflexos têm repercutido, sobremaneira, na escala planetária, sobre diversas
virtude das significativas alterações do mundo do trabalho, constituem algumas das esferas da vida, da economia e da política, conformando/identificando-se com o
formas manifestas do mencionado padrão nas grandes cidades, notadamente na- que tem sido denominado de globalização.
quelas que fazem parte do circuito mundial de valorização financeira e patrimonial, O termo “globalização” encontra-se consagrado. Difundido pela mídia, vul-
nestes tempos conformados por “um novo ciclo de ’compressão do tempo-espaço’ garizou-se, ganhando “numerosos adeptos no universo político-ideológico” (Cou-
na organização do capitalismo” (Harvey, 1992, p.7). tinho, 1995, p. 21). Indicando um processo considerado inexorável, ao qual todos
Sugere-se que este conjunto de expressões pode ser lido como produto das devem se submeter, o mencionado termo tem servido para qualificar e/ou justificar
novas formas de gestão e realização da riqueza capitalistana cidade, distintas daque- uma diversidade de fatos e processos relacionados às políticas macroeconômicas
las que caracterizaram o explosivo crescimento da economia mundial do pós-guerra, que vêm sendo adotadas no bojo de ajustes estruturais, especialmente aqueles le-
estimulador de considerável expansão da urbanização (Hobsbawm, 1995), no con- vados a cabo em países ditos emergentes.
texto do que é denominado de “fordismo”. Nesse sentido, é aqui assumido que as No presente trabalho, parte-se do entendimento de que o capitalismo vem
transformações em curso na economia, iniciadas nas duas últimas décadas, já pos- experimentando, especialmente a partir da década de 1980, “um modo de funciona-
suem uma dimensão social e física visível em nossas cidades, intrinsecamente articu- mento específico – e de diversos pontos de vista importantes e novos” (Chesnais,
lada ao regime de acumulação e/ou desenvolvimento em curso na escala mundial. 1997b, p. 19) que caracterizam uma fase peculiar de seu desenvolvimento.
Dessa maneira, tendo-se em mente que a atual dinâmica econômica global- Os novos conteúdos da acumulação capitalista na escala planetária têm
mente dominante tem, através de um paradigma totalizador e homogeneizador, apontado para uma conformação da economia mundial que envolve dimensões
submetido aos mesmos imperativos os diversos planos da vida e da sociedade, aí “tecnológicas, organizacionais, políticas, comerciais e financeiras que se relacionam
incluídas a urbanização e as cidades do mundo contemporâneo, indaga-se: de maneira dinâmica gerando uma reorganização espacial da atividade econômica
1. Como os mencionados imperativos têm repercutido em espaços metropo- e uma claríssima re-hierarquização de seus centros decisórios” (Fiori, 1995, p.220).
litanos brasileiros, aqui compreendidos como loci atraentes de valorização do capi- Ou seja, é a partir de um significativo rearranjo sócio-geopolítico da dinâmica eco-
talismo periférico? nômica – predominantemente financeira – que se pode afirmar a emergência de
2. Quais são os instrumentos, dispositivos e novas instituições relacionados à “um novo modo de funcionamento sistêmico do capitalismo mundial ou, em outros
gestão urbana que o setor público vem lançando mão para o enfrentamento e/ou termos, de uma nova modalidade de regime de acumulação” (Chesnais, 1997a, p.4).
adequação às referidas repercussões? Dessa maneira, refletir sobre as transformações em curso na dinâmica eco-
3. Do ponto da vista da produção, quais são os novos produtos e/ou objetos nômica capitalista, implica considerar três “questões estratégicas”, as quais Braga
os quais, através da reorganização de funções e espaços que abrigam novas formas (1993) resume da seguinte forma:
de gestão e realização da riqueza, têm reconfigurado o espaço e a vida cotidiana das 1. Dominância financeira ou financeirização do capitalismo, com origem
supracitadas metrópoles? na década de 1960, ligada à “instabilidade e [às] transformações contemporâneas
A indicação de algumas das possíveis respostas a tais indagações materializa do capitalismo norte-americano”, principalmente a partir do denominado credit
o principal desafio deste trabalho que tem a cidade do Rio de Janeiro como campo crunch;2
empírico. 2. Formatação das corporações capitalistas contemporâneas que, longe de
manifestarem o tradicional recorte setor produtivo versus setor financeiro, apresen-
tam-se enquanto macroestruturas financeiro-industriais que têm experimentado
Globalização e capitalismo contemporâneo: velozes transformações;
breve comentário

Do ponto de vista da economia política das relações internacionais, o atual 2. Resumidamente, o Credit Crunch pode ser entendido como o momento (1966) em que a economia norte-americana
processo de reestruturação econômica na escala mundial pode ser compreendido experimenta uma situação próxima de um colapso financeiro, “da magnitude daquele que se verificou na virada para a
década de 1930” (Braga, 1993, p.33),

340 Globalização e metrópole Glauco Bienenstein 341


3. Emergência, nos planos nacional e internacional, de uma paradoxal dinâ- relativa e a reorganização econômica plena de incertezas. Ou seja, através de uma
mica econômica, correspondente a “mudanças nas formas de movimento do siste- paradoxal articulação entre as circulações financeira e industrial, observa-se uma
ma [onde] as crises e reestruturações obedecem a processos distintos em relação a dinâmica econômica cujo movimento especulativo, convivendo com a inserção de
outros momentos históricos”. inovações técnicas, combina crescimento econômico com desemprego estrutural
Nesse contexto, a fugacidade das formas de valorização do capital é viabiliza- e determina alterações da estrutura ocupacional e das oportunidades de emprego,
da pela articulação entre diversas inovações financeiras e técnico-produtivas, impri- aumentando o quadro de miséria e exclusão. 3
mindo alta velocidade à realização dos investimentos. Tais inovações permitem uma Nesse sentido, poder-se-ia enunciar duas questões que orientam este trabalho:
nova cadência à dinâmica econômica que, a partir de novos arranjos entre liquidez 1. em contraste com as tentativas pretéritas de expansão generalizada do
e imobilização de capital, engendra o atual padrão de desenvolvimento capitalista denominado regime “fordista”, que apontava para a “a elevação geral do nível de
dos países centrais. Um processo que articula crescimento com inflação controlada, vida das grandes massas” (Chesnais, 1997 a, p. 4), quais seriam os desdobramentos
num ambiente de turbulência e fragilidade financeira que, aos poucos, vai tomando socioeconômicos e espaciais do novo regime de acumulação mundial predominan-
conta da economia mundial (Braga, 1993). temente financeiro que está calcado em atividades essencialmente especulativas?4
Neste quadro que aponta para crescente instabilidade econômica e globali- 2. Quais seriam as expressões socioespaciais decorrentes da mudança em
zação financeira, materializa-se um padrão multifuncional de organização da eco- curso, no regime de acumulação nos grandes centros urbanos do país, consideran-
nomia que articula diferentes esferas de valorização do capital. A disponibilidade do a sua inserção periférica na dinâmica capitalista na escala mundial?
e a consequente incorporação de inovações tecnológicas e métodos organizacio- Sugere-se que a espacialização do atual regime de acumulação, em contraste
nais expressivos da concorrência intercapitalista levaram à queda de barreiras entre com o período“fordista” estimulador de um boom imobiliário abrangente (habita-
setores, empresas, mercados e nações, promovendo um amplo leque de tipos de ção principalmente) (Hobsbawm, 1995), venha a indicar uma considerável expan-
fusão entre formas de riqueza e engendrando complexas e intrincadas corporações são seletiva dos investimentos urbanos. Ou seja, o regime de acumulação em curso,
financeiro-industriais na escala global (Braga, 1993; Dedecca, 1996). baseado na financeirização da riqueza, tende a espacializar-se de maneira fragmen-
Tais corporações, assim como os novos movimentos gerais de valorização do tada, espelhando intenso processo de concentração de capital e riqueza, principal-
capital que emergem dessa configuração na escala mundial, dão substância ao que mente nos países do capitalismo periférico.
Braga (1993, p. 57) denomina de “paradoxo da financeirização” que se processa “(...)
no âmbito de uma macro estrutura financeira internacionalizada – formada por cor-
porações privadas e bancos centrais – [e], se expressa na valorização dos diversos
Reestruturação econômica e espaços metropolitanos:
ativos financeiros numa velocidade superior à expansão mundial da produção e do algumas notas
comércio de bens e serviços.”
Nesse sentido, ao nível econômico mundial, tornam-se ainda mais complexas A nova geografia do mundo é, na dominância do atual regime de acumula-
as formas de articulação entre moeda, crédito e patrimônio, conformando um padrão ção, conformada no radical e claro delineamento social, econômico e político das
de gestão e realização da riqueza capitalista razoavelmente diferente do anterior, nações hegemônicas, de um lado, e na não menos radical (embora não tão clara)
cujas características gerais sintetizam-se na: (I) instabilidade do sistema monetário subserviência do que resta no mundo, de outro.
internacional, onde o padrão dólar, apesar de problemático, não encontra outro que O jogo de interesses (articulados ou não) das nações da Tríade, 5 sob a égide
o substitua; (II) volatilidade das taxas de juros; (III) incerta paridade entre moedas, im- dos Estados Unidos (EUA), tendo em vista suas iniciativas visando a reconstrução
pedindo uma estabilidade monetária razoavelmente duradoura; (IV) estruturação da de sua hegemonia na escala global, tem moldado um receituário que propugna
defesa da riqueza e do patrimônio através de macroestruturas financeiro-industriais; crenças, ações e decisões a serem tomadas pelas demais nações, considerando sua
(V) ciclos tecnológicos inovadores, curtos e rápidos, com base nos segmentos eletro- 3. Dessa maneira, “[a] problemática desta dinâmica é a de uma instabilidade estrutural – marcada por flutuações
-eletrônico e metal-mecânico; (VI) intensificação da capitalização e da realização da de perfis mutáveis e por uma tensão entre expansão e estagnação relativa no longo prazo – distinta, portanto, de
momentos pretéritos do capitalismo em que ocorriam grandes depressões e ‘crashes’ financeiros generalizados” (Braga,
riqueza fictícia através da articulação mercado-Estado (Braga, 1993, p.44). 1993, p.57).
Tais aspectos indicam a dimensão da reestruturação capitalista deste final de 4. Adota-se aqui a noção de “regime de acumulação”, termo este emprestado da “teoria da regulação”, no sentido
marxista (Chesnais, 1997b, p.20).
século, que tem como principais elementos a inflação, o desemprego, a estagnação
5. Bloco formado pelo Japão, EUA e Europa.

342 Globalização e metrópole Glauco Bienenstein 343


inserção na considerada inexorável dinâmica da globalização. Desse receituário, a Assim sendo, uma série de iniciativas administrativas passa a constar do re-
questão da competitividade alcança proeminência, passando a ditar as políticas ceituário a ser seguido pelos diversos (e “modernos”) governos locais, promovendo,
desregulacionistas e/ou flexibilizadoras que, como instrumento privilegiado na cap- inclusive, a homogeneização das atitudes de um considerável leque de administra-
tação de recursos, permeiam tanto a geografia política mundial quanto as diversas dores, dos mais variados matizes políticos e ideológicos.
nações e suas respectivas regiões e espaços de importância econômica, tais como Deste receituário, destacam-se três iniciativas mutuamente determinadas:
as metrópoles. formação de parcerias entre o setor público e a iniciativa privada; implementação
Dentre as diversas medidas que os EUA tomaram para a retomada de sua de novos instrumentos e instituições voltadas para o governo urbano; desregulação
hegemonia econômica e política, acredita-se que duas foram de singular relevância e/ou flexibilização do aparato legal da cidade.
para o revival das cidades. Trata-se da redução da carga tributária sobre o consumo, Nesse contexto, “(...) governos locais e regionais tornaram-se mais salientes
especialmente de bens duráveis, e do financiamento de investimentos no setor ter- assim como indústrias tornaram-se mais diversificadas e moveram-se para além das
ciário e nas indústrias de alta tecnologia (Tavares, 1997, p.39-40)6. normas fordistas e da produção de massa de larga escala padronizada (...).” (Hirst e
Talvez, por essa via, se possa entender a ressurreição, ainda que problemáti- Thompson, 1998, p.361).
ca, das cidades que, com a falência da velha estrutura produtiva-comercial de que A forma que esta concepção/tendência foi alardeada e assumida mundo
tanto dependiam, passam a enfrentar um quadro de crise, cujos contornos mais afora acarretou, especialmente no capitalismo periférico, a competição – insana –
sensíveis são percebidos através de problemas relativos à erosão de sua base eco- entre lugares, aí incluídas as metrópoles. Consubstancia-se então um dos aspectos
nômica e fiscal. da estratégia ideológica da globalização – tudo que a ela se opor estará não somen-
O enfrentamento desse quadro de crise foi e tem sido tratado na perspectiva te contra a força da modernidade como, também, fadado ao fracasso. Assim sendo,
do que Harvey (1996, p.49) denomina de “empresariamento urbano”, ou seja, a for- todas as esferas da vida social – Estado, legislação, meio ambiente – são contamina-
mação de um complexo espectro de coalizões sócio-políticas visando a organização das pela retórica da competitividade.
do espaço da cidade, com o objetivo de adequá-la à atual dinâmica econômica, ou Articuladas às tendências econômicas desses tempos de competitividade
seja, de inseri-la no atual circuito de reprodução e valorização capitalista. Nessas interurbana, tais iniciativas indicam algumas das principais saídas através das quais
coalizões, o governo urbano constitui-se num dos principais agentes do complexo as cidades buscariam escapar da estagnação, o que repercute decisivamente em
conjunto de forças que passam a lidar com a cidade, organizando suas feições e sua urbanização.
estrutura espacial e social (Harvey, 1996, p.52). Ainda no nível do receituário prescritivo, surgem, a partir de experiências que
Nesse sentido, o empresariamento urbano percorre um caminho que, longe dos obtiveram bons resultados na inserção competitiva de contextos urbanos, grupos
períodos anteriores caracterizados por políticas de redistribuição de renda (habitação, de consultores técnicos que, a exemplo das agências supranacionais de regulação
saúde, educação, por exemplo), privilegia um comportamento empresarial com rela- macroeconômica, transformam-se em referência técnica no que concerne à gestão
ção à gestão e à produção da cidade, visando o seu ajuste ao quadro de possibilidades urbana, difundindo, através da venda de serviços e orientações, diretrizes para a
que tem sido delineado pelas transformações econômicas das duas últimas décadas7. resolução dos “problemas urbanos”8.
Além disso, na medida em que as dificuldades enfrentadas pelas cidades, a
6. “(...) Apesar de terem perdido a concorrência comercial para as demais economias avançadas e mesmo algumas
partir das mudanças na economia,têm redundado no acirramento de problemas di-
semi-industrializadas, nos produtos de tecnologia de uso difundido, os EUA estão investindo fortemente no setor
terciário e nas novas indústrias de tecnologia de ponta, na qual esperam ter vantagens comparativas. Os EUA não versos na vida cotidiana (miséria, violência, degradação espacial), tanto as expecta-
parecem interessados em sustentar sua velha estrutura produtiva-comercial. (...)” (Tavares, 1997, p.46-47).
tivas sociais quanto a sociabilidade urbana acabam sendo afetadas9.
7. Esta tendência é resumida de forma clara e objetiva por Harvey (1996, p.50), quando afirma que “[h]á uma concor-
dância generalizada de que a mudança [de comportamento das administrações urbanas] tem algo a ver com as dificul-
dades que atingiram as economias capitalistas desde a recessão de 1973. Desindustrialização, desemprego, aparen-
temente “estrutural” e generalizado, austeridade fiscal tanto a nível nacional como local, combinados com uma onda
crescente de neoconservadorismo e um apelo muito mais forte (conquanto mais frequente na teoria do que na prática) 8. A consultora catalã Tecnologies Urbanas Barcelona S. A (TUBSA) constitui-se num exemplo emblemático.
à racionalidade do mercado e da privatização, fornecem um quadro para compreender porque tantos governos locais, 9. Tal como Harvey (1996, p.51) ressalta, “[a] urbanização também configura certos arranjos institucionais, formas legais,
muitas vezes de diferentes conotações políticas e munidos de diferentes poderes legais e políticos, tomaram todos sistemas políticos e administrativos, hierarquias de poder e similares. Estes também dão à “cidade” qualidades objetu-
uma direção bastante semelhante. A maior ênfase na ação local para combater tais males também parece ter algo a ver ais que podem dominar as práticas diárias e conduzir a uma cadeia de ações subsequentes. E, finalmente, a consciência
com o declínio dos poderes do Estado-Nação no controle do fluxo monetário internacional e os poderes para maximi- dos habitantes urbanos é afetada pelo conjunto de experiências do qual derivam percepções, leituras simbólicas e
zar a atratividade local para o desenvolvimento capitalista. Pelas mesmas razões, o crescimento do empresariamento aspirações. Em todos estes aspectos há uma contínua tensão entre forma e processo, entre sujeito e objeto, entre ati-
urbano pode ter tido um papel importante numa transição geral na dinâmica do regime de acumulação de capital vidade e coisa. É tão tolo negar o papel e o poder de reificação, a capacidade das coisas que criamos de retornar a nós
(fordista-keynesiana) para um regime de “acumulação flexível” (...)”. enquanto formas de dominação, como atribuir a tais coisas a capacidade para a ação social.” (Sem grifo no original).

344 Globalização e metrópole Glauco Bienenstein 345


Nesse sentido, observa-se que as pautas de recuperação das cidades, tendo querido que sua realização seja empreendida por agentes de singular centralidade
em vista sua inserção competitiva, têm incluído orientações que têm acirrado e peculiaridade na cena sócio-política urbana. Nesse sentido, prefeitos e/ou admi-
a dialeticidade entre o dinamismo do capitalismo atual, de corte excludente, e a nistradores urbanos carismáticos e líderes empresariais destacados compõem o rol
emergência de situações e/ou constrangimentos impeditivos da competitividade de possíveis agentes capazes de instaurar e direcionar o denominado empresaria-
propriamente dita. Assim, as referidas orientações, na impossibilidade de produzir mento urbano.
alteração na dinâmica capitalista, acabam por tratar apenas de seus sintomas. Dessa Este processo adquire substância a partir da unificação e/ou integração de rei-
forma, têm-se, de um lado, administradores e cidadãos (especialmente aqueles in- vindicações locais com o objetivo de “tentar atrair fontes externas de financiamen-
cluídos na esfera do consumo) que afirmam seu direito de buscar alternativas para to, novos investimentos diretos ou novas fontes geradoras de emprego” (Harvey,
o desenvolvimento da cidade. Por outro lado, há a emergência e o incremento de 1996, p. 52). A montagem dessa pauta determina a reforma do próprio perfil do
grupos sociais excluídos, produto da atual dinâmica da acumulação. governo local, estimulando diversas alterações que reconfiguram as concepções de
Surge então uma antinomia entre incluídos e excluídos expressiva do fato governo e as demandas sociais.
de que todos os envolvidos são, essencialmente, habitantes da cidade. Porém, não No rol dessas parcerias se inscrevem aquelas iniciativas concentradas no de-
se trata de uma cidade em abstrato. Trata-se de uma cidade que, por constituir-se senvolvimento pontual e, não mais, conforme na época “fordista”, centradas no ter-
produto de uma relação social específica do capital, só reconhece como cidadãos ritório, visando a melhoria das condições de determinado grupo sócio-geográfico
aqueles inscritos na esfera do consumo. Ou seja, uma cidade onde o homem não se de maior porte. Aí se incluem empreendimentos imobiliários e programas de reci-
constitui um ser genérico real, onde a noção de clagem de um determinado segmento da mão-de-obra local.
Além disso, no bojo do processo de empresariamento urbano, também
liberdade não se baseia na união do homem com o homem, mas, pelo
contrário, na separação do homem em relação a seu semelhante. [Desse
ocorre a emergência de instrumentos e instituições voltados para a agilização do
modo, a] liberdade é o direito a esta dissociação, o direito do indivíduo de- governo urbano, segunda importante diretriz visando a competitividade. Ou seja,
limitado, limitado a si mesmo (...). Nesse contexto, “[a] aplicação prática do tais instrumentos e instituições têm como um de seus principais objetivos a otimi-
direito humano da liberdade é o direito humano à propriedade privada” zação do aproveitamento de oportunidades de investimento e financiamento con-
(Marx, s/d, pp. 27-31-71 – grifo no original). substanciadas em diversas formas de valorização/acumulação.
Nesse sentido, no que se refere aos instrumentos, destaca-se o planejamento
Fica, assim, esclarecido o caráter aparente da mencionada antinomia. Num di- estratégico, foro privilegiado de discussão de reivindicações, projetos e prospec-
reito orientado pela propriedade privada, o uso de força se legitima e é ratificado pela ções orientadas pelo interesse empresarial. Tal instrumento vem ocupando o lugar
emergência de iniciativas que reforçam a dinâmica sob a qual tudo isso engendra10. de outros – tais como, no caso brasileiro, dos planos diretores – que eram (e, de
Visando a complementação destas notas, serão detalhadas três diretrizes certa maneira, ainda são) identificados e elaborados a partir de uma perspectiva
gerais do receituário estimulador da competitividade urbana anteriormente indica- que reconhecia o papel central dos governos locais como estabilizadores da socie-
das. Este movimento permite esclarecer algumas das principais tendências e aspec- dade capitalista, a partir das reivindicações realizadas, por exemplo, por associações
tos relativos ao lugar das cidades no atual processo de reestruturação econômica comunitárias, grupos de defesa do meio ambiente (Harvey, 1996, p.52).
em curso no mundo. Ainda no âmbito desta diretriz, destaca-se a criação de novas instituições que
A primeira delas, ou seja, a formação de parcerias entre o setor público e a buscam organizar, perseguir e realizar atividades com fins lucrativos, constituindo-
iniciativa privada constitui-se talvez num dos principais pilares das novas feições e -se em outra iniciativa dirigida à promoção econômica da cidade. É muitas vezes a
estrutura do governo urbano sintonizado na competitividade. partir delas que se desenvolve o que tem sido denominado de city marketing, atra-
Tais parcerias se estruturam no bojo de alianças e coalizões que configuram vés de, por exemplo, desburocratização de procedimentos da máquina administra-
o novo perfil dos governos das cidades. A complexidade dessas parcerias tem re- tiva pública, promoção de feiras, festivais, exposições e campanhas promocionais.
A “flexibilização” do aparato legal, notadamente no que diz respeito à regu-
10. O uso contumaz da força pública policial passa então a ser incluído no rol de iniciativas relativas à gestão urbana. lação do uso e da ocupação do solo urbano, constitui-se a terceira e última diretriz
O discurso do resgate dos espaços públicos aos “habitantes” da cidade constitui-se num dos campos privilegiados
de tal iniciativa. Esta tem sido a forma através da qual algumas administrações locais têm tratado, por exemplo, dos
voltada à adequação da cidade aos requisitos da competitividade. Ela está calcada
camelôs, moradores de rua – especialmente nas áreas centrais de grandes capitais e áreas nobres invadidas por sociais na noção de redução dos custos locais.
excluídos.

346 Globalização e metrópole Glauco Bienenstein 347


Muitas vezes, sob a alegação de que a legislação existente emperra iniciati- zação do capital e novas sociabilidades. Valorização que resulta da emergência de
vas, retendo possíveis investimentos na cidade, a desregulação e/ou flexibilização novos investimentos, formatações jurídico-administrativas, saberes e serviços de-
do aparato legal pode adquirir considerável importância, acarretando, inclusive, a correntes da concepção e da localização desses empreendimentos. A nova sociabi-
legitimação de processos centralizadores do poder e da autoridade. lidade (hábitos, modos de vida e usos do espaço urbano) surge no bojo da crescente
A propósito da inserção de inovações no urbano visando o aumento da com- privatização e “guetificação” da vida cotidiana nestes objetos, tendo em vista a sua
petitividade, vale destacar a centralidade atribuída à dimensão do consumo11. configuração físico-funcional. Estes processos, por sua vez, alimentam e definem
Já se observam essas tendências em algumas cidades brasileiras, dentre elas outras modalidades de escassez e segregação, favorecendo a dinâmica de acumula-
a cidade do Rio de Janeiro. ção urbana. Isto é, o acirramento da exclusão coloca, através desses objetos, novas
Os constrangimentos da atual dinâmica da acumulação, principalmente no possibilidades de acumulação na cidade13.
que se refere à exclusão (social) e à ampliação da fragmentação socioespacial das ci- Tais empreendimentos reúnem funções urbanas em áreas da metrópole capi-
dades, articulados às possibilidades instauradas pelas inovações técnicas – especial- talista contemporânea, moldadas por uma modernização pontual e/ou compulsó-
mente no campo das telecomunicações e da gerência administrativa – têm acarreta- ria, especialmente a partir dos anos de 1980. As diversas estratégias acionadas por
do a introdução de novos objetos na malha urbana. A peculiaridade físico-funcional seus empreendedores e administradores, visando garantir o maior prolongamento
de tais objetos, a sua inserção seletiva e pontual, tem implicado no redesenho da de sua vida útil, complementam o delineamento de uma importante face da atual
paisagem, configurando, inclusive, novas formas de pensar e fazer a arquitetura12. urbanização, repleta de contrastes.
Além dos shopping centers, é importante acrescentar enquanto novas ex- Nesse sentido, ressalta-se que a crescente importância de tais objetos cons-
pressões materiais da dimensão do consumo, as configurações arquitetônicas que titui-se num indicador de que, mais uma vez, a dinâmica capitalista, sem eliminar
combinam funções anteriormente dispersas na paisagem das cidades. Neste grupo, nenhuma de suas contradições, reconfigura-se justamente através do novo patamar
destacam-se os centros hoteleiros de convenções e os centros de entretenimento, – excludente – de sua dinâmica. O caso dos shopping centers, nesse particular, é, na
lazer e consumo. história recente da urbanização capitalista, o mais emblemático.
Na perspectiva de Santos (1997, p.200), esses objetos presentes no cotidiano Ainda sobre a importância dos mencionados objetos, torna-se necessário
das grandes cidades do mundo capitalista “(...) dão margem a uma nova modalidade destacar dois aspectos: definem uma nova escala, configurada pela articulação de
de escassez, e a uma nova segregação.” Instauram com isso novas formas de valori- duas outras, a urbana e a arquitetônica, e, pela reprodução de um ambiente livre
11. Este processo é também apontado noutra indicação de Harvey (1996, p.54-55), bastante esclarecedora destes
de contradições, vêm adquirindo crescente relevância nas cidades, especialmente
tempos de desenvolvimento excludente. “Uma região urbana pode também aumentar sua situação de competitividade quando se trata de analisá-los no contexto urbano dos países de capitalismo perifé-
a partir da divisão espacial do consumo. Isso é mais do que simplesmente atrair dinheiro para uma região urbana através
de atrativos turísticos e/ou destinados a aposentados. O estilo consumista da urbanização pós 1950 promoveu uma rico, marcados por contrastes ainda maiores entre opulência e miséria.
base ainda maior para participar do consumo de massa. Se, por um lado, a recessão, o desemprego e o alto custo dos
financiamentos diminuíram essa possibilidade para significativas parcelas da população, por outro lado, ainda persiste
um grande poder de consumo (em grande parte alimentado pelo crédito). (...) Os investimentos, no intuito de atrair
o consumo, paradoxalmente se aceleram como reação à recessão generalizada; cada vez mais se concentram na O Rio de Janeiro no devir competitivo: contexto e
qualidade de vida, na valorização do espaço, na inovação cultural e na elevação da qualidade do meio urbano (inclusive
a adoção de estilos pós-modernistas de arquitetura e de desenho urbano), nos atrativos de consumo (estádios, centros
particularidade
de convenções, shopping centers, marinas, praças de alimentação exótica), entretenimento (...) se tornaram facetas
proeminentes das estratégias da renovação urbana. Acima de tudo, a cidade tem que parecer como lugar inovador,
excitante, criativo e seguro para viver, visitar, para jogar ou consumir (...)”. Como não poderia deixar de ser, no Brasil, a questão da competitividade al-
12. A transcrição a seguir indicada do trecho de artigo publicado em revista especializada da área de arquitetura e cança proeminência, materializando-se nas diversas políticas desregulacionistas e/
urbanismo ilustra esta indicação. “Agregando valores e incorporando tecnologias de ponta, a Torre Norte [um dos
edifícios que compõem o Conjunto Empresarial Nações Unidas, que está sendo implantado na Marginal Pinheiros,
ou flexibilizadoras como instrumento privilegiado na captação de recursos. Nesse
em São Paulo], recém-inaugurada em São Paulo, é celebrada como exemplo de vanguarda arquitetônica da era pós- sentido, instaura-se um projeto de modernização que, sob a alegação da indispen-
-industrial ou de uma nova ordem geopolítica mundial. E se credencia como paradigma para os projetos de edifícios
de escritórios no país. (...) Anunciada como modelo de vanguarda no país, a Torre Norte, (...) se soma a outros ícones
sável inserção do país na globalização, vincula o aumento da competitividade in-
e campanários da Marginal-Berrini [importante e recente eixo comercial e empresarial da cidade de São Paulo], como terna à reestruturação de diversas instâncias do Estado e da sociedade, atingindo
a Nestlé (ex-Philips), World Trade Center, D&D, Robocop, o Birman 21, entre tantos, configurando, com seus compo-
nentes cenográficos ou simbólicos, o diagrama de uma paisagem conectada cada vez mais ao circuito de uma ordem direitos e conquistas sociais garantidos pela Constituição Federal de 1988. A retórica
mundial movida a números, dígitos e estatísticas, que foge de nossa compreensão [sic]. À semelhança de outras torres,
que emergem na Ásia, na Europa e na América, ela se encaixa, com certeza, no conceito da nova “geopolítica dos ar-
ranhas céus” (Fulvio Irace, Lotus 101), que se seguiu à abertura do mercado internacional. Assim, a torre foi projetada 13. As oportunidades de valorização do capital através desses empreendimentos adquirem tamanha importância, que
para sediar grandes empresas internacionais, como a Microsoft”(Wolf, 1999, p.88). passam a fazer parte do portfólio de diferentes tipos de investidores, especialmente em tempos de crise de liquidez.

348 Globalização e metrópole Glauco Bienenstein 349


do aumento da competitividade articulada à globalização espraia-se nas cidades les que podem conferir à cidade elementos expressivos de dinamismo e moderni-
brasileiras de grande porte, favorecendo leituras voltadas ao desenvolvimento de dade. Tais elementos, segundo os apologistas dessa concepção, permitem reerguer
sua capacidade competitiva individual. – física, econômica e socialmente – a área objeto de intervenção, difundindo suas
Sintonizadas com o novo ideário – que secundariza o modelo de desenvolvi- vantagens a outras escalas e locais da cidade.
mento baseado na eficiência e na igualdade através do privilégio atribuído à efici- No que diz respeito à cidade do Rio de Janeiro, ressaltam-se indicações rela-
ência e à competitividade – a gestão de cidades adquire novo formato. Além disso, tivas à inflexão da política urbana, frente ao novo cenário econômico internacional
o incremento das contradições sociais nas cidades tem determinado a emergência e nacional.
de novos e complexos objetos arquitetônico-urbanos que, interiorizando determi- Em primeiro lugar, pode-se afirmar que, desde a gestão César Maia (1992-
nadas funções antes localizadas na via pública, instauram uma segunda natureza 1996), a denominada crise de paradigma, associada a processos econômicos e só-
razoavelmente adequada à redefinição da dinâmica econômica. cio-políticos originários do final dos anos de 1960 e concretizados nos anos de 1970
No – aparente – ocaso do Estado como principal vetor de desenvolvimento e e 1980, modificou-se de maneira emblemática. Pelo que se pode perceber, há em
gestão urbana, as parcerias público-privadas passam a conduzir a pauta de desen- curso na cidade do Rio de Janeiro um deslocamento nas formas de pensar e agir
volvimento e investimento das cidades. sobre o urbano por parte do Executivo Municipal, em direção a concepções e práti-
Esta pauta é operacionalizada através de instrumentos de gestão que, levan- cas identificadas com o “empresariamento” da administração urbana (Harvey, 1996).
do em conta os agentes privilegiados nas decisões e destinos da cidade, e tendo em Não sem constrangimentos o Executivo Municipal do Rio de Janeiro vem,
vista o novo padrão de acumulação e investimento, consagrarão objetivos, institui- desde 1992, buscando explorar tendências socioeconômicas mundiais, na tentativa
ções e os papéis a serem desempenhados pelos administradores das aglomerações de adequar e/ou articular a cidade ao contexto da atual reestruturação capitalista, a
urbanas14. partir de uma perspectiva periférica.
Nesse contexto, a flexibilização do aparato legal de base “fordista” e o plano Do ponto de vista da administração do espaço urbano, essa trajetória se con-
estratégico como instrumento meramente indicativo adquirem importância e formou no conjunto de políticas tais como o esvaziamento do Plano Diretor Decenal
centralidade, conformando-se como nova práxis de regulação e planejamento da e a diversificação/fragmentação da política urbana, a qual, por sua vez, permitiu
cidade na era da desregulação competitiva, razoavelmente distinta do approach a valorização de outros instrumentos de gestão. No bojo desse conjunto podem
normativo expressivo das demandas do capital da “época de ouro” que caracterizou também ser incluídas a flexibilização e/ou desregulação da base legal da cidade e
o período após a Segunda Guerra. o planejamento estratégico. Tais iniciativas lançaram as bases para o que tem sido
Além disso, numa outra escala de concepção e intervenção, também se des- denominado de “planejamento negocial”,15 que, pelo que pôde ser apreendido na
tacam aqueles instrumentos que promovem a requalificação da imagem da cidade, pesquisa realizada junto aos técnicos da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
leia-se da imagem física de parcelas da cidade. (PCRJ), significa um novo arranjo jurídico-administrativo de gestão da cidade. Jurídi-
A absorção desta nova racionalidade, associada à atração de investimen- co porque, como não poderia deixar de ser, requer uma base legal, ainda que fluida,
tos através da instauração de um clima de “dinamismo” e “modernidade”, conduz e administrativo porque traz à cena da gestão urbana uma nova articulação e/ou
à redução da escala de intervenção. Nessa perspectiva, as propostas e as práticas formatação público-privada no fazer e refazer a cidade.
voltadas para a requalificação de setores e/ou parcelas da cidade ganham corpo, Neste cenário, sob a alegação da necessidade de atrair recursos, investimen-
respondendo às necessidades dos novos gestores da cidade no fazer e no refazer a tos e desenvolvimento para o município, face às características do novo regime de
cidade. Nesse movimento, o desenho pontual expressa a forma pela qual a cidade acumulação vigente, a escala do planejamento da cidade tem sido reduzida, espe-
deverá ser tratada, substituindo antigas prescrições normativas – e generalizantes – cialmente no que se refere à implantação de grandes – e, muitas vezes, polêmicos
correlatas ao regime fordista. – projetos16. Assim sendo, pode-se inferir que à fragmentação aparente da dinâmi-
Os espaços a serem privilegiados e/ou contemplados pelas intervenções pú- ca econômica atual corresponde a fragmentação real das formas de planejamento e
blicas são aqueles que possibilitam maior fluidez de informação e de capital e aque-

15. Esta denominação é, às vezes, substituída por outra, “planejamento adaptativo” e/ou “gerenciamento negocial”
14. A nova atitude a ser tomada por tais administradores também se configura através do esgotamento do padrão de (Portas, 1999: 2). Neste interessante artigo, o autor articula de forma clara alguns dos principais elementos estruturan-
intervenção do Estado em seus diversos níveis de governo, promovendo o colapso do tradicional padrão de financia- tes da “política urbana” vigente na atualidade na cidade do Rio de Janeiro.
mento das políticas públicas e inviabilizando o que foi aqui denominado de “fordismo” periférico. 16. Talvez se possa também compreender tais projetos como “projetos de grande visibilidade” (Portas, 1999, p.1-2).

350 Globalização e metrópole Glauco Bienenstein 351


produção da cidade.Não se trata mais de estabelecer parâmetros ditos “rígidos”, mas te-se ao fato de que, em nenhum momento das entrevistas realizadas, a equipe téc-
sim regras flexíveis (“modernas” – sic), compatíveis com a fluidez de todo o sistema17. nica da PCRJ, que aparentemente tão bem internalizou o referido conceito, soube
Esta forma de atuar sustenta e articula novos instrumentos e instituições de de fato esclarecê-lo. As observações aqui feitas com relação ao caráter estreito da
gestão nos seus diversos níveis e/ou escalas de proposição/intervenção. Nesse sentido, requalificação de áreas através de ações pontuais não significam sua linear conde-
nação. A crítica encontra-se centrada no fato de que sua adoção enquanto instru-
O adjetivo “negocial” denota, aliás, mais uma consequência do que um
ponto de partida: o que se pretende é requalificar a cidade (no sentido
mento privilegiado tem acontecido de forma desconectada de uma política urbana
alargado) atuando por intervenções concretas sempre e onde é possível mais abrangente.
reunir um conjunto de condições físicas e fundiárias e de agentes públicos Alguns, talvez, podem alegar que este tipo de política já se encontra con-
e privados dispostos a passar do “poder fazer” ao “fazer mesmo”; e aquilo templada no Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro, especialmente nas es-
que mais efeitos benéficos possam trazer aos sistemas da cidade. (...) O tratégias nº 2 “Rio acolhedor” (que inclui o projeto Rio Cidade) e nº 3 “Rio integra-
caráter negocial deste processo [de descoberta de áreas e organização da
do” (que inclui o projeto Favela–Bairro). Contudo, ao se considerar, por exemplo, o
intervenção] tem, obviamente, regras diferentes das da negociação cor-
rente entre privados, pela transparência, pelos limites irrenunciáveis do processo de elaboração do referido plano e a amplitude dos diversos projetos nele
interesse público em presença, pela visão estratégica ou do plano existen- elencados, percebe-se a afirmação de perspectiva bem distinta daquela delinea-
te, ainda que com menos rigidez ou mais interativa. E mesmo quando se da pelo Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de Janeiro, talvez, um dos últimos
trata de intervenções que envolvem apenas entidades públicas, a nego- resquícios do discurso normativo modernista e, portanto, portador de um proje-
ciação existe e, por vezes, com obstáculos mais difíceis de ultrapassar, por to – ainda que utópico – mais abrangente, para a cidade, neste final de milênio19.
bons ou maus motivos...18(Portas, 1999, p.3 – grifo no original). No que se refere ao processo de reconfiguração de papéis e poderes no
âmbito da administração municipal, destaca-se não somente o redesenho da estru-
Porém, não foi percebida junto aos técnicos da PCRJ entrevistados a im- tura administrativa propriamente dita da prefeitura do Rio, como também a criação
portância para a negociação do que Portas (1999) chama de “visão estratégica ou de instituições que têm na Agência Rio e na Secretaria Especial para Assuntos Es-
do plano existente”. Ou seja, a ideia de que há que se ter algum tipo de orientação tratégicos as expressões mais contundentes da nova concepção de gestão urbana
de fundo nas intervenções, sejam elas de qualquer escala e/ou natureza, não está carioca nesses tempos de competitividade. Desnecessário dizer que, nesta reconfi-
muito clara para parte da equipe técnica da Prefeitura. guração, a posição privilegiada é ocupada pelos interesses privados.
O tão propalado binômio plano–projeto, conceito chave na nova formata- Considerada uma iniciativa inspirada pelo prefeito Luiz Paulo Conde, a Agên-
ção do discurso e da prática do planejamento urbano implementado pelo Executivo cia de Desenvolvimento da Cidade do Rio de Janeiro, Agência Rio, foi criada em
Municipal, especialmente desde 1996 (gestão Luiz Paulo Conde), embora do ponto junho de 1997 com o objetivo de realizar uma interface entre a iniciativa privada
de vista teórico surja contextualizado na dinâmica e nas projeções da cidade, tem e o Executivo Municipal, viabilizando projetos de interesse da cidade20. Esta insti-
sido, de acordo com as entrevistas realizadas, adotado de forma relativamente solta.
Dessa maneira, a crítica à desarticulação dos elementos do referido binômio reme- 19. Talvez, não por acaso, Portas (1999) articule as ideias de sua interessante contribuição, a partir da ideia-força de
preenchimento de vazios urbanos, destacando a “atuação por projetos” como um dos caminhos e/ou possibilidades a
serem privilegiados: “A oportunidade de reaproveitamento do vazio [urbano] em conformidade com o planejamento
17. É sugestivo desta diretriz o trecho, abaixo transcrito, de um artigo de um dos mais importantes mentores da nova (revisto quando necessário), porém resultando da negociação caso a caso em termos de obrigações e benefícios, cria
concepção (e/ou pauta) de gestão e planejamento assumida pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro. “Vazios ur- as condições necessárias e suficientes para uma atuação por projetos que se caracteriza por ser não uma previsão, mas
banos, oportunidades estratégicas, planejamento adaptativo, gerenciamento negocial e projetos urbanos. Eis alguns sim uma operação concretizável no terreno que, se espera, tenha sobre seu entorno efeitos de contaminação positiva.”
conceitos que nas últimas duas décadas do século aparecem com frequência associados, conotando um estilo de pla- (Portas, 1999, p.2 – grifo no original). Desta indicação, entende-se que é importante destacar a concepção de gestão
nejamento dito “pós” ou “transmoderno”, assumido pelas políticas e práticas urbanísticas, invocando razões práticas baseada na negociação (ainda que somente para o aproveitamento de vazios urbanos) caso a caso, no contexto de um
de operacionalidade, raramente justificadas pelo discurso teórico. Dir-se-ia responderem a uma inevitabilidade, mais contínuo processo de revisão das diretrizes de planos. Cabe indagar até que ponto esta correlação entre plano e proje-
envergonhada à esquerda do que à direita, mais aceita pela urbanística do que pelo direito, mais perturbadora no seio to (representada pelas propostas de reaproveitamento de vazios urbanos) pode ser trabalhada no sentido de garantir
da tradição de planejamento europeia do que anglo-americana. (...) Por isso, planejamento adaptativo (com regras de algum projeto mais abrangente – espacial e temporalmente falando – de cidade e de sociedade (local). Pelo que se tem
jogo em vez de parâmetros) e gerenciamento negocial são as duas caras de uma mesma e nova moeda. Assumindo, observado, esta concepção tem funcionado muito mais no sentido de legitimar a dinâmica urbana moldada às atuais
quer do nosso conhecimento do funcionamento dos sistemas urbanos, quer a insuficiência de recursos públicos para necessidades do capital do que propriamente sugerir um projeto de cidade e sociedade mais adequado às necessida-
assegurar o seu comando em toda parte ao mesmo tempo. Por isso o novo “estado local” acabaria por adotar frontal- des e expectativas da comunidade local, especialmente dos perdedores e/ou excluídos.
mente a adaptabilidade e a negociação como processos integrantes do planejamento, procurando orientar a iniciativa 20. A criação da Agência inscreve-se nas prescrições de Borjae Castells (1997), especialmente naquela que estipula que
e o investimento privado para áreas de interesse coletivo, que tradicionalmente não lhe caberia assegurar, oferecendo “(...) Actualmente la promoción económica requerirá que el gobierno local tenga competencia y medios – en colabo-
em troca garantias de edificabilidade, fiscais e outras, isto é, a rentabilidade média suficiente para que a oportunidade ración con otros actores públicos y privados pero con iniciativa propia para desarrollar zonas de actividades empre-
que, por hipótese, interesse as duas partes, não seja perdida.” (Portas, 1999, p.6-7 – grifo no original). sariales, para crear bancos con líneas de capital-riesgos, para promover empresas públicas y mixtas competitivas com
18. Portas, op. cit., 1999, p. 3. el sector privado, para realizar compañas internacionales que atraigan feriales y centros de convenciones y parques

352 Globalização e metrópole Glauco Bienenstein 353


tuição agrega um conjunto bastante eclético de elementos (sócio-fundadores) em ção espacial da metrópole carioca, centrando a análise na Barra da Tijuca. Indiscu-
seu quadro social, sendo presidida por um advogado e ex-presidente da Associação tivelmente, encontram-se presentes, na dinâmica metropolitana carioca, transfor-
Comercial do Rio de Janeiro21. mações ligadas tanto à descentralização e seus impactos no núcleo central quanto
Num encarte promocional, o então prefeito Luiz Paulo Conde apresenta a à ratificação de setores residenciais seletivos. A combinação de tais transformações
criação da Agência como um instrumento voltado a conferir: pode ser reconhecida na Barra da Tijuca, percebida como nova centralidade seletiva
e socioespacialmente fragmentada. Nessa perspectiva, corroborando a constatação
(...) agilidade à reunião de forças [do Executivo Municipal] com a iniciativa
privada para aproveitar todas as possibilidades de conjugar o interesse do
de outros estudos e pesquisas, esta área da cidade, além de típico setor residencial
governo com o interesse empresarial, em benefício do interesse público. seletivo, vem “se constituindo em um centro de negócios periférico que pode ser vi-
sualizado nos office parks” (PACHECO, 1998:2 – grifo no original).
Novo aparato institucional capaz de animar o ambiente econômico da
cidade, a Agência de Desenvolvimento da Cidade do Rio de Janeiro traduz Tais objetos, juntamente com os já bem conhecidos condomínios fechados
acima de tudo a certeza de voltar a exercer seu grandioso papel no País22 . e/ou exclusivos, os shoppings centers, os clubes privé e os megacentros de lazer e
entretenimento materializam o atual processo de reconfiguração e modernização
Pode-se relacionar o teor desse enunciado com duas novas competências excludente e atomizada da metrópole (e da sociabilidade). Desse modo, à tão pro-
atribuídas às administrações locais nesses tempos de competitividade. São elas, o palada fluidez de processos requerida pelo atual regime de acumulação correspon-
alcance da consertação (dos interesses públicos e privados) e, enquanto um deri- de, em sentido contrário, a necessária “fixidez” de elementos de reprodução socio-
vativo deste, a implementação de iniciativas de natureza econômica que visem a espacial dos interesses dominantes.
ampliação do campo de atuação do governo da cidade (Borjae Castells, 1997, p.156). Embora a Barra da Tijuca seja compreendida, pela maioria dos técnicos da
A Secretaria Especial para Assuntos Estratégicos, implementada junta- PCRJ entrevistados, como uma área que “se faz autonomamente”, vale ressaltar que
mente com outras secretarias especiais (do Trabalho, Monumentos Públicos, de a sua valorização dependeu dos grandes investimentos nela realizados24.
Trânsito, antiga de Transportes, de Turismo e de Projetos Especiais), através da
Lei nº 2537/97, de 03.03.97, tem “(...) por finalidade elaborar e coordenar planos,
À guisa de conclusão
programas e projetos, bem como proceder à captação de recursos e ao esta-
belecimento de parcerias com instituições públicas e privadas, visando a con-
Conforme se tentou demonstrar, novos instrumentos, instituições e práticas
solidação do desenvolvimento equilibrado da cidade do Rio de Janeiro (...)”23.
levadas a cabo pela administração municipal do Rio de Janeiro, assim como novas
Segundo informações obtidas junto a PCRJ, a Secretaria Especial para Assun-
formas de apropriação e/ou produção de determinadas parcelas da referida cidade,
tos Estratégicos tem um perfil marcadamente técnico cuja incumbência é elaborar e
constituem expressões fenomênicas do já mencionado padrão de acumulação de
idealizar projetos e perspectivas futuras para a cidade do Rio de Janeiro, realizando
caráter seletivo e socialmente excludente.
estudos e pesquisas, assim como articular e coordenar projetos junto a outras secre-
Na articulação multivariável, multiescalar e fragmentada de espaços e lugares
tarias e órgãos do Executivo Municipal.
determinados pela atual dinâmica econômica, além dos supracitados instrumentos
Por meio destas indicações confirma-se a concepção que enfatiza a complexi-
e instituições definidores de novas concepções e escalas de reflexão e intervenção
dade e a amplitude das conexões sócio-políticas que têm conformado a cidade en-
na cidade, constata-se também a crescente importância de objetos arquitetônico-
quanto ator social. A questão é saber quais serão os grupos priorizados nesse processo.
-urbanos cuja complexidade e centralidade conferem uma nova escala sócio-geo-
Finalmente, como importante subconjunto de elementos relativos ao Rio de
gráfica de estruturação tanto do espaço quanto da vida e da sociabilidade urbana
Janeiro, destacam-se, de forma resumida, alguns aspectos relativos à reconfigura-
desse tipo de metrópole.
industriales y tecnológicos, para establecer oficinas de información y asesoramiento a empresarios e inversores locales Sugere-se que a utilização de tal escala possa ser compreendida através do
e internacionales, etc.”(Sem grifo no original).
21. Associação Comercial, a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro, a Fundação Getúlio Vargas, o
termo “ambiente construído”. Entende-se que este termo pode ser tomado como
Instituto Brasileiro de Administração Municipal, a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, a Bolsa de Gêneros uma importante categoria de análise da urbanização deste final de milênio, de ca-
Alimentícios, assim como os jornais do Comércio, O Dia, O Globo e o Jornal do Brasil. Dados coletados em 1998.
ráter seletivo, fragmentado e excludente. Acredita-se que, através da mencionada
22. Um novo Rio está nascendo. Venha investir. Apresentação do encarte promocional da Agência Rio, assinado pelo
prefeito da cidade do Rio de Janeiro, arquiteto Luiz Paulo Conde, s/d, p.1.
23. Diário Oficial do Município, 05.03.97, p. 02. 24. A Via Amarela constitui-se num exemplo emblemático.

354 Globalização e metrópole Glauco Bienenstein 355


categoria, talvez se possa apreender uma considerável parcela da complexa articu- Todas essas indicações sugerem que a atual dinâmica econômica, vulgarmen-
lação entre fenômenos econômicos, sociais e culturais resultantes do atual redese- te denominada globalização, vem redefinindo a relação entre economia e política,
nho do desenvolvimento geográfico desigual. já repercutindo, como estratégia ideológica atualmente hegemônica, nas diversas
Finalmente, no que diz respeito à inserção do Rio de Janeiro no discurso e nas escalas sócio-geográficas da produção e da vida social.
práticas relativas à competitividade entre cidades, considera-se importante ressal- Assim sendo, compreende-se que fragmentação e exclusão readquirem um
tar nesta conclusão alguns pontos de singular relevância e complexidade na análise novo significado e importância na pauta de discussões sobre a cidade a qual, acir-
do caso do Rio de Janeiro. rando tendências ontologicamente fundadas do capitalismo, tem se configurado
Apesar de se correr o risco de exagerar, talvez se possa dizer que César Maia, como um todo cujas partes constituintes têm se articulado num ambiente de pro-
percebendo o que se configurava no plano nacional (desregulação e abertura co- gressiva polarização socioespacial.
mercial, por exemplo), lançou as bases, no nível local, para adequação e/ou apro-
veitamento das mencionadas transformações. Porém, tendo-se em mente este
contexto, não seria exagero dizer que as administrações César Maia e Luiz Paulo
Referências bibliográficas
Conde resgataram a centralidade da cidade do Rio de Janeiro no ideário da urbani-
BORJA, J.; CASTELLS, M. Local Global. La Gestión de las Ciudades en la Era de la Información.
zação brasileira, cuja posição havia sido perdida e/ou obscurecida para a cidade de
Madrid: Santillana, S.A. Taurus, 1997.
Curitiba (período Jaime Lerner). Este resgate se concretizou através de um projeto
BRAGA, José C. A Financeirização da Riqueza. Economia e Sociedade. Campinas: Instituto de
de modernização (conservadora), cujo caráter seletivo (direção dos investimentos)
Economia da Universidade Estadual de Campinas, agosto, 1993.
e predominantemente excludente (somente alguns poucos segmentos socioespa-
CHESNAIS, F. A Emergência de um Regime de Acumulação Mundial Predominantemente
ciais incluídos)25 pode ser considerado sintonizado com o atual regime de acumu-
Financeiro. In: Praga, estudos marxistas 3. São Paulo: HUCITEC: 1997b.
lação. Essas indicações reafirmam César Maia como demiurgo brasileiro da recente
CHESNAIS, F. Novo capitalismo intensifica velhas formas de exploração. Folha de São
forma de pensar e agir no urbano brasileiro, no contexto das possibilidades abertas
Paulo,02/11/1997a, p.4 (caderno especial sobre globalização). Entrevista.
pelo regime de acumulação (capitalista) deste final de milênio. Seu exemplo é tão
COUTINHO, L. Nota sobre a natureza da globalização. Economia e Sociedade. Campinas:
emblemático que muitos dos itens e procedimentos de gestão de seu governo, em
Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas, junho, 1995.
especial o planejamento estratégico, vêm sendo incorporados por outras municipa-
DEDECCA, C. S. Racionalização Econômica e Heterogeneidade nas Relações e nos Mercados
lidades brasileiras de médio e grande porte.
de Trabalho no Capitalismo Avançado. In: OLIVEIRA, C.E.B. de; MATTOSO, J.E.L. (Org.)
Nesse contexto, a negociação público-privada passou a conduzir a pauta Crise e Trabalho no Brasil: modernidade ou volta ao passado? São Paulo: Scritta, 1996
orientadora do desenvolvimento e do investimento na cidade. Esta pauta é opera- (Pensieri).
cionalizada através de instrumentos de gestão tais como: (I) flexibilização do apara- FIORI, J. L. A Globalização e a Novíssima Dependência. In: Em Busca do Dissenso Perdido:
to legal de base “fordista” e emergência do plano estratégico como nova práxis de ensaios críticos sobre a festejada crise do Estado. Rio de Janeiro: Insight, 1995.
regulação e planejamento da cidade na era da desregulação competitiva; (II) emer- HARVEY, D. A Condição Pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992.
gência de uma nova escala de concepção e intervenção, destacando-se a requalifi-
HARVEY, D. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração
cação da imagem da cidade, ou seja, a imagem física de parcelas do espaço físico da
urbana no capitalismo tardio. Espaço & Debates. São Paulo: Núcleo de Estudos
cidade; (III) esse movimento vem respondendo às necessidades dos novos gestores Regionais e Urbanos, nº 36, 1996, p. 48-64.
da cidade e aos anseios da categoria profissional dos arquitetos, que se reinsere no
HIRST, P.; THOMPSON, G. Globalização em Questão. Petrópolis: Vozes, 1998.
fazer e no refazer a cidade. Nesse sentido, o desenho pontual materializado no bi-
HOBSBAWM, E. A Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
nômio plano-projeto expressa, ainda que de maneira truncada e muitas vezes pro-
blemática, a forma pela qual a cidade tem sido (e deverá ser) tratada, substituindo MARX, K. A Questão Judaica. Rio de Janeiro: Achiamé, s/d.

antigas prescrições normativas – e generalizantes – correlatas ao regime fordista. PACHECO, S. M. Terceirização e Reestruturação Urbana no Rio de Janeiro. Boletim GETER, ano
I, nº 1, fevereiro de 1998, p. 2.
PORTAS, N. Do Vazio ao Cheio. (Mimeo, novembro de 1999).
25. Em que pese esta característica não há como negar que o programa Favela – Bairro constitui-se peculiar contra-
ponto a ela.

356 Globalização e metrópole Glauco Bienenstein 357


SANTOS, M. A Natureza do Espaço Técnica e Tempo, Razão e Emoção.São Paulo: Hucitec, 2ª ed.
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WOLF, J. Observatório do futuro. A U – Arquitetura e Urbanismo. São Paulo: Editora PINI, ano Fernanda Ester Sánchez Garcia1
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Resumo | Este artigo analisa o papel dos megaeventos esportivos na reconfiguração daci-
dades, para entender alguns dos seus impactos sobre os grupos sociais diretamente afeta-
dos pelos grandes projetos que constroem a chamada “Cidade Olímpica”. A cidade do Rio
de Janeiro é aqui tomada como campo empírico, pois além de ter sido selecionada para
sediar os Jogos Olímpicos de 2016, está incluída no rol das cidades-sede que abrigaram os
jogos da Copa de 2014. A estrutura do trabalho se faz por intermédio das seguintes partes:
em primeiro lugar, são apresentadas algumas notas que indicam o plano de análise aqui
adotado sobre os megaeventos em sua relação com o planejamento urbano. Em seguida,
são apresentados os Jogos Pan-Americanos de 2007 como o primeiro megaevento do novo
século no Rio de Janeiro. Posteriormente, discute-se a dimensão política do projeto Rio 2016
e suas formas de inscrição territorial na cidade. Por fim, são traçadas breves considerações
sobre o megaevento esportivo como uma expressão da globalização, considerando suas
dimensões políticas, institucionais, urbanas, simbólicas e econômicas, visando oferecer
elementos para a compreensão das dinâmicas das cidades brasileiras e suas múltiplas co-
nexõescom processos amplos e inter-relacionados. A reflexão procura, num nível prelimi-
nar, demonstrar como os megaeventos estão sendo instrumentalizados por intermédio da
articulação trans-escalar de elites políticas e econômicas locais, amalgamadas por atores
e lideranças políticas e econômicas locais e internacionais, notadamente, pelo Comitê Olím-
pico Internacional, COI, e pela FIFA, que,por meio da exploraçãode sentidos vinculados à
urgência, mobilização e consenso, voltam-se à ideia de refazer a cidade conforme sua pró-
pria imagem. Mediante exemplo de uma série de projetos concebidos e implementados
com prazos externamente delineados, o artigo mostra como esse modelo de planejamento
urbano direcionado a tais eventos promove uma visão exclusiva de reestruturação urbana,
cujos resultados têm sido usualmente aqueles vinculados à privatização e à mercantiliza-
ção da cidade, sugerindo a expansão de uma nova forma “excepcional” de reestruturação
urbana, de corte neoliberal,cujos delineamentos têm radicalizado a transformação da urbe

1. Este trabalho foi produzido no âmbito do Grupo de Pesquisa GPDU, Laboratório Globalização e Metrópole, criado
em 2003 e coordenado pelos professores Glauco Bienenstein e Fernanda Sánchez, abrigando bolsistas e produções
acadêmicas em nível de iniciação científica, graduação, mestrado e doutorado. Mantém o intercâmbio com ETTERN-
-IPPUR-UFRJ.

358 Globalização e metrópole Fernanda Ester Sánchez Garcia 359


em loci privilegiado da acumulação atual exacerbando, ainda mais, a segregação socioes- locales y/o localizados, que explotan el sentido relacionado con el contexto de urgencia,
pacial e a desigualdade. la movilización social y la concertación política con el fin de rehacer la ciudad a su propia
Abstract | This paper examines the role of sporting mega-events in the reconfiguration imagen. Por medio del ejemplo de una serie de proyectos concebidos con plazo fijado por
of the urban landscape, to understand some of their impacts upon social groups directly los mega eventos, el trabajo muestra cómo el modelo de planificación urbana adoptado
affected by the large projects that build the so-called “Olympic City”. The case study is Rio para estos eventos fomenta una visión exclusiva de regeneración urbana que puede abrir
de Janeiro, Brazil, selected by the International Olympic Committee (IOC) as the host for el camino para la privatización asistida por el Estado y para el ensanche de la mercantili-
the 2016 summer Olympic Games and by the FIFA as the host country for the 2014 Football zación de la ciudad, lo que sugiere la aparición de una nueva forma, «excepcional» de la
World Cup. Firstly, we will present notes that point out our analysis plan regarding mega- reestructuración urbana neoliberal en el panorama de América Latina. Tal modelo sirve a las
events in their relation to urban planning. Then, we will present the 2007 Pan American necesidades del capital, mientras que agrava la segregación socio-espacial y la desigualdad
Games as the first new century mega-event in Rio de Janeiro. Afterwards, we will discuss the en la metrópolis.
political dimension of Rio 2016 project and its forms of inscription in the city. Finally, we will
present brief considerations on sport mega-events as a globalization expression consider-
ing their political, institutional, urban, symbolic and economical dimensions, in order to ad-
Introdução: o plano de análise
dress the actual Brazilian city dynamics in broad and interweaven processes.The work seeks
to show how mega-events are being instrumentalized by local political and economic elites,
As políticas urbanas neoliberais, que conhecemos no Brasil há cerca de duas
especially a coalition of ambitious civic leaders, private entrepreneurs and local real estate
décadas, vêm sendo formuladas no âmbito de uma economia simbólica que afirma
interests, who exploit the event-related sense of urgency, mobilization and consensus in
visões de mundo, noções e imagens, as quais acompanham as ações de reestrutu-
order to remake the city in their own image. Through the example of a series of projects
ração urbana. Operações para reconversão de territórios, grandes projetos urbanos
conceived with the mega-events deadline in mind, the paper shows how such an event-led
e megaequipamentos culturais ou esportivos são acionados para soldar as forças
planning model fosters an exclusive vision of urban regeneration that can open the way for
sociais das cidades, e trazidos pela mão de coalizões de promotores urbanos que
the state-assisted privatization and commodification of the urban realm, suggesting the
apresentam projetos de cidade ditos consensuais e competitivos.
rise of a new, ‘exceptional’ form of neo-liberal urban regeneration in the Latin American
Frente às realidades da fragmentação, tais operações urbanas procuram,
landscape, thus serving the needs of capital while exacerbating socio-spatial segregation
então, integrar simbolicamente a cidade e envolvê-la em uma “política-espetáculo”
and inequality.
(Acselrad, 2009, p.25). O êxito do governo brasileiro e, em especial, do executivo
municipal da cidade do Rio de Janeiro em conquistar a condição de país-sede para a
Resumen | Este artículo examina el papel de los mega-eventos deportivos en la reconfi-
Copa do Mundo 2014 e para os Jogos Olímpicos Rio 2016 podem ser tomados como
guración de las ciudades, para entender algunos de sus impactos sobre los grupos sociales
casos exemplares da produção e do exercício dessa política-espetáculo.
directamente afectados por los grandes proyectos que conforman la denominada “Ciudad
Não é de hoje que o Rio de Janeiro e suas coalizões políticas difundem ima-
Olímpica”. El estudio de caso es Río de Janeiro, Brasil, seleccionado por el Comité Olímpico
gens-síntese que permitiram, ao longo da história, o reconhecimento de sua rarida-
Internacional (COI) como la sede de los Juegos Olímpicos de verano de 2016 y por la FIFA
de. Tendo exercido centralidade nacional como capital brasileira por mais de duzen-
como país anfitrión de la Copa del Mundo de Fútbol 2014. En primer lugar, vamos a presen-
tos anos, conjugada à sua localização geográfica extraordinária, foi sendo projetada
tar las notas que señalan nuestro plan de análisis de los mega-eventos en su relación con la
e afirmada como cidade com elevada densidade simbólica. No entanto, a conquista
planificación urbana. A continuación, vamos a presentar los Juegos Panamericanos de 2007
dos megaeventos, que caracteriza o chamado “momento Rio” pode ser interpretada
como el primer mega-evento del nuevo siglo, en Río de Janeiro. Después, vamos a hablar de
como uma grande oportunidade de atração de impulsos globais e de atualização da
la dimensión política del proyecto Rio 2016 y de sus formas de inscripción en la ciudad. Por
“acumulação primitiva de capital simbólico” (Ribeiro, 2006).
último, vamos a presentar breves consideraciones sobre los mega-eventos como expresión
Áreas de renovação, monumentos naturais e artificiais, corpos e gestos do
de la llamada globalización teniendo en cuenta sus dimensiones políticas, institucionales,
ethos carioca são transformados em focos que, junto às representações e imagens-
urbanas, simbólicas y económicas, cuyas dinámicas están orientadas a reinsertar la ciudad
-síntese, fazem da cidade um nó propício ao funcionamento das redes de atividades
brasileña en procesos amplios e inter-conectados. El artículo pretende mostrar cómo los
econômicas. Tais operações político-simbólicas caminham junto às rápidas mudan-
mega-eventos están instrumentalizados por las elites políticas y económicas locales, espe-
ças territoriais e, ao mesmo tempo em que produzem efervescência e dinamismo,
cialmente una coalición de líderes cívicos ambiciosos, empresarios privados y los intereses

360 O projeto de cidade para os megaeventos Fernanda Ester Sánchez Garcia 361
vêm produzindo também fragmentação e destruição de importantes tecidos urba- países do hemisfério Sul (Stavrides, 2010; Gaffney, 2012; Freeman, 2013; Broudehoux,
nos relacionados com a memória social. 2010; Horne, 2006; Mabin, 2010) 2.
A colonização promovida pelas teorias e práticas identificadas com a visão Esse esforço busca, em seu viés político, criar resistência às tentativas de im-
liberal de sociedade e de cidade encontra oposição em esforços intelectuais, que posição de uma ordem simbólica que procura dar consistência teórica à intenção de
buscam desvelar-lhes significado, contestar sua natureza bem como seus efeitos despolitizar o debate sobre a questão urbana. Esse esforço também se dá em dire-
sociais no território. Trataremos aqui, como caso, do Projeto Olímpico Rio 2016, ção às explicações que relacionem os megaeventos com as formas contemporâneas
em busca de uma relação produtiva com a reflexão acerca dos demais projetos de de conceber o planejamento urbano e as intervenções nas cidades.
cidade relacionados à reestruturação urbana para a Copa do Mundo 2014 em doze Efetivamente, não podemos compreender aspectos cruciais das formas con-
cidades brasileiras. Elos e mútuas relações são também identificados com alguns temporâneas de gestão das grandes cidades sem levar em consideração o lugar e o
casos internacionais de renovação urbana que acompanharam a realização de gran- papel dos megaeventos esportivos, pela ampla coalizão de atores que possibilitam
des eventos esportivos em diversos países nos últimos anos. e pelo formidável volume de recursos que são capazes de acionar, bem como pelos
Primeiramente, faremos algumas notas que situam nosso plano de análise seus efeitos de ruptura nas diversas dimensões do espaço social.
acerca dos megaeventos em sua relação com os projetos de cidade. Em segundo Entre as justificativas-o chamado “legado”: meio ambiente, equipamentos e
lugar, trataremos dos Jogos Pan-americanos Rio 2007 enquanto primeiro grande instalações esportivas, transportes, inclusão social. A revisitação dos bons estudos
evento esportivo carioca no novo século. Em seguida, discutiremos a dimensão po- de caso, entretanto, permite observar que em Atlanta, Pequim, Atenas, Cidade do
lítica do projeto Rio 2016 e suas formas de inscrição no território. Por último, traça- Cabo, Montreal ou Sidney os benefícios sociais e materiais do urbanismo olímpico
remos algumas breves considerações a respeito dos megaeventos esportivos como são decepcionantes, e a retórica dos efeitos positivos não se sustenta, como mostra-
expressões da globalização, em suas dimensões político-institucional, urbanística, ram diversos autores na primeira Conferência Internacional Megaeventos e Cidades,
simbólica e econômica, na busca da inscrição das atuais dinâmicas das cidades bra- em 2010. Isso sem mencionar ainda os Jogos Pan-americanos de 2007 na cidade do
sileiras em processos abrangentes e trans-escalares. Rio de Janeiro, dos quais trataremos brevemente na próxima seção.
Importante destacar que a presente reflexão está inscrita e recolhe sistemáti-
ca trajetória, no âmbito do Laboratório Globalização e Metrópole, do Programa de
Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, Notas acerca do primeiro megaevento esportivo carioca
assim como do Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza, do Instituto de do século XXI: os Jogos Pan-americanos Rio 2007
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janei-
ro, que têm atuação como coletivo de pesquisa, vinculando sua produção ao campo É importante, em tempos de grandes intervenções em doze cidades brasi-
da teoria crítica acerca dos modelos de planejamento urbano e seus instrumentos leiras voltadas para a Copa do Mundo 2014 e, no caso do Rio de Janeiro, também e
de afirmação (Sánchez, 2010; Bienenstein, 2001), atores e instrumentos de transpo- ao mesmo tempo, de um urbanismo olímpico orientado para os Jogos 2016, trazer
sição, difusão e afirmação de tais modelos, conceitos e métodos do planejamento alguns pontos acerca da natureza da estratégia territorial do projeto urbano dos
estratégico de cidades, construção do campo do planejamento estratégico (Vainer, Jogos Pan-americanos de 2007 e seus impactos para a cidade.
2000; Lima Jr., 2010), grandes projetos urbanos brasileiros, conceituação e avaliação Destacaremos, contudo, a discrepância no patamar de gastos se tomarmos,
de seus efeitos (Oliveira et al. 2012). Deste modo, destacamos que o trato do tema por exemplo, as Olimpíadas em relação ao seu precedente, os Jogos de 2007: vinte e
dos grandes eventos, ao contrário de ser abraçado como tema do momento, resulta oito bilhões e novecentos milhões de reais previstos (R$ 28,9 bilhões) contra três bi-
da trajetória de pesquisa acima exposta. Afirma-se, portanto, como objeto teórico e lhões e setecentos milhões de reais (R$ 3,7 bilhões), ou seja, o evento de 2016 deverá
empírico, entrelaçado aos demais temas que têm sido tomados como objeto de in- custar pelo menos oito vezes mais que os Jogos de 2007 (Oliveira, 2009).
vestigação nestes dois grupos de pesquisa desde início dos anos 1990. Ao longo dos Para os Jogos de 2007 o poder público, de fato, concentrou investimentos
anos, pesquisadores internacionais têm também colaborado com este coletivo de nas áreas de interesse do capital imobiliário local a fim de buscar concretizar seus
pesquisadores fluminenses e contribuído para definir alguns importantes temas da objetivos. A identificação de tal concentração permitiu questionar e desmontar o
agenda de pesquisa que relaciona os megaeventos e o desenvolvimento urbano em 2. Muitos desses pesquisadores participaram da primeira Conferência Internacional Megaeventos e as Cidades, or-
ganizada por membros dos dois laboratórios, respectivamente, do PPGAU-UFF e IPPUR-UFRJ, e realizada em 2010 na
Universidade Federal Fluminense, Niterói.

362 O projeto de cidade para os megaeventos Fernanda Ester Sánchez Garcia 363
aparente modelo distribuído e equilibrado de intervenções em quatro diferentes mediante a venda de uma mercadoria difusa, contudo, poderosa: a ilusão do renas-
áreas da cidade, como a geografia das áreas de intervenção parecia inicialmente cimento urbano por meio da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos.
indicar (cf. Mascarenhas et al., 2011). Apesar da pressão resultante deste expressivo investimento simbólico em
Em sua dimensão urbanística, as intervenções realizadas mostraram-se pon- busca do consenso, a sociedade civil não se manteve passiva, realizando debates e
tuais, sem relação mais consistente com a cidade. Estava incorporada, desde o explicitando conflitos, obtendo, ao final do processo, algumas conquistas e tecen-
princípio, a lógica da cidade elitista que se manifestou na estratégia de concentrar do assim sua inscrição concreta na produção do espaço urbano. Dentre essas con-
o evento em áreas nobres, visando, ao mesmo tempo, segurança e conforto aos quistas dos movimentos sociais, destacamos a permanência da Comunidade da Vila
participantes, e, sobretudo, oferecer ao mundo uma imagem urbana supostamente Autódromo frente às sucessivas ameaças de remoção que vem sofrendo desde o
“civilizada” e “moderna”. Longe, portanto, de qualquer preocupação no sentido de início dos anos 1990. Também de grande relevância, a defesa do Parque do Flamen-
utilizar o evento para redistribuir no espaço da cidade as benfeitorias da infraestru- go como patrimônio público, então ameaçado pelo novo empreendimento privado
tura urbanística. para a Marina da Glória, que inclusive contava com a aprovação e empenho do Exe-
A Barra da Tijuca e seu entorno foram eleitas como áreas que centralizaram as cutivo Municipal para sua implantação. O impedimento do empreendimento cons-
intervenções. Foi empreendida nestas áreas uma política de remoção de populações tituiu uma vitória do movimento social contra o que foi considerado um projeto de
pobres. Mediante uma ideia amesquinhada de cidade, foi mostrado como sinal de su- violação do patrimônio paisagístico e social do Parque. (Mascarenhas et al., 2011).
peração da crise urbana o sucesso imobiliário do empreendimento da Vila Pan-ameri-
cana, a chamada Vila do Pan, que abrigou as delegações de atletas durante os Jogos,
mas foi comercializada como condomínio residencial dentro da lógica comercial dos
Copa do Mundo 2014 e Rio 2016: a dimensão político-
condomínios daquela região. Ressaltamos, contudo, que essa Vila foi construída com simbólica do projeto de cidade
recursos públicos3 em terreno turfoso e seu principal efeito urbano foi o de alimentar
e acelerar o processo especulativo de valorização das terras em seu entorno. Para a Copa do Mundo de 2014 e para os Jogos Olímpicos de 2016, eventos
Em outra área da cidade do Rio de Janeiro se encontra a maior instalação sob o manto dos quais foi estruturado um projeto de cidade para o Rio de Janeiro,
esportiva edificada para aquele evento: o Estádio Olímpico João Havelange, conhe- avaliamos que as perspectivas são de clara permanência da orientação mercadófila
cido como “Engenhão”, em Engenho de Dentro, zona norte da cidade. Ressalte-se que tem prevalecido, por conseguinte, elitista, segregadora e excludente. Primei-
que em seu processo de implementação, com destacada carga simbólica, não foi ramente, a polêmica obra de reforma do Estádio do Maracanã e de seu entorno. O
incorporado nenhum melhoramento ao bairro. Este monumental equipamento, emblemático Maracanã, símbolo da brasilidade e da cultura popular carioca, que já
que produziu um cenário espetacular, obedece a uma lógica relacionada com outra havia passado por uma recente e grande reforma para os Jogos Pan-americanos de
escala: a da cidade olímpica, e não guarda efetiva relação com a área onde está 2007, volta a ser completamente reformado, sob exigências da FIFA, para a Copa do
instalado, enquanto equipamento “propulsor de desenvolvimento urbano” daquela Mundo. O projeto tem recebido contundentes críticas no que se refere à desfigura-
região, como foi à época exaustivamente divulgado (Martins da Cruz, 2010). ção de sua linguagem arquitetônica, volumetria e organização espacial, com uma
Ainda que a celebração de tal evento, em 2007, nos permita hoje avançar na drástica redução do número de assentos, que indica uma clara tendência à elitiza-
análise de seus escassos efeitos urbanos positivos em diversas dimensões, reconhe- ção de seu uso e, portanto, à exclusão das formas populares de apropriação que
cemos que o trabalho político-simbólico em torno de sua realização permitiu à coa- marcaram sua história (Mascarenhas e Oliveira, 2006; Prieto e Viana, 2009;
lizão dominante construir a ideia de sucesso a respeito deste que foi considerado o Mascarenhas, Bienenstein e Sánchez, 2011).
primeiro megaevento esportivo carioca do século XXI, e acumular capital simbólico Por terem considerado a obra e o projeto uma ameaça ao estádio, como patri-
para pavimentar as articulações políticas em direção aos próximos megaeventos ca- mônio material e imaterial, irromperam diversas manifestações, movimentos sociais
riocas e brasileiros. Pela importância desta dimensão de análise faz-se necessário in- e ações judiciais, voltados também à contestação de sua privatização, por entendê-
vestigar de que forma o consenso vem sendo administrado nestes últimos tempos, -lo como importante bem público. Os conflitos também têm se intensificado no que
se refere aos equipamentos públicos no entorno do Maracanã, sobretudo a Escola
Municipal Fredenreich, o Estádio de Atletismo Célio de Barros, o Parque Aquático
3. Os recursos para a construção da Vila Pan-americana foram provenientes do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT)
geridos pela Caixa Econômica Federal (CEF). Desse modo, neste empreendimento houve uma transferência direta de Júlio Delamare e o prédio histórico do antigo Museu do Índio, todos eles ameaça-
recursos públicos para a iniciativa privada.

364 O projeto de cidade para os megaeventos Fernanda Ester Sánchez Garcia 365
dos de demolição para construção de áreas de estacionamento e de um shopping- Efetivamente, a realização de megaeventos nos países com grande desigual-
-center. Com relação ao museu, ocupado por coletivos indígenas que o designaram dade econômica e espacial, no que se refere ao acesso público à cidade e à urba-
de Aldeia Maracanã, o conflito gerou articulações políticas e manifestações públi- nização, como é o caso brasileiro, tende a agravar esta desigualdade. As pesquisas
cas desde que se soube que seria demolido para dar lugar à área de dispersão do produzidas no plano da teoria crítica reforçam a tese de que os grandes projetos
estádio. Com a obtenção de apoio judicial à luta pela permanência, restauração e moldam processos econômicos, urbanos e ambientais que afetam negativamente
tombamento deste edifício e de seu uso social, o movimento culminou com o recuo alguns grupos sociais enquanto beneficiam outros. Ainda que a realização destes
do governo na ação de demolição (O Globo, 2/2/2013).Entretanto, as lideranças indí- grandes projetos, associada aos eventos, apresentem novidades e mudanças na re-
genas e os apoiadores do movimento foram retirados do edifício no dia 22 de março lação entre o poder público e os setores privados, nos novos instrumentos urbanís-
de 2013, com força policial e uso de violência, e consequente repercussão nacional ticos e fundiários bem como nos arranjos institucionais, podemos avaliar que nestes
e internacional negativa (Sánchez, 2013). casos ainda é o poder público “o principal motor e fiador de todos os processos,
No conjunto das grandes operações urbanas voltadas às Olimpíadas per- evidentemente em articulação com os setores da sociedade que lhe dão suporte”
manece a tônica geral que enaltece a modernidade espetacular da Barra da Tijuca, (Oliveira et al., 2007; 2012).
onde se localiza a maior parte dos equipamentos destinados aos Jogos. Mesmo as
negociações posteriores ao anúncio da Cidade Olímpica, que projetam para a Zona
Portuária algumas instalações, como o projeto Porto Olímpico, estas se inserem no
O projeto urbano para a Copa e Olimpíadas e suas
projeto mais amplo de gentrificação daquela área. formas de inscrição no território
As operações vêm sendo destinadas a favorecer a especulação imobiliária,
beneficiar empreiteiras, promover a valorização fundiária, implantar moderna infra- Os elementos que fazem parte do repertório do projeto de cidade para a
estrutura de telecomunicações em áreas nobres bem como aquecer o setor hotelei- Copa de 2014 e para os Jogos Rio 2016 comparecem com uma monótona regulari-
ro e a indústria cultural. dade em estratégias territoriais que, paradoxalmente, são proclamadas como origi-
O projeto olímpico de cidade e a chamada “conquista” do Rio de Janeiro para nais, assim como produtoras certeiras dos chamados “legados urbanos”.
sediar a Copa do Mundo e as Olimpíadas devem ser interpretados como o desenlace Chamam a atenção os grandes projetos com forte apelo simbólico, cuja espa-
de um processo, ao longo do qual, em duas décadas, vem se afirmando uma con- cialização permite reconhecer alguns emblemas da campanha olímpica. A reestru-
cepção de cidade que indica a profunda influência que o pensamento neoliberal turação de área portuária com o projeto Porto Maravilha parece indicar a reedição
teve sobre as políticas urbanas. carioca do modelo de reestruturação de waterfrontpraticado em diversas cidades
As chaves desse projeto que permitem identificá-lo como a reedição de prá- do mundo, como Baltimore, Nova York, Londres ou Buenos Aires.
ticas que emergiram no início dos anos 1990 são: parcerias público-privadas, com- Na Zona Portuária, a prefeitura parece estar obtendo êxito em tirar do papel
petição interurbana, marketing de cidade, gestão empresarial da cidade, criação de o clássico modelo de revitalização baseado na concessão do espaço aos grupos pri-
estruturas institucionais de caráter excepcional, flexibilização da lei, grandes proje- vados e numa agenda de projetos que combina megaequipamentos de cultura e
tos, concebidos como intervenções pontuais no tempo e no espaço, entre outros. entretenimento, constituídos em âncoras dos processos de renovação, com empre-
As senhas, formas pelas quais se impõe o projeto, indicam, ainda, a conformação endimentos formalizados em torres de escritórios e moradia de alto padrão, modelo
progressiva de uma coalizão de poder político e econômico local, à qual compare- esse já consagrado em diferentes países.
cem também atores, empresas e instituições extralocais, contudo, com interesses Avalia-se que a articulação de atores e escalas em torno desses projetos tem
localizados. Com efeito, o planejamento urbano voltado aos megaeventos sinaliza o exigido expressivo investimento simbólico, como instrumento político privilegiado
que vem sendo chamado de “cidade da exceção” (Vainer, 2010). na disputa pelos eventos bem como na busca dos meios necessários à sua atuali-
Observamos uma reedição de diversos elementos da política urbana carioca zação e afirmação. Efetivamente, as coalizões de atores governamentais, privados,
de mais de 15 anos atrás, quando se elaborava o Plano Estratégico da cidade. As bem como das agências internacionais, vinculados ao projeto olímpico, percebem
mesmas personagens, o mesmo projeto, a mesma retórica. Surpreende a continui- e se utilizam do megaevento como um espetáculo em escala mundial para chamar
dade de um discurso acompanhado por práticas que têm contribuído, ou invariavel- a atenção internacional, redirecionar investimentos e amalgamar um novo projeto
mente contribuirão, para despolitizar a cidade e torná-la mais desigual. hegemônico (Broudehoux, 2007; Sánchez, 2010).

366 O projeto de cidade para os megaeventos Fernanda Ester Sánchez Garcia 367
Promotores de megaeventos, de estádios de futebol ou de projetos de reno- para a criação e ampliação dos consumidores globais. O impulso econômico e o
vação de áreas centrais com grandes equipamentos culturais evocam, em seu ideá- grau de conectividade que os Jogos geram evidenciam a aliança direta entre os es-
rio, a “inserção competitiva” da cidade e um “vir a ser” de grande desenvolvimento, portes, a mídia e os negócios (cf. Horne&Manzenreiter, 2006).
pressionando assim os cidadãos a um engajamento irrestrito. Contudo, conforme Na dimensão política os megaeventos apresentam um significativo regime
indicado pela literatura, são altos os custos do gigantesco esforço de city marketing de regulação internacional, com instituições supranacionais como o Comitê Olímpi-
para assegurar a posição das cidades-sede na disputa pelos eventos e pelos investi- co Internacional, COI, ou a Federação Internacional de Futebol Amador, FIFA. O COI,
mentos deles advindos. por exemplo, define standards e a agenda que disponibiliza aos diferentes países/
Tais cidades, na perspectiva dos agentes desses projetos, devem ser apre- cidades a estrutura de suas respectivas candidaturas a cidades-países-sede. Alguns
sentadas como econômicas em conflitos sociais, o que requer dos gestores e pla- dos valores apresentados nessa agenda, como aqueles associados aos green games
nejadores ações de reestruturação do espaço, mas também de imposição de uma bem como as representações do que o Comitê entende por cidades modernas e
determinada ordem civilizatória, com projetos de pacificação social e de militari- globais também estão presentes. Por outro lado, na esfera local, os Jogos consti-
zação de territórios. Os gastos com segurança já estão consagrados no orçamento tuem também oportunidades para as coalizões políticas e econômicas dominantes
de megaeventos dos países com elevada desigualdade. Por isso, da África do Sul reconstruírem seu projeto de cidade. Na escala dos países, tais eventos engendram
ao Brasil, tais despesas ocupam sempre posição de destaque, a fim de preservar a discursos nacionais. Lembramos, por exemplo, o uso ideológico dos esportes no
integridade dos turistas e da imagem da cidade na mídia internacional (cf. Mabin, regime nazista, no Brasil a Copa de 1970 com a retórica nacionalista em tempos de
2010;Stavridis, 2010). A crescente midiatização dos megaeventos passa a controlar ditadura ou, mais recentemente, na China o projeto olímpico como portador do ob-
diversos aspectos da imagem urbana, com impactos nas liberdades civis, no direito jetivo de solidificar o papel desse país na nova ordem mundial. As nações como
à cidade e no direito cidadão de ser visto (Broudehoux, 2004;2007). membros da comunidade internacional utilizam como passaporte para uma nova
Nesse contexto, a cidade-mercadoria vem se atualizando e, desse modo, vem inscrição no mundo sua condição de sedes de grandes eventos, como exemplifica
também exigindo esforços de reflexão crítica. Ressalte-se que, ao estimular a rein- a retórica do então presidente Lula quando, no primeiro momento do anúncio da
venção da cidade e sua nova inscrição mundial pela via dos megaeventos ou dos cidade-sede, declarou “finalmente, conquistamos nossa cidadania internacional”.
grandes projetos urbanos, tal modelo de cidade e seu urbanismo de resultados têm Na dimensão cultural eles evocam uma experiência compartilhada pelos ci-
contribuído para aumentar a desigualdade: ao mesmo tempo em que são renova- dadãos do mundo. A venda e o consumo dos Jogos levam junto a venda da imagem
dos os espaços em ritmo intenso e a prazo fixo, ficam diretamente comprometidas de cidades globalizadas. Nestes termos, também evocam pertencimento e orgulho
as receitas públicas e as políticas sociais (cf. Horne&Manzenreiter, 2006), favore- dos cidadãos. O projeto olímpico e sua economia simbólica transmitem um ideá-
cendo a multiplicação de conflitos. rio de “inserção competitiva” da cidade. Um “vir a ser” de grande desenvolvimento,
pressionando assim os cidadãos a um engajamento irrestrito. A cobertura da mídia
e a produção de imagem de cidades-marca apresentam complexas e relacionadas
As diversas faces da globalização nos megaeventos representações da cidade. A cidade ressurge como núcleo de fluxos internacionais
esportivos: notas acerca do engajamento do Rio de de informação e comunicação, e os Jogos alargam audiências e mercados.
Janeiro na “aventura olímpica” Em sua dimensão urbana os Jogos aceleram projetos já existentes. Têm, em
geral, um suporte entusiasta, tanto popular quanto empresarial. Tem sido, nestes
Os megaeventos parecem, ao mesmo tempo, refletir e condensar a crescente casos, afirmada a política urbana marketfriendly. A cidade passa por grande renova-
globalização. As relações escalares entre os grandes eventos e a globalização nos ção física e, ao mesmo tempo, do imagemaking-over (SHORT, 2008).
permitem avaliá-los como fenômenos simultaneamente globais, nacionais e urba- Agentes fundamentais e instrumentais à geografia da difusão de modelos, os
nos em suas dimensões econômica, política, cultural e urbana. consultores conduzem as ideias que circulam e se afirmam por terem participado da
Na dimensão econômica os eventos oferecem importante plataforma mun- realização de empreendimentos do gênero: grandes eventos (espanhóis, australia-
dial para as corporações que realizam sua propaganda nos e através dos Jogos. Cir- nos, alemães, ingleses) ou a elaboração de planos estratégicos (como o de Barcelona,
cuitos internacionais de capital, sobretudo nos ramos do turismo, do capital imobi- tornado paradigmático no Brasil e na América Latina) constituem o capital simbólico
liário e da indústria do esporte e do entretenimento aproveitam esta oportunidade que se busca converter – a uma taxa de câmbio que é tanto mais desigual quanto o

368 O projeto de cidade para os megaeventos Fernanda Ester Sánchez Garcia 369
capital detido – nos territórios onde se quer adentrar. Atualmente, é possível verificar ações têm suscitado4. Tal matéria teve forte impacto político na redefinição dos
disputas entre grupos e países representando a expertise internacional pela posição termos do conflito.
dominante no mercado de modelos de gestão e implementação de megaeventos. Na escala regional, dois laboratórios, representados por professores e estu-
As estratégias para exportar know-how por parte de consultores identifica- dantes de duas universidades federais, trabalham de forma articulada, sob deman-
dos com as chamadas “experiências de sucesso” constroem-se no campo simbólico, da e em apoio a essa comunidade, na produção conjunta de um Plano Popular de
onde o que está em jogo é o poder propriamente político de afirmação de compe- Urbanização. Tal iniciativa está fundamentada numa ideia de cidade onde a perma-
tência e autoridade frente aos demais proponentes no mercado de consultoria e nência de um bairro popular, bem ao lado do futuro Parque Olímpico, tem um efeito
expertise internacional. Tais estratégias de circulação de modelos de cidades em um simbólico significativo na luta pelo controle e apropriação do espaço urbano. Exem-
mercado mundial tomam a forma discursiva, mas têm efeitos políticos, pois subme- plos como esse acontecem também em outras cidades brasileiras, assim como em
tem as cidades às novas modalidades de valorização do capital. cidades e metrópoles de outros países, onde o modelo de reestruturação urbana
O espetáculo urbano das cidades onde vêm sendo implantados grandes pro- por meio da celebração de grandes eventos esportivos tem sido abraçado.
jetos constitui, pois, um símbolo de renovação e também um potente instrumento É preciso, porém, avançar muito ainda para desvendar os processos de produ-
de legitimação e de coesão social, que vem sendo acompanhado de ações espe- ção e difusão desse modelo, para encontrar seu conteúdo e natureza e, sobretudo,
cíficas destinadas a aumentar o grau de satisfação dos citadinos com os objetivos reconhecer com clareza um conjunto de agentes que os operam e que reivindicam
de tal projeto. Desse modo, reinventar a cidade em sua era olímpica, por exemplo, sua condição dominante em diversas instâncias e escalas. Tais processos podem ser
implica reconstruir sua imagem buscando corrigir percepções negativas da audiên- interpretados como contraditórios, com perdedores e ganhadores. Também como
cia nacional e internacional. Tais esforços recaem em imagens estereotipadas que oportunidades chave para um rearranjo das coalizões em torno dos projetos de de-
recortam os territórios da cidade de modo seletivo. Liderada pelas elites políticas e senvolvimento, para obter ganhos significativos em seu poder de classe. Em suas
econômicas, esta reinvenção reflete uma visão particular da sociedade, fragmenta- fissuras também se apresentam como oportunidades para ampliar o debate, desna-
da, distorcida e simplificada e, portanto, excludente. turalizar visões dominantes e identificar a emergência de conflitos que desafiam os
A opinião pública, contaminada pela política-espetáculo, pela publicidade projetos e sua economia material e simbólica.
oficial, ainda está pouco consciente das múltiplas dimensões econômicas, sociais,
políticas e urbanas do engajamento da cidade do Rio de Janeiro na “aventura olím-
pica”. No entanto, encontramos diversas expressões do conflito urbano protagoni- Referências bibliográficas
zadas por atores que contestam a ordem dominante, em novas redes e organiza-
ACSELRAD, Henri. Vigiar e unir: a agenda da sustentabilidade urbana. In: A Duração das
ções que disputam projetos de cidade assim como os sentidos das transformações.
Cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. 2ª. Edição. Rio de Janeiro:
Importante destacar que tais atores e redes que expressam o conflito têm se articu- Lamparina, 2009.
lado em múltiplas escalas, o que em determinados casos fortalece suas lutas pelo
BIENENSTEIN, Glauco. Globalização e Metrópole: a relação entre as escalas global e local: o
controle do espaço. Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Anais IX ENAnpur, 2001.
Caso emblemático é o da Vila Autódromo, bairro popular contíguo à área
Broudehoux, Anne-Marie. Spectacular Beijing: the conspicuous construction of an
onde será o Parque Olímpico, cuja comunidade e lideranças, diante das ameaças Olympic Metropolis. Journal of Urban Affairs, vl.29, number 4, 2007, pp.383-399.
de remoção, têm buscado, para além da esfera local, formas de enfrentamento da
. The Making and Selling of Post-Mao Beijing.London: Routledge,
política urbana dominante, em ações comunicativas e políticas inscritas em diver- 2004.
sas instâncias e escalas: Comitê Popular da Copa e Olimpíadas, de âmbito local e
DEBORD, G. La Sociedad del Espectáculo. Buenos Aires, La Marca Biblioteca de la Mirada, 1995.
nacional, plataformas internacionais de direitos humanos e de direito à habitação,
Horne, J. &Manzenreiter, W. Sports mega-events. Social scientific analyses of a global
como a Dhesca e a Relatoria Internacional da ONU para a Moradia Adequada, mídias
phenomenon. Oxford, Blackwell Publishing, 2006.
alternativas e redes sociais, onde circulam vídeos e notícias acerca do conflito e, até
LEFEBVRE, H. La vie quotidiennedans le monde moderne. Paris, Gallimard, 1968.
mesmo, a grande mídia, com matéria assinada no New York Times, publicada em
março de 2012, na qual um jornalista norte-americano faz menção direta ao caso, LIMA JUNIOR, Pedro Novais. Uma estratégia chamada “planejamento estratégico”.
para exemplificar a política oficial de remoções assim como os conflitos que tais
4. Romero, Simon. “Slum Dwellers are defying Brazil´s grand design for Olympics”. The New York Times, 4 de março de 2012.

370 O projeto de cidade para os megaeventos Fernanda Ester Sánchez Garcia 371
Deslocamentos espaciais e a atribuição de sentidos na teoria do planejamento urbano.
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2010. A cidade dos megaeventos como
laboratório neoliberal
MABIN, Alan. Thinking the complexities of Mega-events in cities, 2010 and after. Conferência
Internacional Megaeventos e Cidades. IPPUR-UFRJ e PPGAU-UFF. Niterói, Universidade
Federal Fluminense, 2010.
MARTINS DA CRUZ, Marcus Cesar. Do Mississipi Carioca ao Estádio Voador. Forjando espaços de
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Christopher Thomas Gaffney
MASCARENHAS, G.; OLIVEIRA, L. D. de. 2006. “Adeus ao proletariado?”: A dimensão simbólica
do estádio da cidadania (Volta Redonda – RJ / Brasil)”. In: Revista Digital – Buenos
Aires 11/101.Disponível em <http://www.efdeportes.com>.
Resumo | Ainda que as estruturas econômicas e políticas do Brasil tenham se estabilizado
MASCARENHAS, Gilmar; BIENENSTEIN, Glauco; SÁNCHEZ, F. O Jogo Continua. Megaeventos e
durante 25 anos e o país tenha assumido uma postura cada vez mais importante no cenário
Cidades. Rio de Janeiro: EDUERJ e FAPERJ, 2011.
global; durante esse processo, as tendências dominantes no neoliberalismo, na política e
OLIVEIRA, Alberto; OLIVEIRA, A. “O emprego, a economia e a transparência nos grandes
na economia global foram sendo reproduzidas dentro de um contexto de um estado que
projetos urbanos”. Artigo apresentado no II Encontro ETTERN-IPPUR-UFRJ,
“Globalização, Políticas territoriais, Meio Ambiente e Conflitos sociais”. Vassouras, RJ, tradicionalmente limitou as possibilidades de reprodução do capital financeiro. Enquanto
2009. as transições a neoliberalismo numa escala nacional são desiguais e contraditórios, é dentro
dos contextos urbanos que as coalizões de interesses politicos e econômicos transformam
OLIVEIRA, Fabrício; LIMA JR, Pedro N et al. Grandes projetos urbanos: panorama da
experiência brasileira. Belém: Anais XII ENAnpur, 2007. o espaço e as relações sociais de forma mais aguda. A chegada dos Mega Eventos Esportivos
(SMEs) nas cidades brasileiras acelerou e cristalizou esses processos, em particular no rio de
OLIVEIRA, Fabrício; LIMA JR, Pedro Novais; VAINER, Carlos. Notas metodológicas sobre
a análise de grandes projetos. In: OLIVEIRA, Fabrício; CARDOSO, Adauto; COSTA, Janeiro que receberá a Copa do Mundo da FIFA de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Esse
Heloisa Soares de Moura; VAINER, Carlos. Grandes projetos metropolitanos. Rio de capítulo examinará o papel desses eventos na cidade do Rio de Janeiro e como suas estrutu-
Janeiro e Belo Horizonte. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2012. ras políticas, econômicas, sociais e fiscais são reestruturadas durante os mesmos.
PRIETO, Gustavo; VIANA, Juliana. “Há-háhu-hu o Maraca é nosso”: uma análise do espaço Abstract | As Brazil’s economic and political structures have stabilized over the past quar-
público e das territorialidades do Estádio Jornalista Mário Filho (Maracanã). In: Berlin, ter century, the country has assumed an increasingly important role in global affairs. During
NeueRomania39 (2009), p. 95-105.
this process, the dominant trends towards neo-liberalism in the global political-economy
SÁNCHEZ, F. A Reinvenção das Cidades para um Mercado Mundial. Chapecó: Argos, have been reproduced within the context of a Brazilian state structure that has traditionally
UNOChapecó, 2ª. Edição, 2010.
limited the reproduction of finance capital. While transitions to neo-liberalism at the nation-
SÁNCHEZ, F. “Aldeia Maracanã: é assim que se faz uma Copa?”. In: PeriódicoBrasil de Fato, al scale are uneven and contradictory, it is within particular urban contexts that coalitions of
Disponível em: <www.brasildefato.com.br>. Acesso em: sexta-feira, 5 de abril, 2013.
political and economic interests transform space and social relations. The arrival of a series
SHORT, John. Globalization, cities and the Summer Olympics. City, Publisher: Routledge, Vol 12. of Sports Mega-Events (SMEs) has accelerated and crystallized these processes in a number
Nº 3, dezembro de2008.
of Brazilian cities, including Rio de Janeiro, which will serve as a host to both the 2014 FIFA
STAVRIDIS, S. Athens 2004 Olympics: Modernization as a State of Emergency. Conferência World Cup and the 2016 Olympic Games. This paper will examine the role that Sport Mega-
Internacional Megaeventos e a Cidade. IPPUR-UFRJ e PPGAU-UFF. Niterói, 2010.
Events are having on the city of Rio de Janeiro as its political, economic, social and physical
SWYNGEDOUW, Erik; MOULAERT, Frank; RODRIGUEZ, Arantxa (Eds). Globalized City. Economic structures are shaped in the lead up to the events.
Restructuring and Social Polarization in European Cities.Oxford University Press, 2003.
Resumen | Aunque las estructuras económicas y políticas de Brasil se han estabilizado des-
VAINER, C. “Pátria, empresa e mercadoria. Notas sobre a estratégia discursiva do
de hace 25 años y el país ha adoptado una postura cada vez más importante en el escenario
planejamento estratégico urbano”. In: ARANTES; VAINER; MARICATO. A cidade do
pensamento único. Desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes, 2000. mundial; se da que durante este proceso, las tendencias dominantes en el neoliberalismo, la
política y la economía mundial son reproducidas en el contexto de un estado que tradicio-
. Cidade da Exceção. Conferência Internacional Megaeventos e a Cidade. IPPUR-UFRJ
e PPGAU-UFF. UFF, Niterói, 2010. nalmente ha limitado las posibilidades de reproducción del capital financiero. Mientras que
las transiciones neoliberales a escala nacional son desiguales y contradictorias, es dentro de

372 O projeto de cidade para os megaeventos Christopher Thomas Gaffney 373


los contextos urbanos que las coaliciones de intereses políticos y económicos transforma el The complex interplay between urban space and the demands of SMEs is the
espacio y las relaciones sociales con más intensidad. La llegada de Mega Eventos Deportivos focus of a growing literature (Gold and Gold 2007; Horne and Whannel 2012; Gaff-
(SMEs) a las ciudades de Brasil aceleró y cristalizó estos procesos, especialmente en Río de ney 2010; Broudehoux 2007; Mascarenhas, Bienenstein, and Sánchez 2011). The new
Janeiro que recibirá la Copa del Mundo FIFA 2014 y los Juegos Olímpicos en 2016. En este urban planning regimes that re-articulate urban space to meet the short term de-
capítulo se analizará el papel de estos eventos en la ciudad de Rio de Janeiro como sus siste- mands of the event create tensions with the extant urban and social fabrics. These
mas político, económico, social y fiscal son reestructurados durante los mismos. tensions result in gross human rights violations (COHRE 2007; Pithouse 2008) and
frequently result in “white elephant” structures that have deleterious effects on the
provision of basic city services(Alegi and Bolsmann 2013). The discursive frameworks
Introduction that dominate current SME production are oriented towards the reformulation of
urban and social infrastructures that will come as side benefits of a SME. These dis-
The competition to host (SMEs) is global in a number of different senses. Cap- courses have material impacts on urban space and governance. And while the ten-
turing an SME is akin to a hunt typically undertaken by large, wealthy cities in search dency is for majority public spending on these events, the major beneficiaries are
of a rare, itinerant species that carries a promise of increased capital accumulation private enterprises(Shaw 2008; Lenskyj 2000; Boykoff 2013; Preuss 2004; Raco and
and circulation. Competing cities tend to have well-developed global profiles with Tunney 2010).
economies large enough to fund the event or are trying to extend or reformulate The arrival of a series of SMEs on Brazilian soil, especially in Rio de Janeiro
their “brand recognition”1. Media conglomerates, business interests and politicians which will host seven games of the 2014 World Cup and the 2016 Summer Olym-
perceive SMEs as constitutive moments that will project a city to a world-wide au- pics, has accelerated trends towards neo-liberal urban governance. While the events
dience with the end goal of attracting increasingly mobile forces of global capital: themselves are not solely responsible for this shifting paradigm, they are deeply im-
through increased international tourism, additions of multi-national corporations, bedded. The trends towards entrepreneurial governance in Rio de Janeiro have been
greater media attention and increasing the number of local conferences and other present since the mid-1990s and have always taken the pursuit of mega-events as a
events. The global nature of SMEs also ensures that they have profound political im- prime directive. Their arrival has ushered in a suite of governance tactics that have
plications in the local context: the willful exhibition of place to global audiences also accelerated the tendencies towards neo-liberalism in the local context. In this paper,
exposes those who live there to macro-level political and economic forces. In order I will explore the mechanisms through which SMEs are pursued, captured and ex-
to bring the SME into being, radical transformations to the urban fabric are carried ecuted by, first, comparing the processes of SME production to those by which neo-
off by ad-hoc political organizations that exist outside the realm of democratic ac- liberal regimes are installed through pre-emptive war. Secondly, I will examine the
countability. The parallel governmental frames erected to produce the event tend history of SMEs in the context of Rio de Janeiro. Then, I turn to the discursive framing
to weaken existing democratic institutions (Horne and Whannel, 2012). of the Olympics exploring how the representations of an Olympic imaginary serve
The localized euphoria surrounding the production and consumption of an as both a priori and a posteriori justifications for the suite interventions that SMEs
SME is stimulated and amplified by the very forces that bring it into reality: politi- call into being2. I conclude by suggesting that the arrival of SMEs in Rio de Janeiro
cians, corporations, national and international sports federations, marketing firms has pushed the production of urban space in Rio de Janeiro even further into a neo-
and media conglomerates. The dominant narratives of an SME are of celebrating liberalizing framework. Within this framework, the city is used as a laboratory for
shared cultural values (globalization ), the construction of a better society through new forms of urban governance that will be observed, transferred and adapted, not
sport (transformation), the valorization of the local in the global marketplace (brand only within Rio de Janeiro itself, but in future SME host cities around the world.
recognition), and the scarcity inherent to a SME to bring about lasting changes to
urban space and culture (legacy). These discursive frameworks are consistent with
a neo-liberal political economic frame that “promotes individualism and entrepre-
neurialism engender[ing] debates about the norms of citizenship and the value of
human life”(Ong 2006), 9).
1. Throughout the chapter I put words in quotations that are not attributable to any one author but that are used as
colloquial expressions of value creation by those involved in the production and promotion of SMEs. I use the quota- 2. I will focus almost exclusively on the role that Olympics are playing as they call into being a much larger range of
tions to call attention to their discursive nature in order that they can be called into question. urban, political and economic interventions than the World Cup.

374 A cidade dos megaeventos como laboratório neoliberal Christopher Thomas Gaffney 375
Shock and Awe – the tactics, techniques, into global circuits of capital accumulation – failure to capture these events can be
considered equivalent to failing to eliminate the competitive threat posed by other
and discourses of “war.”3
cities. Eliminating threats to the nation is a justification for war. The public relations
firms argue for the preservation of the nation/city using manufactured evidence,
As Hayes and Horne (2011)and Gaffney (2010) have suggested, the production
WMDs in the case of Iraq; the risk of losing short, medium and long term economic
of the mega-event city is akin to the imposition of neo-liberal economic and po-
benefits to other cities in the case of the Olympic host.
litical regimes through what Klein (2008) calls “shock doctrines” – tactics employed
Thirdly, the Iraq War was conceived, designed, and implemented with the co-
by sovereign powers to erase and remake the world in the image of global capital.
operation and collaboration between the public and private sectors. The end effect
While investigating autocratic and rapacious regimes of accumulation, Klein out-
is to created the conditions through which the external agent can attach itself to
lines a process of dismantling and re-constructing sovereign states through force of
the host in a nearly biological manner, stay for a time while wealth and power are
arms and techniques of terror. When considered in this context, the conceptualiza-
drained, and the leave after the war is over. We see this parallel between the Iraqi
tion, selling, implementation, and realization of SMEs in Brazil are revealed as tac-
invasion and the way that FIFA and the IOC are operating in Brazil. USA Vice-Presi-
tics and techniques that work to install a neo-liberal model of social and economic
dent Cheney had recently served on the board of directors of one of the companies
development in a particular kind of urban space. In order to explore this possibility
(Halliburton) that stood to benefit the most from war contracts and then-president
further, I examine a paradigmatic example of the doctrine of shock and awe4, draw-
G.W. Bush had long standing ties to the petroleum industry. Similarly, Rio’s Mayor
ing five parallels between that “war” and the implementation of SMEs in Brazil.
Eduardo Paes has had his campaigns financed by real-estate developers and con-
Firstly, the Iraq war was “sold” by a public relations firm (The Rendon Group)
struction interests in the Barra de Tijuca neighborhood, the site of 70% of Olympic
in tight collaboration with public authorities. This is comparable to the production
infrastructure development. Rio de Janeiro’s current governor, Cabral had his extra-
of the Rio 2016 Olympic Bid Book and global media campaign by the MacKensie
official relationships revealed with Delta, one of Brazil’s biggest civil construction
Group who worked with elected officials and the Brazilian Olympic Committee
firms and former-president Lula has close personal connections with Odebrecht, an-
(COB). The similarities in manufacturing consent for the different projects are strik-
other large-scale civil construction firm that has been a primary beneficiary of SME
ing in that both reveal some form of geo-political competition, offer distinct eco-
construction projects (Omena 2013).
nomic and social outcomes, and are carried off under “the voluntary creation of a
Fourthly, a parallel can be observed between the installation of a temporary,
permanent state of emergency” (Agamben 2005)manufactured by public authori-
extra-legal government, or as Agamben describes, “a threshold of indeterminacy
ties in conjunction with a public relations firm. Contrary to the bombing campaigns
between democracy and absolutism” (2005, 3). In the case of Iraq, the Coalition Pro-
of full-scale invasions, in the case of mega-events, it is the mediated euphoria of
visional Authority (CPA) revoked the Iraqi constitution and imposed a series of laws
conquest that functions as the awe-inducing element that opens the way for the
that privileged foreign oil-exploration firms, dissolved the Iraqi army, banned the
deployment of a series of shocks.
Baath political party, and brokered a new constitution(Docena 2005). The state
Secondly, the Iraq invasion was predicated upon the notion of an existential
of emergency that the invasion generated justified this intervention. This ex post
threat to the nation vis a vis manufactured evidence of Weapons of Mass Destruc-
facto rationale has also been applied in Brazil, where a series of extra legal institu-
tion. If this threat were not eliminated, according to the official rationale, the nation
tions (such as the Autoridade Público Olimpico and the Empresa Municipal Olim-
would be at risk. Similarly, notions of civic and national patriotism are continually
pica) were created by executive orders and wield extraordinary power over decision
in play in the preparation of an Olympic bid. The idea of “competitive cities” (Sán-
making processes that would ordinarily flow through democratic channels. Agam-
chez 2003) has created a permanent, existential risk to the prosperity of cities in the
ben describes the state of confusion between acts of executive power and acts of
minds of public officials. Mega-events have become prized tools for inserting cities
legislative power as “one of the essential characteristics of the state of exception.”
This confusion extends to all levels of government in Brazil in relation to SMEs. In
3. I put war in quotations here because there is some dispute about the accuracy of this term in the cases that I will
explore. In the case of USA-Iraq, the nearly complete absence of resistance on the part of the Iraqi army and the rapid both cases, Iraq and Brazil, the notion that new governance regimes and their at-
capitulation of the government suggests that there was no effective fighting force for the USA to overcome. Without tendant laws are necessary, inevitable and temporary interventions bellies the fact
opposition, can there be war? In the case of Rio, the tactics and techniques of military occupation are similar to those
of conventional war, or counter-insurgency conflicts, but there is no identifiable enemy. that the conditions that brought them into reality and the risks that they attend to
4. The opening operation of the USA’s 2003 invasion of Iraq was named “shock and awe”. The action consisted of a are wholly manufactured.
three-day bombing campaign designed to terrorize the Iraqi population while eliminating strategic military targets.

376 A cidade dos megaeventos como laboratório neoliberal Christopher Thomas Gaffney 377
Finally, the installation of temporary regimes of governance through tactics Tracking down the Games
of “shock and awe” has as an end goal the re-formulation of social, spatial, political,
and economic relations in the neo-liberal mode5. Following Klein, once the shock The use of mega-events to transform space and social relations has a long
has worn off, individuals and communities are either too traumatized to respond, history in Rio de Janeiro (Furtado and Resende 2008; Gaffney 2010;). Always with
have become anesthetized and passive, or have woken up under a new suite of laws the intention of transforming the city to reflect the ideological directives of the
(such as the Lei Gerald a Copa) that they are powerless to fight against as normal time, large scale interventions to the city have punctuated the urban fabric with an
channels of governance have been eliminated. There is scant representation of uneven periodicity.
civil society organizations within Olympic-related governing bodies. Those who The political leadership of Rio de Janeiro began their quest to capture global
actively resist the new regime are characterized as insurgents by public authorities sport mega-events in the mid 1990s with a bid for the 2004 Olympic Games. In an at-
and media. The new laws create categories of offenses that previously did not exist tempt to replicate the perceived successes of the 1992 Barcelona Olympic Games as
For instance, there is a law under consideration in the Brazilian Senate that would a catalyst for urban, cultural, and economic transformation, then-mayor Cesar Maia
characterize social movements as terrorist organizations during the realization of hired Catalan consultants to develop Rio’s first “strategic urban plan”, published in
SMEs (PROJETO DE LEI DO SENADO, Nº 728 de 2011). There is currently no crime of 1995 (Gusmão de Oliveira 2012). The 1995 Strategic Plan laid out a framework for
terrorism in the Brazilian legal code. Once the political and economic interventions urban governance that would make the city “competitive” by employing the strate-
have been fully executed, the temporary regime disappears. In the case of the CPA, gies of city-marketing, the implementation of large urban renewal projects, and the
the re-structuring of Iraq’s economy from centralized planning to the neo-liberal pursuit of a political economy based in urban entrepreneurship. As a component of
mode was effected in 14 months, after which the CPA ceased to exist. Brazil’s APO this strategy, Rio de Janeiro submitted a bid for the 2004 Olympics but did not make
is scheduled to expire in 2018, or sooner, depending on the will of the Conselho it past the aspirant stage. The big prize was clearly some years away. Following these
Público Olímpico, a three-person executive tribunal headed by the Brazilian presi- failures, COB employed the experience of their Olympic applications to secure (in
dent, the Rio Governor and the Rio mayor (or their representatives). The techniques, 2003) the right to host the 2007 Pan American Games (PAN).
tactics, and processes of “exception” are also being applied in the eleven other cities The process of preparing Rio de Janeiro to host the PAN was fraught with
that will host the 2014 FIFA World Cup. In the case of Rio de Janeiro, the situation is difficulties. Originally projected to cost R$330 million, the PAN eventually ran ten
particularly worrisome as the multiple, overlapping layers of temporary governance times over budget and resulted in multiple law suits brought by the Brazilian federal
have poorly defined directives. government against members of the organizing committee. The PAN organizing
While the analogy between invading a sovereign nation and the arrival of committee failed to deliver any “legacy” projects and left behind multiple “white
a SME may initially seem far-fetched, there are so many parallels that the thread is elephants”(Gaffney and Melo 2010). Several neighborhoods experienced traumatic
worth following. In the case of Rio de Janeiro, the awe generated by the manufac- invasions by Military Police and on the eve of the PAN, as many as 40 people were
turing and production of the Olympic spectacle have served as a significant distrac- killed by a police action in the Complexo do Alemão, one of Rio’s largest favela
tion while a series of shocks are applied throughout the city. While it is true that the complexes. In addition to increased police activity, civil rights were under threat as
city government and Rio 2016 sought out these events, their realization necessitates human rights lawyers came under threat and intimidation. During the PAN, 17,000
the same kind of tactics of shock and awe that occur in military conflict. Instead police concentrated in strategic Pan American zones, guaranteeing fluid circulations
of trauma, the shock and awe are experienced as mediated spectacle. The festive for athletes, dignitaries and tourists. The federal government spent more than R$1.6
shocks are soon replaced by economic, political and social interventions justified by billion on security for the event(Mascarenhas 2007; Gaffney and Melo 2010).
the delivery horizon of the Olympic project. In order to make sense of the conjunc- The hosting of the PAN was hugely problematic, but gave Rio’s political and
ture in which the shock is applied, the urban, political history of the event needs to sporting elite valuable experience in organizing a SME and credibility in the eyes of
be explored. the IOC. Shortly after the PAN, FIFA awarded the 2014 World Cup to Brazil. 6 It was in
5. I understand the neo-liberal mode of governance to be a suite of techniques and tactics that aim to isolate the indi- late 2007 that the 2016 Olympic bid project began to coalesce.
vidual in relation to market forces, reduce the role of the state in the provision of basic social services, and that “public
authorities will only intervene in the economic order in the form of the law”(Foucault,2010). There is no universalizing
description of neo-liberalism but it can be considered a a political philosophy that assumes the “market is better than 6. The 2014 World Cup was essentially the awarding of a no-bid contract, as FIFA had temporarily instated a continental
the state at distributing public resources and that there should be a return to an individualism that is ‘competitive’, rotation system for the event, promising a South American host the World Cup after South Africa 2010. Brazil was the
‘possessive’, and constructed in terms of the doctrine of ‘consumer sovereignty’” (Ong 2006, 11). only candidate put forward by CONMEBOL, the South American football confederation.

378 A cidade dos megaeventos como laboratório neoliberal Christopher Thomas Gaffney 379
The growing international political stature of Brazil and the rightward shift ment which the World Cup and Olympics promised to multiply (“Proposta Estraté-
in governance tactics on the part of the Brazilian Worker’s Party (Partido dos Trab- gica de Organização Turística – Copa 2014” 2009). Additionally, Rio had not experi-
alhadores), as well as the importance of Rio de Janeiro in the collective imaginary enced the kind of real-estate bubbles that crippled the Spanish and USA economies
of the nation, helped to build strong political alliance between the PT, the Rio de in 2008. To the contrary, the Brazilian state was subsidizing housing projects and in
Janeiro State governor, Sergio Cabral, and Rio’s mayor Eduardo Paes.7 These three Rio de Janeiro had embarked upon an aggressive new security strategy (UPP) that
combined with the COB and the federal Ministry of Sport to produce a unified politi- was opening areas of the city for investment.
cal front and to guarantee a limitless budget to bring the Olympics to Rio. This multi- The state and federal elections of 2010 maintained the hegemonic political
scalar political consensus hugely favored Brazil’s candidature. For the IOC, having structure that brought the Olympics to Rio. At the municipal level, the mayor enjoys
the full weight of the Brazilian state behind the 2016 Olympics was likely a determin- almost complete control over the city council and has repeatedly used executive
ing factor in the awarding of the 2016 Summer Olympics8. President da Silva, one of orders to carry out SME-related projects. The close relationships between Arthur
Rio 2016’s major cheerleaders, signed a R$33 billion financial guarantee that would Nuzman, the long-time President of the COB, and the political actors controlling the
underwrite the Rio Olympics. city and state governments and the federal Ministry of Sport have facilitated and
Two additional factors that likely contributed to the selection of Rio de Ja- accelerated these projects.
neiro as 2016 Olympic host were the relatively high opportunities for an “Olympic The urban, political, financial and social interventions associated with Rio’s
legacy” when compared to the other candidates and the unparalleled opportunity SMEs are too extensive to be explored here. In what follows I offer a means of con-
to extract surplus value from the event. The IOC is a purely self-referential institu- ceptualizing the way that the city is discursively framed by the SME project. These
tion, yet it is naive to think that the selection of Olympic sites can be separated from discourses, I suggest, have material effects in that they call into being new spaces
accumulation strategies(Shaw 2008; Horne and Whannel 2012). In the wake of of interaction. As reflections of the desires of those who create and project them,
the lavish Beijing Olympics and the onset of a global financial crisis, the organizers urban imaginaries are fundamental to the production of space (Lefebvre 1973).
of the 2012 London Olympics were quick to limit expectations and justify what sud-
denly appeared to be extravagant public spending on the Games. As the global eco-
nomic crisis worsened in the lead up to the vote for the 2016 Olympics (in October Olympic Imaginary
of 2009), residents and politicians of Madrid and Chicago began to resist publically
their city’s candidatures, citing the need to spend increasingly scarce funds more The production of geographic imaginaries has long influenced the way that
pragmatically. This was not the case in Rio de Janeiro, where public resistance was individuals envision possible futures. The extensive literature on the use of maps
fragmented and the “Brazilian boom” ensured fiscal profligacy. The Rio 2016 budget, and images to influence human perception of the world has yet to formally take the
at R$33 billion, was greater than all of the other candidates combined and promised production of the Olympics as a subject, but it is clear that the theoretical models
to generate “urban and social legacies” that would forever place the Olympic seal and analyses undertaken by Harley (1989), Cosgrove and Daniels(1989) and Duncan
on the city. (2005)but that they also influence governing ideas of political and religious life. He
In addition to (and perhaps because of) massive public investment in the analyzes this dialectic relationship between landscape and the pursuit of power in
games, the opportunities for private capital to multiply in Rio de Janeiro were great- the royal capital of Kandy in the central highlands of Sri Lanka during the early years
er than in other candidate cities. With three levels of government investing tens of of the nineteenth century and demonstrates how the Kandyan landscape was con-
billions in transportation infrastructure, subsidizing hotel development, sporting fa- sciously produced to further the perceived interests of the Kandyan kings. Using
cilities, security projects, “urban regeneration” and Olympic housing projects, there extensive archival sources, architectural analysis and mapping, the author reveals
would be opportunities for civil engineering and construction firms to profit.9 The how the landscape was designed to foster a certain hegemonic reading that spoke
growth of the Brazilian economy had already attracted significant foreign invest- of the power, benevolence and legitimacy of the kings in their capital.”, can also be
applied to the way that Olympic candidate cites10 represent urban space and culture.
7. Elected in 2009, Paes had worked under Cesar Maia since the mid 1990s and served as Rio de Janeiro’s Secretary of Understanding these representations is important because they reflect the desires
Sport and Leisure during the PAN.
8. I suggest this is important because the Obama administration was not willing to provide a federal financial guaran-
tee and Obama himself only agreed to support the Chicago bid after significant prodding. 10. There are three stages of candidature along the way to becoming an Olympic Host: postulant (within the country),
9. By contrast, the second place candidate, Madrid, had more than 70% of Olympic infrastructure already in place. aspirant (global), candidate (final round).

380 A cidade dos megaeventos como laboratório neoliberal Christopher Thomas Gaffney 381
of local bodies, often elites, to re-shape urban space, speak to the perceived and tions and independent governance structures. These interventions are in part fos-
actual demands of international sports federations and drive urban planning agen- tered by the International Olympic Committee in every Olympic host city, but they
das in host cities. have local manifestations that articulate with situated political and economic inter-
During the hotly contested and wholly global competition to capture SMEs, ests. In particular, I call attention to the constitution of extra-legal governmental
candidate cities and nations present highly specific representations of urban space agencies that are tasked with the re-articulation of urban space. Research has identi-
and culture to international sports federations and to local populations. SME bids fied that at least 50 new governmental agencies were established for the 2014 World
are, by their very nature, discursively driven representations of a possible urban Cup (Omena 2013, Gusmão de Oliveira 2012)
future. Once the contracts are signed and the projects begin, discourses of develop- Though complex, we can also assert that an OI that is fragmented and pre-
ment, transformation, security, and sport take physical form on the landscape as scribed in its portrayal of urban space, using broad strokes to paint a highly selective
the Olympic city11 grows. The Olympic contract is the driving force behind the in- image that resonates with the spatial and social demands of the IOC as perceived
numerable transformations that “prepare” a host. Investigations into the processes by the candidate city. An OI employs discursive structures that are connected to the
through which the existing spaces of the city will be bent to the demands of a SME larger ideological narratives of the IOC. Those narratives are contained within the
reveal innumerable latent and potential conflicts that are elided in the event pro- IOC charter, but also utilize a neo-liberalizing, market-driven discourse that attends
moters’ (Olympic Federations, Business, Government and Media) representations of to the social, political, and spatial exigencies of international capital. Thus, Olympic
the city. Imaginaries utilize shorthand mechanisms to relay discursively laden ideas that are
The interrelated processes of representing and reshaping urban space in an inextricably connected to narratives of development and modernity. These imagi-
Olympic City begin ten years before the event itself with a tactical projection of naries are wrapped within the politically neutered discourse of sport as a means of
urban images and spatial tropes to the International Olympic Committee. These creating a universalizing context that further justifies large-scale urban interventions.
same processes “sell” an urban project to investors and residents. The spatial imagi-
naries, or geographies of representation (Bailly 1993), of the candidate city are con-
tained within the Olympic Bid Book (OBB), which is typically produced by a global Discourse Analysis
public relations firm in conjunction with the national Olympic committee of the
prospective host. These images and text of the OBB draw from and place demands One of the mechanisms for unpacking the narratives of an Olympic Imaginary
on urban space, its residents, and its visitors. I refer to the complex set of images is through a critical textual and visual discourse analysis of the bidding documents.
produced and projected in the Olympic candidature process as the Olympic Imagi- The underlying assumption of a critical discourse analysis is that gross word counts
nary (OI). will reflect priorities and targets, revealing trends and biases(Chouliaraki and
An OI is extensive in that it includes thousands of urban, political, financial, Fairclough 2010).
and social interventions that extend across the Olympic City: venues, transportation The following is an analysis of the English language Rio 2016 Olympic Bid
lines, athletes’ and officials’ housing, hotels, tourist sites, financing packages that Books. The words were searched on the document pdfs and word counts recorded.
stimulate construction, new legislation, communications networks, airports, social Some root words such as sustain were counted only when deployed in the context
programs and security apparatuses. The urban and social interventions emphasize of sustainability. The exercise was repeated to ensure accuracy of the count. The un-
compactness and exclusivity, limiting travel time between venues for spectators, derlying assumption of the exercise is that word frequency will indicate discursive
athletes, officials, and media. The Olympic City is distinct from the real city of traffic directionality.
jams, long commutes, spatial fragmentation and disconnectivity. Rio 2016 Olympic Bid Book Discourse Analysis (english)
The architectural features of stadia and spatial characteristics of Olympic Vil- Word Book 1 Book 2 Book 3 Total
lages, media centers, and hospitality suites produce guarantee zones of exclusion Citizen 2 1 8 11
and spaces of exception for VIPs or the so-called “Olympic Family”. Games-related Transformation 20 7 11 38
financial and political interventions guarantee commercial rights, financial exemp- Education 27 11 5 43
Social 33 13 17 63
11. For the sake of simplicity I will refer to the mega-event host city as an “Olympic city”, maybe for extra clarity, also Culture 52 14 8 74
add in how this will be distinct from the usage of an Olympic Village and an Olympic Park.

382 A cidade dos megaeventos como laboratório neoliberal Christopher Thomas Gaffney 383
Sustain(ability) 84 21 16 121 elaborately produced, digitized, and fragmented. The final video (200915) shows
WORD BOOK 1 BOOK 2 BOOK 3 TOTAL almost no Olympic spaces as such, but plays on emotions and the “natural disposi-
Legacy 52 52 25 129 tion” of Rio de Janeiro to host the Olympic Games16. The images, music, and sounds
Infrastructure 54 30 57 141 are nostalgic, rhythmic and emotional, generating strong affectation in even the
Development 62 57 26 145 most calloused observer.
Client 43 27 84 154 The final Rio 2016 video presents a highly fragmented and selected urban
Environment(al) 134 34 29 197 imaginary. The motifs of music, leisure, water, mountains, bright colors, and collec-
Security 30 14 186 230 tive emotion are predominant. The movements of sport occur within a context of
As reflected in the analysis of the Rio 2016 Bid Book, I interpolate the priori- sensual urbanism that plays host to the rhythms of samba, producing a sense of
ties of the event organizers as providing infrastructure development and economic harmony between the cultural, urban, and physical worlds. This strategy shows the
opportunities for global clients in a highly securitized environment. These practices tele-visual potential of the city while demonstrating that Rio de Janeiro already pos-
and goals are justified through the vague notion of “legacy” and the hollow signifier sesses the requisite cultural characteristics that will attract international tourists and
of “sustainability”. The comparatively low usage of terms like citizen and education, global capital. Logically, no Olympic promotional video would show the underbelly
as well as the almost complete absence of references to participation confirm the of urban life such as poverty and pollution, yet the images selected for the video
well-documented trends in the production of Mega Events(Broudehoux 2007; encompass a staggeringly limited area of the city, playing on the iconography of
Bennett 2011; Pillay, Bass, and Tomlinson 2009). The relative presence or absence of landscape and culture with every scene.
words used to describe the Olympic project as contained in the bid book, I take to The choreography of geography and culture shown in the Rio 2016 video fol-
be an indication of the weight given to the concepts by the Books´ authors. While lows a limited and repetitive sequence. Following the action frame by frame we
the public discourse tends to focus on catch phrases that sell the project in terms of are presented with the following physical and cultural landscapes (with points indi-
legacy, it is by measuring the words that are employed and deployed that we get a cated on map).
more concrete sense of what the project is truly targeting. The highly fragmented and repetitive representation of urban space and
A comparative discourse of Olympic City Bid Books would be a fascinating culture plays on a generalized understanding of Rio de Janeiro as a city that has a
exercise and would reveal the shifting ideological positions of the IOC over time as certain disposition towards sport and leisure. The circumscribed geography of the
well as the ways in which those positions are perceived and attended to by candi- video reinforces a touristic and voyeuristic imaginary of Rio de Janeiro. This spatial
date cities. While readers may draw their own conclusions from the discourse analy- imaginary strategically employs the natural beauty (human and physical, not archi-
sis above, there are clear indications that the 2016 Olympics privilege clients over tectural) and naturalized cultures (sport, samba, beach, football) of Rio de Janeiro
citizens and security over education. to sell the city’s candidature. Ironically, the video does not show the Barra de Tijuca
The textual discursive structure deployed in the Rio 2016 OBB was reinforced region of the city that will receive the majority of Olympic events. This is likely be-
through a global media campaign (undertaken by The Mackensie Group) by Rio cause these areas of the city have never figured into the geographic imaginaries of
2016 to sell the Olympic Project to international audiences. These took the form of Rio de Janeiro. The iconographic landscapes of the city are concentrated exactly
video presentations as well as celebrity and political appearances in media events around the points shown in the video and thus play on the limited, yet sensualized,
staged around the world12. In the Rio 2016 candidature process we can identify a dis- geographic frame that the city has in global, geographic consciousness.
tinct evolution of the Olympic videos. Earlier videos (200713, 200814) were relatively There is a second video component of the games that is more technically ori-
simple, technical representations of the “Olympic potential” of Rio de Janeiro. They ented towards Olympic installations, showing the infrastructural details of the OC.17
showed the bare bones of the Olympic City: transportation infrastructure, sport in- This longer video sequence utilizes simulated flights over the city that obfuscate
stallations, hotels and security. As the video projects evolved, they became more contemporary urban realities. For instance, in the fly-over of the projected Olympic

12. For instance, in October of 2008 the Brazilian beach volleyball champion Adriana Behar accompanied the president 15. http://www.youtube.com/watch?v=Z00jjc-WtZI&feature=related
of Rio 2016 on a marketing trip to Indonesia (terra.com.br) 16. A common refrain in Olympic literature regarding the Rio 2016 bid was that Rio de Janeiro, because of its extraordi-
13. http://www.youtube.com/watch?v=hRRJ9x1t9pI nary physical setting, has a natural disposition for athletic events.
14. http://www.youtube.com/watch?v=SUiSjSqhpFA 17. http://www.youtube.com/watch?v=G5X5IuB2Y8g

384 A cidade dos megaeventos como laboratório neoliberal Christopher Thomas Gaffney 385
geography. Looking at the representation of this region in the Rio 2016 map, the
Maracanã circle appears to occupy a 13km diameter, when the Maracanã region of
the games is comprised of two stadiums that together encompass less than a 3km
diameter18. This spatial exaggeration makes it appear as if the Olympic clusters are
closer to each other than they actually are, giving the transportation plan a feel of
coherence, compactness and fluidity that does not concord with the dysfunctional
reality of Rio de Janeiro’s public transportation system(Kassens-Noor 2012; “TCM
Questiona a Licitação Dos Ônibus Do Rio” 2012; “Sem Transporte Para Minha Casa
Minha Vida” 2013; “Turistas Sofrem Com Falta de Informação No Metrô” 2012; “Trens
Ainda Longe de Oferecer Transporte de Primeira Linha” 2013; Oliveira 2009a).
To compound the erroneous notion of the city presented in the Olympic
map, the metropolitan area as a whole is not considered. When overlaid onto the
metropolitan region, the Olympic City covers the wealthiest areas that are relatively
well served by public transportation, environmental, and recreational amenities.
By comparing the Rio 2016 map with the larger metropolitan area, there is no pre-
tense of extending the transportation legacy(for example) to include the millions
Map 1 Localization of video sequence shown in Rio 2016 Olympic Video (2009).
of people living in dozens of cities that surround the Rio de Janeiro city limits and
concentration in Barra de Tijuca, the communities that currently occupy this space the Bay of Guanabara. For instance, there will be no extension of the ferry lines that
(and have so for 40 years in the case of Vila Autódromo) are cleaned from the map. connect the cities of São Gonçalo and Niteroi, with their combined population of
The years’ long struggle for housing rights for many of Rio’s communities in Olympic 1.5 million to Rio de Janeiro’s city center. The 2016 Olympic vision might “include all
regions do not figure in the projection of the OI, though they are an integral part of sports in the same city” (as written on the map)but will ensure that those who live
the daily life of Rio de Janeiro – and will be an important and controversial element outside of the Olympic City will have radically uneven access to those sports, both
in the production of the Olympic City, especially in relation to security and housing during and after the Games.
policy. The simulacra of urban reality presented by the Rio 2016 videos presages the
work of sterilizing and securitizing urban space that will, in the real world, be carried
out by bulldozers, legal actions, and police forces.
Returning to the Rio 2016 OBB and the cartographic projection of the OI, we
can identify a misrepresentation of urban centrality and a false sense of connectivity
between newly demarcated Olympic clusters. The Olympic City is notably distinct
from the real city in that it focuses on Barra de Tijuca where the majority of the
Olympic projects will take physical form. The Olympic City is disconnected from its
metropolitan context, and is represented as an interlocking network of four Olym-
pic zones connected by homogeneous transit networks. The encircling of Olympic
zones gives the impression that vast areas of the city will be given over to Olympic Map 2 The Rio 2016
production, when in reality the areas that will undergo direct physical transforma- Olympic Map. Misre-
presentation of fluidity,
tion in preparation for the Olympics are quite limited when considering the city as connectivity and urban
a metropolitan area. centrality.
The Maracanã region focuses on the stadium of that name, which will host
the opening and closing ceremonies and games for the Olympic football tourna- 18. Naturally, the stadiums have urban impacts that extend beyond their physical structures, however,the cartographic
extension of the Maracanã cluster to extend to areas like the Ilha do Fundão or the Alta do Boa Vista is disingenuous
ment. This region is considered to be a central area in the context of Rio`s larger at best.

386 A cidade dos megaeventos como laboratório neoliberal Christopher Thomas Gaffney 387
The Olympic City as neo-liberal laboratory nouncement of Rio de Janeiro as the 2016 Olympic host and four years after the 2014
World Cup announcement the details of how these parallel governments will func-
I have outlined a general trajectory for the realization of SMEs in Rio de Janei- tion have yet to be fully understood19. This is an indication of the shroud of secrecy
ro and Brazil. The effects and processes by and through which these events unfold that covers these institutions and should serve as an alert to Brazilian civil society.
are too complex for any one person to understand fully, much less relate in a brief SMEs demand and call into being spaces of exception in which credentialed
paper. It should be evident that SMEs do not and cannot happen without specific individuals can move freely within a universalizing regime of isolation and belong-
political interventions that contravene existing laws, creating cities and states of ing. The division between included and excluded therefore pertains to people as
exception that re-structure legal, spatial and social relationships with the goal of much as it does to the spaces they inhabit (or not). This duality embeds the, “territo-
accelerating capital accumulation in the neo-liberal mold. These interventions are riality of citizenship…in the territoriality of global capitalism” (Ong 2006, 7) dislocat-
autocratic, instilling a state of emergency that is justified by the war-like approach ing the guarantee of rights by and from the state to the provision of rights by and for
of the institutions and people that imagine and produce them. the market.
I have demonstrated how the Rio 2016 project employed tactics of shock and The restructuring of space and social relations in Brazil is not happening be-
awe to stage the city as a laboratory for various forms of neo-liberal bio-politics. cause of mega-events but in service to the shifting processes of capital accumulation
To underscore this point, since 2009 the municipal government has run a program in which they are embedded. The spatio-temporal periodicity of SMEs makes them
called Choque de Ordem (shock of order).This “zero-tolerance” program targets particularly apt mechanisms for evaluating the most recent manifestations of the
minor infractions in the Zona Sul of Rio de Janeiro: irregular parking, street vending, larger trends in global, national, and metropolitan political economies. Brazil’s SME
non-permitted construction, minor drug offenses, sleeping on the street, public uri- cycle can be understood as a catalyst for the more complete implementation of the
nation. The goal is to “shock” people into full compliance with the law in a city that techniques and tactics of neo-liberalism that are following global political and eco-
has historically been very lax about enforcement. This can be considered a long- nomic tendencies. The cities where SMEs occur have become laboratories for the
term re-education process that is intended to “clean” the city for presentation to spatialization of a new bio-politics.
international audiences. For larger urban operations, the military forces that invade It is important to note that neo-liberalism is more than just a political and eco-
and occupy favelas have the word CHOQUE (shock) emblazoned on their vehicles nomic philosophy. It should, according to Ong, also be considered a “set of technolo-
and uniforms. gies of governance: the establishment of political exemptions that permit sovereign
The Olympic Imaginary, as I have described it, attends to the specific and in- practices and subjectifying techniques that deviate from the established norm”
vented demands of the event while projecting a utopian vision of an Olympic urban (2006, 12). These technologies should be studied as techniques of surveillance and
future. Through my analysis of the Olympic bid books, I have demonstrated that control that, “are both mobile and calculative” and can be “decontextualized from
the OI is predicated on the discursive frameworks of capital accumulation and neo- their original sources and recontextualized in constellations of mutually constitutive
liberal governance that are propagated by international sports federations and their and contingent relationships” (ibid, 13). It is also important to note that neo-liberal-
corporate partners. The international agreements that set these events into motion ism in Brazil has specific and contradictory characteristics and that trends at the na-
are the antithesis of democratic, long-term city planning. The overdue restructuring tional level are not necessarily reproduced at the metropolitan level and vice versa.
of the twenty-first SME model needs to begin here. One of the current threads of analysis that is dominating the critical political
Extra-legal institutions have been a central component of Olympic gover- debate regarding SMEs in Brazil is the installation of states and cities of exception
nance since Sidney 2000. These have immense powers and huge budgets, making (Vainer, 2013). The condition of exception can be understood as a departure from
decisions that will impact the lives of millions of people for decades. These extra- the rule of law or a, “political liminality, an extraordinary decision to depart from a
governmental agencies change in accordance with local governance practices and generalized political normativity, to intervene in the logic of ruling and being ruled”
possibilities: changing shape, form and content as the events move around the (Ong 2006, 5). However, the state of exception does not account for a shift in neo-
world. There are deeply embedded socio-material knowledge transfer networks that liberal tactics that have “created new forms of inclusion, setting apart some citizen-
bring these events into being. In the case of Brazil, Rio 2016’s governance model was
19. For example, Provisional Measure 488/2010 created the Brazilian Sport Legacy Company Ltd. (Empresa Brasileira de
inspired by London’s Olympic Delivery Authority, but in characteristic Brazilian fash- Legado Esportivo S.A.) or BRASIL 2016, a private company created by the federal government to oversee the Olympic
budget. In September 2011, BRASIL 2016 was decommissioned after more than R$100,000 had been spent on putting it
ion, adds two bureaucratic layers where one would do. Two years following the an- together. There has been no formal explanation for the elimination of this entity.

388 A cidade dos megaeventos como laboratório neoliberal Christopher Thomas Gaffney 389
subjects, and creating new spaces that enjoy extraordinary political benefits and COHRE. 2007. “Fair Play for Housing Rights: Mega-Events, Olympic Games and Housing
economic gain” (ibid. 5). This double movement, that of creating states and cities Rights”. Geneva, Switzerland: Center on Housing Rights and Evicitions. http://tenant.
net/alerts/mega-events/Report_Fair_Play_FINAL.pdf.
of exception as well as granting exceptions to the conditions of neo-liberalism, is
crystallizing around SME production in Rio de Janeiro. Cosgrove, Denis, and Stephen Daniels. 1989. The Iconography of Landscape: Essays on the
Symbolic Representation, Design and Use of Past Environments. Cambridge University
SMEs provide an opportunity to adopt, modify, develop and deploy a suite
Press.
of extra-legal measures used to transform space and society in order to maximize
capital accumulation and consolidate power. The solidity of democratic institutions Docena, Herbert. 2005. “Iraq’s Neoliberal Constitution.” Foreign Policy in Focus. September 2.
http://www.fpif.org/reports/iraqs_neoliberal_constitution.
and legal frameworks determine the scope and type of social change that will occur,
yet in nearly all contexts the “state of emergency” generated by an SME allows for Duncan, James S. 2005. The City as Text: The Politics of Landscape Interpretation in the Kandyan
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the creation of parallel and independent governmental frameworks that negatively
impact existing forms of governance. In the twenty first century, SMEs always gen- Foucault, Michel, Michel. Senellart, and Collège de France. 2010. The Birth of Biopolitics :
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erate negative externalities and always transfer public wealth to private hands. In
the Global South, the impact is particularly onerous because the fragility of hous- Gaffney, Christopher. 2010. “Mega-events and Socio-spatial Dynamics in Rio de Janeiro, 1919-
2016.” Journal of Latin American Geography 9 (1): 7–29. doi:10.1353/lag.0.0068.
ing tenure rights in the large informal market is complicated by urban administra-
tions that implement wide ranging projects that will attend to the short-term de- Gaffney, Christopher, and Erik Silva Omena de Melo. 2010. “Mega-eventos Esportivos:
Reestruturação Urbana Para Quem?” Proposta, 121 edition.
mands of the SME. There are thousands of stories of forced removal, intimidation,
threats, social discord, displacement and “resettlement” to be told, making clear Gold, John R., and Margaret M. Gold. 2007. Olympic Cities: City Agendas, Planning, and the
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doutourado, Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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“Sem Transporte Para Minha Casa Minha Vida.” 2013. O Globo. Accessed January 8. http:// condicionamentos e rebatimentos do processo de exploração e produção offshore do pe-
oglobo.globo.com/pais/sem-transporte-para-minha-casa-minha-vida-7224679. tróleo nos contextos regional e local fluminenses, tomamos como referência os municípios
Shaw, Christopher A. 2008. Five Ring Circus : Myths and Realities of the Olympic Games. litorâneos da Bacia de Campos. Neste sentido, destacamos a importância dos impactos na
Gabriola Island, BC: New Society Publishers. área, a incidência das intervenções urbanísticas, a assimilação das normativas segundo di-
“TCM Questiona a Licitação Dos Ônibus Do Rio.” 2012. O Globo. Accessed October 6. http:// ferentes temporalidades e instâncias governamentais. Também se evidenciamos o desafio
oglobo.globo.com/rio/tcm-questiona-licitacao-dos-onibus-do-rio-5463290. que se apresenta para as administrações municipais, ao ganharem atribuições e maior res-
“Trens Ainda Longe de Oferecer Transporte de Primeira Linha.” 2013. O Globo. Accessed ponsabilidade sobre a gestão dos territórios, no pós 1988. Nas reflexões, ponderou-se sobre
March 19. http://oglobo.globo.com/rio/trens-ainda-longe-de-oferecer-transporte- os efeitos da atividade petrolífera enquanto novo ciclo econômico, sob processo de urba-
de-primeira-linha-7877558. nização, que desencadeou descaracterizações físicas e ambientais de forma rápida e/ou
“Turistas Sofrem Com Falta de Informação No Metrô.” 2012. O Globo. Accessed August radical, com ocupações regulares e irregulares provenientes do crescimento dessas áreas.
24. http://oglobo.globo.com/rio/turistas-sofrem-com-falta-de-informacao-no- Acompanhando a chegada de contingentes populacionais, sobressaiu a ação de atores ex-
metro-5883153. ternos às municipalidades, trazendo alterações para a organização e produção dos espaços.
A metodologia da investigação incorporou diversos levantamentos, apoiou-se em visitas
de campo e na realização de entrevistas com técnicos e representantes de instituições, en-
tidades e moradores locais. Nos últimos anos, a atratividade dos royalties conviveu com ele-
vada demanda por serviços públicos e infraestrutura, em face dos impactos causados no
meio construído, e em razão da perspectiva de finitude dos recursos não renováveis, com a
busca da diversificação produtiva como alternativa ao esgotamento previsto. Neste sentido,
as administrações municipais optaram pela dinamização da economia, com execução de
projetos políticos de cidade, orientados para a atração de investimentos no turismo e na

1. Artigo originalmente publicado in HERCULANO, Selene (org.). Impactos Sociais, Ambientais e Urbanos das Ativida-
des Petrolíferas em Macaé. Niterói: UFF/PPGSD, dez 2010. (CDRom). Ele foi mantido de acordo com os debates revela-
dos na época e em razão dos impactos ocorridos sobre o território, que continuam na atualidade.

392 A cidade dos megaeventos como laboratório neoliberal Maria de Lourdes Costa | Aline Couto da Costa | Diana Bogado Corrêa da Silva 393
prestação de serviços, em que a aplicação dos royalties nem sempre beneficiou os setores buscaron detectar los condicionantes y consecuencias del proceso de explotación y pro-
reconhecidamente prioritários. Os impactos diversificados sofridos pelos municípios pro- ducción offshore de petróleo en los contextos regional y local fluminenses, tomamos
vocaram efeitos complexos e muitas vezes irreversíveis e excludentes sobre a organização como referencia los municipios costeros de la Cuenca de Campos. En este sentido, des-
e produção de seus espaços. E os olhares atentos de alguns setores, do poder público e da tacamos la importancia de los impactos en esta área, la incidencia de las intervenciones
participação consciente de segmentos sociais ainda estão longe de propiciar a necessária urbanísticas, la asimilación de la normativa según temporalidades diferentes y organismos
estruturação organizacional nas escalas local e regional, o fortalecimento da municipalida- gubernamentales. También se observa el desafío que se presenta a las administraciones
de e a atuação articulada entre as instituições. municipales, al ganar más poder y responsabilidad en la gestión de los territorios, después
Abstract | There is a growing concern about the changes in the territory of the State de 1988. Consideramos en las reflexiones los efectos de la actividad petrolera como nuevo
of Rio de Janeiro in studies and research. In the text, a result of research that sought to ciclo económico, bajo el proceso de urbanización, que ha causado transformaciones en
detect the conditions and repercussions of the offshore production and exploration of oil las características físicas y ambientales, de manera rápida y/o radical, con ocupaciones
on regional and local Fluminense contexts, we have taken the coastal municipalities of the regulares e irregulares provenientes del crecimiento de estas áreas. Con la llegada de con-
Campos Basin as reference. In this sense, we highlight the importance of impacts in the tingentes de población, sobresalió la acción de agentes externos a los municipios, trayen-
area and urban interventions as well as the assimilation of the norms according to different do alteraciones en la organización y producción de espacios. La metodología de investi-
temporalities and government bodies. Also observed the challenge that presents itself to gación incorpora varios levantamientos apoyados en visitas de campo y entrevistas con
the municipal administrations as it gained greater attributions and responsibility over the expertos y representantes de instituciones, entidades y residentes locales. En los últimos
management of territories after 1988. In these reflections, the effects of oil activity were años, el atractivo de los royalties ha convivido con la alta demanda de servicios públicos y
considered the new economic cycle in the urban process, which triggered physical and de infraestructura para hacer frente a los impactos del medio construido y la perspectiva
environmental mischaracterization quickly, and/or radically, with regular and irregular oc- de finitud de los recursos no renovables, con la búsqueda de la diversificación productiva
cupations through the growth of these areas. Following the arrival of population groups, como alternativa al agotamiento previsto. En este sentido, los gobiernos locales han op-
the action of external actors excelled the municipalities, bringing changes to the organi- tado por impulsar la economía con la ejecución de proyectos políticos de ciudad, orien-
zation and production of spaces. The research methodology incorporated several surveys tados en la atracción de inversiones en el turismo y en la prestación de servicios, cuyas
and relied on field visits and interviews with experts and representatives of institutions, aplicaciones de los royalties ni siempre han beneficiado a los sectores reconocidos como
organizations and local residents. In recent years, the attractiveness of the royalties lived prioritarios. Los diversos impactos que sufren los municipios causaron efectos complejos y
together with high demands for public services and infrastructure due to the impacts on a menudo, irreversibles y de exclusión sobre la organización y producción de sus espacios.
the built environment, as well as the prospect of finite non-renewable resources, with the La mirada atenta de algunos segmentos, del poder público y de la participación cons-
pursuit of productive diversification as an alternative to the exhaustion provided. There- ciente de sectores sociales aun están lejos de proporcionar la estructura de organización
fore, local governments have opted for boosting the economy with the execution of the necesaria a escalas local y regional, para el fortalecimiento del municipio y la actuación
city political projects, focusing on attracting investments in tourism and services in which articulada entre las instituciones.
the application of royalties have not always benefited the recognized priority sectors. The
diverse impacts suffered by municipalities have caused complex and often irreversible
and excluding effects on the organization and production of their spaces. In addition, the
Introdução
watchful eyes of some sectors, the government and the conscious participation of social O território Fluminense, as administrações municipais e
sectors are still far from providing the necessary organizational structure on local and re- o advento do Petróleo
gional scales as well as the strengthening of the municipality and the articulation between
the institutions. O território no estado do Rio de Janeiro tem formação antiga de sua malha de
Resumen | Reflejos de la explotación del petróleo en território fluminense. Impactos,
comunicações terrestres, algumas desde a época de colonização das terras brasilei-
normativas y intervenciones urbanísticas
ras, a partir do início do século XVI, com as ordens política e econômica precedendo
a social, no curso de seu desenvolvimento.
Hay una creciente preocupación con las transformaciones del territorio del Estado de Río
As administrações municipais ganharam atribuições ao longo do tempo. Mas
de Janeiro en estudios e investigaciones. En el texto, resultado de investigaciones que
só em 1946, a Constituição estabeleceu princípios mais próximos da atual organi-

394 Reflexos da exploração do petróleo no território fluminense Maria de Lourdes Costa | Aline Couto da Costa | Diana Bogado Corrêa da Silva 395
zação municipal, porém a sobrevivência da maior parte dos municípios ficou, até traduzem a anunciada lógica de bem-estar e modernidade, à especulação imobili-
recentemente, na dependência dos fundos especiais federais. Na Constituição de ária, à estruturação do mercado de trabalho e à vinda de pessoas de fora do muni-
1988 cresceu a competência municipal, inclusive tributária, ocasião em que se esta- cípio para nele trabalhar – geram desafios cres­centes quanto à recomposição das
beleceu, entre outros, critérios para a emancipação de municípios. identidades locais.
As atribuições municipais foram ampliadas, somando-se às que já possuía, O ritmo vertiginoso do crescimento tem, em grande parte, desencadeado
em termos do uso e ocupação do solo. Mas ao trazer maior responsabilidade sobre descaracterizações de diferentes naturezas, sobretudo físicas e ambientais, em de-
a gestão de seu território, conviveu com o peso dos encargos nem sempre acompa- corrência da chegada dos grandes contingentes populacionais e da ação desses
nhados de respaldo financeiro imediato em seus respectivos orçamentos. Assim, os atores externos à municipalidade. O quadro é em geral agravado pela deficiência
municípios estiveram cativos de suas receitas próprias e transferidas. generalizada de prestação dos serviços públicos e da disponibilização de equipa-
Com a descentralização administrativa, tornou-se necessário o aumento de mentos comunitários.
recursos a serem disponibilizados aos municípios: Fundo de Participação dos Muni-
cípios (FPM), repasse do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS)
e Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU). No caso do estado do Rio de Janeiro
Metodologia
ainda há o repasse dos royalties do petróleo, já que possui em seu território uma
importante província petrolífera do Brasil. Em termos gerais, a pesquisa contou com expressivos levantamentos de
Com o advento da exploração e produção offshore do petróleo nos municí- fontes primárias e secundárias, leitura de bibliografia selecionada, com a análise
pios litorâneos, a maioria lindeira à Bacia de Campos, a aplicação dos recursos prove- e a interpretação de dados e informações disponibilizadas pelos órgãos públicos
nientes da arrecadação geralmente vinha alocada no distrito-sede, passando, poste- e instituições privadas, com montagem de um panorama relativo à influência dos
riormente, a ser também destinada às sedes distritais dos municípios emancipados2. royalties do petróleo no Brasil e no estado do Rio de Janeiro e de seus municípios.
A atividade petrolífera configurou um novo ciclo econômico que acelerou Apoiou-se em visitas de campo locais e na realização de entrevistas junto à técni-
o crescimento das cidades, principalmente quanto ao processo de urbanização. O
repasse regular dos recursos financeiros provenientes dessa atividade possibilitou
muitos investimentos aos municípios beneficiários, tornando-se um instrumento
expressivo no planejamento e na gestão urbana.
Entre muitos eventos que se tornaram correntes em relação à urbanização
provocada pela nova atividade – seja pós-emancipações municipais, seja pela emer-
gência de inúmeros interesses neste cenário, seja pela chegada de diferentes atores
sociais – está o fato de certos municípios se ressentirem com a nem sempre gradativa
mudança no perfil de sua população, por causa da assimilação precoce de diversas
identidades exógenas, em comparação àquela dos moradores até então presentes.
O dinamismo da integração aos eixos de expansão da urbanização e cresci-
mento demográfico3, à remodelação dos espaços urbanos com equipamentos que
2. Entre 1986 e 1990, foram instalados: Arraial do Cabo, Italva, São José do Vale do Rio Preto, Paty do Alferes, Itatiaia e
Quissamã. Em 1993, mais onze municípios: Cardoso Moreira, Belford Roxo, Guapimirim, Queimados, Quatis, Varre-Sai,
Japeri, Comendador Levy Gasparian, Rio das Ostras, Aperibé e Areal. Outros dez se instalaram em 1997: São Francisco
de Itabapoana, Iguaba Grande, Pinheiral, Carapebus, Seropédica, Porto Real, São José de Ubá, Tanguá, Macuco e Ar-
mação dos Búzios. O mais novo município fluminense é Mesquita, (2001). Hoje são 92 municípios no total, no estado
do Rio de Janeiro.
3. Cf. COSTA, M. L. P. M. Reestruturação do Território no Processo de Urbanização – Dispersão Urbana no Estado do
Rio de Janeiro. Mesa de Interlocução de Pesquisa “O Processo de Urbanização e as Formas de Tecido Urbano mais
Recentes Manifestadas sobre os Territórios”. XI Seminário de História da Cidade e do Urbanismo. Vitória: UFES, 2010. Os
FIGURA 1 Regiões de Governo e Microregiões geográficas – Estado do Rio de Janeiro 2006 Fonte: Funda-
resultados do estudo apontaram para: consolidação de eixos e formação mais recente de corredores de urbanização
no estado do Rio de Janeiro (um deles provocado pelas atividades do petróleo), criação de centralidades em função de ção Centro de Informações e dados do Rio de Janeiro – CIDE Nota: As microregiões geográficas indicadas
novos polospólos econômicos e de nova territorialidade, devido à presença de grandes projetos regionais. fazem parte da divisão regional do IBGE

396 Reflexos da exploração do petróleo no território fluminense Maria de Lourdes Costa | Aline Couto da Costa | Diana Bogado Corrêa da Silva 397
FIGURA 3 Mapa Litoral do estado do Rio de Janeiro, delimitado pela projeção dos limites municipais (or-
FIGURA 2 Mapa Descobertas dos campos de petróleo. Fonte: PETROBRAS, 2008. togonais e paralelos) e a posição dos poços produtores de petróleo e gás natural que compõem a Bacia de
Campos. Fonte: PIQUET (2003)
cos e representantes de instituições e entidades de interesse da investigação, que
acompanharam a elaboração de diretrizes e propostas de intervenções, bem como a partir da década de 1980 o Estado visse refletido o crescimento dos então núcleos
de moradores locais no contexto da exploração petrolífera no território fluminense. urbanos que lhes deram abrigo, assim como o aumento de sua arrecadação, além do
Buscou-se compreender como a atividade petrolífera se instalou no universo aparecimento de novos agentes, de comércio e serviços e de subsidiárias da indústria
estadual, com sua formação de muitas singularidades, a alocação de políticas que do petróleo. Esta indústria é reconhecida pela Agência Nacional de Petróleo (2000)
influenciaram as dinâmicas das regiões de governo fluminenses, destacando-lhes os como o conjunto de atividades econômicas relacionadas com a exploração, desenvol-
marcos e inflexões nos municípios conviventes com a exploração, desenvolvimento vimento, produção, refino, processamento, transporte, importação e exportação de
e produção do petróleo na ocupação costeira do Estado. petróleo, gás natural, outros hidrocarbonetos fluidos e seus derivados.
Deve-se ressaltar que nos últimos anos, a indústria do petróleo que se con-
figurou a partir das atividades de pesquisa, exploração e produção transformaram
O petróleo como motor da transformação profundamente a economia, a sociedade e o território dos municípios produtores
brasileiros. No entanto, mais do que a própria formação da indústria petrolífera,
O petróleo sempre mobilizou a sociedade brasileira. Tema importante para a foram os royalties que contribuíram fundamentalmente para tais mudanças.
soberania nacional e recorrente ao se discutir o desenvolvimento do país, a atividade A princípio, julga-se que os royalties, por ser uma espécie de pagamento asso-
petrolífera traz um alerta desde a primeira metade do século XX, com a discussão do ciado à venda de um bem do patrimônio público, devem ser direcionados somente
“Petróleo é nosso”, 4 A descoberta de petróleo na Bacia de Campos (Figuras 2 e 3), sua ao governo federal, já que no Brasil os recursos naturais do subsolo pertencem à
exploração em escala comercial e a implantação de uma base operacional da Petro- União. No entanto, algumas justificativas fundamentam a aplicação destas compen-
bras em Macaé, para o acompanhamento da exploração e produção, fizeram com que sações financeiras recolhidas pela União nas regiões produtoras. Uma delas é que o
processo de implantação da atividade petrolífera gera uma elevada demanda por
4. Uma breve recuperação de momentos desse percurso faz recordar alguns fatos, entre eles: pressão para que o mo- serviços públicos e infraestrutura em geral. Há também a necessidade de se inde-
nopólio exercido pela Petrobrás nas atividades básicas do petróleo e gás fosse extinto, através da Constituinte de
1987/88; confrontação de forças por ocasião da Revisão Constitucional, em que se manteve o quadro e a disseminação nizar ou de se compensar os impactos causados por essas atividades. Ademais, é
de ideias neoliberais favorecendo a privatização da empresa, com a suspensão do referido monopólio constitucional, preciso analisar a questão que envolve a qualidade finita do adensamento urbano
por força da Lei 9478/1997.

398 Reflexos da exploração do petróleo no território fluminense Maria de Lourdes Costa | Aline Couto da Costa | Diana Bogado Corrêa da Silva 399
causado pela atividade petrolífera, caracterizado pelo cenário previsível de movi- mente por exclusivamente, evidenciando a preocupação com a infraestrutura das
mentos de saída de capitais e de pessoas dos territórios que atendem à atividade de cidades que já sofriam os impactos da indústria petrolífera.
exploração de re­cursos não renováveis (LEAL e SERRA, 2003). Nesse momento, constatou-se uma transformação do perfil produtivo dos
Embora bastante questionadas quanto ao aspecto quantitativo, duas ques- municípios da Bacia de Campos. As atividades econômicas tradicionais em crise,
tões básicas deveriam ser consideradas em relação aos critérios de distribuição dos como a indústria salineira e a produção de cana-de-açúcar, associada à pecuária
recursos provenientes dos royalties. A primeira é que eles são compensatórios em bovina, deram lugar à indústria do petróleo. O processo foi bastante percebido nos
função da venda de um bem do patrimônio público da União e, por isso, sua admi- municípios litorâneos que receberam atividades industriais e terciárias, provocando
nistração deve considerar a justiça intergeracional. A segunda refere-se aos contex- um dinamismo demográfico e, consequentemente, significativas transformações na
tos regionais e locais, já que estes devem buscar a diversificação produtiva como produção do espaço.
alternativa à finitude prevista desses recursos. Um dos exemplos foram as novas estruturas espaciais decorrentes das di-
Além da compreensão da divisão dos royalties em esferas governamentais nâmicas no processo de (re)distribuição da população no território das cidades. A
distintas, a apresentação da matriz legal, que fundamenta essa distribuição, possi- mão-de-obra pouco qualificada tendeu a residir nos pólos produtivos, geralmente
bilitaria o entendimento de como ocorreram as mudanças no regimento tributário em áreas periféricas, mas os mais qualificados estabeleceram estratégias residen-
do setor petrolífero. Anteriormente, a carga fiscal recaía sobre o consumo de de- ciais diferenciadas, ocupando bairros novos e exclusivos nas mesmas cidades, ou
rivados, sendo a produção praticamente desonerada de impostos. Com as novas instalaram-se em municípios vizinhos menores por oferecerem melhor qualidade
regulamentações, a partir da década de 1950, um novo regime passou a tributar de vida (MONIÉ, 2003). Aliada à indústria do petróleo, a consolidação do turismo
fortemente a produção, aumentando os valores dos royalties e, no final dos anos de como estratégia de diversificação da economia aumentou os impactos na região.
1990, estabelecendo a participação especial. Dessa forma, a ocupação do solo em vários municípios litorâneos da Bacia
Consequentemente, diversas normativas que regulam a cobrança e a dis- de Campos refletiu a mudança na economia do lugar e se deu sob duas formas:
tribuição dessa compensação financeira foram criadas e/ou alteradas a fim de dar a legal, através de parcelamentos destinados à residências de veraneio e de um
respaldo aos impactos da economia petrolífera, produzindo transformações signifi- novo contingente de mão-de-obra qualificada; e a ilegal, com as áreas de ocupa-
cativas na organização e produção do espaço. ção que se desenvolveram de maneira espontânea, dando origem a um traçado
bastante irregular.
Posterior à promulgação da Constituição Federal do Brasil de 1988, a Lei 7.990,
Evolução das normativas de distribuição dos royalties de 28 de dezembro de 1989, alterou a distribuição dos royalties em terra e na plata-
em face das transformações e respectivas demandas forma continental. Manteve o valor da alíquota em 5%, que para a produção onshore
ficou dividida em: 70% (que corresponde a 3,5%) aos estados produtores, 20% (ou
A Lei 2.004 de 03 de outubro de 1953 foi a primeira a introduzir o pagamento 1%) aos municípios produtores e 0,5% (ou 1%) aos municípios onde se localizarem
de royalties sobre a produção de petróleo e gás natural no Brasil, estabelecendo o instalações marítimas ou terrestres de embarque ou desembarque de petróleo e gás
valor da compensação em 5% do valor de referência do barril, em relação à produ- natural. No caso da produção offshore, coube 1,5% aos estados confrontantes com
ção terrestre (onshore), ou seja, em terra ou em lagos, rios, ilhas fluviais e lacustres. os poços produtores, 1,5% aos municípios confrontantes com os poços produtores
Com isso, a lei beneficiou estados e municípios dividindo essa alíquota, respectiva- e suas respectivas áreas geoeconômicas, 0,5% aos municípios com instalações de
mente, em 4% e 1%. embarque e desembarque de petróleo e gás natural, 1% ao comando da Marinha e
A incidência de royalties sobre a produção marítima (offshore) ocorreu com o 0,5% para constituir um Fundo Especial a ser distribuído entre os estados e municí-
Decreto-Lei 523, de 08 de abril de 1969, mas estados e municípios só foram benefi- pios da Federação5.
ciados a partir da Lei 7.453, de 27 de dezembro de 1985, com alíquota de 1,5% cada.
Essa lei teve um caráter inovador na medida em que estabeleceu que os municípios 5. Considerando a disposição geográfica dos poços de extração do petróleo, foram determinadas três zonas: ZPP (Zona
de Produção Principal), ZPS (Zona de Produção Secundária) e ZL (Zona Limítrofe). Os municípios da ZPP são os confron-
deveriam aplicar os recursos previstos, preferencialmente, em energia, pavimenta- tantes com poços produtores e aqueles que possuem três das seguintes instalações industriais: processamento, trata-
ção de rodovias, abastecimento e tratamento de água, irrigação, proteção ao meio- mento, escoamento e armazenamento de petróleo e/ou gás natural, de acordo com a Lei No. 7.525/1996(z), a partir de
delimitação feita pelo IBGE, através do decreto No. 93.189, de 29 de agosto de 1986. A ZPS atinge aqueles atravessados
-ambiente e saneamento básico. Em 1986, a Lei 7525 alterou o termo preferencial- por dutos de escoamento da produção do poço produtor, e a ZL atinge aqueles que indiretamente são afetados pelas
atividades petrolíferas e são vizinhos aos da ZPP. (BARRETO, 2008).

400 Reflexos da exploração do petróleo no território fluminense Maria de Lourdes Costa | Aline Couto da Costa | Diana Bogado Corrêa da Silva 401
Isso beneficiou ainda mais os municípios, pois o Fundo Especial passou a Em função disso, foi iniciada uma fase de planejamento para a execução de
ser dividido na proporção de 80% para os municípios e 20% para os estados. Além projetos de urbanização, paisagismo, infraestrutura e embelezamento da cidade,
disso, acrescentou 10% aos municípios onde se localizassem instalações de embar- sendo estes instrumentos mais voltados para o impulso ao turismo e à prestação
que e desembarque de petróleo ou de gás natural; Para acomodar esta alteração, o de serviços – hotelaria e gastronomia, comércio, construção civil, dentre outros –,
percentual dos estados foi reduzido de 80% para 70% para a lavra ocorrida em terra; consolidando-os enquanto principais atividades econômicas dos municípios litorâ-
e o percentual do fundo especial foi reduzido de 20% para 10% para a lavra ocorrida neos da Bacia de Campos.
na plataforma continental. No entanto, os royalties nem sempre são distribuídos a ponto de beneficiar
Entretanto, a mesma normativa suprimiu a exigência setorial de destinação nas mesmas proporções os diversos setores, ou aqueles reconhecidamente priori-
desse recurso, apenas vedando a aplicação dos mesmos em pagamentos de dívidas tários. De uma forma geral, na rubrica Habitação e Urbanismo vem sendo injetado
e quadro de pessoal, caracterizando um retrocesso, que foi retificado com o Decreto considerável montante, embora isto não signifique, por exemplo, construções de
01, de 11/01/1991, mas novamente alterado com a Lei do Petróleo (1997). unidades residenciais para segmentos de baixa renda, no sentido de minimizar o
A Lei 9.478, de 06 de agosto de 1997, ou Lei do Petróleo, trouxe mudanças déficit habitacional fluminense ou local, pois os recursos muitas vezes são aplicados
significativas quanto à política energética nacional, instituindo o Conselho Nacional em obras de maior visibilidade, conforme determinação de muitas administrações
de Política Energética e a Agência Nacional do Petróleo (ANP), que ficou responsável governamentais locais, mediante a criação de áreas de lazer nas orlas, de urbaniza-
pelo controle e distribuição dos royalties. Quanto ao valor de compensação, possibi- ção de praças centrais e pavimentação de ruas.
litou o aumento da alíquota de 5% até 10% em função da rentabilidade dos campos
petrolíferos, definindo critérios de distribuição desse excedente que também bene-
ficiaram estados e municípios. Ademais estabeleceu, nos casos de grande volume
Os processos de intervenção urbanística no território
de produção ou de grande rentabilidade, o pagamento da participação especial.
O estado do Rio de Janeiro contou com arrecadação extra, a partir de meados O processo de decantação do entendimento sobre as intervenções no terri-
dos anos 1990, com a exploração do petróleo na Bacia de Campos, responsável por tório fluminense passa por diferentes escalas e recortes espaciais, sendo necessário
cerca de 80% relativa à produção de petróleo e 49% concernente ao gás natural, revelar-se, inicialmente, a concepção de território.
sobretudo pela arrecadação advinda dos campos de Albacora, Marlim e Roncadoro Para HAESBAERT (2006), o conceito de território guarda sempre um signifi-
(ANP, 2000), que ao mesmo tempo geraram pagamento das participações especiais cado relacional. E pode se inscrever para as ciências sociais e políticas segundo di-
aos municípios vizinhos. Também o estado do Rio de Janeiro repassou a todos os versas perspectivas, tanto sob visão mais totalizante quanto parcial, para o vínculo
seus municípios uma parcela retirada dos 6,56% que recebeu pelos royalties, inde- sociedade-natureza (e sociedade-espaço), no sentido de abrigar um complexo con-
pendente do rateio da ANP (BARRETO, 2008). junto de relações sociais e espaciais, econômicas, políticas e culturais historicamen-
A produção do petróleo na Bacia tem trazido um aumento gradativo nos or- te circunscritas a determinados períodos ou existência de grupos sociais.
çamentos municipais em geral, com percentagem crescente nas receitas dos mu- O mesmo autor (2004), ao expor a concepção de território-rede, considera
nicípios, influenciando seus diferentes setores. As receitas próprias, referentes ao que a ligação entre territórios se exime de ser contínua, uma vez que ela pode se
Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU e ao Imposto sobre Serviços – ISS, vêm expressar pela intermediação de aeroportos, estradas, portos e até de dutos, entre
se tornando relativamente menores perante a presença dessa nova arrecadação, na outros, sem descartar a comunicação imediata e virtual pela internet, combinando
maioria das vezes sendo ultrapassadas por ela. fluxos materiais e imateriais.
A partir da Lei 9.478/97, mais do que qualquer outra atividade econômica e mais Engendrou-se um modelo no Brasil, a partir dos anos 1990, referente à forma
do que qualquer outro instrumento – como a arrecadação de impostos, por exemplo de intervenção físico-territorial nas cidades, sobretudo com a descoberta da impor-
– foram os royalties que se tornaram a principal fonte de renda para os municípios tância assumida pelos espaços públicos, visando abrigar projetos urbanos, protago-
beneficiários. Em razão da preocupação com a questão da finitude destes recursos, nizados, muitas vezes, pela parceria público-privada.
as administrações municipais optaram pelo incentivo ao turismo, como estratégia de A produção do espaço nas cidades tem acompanhado o movimento do capi-
dinamização da economia. Sendo assim, foram realizadas obras de infraestrutura com tal, segundo renovados estágios econômicos. Desde a Revolução Industrial, as cida-
o objetivo de agregar valores à cidade e atrair pessoas e empreendimentos. des surgem com seus problemas urbanos, de localização de residências em função

402 Reflexos da exploração do petróleo no território fluminense Maria de Lourdes Costa | Aline Couto da Costa | Diana Bogado Corrêa da Silva 403
da relação com os locais de produção, com a industrialização sendo responsável Com o intuito de atrair ainda mais investimentos produtivos, diversificar a
pela forma de materialização do meio construído, sujeitos intermitentemente às economia dos municípios, estimular o turismo de negócios e gerar empregos, há
normativas de ordenação desses espaços. também a formação de distritos industriais, com a consolidação de polos empresa-
Nos tempos atuais, produção e consumo de bens buscam resgatar símbo- riais voltados para a prestação de serviços.
los, forjam cenarizações, sugerem valores subliminares das memórias coletivas Intervenções urbanísticas desse tipo objetivam a preparação da cidade para
locais, respaldados pelo marketing e pela tecnologia, instigando a adoção rápida de vocações futuras, para além da indústria petrolífera, e articulam uma estratégia forte
novos valores, com consequências na gestão institucional, na forma de utilização ao redor de apostas urbanas e socioeconômicas de grande vulto e longa duração
do espaço e tempo, no contexto das novas dinâmicas urbanas, açodadas pela nova em relação ao desenvolvimento da cidade.
ordem ditada pela mundialização da economia. Na presente fase, experimenta-se dois grandes projetos de âmbito regional,
Vale lembrar o conceito de intervenção dado por PORTAS (1986) quando se que no caso fluminense vêmprovocando a interiorização da economia, sobretudo
aplica à cidade existente. Ela é entendida como o conjunto de programas e projetos apoiada em antigos e novos polos, a exemplo de Campos de Goytacazes e Macaé
públicos,ou de iniciativas autônomas que incidem sobre tecidos urbanizados dos (antes apenas secundário), respectivamente, que hoje carreiam parte significativa
aglomerados antigos ou relativamente recentes, tendo em vista sua reestruturação, de recursos investidos no Estado. Entre outros grandes projetos estão: a implanta-
revitalização funcional, recuperação ou reabilitação setorial e cultural. ção de portos, a construção do Arco Metropolitano e, sobretudo, a instalação do
As características dos projetos e intervenções urbanas marcam diferentes ge- Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro – COMPERJ, todos com forte
rações, passando pela grife de autores notáveis. E dos anos 1980 em diante, estes poder (re)estruturador do espaço, uma vez que interferem tanto no universo inte-
aparecem apadrinhados pelo planejamento estratégico, sob a forma de interven- rurbano (incluindo áreas rurais) quanto no universo intra-urbano e, na medida em
ções pontuais, com participação de diferentes atores da sociedade para a discussão, que constituem novas “ilhas de produtividade”, provocam transformações na rede
mas de maneira bem mais restrita do que aquela normalmente formulada pelo pla- urbana até então existente e nas hierarquias urbano-regionais.
nejamento e desenvolvimento urbano, com participação mais abrangente e demo- Cabe lembrar que os impactos socioespaciais sofridos pelos municípios, prin-
crática dos extratos sociais. cipalmente litorâneos, da Bacia de Campos demonstram que a transformação ra-
A associação com o caráter da visibilidade das intervenções passa a ser um dical e rápida da estrutura produtiva de uma região provoca efeitos complexos, e
dos principais alvos dos autores de projetos e da administração que os contratou, muitas vezes irreversíveis e excludentes, sobre a organização e produção do espaço,
sendo ela em qualquer instância. o que deve ser considerado quando da proposta, implementação e gestão desses
De modo geral, os administradores dos municípios do estado do Rio de Ja- novos projetos.
neiro que sofrem influências da economia do petróleo têm optado por projetos po-
líticos de cidade, orientados para a promoção do crescimento econômico e para a
atração de investimentos através do turismo, como meio de diversificar a econo- Considerações Finais
mia e minimizar os impactos causados pela possível finitude dos royalties na região
(COSTA, 2008). Os municípios brasileiros têm a tradição de lutar por maiores recursos em
Consequentemente, é possível identificar o processo de turistificação do seus orçamentos. A nova oportunidade surgiu para os que abrigavam a explora-
lugar, ou seja, o tratamento e a acomodação do território para a finalidade turística, ção/refino do petróleo no território nacional (onze estados da federação). Entre
demonstrado através da implantação de projetos urbanos, muitas vezes sob o para- eles, destacam-se os da faixa litorânea fluminense que, desde a exploração na Bacia
digma da modernização e do embelezamento. Dessa forma, evidencia-se que estes de Campos, atingem 80% da receita total adquirida com essa atividade. Inúmeras
projetos constituem a nova maneira de intervir no espaço da cidade. transformações vêm ocorrendo nos espaços urbanos e rurais dos municípios, muitas
Ações como recuperação de frentes marítimas, revitalização de beira-rio e vezes com reflexos nas respectivas escalas microrregionais.
orla marítima, renovação de áreas centrais, reurbanização de áreas degradadas, Essas transformações na organização e produção dos espaços são impulsio-
construção de praças e edifícios emblemáticos, dentre outros, tornam-se uma cons- nadas pela compensação financeira proveniente da exploração e indústria petrolífe-
tante na produção do espaço urbano. ra, que são regulamentadas por normativas que tentam dar respaldo aos impactos
dessa economia.

404 Reflexos da exploração do petróleo no território fluminense Maria de Lourdes Costa | Aline Couto da Costa | Diana Bogado Corrêa da Silva 405
Entretanto, verifica-se que a legislação poderia ser mais eficiente em relação Um dos maiores objetivos de avaliação reflete o aumento da responsabilida-
aos critérios de aplicação dos royalties e participações especiais, a fim de possibilitar de pelos resultados do administrador público perante a sociedade, que deve tomar
o princípio da justiça intergeracional e o seu desenvolvimento pleno, que abrange mais assento nesse acompanhamento, bem como para o crescimento da confiança
não só a dimensão econômica, como também a social, ambiental, cultural, espacial, pública nos serviços prestados. O exercício exige um incessante processo de delibe-
dentre outras, e que depende, em muito, da atuação política e administrativa dos ração e decisão. Se não existir um planejamento adequado, as tomadas de decisão
poderes públicos. começam a ocorrer de forma desordenada, porque não podem ser prorrogadas, em
Pensar e gerir as cidades que contam com os royalties do petróleo revelam função de necessidades emergentes e cobranças da população.
novas demandas de instituições governamentais, de ação privada e de associações Na realidade, a prefeitura opera com a qualidade permitida por sua estrutura,
representativas da sociedade, em face das mutantes realidades e da própria socie- mesmo que as questões envolvidas requeiram ampliação das escalas de debates.
dade. A acumulação de políticas urbanas não atendidas e serviços não providos já A cultura organizacional tem influência decisiva sobre a qualidade da gestão que,
provocavam graves impactos. O olhar atento porparte de alguns setores e a partici- por sua vez, está relacionada com as práticas de trabalho enraizadas na interação
pação consciente de segmentos sociais ainda estão longe de provocar uma eficácia de indivíduos e grupos, na organização e divisão das funções, na delegação de res-
na estruturação organizacional nas escalas local e regional, fortalecimento da muni- ponsabilidades, na relevância dada aos núcleos de planejamento e controle. Como
cipalidade ou a atuação articulada entre entidades. não existe uma organização ideal, ela nunca estará pronta e acabada, mas sim em
Dentro desse panorama, faz-se necessário que o planejamento se dê nas constante transformação, e a participação das pessoas que nela trabalham será fun-
várias instâncias de poder, para garantir as bases de um desenvolvimento mais sen- damental no constante processo de mudança.
sato, nos níveis regional e local, dando condições para regular a implantação de
infraestrutura, ao extrapolar os limites administrativos de serviços nas diferentes
escalas de atendimento, de qualificação de mão de obra, além da possibilidade de Referências bibliográficas
(re)orientar linhas condizentes de pesquisa, entre outras diretrizes e ações, de natu-
AGÊNCIA NACIONAL DO PETRÓLEO. Anuário Estatístico da Indústria Brasileira do Petróleo. Rio
rezas pública e privada. Não se deve esquecer que a par dos empregos e atividades
de Janeiro: ANP, 2000.
prometidas, promissoras do desenvolvimento, existem as demandas anteriores, que
BARRETO. “Considerações sobre as recentes transformações socioespaciais nos municípios
configuram situações crônicas acumuladas a serem revistas e atendidasem função
confrontantes com a Bacia de Campos”. In: MARAFON,G. J. ; RIBEIRO, M. A. (Orgs.).
das novas condições, de antigos moradores das áreas dos municípios atingidos. Revisitando o Território Fluminense II. Rio de Janeiro: Gramma, 2008, pp. 83-111.
Uma questão recorrente que se constata é a da discussão generalizada dos
COSTA, A. C. da.Sustentabilidade e o Processo de Planejamento e Gestão Urbana. Uma Reflexão
direitos aos royalties (43% da arrecadação de royalties do país para os municípios Sobre o Caso de Rio das Ostras (RJ). (Dissertação de Mestrado). Niterói, Programa de
fluminenses e 18% para os municípios das demais unidades da federação), quando Pós-graduação ARQ URB / UFF, 2008.
na realidade não se observa as grandes transformações desses territórios, o uso de COSTA, M. L. P. M. “Gestão do Espaço nos Municípios Temporâneos do Petróleo“.Relatório de
seus recursos e as contaminações negativas provenientes dos grandes projetos e Pesquisa. Niterói: UFF, 2008.
empreendimentos nessas áreas. FERREIRA, Omar Campos. SCIELO, Brasil. “Petróleo no Brasil”. Revista Economia e Energia. De
Neste contexto situam-se os municípios envolvidos com a exploração e pro- volta ao petróleo. Edição de Nº 46.
dução de petróleo e gás, que começaram por reverter a curva do decréscimo eco- SARAÇA, C.; RAHY, I. S.; SANTOS, M. A.; COSTA, M. B. e PERES, W.R. “A propósito de uma nova
nômico, antes registrado no estado do Rio de Janeiro. Urge, com isso, identificar, regionalização para o Estado do Rio de Janeiro”. Revista de Economia Fluminense,No 6.
analisar e buscar formas de gestão dos recursos disponibilizados, em especial para Fundação CIDE, jul./2007. pp. 18-27.
aqueles que vão conviver com a implantação de futuros e grandes projetos, como LEAL, José Augusto; SERRA, Rodrigo. Uma Investigação sobre os critérios de repartição dos
o Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro – COMPERJ, com suas altas royalties petrolíferos. In: PIQUET, Rosélia (Org.). Petróleo, royalties e região. Rio de
demandas de recursos hídricos e habitação de suporte ao empreendimento, de di- Janeiro: Garamond, 2003. 312p. pp. 163-184.
mensões locais, metropolitanas e regionais mais amplas. MONIÉ, Fréderic. Petróleo, industrialização e organização do espaço regional. In: PIQUET,
Rosélia (Org.). Petróleo, royalties e região. Rio de Janeiro: Garamond, 2003. 312p. pp.
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406 Reflexos da exploração do petróleo no território fluminense Maria de Lourdes Costa | Aline Couto da Costa | Diana Bogado Corrêa da Silva 407
MONTEIRO, Ricardo Negro; LORENZO, Sabrina. JB, 2007 – Jornal do Brasil Economia Negócios e
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REIS, Nestor Goulart. Notas sobre Urbanização Dispersa e Novas Formas de Tecido Urbano. São
Paulo: Via das Artes, 2006.
TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Relatório do TCE, 2001.
fundiária urbana
Fernanda Furtado de Oliveira e Silva

Resumo | Os instrumentos alternativos e algumas vezes complementares de financiamen-


to da infraestrutura necessária ao desenvolvimento urbano e, em particular, a recuperação
social e pública dos benefícios gerados neste processo, estão na ordem do dia para as ad-
ministrações municipais. O Estatuto da Cidade, base para os novos ou revisados Planos Dire-
tores Municipais, oferece uma série de instrumentos destinados a equilibrar de forma mais
adequada, entre os agentes envolvidos, as cargas e os benefícios decorrentes da urbaniza-
ção. Com a implementação de instrumentos de recuperação de mais-valias fundiárias, trata-
-se também de corrigir uma manifestação perversa do mercado que é a de permitir a apro-
priação privada da valorização fundiária, que pertence à coletividade, pelos proprietários
de terra. A questão é como desenhar um sistema de instrumentos tributários, urbanísticos e
jurídicos adequados para incidir sobre as diversas formas em que o valor da terra urbana e
sua valorização se manifestam. De modo a traduzir esta complexa questão para o campo do
urbanismo, este trabalho propõe uma estrutura de análise das mais-valias fundiárias urbanas
que se pretende útil para abarcar estas diversas formas concretas, e abordando ainda os
eixos para a recuperação pelo setor público de parcelas dessa valorização, as quais se tradu-
zem em distintos instrumentos de intervenção urbana.
Abstract | The alternative and sometimes complementary instruments for financing
urban development and its infrastructure, and specially the social and public recapture of
its benefits, are on the agenda of local governments. The Statute of the City, base for the
new or revised Municipal Master Plans, offers a series of instruments designed to more ap-
propriately balance benefits and charges from the urbanization process. The implementa-
tion of land value recapture tools also allows amending the private appropriation of public
land values by landowners, a perverse manifestation of the land market. The problem is how
to organize a system of fiscal, urban and juridical instruments to deal with the diverse ways
in which land values and land value increments appear. In order to translate this complex
issue to the realm of urbanism, this work presents an analytical framework that intends to

408 Reflexos da exploração do petróleo no território fluminense Fernanda Furtado de Oliveira e Silva 409
be useful to cover these diverse concrete ways, and also relates them to its recapture by the De fato, ao tratar de diretrizes gerais como a “justa distribuição dos benefí-
public sector through different urban intervention instruments. cios e ônus decorrentes do processo de urbanização” (Cap.I – Diretriz geral IX), ou
Resumen | Los instrumentos alternativos y algunas veces complementarios para financiar a “recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a va-
el desarrollo urbano y la infraestructura, y en especial la recuperación social y pública de lorização de imóveis urbanos” (id. XI), não havia como desconhecer a necessidade
sus beneficios, están en la agenda de los gobiernos locales. El Estatuto de la Ciudad, como de melhor delimitar de que se estava tratando realmente. O mesmo ocorria na de-
base para los nuevos o revisados Planes Directores Municipales, ofrece una serie de instru- finição e desenho de vários Instrumentos de Política Urbana contidos no Capítulo
mentos destinados a equilibrar más adecuadamente los beneficios y cargas del proceso de II da legislação, especialmente quando se tratava de novos instrumentos tais como
urbanización. La aplicación de herramientas de recuperación del valor del suelo también a “outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso”, ou as “operações
permite modificar una manifestación perversa del mercado, que es la apropiación privada urbanas consorciadas”, mas também quando se tratava de instrumentos já consa-
de este valor por los propietarios. El problema es cómo organizar un sistema de instrumen- grados como era o caso da desapropriação ou tradicionais na legislação como era o
tos fiscales, urbanísticos y jurídicos para hacer frente a las diversas formas en que los valores caso da contribuição de melhoria.
del suelo y sus incrementos aparecen. Para traducir esta compleja cuestión al ámbito del Nesses como em outros institutos presentes no Estatuto da Cidade (ex. direi-
urbanismo, este trabajo presenta una estructura de análisis que sea útil para cubrir estas to de preempção, “consórcio imobiliário”) estava latente a questão da definição do
diversas formas concretas, y también las relaciona a su recuperación por el sector público a conteúdo ético, lógico e político envolvido na recuperação pelo setor público de
través de diferentes instrumentos de intervención urbana. parcelas das mais-valias fundiárias originadas pelas diversas dinâmicas presentes no
processo de urbanização em geral, e em especial pelo funcionamento do mercado
de terras urbanas.
Introdução Na última década, o tema do mercado de terras e a consequente necessidade
de uma política fundiária urbana vêm adquirindo importância e visibilidade cres-
Este artigo retoma um trabalho realizado há mais de dez anos1, no qual se centes, tanto pelos desafios colocados por programas de provisão de habitação de
buscou avançar na definição das bases conceituais necessárias à definição e imple- interesse social2 como pelas novas dinâmicas que a incorporação imobiliária vem
mentação de instrumentos de recuperação de mais-valias fundiárias, com o objetivo adquirindo3. E para enfrentar as questões que surgem nos alinhamos a Adriano Bo-
mais geral de contribuir para o aprimoramento do planejamento urbano e da políti- telho no entendimento de que a renda fundiária urbana é ainda uma categoria de
ca urbana, e especificamente como ferramenta auxiliar na leitura e interpretação de análise válida (BOTELHO, 2008). Assim, enquanto naquele período inicial de absor-
alguns dos preceitos e instrumentos contidos no então recente Estatuto da Cidade ção dos preceitos do Estatuto da Cidade a preocupação maior era a de mapear o
(Lei Nacional 10.257 de julho de 2001). Naquela época, tratava-se, essencialmente, tema como subsídio a uma interpretação adequada da legislação, torna-se oportu-
de estudar formas concretas de delimitação dos conceitoscontidos na expressão no, hoje, retornar a essas bases conceituais para amparar a definição e implementa-
“recuperaçãode mais-valias fundiárias” e também de traduzir a terminologia a ela ção de um sistema de instrumentos de política fundiária urbana.
associada, originária da economia urbana, para o campo do urbanismo e do plane- Assim, a proposta é de retomar e revisar os principais conceitos antes desen-
jamento urbano. volvidos, para então estruturá-los analiticamente e aplicá-los à atual realidade, de
Para o desenvolvimento daquele trabalho, partiu-se da constatação de que, modo a mapear instrumentos de recuperação de mais-valias fundiárias 4 capazes de
apesar de a expressão em foco não estar explicitamente grafada no texto do Estatu- responder às questões colocadas, através de sua organização em um sistema.
to da Cidade, seu conteúdo está fortemente presente tanto de modo mais genérico
no capítulo das diretrizes gerais como em uma série de instrumentos tributários,
jurídicos, políticos (e urbanísticos) alinhados e detalhados no capítulo referente aos
instrumentos da Política Urbana.
2. A questão de como viabilizar terrenos para habitação social tem sido o “calcanhar de Aquiles” dos diversos Progra-
mas e Planos locais, municipais e estaduais, além do Programa Minha Casa Minha Vida.
3. Entre outros fatores, pela proliferação de negócios imobiliários envolvendo agentes financeiros internacionais, além
de empreiteiras nacionais tradicionalmente dedicadas a obras públicas.
1. O trabalho aqui utilizado como referência, apresentado no X Encontro Nacional da ANPUR, em Belo Horizonte, em maio 4. Atualmente, a expressão empregada para fins de política urbana é “gestão social da valorização da terra”, porém
de 2003, tomou como base o Capítulo II da tese de doutorado da autora. aqui preferimos manter o termo original para melhor analisar a questão.

410 Uma revisão das bases conceituais Fernanda Furtado de Oliveira e Silva 411
Mais-Valias Fundiárias: Hoje em dia, porém, a palavra renda é usada em um sentido ainda mais amplo. Pode
referir-se ao produto do aluguel de qualquer bem, e em alguns idiomas costuma
analisando os conceitos envolvidos
ser usada como equivalente a “rendimento”. Assim, apor a palavra “fundiária” ou o
“Valor da terra” e “Renda fundiária” termo “da terra”, hoje em dia, teria o objetivo principal de situar o campo de inves-
tigação abordado.
A expressão “mais-valias fundiárias” remete imediatamente às expressões Mas o uso desses termos complementares tem a função mais importante
“valor da terra” e “renda fundiária”. Basta estabelecer esta associação para entender de especificar como objeto somente a parcela recebida pelo proprietário relativa à
que não seja surpreendente a existência de controvérsias sobre o uso e a abrangên- terra propriamente, o que justifica que esses termos apareçam mesmo quando se
cia dessa expressão. trata de publicações especializadas.
Em primeiro lugar, devemos considerar as dificuldades com os termos “valor” Quanto ao termo “valor da terra”, é importante precisar o sentido de seu uso,
e “renda”, que se constituem em bases para a ciência econômica e estão entre os pois desse sentido derivam os usos de mais-valia fundiária, incremento de valor da terra
mais discutidos no percurso do desenvolvimento científico, como observado desde e valorização. O uso atual do termo é equivalente ao de “renda econômica da terra”, e
os estudos de Ricardo: “...porque de nenhuma outra fonte surgem tantos erros, e assim é referido mesmo em publicações especializadas (BROWN e SMOLKA, 1997).
tanta divergência de opiniões no desenvolvimento desta ciência, como das vagas A controvérsia sobre o uso do termo “valor” para o caso da terra é reconheci-
ideias relacionadas à palavra valor.” (RICARDO, 1975 [1817], p.13); “Algumas vezes da e estudada por Marx, a partir da colocação em questão do seu status no interior
Adam Smith fala de renda no sentido estrito ao qual desejo limitar este termo, mas da teoria do valor, como já destacado por Milton Campanario:
com maior frequência o menciona com o sentido popular em que é usualmente
empregado.” (id., p.68) A renda é o preço pago ao proprietário de forças naturais ou simples
produtos da natureza pelo direito de usar essas forças… Esta é de fato a
Em segundo lugar, como também ressaltado por Ricardo, esses termos não estão
forma na qual toda renda aparece originalmente. Mas então permanece
restritos ao debate científico, mas, ao contrário, são palavras de uso corrente que foram
por ser resolvida a questão de como coisas que não têm valor podem ter
e seguem sendo passíveis de adquirir significados variados na linguagem comum. um preço e como isto é compatível com a teoria geral do valor. (MARX,
Renda é palavra frequentemente usada como equivalente a juro e a lucro. 1968, apud CAMPANARIO, 1981, p.167).
Marx também faz referência ao uso mais comum do termo: “É natural que na práti-
ca se considere renda fundiária tudo o que o arrendatário paga ao proprietário na O exame da renda fundiária, e em particular da conversão do lucro suplemen-
forma de tributo pela permissão de explorar a terra.” (MARX, 1987 [1894], p.717). tar em renda fundiária, é realizado por Marx para resolver a questão de como um
Henry George, ao adotar a definição ricardiana de renda, não só distingue o uso valor-de-uso não produzido pode garantir ao seu dono uma parte do valor exce-
científico do uso comum do termo “renda”, como qualifica essas diferenças, especi- dente (mais-valia) no modo de produção capitalista.
ficando que o sentido popular não é apenas uma extensão do sentido econômico,
como poderia parecer. Este sentido econômico, segundo o autor, é mais abrangente
que a forma usada na linguagem comum, que somente se refere à existência de “Renda Fundiária” e “Mais-valia”
renda quando o proprietário e o usuário são sujeitos distintos, quando no sentido
econômico também existe renda quando eles são o mesmo sujeito. Por outro lado, O termo “mais-valia”6 provém da ideia de “valor excedente”7 e, por isso, está
conforme o autor, este sentido é mais restrito que o significado comum, ao consi- sujeito às controvérsias que recaem sobre o entendimento da formação e distribuição
derar somente o pagamento pelo uso da terra nua, sendo excluídos os pagamentos do valor. Podemos então reconhecer a mais-valia, valor excedente, como produto do
pelo uso de construções ou outros melhoramentos, que devem ser considerados trabalho excedente, para com isso entender que toda renda fundiária é mais-valia.
mais apropriadamente como juros (GEORGE, 1992 [1879]). Isto não significa, porém, que toda mais-valia seja renda fundiária. Ao abordar
Segundo essa definição econômica, não seria então necessário falar em a gênese da renda fundiária capitalista, Marx (Livro III, cap.47) percorre as diferentes
renda “fundiária”5, ou renda “da terra”, ao menos no interior do debate científico. 6. Os tradutores da edição brasileira do Capital para a série Economistas (Ed. Nova Cultural, 1985) explicam que, embora
por analogia a “mais-trabalho” e “mais-produto” o termo mais preciso fosse o de “mais-valor”, foi adotado o termo “mais-
5. Em inglês, “land rent” ou “the rent of land”. O termo fundiário, cujo uso tem origem agrária, parece ser usado no Brasil valia” por ser o vocábulo consagrado em português.
por aproximação ao “foncier” francês. Em espanhol, o termo tem pouco uso, estando mais ligado ao universo agrário, 7. “Surplusvalue”, em inglês. “Plusvalue”, em francês, é registrada como palavra de uso forense em dicionário do final
sendo usados geralmente, no caso urbano, “renta del suelo” ou “renta de la tierra”. do século 19 (Guillard, Aillaud e Cia., 1887), com o significado de “excesso além da avaliação ou custo”.

412 Uma revisão das bases conceituais Fernanda Furtado de Oliveira e Silva 413
formas de renda fundiária para mostrar como a renda nas formas anteriores (renda O termo mais usado em referência à parcela da renda fundiária que esses
em trabalho, renda em produto) se identificava com a mais-valia, a forma normal acréscimos representam é o de “incremento de valor da terra”, e a base ética para
em que então se expressava o trabalho excedente não pago. No entanto, quando a a recuperação de parcelas desse valor é a de que, ao contrário do “valor” original
renda assume a forma de renda-dinheiro, e quando o arrendatário capitalista torna- (refletido no preço de aquisição9) que foi pago pelo proprietário, o incremento de
-se o comandante do processo de produção, “a renda deixa de ser a forma normal valor da terra, ou parte dele, é recebido de forma gratuita por ele, sendo alheio ao
da mais-valia e do trabalho excedente para reduzir-se a sobra desse trabalho exce- seu esforço e, portanto, constituindo-se em uma valorização imerecida10.
dente, a qual aparece depois de deduzida a parte de que se apropria o explorador Por ora, interessa então reconhecer o debate instaurado entre as duas prin-
capitalista sob a forma de lucro. … O lucro, e não mais a renda, é a forma normal da cipais interpretações apresentadas para o termo “mais-valias fundiárias”: i) a de que
mais-valia” (MARX, 1987 [1894], p.916-917). elas correspondem a toda a renda fundiária, e ii) a de que elas correspondem aos
A renda fundiária é, então, forma particular e parte específica da mais-valia, e, acréscimos dessa renda.
nesse sentido, mais-valia fundiária remete à parcela da mais-valia que cabe ao pro- Porém, o ponto central a reter para uma melhor compreensão do tema é
prietário da terra, sendo o mesmo que renda fundiária, “a forma em que se realiza o de entender que a segunda alternativa, relativa aos incrementos de valor, está
economicamente, se valoriza a propriedade fundiária” (id., p.710). contida na primeira alternativa, que inclui todo o valor da propriedade. Assim,
Qual a implicação desse entendimento para os nossos propósitos? embora na aproximação mais abrangente toda a renda da terra seja incremento
Se toda a “renda econômica da terra”, ou todo o “valor da terra”, é “mais-valia imerecido de valor, na perspectiva mais restritiva, somente determinados acrésci-
fundiária”, toda esta renda está sujeita a ser recuperada pela coletividade. Neste en- mos de valor são imerecidos.
tendimento, qualquer parcela do “valor da terra” de uma determinada propriedade,
seja ele relativo à mais-valia acumulada no passado ou à mais-valia potencial que
advenha no futuro, está qualificada como passível de recuperação. Como conse- Recuperação de mais-valias fundiárias urbanas:
quência, qualquer tributo ou ônus8 que incida sobre a terra, ainda que parcialmente, reunindo os conceitos envolvidos
poderia ser entendido como instrumento de recuperação de mais-valias fundiárias, Uma advertência necessária
trazendo amplitude ao rol dos instrumentos a serem considerados.
Esta interpretação, que tem consequências importantes na formulação de Antes de prosseguirmos, é necessário reconhecer que, desde uma perspectiva
uma política para a recuperação de mais-valias fundiárias e na consideração e dese- marxista radical, não haveria porque distinguir as mais-valias fundiárias do conjunto
nho dos instrumentos a serem utilizados na operacionalização desta política, não é, das mais-valias, e Marx aponta este como um dos erros principais que turvam a análi-
entretanto, a única possível para a definição do termo “mais-valias fundiárias”. se no estudo da renda fundiária, o que pode ser depreendido da seguinte passagem:

Justamente na valorização econômica da propriedade fundiária, no de-


“Mais-Valias Fundiárias” e “Incrementos de senvolvimento da renda fundiária, aparece como sendo peculiar a circuns-
tância de o montante dessa renda não ser determinado pela intervenção
Valor da Terra” do beneficiário, mas pelo desenvolvimento do trabalho social, que dele
não depende e em que não participa… o que é comum a todos os ramos
Um entendimento alternativo para o termo “mais-valias fundiárias urbanas” de produção e a todos os produtos no sistema de produção de mercado-
como objeto de recuperação por parte do poder público é o que remete à valori- rias e mais precisamente na produção capitalista, que em seu conjunto é
zação experimentada pelos terrenos no decorrer do processo de urbanização, ou produção de mercadorias (MARX, 1987 [1894], p.730).
seja, aos acréscimos da renda econômica da terra, usualmente considerados como
posteriores ao momento de aquisição da terra por um determinado proprietário.
Trata-se, portanto, da valorização territorial ocorrida na constância da propriedade. 9. Não entraremos aqui na discussão entre os conceitos e conteúdos de valor e preço. Como explicado anteriormente,
estamos considerando os termos em sua acepção mais corriqueira.
10. Deriva do termo incremento de valor da terra, “land value increment” em inglês, a muito usada expressão “unear-
ned increment”, registrada no Dicionário de Termos Imobiliários americano (Barron’s Educational Series, 1993) como
8. Referimo-nos a instrumentos que não são caracterizados como tributos propriamente, como, por exemplo, o Solo “um acréscimo de valor do imóvel não relacionado ao esforço por parte do proprietário; frequentemente devido ao
Criado ou a Outorga Onerosa do Direito de Construir, no Brasil, além de outros como vários instrumentos generica- aumento da população” (p.357). As traduções mais comuns na literatura para esta expressão são “valorização imere-
mente classificados como “exactions” nos Estados Unidos. cida” e “valorização indevida”.

414 Uma revisão das bases conceituais Fernanda Furtado de Oliveira e Silva 415
Ao abordar o tema da recuperação de mais-valias fundiárias, entretanto, en- confere a um indivíduo uma vantagem especial mensurável, é justo para a
tendemos que, apesar da relevância de reconhecer os seus limites como mecanismo comunidade que o indivíduo deva pagar por isso (SELIGMAN, 1925, apud
MACON e MAÑON, 1977, p.5).
de transformação das relações sociais, é importante também analisar as suas poten-
cialidades como ferramental na busca de caminhos para um processo de urbaniza-
ção socialmente mais justo (HARVEY, 1989). Por uma espécie de metamorfose, o princípio ético se transforma, desapa-
recendo a ideia de que “cada um deve ser recompensado apenas pelo seu próprio
esforço” e reaparecendo como “cada um deve ser responsável pelos seus próprios
Primeiro passo: a base ética e as motivações alternativas custos”. É importante ressaltar que esta transformação, que tem impactos impor-
tantes sobre qualquer campo da política tributária, não é neutra em relação à for-
Ao considerar a expressão “recuperação de mais-valias fundiárias urbanas”, mulação de uma política de recuperação de mais-valias fundiárias e à elaboração e
assumimos que está implícita a ideia de recuperá-las para a coletividade, com o en- seleção dos instrumentos que a integrem.
tendimento de que cabem à coletividade. Devemos então examinar os motivos que Esse debate, que não temos a pretensão de considerar aqui de forma mais
podem estar associados ao entendimento de que essas mais-valias, ou uma parcela aprofundada, serve para ilustrar como a definição “cabem à coletividade” pode ad-
delas, cabem à coletividade, o que remete aos princípios éticos que formam a base quirir vários significados e intensidades, que decorrem de uma questão de entendi-
da motivação para recuperá-las. mento do que seja “justo”, e da evolução (ou involução) de diferentes proposições
Vamos partir da proposição ética usualmente considerada neste campo de éticas, aqui tomadas como forma de abrir a questão sobre as diversas motivações
que “cada um deve ser recompensado apenas pelo seu próprio esforço”, ressalvan- para a recuperação de mais-valias fundiárias.
do que, como apontado acima, nos marcos da urbanização capitalista esta proposi- Isto não significa que uma generalização na motivação para a recuperação de
ção não pode ser dissociada de uma “ética do capital”, o que qualifica de imediato o mais-valias fundiárias não seja possível, mas apenas que ela não é autoexplicativa.
que se depreende de “próprio esforço”. Assim, entender que a recuperação de mais-valias fundiárias é justa porque per-
Segundo essa proposição, a mais-valia fundiária que não é produto do esfor- mite redistribuir vantagens especiais alocadas privadamente, é algo que não pode
ço individual é imerecida. Mas, como vimos, o que (que parcela) realmente é produ- ser avaliado independentemente de um conjunto de questões que envolvem, entre
to do esforço individual também é passível de mais de um entendimento. Na visão outras coisas, como e onde essas vantagens especiais são alocadas.
de Henry George, por exemplo, a renda de uma determinada propriedade depende Em qualquer dos casos, nossa expressão adquire trechos implícitos, assumin-
unicamente do esforço coletivo, o que aparece claramente em sua proposta: do a forma mais genérica de recuperar (para a coletividade, porque cabem à coleti-
vidade,) (a totalidade ou uma parcela estabelecida pela coletividade das) mais-valias
Considere o que é a renda. Ela não cresce espontaneamente da terra; não
é devida a nada que os proprietários tenham feito. Ela representa um valor fundiárias urbanas.
criado por toda a comunidade. Deixemos que os proprietários tenham
tudo o que a posse da terra lhes daria na ausência do restante da comuni-
dade (GEORGE, 1992 [1879], p.366). Segundo passo: variações qualitativas e
seu conteúdo ético
Esta não é, contudo, a única forma como a proposição é entendida no campo
das finanças públicas e nos princípios de tributação. Um entendimento alternativo, Em nosso primeiro passo para entender a expressão em sua totalidade, diri-
situado na outra ponta de um conjunto de entendimentos possíveis, é a de que gimo-nos às suas motivações, o “porquê”. Aqui, trataremos de definir o objeto desta
“é justo que a coletividade deva ser ressarcida”. Edwin Seligman, um dos grandes expressão e delimitá-lo, ou seja, a “quais” mais-valias fundiárias urbanas a expressão
nomes da área, adota esse caminho alternativo: se dirige.
Vamos situar em dois níveis a definição qualitativa do que se considera como
A teoria da contribuição de valorização ou melhoria (betterment charge or
mais-valias fundiárias. O primeiro, de que já tratamos, é o que distingue a concepção
assessment) de acordo com o benefício é muito simples. Ela se baseia no
princípio quase axiomático de que se o governo por alguma ação positiva mais abrangente que inclui todo o “valor” da terra, dos incrementos de valor como
acréscimos incorporados na constância da propriedade. Em um segundo nível,
podemos imediatamente distinguir, a partir dos termos mais usados na literatura,

416 Uma revisão das bases conceituais Fernanda Furtado de Oliveira e Silva 417
quatro categorias básicas de mais-valias fundiárias urbanas, ou seja, das distintas
valorizações a considerar, ordenadas de maneira decrescente:
i. toda (independente de origem);
ii. alheia à ação do proprietário;
iii. que depende da atuação pública;
iv. que decorre de investimentos públicos diretos.
Cabe esclarecer, porém, que o que cada indivíduo, ou cada conjunto social,
entende para cada uma dessas categorias também é variável, e como já sugerido
depende em última análise das bases éticas que atravessam o pensamento individu-
al ou esse conjunto social. Vimos que para Henry George, por exemplo, toda mais-
-valia fundiária urbana é imerecida e deve ser recuperada. Para ele e seus seguidores
radicais, essa classificação seria completamente inútil, sob o argumento de que toda
mais-valia fundiária é alheia ao esforço do proprietário e ademais depende do esfor-
ço da coletividade, inclusive a que decorre de investimentos públicos.
Apesar disso, esses termos são usados de forma diferenciada, e não como
alternativas aleatórias. Esta diferenciação é útil para que se possa definir um conjun- A partir desta distinção, a incidência de instrumentos de recuperação de
to de instrumentos de política fundiária com incidências específicas, que possam mais-valias fundiárias pode dar-se com base na definição de diferentes fatos gera-
funcionar dentro de um sistema de instrumentos. dores. Para tanto, é necessário explicitar o que cada uma das categorias usualmente
exclui em relação à categoria de significado imediatamente mais abrangente.

Valorização fundiária alheia à ação do proprietário


Valorização fundiária que depende da atuação pública
A segunda categoria, “alheia à ação do proprietário”, envolve todas as ações
presentes no processo de urbanização, desde aquelas realizadas pela administra- Esta categoria exclui o resultado do esforço de outros proprietários individu-
ção pública até as capitaneadas por outros agentes privados ou individuais parti- ais sobre o valor de um determinado terreno. Trata-se aqui de atividades privadas
cipantes desse processo. Como vimos, a principal razão para considerá-la de modo que ocorrem externamente a uma determinada propriedade, mas adjacentes a ela,
especial em relação à categoria mais abrangente é a de estarem todas estas ações de forma que o proprietário é beneficiado pelas alterações de vizinhança que acon-
desvinculadas do “esforço” do proprietário. Pode-se afirmar, desta forma, que esta tecem de forma independente da sua atuação ou mesmo presença. Brown e Smolka
parte do valor da propriedade deve estar sujeita a instrumentos de recuperação de (1997) apresentam ilustrações interessantes a esta ideia, como o embelezamento de
mais-valias fundiárias. um jardim privado, um novo tipo de shopping-center ou um condomínio fechado, e
Para definir a incidência desses instrumentos, é importante distinguir essas até a chegada de uma pessoa famosa na comunidade11.
ações em três tipos: as ações de outros indivíduos (privados), as decisões adminis- É importante entender a racionalidade de excluir, para efeitos de recuperação
trativas que importem em alterações da normativa urbanística e os investimentos de mais-valias fundiárias, este tipo de valorização. Ela se apoia no entendimento de
públicos diretos. Vale observar que o segundo e terceiro tipo, em conjunto, repre- que, em parte, existe um elemento de sorte, ou de visão de futuro, para o proprie-
sentam a atuação pública, correspondendo à terceira categoria de mais-valias fun- tário beneficiado, que é associado a esta aproximação, a qual pode ser entendida
diárias, enquanto o terceiro tipo representa uma forma específica desta atuação, como a outra face da ética envolvida: a ideia de que não seria antiético apropriar-se
correspondente à quarta categoria. de benefícios que “caem do céu”12.
O Esquema 1 auxilia a compreensão da estrutura proposta.
11. Os autores, com uma abordagem mais genérica, incluem efeitos negativos sobre o valor, como a emissão de po-
luentes. O ponto é interessante para introduzir o tema das compensações pelo decréscimo de valor decorrente de
ações alheias ao proprietário, presente, por exemplo, na lógica do instrumento de transferência do direito de construir.
12. Em inglês, utiliza-se o termo específico “windfalls”.

418 Uma revisão das bases conceituais Fernanda Furtado de Oliveira e Silva 419
Mas este segundo tipo pode excluir também atividades específicas do ca- Ao regredir até o momento inicial deste terreno no mercado, podemos então
pital imobiliário na busca de inovações que lhe permitam apropriar-se momenta- concluir que todo o seu valor acumulado corresponde a valorizações incorporadas de
neamente de sobrelucros, os quais quando se generalizam podem ser apropriados forma privada no passado, através da capitalização, por cada proprietário, das mais-va-
pelos proprietários na forma de rendas, genericamente reconhecidos como “ganhos lias fundiárias acumuladas ao longo do tempo. O Esquema 2 ilustra este entendimento.
de fundador” (SMOLKA, 1983). O ponto remete ao extenso debate das externalida- Essas quatro categorias, com suas variações, são capazes de estabelecer ho-
des urbanas e de seu rebatimento na produção (e consumo) do ambiente constru- rizontes para a recuperação de mais-valias fundiárias urbanas, e seu ordenamento
ído, envolvendo também as estratégias do capital imobiliário para a internalização decrescente acrescenta a essa ordenação, que é sobretudo qualitativa, um elemen-
dessas externalidades (SMOLKA, 1987). to quantitativo.
Para a formulação de uma política fundiária e de seus instrumentos, é neces-
sário especificar exatamente quais mais-valias fundiárias urbanas serão colocadas
Valorização que decorre de investimentos públicos no horizonte da recuperação, e a lista acima, se não cobre todas as possibilidades,
na medida em que outros subgrupos podem surgir dependendo do que se pre-
A última categoria, relativa a investimentos públicos diretos e localizados, tenda excluir ou incluir em uma definição mais concreta, serve para orientar uma
exclui, em relação à anterior, o esforço da coletividade que não implica custo direto aproximação prática ao tema.
ou imediato. Aqui, a atuação pública que se considera é limitada pela provisão de
obras públicas localizadas, e notadamente de infraestrutura urbana, sendo excluí-
dos os impactos decorrentes da regulação urbanística.
Ora, a regulação urbanística é um elemento que proporciona valor aos terre-
nos urbanos, sendo reconhecido que boa parte de seu valor é definida pelo que se
pode fazer nele, ou seja, pelos usos e aproveitamentos que lhe são atribuídos atra-
vés da normativa urbanística. Desta forma, alterações nesta normativa, ao definirem
usos mais intensivos ou mais rentáveis para determinados terrenos, usualmente
provocam valorizações de tais propriedades.
Cabe observar que os parâmetros construtivos e usos permitidos em uma de-
terminada área ou localização estão, ao menos teoricamente, relacionados à infraes-
trutura existente no local, de modo que na prática muitas vezes é complicado separar
essas duas linhas de atuação do poder público quando da definição de instrumentos
concretos, exceto no caso da limitação da recuperação aos custos incorridos13.
E o “esforço do proprietário”?
Nesta sequência lógica, cabe agora questionar o que justifica, conceitualmente,
recuperar parcelas da mais-valia fundiária relacionadas ao “esforço do proprietário”, ou Terceiro passo: dos conceitos à montagem
seja, ao valor associado ao preço pago pelo proprietário na aquisição do terreno. de um sistema
A assertiva de que todo o valor da terra é mais-valia fundiária é o que justifica
essa cobrança. Para entendê-la, é importante voltar ao valor imputado no momento Para a montagem de um sistema de política fundiária urbana, o esquema pro-
da aquisição, para verificar que este valor acumulado corresponde à adição das va- posto aponta para a utilização de instrumentos relacionados a cada uma das quatro
lorizações apropriadas pelo proprietário anterior, ao valor original da propriedade categorias propostas. Entre elas, a categoria mais abrangente é a que inclui instru-
que aquele proprietário pagou, em momento anterior, ao adquirir este terreno. mentos que incidem sobre todo o valor do terreno, independente do momento e
da origem de aquisição de cada parcela deste valor. Os instrumentos que se incluem
13. O instrumento usualmente considerado nessa situação é o da contribuição de melhoria. Vale notar, porém, que nesta categoria são os impostos territoriais, presentes no IPTU e também em impos-
ela também é, via de regra, limitada legalmente aos custos do investimento, e que no caso mais geral da provisão de tos de transmissão das propriedades.
infraestrutura e serviços escassos e mal distribuídos no espaço, os custos incorridos são apenas uma pequena fração
da valorização percebida pelos proprietários beneficiados pela obra em questão.

420 Uma revisão das bases conceituais Fernanda Furtado de Oliveira e Silva 421
É interessante observar que tem sido frequente a busca de alternativas mu- Por fim, a quarta categoria se refere exclusivamente à recuperação da valo-
nicipais por instrumentos voltados para a recuperação da valorização decorrente rização decorrente de investimentos públicos diretos, como o alargamento de uma
da dinâmica imobiliária em geral, e especialmente da atuação pública, com o argu- via ou a dotação de um novo serviço público em um local ou área da cidade. Neste
mento de que o imposto predial não é capaz de recuperar as enormes valorizações caso, está previsto o lançamento da Contribuição de Melhoria (CM), tributo direta-
advindas do adensamento e da verticalização dos terrenos urbanos, e também da mente relacionado a gastos públicos localizados que impliquem a valorização de
incorporação de grandes terrenos periurbanos. determinados imóveis. O fato de que este instrumento usualmente considera a re-
Ora, se o imposto predial (em seu componente territorial) é um instrumento cuperação apenas dos custos envolvidos não exclui a CM de um sistema completo
da primeira categoria, teoricamente deveria ser possível recuperar todas as mais- de recuperação de mais-valias fundiárias.
-valias fundiárias, independente de origem, através deste instrumento. Duas são as Neste sistema, então, cada grupo de instrumentos trata de recuperar uma
razões para que isto não ocorra: em primeiro lugar, as formas concretas de utilização parcela das mais-valias fundiárias acumuladas. Vale notar que esta incidência está
do imposto predial, no Brasil como em toda a América Latina, o tornam baixo e de- vinculada a diferentes fatos geradores, de modo que o esquema apresentado
satualizado, dadas as condições políticas e técnicas de sua aplicação14. Em segundo também esclarece a questão muitas vezes levantada de que haveria, na utilização
lugar, a sua inserção em um sistema em que diversos instrumentos incidem sobre conjunta desses instrumentos, uma bi-tributação.
diversos fatos geradores facilita a sua utilização como instrumento básico da políti- Apesar de que este sistema de certo modo contribuia para superar as defici-
ca fundiária urbana, a ser complementado por outros instrumentos que incidam em ências de uma base tributária desatualizada, há que se entender que como todos os
momentos particulares do funcionamento do mercado de terras. instrumentos tomam como base algum valor atribuído aos imóveis, caso este valor
A segunda categoria incide sobre qualquer valorização alheia à ação do pro- esteja desatualizado ele pode não conter uma parte importante da valorização, o
prietário, seja ela advinda da ação de outros indivíduos ou da atuação pública. Aqui, que em certos casos pode ser muito significativo e funcionar mais como cortina de
são incluídos os chamados tributos sobre o ganho fundiário, que em geral têm como fumaça do que como uma real recuperação de mais-valias fundiárias.
fato gerador o momento em que a propriedade é transacionada. No Brasil, este tri- O Esquema 3 permite melhor entender o funcionamento desse sistema.
buto está presente na forma de um “imposto sobre ganho de capital”, inserido no
imposto sobre a renda federal. Justamente, para o cálculo deste imposto, desconta-
-se do preço de venda do imóvel o seu preço de aquisição atualizado.
A terceira categoria enfoca a valorização originada pela atuação pública, a
qual inclui tanto as decisões administrativas sobre o uso e aproveitamento do solo
urbano, como os investimentos públicos associados a usos mais rentáveis e maiores
aproveitamentos. No caso brasileiro, temos no Estatuto da Cidade dois instrumen-
tos regulamentados para este fim: a Outorga Onerosa do Direito de Construir e de
Alteração de Uso (OODC), e também a Operação Urbana Consorciada (OUC). Ambos
os instrumentos se utilizam da mesma base conceitual de recuperar parcelas das
mais-valias fundiárias decorrentes da alteração da normativa urbanística, sendo que
a OODC envolve investimentos públicos realizados no passado em certas áreas da
cidade (e por esta razão a arrecadação oriunda deste instrumento deve destinar-
-se àquelas áreas carentes desses investimentos), enquanto a OUC está associada a
investimentos necessários em áreas da cidade que estejam passando por transfor-
mações estruturais15.
Este sistema, como se pode observar, contempla apenas os instrumentos bási-
14. Para uma discussão em profundidade desse ponto, vide o Capítulo I da tese de doutorado da autora. cos e de utilização direta para o desenho de uma política fundiária urbana, porém é
15. Estes instrumentos de terceira categoria podem ou não ser de natureza tributária, o que não altera o esquema
conceitual proposto. No Brasil, já foi definido pelo STF (relatoria Eros Grau, 2008) que a OODC – ou solo criado – não é
importante entender que a estrutura analítica proposta permite contemplar diversos
um tributo, e sim um ônus vinculado a uma faculdade atribuível ao proprietário de imóvel. Na Colômbia, por exemplo,
a Participación en Plusvalías, similar à OODC, é considerada um tributo, pois incide sobre todos os terrenos em que a normativa urbanística seja alterada, independente de que esta alteração seja exercida pelo proprietário.

422 Uma revisão das bases conceituais Fernanda Furtado de Oliveira e Silva 423
outros instrumentos complementares. Um exemplo importante é a desapropriação: derá-lo como um objetivo em si mesmo. Assim, a delimitação desse patamar envolve
mediante o entendimento do momento em que ela é utilizada em relação à estrutura a introdução dos objetivos para a recuperação de mais-valias fundiárias e como eles
proposta, pode-se melhor definir o que deve ser incluído no montante de indenização podem ou devem ser absorvidos e hierarquizados como objetivos desta política17.
e o que deve ser excluído. Outros instrumentos inseridos no Estatuto da Cidade e ainda Não pode deixar de ser mencionado, também, que esses instrumentos, apesar
sem uma base experimental definida, como o direito de preempção e o consórcio imo- de aparentemente se revestirem de um caráter técnico, são passíveis de apropria-
biliário, podem também beneficiar-se desta estrutura para sua regulamentação. ção política por grupos mais poderosos que outros. Aqui, é essencial não rotular os
instrumentos e tomar com cuidado certos detalhes que podem alterar inteiramente
o seu alcance qualitativo. Além dos instrumentos tributários que frequentemente
Considerações Finais: ética e prática política sofrem essas importantes (embora às vezes aparentemente marginais) transforma-
ções, deve-se ter atenção aos instrumentos relacionados com a alteração de norma-
Voltamos agora ao nosso ponto inicial. A expressão é “recuperação de mais- tivas urbanísticas, pois essas alterações podem com facilidade adquirir o caráter de
-valias fundiárias urbanas”, e não das, porque em ambos os casos definir a quantida- comercialização dessas normas.
de de mais-valias fundiárias a recuperar remete à esfera política. Sobre este ponto, é fundamental entender que este caráter de comercializa-
Na análise teórica de quais mais-valias fundiárias devem ser ou são considera- ção pode vir a ser generalizado, se recuperar mais-valias fundiárias for tomado como
das como passíveis de serem recuperadas, estabelecer o horizonte qualitativo dessa um princípio de compensação. Neste caso, perde-se inteiramente o princípio que
consideração é um elemento essencial. O horizonte mais amplo para o tema seria entendemos que norteia o tema, que é o princípio da distribuição18. Aqui, tornam-
o de tornar todas as terras comunitárias, ou alternativamente, como proposto origi- -se claras as diferenças entre a apropriação do tema como elemento facilitador do
nalmente por Henry George, de capturar todas as rendas, mas ele mesmo reconhe- livre funcionamento do mercado de terras urbanas, e a apropriação em que vimos
ce esta ideia como utópica16. nos situando ao longo de nosso trabalho, como elemento de intervenção sobre um
A identificação de qual deve ou pode ser esse horizonte, bem como sua con- mercado de terras cujo funcionamento se caracteriza por uma distribuição estrutu-
frontação com o reconhecimento de como ele tem sido situado concretamente, ralmente injusta das mais-valias fundiárias.
com certeza ultrapassam esta aproximação conceitual, e neste sentido nosso arca-
bouço pretende ter o papel de contribuir para o avanço dessas análises, e não o
de colaborar para uma estratégia de despolitização de uma definição concreta que Referências bibliográficas
claramente pertence ao campo político.
A importância deste entendimento é a de que com ele se estabelecem os limites BOTELHO, Adriano. “A Renda Fundiária Urbana: uma categoria de análise ainda válida”.
do tema da recuperação de mais-valias fundiárias urbanas, compreendendo que ele não Revista GEOgraphia, Ano IX, N. 19, UFF/EGG, 2008, p. 23-40.

pode ser tomado como panaceia para o processo de urbanização, ou seja, há que se reco- BROWN, H. James and SMOLKA, Martim O. “Capturing Public Value from Public Investments”.
nhecer de antemão que ele serve para algumas coisas, mas para outras não serve. In: BROWN, H. James (Ed.) Land Use and Taxation. Applying the Insights of Henry George.
Cambridge, Massachusetts: Lincoln Institute of Land Policy, 1997.
Essa dimensão política pode também ser abordada em dois planos analíticos,
o primeiro relativo ao que é desejável, que remete ao nosso horizonte qualitativo, e CAMPANARIO, Milton. Land Rent and the Reproduction of Labor Force: Some Evidence from São
Paulo. Tese de Doutorado, Cornell University, 1981.
o segundo relativo ao que é possível, que remete tanto à definição de um horizonte
qualitativo concretamente determinado como à delimitação de um patamar quan- FUNDAÇÃO PREFEITO FARIA LIMA / CEPAM. “Carta do Embu”. Documento Síntese do
Seminário Aspectos Jurídicos do Solo Criado, Embu, SP, dezembro de 1976.
titativo dentro deste horizonte.
Esta delimitação, porém, não se define de forma abstrata, ela envolve enten- FURTADO, Fernanda. Instrumentos para a Recuperação de Mais-Valias Fundiárias Urbanas na
América Latina: debilidade na implementação, ambiguidades na interpretação. Tese de
der o processo de urbanização e suas complexas articulações em suas manifestações
Doutorado. São Paulo, FAU-USP, 1999.
concretas. Isto significa inserir o tema da recuperação de mais-valias fundiárias, nesse
processo, como um eixo na formulação de uma política fundiária urbana, e não consi-

17. Definir e analisar estes objetivos escapa aos propósitos mais restritos deste artigo. O tema é desenvolvido no Capí-
16. Henry George reconhece claramente esta dimensão política, ao falar explicitamente em capturar quase todas as tulo III da Tese de Doutorado da autora.
rendas, excluindo os melhoramentos realizados na propriedade, ainda que os considere como produtos coletivos. 18. Sobre a distributividade como o elemento básico da recuperação de mais-valias fundiárias, vide Furtado, 2000.

424 Uma revisão das bases conceituais Fernanda Furtado de Oliveira e Silva 425
PARTE lI
. “Rethinking Value Capture Policies for Latin America”. LandLines –
Newsletter of The Lincoln Institute of Land Policy, Cambridge, Massachussetts, v.12, n.3,
May 2000, p.8-10.
FURTADO, Fernanda, BIASOTTO, Rosane, MALERONKA, Camila. Outorga Onerosa do Direito de
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FURTADO, Fernanda y ACOSTA, Claudia. Recuperación de Plusvalías en Brasil, Colombia y
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. “Desenvolvimento Capitalista e Estruturação Intra Urbana no Brasil: Os
Marcos Gerais”. Espaço e Debates, Ano VIII, vol.1, n.21, 1987, 39-50.

426 Uma revisão das bases conceituais


A construção da imagem the subjects affected by such symbolic production challenge the dominant images and, in
certain contexts, unveil the tensions and conflicts arising from the mismatch between these

urbana nos grandes eventos:


images and other possible readins or urban spaces in restructuring processes.
Resumen | la construcción de la imagen urbana en los grandes eventos: potemkinismo,

potemkinismo, a mídia e a medios de comunicación y la periferia


El presente texto discute importantes aspectos de la producción de la imagen de las ciuda-

periferia des, especialmente aquellos relacionados a las sociedades urbanas periféricas. Una serie de
procesos, traídos para su análisis, relaciona el papel de los medios de comunicación y del
marketing de la ciudad en coyunturas de realización de grandes eventos. La espectaculari-
zación del paisaje urbano es tratada en este trabajo por medio de la noción de potemkinis-
Anne-Marie Broudehoux (Canadá) mo, entendido como proyección de una visión idealizada de la ciudad que tanto embellece
Tradução: Bruna da Cunha Guterman como falsifica la realidad. Los impactos de tal construcción simbólica son, al mismo tiempo,
políticos y, como apunta el texto, afectan a los ciudadanos en sus derechos a la vivienda
y a la ciudad. Al explorar esas ideas, el trabajo muestra visiones idealizadas y estetizadas
Resumo | O presente texto discute importantes aspectos da produção da imagem das de la ciudad, que proyectan representaciones parciales y reductoras de la sociedad y, de
cidades, especialmente aqueles relacionados às sociedades urbanas periféricas. Um feixe ese modo, perpetúan asimetrías de poder y cristalizan lecturas selectivas de sus territorios.
de processos, trazidos para a análise, relaciona o papel da mídia e do city marketing em Considerándolo todo, los sujetos afectados por tal producción simbólica desafían a las imá-
conjunturas de realização de grandes eventos. A espetacularização da paisagem urbana é genes dominantes y, en ciertos contextos, desvelan las tensiones y conflictos derivados del
tratada neste trabalho por intermédio da noção de potemkinismo, entendido como pro- desencuentro entre esas imágenes y las otras posibles lecturas de los espacios urbanos en
jeção de uma visão idealizada da cidade que tanto embeleza quanto falsifica a realidade. procesos de reestructuración.
Os impactos de tal construção simbólica são, ao mesmo tempo, políticos e, como aponta
o texto, afetam os cidadãos em seus direitos à moradia e à cidade. Ao explorar essas ideias
o trabalho mostra visões idealizadas e estetizadas da cidade, que projetam representações
parciais e redutoras da sociedade e, desse modo, perpetuam assimetrias de poder e crista-
lizam leituras seletivas dos seus territórios. Contudo, os sujeitos afetados por tal produção Ao longo dos últimos anos, tenho trabalhado com diferentes aspectos da-
simbólica desafiam as imagens dominantes e, em certos contextos, desvelam as tensões e construção da imagem urbana e do city marketing relacionados diretamente com
conflitos advindos do desencontro entre essas imagens e as outras possíveis leituras dos a ocorrência de megaeventos, especialmente na espetacularização da paisagem
espaços urbanos em processos de reestruturação. urbana e os impactos nos direitos à moradia e no direito à cidade1. Neste artigo, con-
tinuarei a explorar essas ideias, examinando mais atentamente alguns mecanismos
Abstract | the construction of urban image in great events: potemkinismo, the media
de construção da imagem, o papel da mídia neste processo e as particularidades das
and the periphery
sociedades periféricas.
This paper discusses important aspects of the production of the image of the cities, espe-
cially those related to peripheral urban societies. A beam processes, brought to analysis,
relates the role of the media and the city marketing in major events. The spectacle of the 1. Anne-Marie Broudehoux. « The Social and Spatial Impacts of Olympic Image Construction: The case of Beijing 2008 »
urban landscape is treated in this work through the potemkinismo, understood as a projec- in Stephen Wagg et Helen Lenskyj, A Handbook of Olympic Studies.London : Routledge, 2012. Anne-Marie Broudehoux.
“ Civilizing Beijing : Social beautification, civility, and citizenship at the 2008 Olympics.” in The Olympics, Mega-events
tion of an idealized view of the city that both beatifies as falsifies reality. The impacts of such and Civil Societies: Globalization, Environment, Resistance, ed. Graeme Hayes and John Karamichas. London: Palgrave
Macmillan, 2011. Anne-Marie Broudehoux. “Beijing’s Olympic Image: The Architectural construction of the Integrated
symbolic construction are political and affect citizens in their rights to housing and the city,
Spectacle. Journal of Architectural Education.Vol 62 no.2. 2010. Anne-Marie Broudehoux. « Seeds of Dissent: The Politics
as pointed out by the text. By exploring these ideas work shows idealized visions and aes- of Resistance to Beijing’s Olympic Redevelopment »in Melissa Butcher et Selvaraj Velayutham (dir.) Dissent and Cultural
Resistance in Asian Cities, London : Routledge, 2009, pp.14-32. Anne-Marie Broudehoux. « L’image olympique de Pékin
theticized the city, designing partial and reductive representations of society and thus per- à l’ère du néolibéralisme chinois  » in Mike Davis (dir.) Paradis infernaux  : Les villes hallucinées du néo-capitalisme.
petuate power asymmetries and crystallize selective readings of their territories. However, Paris : Les prairies ordinaires, 2008. Anne-Marie Broudehoux. “Spectacular Beijing: The Conspicuous Construction of an
Olympic Metropolis”. Journal of Urban Affairs. 29, 4 (2007): 383-399.

428 A construção da imagem urbana nos grandes eventos Anne-Marie Broudehoux (Canadá) 429
Meu interesse em mega-eventos decorre do meu trabalho de análise sobre a mesmo um constrangimento, o que poderia ser tomado como prova de fracasso,
transformação de Pequim de uma capital socialista para uma metrópole mundial e inadequação, ou pior, de inferioridade.
uma cidade olímpica. Muito antes dos megaeventos chegarem a Pequim, a cidade já A construção da imagem potemkinista não está limitada a manipulações vi-
havia desenvolvido uma estratégia sofisticada de construção da imagem – largamen- suais, mas também inclui uma ampla gama de práticas e estratégias discursivas,
te modelada em práticas soviéticas – e aperfeiçoada pela arte de camuflar a realida- muitas vezes por meio do uso de uma retórica sedutora, de uma linguagem super-
de. Por ocasião das celebrações nacionais especiais ou das visitas oficiais de chefes lativa, da mistificação de dados e de diversas formas de exagero para melhorar a
de Estado estrangeiros (por exemplo, durante a visita de Richard Nixon em 1972), percepção da realidade. Nos países comunistas, o potemkinismo muitas vezes foi
Pequim estava decorada com uma camada de tinta fresca, flores em vasos e novos além da simples montagem de vitrines e da construção de fachadas falsas, e incluiu
uniformes para as crianças na escola. Em seu livro de memórias, Henry Kissinger des- a reconstrução de toda uma realidade, um mundo potemkin em que jornais, filmes,
creve sua visita a China como um “jogo cuidadosamente ensaiado em que nada foi discursos políticos e estatísticas oficiais conspiravam para dissipar as acusações de
acidental e ainda sim tudo parecia espontâneo.”2 Os aspectos da cidade socialista que atraso econômico e cultural5. Esta visão embelezada não visava unicamente um pú-
poderiam questionar o sucesso da revolução ou estavam disfarçados ou cuidadosa- blico externo, mas também procurou convencer a população local do sucesso da
mente escondidos, por meio de painéis, outdoors ou grandes arbustos, enquanto os revolução e da integridade da liderança.
dissidentes e indigentes foram colocados fora de vista de forma segura3. Evidentemente, tais práticas não são exclusivas de qualquer sistema polí-
tico-econômico e podem ser encontradas em diferentes contextos. No Brasil, um
equivalente próximo da ideia de potemkinismo é a expressão “para inglês ver” (li-
Potemkinismo e a construção da imagem teralmente “para o inglês ver”), o que poderia ser traduzido como “apenas para se
mostrar” ou “para salvar as aparências”. A expressão parece remontar à segunda
Na minha pesquisa, eu uso a noção de potemkinismo para falar da projeção de metade do século XIX, quando a Inglaterra obrigou o Brasil a assinar um tratado
uma visão idealizada da cidade que tanto embeleza quanto falsifica a realidade. O para extinguir o tráfico de escravos. Ainda que não tivesse intenções reais de acabar
conceito vem da Rússia czarista, quando Catherine, a Grande, realizou uma grande com o comércio, o Brasil aprovou uma série de leis para satisfazer as demandas in-
turnê pela Criméia para testemunhar o progresso de seus esforços de colonização. glesas, mas elas nunca foram postas em prática.A expressão é agora usada para
Para enganar a imperatriz sobre o sucesso de tais iniciativas, o príncipe Grigory Po- denunciar projetos cosméticos de modernização ou para se referir à adoção, pelo
temkin supostamente usou cenários de palcos teatrais para erguer imitações de al- Brasil, de ideias e instituições liberais associadas com países mais desenvolvidos
deias na paisagem, assim sugerindo um ritmo mais avançado de colonização. A re- para propósitos largamente espetaculares.
volução Bolchevique viria a desenvolver e aperfeiçoar práticas similares, “nas quais Esta expressão acrescenta uma nova dimensão para o potemkinismo, uma vez
os defeitos e contradições do presente são negligenciados e onde o mundo não é que evoca mais do que a simples exibição de uma falsa realidade para impressionar
descrito como é, mas como está se tornando”4. os estrangeiros, mas também incorpora uma forma velada ou simbólica de resis-
Potemkinismo pode assim ser definido como a manipulação de aparências tência, semelhante ao que James Scott chama de “falsa consciência”6. Para Scott, ao
para distorcer a realidade, especialmente a fim de retratar um maior nível de de- fingir cumprir a exigência feita pelos superiores, enquanto secretamente continuam
senvolvimento. É uma forma de mecanismo de autopreservação desenvolvido em a fazer as coisas à sua própria maneira, os grupos subordinados subvertem as desi-
resposta à presença de um olhar externo, um espectador crítico, a julgar e avaliar gualdades de poder e dominação e constroem um “discurso velado de dignidade e
um nível de progresso. Potemkinismo não se limita a sugerir um desejo de mistificar autoafirmação” (p.137).
por meio do disfarce da realidade, mas também denota um desejo de agradar, para Os chineses também têm uma expressão interessante, relacionada ao pote-
impressionar e satisfazer as expectativas, mesmo que se tenha de recorrer a algum mkinismo e aos megaeventos. Eles falam de projetos mian (face), que lhes permitem
tipo de artifício para fazê-lo. Mais importante, ele transmite certo desconforto, até salvar a face e preservar sua dignidade, sugerindo que um desempenho decepcio-
nante pode resultar em uma perda do respeito7. Implícita em todas essas diferentes

2. Kissinger, Henry A. (1979) White House Years. Boston: Little, Brown, p. 1056 5. Fitzpatrick, Sheila. Everyday Stalinism, New York: Oxford University Press, 1999.
3. Ver Broudehoux, Anne-Marie.The Making and Selling of Post-Mao Beijing. London: Routledge, 2004. 6. Scott, James C. (1985). Weapons of the weak: forms of resistance.New Haven and London, Yale University Press.
4. Fitzpatrick, Sheila. Everyday Stalinism, New York: Oxford University Press, 1999, p.16. 7. Esta utilização é geralmente limitada à linguagem coloquial. O discurso oficial é geralmente mais cauteloso com o

430 A construção da imagem urbana nos grandes eventos Anne-Marie Broudehoux (Canadá) 431
expressões está a ideia de uma relação de poder desigual entre o sujeito e o seu sediar megaeventos são geralmente muito elevadas. Quando nações que enfren-
avaliadorexterno e as inseguranças sobre o seu status no mundo. Tais práticas são, tam a pobreza em massa e a falta de moradia gastamseus recursos limitados para
portanto, profundamente enraizadas na política de representação. sediar megaeventos, não é só na esperança de promover o desenvolvimento eco-
nômico, mas, mais importante,é para escapar da marginalização, para superar uma
situação precária no ranking simbólico das nações, e para adquirir respeito global11.
Potemkinismo e a periferia Em outubro de 2009, quando o Brasil venceu a disputa para sediar as Olimpíadas
de 2016, o presidente Lula declarou: “O Brasil deixou o seu status de segunda classe
Eu acho que potemkinismo é um conceito útil para entender o desejo de para trás e entrou na primeira classe. Hoje recebemos respeito”.
transformar a imagem de uma cidade que se prepara para sediar eventos mundiais Certamente, não estou afirmando que todos os esforços de construção de
importantes. Ele é a base de algumas das tensões e relações de poder que existem imagem relacionados a megaeventos são de natureza potemkin. No entanto, o ato
não só entre o país anfitrião e o mundo, mas, também, dentro da sociedade anfi- de sediar megaeventos é frequentemente associado a uma cultura de encobertar
triã, entre promotores de eventos locais – geralmente uma coalizão de políticos e a fraude, na medida em que os proponentes implementam uma vasta gama de
elites econômicas locais – e a população em geral. Como sabemos, o que motiva estratégias discursivas – incluindo uma linguagem mítica de persuasão, previsões
os promotores da cidade a sediar megaeventos é um desejo por reconhecimento, irrealistas e afirmações não comprovadas – para esconder a realidade, conquistar a
um desejo de projetar uma imagem positiva que irá melhorar tanto o status como o opinião pública e investidores. Esforços de construção da imagem relacionados aos
prestígio 8. Subjacentes a estas motivações estão as ansiedades sobre a sua posição eventos são frequentemente de natureza defensiva, e se concentram em corrigir as
na ordem mundial dominante. Para estas elites, sediar megaeventos é visto como percepções negativas da cidade, abordar as principais preocupações da comunida-
um teste da modernidade, um indicador de desempenho, ou uma ocasião para que de internacional e provar que a cidade pode atuar em áreas onde a sua reputação é
elas se estabeleçam como modelos de organização e gestão responsável, o que aju- pobre12. Por exemplo, no Rio de Janeiro, enquanto a cidade se prepara para sediar
dará a construir a sua credibilidade como players respeitáveis no cenário mundial. a Copa do Mundo 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, grandes esforços são mobi-
Enfatizando todas essas preocupações estão, evidentemente, questões relativas ao lizados para reparar percepções negativas de violência e criminalidade, por meio
poder político e econômico. da ocupação policial das favelas e a construção de “painéis acústicos” ao longo das
Embora seja verdade que todas as cidades-sede têm sido conhecidas por principais vias expressas. Em muitos casos, problemas endêmicos que não podem
adotar certo nível de potemkinismo9, acredito que aquelas na margem, especialmen- ser facilmente resolvidos são mascarados, ou desviados da atenção com a coloca-
te em países emergentes ou em desenvolvimento, recorrem mais frequentemen- ção da ênfase em outro local. Em Pequim, relatos negativos na mídia internacional
te a essas práticas. Não porque sejam culturalmente inclinadas à falsificação (ou à relativos à poluição do ar, ao congestionamento de tráfego e a produtos alimentares
prática da “falsa consciência”), mas porque enfrentam obstáculos importantes em adulteradosforam tratadosnos preparativos olímpicos por meio de atitudes drásti-
seus esforços para projetar uma imagem positiva da cidade. Quando as economias cas voltadas para a higiene e o alívio da poluição, mas, também, pela redução da
emergentes participam da corrida para sediar megaeventos, elas enfrentam impor- mobilidade urbana, pelo fechamento de fábricas e, ocasionalmente, pela falsifica-
tantes desafios relacionados às suas próprias realidades sócio-econômicas e à sua ção de índices oficiais de poluição13.
condição pós-colonial10. Não são apenas confrontadas com um importante viés de
primeiro mundo como cidades anfitriãs potenciais, mas também suas apostas para

uso do termo “face” (mian or mianzi) que é usualmente substituído por palavras como “honra” e “dignidade”. Brownell,
Susan (1995) Training the Body for China: Sports in the Moral Order of the People’s Republic. Chicago: University of Chicago
Press, (pp. 296–302).
8. C. Michael Hall. Urban entrepreneurship, corporate interests and sports mega-events  : the thin policies of
competitiveness within the hard outcomes of neoliberalism. In John Horne and Wolfram Manzenreiter.Sports Mega-
Events: Social Scientific Analyses of a Global Phenomenon,London : Willey, 2006, pp.59-70. 11. David R. Black & Janis van der Westhuizen. 2004. The allure of global games for ‘semi-peripheral’ polities and spaces:
9. Por exemplo, Montreal pintou a grama verde para a Expo Mundial 1967 e destruiu polêmicos projetos de arte ao ar a research agenda. Third World Quarterly, Vol. 25, No. 7, pp. 1195–1214.
livre, na véspera da Olimpíada de 1968. Ver Bruce Kidd. “The Culture Wars of the Montreal Olympics”.International Review 12. Bonneau, Cécile. “L’envers du décor” in Bonneau, Cécile, ed. Pékin 2008 : La face cachée des JO.Science & Vie (Hors-
for the Sociology of Sport. Vol. 27 no. 2: 1992, p.151-162. série), June-Jul. 2008: 34-63.
10. Nancy K. Rivenburgh.The Olympic Games, media, and the challenges of global image making. Centre d’Etudis Olimpics 13. Broudehoux, Anne-Marie. « The Social and Spatial Impacts of Olympic Image Construction: The case of Beijing 2008
(UAB), 2004. » in Stephen Wagg et Helen Lenskyj, A Handbook of Olympic Studies.London : Palgrave Macmillan, 2011.

432 A construção da imagem urbana nos grandes eventos Anne-Marie Broudehoux (Canadá) 433
Megaeventos e a mídia espetáculo onde parte da pirotecnia foi criada digitalmente (particularmente os vinte e nove
passos gigantes que pareciam caminhar sobre toda a cidade).Mas, neste caso, a con-
Um aspecto importante da construção da imagem urbana que é muitas vezes denação generalizada do que foi descrito pela mídia estrangeira como uma tentativa
negligenciado na literatura sobre megaeventos tem a ver com seu alto nível de mi- de enganar os telespectadores globais revelou os limites de tais práticas de tipo po-
diatização.Na era da televisão global, a maior parte dos lucros reais dos megaeven- temkim, em especial nos casos de hospedagem de megaeventos esportivos, onde a
tos decorremdos direitos de transmissão globais. As Olimpíadas têm sido descritas aparência de “jogo limpo” continua a ser, em alguma medida, primordial.
como o “espetáculo máximo da mídia global”14 e disputam o título de “evento mais Podem-se ver algumas vantagens em utilizar a tecnologia para a construção
assistido na Terra” com a Copa do Mundo. As cidades-sede que querem fazer um im- da imagem urbana e em transformar digitalmente a realidade, enquanto se minimi-
pacto duradouro terão que se esforçar ao máximo paraapresentar uma imagem que zam as intervenções urbanas reais. Teríamos todos nos beneficiados ambientalmen-
é tanto “telegênica”quanto visualmente consumível.Neste sentido, os megaeventos te se todos os fogos de artifício de Pequim 2008 fossem gerados por computador.
afetam a paisagem urbana, não apenas na medida em que induzem a realização No entanto, a midiatização crescente de megaeventos não reduziu a quantidade
de grandes projetos urbanos e a construção de infraestruturas desportivas, mas, de mega-projetos que estão sendo construídos concretamente. Pelo contrário,
também, porque promovem a estetização da paisagem urbana. Isto significa que exacerbou em alguma medida a construção de projetos orientados pela imagem e
a visibilidade e a “imaginabilidade”tornam-se critérios definidores para orientar as destinados a melhorar o aspecto “telegênico” da cidade, assim como impulsionou
intervenções urbanas e que as ações preocupadas com a imagem são priorizadas, ainda mais a estetização e a espetacularização da paisagem urbana, a ser captura-
frequentemente em detrimento de necessidades locais mais fundamentais. da e re-imaginada pela mídia global. Na verdade, a tecnologia de transmissão está
O que complica ainda mais o quadro é que outros atores, muitas vezes ex- cada vez mais desempenhando um papel na concepção dos projetos relacionados
ternos à comunidade urbana, têm vindo desempenhar um papel importante no aos eventos, tais como equipamentos esportivos, especialmente na produção de ar-
processo de construção de imagem. Federações internacionais, como a FIFA, bem quitetura em escala global, feita para ser visto de um helicóptero, e experimentada
como patrocinadores do evento e titulares de direitos de transmissão exercem uma em grandes telas de televisão. Os sítios de locação não são apenas concebidos em
crescente influência na transformação da cidade anfitriã e na gestão cuidadosa de colaboração com empresas de transmissão para maximizar a “imaginabilidade” e in-
imagens na televisão, a fim de servir os seus próprios interesses específicos. cluir o posicionamento da câmera, mas sua localização é cada vez mais ditada pelo
Não se deve subestimar a importância da midiatização na percepção e na imperativo televisual16. Podemos refletir sobre a polêmica que cercou a construção
transformação do ambiente construído urbano. Nos últimos anos, os avanços na tec- do estádio da Cidade do Cabo, na Copa do Mundo 2010 da África do Sul, onde os
nologia da informação permitiram o desenvolvimento de práticas digitalizadas de delegados da FIFA se opuseram a proposta do anfitrião, localizada em um bairro
tipo potemkim, com a criação e difusão de uma cidade fictícia, projetada para os es- popular, afirmando que a habitação social de baixo custo ao redor do local não era
pectadores de sofá ao redor do mundo. Nós todos vimos a CGI fazer representações fotogênica17. Um delegado da FIFA teria dito a um jornalista da Mail & Guardian:
melhoradas de Pequim, cuja vista atmosférica arrebatadora apresenta uma colagem “Um bilhão de telespectadores não querem ver barracas e pobreza nesta escala”18.
uniforme, mas delirante, dos espaços mais emblemáticos da cidade, comprimidos A FIFA exigiu, assim, que os organizadores do evento construíssem um novo estádio
em uma geografia totalmente improvável15.Hoje, sofisticadas tecnologiasimagéti- em Green Point, uma área de mais alto nível, cujo cenário espetacular com a Table
cas permitem a projeção de visões elaboradas porphotoshopdo ambiente urbano, Mountain e o mar aberto ao fundo parecia feito para a televisão.
melhorando algumas características, apagando outras,ao mesmo tempo reinventan-
do criativamente a realidade para maximizar o potencial da mídia-espetáculo. Por
exemplo, novos avanços tecnológicos permitiram o desenvolvimento de multidões
de torcedores geradas em computador para ajudar a evitar o constrangimento dos
jogos em estádios vazios. Pode-se também pensar no uso de fogos de artifício ge-
rados por computador nas cerimônias de abertura dos Jogos Olímpicos em Pequim,
16. Anne-Marie Broudehoux. “Beijing’s Olympic Image: The Architectural construction of the Integrated Spectacle.
Journal of Architectural Education.Vol 62 no.2. 2010.
14. David Whitson and Donald Macintosh. The Global Circus: International Sport, Tourism and the Marketing of Cities. 17. Peter Alegi. ‘A Nation To Be Reckoned With’: The Politics of World Cup Stadium Construction in Cape Town and
Journal of Sport and Social Issues.20 (3) Aug. 1996, pp.278-295. Durban, South Africa” African Studies, 67, 3, December 2008, pp.397-422.
15. Anonymous.Streetsweeper.Urban Design International. Vol. 13: 3: 2008, p. 208. 18. Mail and Guardian Online, 12 January 2007. Ver

434 A construção da imagem urbana nos grandes eventos Anne-Marie Broudehoux (Canadá) 435
Construindo o cenário da mídia urbana Da mesma forma, o material sobre a candidatura do Rio, muitas vezes retrata o Ma-
racanã a partir dos mesmos ângulos, para evitar mostrar a favela da Mangueira no
Alguns eventos são concebidos como instrumentos de promoção urbana, e plano de fundo.
tornam-se pretextos para mostrar os atributos da cidade. Assim como os patroci-
nadores exibem orgulhosamente suas próprias marcas-símbolosdurante o evento,
Controle da Imagem
as cidades anfitriãs estão aprendendo a utilizar eventos esportivos para divulgar as
suas características icônicas e lucrar com a difusão global dessas imagens19. Pode-
Estas estratégias de construção de imagem não são inocentes, mas repre-
mos pensar na modalidade olímpica de vôlei de praia como uma propaganda da
sentam uma ameaça considerável para a justiça urbana. Os megaeventos promo-
beleza cênica das praias Rio de Janeiro e do seu estilo de vida hedonista.
vem a projeção de uma imagem muito restrita da cidade, da qual o pobre, o feio, o
A maratona, vista por alguns como o evento “telegênico” definitivo, exempli-
informal são excluídos.O uso de tecnologias sofisticadas de imagem promove uma
fica melhor a fusão do evento esportivo com o marketing da cidade. As rotas para
representação estetizada da paisagem urbana, que é ao mesmo tempo sem proble-
maratonas dos Jogos Olímpicos são cuidadosamente projetadas para servir como
mas, despolitizada e simplificada. Por exemplo, os panoramas brilhantes da Pequim
passeios cênicos que passam pelas principais atrações e pelos pontos turísticos
Olímpica não só deram aos telespectadores uma falsa sensação de continuidade es-
mais famosos da cidade, assim como percorrem grandes distâncias para evitar áreas
pacial com relação aos locais que estavam geograficamente desconectados, mas a
menos fotogênicas20. Por exemplo, a rota da maratona de Pequim levou os corre-
imagem de uma cidade moderna e eficiente que eles transmitiam também ocultava
dores ao longo dos principais pontos históricos da cidade. Os bairros abandonados
o fato de que inúmeros bairros foram derrubados e mais de um milhão de pessoas
ao longo do percurso foram escondidos por outdoors que mostravam paisagens de
foram deslocadas para dar lugar a esses projetos olímpicos espetaculares21.
ruas históricas idealizadas. Em 2010, surgiu uma polêmica em Londres sobre as mu-
O perigo é que tais reconfigurações vívidas, ainda que utópicas, possam ser to-
danças para a rota planejada da maratona olímpica. Ao invés de começar na Tower
madas como projeções da realidade, ou como representações do mundo como ele de-
Bridge, passando pelos bairros de classe operária em torno do Parque Olímpico para
veria ser. Elas podem ser extremamente atraentes para os membros da elite local, pois
terminar no Estádio Olímpico, a rota revista seria confinada ao centro de Londres. A
confirmam crenças consolidadas sobre o potencial de uma cidade livre de massas em-
corrida começaria e terminaria no Mall e seguiria um circuito passando pelos marcos
pobrecidas, e podem ser usadas como munição para promover políticas urbanas mais
mais belos da cidade, incluindo o Palácio de Buckingham, a Catedral de St Paul, o Big
exclusivas. Por tanto validar quanto consolidar os ideais urbanos restritos da elite, estas
Ben e as Casas do Parlamento, em quatro voltas consecutivas. Os críticos acusaram
representações consensuais podem levar a uma reação contra os movimentos sociais,
o comitê organizador olímpico de querer contornar áreas que podiam sugerir sinais
marginalizar ainda mais suas ações e deslegitimar as suas reivindicações.
de crise econômica, incluindo extensos parques habitacionais não vendidos.
Certamente, as cidades-sede não podem controlar totalmente as imagens ur-
Tanto a nova quanto a antiga tecnologia da imagem são utilizadas para limi-
banas. Outras imagens concorrentes da cidade irão circular juntamente com estas
tar o que deve ser mostrado para o mundo, escondendo o que é julgado irrelevan-
imagens oficiais, antes, durante e após o evento. Se os organizadores do evento
te ou prejudicial para o espetáculo olímpico, e ocultando os aspectos que possam
pretendem projetar imagens positivas de modernidade e boa gestão, os jornalistas
causar danos à reputação. Realidades urbanas mais mundanas, menos fotogênicas,
na realidade são muitas vezes mais inclinados a confirmar preconceitos ou a expor
que possam afetar negativamente as percepções globais sobre a cidade e suge-
as falhas e a destacar o “déficit de competência” do anfitrião22. Nenhuma cidade é
rir pobreza, o subdesenvolvimento ou atraso, são mostradas muito rapidamente,
protegida contra os tipos de relatos negativos que expõem ineficiências e episódios
cortadas fora ou apagadas digitalmente. Podemos refletir sobre os vídeos promo-
embaraçosos de má gestão. O risco de fazer da história olímpica um símbolo de mau
cionais apresentados pelo comitê de candidatura do Brasil às Olimpíadas, onde os
planejamento e herdar, como o seu legado olímpico mais duradouro, a reputação
locais para equipamentos na Zona Norte são mostrados como objetos isolados, en-
de um desastre mal evitado permanece elevado, como tanto Montreal como Atenas
quanto os bairros circundantes onde mora a classe trabalhadora são deixados de
podem testemunhar.
fora dacena. Nas vistas deslumbrantes do Rio, os potentes raios solares iluminam
porções da paisagem de forma a apagar, convenientemente, a presença de favelas. 21. COHRE (Centre on Housing Rights and Eviction). One World, Whose Dream? Housing Rights Violations and The Beijing
Olympic Games. Geneva: COHRE Special Report, 2008.
19. Anonymous.Streetsweeper.Urban Design International. Vol. 13: 3: 2008, p. 208. 22. Paul Dimeo & Joyce Kay. “Major sports events, image projection and the problems of ‘semi-periphery’: a case study
20. Anonymous.Streetsweeper.Urban Design International. Vol. 13: 3: 2008, p. 208. of the 1996 South Asia Cricket World Cup” Third World Quarterly, Vol. 25, No. 7, 2004,pp. 1263–1276.

436 A construção da imagem urbana nos grandes eventos Anne-Marie Broudehoux (Canadá) 437
Entretanto, eventos realizados nos países em desenvolvimento são frequen- padrões de dominação e estratificação e reforçar velhas hierarquias e assimetrias de
temente confrontados com o viés preconceituoso de uma mídia predominante- poder, tanto a nível local quanto global.
mente ocidental, que busca confirmar estereótipos consolidados sobre inclinações Estas imagens também podem ter impactos reais sobre a paisagem urbana,
locais para a violência, desordem e práticas sociais retrógradas23. Os Jogos da Com- na medida em que contribuem para a cristalização de uma visão urbana idealizada e
monwealth de 2011 em Nova Deli fornecem um bom exemplo. Demorou quase dois estetizada que projeta uma representação parcial, exclusiva e redutora da socieda-
dias de evento para a imprensa mundial parar de falar sobre as baratas, pontes des- de. Estas imagens privilegiam espaços urbanos particulares cuja aparência e níveis
truídas e banheiros entupidos e começar a cobrir as competições. de modernidade ressoam o desejo, as exigências e as expectativas das elites locais e
É a presença desse olhar externo, crítico, avaliador, que leva as autoridades dos atores externos. Tal seletividade sócio-espacial na produção de imagens divide
locais a tomar medidas preventivas a fim de limitar as percepções negativas,muitas a cidade entre os espaços que interessam (e seus habitantes) e aqueles considerados
vezes forçando os habitantes da sua cidade a se adaptar às normas globais da mo- irrelevantes. A estetização da paisagem urbana também carrega um poder perigo-
dernidade. Os governos anfitriões se esforçam ao máximo para manipular a realida- so de despolitização que pode ajudar a desacreditar os movimentos de resistência,
de social,usando programas civilizatórios invasivos para alterar o comportamento e exacerbar os preconceitos de classe e reforçar a segregação.
transformar seus cidadãos em indivíduos modernos disciplinados e bem-educados, No entanto, minha pesquisa anterior demonstrou que imagens urba-
à custa de humilhações, coerção e perda de direitos civis24. Megaeventos também nas podem ser apropriadas, retrabalhadas ou mesmo sabotadas para usurpar
ajudam a justificar, aos olhos do poder local, a criminalização da informalidade, o estereótipos,subverter deturpações e contestar exclusões por meio de diversas
deslocamento dos pobres e a ocultação do feio, permitindo que certos membros formas de resistência, seja ela ativa, passiva ou simbólica. Incidentalmente, nas
da sociedade sejam representados como estruturalmente irrelevantes e indignos poucas semanas que eu passei fazendo pesquisa de campo no Rio, em agosto de
de direitos e oportunidades iguais, especialmente o direito de serem vistos25. Não 2010, ouvi algumas vezes a expressão para inglês ver (também para gringos ver)
somente eles causam dificuldades sociais, econômicas e psicológicas, mas, também, usada pelos habitantes locais para qualificar os projetos de embelezamento liga-
ajudam a redefinir os termos de pertencimento à sociedade. dos aos próximos megaeventos. De novos elevadores espetaculares na favela, até as
Unidades Policiais Pacificadoras (UPPs), a construção de painéis acústicos ao longo
das vias expressas e as iniciativas de revitalização do porto, a expressão foi utiliza-
Conclusão: os impactos reais da construção da da para expressar dúvidas sobre a perenidade dos projetos, suscetíveis de serem
imagem urbana abandonados após os Jogos Olímpicos. Eu vejo essas denúncias não apenas como
uma expressão de cinismo referente ao que é amplamente percebido como um mau
Concluindo, acredito que devemos prestar mais atenção tanto no papel dos uso de fundos públicos pelas elites econômicas e políticas corruptas. Também foi
megaeventos na construção da imagem urbana, quanto nos seus impactos sobre utilizada simbolicamente por atores marginalizados para recuperar uma sensação
a paisagem social e material da cidade, especialmente no que diz respeito aos de poder e controle, orgulhosamente afirmando que eles não foram enganados por
países da periferia. As imagens urbanas que são produzidas para esses eventos, não tais, exibições de tipo potemkin recuperando, no processo, um pouco da dignidade
apenas quanto ao seu aspecto concreto, na forma de alterações físicas e manipu- que lhes é tão frequentemente negada.
lações da paisagem material, mas também como imagens discursivas, televisivas e
virtuais,procuram projetar uma representação perfeita e consensual da cidade que
é ao mesmo tempo eficiente, moderna, disciplinada e visualmente atraente. Essas
táticas de construção da imagem urbana não são inofensivas, mas podem perpetuar

23. Paul Dimeo & Joyce Kay. “Major sports events, image projection and the problems of ‘semi-periphery’: a case study
of the 1996 South Asia Cricket World Cup” Third World Quarterly, Vol. 25, No. 7, 2004,pp. 1263–1276.
24. Anne-Marie Broudehoux. “ Civilizing Beijing : Social beautification, civility, and citizenship at the 2008 Olympics.”
in The Olympics, Mega-events and Civil Societies: Globalization, Environment, Resistance, ed. Graeme Hayes and John
Karamichas. London: Palgrave Macmillan, 2011.
25. Don Mitchell. “The End of Public Space? People’s Park, Definitions of the Public, and Democracy” Annals of the
Association of American Geographers 85, 1 (1995): 108-133.

438 A construção da imagem urbana nos grandes eventos Anne-Marie Broudehoux (Canadá) 439
La universidad y sus acciones
en el municipio Cerro
Ada Esther Portero Ricol (Cuba)
Ricardo Machado Jardo
Mirelle Cristóbal Fariñas
Abniel Ramirez González
Roberto Adám Bell Sellén

Resumo | O trabalho apresentado constitui uma aproximação da universidade em relação


à solução do quadro de problemas do município de Cerro. Este resultado é parte de uma
investigação mais ampla da Universidade de Havana em que o ISPJAE está participando
desde o ano de 2011. O objetivo principal deste documento é mostrar os resultados de três
trabalhos finais de graduação – TFG, realizados por estudantes da Faculdade de Arquitetura
a partir de solicitação expressa do Poder Popular e da Direção de Cultura do município. As
propostas de reabilitação para três edifícios mostram-se de forma sintética a partir de con-
ceitos diferentes, já que se destinam a diferentes usos: um Centro Comunitário Alternativo,
uma Casa da Cultura e a Casa Museu do Território. Estes temas foram solicitados pelo gover-
no municipal a partir das necessidades que encontram para que a universidade com suas
potencialidades colabore para a solução das mesmas. Por sua vez, contribui para a melhoria
das condições de vida da população e para o fortalecimento da relação entre a universidade
e a comunidade.
Abstract |The presented work is an approximation of the university in relation to the so-
lution of the framework of the Cerro municipality problems. This result is part of a wider
investigation of the Havana University where the ISPJAE is participation since 2011. The main
porpuse of this document is to show the results of three final graduation projects – TFG, ac-
complished by the School of Architecture students according to request of People’s Power
and the City Culture Committee. The rehabilitation proposals for three buildings show up
synthetically from different concepts, as used for different uses: an Alternative Community
Center, a House of Culture and the House Territorial Museum. These themes were ordered
by the Municipal Government that undersands that the university is able to solve them. In
turn, contributes to improving the living conditions of the population and to strengthen the
relationship between the university and the community.
Resumen | El trabajo que se presenta constituye un acercamiento de la universidad a la solu-
ción del banco de problemas del Municipio Cerro. Este resultado es parte de una investigación

Ada Esther Portero Ricol | Ricardo Machado Jardo | Mirelle Cristóbal Fariñas | Abniel
Ramirez González | Roberto Adám Bell Sellén (Cuba) 441
mayor de la Universidad de La Habana en la cual está participando desde el año 2011 el ISPJAE. territorio posee magnitudes muy altas. Como consecuencia, el deterioro del fondo
El objetivo principal de este documento es mostrar los resultados de tres trabajos de Diplo- habitable es muy avanzado y necesita de atención de forma acuciante.
ma que se realizaron por estudiantes de la Facultad de Arquitectura a partir de la solicitud Desde el año 1998 la Facultad de Arquitectura del ISPJAE desarrolló en este
expresa del Poder Popular y la Dirección de Cultura del Municipio. municipio un Taller Internacional de Estudios Urbanos donde se capacitó tanto a
estudiantes, población así como profesionales del ramo que trabajaban en el terri-
Se muestran de forma muy sintética las propuestas de rehabilitación para tres inmuebles a
torio. Este taller se realizó en coordinación con la Universidad de París La Villete y se
partir de conceptos diferentes ya que tienen diversos usos: un Centro Alternativo Comuni-
extendió hasta el año 2008. Participaron además estudiantes y profesores de varias
tario, una Casa de Cultura y la Casa Museo del territorio.
universidades de diversos países como Italia, Brasil, México Alemania, España entre
Estos temas han sido solicitados por el Gobierno Municipal a partir de necesidades que tie- otros, destacándose la participación de la USPI y UFF. Paralelamente se trabajó en
nen para que la universidad con sus potencialidades colabore con la solución de las mismas. todo el territorio y se desarrollaron múltiples talleres de proyecto, tesis de diploma
A su vez, se contribuye con el mejoramiento de las condiciones de vida de la población y con y maestrías.
el fortalecimiento de la relación entre la universidad y la comunidad. La experiencia que se muestra en este documento consiste [1]en: la inserción
de diferentes facultades universitarias y centros de estudios a través de sus profe-
sores e investigadores en el estudio y asesoría para la búsqueda de soluciones a los
Introducción problemas principales del municipio Cerro, apoyar en el proceso de formación y
capacitación de cuadros y líderes locales, así como en la puesta en práctica de los
El Cerro es uno de los Municipios de La Habana que posee un gran valor tanto
resultados y adelantos científico-técnicos de cada área, para encauzar esfuerzos en
desde el punto de vista urbano como arquitectónico, pero sobre todo por su patri-
la transformación de una realidad muy concreta a partir de una práctica social desde
monio cultural. Posee una zona histórica declarada desde 2006 en la lista de los 100
una dimensión ética y humanista. El proyecto trata sobre la “Gestión Universitaria
sitios de patrimonio en peligro que clasifica el Word Monument Wacht.
para la Ciencia, la Innovación y el Desarrollo en el municipio Cerro”.
El municipio del Cerro abarca un área de 10,18 Kilómetros cuadrados que re-
El proyecto tiene la esencia de favorecer el desarrollo local y comunitario para
presenta el 1,4 % de la superficie total de la ciudad. Se ubica próximo al centro norte
el municipio Cerro. Surge a partir del diagnóstico realizado en la localidad por parte
de la ciudad. Limita por el norte con los municipios de Centro Habana y Plaza de la
de la Vicerrectoría de Investigaciones de la Universidad de La Habana, a través de la
Revolución; por el sur, con Boyeros y Arroyo Naranjo; en el este, con La Habana Vieja
universidad territorial del Cerro. Esta acción ha demostrado la imperiosa necesidad
y 10 de octubre, por el oeste, con Playa y Marianao, por lo que colinda con 8 de los
de crear un sistema de tareas que permitan resolver o al menos detener el avance
14 restantes municipios de la ciudad.
de las dificultades existentes.
Con una población de 132 667, es el sexto de la capital en tamaño. Representa
Por la complejidad del problema se ha organizado por parte de la UH la crea-
aproximadamente el 6% de la población de la capital. Tiene siete consejos popula-
ción de un equipo multidisciplinario que trabaje de forma conjunta en la solución
res y la densidad de población es de 13 032 por km²
de estos problemas.
Su surgimiento data desde el siglo XVIII y XIX con el desarrollo de industrias
En este documento se mostrarán de forma específica los resultados de tres
como los molinos de tabaco y otras movidas por la fuerza hidráulica, las primeras
trabajos de Diploma que se realizaron por estudiantes de la Facultad de Arquitectu-
fábricas de fósforo, de jabonería y perfumería y las fábricas de hielo, hicieron que el
ra durante el curso 2011-12.
territorio se convirtiera en una de las principales zonas industriales del país.
Estos trabajos se dirigieron fundamentalmente a realizar propuestas de re-
Actualmente el peso fundamental de la economía del Cerro es la producción
habilitación a tres inmuebles ubicados en la zona declarada de valor histórico del
industrial con casi el 70 % de la economía global del municipio. Se estructura en
Municipio. Dos de ellos en la Calzada del Cerro: El Centro Alternativo Comunitario y
65 empresas, 27 unidades presupuestadas, 6 organizaciones estatales, 7 empresas
la Casa Museo y la Casa de Cultura en la Calle Santo Tomás.
mixtas, una sociedad mercantil, 3 uniones y 4 unidades presupuestadas en cálculo
económico para un total de 1 104 establecimientos.
Parte de la población se ha ido ubicando en espacios que anteriormente ocu- Desarrollo
paban algunas instalaciones industriales, la inmigración de población hacia este

Ada Esther Portero Ricol | Ricardo Machado Jardo | Mirelle Cristóbal Fariñas | Abniel
442 La universidad y susacciones en el municipio cerro Ramirez González | Roberto Adám Bell Sellén (Cuba) 443
La investigación realizada por los tres estudiantes en los diferentes inmue- cuenta para la creación de un centro alternativo comunitario, ya que esta idea sin-
bles y sus entornos arrojó el alto nivel de deterioro que presenta no solo cada con- tetiza e integra dos conceptos más amplios, como son el “centro” como parte del
junto edilicio ubicado en la Calzada del Cerro y sus calles más cercanas, sino también
todos los edificios ubicados en ella.
En particular el objetivo que persiguió el resultado que se presenta en este
documento fue brindar propuestas de rehabilitación para los inmuebles indicados,
para lo cual se siguió el procedimiento de analizar para cada función diferente los
referentes teóricos tanto nacionales como internacionales. Posteriormente se rea-
lizó el diagnóstico de cada inmueble así como la caracterización de sus potencia-
lidades para asumir las diferentes funciones que se solicitaron por la dirección del
Cultura y el Poder Popular del Municipio. Finalmente se realizaron las propuestas de
proyecto a nivel de ideas preliminares, con dos o más variantes para entregar toda
la documentación al Municipio y que con sus profesionales continuaran la labor pro-
yectual y de gestión de inversiones.
La búsqueda bibliográfica, el trabajo de campo (mediante observación visual y
gráfica), la entrevista y consulta con especialistas, fueron las herramientas fundamen-
tales para el desarrollo del trabajo. También se realizaron análisis de casos para llegar
a la síntesis y finalmente a las propuestas de las ideas conceptuales para cada caso.
Los títulos de los tres trabajos de diploma antes mencionados son:
1. Centro Alternativo Comunitario para el Cerro
2. Propuesta para la recuperación de un inmueble ubicado en una zona de
valor en el Cerro, Objeto de estudio: Santo Tomás No 158.
3. Rehabilitación de la Casa Museo Municipal del Cerro y su entorno urbano.

Centro Alternativo Comunitario para el Cerro

La reutilización de edificaciones, más que una actividad es una herramienta


importante para la arquitectura, la ciudad y la sociedad que la vive. Es importante
demostrar sus beneficios, efectos e impactos fundamentalmente cuando está diri-
IMÁGENS 1,2 Y 3 Ejemplo representativo de la arquitectura industrial de la Zona; El Cerro en la ciudad.
gida a un uso socio cultural.
Fuente: Mirelle Cristobal e Cortes. Fuente: Roberto Adám Bell Sellén
El resultado que se muestra a continuación propone la creación de un centro
multidisciplinario de orientación y atención a la población localizado en el inmueble espacio urbano y la “comunidad”, ambos comparten la idea de ser desarrolladores
ubicado en Calzada del Cerro No 1568. Este proyecto de transformación en el nuevo de un “medio local”. Es decir, un espacio de unidad social en torno a un foco de
Centro Alternativo Comunitario será financiado por la ONG SODEPAU-PV. [3] comunicación e interacción. De esta manera se expresa la estrecha relación entre
Este inmueble tiene una ubicación privilegiada pero a su vez presenta un ambos conceptos, caracterizándolos como antecedentes inmediatos de la noción
avanzado grado de deterioro. Actualmente no tiene una función que favorezca su actual de centro comunitario. [4]
conservación, siendo un ejemplo representativo de la arquitectura industrial de la En general según el punto de vista, los centros pueden clasificarse de diversas
Zona. (Imágenes 1, 2 y 3) maneras, pero siempre tienen en común que son orientados a fortalecer la educa-
En el marco teórico del trabajo se expusieron consideraciones a tener en ción popular y promover la concientización de la sociedad a la que están dirigidos.

Ada Esther Portero Ricol | Ricardo Machado Jardo | Mirelle Cristóbal Fariñas | Abniel
444 La universidad y susacciones en el municipio cerro Ramirez González | Roberto Adám Bell Sellén (Cuba) 445
La diferencia de cada uno es precisamente su modelo de proyección comunitaria. [5] aún en avanzado deterioro se muestran como: los acueductos, las industrias de
En el capítulo 1 de este trabajo se ofrecen conceptos sobre la rehabilitación y agua, las casas quintas.
sus funciones, las tendencias actuales existentes, así como otros conceptos entre los 11. Expone elementos únicos en el urbanismo y la arquitectura cubanos lo
que se listan: el re-uso adaptativo como reutilización, como re-ocupación, el reuso cual constituye una fortaleza para el desarrollo del turismo de ciudad.
creativo, y la adaptación entre otros criterios de intervención manejados a escala 12. El Municipio tiene un buen repertorio de edificaciones y espacios que
internacional y nacional. Se valoró también la importancia que reviste la transforma- pueden ser rescatados y destinados a nuevos usos públicos fortaleciendo el desa-
ción de los locales a partir de evidenciar las transformaciones de cada sociedad y la rrollo local.
necesidad de mantener la continuidad en la cultura y en la propia ciudad. 13. La Calzada del Cerro es
En este caso, para el proyecto que se expone en este documento, se utiliza el una de las vías principales con que
reuso creativo como parte del concepto de recuperación como intervención actuali- cuenta la ciudad para relacionar
zadora, [6], donde no se esconde ni mimetiza nada, se evidencia claramente lo que sus territorios.
es antiguo y lo que es contemporáneo.
También en el capitulo dos
En el capitulo dos [7] del trabajo se realizó una breve reseña del Municipio
se relacionaron aspectos del entor-
Cerro, destacando aspectos como su ubicación, trama urbana, caracterización, mor-
no inmediato al inmueble en estu-
fología urbana-arquitectónica, infraestructura y servicios, principales problemas y
dio ubicado en la Calzada del Cerro.
potencialidades. (Imagen 3a del Cerro, Plano de ubicación en la ciudad)
Entre estos aspectos se pueden
Por ser comunes estos aspectos en los tres trabajos se mencionarán en esta
mencionar: uso de suelo, redes téc- Imagem 4 Conceptos de las propuestas No 1 y No 2
ocasión, sobre todo estos últimos a los que se ha hecho referencia.
nicas, clima. (Imagen 3 b de la pág
Principales problemas detectados en el territorio del Cerro.
39 de la tesis). Se hizo el diagnósti-
1. Alto deterioro del patrimonio urbano y arquitectónico. Abandono y degra-
co del inmueble desde el punto de
dación de importantes elementos incluyendo la Calzada principal.
vista técnico y arquitectónico.
2. Mal estado de las redes técnicas fundamentalmente alcantarillado, drenaje El lote original actualmente
y eléctrica. está dividido en: edificio principal,
3. Mal estado de las vías. nave de almacén, patio-parqueo.
4. Alta contaminación ambiental ( ruido, humo, desechos sólidos) Esta es un área más grande que la
5. Escasez de servicios y espacios públicos para el ocio, esparcimiento, dis- que se analiza puesto que para la Imagem 5 Biblioteca. Fuente: Roberto Adám Bell Sellén
tracción de la población. Los espacios que existen presentan baja calidad en cuanto realización del Centro Alternativo
a su apariencia y función. Comunitario, por decisión de las
6. Falta de espacios verdes. autoridades, a las partes interesa-
7. Principales Potencialidades detectadas en el territorio del Cerro. das solo se les destinó la nave prin-
8. Alto valor cultural e histórico. cipal de este conjunto. (Imagen 4 y 5)
El edificio constituye un
9. El Cerro atesora importantes valores monumentales de la imagen urbana,
bloque de forma alargada de 18.35 m
tanto de su época de esplendor durante el S XlX, como de etapas posteriores.
X 40.7 m y un área de 662 m2. La
10. Preexistencia de la arquitectura tradicional de cada época, concebidas
fachada principal fue concebida
para diferentes funciones, desde la doméstica a la industrial. Importantes ejemplos Imagem 6 Vista Aérea. Fuente: Roberto Adám Bell Sellén
en estilo ecléctico mientras que
las restantes fachadas carecen de decoración. El inmueble a pesar de su avanzado
grado de deterioro conserva los valores estilísticos originales aunque también se
aprecian a simple vista varias modificaciones y anexiones arbitrarias que se le hicie-
ron durante su explotación.
Ada Esther Portero Ricol | Ricardo Machado Jardo | Mirelle Cristóbal Fariñas | Abniel
446 La universidad y susacciones en el municipio cerro Ramirez González | Roberto Adám Bell Sellén (Cuba) 447
Se mencionan los elementos de valor [8] con posibilidades de ser recupera- Comunidad, que se propone transformar en un centro cultural comunitario.
dos en la propuesta que se hace a nivel de ideas conceptuales. (Imagen 6) El tipo de intervención que se ha propuesto es realizar una re-funcionaliza-
Finalmente en el capitulo tres se aportan dos variantes de ideas conceptuales ción del inmueble: de oficinas a centro cultural comunitario.
con el estudio de soluciones ambientales interiores y exteriores. El Cerro cuenta con un amplio movimiento cultural desarrollado por las ins-
La propuesta No 1: “El edificio Intrínseco”. Esta propuesta se desarrolla a partir tituciones estatales y los Talleres de Transformación Integral del Barrio, donde los
de un discurso contemporáneo claramente identificado, la intervención se centra habitantes de las comunidades participan activamente. No obstante, el creciente
en las áreas interiores del mismo planteando en ellas todos los espacios y funciones deterioro del fondo construido no permite una mayor difusión de estos programas
que se conciben para el desarrollo del Centro Alternativo Comunitario. [9] culturales debido a la falta de espacios para ello. [12]
La propuesta No 2. El edificio extrovertido”. Consiste en que el edificio se abre Por tanto se ha justificado debidamente a partir del problema general de la inves-
al exterior acogiendo nuevos espacios y por tanto nuevas funciones. El grado de in- tigación la carencia de los mismos y la acuciante inclusión dentro del territorio municipal.
tervención y modificación de la concepción original del inmueble es mucho mayor, Siguiendo la misma organización del trabajo expuesto anteriormente en el
se cambia totalmente la estructura de la nave logrando una nueva imagen del edifi- capítulo 1 de este segundo trabajo se presentaron los principales conceptos y defi-
cio con una expresión totalmente contemporánea. Esta propuesta es más transfor- niciones que se usaron en la investigación.
madora de lo existente, ya que Se hizo un análisis del
el cliente solicitó una variante estado del arte a escala inter-
que evidenciara las mayores nacional y nacional revisando
modificaciones en el conjun- ejemplos que pudieran servir de
to que un Centro de este tipo guía para realizar el tipo de in-
pudiera ameritar teniendo en tervención que exigía el inmue-
cuenta sus necesidades. ble ubicado en Santo Tomás 158.
Se aportan las premisas [13][14]
de diseño [10] para las dos va- Los ejemplos analizados
riantes de proyecto a nivel de pertenecen a diversas regio-
ideas conceptuales, desde el nes del mundo: América del
Nodo urbano donde se inserta la propuesta de intervención.
Fuente: Mirelle Cristobal
punto de vista estético-formal, Norte (Estados Unidos), Améri-
técnico constructivo, funcio- ca del Sur (Argentina) y Europa
nal, ambiental, lo cual incide en las soluciones que se brindan. (España, Alemania y Bélgica).
Se define el programa arquitectónico, [11] lo cual es uno de los aportes del No obstante, los criterios de in-
trabajo, dada la complejidad del análisis realizado para la propuesta. tervención empleados están
A continuación se brindan algunas imágenes de las dos variantes. enfocados en la conservación y
Fachada principal. Fuente: Mirelle Cristobal e Propuesta de rehabilitación de los valores cul-
interiores. Variante 1. Fuente: Mirelle Cristobal turales de dichos inmuebles. [15]
“Propuesta para la recuperación de un inmueble Se brinda el listado de instituciones culturales del Municipio, las manifesta-
ubicado en una zona de valor en el Cerro, Objeto de ciones culturales más comunes organizadas por grupos etáreos, así como los gustos
estudio: Santo Tomás No 158” preferenciales de la población. [17]. Se aporta además un listado de los proyectos
socioculturales del municipio dado por la Dirección de Cultura [18].
En este caso, el objetivo fundamental perseguido fue la propuesta, a nivel Se ofrece un análisis del entorno urbano a la edificación ubicada en Santo
de ideas conceptuales, para la recuperación del inmueble sito en calle Santo Tomás Tomás 158 y el respectivo diagnóstico técnico. (Imagen 8, 9, 10, 11).El diagnóstico del
158 esquina Cepero, que actualmente alberga las funciones de la UMACT (Unidad inmueble, su evolución y desarrollo.
Municipal de Atención a Comunidades de Tránsito) y la oficina del Arquitecto de la

Ada Esther Portero Ricol | Ricardo Machado Jardo | Mirelle Cristóbal Fariñas | Abniel
448 La universidad y susacciones en el municipio cerro Ramirez González | Roberto Adám Bell Sellén (Cuba) 449
Como aspecto interesante se muestra que sobre este inmueble se han rea- lacionados con la iluminación, ventilación, seguridad, control ambiental, recorridos,
lizado varios estudios en diferentes momentos, en el 2005 y en el 2012. Por esta división de los espacios, entre otros aspectos.
razón se pueden observar la forma en que se solapan las intervenciones que se han Se realizó el análisis del repertorio tanto internacional [21]. (Museo Casa Natal
realizado causando alteraciones reversibles en algunos casos pero al mismo tiempo, del Cervantes y Museo Can Framis en España, la Fábrica de Yesería La Helvética en
otras que sí han ocasionado daños puntuales. [19]. Argentina, Museo de la Villa Oyamazaki en Japón) como nacional [22] (museo casa
A partir del año 2008, la Escuela Municipal del Partido cambia de locación, de los Árabes, Museo Numismático, Museo del Ron, todos en La Habana Vieja, y la
quedando el inmueble en desuso por espacio de 2 años. En agosto de 2010 se decide Casa Museo Municipal de Jagüey Grande en Matanzas.
trasladar la Dirección Municipal de Albergue al edificio por la situación de hacina- En el caso del análisis internacional se buscó de forma intencional la coinci-
miento en que se encontraba dicha oficina en su sede anterior, y como método de dencia de que todos los edificios convertidos en museos hubieran sido viviendas
reunificación entre los servicios de la vivienda que tienen sus oficinas alrededor de previamente.
la Plaza de Galicia. También sitúa sus oficinas allí el Arquitecto de la Comunidad, de Todas las acciones constructivas realizadas en los inmuebles para la función museo
esta forma, compartiendo el espacio [20]. han respetado las características fundamentales de las edificaciones existentes. [23]
Al igual que en el caso del trabajo de diploma anterior se realizan dos pro- De forma general el estudio del marco teórico conllevó a los criterios a tener
puestas de intervención a escala de ideas preliminares. La primera variante causa en cuenta en la propuesta de la rehabilitación de la casa Museo del Cerro. Se con-
una mínima intervención en el inmueble, es más económica que la segunda y se formó el programa de acuerdo con los requerimientos actuales para los museos y
puede realizar a corto plazo con los medios actuales con que cuenta el cliente. La sobre todo teniendo en cuenta las limitaciones del financiamiento con que cuenta
segunda variante aporta algunas soluciones donde se demuelen tabiques que han el municipio para enfrentar esta recuperación.
sido adicionados que, si bien no están en mal estado, sí afectan la lectura adecuada Se analizó la evolución del inmueble desde su construcción en el S XlX.
del espacio, dividiéndolo y que al ser demolidos, proporcionan una mejor percep- La conformación del programa arquitectónico estuvo condicionada por la
ción y comprensión espacial del local. Esta propuesta se puede efectuar igualmente existencia de colecciones y piezas de valor existentes en el museo así como otras
en un corto plazo pero dependerá del financiamiento con que cuente la Dirección donaciones realizadas y que se guardan en locales para protegerlas del medio am-
Municipal de Cultura, ya que en el momento que se solicitó el servicio, solo tienen el biente, del deterioro progresivo al que está sometido el inmueble, y del vandalismo.
presupuesto para efectuar la Variante No1. Se ofrece una tercera variante para reali- Se tuvo en cuenta además las potencialidades del inmueble para la función museo
zar a largo plazo pero por la complejidad y nivel de gastos necesarios, fue rechazada que es la que se está proponiendo que se mantenga.
por la Dirección Municipal de Cultura. Se mantienen los espacios expositivos existentes en la casa museo, y se re-
funcionalizan otros espacios dedicados a funciones no afines.
A continuación se brindan imágenes de la propuesta a largo plazo sobre la
“Rehabilitación de la Casa Museo Municipal del Cerro y intervención a escala urbana.
su entorno urbano”

Finalmente se presentan los resultados de este trabajo de diploma realizada Ideas finales a modo de conclusiones
para un inmueble de gran valor y sobre todo con una gran trascendencia en su tra-
bajo a favor de la promoción cultural del territorio. Con los resultados parciales obtenidos con estos trabajos de diploma ha queda-
Siguiendo la metodología empleada en todos los trabajos en el capitulo uno do demostrada la necesidad de vincular la universidad a los territorios. En este vínculo
el autor se dedicó a revisar conceptos y definiciones generales sobre los museos, la de la academia con la realidad del país se benefician todas las partes involucradas.
museología, museografía y su evolución, ya que en el S XXl han cambiado sus fun- Se evidencian las razones que tiene la nueva universidad al promover el con-
ciones y vocación; así como otros conceptos y criterios relativos a la conservación tacto directo con la comunidad y sobre todo insistir en que la formación y desempe-
del patrimonio. También se revisaron las normas internacionales y nacionales sobre ño de los nuevos profesionales esté al servicio de la mayoría.
los requerimientos a tener en cuenta para el diseño de un museo, con aspectos re-

Ada Esther Portero Ricol | Ricardo Machado Jardo | Mirelle Cristóbal Fariñas | Abniel
450 La universidad y susacciones en el municipio cerro Ramirez González | Roberto Adám Bell Sellén (Cuba) 451
Las entrevistas realizadas a los especialistas del Municipio de Cultura y otras 4. Bell Sellén, Roberto Adam. “Centro Alternativo Comunitario para el Cerro”. Trabajo de
entidades locales arrojaron la identidad que tienen los “cerrenses” por su espacio y Diploma. Curso 2011-12. Tutores: Dr. Arq. Ada Esther Portero Ricol y Msc. Arq. Ricardo
Machado Jardo. Documento en versión digital, PDF. 96 páginas, 4 anexos. Carpeta
la necesidad de recuperar espacios para las funciones sociales y culturales.
de imágenes. p.12
Se ha vinculado el trabajo de la Facultad de Arquitectura de la CUJAE, con
5. Bell Sellén, Roberto Adam. “Centro Alternativo Comunitario para el Cerro”. Trabajo de
especialistas de la Universidad de la Habana y del propio territorio en la búsqueda
Diploma. Curso 2011-12. Tutores: Dr. Arq. Ada Esther Portero Ricol y Msc. Arq. Ricardo
de las mejores soluciones para la recuperación de tres inmuebles que se encuentran
Machado Jardo. Documento en versión digital, PDF. 96 páginas, 4 anexos. Carpeta
en un avanzado estado de deterioro y que hasta el momento no se ha contado con de imágenes p.14
un financiamiento para su intervención.
6. Bell Sellén, Roberto Adam. “Centro Alternativo Comunitario para el Cerro”. Trabajo de
Todos los documentos resultantes de estos trabajos se han entregado a la Diploma. Curso 2011-12. Tutores: Dr. Arq. Ada Esther Portero Ricol y Msc. Arq. Ricardo
máxima Dirección del Poder Popular y la Dirección de Cultura Municipales, que Machado Jardo. Documento en versión digital, PDF. 96 páginas, 4 anexos. Carpeta
fueron los más interesados en la realización de estos proyectos. de imágenes p.20
En los tres casos analizados se puso de manifiesto que el Municipio Cerro es 7. Bell Sellén, Roberto Adam. “Centro Alternativo Comunitario para el Cerro”. Trabajo de
una parte de la ciudad que presenta un alto valor y que su patrimonio está en un Diploma. Curso 2011-12. Tutores: Dr. Arq. Ada Esther Portero Ricol y Msc. Arq. Ricardo
estado de avanzado deterioro, por lo que se hace acuciante la acción de todos los Machado Jardo. Documento en versión digital, PDF. 96 páginas, 4 anexos. Carpeta
organismos que intervienen en su protección para poder conservar algo de lo que de imágenes p.35

queda de su historia. 8. Bell Sellén, Roberto Adam. “Centro Alternativo Comunitario para el Cerro”. Trabajo de
Con estas propuestas que se brindan a la Dirección del Poder Popular del Diploma. Curso 2011-12. Tutores: Dr. Arq. Ada Esther Portero Ricol y Msc. Arq. Ricardo
Machado Jardo. Documento en versión digital, PDF. 96 páginas, 4 anexos. Carpeta
Municipio y a la Dirección de Cultura, se satisfacen de forma preliminar algunas de
de imágenes p.41
las necesidades mencionadas en el diagnóstico realizado por las entidades del terri-
9. Bell Sellén, Roberto Adam. “Centro Alternativo Comunitario para el Cerro”. Trabajo de
torio donde se afirma que existen Pocos espacios participativos para Adultos Mayo-
Diploma. Curso 2011-12. Tutores: Dr. Arq. Ada Esther Portero Ricol y Msc. Arq. Ricardo
res, la Falta de atención local a problemas comunitarios y que hay Poca integración Machado Jardo. Documento en versión digital, PDF. 96 páginas, 4 anexos. Carpeta
social, de incorporación a actividades culturales y recreativas así como Insuficientes de imágenes p.62
espacios recreativos, sociales, deportivos y culturales 10. Bell Sellén, Roberto Adam. “Centro Alternativo Comunitario para el Cerro”. Trabajo de
Se ha demostrado que reutilizar una obra existente estando aún en mal Diploma. Curso 2011-12. Tutores: Dr. Arq. Ada Esther Portero Ricol y Msc. Arq. Ricardo
estado de conservación, en vez de demolerla, aprovecharla estructural, espacial y Machado Jardo. Documento en versión digital, PDF. 96 páginas, 4 anexos. Carpeta
hasta simbólicamente, vale la pena para consolidar la identidad de la ciudad y así de imágenes p.54-57
aprovechar la memoria y complicidad que los habitantes tienen con ella. 11. Bell Sellén, Roberto Adam. “Centro Alternativo Comunitario para el Cerro”. Trabajo de
Diploma. Curso 2011-12. Tutores: Dr. Arq. Ada Esther Portero Ricol y Msc. Arq. Ricardo
Machado Jardo. Documento en versión digital, PDF. 96 páginas, 4 anexos. Carpeta
Referências bibliográficas de imágenes p.58-62
12. Cristóbal Fariñas, Mirelle. Propuesta para la recuperación de un inmueble ubicado
1. Proyecto Territorial. “La Universidad en la solución del banco de problemas del Municipio en una zona de valor en el Cerro. Caso de estudio: Santo Tomás 158. Curso 2011-
Cerro”. Filial Universitaria: Cerro-Plaza. Universidad de La Habana. Documento 12. Tutores: Dr. Arq. Ada Esther Portero Ricol y Msc. Arq. Ricardo Machado Jardo.
resumen del proyecto en versión digital. 7 páginas. 2011.p.2 Documento en versión digital, PDF. 136 páginas + anexos. P.12
2. Proyecto Territorial. “La Universidad en la solución del banco de problemas del Municipio 13. Cristóbal Fariñas, Mirelle. Propuesta para la recuperación de un inmueble ubicado
Cerro”. Filial Universitaria: Cerro-Plaza. Universidad de La Habana. Documento en una zona de valor en el Cerro. Caso de estudio: Santo Tomás 158. Curso 2011-
resumen del proyecto en versión digital. 7 páginas. 2011. p 5. 12. Tutores: Dr. Arq. Ada Esther Portero Ricol y Msc. Arq. Ricardo Machado Jardo.
3. Bell Sellén, Roberto Adam. “Centro Alternativo Comunitario para el Cerro”. Trabajo de Documento en versión digital, PDF. 136 páginas + anexos. P.15-28
Diploma. Curso 2011-12. Tutores: Dr. Arq. Ada Esther Portero Ricol y Msc. Arq. Ricardo 14. Cristóbal Fariñas, Mirelle. Propuesta para la recuperación de un inmueble ubicado
Machado Jardo. Documento en versión digital, PDF. 96 páginas, 4 anexos. Carpeta en una zona de valor en el Cerro. Caso de estudio: Santo Tomás 158. Curso 2011-
de imágenes. p 4 12. Tutores: Dr. Arq. Ada Esther Portero Ricol y Msc. Arq. Ricardo Machado Jardo.

Ada Esther Portero Ricol | Ricardo Machado Jardo | Mirelle Cristóbal Fariñas | Abniel
452 La universidad y susacciones en el municipio cerro Ramirez González | Roberto Adám Bell Sellén (Cuba) 453
Documento en versión digital, PDF. 136 páginas + anexos. P.29-39
15. Cristóbal Fariñas, Mirelle. Propuesta para la recuperación de un inmueble ubicado
Repensar La Habana:
En búsqueda de la sustentabilidad
en una zona de valor en el Cerro. Caso de estudio: Santo Tomás 158. Curso 2011-
12. Tutores: Dr. Arq. Ada Esther Portero Ricol y Msc. Arq. Ricardo Machado Jardo.
Documento en versión digital, PDF. 136 páginas + anexos. P.28
16. Cristóbal Fariñas, Mirelle. Propuesta para la recuperación de un inmueble ubicado
en una zona de valor en el Cerro. Caso de estudio: Santo Tomás 158. Curso 2011-
del desarrollo urbano
12. Tutores: Dr. Arq. Ada Esther Portero Ricol y Msc. Arq. Ricardo Machado Jardo.
Documento en versión digital, PDF. 136 páginas + anexos. P.40
17. Cristóbal Fariñas, Mirelle. Propuesta para la recuperación de un inmueble ubicado Gina Rey (Cuba)
en una zona de valor en el Cerro. Caso de estudio: Santo Tomás 158. Curso 2011-
12. Tutores: Dr. Arq. Ada Esther Portero Ricol y Msc. Arq. Ricardo Machado Jardo.
Documento en versión digital, PDF. 136 páginas + anexos. P.44 Resumo | Havana, como muitas cidades no mundo, apresenta uma problemática de
18. Cristóbal Fariñas, Mirelle. Propuesta para la recuperación de un inmueble ubicado grande complexidade em suas áreas centrais causadas pela deterioração avançada de seu
en una zona de valor en el Cerro. Caso de estudio: Santo Tomás 158. Curso 2011- meio construído, de suas infraestruturas, falta de espaços livres e a poluição ambiental que
12. Tutores: Dr. Arq. Ada Esther Portero Ricol y Msc. Arq. Ricardo Machado Jardo. determinam a crítica situação das condições de vida de seus habitantes. Não obstante sua
Documento en versión digital, PDF. 136 páginas + anexos. P.45-47
centralidade, o fato de ser detentora de um patrimônio cultural, tanto material quanto in-
19. Cristóbal Fariñas, Mirelle. Propuesta para la recuperación de un inmueble ubicado tangível, e a existência dos bairros com sua riqueza sociocultural oferecem potencialidades
en una zona de valor en el Cerro. Caso de estudio: Santo Tomás 158. Curso 2011-
suscetíveis de serem convertidas em recursos econômicos para o desenvolvimento. As ten-
12. Tutores: Dr. Arq. Ada Esther Portero Ricol y Msc. Arq. Ricardo Machado Jardo.
Documento en versión digital, PDF. 136 páginas + anexos. P.67 dências avançadas no campo do pensamento urbanístico e de outras disciplinas afins, para-
lelamente ao surgimento de instrumentos e atuação como a disposta no valor do patrimô-
20. Cristóbal Fariñas, Mirelle. Propuesta para la recuperación de un inmueble ubicado
nio, o desenvolvimento endogeno local, a sustentabilidade urbana, os entornos inovadores
en una zona de valor en el Cerro. Caso de estudio: Santo Tomás 158. Curso 2011-
12. Tutores: Dr. Arq. Ada Esther Portero Ricol y Msc. Arq. Ricardo Machado Jardo. e os modelos avançados de gestão oferecem soluções a esta problemática urbana para em-
Documento en versión digital, PDF. 136 páginas + anexos. P.69 preender o processo da reabilitação do Centro de Havana, e demonstra a capacidade deste
21. González Ramírez, Abniel. Propuesta de rehabilitación para la casa Museo del Cerro. modelo de desenvolvimento urbano para preservar seu profundo significado para a cidade
Tutores: Dr. Arq. Ada Esther Portero Ricol y Msc. Arq. Ricardo Machado Jardo. e a cultura nacional e elevar a qualidade de vida de seus habitantes.
Documento en versión digital, PDF. 114 páginas + anexos. P. 20-23
Abstract | Havana, as many worldwide cities, presents a problem of great complexity in
22. González Ramírez, Abniel. Propuesta de rehabilitación para la casa Museo del Cerro. their old central areas by the advanced deterioration of its built stock and infrastructures,
Tutores: Dr. Arq. Ada Esther Portero Ricol y Msc. Arq. Ricardo Machado Jardo. the lack of open spaces and environmental pollution that determine a critical situation of the
Documento en versión digital, PDF. 114 páginas + anexos. P. 25-33
inhabitant`s living conditions. Despite its centrality, the fact of being in possession of a cul-
23. González Ramírez, Abniel. Propuesta de rehabilitación para la casa Museo del Cerro. tural heritage, both material and intangible, and the existence of neighborhoods with their
Tutores: Dr. Arq. Ada Esther Portero Ricol y Msc. Arq. Ricardo Machado Jardo.
socio-cultural wealth, offer susceptible potential to be converted into economic resources
Documento en versión digital, PDF. 114 páginas + anexos. P. 34.
for development. Advanced trends in the field of urban thought and other related disci-
plines, in addition to the emergence of instruments and acting as the willing in the value of
equity, the local endogenous development, urban sustainability, innovative environments
and advanced management models, offer solutions this urban problems to undertake the
process of rehabilitation of the Center of Havana, and demonstrates the ability of this urban
development model to preserve its deep significance for the city and the national culture
and improve the quality of life of its inhabitants. This article summarizes the results of an
investigation carried out by the Center of Urban Studies from Havana´s Architecture Faculty,
entitled Sustainable Urban Rehabilitation for Central Havana, undertaken between 2006

454 La universidad y susacciones en el municipio cerro Gina Rey (Cuba) 455


and 2008. It received awards from the Higher Polytechnic Institute “José Antonio Echever- tación, lo cual se presenta como una situación paradójica que ha sido señalada por
ría” and from the Ministry of Higher Education for their contribution to social development. varios autores1.
Resumen | La Habana, al igual que muchas ciudades en el mundo, presentan una proble- Por su complejidad, las respuestas a los problemas de este tipo de áreas deman-
mática de gran complejidad en sus áreas centrales provocada por el avanzado deterioro de dan un abordaje desde un enfoque integral, al concurrir en un mismo territorio una
su fondo edificado, de sus infraestructuras, la escasez de espacios libres y la contaminación gran diversidad de factores físicos, sociales y ambientales, muchos de ellos en estado
ambiental que determinan la crítica situación de las condiciones de vida de sus habitantes. de alta criticidad todo lo cual demanda su
Sin embargo su centralidad, el hecho de ser portadoras de un patrimonio cultural, tanto estudio desde el pensamiento complejo.
material como intangible, y la existencia de de los barrios con su riqueza socio-cultural, Sin embargo las áreas centra-
ofrecen potencialidades susceptibles de ser convertidas en recursos económicos para el les históricas en muchas ciudades del
desarrollo. Las tendencias avanzadas en el campo del pensamiento urbanístico y de otras mundo, al igual que La Habana, conti-
disciplinas afines, junto a la aparición de instrumentos de actuación como la puesta en núan siendo centros vivos, habitados
valor del patrimonio, el desarrollo endógeno local, la sustentabilidad urbana, los entornos por una población que desarrolla en
innovadores y los modelos de gestión avanzados, brindan soluciones a esta problemática ese escenario su vida cotidiana. La in-
urbana para emprender el proceso de rehabilitación de Centro Habana, y demuestra la ca- tervención urbanística en éste tipo de
pacidad de este modelo de desarrollo urbano para preservar su profundo significado para áreas se ha producido de dos formas:
la ciudad y la cultura nacional y elevar la calidad de vida de sus habitantes. la rehabilitación y la rehabilitación, la
Imagen 1 Vista aérea del área central de La Habana.
primera que persigue la conservación
En el presente artículo se resumen los resultados de la investigación realizada por el Centro
y valorización del patrimonio cultural y la renovación urbana apoyada en nuevas
de Estudios Urbanos de la Habana de la Facultad de Arquitectura del ISPJAE, denominado
inversiones de gran escala que responde a los intereses del mercado inmobiliario, la
“Rehabilitación Urbana Sustentable para Centro Habana”, iniciada en el año 2003 por el es-
cual como es conocido ha provocado pérdidas sensibles de los valores arquitectó-
tudio del barrio de Colón y ampliada en el período 2006-2007 al resto del territorio. En el año
nicos de muchas ciudades. Si bien los procesos conocidos como “gentrificación” o
2008 recibió los premios del Instituto Superior Politécnico “José Antonio Echeverría” y del
“elitización” de los centros históricos se han dado en las dos formas de intervención
Ministerio de Educación Superior por su aporte al desarrollo social.
mencionadas, las consecuencias más negativas se producen con la renovación, pues
a la pérdida del tejido social se suma la del tejido físico, portador de valores patrimo-
niales, memoria histórica, y de la imagen urbana. En los procesos de recuperación
Introducción
y rehabilitación urbana, aún cuando no permanece la población residente, se pro-
duce una apropiación por los habitantes de las ciudades de sus centros históricos
La problemática de las áreas centrales urbanas se considera una de las más
ciudades como reafirmación de sus identidades.
críticas que enfrentan las ciudades en la mayoría de los países, debido a las condi-
Como resultado del rescate y valorización del patrimonio de los centros his-
ciones de precariedad en que viven sus habitantes, el deterioro progresivo de su
tóricos y sus efectos positivos para las ciudades en los últimos años se observa una
fondo edificado y las infraestructuras y la pérdida de funciones que ha deprimido su
tendencia a dar relevancia a las zonas centrales antiguas de las ciudades, la cual se
actividad económica. Esta situación se ve agravada por la debilidad de los gobier-
manifiesta en un consenso sobre sus valores culturales y la necesidad de ampliar
nos locales para crear formas de gestión eficientes que den respuesta a esta proble-
los límites estrictos en los que se había abordado hasta entonces el estudio de los
mática y el bajo nivel de ingresos de los residentes, por todo ello se considera una
centros históricos, generalmente reducidos al área en la que se concentran los ma-
carga que se vuelve inabordable para las ciudades y los países dada la magnitud de
yores valores arquitectónicos, y su consideración como recintos cerrados sin víncu-
los recursos que demanda este tipo de intervención.
los con las zonas aledañas y la ciudad2. En consecuencia se ha venido produciendo
Estas áreas por su centralidad, valores culturales y estar localizadas estraté-
una toma conciencia de los valores culturales contenidos en las áreas centrales, y
gicamente en el corazón mismo de las ciudades, son portadoras de oportunidades
que no están siendo aprovechadas en función de su propia recuperación y rehabili-
1. Mesías R., Suárez, A. “Los Centros Vivos”. Programa CYTED, La Habana-Ciudad México, 2002.
2. Ormindo de Azevedo, Paulo. “Formación en conservación de monumentos y gestión integral del patrimonio en
América Latina y el Caribe”. En: “Proyecto Gestión Integral del Patrimonio Cultural”, ORLAC-UNESCO, La Habana, 2003.

456 La universidad en la solución de problemas y su impacto en el desarrollo local Gina Rey (Cuba) 457
ganado consenso en cuanto a la importancia de valorizar su patrimonio La expe-
riencia internacional apunta hacia procesos que han dado en llamarse de “puesta en
valor” de este tipo de áreas3.

El estudio del área central de Centro Habana

La realización del trabajo de investigación sobre Centro Habana se propuso


la identificación de sus valores patrimoniales y el conocimiento de las tendencias
teóricas y prácticas en el urbanismo que permitieran la aplicación integrada de ins-
trumentos para ofrecer respuestas avanzadas a la compleja problemática de esta
área central urbana. Los resultados esperados debían ser capaces de aprovechar las
sinergias que se generan la actuación en un espacio físico limitado: el barrio, de
factores culturales, sociales y económicos, portadores de una memoria histórica,
identidad cultural, cohesión social, economías tradicionales y formas asociativas; y
al propio tiempo desarrollar los entornos innovadores potenciales existentes en el
territorio objeto de estudio.


Imagen 6 Esquema metodológico de la investigación.
Imagen 2 El área
central de La Habana tabilidad de alta precariedad lo
y su sistema de cen- cual incide negativamente en lo
tros.
social. Es notable la pérdida de
Imagen 3 Foto
satelital con la deli- funciones culturales y comer-
mitación del área de ciales motivado por la situación
estudio.
de deterioro. Existen factores
Imagen 4 Pérdida
de funciones urba-
de vulnerabilidad en los que se
nas: antiguo cine identifican los vientos y las pe-
Reina. netraciones del mar durante la Imagen 7 Esquema gráfico de la hipótesis de la investiga-
Imagen 5 Vulnera- ción.
ocurrencia de eventos climáticos
bilidad a la penetra-
ción del mar en el extremos como los huracanes.
Malecón habanero.

Situación problémica. Hipótesis de partida y objetivos de la investigación


El avanzado deterioro físico del área central de Centro Habana, tanto de su Por su concentración de valores socio-culturales, centralidad, y la existen-
fondo edificado como de las redes de la infraestructura y escasez de áreas verdes cia de recursos humanos calificados, el territorio de Centro Habana posee grandes
y espacios libres. La situación más crítica se concentra en las condiciones de habi- potencialidades, capaces de generar los recursos económicos que hagan posible
acometer un proceso de revitalización basado en la valorización del patrimonio cul-
3. Rojas, E.; Rodríguez, E.; Wegelin, E. “Volver al Centro. La recuperación de áreas urbanas centrales”, Banco Interameri-
cano de Desarrollo, New York, 2004.
tural, el desarrollo económico local y la creación de entornos innovadores, cuyos

458 La universidad en la solución de problemas y su impacto en el desarrollo local Gina Rey (Cuba) 459
beneficios puedan ser reinvertidos en la preservación de su patrimonio y el me- las bondades de la puesta valor del patrimonio para generar desarrollo en las ciuda-
joramiento de la calidad de vida de la población, a partir de la implantación de un des y territorios4. Se reconoce cada vez con mayor fuerza la llamada economía de la
modelo de gestión basado en la sustentabilidad económica apoyado en las fortale- cultura y su capacidad para generar desarrollo y empleo.
zas del modelo social cubano. La consideración de la cultura como recurso y modelo para el desarrollo inclu-
Sobre la base de esta hipótesis se ha considerado la validez de la aplicación ye los estudios de detección de valores, de valorización, los procesos de puesta en
de las ideas más avanzadas en el desarrollo urbano y las experiencias nacionales e valor del patrimonio cultural, y como consecuencia de éstos la creación de distritos o
internacionales, adecuadas a las condiciones concretas del área central de Centro barrios culturales, corredores e itinerarios culturales, entre las principales tendencias.
Habana en la ciudad de La Habana. Una tendencia que se observa cada vez con mayor fuerza es la gestión vincu-
La metodología empleada en la investigación parte del método lógico “aná- lada al patrimonio, la cual ha sido apoyada por organismos internacionales como la
lisis-síntesis-propuesta”, apoyado en los métodos de análisis documental, el análisis UNESCO a través del proyecto de Ciudades Creativas en varias ciudades europeas5. En
histórico-lógico, el análisis comparativo y el cualitativo. El esquema metodológico los últimos años se ha incrementado el reconocimiento de las industrias del arte y las
tiene como punto de partida la definición de un marco teórico-conceptual que iden- industrias creativas como categorías promisorias en el desarrollo económico urbano.
tifica las tendencias en el pensamiento y la práctica del urbanismo en el ámbito Los resultados prácticos obtenidos en muchas ciudades del mundo, en par-
nacional e internacional y define las premisas conceptuales que guiarán los análisis ticular en algunos de los centros históricos de América Latina como Quito y La
y propuestas para Centro Habana. Habana, muestran que la única forma de salvar el patrimonio es considerar lo como
El estudio para la detección de los valores culturales del territorio permite un recurso económico que garantice su preservación y la mejoría de la calidad de
conocer las potencialidades para su puesta en valor y para la concepción de una ”es- vida de los habitantes. Por tanto el problema no se encuentra en la contradicción
trategia de intervención urbanística” que defina las líneas de actuación que orien- cultura-economía sino en el modelo de gestión de los recursos culturales y en la
tarán el proceso de revitalización y determina los proyectos dinamizadores que con posición ética que sustente este modelo.
su efecto multiplicador sean capaces de generar los recursos económicos para la
arrancada del proceso de rehabilitación urbana. La sustentabilidad urbana como paradigma
Los resultados de la investigación tienen su plasmación en tres instrumentos
concretos: el Atlas del Patrimonio Cultural de Centro Habana, la Estrategia de In- El paradigma del desarrollo sustentable se ha convertido en una referencia
tervención Urbanística y la Carpeta de Proyectos Dinamizadores, los cuales forman imprescindible en diferentes ámbitos académicos e institucionales. El concepto
parte del contenido de la presente publicación. de sustentabilidad ha evolucionado, y se ha ampliado de la cuestión ambiental a
otras dimensiones como la económica, la social, la política y la cultural, y también al
ámbito urbano. Al ser transferido dicho paradigma a la problemática de la ciudad,
Marco teórico-conceptual: Tendencias en ésta es considerada como un ecosistema urbano, y en consecuencia se ha adoptado
el pensamiento y en la práctica del urbanismo la categoría de “sustentabilidad urbana”6.
El debate actual gira además en torno a dos paradigmas: por un lado la pro-
Se identificaron las tendencias principales que se han venido conformando el moción de la ciudad compacta y por otro la dispersión. En la forma compacta se re-
“estado del arte” en el campo del urbanismo referido a la problemática de las áreas conocen valores ecológicos por ser menor su “huella ecológica”, y factores ambien-
centrales urbanas, las que de manera sintética pueden resumirse en las siguientes: tales asociados a la reducción de las distancias de transportación y el uso de formas
de movilidad y estilos de vida basados en el disfrute de la cultura y la naturaleza.7
La Valorización de la cultura.
4. Geffre, Xavier. “El papel de la cultura en el desarrollo territorial”. En: “Cultura desarrollo y territorio”, Xabide, Bilbao,
1999.
La cultura es reconocida hoy en día como una actividad generadora de de- 5. UNESCO: Proyecto de Ciudades Creativas. Sitio Web de la UNESCO. 5 Rogers, Richard, Maragall, Pascual y otros. Ciu-
sarrollo, tanto a nivel del territorio como de la ciudad. Cada día se hace mayor la dades para un planeta pequeño. Editorial Gili, Barcelona, 2000.
6. Allen, A.: Re-assessing urban development: Towards indicators of Sustainable Development at urban level. Working
referencia a los efectos de reanimación económica de la valorización cultural en Paper DPU, Development Planning Unit, UCL, Londres, 1994.
territorios deprimidos, al papel del arte y de los artistas en mejorar la vida diaria, y 7. Rueda, Salvador. “La ciudad compacta y diversa frente a la conurbación difusa”. En: Revista ScriptaNova, Barcelona,
2006.

460 La universidad en la solución de problemas y su impacto en el desarrollo local Gina Rey (Cuba) 461
Por otra parte la rehabilitación urbana debe considerar se como un proceso factores producida por la concentración de actividades de I+D y empresariales en
de alta sustentabilidad pues implica el aprovechamiento máximo de los recursos ma- una determinada área o región.
teriales y la energía ya empleados, y por tanto reduce el consumo de nuevos recur- Los componentes críticos de los entornos innovadores están referidos, entre
sos, la generación de desechos que deban ser tratados y el incremento de la huella otros10, a la existencia de: instituciones académicas con una oferta de servicios edu-
ecológica por la urbanización de nuevas áreas y del consumo energético que ocasio- cativos de calidad, la concentración de actividades de investigación y desarrollo con
na el propio proceso de construcción y los flujos de transportación que se generan. capacidad para adaptar la tecnología a la demanda, oferta de servicios de consulto-
ría, iniciativa al nivel local, oferta de recursos humanos altamente calificados, cultura
El desarrollo local endógeno de competencia, colaboración entre los actores sociales y capacidad de innovación.

El desarrollo local endógeno deriva del creciente interés alrededor de lo local, Formas y modelos de gestión avanzados
tanto a nivel teórico como práctico lo cual se refleja la gran cantidad de investiga-
ciones y trabajos publicados sobre el tema y una gran promoción por parte de or- En el ámbito internacional un grupo importante de instituciones y autores
ganismos internacionales, gobiernos, centros académicos y organizaciones sociales. han abordado esta temática que intenta dar respuesta, con nuevas formas de ges-
El desarrollo económico local se define como un proceso de transformación de las tión, a los grandes problemas acumulados en las ciudades y la poca eficacia de las
comunidades locales, que procura mejorar las condiciones de vida de su población, administraciones urbanas para enfrentarlos. La gestión urbana es el conjunto de
mediante una “actuación concertada entre los diferentes agentes socioeconómicos procesos dirigidos a planificar y organizar, recursos humanos, financieros y técnicos
locales, para el aprovechamiento eficiente y sustentable de los recursos endógenos que permitan producir, hacer funcionar y mantener la ciudad. Al constatarse que los
existentes, mediante el fomento de las capacidades de emprendimiento económico procesos de descentralización son aún incipientes, el gobierno local está lejos de
locales y la creación de un entorno innovador en el territorio”8. constituir un actor relevante en la gestión del desarrollo urbano.
Más recientemente el concepto de “endógeno” se ha asociado al desarrollo Por la misma causa apuntada al gobierno local se la dificulta instrumentar la
local, y son varios los autores que coinciden en que, para propiciar el desarrollo local cooperación, como otra premisa del desarrollo urbano, entre ellas la cooperación
se requiere de un proceso endógeno9, que lleve a definir una estrategia de desarrollo pública-pública, entre instituciones públicas de diferentes actividades y ámbitos de
compartida por los diversos actores locales. En consecuencia cuando la comunidad actuación, la público-privada, aún cuando en los últimos años han se ha producido
local es capaz de liderar el proceso de cambio estructural y aprovechar sus recursos ejemplos exitosos en América Latina mediante la creación de corporaciones para
propios, se genera un tipo de desarrollo conocido como “desarrollo local endógeno”. gestionar proyectos urbanos11.
Resulta significativo el consenso en cuanto a la necesidad de un modelo de
Los entornos, contextos o sistemas innovadores en las ciudades gestión basado en la creación una institución líder del proyecto de desarrollo con
capacidad de autogestión, las cuales han adoptado diferentes formas organizativas,
Están vinculados al conocimiento y las tecnologías y actividades asociadas como son las agencias de desarrollo local12.
a la innovación, como lo son las universidades y los centros de investigación. El co- La gestión del patrimonio histórico, que tiene como finalidad su preservación
nocimiento adquiere una importancia fundamental como factor productivo, por y recuperación debe pasar ineludiblemente por un compromiso político. Bajo tales
ello su potenciación en términos económicos está fuertemente asociada a la pre- principios, corresponde al sector público asumir el papel protagónico en una nueva
sencia de entornos innovadores, condicionados por la existencia de un entramado perspectiva de sustentabilidad económica a través de los procesos de puesta en valor.
económico y social. Los entornos o sistemas innovadores, por sus condiciones de
adaptabilidad, flexibilidad y diversidad generan lo que se define como sinergia de

10. Hall, Peter. Cities in civilization.Editora Internacional. New York, 1996.


8. Alburquerque, F. “Manual del agente del desarrollo local”. Ediciones SUR, Barcelona, 1999. 11. Lungo, Mario; Pérez, Mariam. Gestión urbana: algunas cuestiones teóricas. En: Estudios Sociales Centroamericanos,
9. Boisier, S.“Sociedad del conocimiento, conocimiento social y gestión territorial”. Instituto de DesarrolloRegional, San salvador, 1990.
Fundación Universitaria Sevilla, versión digital, Sevilla, 2001. 12. Alburquerque, F.“Manual del Agente del “Desarrollo Local”. Ediciones SUR, Barcelona,1999.

462 La universidad en la solución de problemas y su impacto en el desarrollo local Gina Rey (Cuba) 463
Los procesos de rehabilitación urbana 2. Alta representatividad de la vida cultural de la ciudad y significado para la
cultura nacional por ser la génesis de importantes manifestaciones de la música, el
La teoría y la práctica de la rehabilitación urbana ha evolucionado a partir teatro y la cultura popular.
de la década de los 90 y ha puesto en tela de juicio la forma convencional depen- 3. La presencia de notables valores arquitectónicos y urbanísticos, constitui-
diente de la subvención estatal, la cual como vía única no puede ser sustentable dos por edificaciones singulares de alto valor patrimonial y una gran masa edificada
por la demanda de fondos de financiamiento cuantiosos difícilmente disponibles que constituye uno de los mayores conjuntos eclécticos del mundo. Su trama com-
para muchos países. Por otra parte se han ampliado los conceptos de revitalización pacta y la continuidad de sus cambiantes fachadas de balcones sirven de marco a
y regeneración urbana, con la incorporación de la intervención en áreas degradadas la animación permanente de la calle habanera y ofrecen una imagen urbana fuerte
destinada a la recuperación y atracción de actividades económicas los que se han y vital.
denominado “revitalización urbana” y que conllevan la creación de empleos, lo que 4. Presencia de instituciones culturales, actividad comercial y alojamiento ho-
ha derivado en los procesos más exitosos hacia la integración en un proceso único telero, que aportan gran centralidad a la zona a pesar de la pérdida de funciones.
de rehabilitación-revitalización.
5. Existencia de saberes tradicionales locales expresados en instalaciones
productivas vinculadas a la industria tabacalera, la industria gráfica y otras como las
La valorización del patrimonio cultural de sastrerías, talleres de costura y de calzado y otras actividades artesanales.
Centro Habana 6. El relevante papel de las antiguas calzadas como elementos estructura-
dores del territorio, que actúan como verdaderas centralidades lineales y arterias
En el área de Centro Habana, tiene una gran relevancia el patrimonio inma- vitales de la Ciudad.
terial o intangible, pues esta parte de la ciudad ha sido el crisol de componentes 7. La presencia de sus barrios tradicionales portadores de elementos emble-
trascendentales de la cultura nacional como la música, el teatro y las artes plásti- máticos vinculados a la vida cotidiana y a la imagen de Centro Habana, como son
cas que se desarrollaron en un escenario arquitectónico y urbanístico excepcional, las esquinas animadas por los comercios, lugares de intercambio social, los antiguos
con el que están íntimamente imbricados. En este territorio denominado entonces cines de barrio que continúan presentes en la memoria histórica. Expresiones de
La Habana Extramuros se gestó, durante una buena parte de la segunda mitad del modos de vida colectivo como las ciudadelas y solares, tipologías de vivienda social
siglo XIX y la primera mitad del siglo XX, el centro cultural y comercial más impor- que han sido escenarios de ricas manifestaciones de la más genuina cultura popular;
tante de la ciudad, el cual, en su desarrollo llevaría a La Habana a constituirse en y por último la calle habanera el espacio público por excelencia en esta parte de la
una de las plazas culturales más importantes de América y en sus teatros actuaban ciudad, lugar de intensa vida social, donde se expresa el carácter del habanero con
figuras de renombre de nivel mundial. Esta vida cultural intensa no se desarrollaba una vitalidad impresionante.
solamente en los grandes espectáculos en las áreas urbanas más calificadas, situa-
das en el entorno del Paseo del Prado y del Parque Central, sino que tenía una fuerte
expresión al interior de los barrios y en las viviendas colectivas, llamadas “solares”
El Atlas del Patrimonio Cultural de Centro Habana
y “cuarterías”, lugares donde han surgido manifestaciones genuinas de nuestra cul-
Con la finalidad de recoger y compilar en toda su riqueza el patrimonio centro
tura popular.
habanero se determinó la elaboración de un Atlas del patrimonio cultural por ser
En el presente Centro Habana conserva, a pesar del deterioro, sus relevantes
un instrumento creado para la documentación, sistematización e interpretación del
valores urbanos que se resumen en las siguientes consideraciones:
patrimonio, a partir de la elaboración de un marco de conocimientos de base, que
1. Ha constituido por más un siglo una centralidad urbana, condición que se permite identificar y seleccionar los valores patrimoniales del territorio susceptible
ha visto reforzada por sus conexiones con la franja costera, el Centro Histórico y el de ser convertidos en recursos. Las técnicas de representación tratan datos impor-
sectores relevantes de la ciudad como El Vedado, los cuales han concentrado la di- tantes para reflejar la identidad de los lugares y el conjunto de todos sus valores
námica de desarrollo urbano en los últimos años. tanto tangibles como intangibles.
El contenido principal del Atlas son las fichas que recogen de manera indivi-
dual los elementos de valor componentes del patrimonio arquitectónico, urbanísti-

464 La universidad en la solución de problemas y su impacto en el desarrollo local Gina Rey (Cuba) 465
co y del patrimonio intangible En la actualidad los Atlas automatizados constituyen que atraviesan la ciudad, las calles, plazas, parques y paseos y sus elementos com-
sistemas de información territorial (SIT) utilizados para diversos fines como la plani- ponentes como hitos urbanos, conjuntos escultóricos, mobiliario, jardinería y otros.
ficación territorial y urbana. Están compuestos por conjuntos de cartografía e icono- También se han considerado por su singularidad y significado socio-cultural
grafía, archivos de datos, textos, fotos, vídeos, entrevistas, documentos históricos y sitios como el Barrio Chino y el Callejón de Hammel.
otros medios. Los sitios históricos fueron seleccionados en razón de su trascendencia en la
El punto de partida para la elaboración del Atlas del patrimonio Cultural de vida nacional y local y representatividad de los diferentes períodos históricos.
Centro Habana fue el estudio de identificaron los valores culturales más significa- Para la selección de los elementos más representativos del patrimonio inma-
tivos y su sistematización en fichas facilitar su acceso y utilización para estudios, terial o intangible se tuvieron en cuenta las siguientes premisas:
proyectos, planes y otros fines. La metodología utilizada estuvo basada en la creada 1. Permanencia y trascendencia de tradiciones locales y festividades, como el
por los profesores Alberto Magnaghi y Rafaele Paloscia de la Universidad de Floren- carnaval y otras asociaciones o agrupaciones de larga tradición cultural.
cia, Italia. 2. Manifestaciones culturales, artes del espectáculo.
Las fichas fueron diseñadas por el equipo de investigación y el trabajo de 3. Presencia de técnicas artesanales tradicionales.
campo fue realizado por estudiantes de la Facultad de Arquitectura del ISPJAE in- 4. Personalidades de la cultura que han dejado su impronta en el territorio.
tegrados al equipo de investigación, y en su elaboración se tomaron en cuenta
5. Conocimientos y habilidades tradicionales que se derivan de las culturas
además fuentes bibliográficas, el Registro de Sitios de valor histórico-cultural del
materiales.
Museo Municipal de Centro Habana, un estudio sobre valores patrimoniales realiza-
6. Memoria histórica de lugares ya desaparecidos.
do como parte del Plan de Rehabilitación Urbana de Centro Habana elaborado por
El trabajo de detección de valores comprendió más de 500 exponentes, de
el Instituto de Planificación Física y la consulta a expertos.
los cuales 155 fueron llevados al Atlas en formato de ficha, de ellas 63 del patrimonio
Se establecieron criterios de valorización tanto para el patrimonio material
arquitectónico, 16 del histórico, 20 del urbanístico y 56 del inmaterial, acompañados
como el inmaterial. En el patrimonio material se consideraron el patrimonio arqui-
de una reseña temática sobre las fábricas de tabaco, los teatros y los hoteles por su
tectónico y el urbanístico. Como categoría particular aparece el patrimonio histórico
importancia en la configuración urbanística y en la vida del territorio.
por integrar componentes materiales e inmateriales.
Para la identificación del patrimonio material se tuvieron en cuenta los si-
guientes criterios de valoración: La puesta en valor del patrimonio cultural de
1. La significación de la arquitectura del período colonial, de la que se con-
Centro Habana
servan pocos exponentes, por la pérdida de edificaciones que se produjo durante el
período republicano motivado por la especulación inmobiliaria.
Se ha evidenciado una tendencia significativa y creciente a la gestión vincu-
2. Representatividad del estilo ecléctico predominante en Centro Habana en lada a la valorización del patrimonio, lo que se ha dado en llamar “puesta en valor”,
sus diferentes manifestaciones: neoclásico, art deco, art nouveau, neo-gótico y mo- como un proceso que garantiza la conservación y recuperación del patrimonio y al
risco, entre otros. propio tiempo tiene un peso significativo en su aprovechamiento con fines económi-
3. Reconocimiento de los exponentes de valor del movimiento moderno pre- cos, como factor que dinamiza la revitalización social y económica, de las áreas donde
sentes en el área. éstos se encuentran. El Centro Histórico de la Habana Vieja constituye un ejemplo
4. Representatividad de la diversidad de tipologías funcionales de las edifica- paradigmático de este tipo de gestión que ha sido reconocido internacionalmente.
ciones: cívica, industrial, religiosa, vivienda, teatros, comercio, hoteles y otros. Por otra parte los resultados del Atlas demuestran la hipótesis formulada en
5. El significado de los edificios como referentes para la comunidad. cuanto a la existencia de valioso patrimonio susceptible de ser recuperado y utili-
En cuanto a los valores del patrimonio urbanístico los criterios están referidos zados para nueva funciones que hagan posible el logro de la sustentabilidad del
a la escala, la concepción general y calidad de los espacios y sus elementos compo- proceso de rehabilitación.
nentes, la jerarquía como espacio público a nivel urbano. Se han incluido las calzadas Una “puesta en valor” del patrimonio de Centro Habana obliga a dar un enfo-
originales que conectan el centro y la periferia y constituyen centralidades lineales que holístico al estudio de valorización pues estamos en presencia de un valioso pa-
trimonio intangible muy estrechamente imbricado en su patrimonio arquitectónico

466 La universidad en la solución de problemas y su impacto en el desarrollo local Gina Rey (Cuba) 467
Imagen 8 Mapa de va-
lores culturales. Edifica- Imagen 9 Ficha del Cal-
ciones y sitios de valor lejón de Hammel, sitio
urbano, arquitectónico, de identidad afrocubana.
histórico e inmaterial. Atlas del patrimonio de
y urbanístico. Es esa la inmensa riqueza cultural y social que tiene Centro Habana, Centro Habana.

que no deja maravillar y revela siempre algo nuevo. Con respeto y sensibilidad a esa La recuperación de la centralidad urbana se plantea, no como una recrea-
memoria histórica y a sus valores es que debe intervenirse en ella, y ese ha sido el ción del pasado, sino de un rescate del patrimonio con nuevas funciones urbanas
espíritu que ha animado esta propuesta. que rehabilite el área en lo físico y la revitalice en lo económico para obtener como
efecto conjunto de las dos actuaciones el desarrollo social y económico. El apro-
vechamiento de las sinergias que surgen producto de la diversidad de actividades
La Estrategia de Intervención Urbanística para en un mismo espacio, puede incentivar tanto a las industrias culturales como a los
Centro Habana pequeños talleres de artesanía y servicios tradicionales y cotidianos, lo que permi-
tirá, de manera orgánica producir el mejoramiento de las de la calidad de vida de la
La Estrategia de Intervención Urbanística, está orientada a la gestión, y tiene población residente, mediante la combinación de la inversión de gran escala con la
como objetivo identificar las líneas principales que orienten el proceso de revita- pequeña inversión de carácter autogestionario.
lización y con ello generar recursos financieros que se destinen a la rehabilitación En la Estrategia se combinan dos tipos de intervención urbanística: la que se
urbana integral de forma progresiva. En sus la revitalización de los ejes principales; realiza en los ejes viales principales, por concentrarse en ellos los mayores valores
la creación de nuevos espacios públicos y el mejoramiento de los existentes; la re- arquitectónicos y las funciones centrales, y en paralelo la que se realiza al interior de
cuperación de funciones y el desarrollo de nuevas funciones compatibles a la zona los barrios para la rehabilitación del fondo edificado, principalmente el de vivienda,
de estudio; el estudio e inserción de la actividad cultural como elemento protagóni- las infraestructuras y los equipamientos sociales, y que conlleva también la creación
co, el desarrollo integrado de la economía local y de los entornos innovadores. Las de espacios libres que propicien un mejoramiento ambiental.
líneas definidas por la Estrategia se concretan en los proyectos dinamizadores como A su vez, las intervenciones en estos ejes podrán ser ejecutadas de dos formas:
instrumento que demuestra la factibilidad de realización de las propuestas. por tramos seleccionados de acuerdo con su interés y relevancia y mediante acciones

468 La universidad en la solución de problemas y su impacto en el desarrollo local Gina Rey (Cuba) 469
puntuales en nodos o intersecciones importantes que puedan extenderse progresi- Otro de los barrios emblemáticos, el de Colón se proyecta a partir de la rique-
vamente de acuerdo con las prioridades y disponibilidad financiera. En cuanto a la za de sus tradiciones, manifestaciones artísticas locales como la música, el teatro y
ejecución de las inversiones, estas deben responder a un programa integral que con- el carnaval y las posibilidades que ofrece el edificio de la antigua Planta Eléctrica
siga un equilibrio entre el desarrollo económico y el social, bajo el principio de sus- para convertirse en un Centro de Arte Contemporáneo con capacidad para atraer
tentabilidad económica, para lo cual se requiere una etapa de arrancada de proyectos estudios de artistas plásticos al barrio13.
dinamizadores de mayor factibilidad capaces de generar un fondo de inversión que
reforzaría la inversión estatal de carácter central. Los corredores culturales
Las líneas de intervención principales de esta Estrategia se resumen en las
siguientes actuaciones: Propuestos en ejes altamente significativos para la ciudad, donde existe una
alta concentración de valores urbano-arquitectónicos e históricos-culturales. El co-
Los ejes culturales- rredor cultural de San Lázaro vinculado a la Planta Eléctrica de Colón y a la presencia
comerciales de galerías de arte y estudios de artistas. Estas acciones motivan el interés de un
gran número de artistas e instituciones a instaurar sus talleres, galerías y viviendas
Corresponden a las vías en estas importantes avenidas.
principales que bordean los di-
ferentes barrios, las antiguas cal- Los itinerarios culturales
zadas y calles que históricamen-
te han albergado este tipo de Siguiendo recorridos que conectan edificios, espacios o sitios de interés cul-
funciones a nivel de ciudad. Las tural para su puesta en valor. Uno de los itinerarios sería en el barrio de Cayo Hueso,
líneas de intervención plantean la con un recorrido lineal que sigue la calle Aramburu conectando sitios socio-históri-
rehabilitación integral de las edifi- cos-culturales como la Fragua Martiana, el callejón de Hammel, y el antiguo Cemen-
caciones para la recuperación de terio Espada a través de un diseño de calle verde de circulación regulada.
los locales comerciales, la vivien-
da, el incremento de las funcio- La creación de entornos innovadores
nes culturales y nuevas funciones
Imagen 10 Estrategia de Intervención urbanística propues-
ta. Proyectos dinamizadores. que aprovechen las potencialida- En un ámbito económico y social en el que la innovación y el conocimiento
des detectadas. Se contempla la adquieran un lugar central en el proceso productivo para que el desarrollo de estos
reanimación de “nodos” o esquinas tradicionales, incluido su entorno inmediato, en factores constituya un elemento clave.La presencia del Instituto de Diseño Indus-
intersecciones de vías principales. trial (ISDI), actividad de una alta capacidad de innovación, que podría atraer centros
y talleres de diseño y de la industria gráfica. La presencia del Hospital Hermanos
Los distritos culturales urbanos Ameijeiras podría constituirse en un entorno innovador vinculado a las tecnologías
avanzadas vinculadas a la medicina.
Se han identificado, por su significado cultural, centralidad, imagen, concen-
tración y diversidad de actividades, tres lugares: un distrito de alta centralidad de- La apertura de corredores verdes
limitado por las calles Galiano, Prado, Neptuno y San Rafael, que se desarrollaría
con una gran una diversidad, aprovechando su tradición cultural y comercial, para Conformados progresivamente mediante la conexión de espacios verdes
potenciar el teatro, la música y la moda. El Barrio Chino por sus valores culturales creados en las manzanas, los que aprovecharían los vacíos urbanos existentes para
y gran vitalidad social y comercial y la presencia de las sociedades, y tradiciones el mejoramiento ambiental y el disfrute de los habitantes. Los ejemplos trabajados
chinas, potenciar el rescate de esta cultura en toda su dimensión.
13. Gina Rey; colectivo de autores. “El Barrio de Colón: Rehabilitación urbana y desarrollo comunitario en La Habana”,
Centro de Estudios Urbanos, Facultad de Arquitectura, ISPJAE, 2005.

470 La universidad en la solución de problemas y su impacto en el desarrollo local Gina Rey (Cuba) 471
están las propuestas para los barrios de Los Sitios y Pueblo Nuevo, demuestran su
factibilidad y posibilidad de ampliación a la totalidad del tejido urbano. Se comple-
mentan con las calles parque – propuestas de manera distribuida en el área.

Rescate y reforzamiento de tradiciones productivas

Recuperación y el desarrollo de sistema productivos locales y de oficios tradi-


cionales, como la industria tabacalera, industria gráfica, la construcción, la artesanía,
confecciones y mobiliario, unido al rescate y creación de capacidades hoteleras de
pequeña escala que contemplen el alojamiento económico y pequeños talleres. La
creación de escuelas de oficios para la formación de obreros calificados para las la-
bores de rehabilitación constructiva, a fin de responder a la gran magnitud de la
demanda del territorio.

Los programas de intervención al interior de los barrios

Para enriquecer la vida comunitaria, que incluyan la reanimación socio-cultu-


ral, el desarrollo local y la gestión comunitaria participativa. Conlleva la creación de
espacios comunitarios al interior del barrio, conseguido a través de un clareo de man-
Imagen 11 Ficha del
zanas y la interconexión de los espacios disponibles para ser convertidos en áreas proyecto dinamizador
verdes, áreas deportivas y espacios de participación que mejoren la calidad de vida “Plaza de la Triple
Felicidad” en el Barrio
de la población residente en el área y la potenciación de espacios socio-culturales uti- Chino.
lizando la gran cantidad de estructuras originalmente dedicadas a cines distribuidas
Los proyectos dinamizadores identificados en la Estrategia se compilan en
en todo el territorio. Se ha considerado el concepto de vivienda productiva: vivienda-
la Carpeta o Catálogo de Proyectos que constituye un instrumento técnico cuyo
taller o vivienda-comercio, como parte de la revitalización económica de los barrios.
uso se ha extendido por su efectividad en la promoción de proyectos al hacer más
accesible su contenido a los tomadores de decisiones, inversionistas y proyectistas.
La Carpeta de proyectos dinamizadores para Su diseño permite la actualización sistemática con la inclusión de nuevos proyectos
Centro Habana lo que le aporta un alto grado de flexibilidad.
En los procesos de rehabilitación y recuperación urbanas las carpetas de pro-
Como se ha dicho el papel de los proyectos dinamizadores es decisivo para yecto son particularmente efectivas por la gran cantidad de proyectos de diferente
el proceso de rehabilitación por su efecto multiplicador y desencadenante del pro- naturaleza que estos generan, lo que hace difícil su promoción y la visualización y
ceso de mejoramiento de las condiciones de vida en el área. Permiten la arrancada comprensión integral de su contenido. La carpeta contribuye a hacer más operacio-
financiera del proyecto, garantizan la integralidad de las actuaciones, pues forman nal un proceso de tanta complejidad. En la Carpeta propuesta para Centro Habana
parte de la estrategia general, y en la medida que se hacen visibles sus efectos crean aparecen tanto proyectos dinamizadores de la escala de diseño urbano como arqui-
motivación entre los actores participantes para dar continuidad a las acciones pro- tectónico, que incluyen distritos culturales, sectores urbanos, ejes viales y acciones
gramadas.14 de nivel barrial que abarcan la totalidad del tejido urbano.
De acuerdo con el contenido del análisis y las conclusiones del Marco Teó-
rico-Conceptual, para la definición de los proyectos dinamizadores se tuvieron en
14. Rey, Gina; colectivo de autores. “Centro Habana: un futuro sustentable”, Centro de Estudios Urbanos, Facultad de cuenta los criterios de selección que aparecen a continuación:
Arquitectura, ISPJAE, Ediciones CUJAE, 2009.

472 La universidad en la solución de problemas y su impacto en el desarrollo local Gina Rey (Cuba) 473
1. Proyectos con capacidad para generar recursos económicos, con efecto en el planeamiento y la gestión, el reforzamiento de las relaciones horizontales que
multiplicador al valorizar elementos que aprovechen la condición de proximidad y incluya tanto las entidades productivas como las instituciones, organizaciones so-
sean factibles desde el punto de vista económico. ciales y otros actores comunitarios, de manera que generen un mayor compromiso
2. Posibilidad de generar ingresos que puedan revertirse en los procesos de con los procesos de mejoramiento de su hábitat propio y en la economía local.
rehabilitación integral a partir de un modelo de gestión que lo promueva. La planificación como proceso integrante del modelo de gestión constituye
3. Aprovechamiento de la concentración de valores patrimoniales tangibles una componente de carácter estratégico, pues el plan urbano constituye un instru-
e intangibles en un área determinada, y de las sinergias que se producen como re- mento orientador de las decisiones principales, la definición de prioridades y el orde-
sultado de la interacción de los valores con otros elementos presentes en el tejido namiento físico de las inversiones para una utilización más racional y efectiva de los
social y productivo que potencien un desarrollo local endógeno. recursos. Por último y no menos importante, es contar con un marco legal adecuado,
4. Aprovechamiento de la condición de centralidad del área que recibe gran- que conceda autoridad a los gobiernos locales, para gestionar este tipo de proyectos.
des flujos de población diariamente, y la de conexión entre El Vedado y el Centro His- En consecuencia se demanda un modelo de gestión propio, una entidad o
tórico, a través del Malecón habanero y su condición de enlace vital para la ciudad. agencia de perfil técnico-económico, bajo la autoridad del gobierno local, con fun-
ciones de dirección del proyecto y capacidad de coordinación de la participación de
5. Posibilidad de refuncionalización o reconversión de edificaciones singulares
los diferentes actores, la cual asumiría la concertación de las iniciativas de inversión
con valor patrimonial para asimilar nuevos programas arquitectónicos y urbanísticos.
y con las instituciones académicas, culturales, y asociaciones profesionales.

Premisas conceptuales de un modelo de gestión para Conclusiones Finales


Centro Habana
El área actual de Centro Habana forma parte de lo que fue “La Habana Ex-
Como se ha enunciado anteriormente, estas áreas poseen potencialidades tramuros”, y por tanto es portadora de una memoria histórica y fuerte identidad
que le vienen dadas por su centralidad y la presencia de valores significativos, que cultural. Por su desarrollo urbanístico desde los finales del siglo XVIII, y a lo largo
se contraponen a la situación de avanzado deterioro y condiciones precarias de vida de la primera mitad del siglo XX, se convirtió en el centro más relevante de la vida
de sus habitantes. Se ha identificado como una de las causas principales la falta de cultural de la Ciudad. En esta área, a diferencia del Centro Histórico, su patrimonio
un modelo de gestión apropiado que, en lugar de obstaculizar, viabilice la instru- cultural inmaterial o intangible y el arquitectónico y urbanístico, son relevantes y se
mentación de las propuestas y sea capaz de superar el freno que ha representado la enriquecen mutuamente, lo cual aporta gran riqueza cultural a su territorio.
pragmática que considera a estas áreas carentes de valor y dependientes exclusiva- El área de Centro Habana no constituye una carga para la Ciudad, por el con-
mente de recursos externos. trario posee recursos valiosos dados por su centralidad y valores socio-culturales
La Ciudad de La Habana presenta, al igual que otras áreas centrales, concen- que permiten ser revertidos en su propio proceso de rehabilitación. Para lograrlo se
tra una problemática de gran complejidad física y social, lo que demanda que sean demandan nuevas formas de pensar la ciudad y por tanto nuevos modos de enfren-
aprovechadas al máximo las potencialidades que ofrece el modelo social cubano tar el planeamiento y la gestión de las áreas urbanas que determinan la necesidad
para su solución, dadas por el papel rector del Estado, la ausencia de intereses de de producir cambios sustantivos en las estructuras y formas de gestión actuales.
mercado, la alta calificación de sus recursos humanos y la existencia de programas La trama compacta y mixta de Centro Habana es sustentable como modelo
estatales de beneficio social. de desarrollo urbano, por su menor huella ecológica y consumo de recursos prin-
La experiencia del Centro Histórico de La Habana Vieja ha demostrado la facti- cipalmente energéticos. De igual manera la rehabilitación de la ciudad existente,
bilidad de aplicar en Centro Habana un modelo basado en la valorización de la cultura en relación a los nuevos desarrollos, es más sustentable pues aprovecha recursos y
y el desarrollo social. Estas premisas son válidas para el modelo de gestión de Centro energía invertidos y por tanto reduce la explotación de recursos nuevos. Lo es tam-
Habana y constituyen la garantía de una puesta en valor bajo el principio de preser- bién en su dimensión socio-cultural por la preservación de los valores culturales, la
vación del patrimonio cultural y de beneficio a los habitantes que residen en el área. memoria histórica e identidad acumulados por generaciones.
El carácter descentralizado y participativo, otra de las premisas, contempla
diferentes niveles de participación con mayor protagonismo de los niveles locales

474 La universidad en la solución de problemas y su impacto en el desarrollo local Gina Rey (Cuba) 475
Los resultados del estudio demuestran la factibilidad de crear distritos, corre- Referências bibliográficas
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Giorgio Piccinato (Itália)

Resumo | O destino dos centros históricos em tempos de mudança social e econômica


violenta está ligado a uma série de fatores: taxa de crescimento, novos estilos de vida, novas
prioridades sociais, as mudanças de uso da terra, novas funções, modos de desenvolvimen-
to espacial, o controle do governo. Durante a última metade do século um forte debate
cultural desenvolvido em torno da questão da proteção e revitalização dos centros históri-
cos, que envolvem conflitos entre tradição e modernidade, desenvolvimento e contenção,
temporais e limites espaciais das políticas de proteção. Dentro desse processo, os estudio-
sos e especialistas ficaram a reboque das transformações sociais e econômicas, enquanto
em outros casos, eles foram capazes de indicar novos caminhos e desafios para as políticas
de desenvolvimento sustentável. Nos anos cinquenta, as incorporadoras pressionaram para
obter leis edilícias que proporcionassem maiores densidades nas áreas centrais, a fim de
substituir o tecido existente com novos e mais altos edifícios. No início o debate foi desen-
volvido em torno da questão da inserção de arquitetura moderna em um velho tecido. Este
foi o momento em que a especulação se mostrou mais perigoso para os centros históricos
do que a guerra recente. A ideia de que o tecido urbano velho si, e não apenas os edifícios
mais importantes era necessário ser considerado e protegido ainda não fazia parte da cons-
ciência social. Isso veio depois, graças ao trabalho admirável desenvolvida principalmen-
te por associações culturais, que eram capazes de fazer popular, uma questão que parecia
confinado a um pequeno número de estudiosos. Uma vez que a ideia de que os tecidos
históricos fossem mantidos era popularmente aceita, as pessoas perceberam que este era
o começo da proteção física, mas também que a mudança de funções e composição social
iria transformar a essência da área. Hoje, as demandas de moradores, usuários e visitantes
são diferentes porque as condições históricas são diferentes. Isto sugere a necessidade de
políticas capazes de responder às mais recentes atitudes culturais e sociais, tendo em vista
que somos confrontados com uma sociedade altamente fragmentada.
Palavras-chave: centros históricos, revitalização, Italia.

1. Palestra proferida no PPGAU-UFF em maio de 2008.

480 La universidad en la solución de problemas y su impacto en el desarrollo local Giorgio Piccinato (Itália) 481
Abstract | The fate of historic centres in times of heavy social and economic change is no era todavía parte de la conciencia social. Eso vino después, gracias a la admirable labor
linked to a number of factors: rate of growth, new life styles, new social priorities, land use desarrollada principalmente por asociaciones culturales libres, que eran capaces de hacer
changes, new functions, modes of spatial development, government control. During the popular un tema que parecía confinado a un pequeño número de estudiosos. Una vez que
last half century a strong cultural debate developed around the issue of protection and popularmente fue aceptada la idea de que lós tejidos históricos debían mantenerse, gente
revitalization of historic centres, involving conflicts between tradition and modernity, de- se dio cuenta que éste era el principio de la protección física pero también que cambiar de
velopment and containment, temporal and spatial limits of protection policies. Within this funciones y composición social se iba a transformar la esencia misma de la zona. Hoy en día,
process, scholars and experts were sometime bypassed by social and economic transforma- las demandas de los residentes, usuarios y visitantes son diferentes porque las condiciones
tions, while in other cases they were able to indicate new paths and challenges for sustain- históricas son diferentes. Esto sugiere la necesidad de políticas capaces de responder a las
able development policies. In the fifties real estate developers tried very hard to get build- más recientes actitudes culturales y sociales, teniendo en cuenta que nos confrontamos a
ing codes providing higher densities in the central areas, in order to substitute the existing una sociedad muy fragmentada.
fabric with new and taller buildings. At the beginning the debate developed around the
issue of inserting modern architecture into an old pattern. This was the time when specula-
tion proved more dangerous for the historic centres than the recent war. The idea that the Introduction
old urban fabric itself, and not only the most prominent buildings, needed consideration
and protection was not yet part of social awareness. That came later, thanks to the admira- The issue of planning for the conservation of historic centres is familiar to
ble work developed mainly by free cultural associations, who were able to make popular an most European cities.
issue that seemed confined to a small number of scholars. Once the idea that historic fabrics In many parts of the world some success has been achieved in preserving the
were to be maintained was popularly accepted, people realised that this was the beginning historic building stock.
of physical protection but also that change in functions and social composition was going The most common approach intends to put together physical rehabilitation
to transform the very essence of the area. Today, demands of residents, users and visitors and economic revival on the ground that conservation policies cannot be afforded
are different because historical conditions are different. This suggests the need of policies out of some form of economic return. One could think that the two lines were devel-
able to respond to the most recent cultural and social attitudes, having in mind that we are oped in a parallel way, but the economic one was by far the most cherished, and in
confronted with a highly fragmented society. stressing it, conservation aims were often overlooked (CHOAY, 1992). Just consider
what happened to those west-European historic centres that were best taken care
Keywords. historic centres, revitalisation, Italy.
of, in terms of planning and development control. Facades were more or less accu-
Resumen | Centros históricos sob presión. Luces y sombras de la experiencia italiana rately renovated, as were the signs; building typologies thoroughly “renewed”, were
El destino de centros históricos en tiempos de gran cambio económico y social está asocia- usually turned into flats for well off singles or into professionals’ offices; streets and
do a una serie de factores: tasa de crecimiento, nuevos estilos de vida, nuevas prioridades squares, liberated from car traffic, were invaded by benches, flower pots and lamps
sociales, cambio de uso de suelo, nuevas funciones, modos de desarrollo espacial, el control more or less elegant but always at a “human scale”. In these spaces, usually over-
del gobierno. Durante el último medio siglo tuve uno fuerte debate cultural desarrollado crowded, walk visitors, lunch time employees and, most of all, shoppers. Ground
alrededor de la cuestión de la protección y revitalización de centros históricos, que implica floors are mainly turned into shops, restaurants, pizza and fast foods, and even into
conflictos entre tradición y modernidad, desarrollo y contención y límites temporales espa- large department stores, connecting astutely a number of different buildings: the
ciales de políticas de protección. Dentro de este proceso, estudiosos y expertos vivenciaran final setting is totally organised in order to create that kind of joyful atmosphere that
transformaciones sociales y económicas, mientras que en otros casos indicaran nuevos ca- seems necessary to buy, consume and pay any type of product.
minos y desafíos para las políticas de desarrollo sostenible. En los años cincuenta promoto-
The same recipe is being used everywhere: pedestrianisation, commerciali-
res inmobiliarios se esforzaran por conseguir llegar a códigos que proporcionaran mayores
sation, gentrification. Is this the result we were looking for, raising the issue of con-
densidades en las áreas centrales, para sustituir al tejido existente con edificios nuevos y
servation of the historic city? Administrators appear satisfied with it, experts and
más altos. Al principio el debate desarrollado alrededor del tema de la inserción de la arqui-
academics are busy pushing forward protective legal measures wherever they can,
tectura moderna en un viejo padrón fue el momento cuando la especulación resultó más
people find increasingly difficult to accept such reductive policies (Piccinato,
peligrosa para los centros históricos que la reciente guerra. La idea de que el tejido urbano
2003). A basic lack of communication (ending in poor identification of goals and
viejo sí mismo y no sólo los edificios más destacados, protección y consideración necesaria

482 Historic centers under pressure Giorgio Piccinato (Itália) 483


methods) among the actors is producing an artificial environment that is far away peaks. It became very difficult, also for lack planned alternatives, to resist the pros-
from what one would like to protect. pects of modern redevelopment, mainly linked to the demand of office space and
commercial uses (Piccinato, 1985).

In depth: an Italian contribution


Inserting modern buildings in old fabrics
Italy went through all this process which was accompanied by a great deal of
theorising and debating, reaching sometimes enlightening levels that could be of At the beginning, a debate rose in magazines and journals on how appropri-
general interest. ate it was to insert modern buildings in a historical context. Most of the time archi-
To revisit the Italian discourse on historic centres means primarily to identify tects and art historians were on opposed trenches(Pane, 1956; Brandi, 1963)), but
different streams nourishing it. It is no wonder that the country of the Grand Tour the split occurred also among the architects, where some tried to find a “third way”
was among the firsts to recognise officially the value of its heritage. It did happen designing contemporary architecture with some kind of historic resemblance: the
in a number of pre-unitarian States at the beginning of the 19th century, with regard case of the reconstruction of the street leading to Ponte Vecchio in Florence was the
to monuments and monumental architecture; as early as in 1913 with G. Giovan- most criticised (Bonfanti, 1973; De Martino, 1966; Marconi, 1962)). Many struggled
noni, the historic urban fabric came to be appreciated “per se” (Giovannoni, 1913), to give full recognition to modernity, but were then accused to support real estate
not only as the necessary context to the monument as in Ruskin or Pugin (Miarelli speculators who were interested in renewal and not in conservation. Attempts
Mariani, 1993). This opened the way to a deeper consideration of the relationship were made by architects like E.N.Rogers with Torre Velasca in Milan, I.Gardella with
between society and environment. The position of Giovannoni is particularly in- a house in Venice or G.Michelucci in Florence and Pistoia, all of them supported
teresting and innovative for the time. When the principles of cutting through the by architectural critic and historian B.Zevi, who tried to find an acceptable way to
historic fabric in the name of hygiene and traffic –in a word, of modernisation – identify a modernity not stranger to the values of the past (Rogers, 1958; Quaroni,
were still largely applied, he emphasised the difference between the old and the 1954)). This however did not really influenced current professional practice, which
new fabric. Cutting through the historic centres, he maintained, could not possibly remained mostly brutally speculative. At that time local administrations, theoretical-
open the way to a real modern world. Since too much would be left out anyway. ly in charge of planning and building regulations, were unable to control a growth
We should rather accept the fact that a portion of the city (the old one) remains the that went beyond expectation, for lack of a fiscal policy able to redistribute the ben-
place for that part of society which is not involved in modern values like competi- efits of development (Insolera, 1958). The matter took a definite political flavour,
tion, development at any cost, fast transformation. With Giovannoni, for the first where the left was opposed to the real estate speculation in the name of a more so-
time the historic centre is considered as a special zone, while urban dynamics would cially sustainable development while the right supported growth per se (achieving
be better applied to the outer city. He suggested to operate in the historic centre as continuing electoral success). However, most scholars started to contrast the trend,
a surgeon, taking off all what came later to congest the original fabric, in order to let on the ground that heritage could not be bypassed by such a careless idea of devel-
sun and air coming in: hygiene as the only sign of modernity (Ventura, 1995). Such opment. Some disastrous projects were stopped and some historic areas protected
position was largely unattended for at least three decades (Albertini, 1928). Isolat- thanks to the work of journalist and opinion makers, like A. Cederna, whose articles
ing monuments and cutting through the old fabric remained the norm at least until and books were essential to build a public opinion in favour of environmental pro-
world war 2. Then things started to change: demolition and reconstruction of the tection policies (Cederna, 1957; Benevolo, 1957).
old core was considered the “fascist” approach, thanks to the amount of urban re- At the origin of planners’ stands in the debate are a conference of the Na-
newal projects implemented by the fascist regime, inclined to emphasise the “new tional Institute of Planners (Inu) in Lucca 1957, and the so called Gubbio Charter
era” with public works not always sensible to the old. Actually, under the pretext of (Ancsa,1960) when a number of planners and cities agreed on a set of policy state-
post-war reconstruction, many rude interventions took place here and there, giving ments, giving rise to the new National Association of Art Historic Centres (Ancsa).
rise to a wave of speculative developments in the city cores. Under the pressure of The Charter stresses the need of links with the city’s master plan, through designat-
a process that increased enormously Italian urban population, cities central areas ing the centre as an area to be protected and rehabilitated. The emphasis was on
(what in Italy means primarily historic centres) saw its value reaching very enormous the modes of rehabilitation: through special plans defining areas non-aedificandi,

484 Historic centers under pressure Giorgio Piccinato (Itália) 485


avoiding both demolitions or stylistic additions even for modest buildings, reinforc- to cover the costs of restoration; success was however achieved mainly in the city
ing main structures, redesigning properties and adding necessary improvements, owned building stock (Cervellati, 1973; idem, 1977). A debate also developed on the
reopening old gardens and orchards, granting residents rights. A law was suggested modes of the suggested way of restoration: “stylish” reconstruction and remodelling
in order to regulate all what regarded cataloguing, financing and programming na- was accepted wherever considered necessary because of ruined or missing original
tion-wide policies for the historic centres. In those years two seminal master plans parts. The experiment owed a great deal also to what was becoming discussed in
for historic cities became a reference for the debate, especially regarding meth- a number of planners’ meetings: conservation and rehabilitation of historic centres
odology and relationship with the local communities. The authors, G. Astengo for as an instrument of social housing policies. This was rather new: traditionally public
Assisi and G. De Carlo for Urbino developed a different approach (Astengo, 1958; De housing had to be confined on peripheral land, due to high costs of central areas.
Carlo 1966; Samonà, 1962);. While G. Astengo insisted in the most accurate analysis Taking public housing in the historic cores seemed to have a double effect: helping
of spatial social and economic structure of the city, aiming to develop an actual the city in keeping its building capital in good shape and avoiding gentrification
plan to guide future urban general policies (although stressing the value of its his- through preserving the social mix in the centre.
toric core), G. De Carlo was getting more involved in building a consensus around a Typology was also the main field of research of another group of architects
comprehensive review of spatial values and development prospects. The difference working in the Venice school, led by C. Aymonino and close to A. Rossi, who tried
between the two, teaching both in the famous Architectural Institute of Venice, G. to reconsider city history through typological analysis (Aymonino, 1975). Their
Astengo more socially biased one while the other more formally inclined, became work however was finalised towards quite different proposals than Muratori’s: mod-
clear when, later in 1970, De Carlo refused to take part in the newly established ernistic architecture was encouraged to follow the basic typological lines without
School of planning of Venice. abiding any of its stylistic marks. A. Rossi (and L. Grassi) developed later a kind of
architecture that, although defined as historicism, was not necessarily linked to the
historic centres debate (Rossi, 1966). It is also through this group that typology could
Looking for new paradigms: permanent vs. temporary be taken as independent from history and from styles, like a kind of permanent cul-
tural element to be used as a design tool for the contemporary city. A stand that
At the end of ‘50s an interesting stream of thought started to appear through was far away from Cervellati’s Bologna, where typology was used for completing or
the research of G. Caniggia and S. Muratori on typologies. The assumption was adding parts of the historic fabric, preserving its form and style. And Bologna dif-
that building typology and urban morphology, not the architectural output, were fered also from the Gubbio Charter, since it supported style replicas.
the fundamental structures characterising cities. Morphology was defined as an
output of a collective culture which would stay as a permanent feature throughout
the ages, independently from style. Typology would also bring along (or would be Housing, market and the existing city
linked to) proper use of traditional building material and techniques. The thesis was
supported by a number of enlightening analysis of historic patterns, among them It is again Ancsa that gives a turn to the debate. In its Bergamo congress
Venice, Rome, Como (Muratori, 1959; Caniggia, 1976). The operational significance (Ancsa, 1973) it was developed a concept of the historic centre as being primarily
of the proposal lies in its independence from aesthetics (where there is supposedly an economic asset. Once the thesis is accepted, a number of consequences would
too much room for conflicting opinions) and cultural trends (which may change with follow: the area cannot possibly be treated as separated from the whole urban
the time) while offering a safer support to restoration or redevelopment policies. system, functions and roles of the various city sections must be all revisited and
This line became popular thanks to a largely publicised policy adopted by the city reassessed, central functions and equipment must be reorganised throughout the
of Bologna. Here a courageous architect-administrator, in charge of urban planning, city, all the building stock –historic and non historic – must be rationally reused.
PL. Cervellati, dared to defy local market forces through putting the city working di- Analyses extended to the whole country showed that heavy differences could be
rectly in the restoration process of a whole section of the historic core. The aim was noticed among historic centres, namely overcrowding in some, while abandon in
to achieve a reasonable level of conservation upgrading the building stock with- others. This was in fact linked to the unbalanced development of Italy, characterised
out incurring in the usual phenomenon of residents’ expulsion due to rent increase. by internal migrations from south to north and from the interior towards the coast,
Landowners were asked to grant controlled rent levels in exchange of public help due to uneven industrial and urban growth. Housing shortage at the nation’s level

486 Historic centers under pressure Giorgio Piccinato (Itália) 487


suggested an urban policy centred on re-use of the structures of the existing city, urban rehabilitation, both as direct intervention and orienteering of future actions.
and these concepts –re-use and existing city – became very popular among plan- The project must be defined through a wide range of analyses and the help of many
ners at that time (Carozzi, 1972). National policy moves intended to stress the role of sciences dealing with archaeology, history, environment, economics, administra-
direct public intervention on urban structures actually followed. tion, besides architecture, planning and technology. The need for adequate reform
Later, in the ‘80s, the limits of such positions became clear: re-use was a con- of administrative procedures is also stressed, since a new scale of action, from the
cept difficult to accept by local administrations with its bureaucratic procedures, single building to a significant part of the urban pattern is to be promoted.
public interventions were financially limited, housing needs were not just quantita- Other key-words were recently added to the discussion originated around
tive, private-public relationship was hardly implemented while real estate market, the historic centre but not necessarily limited to it. In fact, within the wider discus-
was overwhelmingly determining the urban scene. In front of a national ten-year sion on the effects of globalisation and its relationship with the “local identity” issue,
plan for the building sector mainly applied to expanding areas, very little was re- a number of other themes came out, although not linked to the Italian scene alone
served for public intervention in the historic centres. However, a new attitude de- (Von Droste, 1995). They basically regard the extension of the concept of history and
veloped, within which changes in the city core came to be discussed as a matter of historicto domains up to now left aside. Such an extension is not a mere intellectual
general interest. Market pressures had also changed: in a society that had largely exercise, but it reflects a social process of recognition of the value of the past within
recovered from post-war straits, they were not any more pushing towards urban our way of living. Besides, the historic core is preserving its role as the collective
renewal of central areas, but rather discovering the gains obtainable from rehabili- image of the urban identity, and these elements lead us to understand that its main
tating historic buildings that in the meantime had become highly requested. It was value is not an aesthetic one, but one of necessary testimony (Dematteis, 1996).
the combination of better economic conditions, expanding awareness of cultural We are also aware that all the physical environment incorporates some degree of
values, new life styles that forced the market to become an ally of protection and historic significance: this is true for the peripheries and the countryside, the moun-
conservation policies. tains, the rivers and the shores. Everywhere in our densely inhabited world there are
The point here is that the public sector alone has much less power in a market signs of the past that have influenced later spatial arrangements: our task is to read
society than in a planned one. The market operates for protection when the item and preserve such signs to recover that sense of identity and belonging that is lack-
becomes marketable: living in the centre of Rome, beside being pleasant for many ing so widely today. A few decades ago it would have been unthinkable to call “his-
people, is also a status symbol. The two factors combine in increasing living (and toric” what was built in the XIX and XX centuries in Europe; today so called industrial
housing) expenditures there. As a consequence, nobody would even think of de- archaeology or modern architecture of the ‘20 and the ‘30are being given protec-
molishing an ancient building, so valuable it has become, and public spaces are tion in many places, and in the latest plan of Rome even some housing schemes of
taken care of (although sometimes in a questionable way) since the overall physical the ’60 are given legal protection.
environment is the main component of that value. But, at the same time, most old
residents and traditional activities had to move towards less expensive locations in
the periphery (Gabrielli, 1993). How much tourism is needed for
heritage conservation?
Global vs. local: the identity issue The marriage between tourism and historic centres appears as a happy event
to most politicians and administrators as well as to art lovers in search of funds to
More recently, a whole set of new problems came to the forefront. Some are maintain monuments and historic sites. This is especially true under conditions of
summarised, in form of recommendations, in the New Charter of Gubbio of 1990. poor social and economic development like (but certainly not only) in east-European
Here a great importance is given to the concept of identity, as a necessary relation- countries. Here, foreign tourism looks as an easy way to raise hard currencies with-
ship between history and place to be emphasised rather then hidden. The envi- out engaging in long term investment plans. There is no doubt around the impact
ronment is therefore considered as a natural, historical and anthropological system, of tourism on historic cities. however, to understand it fully, out of any interested
where every action on one aspect must take into account the consequences on the optimism, we must monitor a number of items and outputs that risk to overthrow
whole. The project is the instrument to put together heritage conservation and the original expectations.

488 Historic centers under pressure Giorgio Piccinato (Itália) 489


Tourists by million are not learned travellers by million, but even if they were, Taking into account the stakeholders
their impact on visited cities would be such as to transform them rather heavily.
In order to understand this, one has to think to the way in which artistic sites are How are historic values being perceived by the citizen? My assumption is that
being used within the tourist ideology. Not that there is a great difference between such values can be saved only through a process of social recognition and inter-
the product that is advertised and the reality, but the product itself (that is the city) pretation. Social interaction is crucial to the process of building shared values: it is
tends to become stranger to its own citizens. While it is no question of resisting this dialogue, and eventually alliance with other groups that will help winning the battle
kind of business, because of the indisputable social and economic meaning that it for conservation. Taking into consideration people attitudes towards their own past,
has acquired, we must be aware of a number of difficulties that are connected to instead of teaching them how to think, could help in designing more effective poli-
it. Almost 50% is the foreign tourists share in Italy’s art cities. It is clear the role that cies (but this could also have the disturbing effect of showing the amount of useless
the historical environment plays in the tourist business and the chances opening research produced by some academics in search of power).
for historic cities to develop relevant economic activities in the field. Cultural tour- We must therefore recognise that if people grant the “success” of an area, it
ism and local economies should be there to meet in a happy marriage, where both is both fair and reasonable to take into account people behaviour in using urban
parties have something to earn (ICC, 1992). It is only partly so. The wedding takes spaces. This leads us to consider how many actors are playing on the stage, and sug-
place, but this happens at a very high cost. Tourists crowding art cities change its gests that, in order to devise strategies to overcome the problems, we must identify
aesthetic pattern, affecting the possibility to enjoy of its features. This is true both different goals put forward by different groups. It is also a matter of rights, since
for the inhabitants and for the tourists themselves. Moreover, it is quite clear that participation in planning can be more than a simple word, as it implies identifying
tourist trade, even if it leads growing masses to visit art cities, puts its main efforts who participate and when. If we give a close look we see that a number of different
in the number of visitors, not in their quality. Cities try to conform to the image that groups, each of them with specific goals, can be considered as having a vested inter-
was adopted by the societies originating tourists. Such images are extremely gros- est in historic centres.
sières and tend to overcome even the simplest distinctions: listening to Neapolitan First come the natives who, like most of us, are struggling to ameliorate their
songs in a Venetian gondola is not a learning attitude, nor is watching employees living conditions, in terms of housing, transport and job opportunities. The residents
wearing old Quaker dresses during working hours in Ironbridge Valley. In this way form a second group overlapping but not necessarily identifying with the first one,
cities become sheer peripheries of the spaces originating the tourist flow; they in- since they have chosen to be there: they might love the slower path of life induced
corporate and favour even their consume patterns, if we just consider the sprawl of by the absence of modern facilities and nuisances as well. As a third group come the
pizza and hamburgers joints all over the tourist universe. This type of transforma- users, people who take a direct advantage of the historic centre, like trendy shop-
tion changes radically the original relationship between the site and the traveller: it keepers or professionals. Then come the tourists: they even pay to visit the historic
is indeed the opposite of what travel is meant to be. centre and, quite often, pilgrims come, since religious tourism in historic places is a
The other point to consider is the failure of the modern city in providing at- relevant share of overall tourism. Experts and art lovers are the final group, although
tractive open spaces: the success of the historic centres is not but the mirror of such possibly the most visible of all in many circles.
poor performance. The contemporary city seems loosing the competition with the These groups are often in conflict, but they all share some right to have a say:
historic centre, at least in terms of attractiveness. But isn’t this linked to modern in many circumstances, but particularly under conditions of social change, group
land use practice? Much of this appreciation derives from the shortcomings of the objectives can be very different. Conservation vs. development is the mother of all
contemporary city; even new equipment like tourist villages or commercial plazas conflicts, but one can identify many others, like élite vs. mass tourism, modernism
often reflect, in their fake revival style, a nostalgia for a different urban past (Pic- vs. traditionalism in functional choices, etc. All these group develop their own strat-
cinato, 1985). egies, and use their power, be it electoral (the residents) or economic (the shop-
keepers and all those involved in the tourist trade). Alliances among different groups
are possible but rare. The most obvious can develop between tourists and art lovers,
although not all tourists can be considered art lovers since they are rather used to
build mass tourism: visiting Venice isn’t but a journey within a “week on the seaside”
package (Piccinato, 1998).

490 Historic centers under pressure Giorgio Piccinato (Itália) 491


Planners and planning for the historic centres Burchell, R., Mandelbaum, S., Mazza, L., eds., (1996) Explorations in Planning Theory, Rutgers,
N.J., Centre for Urban Policy Research;

Since few decades, planners seem having adopted an advisory role, rather Caniggia G.F. (1976), Strutture dello spazio antropico, Firenze, Uniedit;
than a more official (and enforcing) one (Alexander, 1992; Burchell et alii, 1996). They Carozzi C. & Rozzi R. (1972), Centri storici questione aperta, Bari, De Donato;
emphasise cognitive and political limits of planning, the changing configuration Cederna A. (1957), I vandali in casa, Torino, Einaudi;
of the general interest through the time, and planning as a learning process. They Cederna A., 1965), Mirabilia Urbis, Torino, Einaudi;
insist on offering small solutions today to great permanent problems, linking advice
Cervellati P.L. & alii (1977), La nuova cultura delle città, Milano, Mondadori;
to specific local conditions, choosing different “planning styles” for different prob-
Cervellati P.L., & Scannavini R., eds. (1973), Bologna: politica e metodologia del restauro,
lems. Terms such as incrementalism, local rationality, dialogue have become key
Bologna, Il Mulino;
words of the planning debate today. Case studies are summing up to demonstrate
Choay, F., (1992) L’allégorie du patrimoine, Seuil, Paris ;
that it is possible to use common knowledge as a tremendous planning tool. What
comes from oral history does not only help enlarging experts’ knowledge of what is De Carlo G. (1966), Urbino. La storia di una città e il piano della sua evoluzione, Padova,
Marsilio;
not documented in the archives, but goes on also spreading awareness of the issue,
changing the very terms of the problem. This requires an attitude from the planner Dematteis G. (1996), Il progetto implicito, Milano, Franco Angeli;
that is at the same time humble and curious, in order to gain support or to adapt his Gabrielli B. (1993), Il recupero della città esistente. Saggi 1968 – 1992, Milano, Etas;
early objectives. International Cultural Centre, (1992) Managing Tourism in Historic Cities, Krakow, CityProf;
In the field of conservation, this support was gained through a long process, Miarelli Mariani G. (1993), Centri storici. Note sul tema, Roma, Bonsignori Editore;
but now in many cases the market helps. Understanding and using the reasons of
Pane R. (1967), Attualità dell’ambiente storico, Firenze, La Nuova Italia;
the market (that reflects people attitude) is possibly the best way to build effective
Pane R., (1956), Città antiche ed edilizia nuova, Torino, Einaudi;
policies also in our field. Social interaction is crucial to the process of building shared
values: it is dialogue, and eventually alliance with other groups that will help win- Piccinato, G., ed., (1996) Alla ricerca del centro storico, Milano, FrancoAngeli;

ning the battle for conservation. Planning History Conference, Sidney;


If we accept this line, the main problem becomes how to involve the stake- Purchla J. ed., Central Europe. A New Dimension of Heritage, Cracow, International Cultural
holders. History of building types, stratigraphy of urban change, detailed recon- Centre;
struction of past forms they all certainly help building what we call a cultural heri- Rogers E.N. (1958), Esperienze di architettura, Torino, Einaudi;
tage and that is the reason to work on it. However, as far as they remain within an Rossi A. (1966), L’architettura delle città, Padova, Marsilio;
experts’ milieu or, at worse, are used to force decisions upon the citizens, do not
Von Droste B. & alii (1995), Cultural Lanscapes of Universal Value, Unesco, Jena Stuttgart New
contribute to conservation goals. Such kind of short circuit between experts’ knowl- York
edge and standard practices can actually result into absurd prohibitions or painful
Albertini C. (1928), Distruzioni e diradamento, La Casa, 1928;
replicas. And this is the best way to widen the gap between social life and physical
Ancsa (1960), Salvaguardia e risanamento dei centri storici. Il convegno di Gubbio,
form of the city.
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492 Historic centers under pressure Giorgio Piccinato (Itália) 493


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Segunda Transição Demográfica suscitam novos desafios ao urbanismo, particularmente o
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risanamento conservativo, Urbanistica, 35. de como planejar para a igualdade na diversidade. Este artigo explora as implicações urba-
nísticas advindas de considerar as necessidades na cidade do ponto da vista da categoria
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Vecchie città ed edilizia nuova, Firenze, CittàStudiEdizioni analítica do gênero. Entre elas, as consequências sobre o espaço para reconhecer e revalo-
rizar o trabalho de cuidado e atenção para as pessoas como um trabalho tão importante
como o emprego remunerado. Explica como isso põe em questão noções urbanísticas assu-
midas sobre os lugares de moradia, emprego, lazer e equipamento. Em específico campo, o
do transporte, o artigo propõe a introdução de um novo conceito, a mobilidade do cuidado.
Finalmente, faz referência às políticas, programas e normas legais na Europa e na Espanha
que hoje obrigam as administrações públicas a promover a igualdade de gênero em suas
políticas urbanas e de moradia.
ABSTRACT | Cities for everyone. Why gender matters.

The major structural changes in contemporary societies that have been called Second De-
mographic Transition pose new challenges to urban planning, particularly of how to plan
for equality in diversity. This article explores the urban implications arising from the con-
sideration of the needs in the city from the gender point of view. Among them, the conse-
quences on the area to recognize and revalue the careful attention of people like the work
as important as paid employment. Explains how it puts into question assumed urban no-
tions about the places of employment, housing, leisure and equipment. In particular field,
the transportation, the article proposes the introduction of a new concept of care mobility.
Finally, refers to policies, programs and legal regulations in Europe and Spain that today
require public authorities to promote gender equality in their urban and housing policies.
Resumen | Los grandes cambios estructurales en las sociedades contemporáneas que han
dado en llamarse Segunda Transición Demográfica plantean nuevos retos al urbanismo, en
particular el de cómo planificar para la igualdad en la diversidad. Este artículo explora las
implicaciones urbanísticas derivadas de considerar las necesidades en la ciudad desde el
punto de vista de la nueva categoría analítica del género. Entre ellas, las consecuencias es-
paciales de reconocer y revalorizar el trabajo de cuidado y atención a las personas como un

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trabajo tan importante como el empleo remunerado. Explica cómo ello pone en cuestión ciales y de ocio, son formas de construcción del territorio que están pensadas para
nociones urbanísticas asumidas sobre los lugares de vivienda, empleo, ocio y equipamiento. una unidad familiar compuesta por padre que tiene un empleo, madre que no lo
En un campo específico, el del transporte, el artículo propone la introducción de un nuevo tiene, e hijos, que dependen de su madre para la movilidad en transporte privado
concepto, la movilidad del cuidado. Por último, hace referencia a las políticas, programas y hasta que alcanzan la mayoría de edad.
regulaciones legales en Europa y en España que hoy obligan a las administraciones públicas Sin embargo, los datos de Eurostat dibujan unas sociedades muy diferentes.
a promover la igualdad de género en sus políticas urbanas y de vivienda. Sólo el 30% de los hogares en el norte de Europa, menos del 50% en España, corres-
ponden a familias con padre, madre e hijos. La tasa de empleo femenina en España
se ha incrementado 20 puntos en una década, pasando del 34,6% en 1997 al 54,9%
en 2008. Se acerca así a la media de los países de la Unión Europea, situada en el
59,1%. Alrededor del 40% de los hogares españoles son unipersonales o de dos per-
Los grandes cambios sociales en curso en Europa y el resto del mundo, que sonas y el número de familias monomarentales no deja de aumentar. El crecimiento
configuran lo que por su trascendencia se ha venido en llamar Segunda Transición de la población inmigrante y el envejecimiento acelerado de la población plantean
Demográfica, en paralelismo con la que tiene lugar durante la Revolución Industrial, nuevas necesidades en el espacio urbano. En el resto del mundo, los cambios demo-
plantean nuevos retos para el urbanismo. El envejecimiento, el descenso de la nata- gráficos son también muy significativos.
lidad y la inmigración, junto con la transformación de las estructuras familiares, los Todos estos cambios sociales estructurales modifican de manera fundamen-
cambios en los roles de género, los nuevos estilos de vida y la rápida modernización tal las condiciones en que la mayoría de las personas desarrollan las actividades de
de las sociedades, modifican profundamente la composición de las sociedades eu- su vida cotidiana en la ciudad. Amplifican las necesidades de cuidado y de acompa-
ropeas. Junto a ello, el nuevo modelo económico se basa en la generalización del ñamiento de aquellos que tienen autonomía personal reducida, que cada vez son
trabajo remunerado femenino, y, también, en la desaparición del trabajo de por vida más y por más tiempo, en entornos urbanos cada vez menos accesibles para perso-
para los hombres característico del fordismo. 1 nas sin plena capacidad física. Implican un uso distinto de los espacios laborales, de
Estos dos fenómenos difuminan la tradicional división sexual del trabajo y los espacios residenciales, y de los espacios donde se prestan servicios, y, también,
también generan ciclos vitales diferentes a los tradicionales. Cada vez más los indi- del transporte. Generan demandas de nuevos servicios y equipamientos, notable-
viduos, tanto hombres como mujeres, alternan períodos de actividad laboral, con mente de cuidado a menores y a mayores, y, también, nuevas demandas respecto a
otros de trabajo a tiempo parcial, de inactividad o de formación, seguidos, tras la los equipamientos tradicionales.
jubilación, por un largo tiempo de retiro. Para las mujeres, la irrupción en el mundo La Segunda Transición Demográfica, que tanto preocupa en Europa, debería
laboral significa asumir una doble carga de trabajo, al ocuparse simultáneamente del hacernos volver a pensar en un urbanismo para las personas. Lo cual no sería sino
trabajo remunerado y del trabajo no remunerado en el ámbito doméstico. La doble recuperar, actualizándolas, las preocupaciones y razones de ser que dieron lugar al
carga de trabajo, hace falta insistir, no es sin embargo nueva para muchas mujeres nacimiento mismo del urbanismo moderno como respuesta a las malsanas condi-
en todo el mundo. Amplios sectores de mujeres en todo el mundo han trabajado ciones de la vida urbana creadas por la Revolución Industrial, en el siglo XIX. El urba-
siempre fuera del hogar para mantener a sus familias. Aunque la participación de nismo entendido como una actividad profesional, pública, y política, cuyo objetivo
los hombres en las tareas del hogar ha aumentado en años reciente, las encuestas principal es incidir en la organización física del espacio urbano construido, respetan-
de uso del tiempo muestran que esta participación sigue siendo escasa y que los do la naturaleza, para mejorar la calidad de vida de las personas.
hombres todavía no han asumido una parte proporcional de los trabajos de aten-
ción a la familia.
Las estructuras urbanas de las ciudades contemporáneas responden mal a Género y urbanismo: el espacio doméstico en cuestión
estas nuevas condiciones sociales. La ciudad dispersa que estamos construyendo,
con su movilidad dependiente del vehículo privado, sus espacios residenciales se- El análisis de la ciudad considerando las necesidades específicas de distintos
parados de los lugares de actividad, de los equipamientos, y de los espacios comer- grupos sociales ha sacado a la luz estas otras desigualdades estructurales en el es-
pacio urbano, en las que la clase social no es el único factor discriminatorio, sino que
1. Una versión ligeramente diferente de este artículo se ha publicado en la revista Ciudad y Territorio: Sánchez de Ma-
dariaga, I. 2009.Vivienda, Movilidad, y Urbanismopara la Igualdad en la Diversidad:Ciudades, Género, y Dependencia.
a éste se suman otros, como el género, la edad, la etnia y la raza. Raza, clase, género
Ciudad y Territorio Estudios Territoriales, XLI (161-162), 581-98.

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y edad, y sus varios entrecruzamientos, se convierten así en importantes categorías En urbanismo y arquitectura, a los textos pioneros y ya clásicos de Dolores
para el análisis y la acción urbanística, que plantean el problema espinoso de cómo Hayden, el artículo “What Would a Non-Sexist City Be Like? Speculations on Housing,
abordar unas políticas urbanísticas para la igualdad en la diversidad. En otras pala- Urban Design and Human Work”, de 1980, y los libros The Grand Domestic Revolu-
bras, de cómo tratar la diferencia en sociedades plurales, complejas y cambiantes, a tion, de 1981, y Redesigning The American Dream; The Future of Housing, Work, and
veces incluso fragmentadas, lo cual, para remover los obstáculos estructurales ge- Family Life, de 1984, se suman las contribuciones, de Colomina, Agrest, Torre, Wright,
neradores de pautas de desigualdad en el acceso a bienes y servicios urbanos, exige McLeod, Ockman, Wigley, Rendell, Spain y Weisman, sobre arquitectura; las de
de una u otra manera tratar de manera diferente lo que es diferente (Sánchez de Andrew, Milroy, Franck, Arehntzen, Wekerle y Roberts, sobre vivienda; las de Massey,
Madariaga 2008). Wilson y MacDowell desde la geografía y la antropología; los de Greed, Eichler,
Este pensamiento de la diferencia y de la identidad cuestiona la neutralidad Little, Darke, Servon, Gilroy, Booth, Horelli, Yeandle, Birch, Saegert, Boccia, Reeves,
de la visión universalista del urbanismo moderno, que considera a las personas Davies, desde el urbanismo. En España, los de Sánchez de Madariaga, Espegel, Tobío
como seres humanos idénticos, y revaloriza el conocimiento no experto y la expe- y Muxí. 2 La contribución más reciente a esta literatura es un libro colectivo sobre las
riencia vivida de las personas de a pie, acalladas por los discursos expertos de técni- experiencias europeas en los últimos quince años en el que participan autores de
cos y políticos. Representa una corriente del urbanismo que tiene mucho en común cerca de una decena de países (Sánchez de MAdariaga y Roberts 2013).
con otras que, desde diversos puntos de vista, cuestionan hoy también el enfoque De todos estos trabajos se deduce la existencia de diferencias considerables
uniformizador, universalista, e incluso disciplinario, del urbanismo moderno, desde en el uso de la ciudad y la arquitectura entre hombres y mujeres, y, del mismo modo,
las propuestas participativas de autores como Friedman (1993) y Forester (1989), a la evidencia de que las decisiones urbanísticas y los espacios construidos no sólo no
los análisis neo-institucionistas de Healey (1997) e Innes (1999), que se refieren a la son neutros desde el punto de vista del género, sino que tienen un impacto diferen-
planificación territorial como a la práctica colaborativa de gestionar la coexistencia cial entre hombres y mujeres que muchas veces se traduce en perjuicios sistemáti-
en espacios compartidos. cos hacia estas últimas.
En particular, el estudio de la ciudad y el urbanismo desde el punto de vista Desde el punto de vista práctico, empieza a haber un cierto número de expe-
de género se inscribe en las nuevas corrientes académicas de los estudios de género, riencias que trasladan a la práctica los conceptos y propuestas planteados por estas
que, en países como Estados Unidos, se encuentran ya bien consolidadas. Más que autoras. Entre ellas se pueden destacar las del Women’s Design Service, de Londres;
un campo académico, los estudios de género constituyen un enfoque transversal, las del Ayuntamiento de Viena, que cubre un amplio abanico de tipos de interven-
una manera de aproximarse al conocimiento que ha ido transformando los funda- ciones; las canadienses sobre seguridad urbana en los Ayuntamientos de Toronto y
mentos de distintos campos académicos desde sus inicios en la década de 1960. Los Montreal; las de vivienda cooperativa, tanto de nueva construcción como de reha-
estudios de género han desvelado cómo ciertas concepciones basadas en estereo- bilitación en Canadá y en otros países como Suecia. A lo que habría que añadir las
tipos de género y en una visión androcéntrica del mundo, de fuerte arraigo en las experiencias de provisión de equipamientos para la atención de mayores y menores
estructuras mentales de las personas, permean y sustentan los presupuestos implí- desarrolladas en los países nórdicos y también en Francia como parte de las políticas
citos y a menudo inconscientes de muchos campos del conocimiento, del mismo del Estado del bienestar.
modo que los estudios sobre el poscolonialismo han puesto de manifiesto los sesgos La experiencia de Viena es posiblemente la más amplia y sistemática. Entre
eurocéntricos en muchos campos del conocimiento. Han demostrado cómo la expe- sus actuaciones destacan los tres grupos de viviendas denominados Frauen Werk-
riencia masculina, y habría que decir también blanca, y de clase media, se construye Stadt, proyectados de acuerdo a criterios definidos para responder a las necesida-
como experiencia universal, convirtiendo en norma lo que sólo es una experiencia des de género y edad (Stadt Wien 2001). Estos conjuntos residenciales presentan
particular, y en desviación de la norma los puntos de vista del resto de las personas. varias innovaciones tanto en el diseño interior de la vivienda como en el de los espa-
Los primeros campos en introducir el género como una categoría analítica cios comunes interiores y exteriores. El primero de ellos, con 359 viviendas, se inició
fundamental han sido la literatura, la sociología, la filosofía, y la psicología. Más en 1992; en este momento está en construcción un tercer proyecto dirigido espe-
tarde lo hicieron las ciencias políticas, la antropología, la historia, la medicina y el 2. En la bibliografía aparece citada una selección de estos trabajos. Junto a estos avances del conocimiento y la in-
derecho. Hoy en día el género aparece como una categoría importante de análisis vestigación, las administraciones públicas de varios países y algunas organizaciones internacionales, como Naciones
Unidas y la Comisión Europea, han publicado varios manuales de recomendaciones sobre distintos aspectos relacio-
en todos los campos que, de una u otra manera, se refieren o afectan a la vida de las nados con el género y el urbanismo. Véanse Sánchez de Madariaga 2004; Bofill, Dumenjó y Segura 1998; Minaca y
personas, es decir, en casi todos los campos del conocimiento. MAyerl 1994. También se han celebrado, en España, un buen número de talleres de participación pública con mujeres,
y convocado una cantidad no desdeñable de congresos, seminarios y jornadas de discusión.

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cíficamente a las necesidades de las personas mayores. Los proyectos Frauen Werk ciudad. Tras el éxito de estas iniciativas, el Ayuntamiento de Viena ha ampliado sus
Stadt han sido impulsados por la Oficina de Coordinación De Urbanismo y Edificación actuaciones en materia de género y urbanismo a otros ámbitos, como el diseño de
dirigidos a los Requisitos de la Vida Cotidiana y a las Necesidades Específicas de las Mu- parques, el diseño de nuevos barrios, el plan de tráfico, o la reurbanización de barrios.
jeres, un organismo situado en un alto nivel de decisión política en las estructura del Las cooperativas de viviendas canadienses construidas a partir de la década de
Ayuntamiento de Viena, y, en particular, por su directora Eva Kail 1980 se amparan en la nueva legislación de vivienda cooperativa de 1973 (Andrew y
Eva Kail propuso la construcción de un proyecto piloto pensado desde las Moore Milroy 1991). Esta legislación cambia de manera sustancial la política de vivien-
necesidades específicas de las mujeres. Se pretendía que el criterio esencial de da que, de ser una política de vivienda pública nacional, pasa a ser una política gestio-
diseño fuera las necesidades de la vida cotidiana de quienes cuidan a otras perso- nada a los niveles locales, promovida por cooperativas y organizaciones sin fines lu-
nas, además de desempeñar un empleo. Para ello se pensó que el edificio debería crativos. Esta reorientación de la política de vivienda ha sido aprovechada por grupos
ser diseñado por mujeres que conocieran esas necesidades por experiencia propia. de mujeres, muchas de ellas cabezas de familia, que son el segmento de la población
Así se convocó un concurso de arquitectura sólo para mujeres, según un pliego de canadiense con mayores problemas de acceso al mercado inmobiliario. La promoción
condiciones definido por un grupo de arquitectas jóvenes, basado en las directri- cooperativa de las viviendas por parte de las mismas mujeres que después van a vivir
ces de la Ley Vienesa de Promoción de Vivienda. El pliego de condiciones incluía en los edificios, permite diseñar las viviendas y espacios comunes de acuerdo con sus
las necesidades de la vida cotidiana de las mujeres como elemento fundamental necesidades específicas. Algunas disponen de servicio de guardería como parte del
del diseño; también daba especial importancia a las relaciones entre el interior y el proyecto. Esta flexibilidad del sistema, unida a la participación de las usuarias desde
exterior e incluía una obligación de cooperación con arquitectos paisajistas, para el inicio del proceso de promoción, ha dado lugar a una gran diversidad de solucio-
asegurar una alta calidad del espacio libre. El proyecto de conjunto ganador fue nes arquitectónicas e innovaciones tipológicas, que combinan espacios comunes de
adjudicado en 1993 a la arquitecta Franziska Ullmann. apoyo mutuo e instalaciones apropiadas para los niños, con la máxima privacidad de
En Frauen Werk Stadt las habitaciones son de tamaños similares y bastante los espacios de cada vivienda. Algunas de estas cooperativas ofrecen soluciones para
grandes, no jerarquizadas, y se pueden juntar o separar para adaptar la vivienda a mujeres solas con hijos, que necesitan apoyo mutuo para resolver las múltiples tareas
distintas y cambiantes estructuras familiares y edades de sus residentes. Las cocinas, cotidianas. Otras incluyen viviendas diseñadas para las necesidades específicas de fa-
lugar de trabajo donde se pasa mucho tiempo, ocupan una posición central, son milias de diferentes tipos -convencionales, multi-generacionales, monomarentales. El
grandes y están bien iluminadas, en lugar de ser lugares secundarios servidores de régimen cooperativo no se limita a la etapa de promoción, sino que se mantiene en el
los espacios representativos de la vivienda. El proyecto concede también impor- tiempo, de manera que la forma de tenencia cooperativa asegura la gestión común y
tancia especial a otros espacios convencionalmente considerados servidores y que participativa de los servicios y espacios comunes.
por ello muchas veces desaparecen de los proyectos en beneficio de otros. Los es- Las co-viviendas suecas se basan en la idea de realizar de manera compartida
pacios comunes, interiores y exteriores, están diseñados con criterios de seguridad, tareas que actualmente realizan las mujeres aisladamente en su casa. Estos edificios
aplicando el concepto de “ojos sociales”, vieja idea de Jane Jacobs. Muchas de las tienen una cocina común, un gran comedor, habitaciones para invitados, talleres,
unidades de vivienda disponen de algún espacio libre privado, sea pequeño patio o lavandería y sauna. Los residentes se turnan para cocinar durante la semana y para
terraza. Los espacios libres comunes están diseñados como espacios de juego adap- arreglar el espacio común. La realización conjunta de las tareas permite realizar eco-
tados a las necesidades específicas de niños y de niñas de diversas edades. Además, nomías de escala en la compra de provisiones, además de reducer los impactos am-
el conjunto proporciona espacios comunes intermedios para el cuidado y el desa- bientales, al reducir el número de electrodomésticos y el número de viajes necesarios
rrollo de contactos informales, sobre los cuales construir redes de apoyo mutuo a para realizar las compras. Estas soluciones constituyen un ejemplo de las coinciden-
nivel del vecindario, incluyendo guardería, centro de comunicaciones, ambulatorio, cias y sinergias que se dan entre, por un lado, las soluciones urbanísticas dirigidas a
lavandería y otros servicios. apoyar las necesidades de la vida cotidiana y, por otro, los objetivos propiamente
A consecuencia de su gran éxito, los criterios de diseño para las necesidades medioambientales del desarrollo sostenible. A este asunto me referiré más adelante.
de la vida cotidiana, utilizados por primera vez en estos proyectos, se han converti- Experiencias recientes cuyos antecedentes se pueden rastrear, como docu-
do en estándares de aplicación obligada para todos los proyectos de vivienda que menta Hayden (1981, 1984), en una línea ininterrumpida desde los movimientos del
reciben alguna ayuda pública en Viena, lo cual significa que son de obligado cumpli- materialismo feminista, el cooperativismo y el reformismo, que, a finales del siglo
miento para más el 90% de todas las viviendas que se construyen anualmente en la XIX, buscan trasladar al trabajo doméstico los mismos principios de eficiencia, or-

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ganización y racionalidad que se están aplicando en la producción industrial. Y que Las políticas urbanas norteamericanas de la posguerra mundial, cuyo obje-
tiene también antecedentes en algunos representantes significados de las corrien- tivo y resultado es la separación estricta entre el espacio doméstico suburbano y
tes principales del urbanismo, como Olmsted, por ejemplo, quien se refiere indistin- el espacio del empleo en la ciudad, constituyen un elemento importante de esa
tamente a las infraestructuras de transporte, a los equipamientos para el cuidado política de género. Y las doctrinas urbanísticas contribuyen a ello: también en el
de niños, a las cocinas populares como medio para reducir el trabajo doméstico (po- período de entreguerras, y, de manera generalizada después de la segunda guerra
dríamos hoy pensar en los restaurantes de menú del día), a los espacios libres para mundial, triunfa en la cultura urbanística la corriente funcionalista, que propugna la
disfrute de las personas, y a las infraestructuras para la producción económica. O separación estricta de funciones en el espacio urbano, frente a otras corrientes de
en Letchworth y Hampstead, donde Unwin y Parker diseñaron, además de los equi- la primera mitad del siglo XX que valorizaban el espacio complejo característico de
pamientos clásicos educativos y de salud, equipamientos de guardería, de cocina períodos históricos anteriores.
común y de comedor común. Incluso algunos grupos de casas, pensados para mu- Los estudios que explican la formación del territorio disperso norteamericano
jeres profesionales, resolvían de modo cooperativo y centralizado los problemas de han analizado la confluencia de intereses y la gran coalición que se forja en esos años
intendencia doméstica, en particular la comida, la limpieza y la lavandería, tarea es- para su construcción. 4 Intereses de las industrias petrolíferas y automovilísticas, que
pecialmente engorrosa en la época. compran los sistemas de transporte público de cuarenta ciudades y los desmantelan.
En dos momentos de excepción durante el siglo XX este tipo de propuestas De las entidades financieras públicas y privadas, y de las políticas fiscales federales,
fueron llevadas de manera relativamente sistemática a la práctica en países como que financian la vivienda unifamiliar suburbana, pero no la vivienda multifamiliar
Estados Unidos, Francia y el Reino Unido. Durante las dos guerras mundiales, en urbana: el redlining, la línea roja que señala los barrios populares, normalmente
estos países se crearon las infraestructuras necesarias para liberar a las mujeres de negros, en los cuales no es posible conseguir una hipoteca. De las constructoras y
las tareas domésticas, cuando su trabajo en la industria fue necesario para el esfuer- promotoras deseosas de nueva construcción. De los sindicatos, que negocian un
zo bélico, mientras los hombres se encontraban en el frente. Están documentadas salario “familiar” para los hombres, a cambio entre otras cosas de la retirada de las
por ejemplo las infraestructuras de guarderías públicas y de comedores municipales mujeres del empleo remunerado. De las industrias manufactureras, que necesitan
creadas en esos períodos en Inglaterra y en Estados Unidos, que fueron clausuradas viviendas grandes para llenar con sus productos, y una persona, Ms. Consumer, que
cuando los veteranos regresaron de la guerra y pasaron a ocupar los empleos en la dedique su tiempo a comprarlos, usar los y mantenerlos. Las mujeres se convierten
industria que temporalmente habían cubierto las mujeres. Más allá de estas expe- en el objetivo de las campañas publicitarias de la industria manufacturera. Su frus-
riencias puntuales, durante el siglo XX sólo los países escandinavos y los del este de trante experiencia vital en el suburbio será descrita en 1961 por Richard Yates en
Europa, antes de la caída del muro de Berlín, construyeron con carácter general y Revolutionary Road, y, en 1963, por Betty Friedan en La mística de la femineidad.
como parte del Estado del bienestar las infraestructuras necesarias para la atención
de personas dependientes.
Esta corriente que, desde principios del siglo XX plantea la necesidad de ade- El trabajo de cuidado y sus implicaciones espaciales
cuar las ciudades y los espacios residenciales a una organización más eficiente de las
tareas domésticas que permita a las mujeres dedicarse a otras actividades, profesiona- Paradójicamente, ya desde la misma década de 1950, las mujeres norteame-
les, laborales o intelectuales, pierde terreno en el período de entreguerras. Lo pierde ricanas se ven obligadas a incorporarse al mercado laboral para poder hacer frente
definitivamente tras la Segunda Guerra Mundial, cuando el confinamiento puede de- al alto coste de la vida suburbana, en vivienda y en transporte. Coste elevado para
cirse que forzado de las mujeres a la esfera doméstica, y su separación del trabajo un solo sueldo, incluso a pesar de la gran inversión pública en infraestructuras de
remunerado, se convierten en objetivos políticos explícitos en casi todos los países. todo tipo y en desgravaciones fiscales a la vivienda que hacen posible el suburbio.
Y ello independientemente del color político de los gobiernos, como muestran por Esa incorporación al mundo laboral se hace con enormes dificultades, porque la es-
ejemplo los discursos de Beveridge, artífice del Estado del bienestar británico. 3 tructura urbana dispersa funciona como un corsé que dificulta los movimientos de
las personas que tienen responsabilidades laborales y familiares simultáneamente.
3. A esta labor se dedicaron medidas y esfuerzos de todo tipo. Desde prohibiciones legales para gestionar el propio
Precisamente una de las principales aportaciones de los estudios de género
patrimonio, contratar, trabajar, o incluso disponer de una cuenta corriente sin permiso del marido, como las que el al urbanismo tiene que ver con la reconceptualización de la noción del trabajo y las
franquismo puso en práctica en España, hasta sutiles formas de endoctrinamiento, como el modelo de conducta fe-
menina apropiada impuesto por la censura a la industria del cine norteamericana a través del Código Hays, creado en
1934, que ha estado vigente hasta 1967. 4. Obras de referencia sobre la creación del suburbio norteamericano son Jackson, 1985, y Hayden, 2003.

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implicaciones que ello supone para el entendimiento del espacio urbano. Una recon- no lo han vivido en su experiencia personal. Así, extrapolan su experiencia personal
ceptualización que implica considerar trabajo a las tareas de atención a la familia que y la convierten en regla general. A estas mujeres su estatus social y económico les
permiten la reproducción social. El reconocimiento, revalorización y visibilización permite disponer de los recursos necesarios para contratar a otras personas que se
del trabajo no remunerado de cuidado pone en cuestión la idea androcéntrica que hagan cargo de esas tareas. Y las personas que contratan son normalmente mujeres
considera solamente como trabajo al empleo remunerado en el ámbito laboral. El de una clase social inferior o inmigrantes, que asumen esas tareas ajenas de cuidado
trabajo remunerado en el ámbito público, vinculado a la producción económica, en- como trabajo remunerado, mientras, además, se siguen haciendo cargo gratuita-
cuentra su contraparte en el trabajo no remunerado en el ámbito privado, vinculado mente de las suyas propias de cuidado en sus hogares.
a la reproducción social. Un trabajo que es indispensable para la vida y el bienestar Cuando se ve este trabajo de cuidado en su dimensión real, y se le otorga
de las personas, aunque no siempre se ha reconocido como tal trabajo, ni como algo la importancia que tiene, se pueden apreciar mejor las distintas necesidades que
importante. Que muchas veces ni se ve, que supone realizar múltiples tareas, algunas tienen hoy hombres y mujeres en el espacio urbano, y sus distintas posibilidades de
de alta cualificación, que no se puede dejar de hacer, y que no tiene vacaciones. acceder a los bienes y recursos de la ciudad. Necesidades diferenciales entre hom-
La división tradicional del trabajo supone que las mujeres se hacen cargo del bres y mujeres, la mayoría de ellas, en tanto en cuanto persista la división sexual del
trabajo reproductivo no remunerado, mientras los hombres se ocupan del trabajo trabajo doméstico, pero que se irán difuminando en la medida en que el reparto del
productivo remunerado. Ésta es obviamente una afirmación que debe ser matizada trabajo de cuidado sea más equitativo entre ambos sexos.
desde una perspectiva histórica y transcultural. Porque, más que una separación es- El lugar por excelencia del trabajo de cuidado ha sido la vivienda, donde hay
tricta entre esfera pública y esfera privada, lo que ha habido es una esfera separada, que limpiar, cocinar, ordenar, lavar, planchar, apoyar, dar afecto y cuidar. El espacio
la de la reproducción social, de la que los hombres apenas se han ocupado. Mientras de la vivienda y su entorno inmediato han constituido la esfera privada de las muje-
las mujeres han trabajado casi siempre en el ámbito propiamente económico, los res. Hasta hace poco, y todavía en algunos lugares del mundo, el espacio público les
hombres raramente se han hecho cargo de las tareas de cuidado. El rasgo caracterís- estaba vedado si no iban tapadas o acompañadas. Pero hoy en día el espacio donde
tico de la división sexual del trabajo sería más bien el hecho de que los hombres sólo se realiza el trabajo reproductivo va mucho más allá del espacio residencial, modifi-
trabajan en la esfera productiva, y prácticamente no asumen tareas en el ámbito de cando ideas asumidas sobre lo que constituyen la esfera pública y la esfera privada,
la familia, mientras las mujeres se hacen cargo del trabajo de cuidado, y también el espacio público y el espacio privado.
cada vez más trabajan en el ámbito laboral. Las sociedades modernas han sacado fuera del hogar muchas actividades
Una medida de lo que significa ese trabajo no remunerado, que permite vinculadas a la reproducción y al mantenimiento de la vida que en otros períodos
entender mejor la magnitud del conflicto que supone hoy en día compatibilizar históricos se realizaban en él. Estas actividades se han mercantilizado unas veces,
empleo y familia, es la que proporcionan varios estudios que estiman lo que sería pasando a formar parte del sector productivo, y otras veces se han convertido en
su valor económico en el mercado. En España un trabajo reciente realizado por Eze- servicios públicos5. También se han multiplicado y sofisticado, de tal manera que
quiel Uriel estimaba ese valor en un 40% del PIB, equivalente al sector industrial más el sector servicios es uno de los sectores económicos de mayor crecimiento en las
el de la construcción (Uriel 2001). Este cálculo corresponde a multiplicar el tiempo economías desarrolladas. Muchos servicios sustituyen, de manera profesionaliza-
dedicado a las tareas domésticas por el precio de la mano de obra de la ayuda do- da, pero también con empleo mayoritariamente femenino, a actividades que antes
méstica, es decir, es un cálculo conservador. Según otros estudios que asignan pre- prestaban gratuitamente las mujeres en sus casas.
cios más diversificados, recogiendo las mayores cualificaciones que requieren algu- Las personas que se ocupan del cuidado de sus familias tienen que utilizar
nas de las tareas de cuidado, como el de María Ángeles Durán, ese valor estaría por estos servicios, bien cuando acompañan a menores y mayores que no se pueden
encima del 100% del PIB (Durán 2000). valer por sí mismos, bien cuando hacen compras o gestiones, sea en empresas priva-
La escasa visiblidad y valoración que se sigue dando al trabajo asociado a das o en organismos públicos. Para acudir a los lugares donde se prestan los servicios,
la reproducción social continúa siendo la causa principal de que las personas que tienen que desplazarse utilizando los sistemas de transporte disponibles. Exceptuan-
trabajan en el campo del urbanismo, independientemente de su sexo, no sean cons- 5. A modo de ilustración, dos ejemplos de actividades que sólo recientemente han pasado al sector productivo y al
cientes de cuáles son las necesidades específicas de las mujeres en las ciudades. sector servicios, respectivamente: la confección y la medicina. Hasta no hace mucho la ropa se confeccionaba en las
casas, lo mismo que muchos otros productos de uso cotidiano también se fabricaban en ellas, como el jabón. Un buen
Muchas mujeres profesionales, especialmente las de ciertas generaciones ya mayo- número de actividades médicas tenían lugar en la vivienda, realizadas por mujeres que sabían, como los partos antes
res, no son conscientes del peso del trabajo de cuidado porque, como los hombres, de su medicalización. En este caso particular, la matrona sí es una profesional que atiende en las casas con la ayuda de
las mujeres de la familia.

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do los viajes que hacen para su cuidado personal, por ejemplo cuando las enfermas en localización, accesibilidad y precio, sobre todo de equipamientos para el cuidado
son ellas, las mujeres se desplazan a estos lugares no por diversión, sino ocupándose de mayores y menores; una baja calidad del espacio público, poco seguro y poco
de sus familiares dependientes o de tareas de la casa, es decir, trabajando. accesible para personas sin plena capacidad física.
Para las personas que tienen responsabilidades familiares, todos esos otros Factores todos ellos en los que inciden tanto las decisiones de planeamiento
lugares, además de ser equipamientos, comercios o viviendas, son lugares de tra- urbano en su faceta reguladora y de proyecto, a través de los documentos técnicos
bajo. De trabajo no remunerado cuando acuden a ellos para realizar tareas relacio- del planeamiento, como las decisiones políticas sobre como se prioriza el gasto pú-
nadas con el cuidado de otros, o con la casa en general, y de trabajo remunerado blico, que privilegian las inversiones en carreteras y ciertas grandes obras, en detri-
cuando son las empleadas. Las mujeres que además desempeñan un empleo remu- mento de las inversiones en transporte público y en pequeños equipamientos para
nerado, lo que convencionalmente se considera trabajo, tienen que acudir también la vida cotidiana.
a los espacios que el urbanismo llama de “actividad”, los lugares de empleo, sean
oficinas o industrias.
El concepto urbanístico de “actividad económica”, todavía demasiado ligado a
Un nuevo concepto: la movilidad del cuidado
una idea de la actividad económica propia del fordismo, no considera los aspectos ur-
banísticos que se derivan del hecho de que los servicios que se prestan en los equipa- En este apartado desarrollo el concepto de movilidad del cuidado, que he in-
mientos constituyen en sí mismos todo un sector de actividad económica. Un sector de troducido en un trabajo reciente sobre género y transporte realizado para el Centro
actividad que es hoy en día el principal sector económico en los países desarrollados. de Estudios y Experimentación de la Obra Pública(Sánchez de Madariaga, 2009,
Del mismo modo, mientras la visión urbanística habitual considera la vivien- 2013). Este nuevo concepto que propongo permite visibilizar el peso real de la mo-
da como un lugar de ocio y descanso, que es el modo habitual en que los hombres vilidad vinculada a la reproducción social. Permite también cualificarla y estudiarla
usan la vivienda, el punto de vista del género saca a la luz la gran cantidad de tra- en sus múltiples dimensiones. 6
bajo que las mujeres desempeñan en ella. Para las mujeres, la vivienda, más que un Para ello parto, en primer lugar, de la idea de cadena de tareas, un concepto
lugar de ocio y descanso, es un lugar de trabajo. que permite entender mejor todas estas relaciones, al vincular el tiempo con el es-
Es decir, la distinción convencional que hace el urbanismo entre lugares de pacio de la vida cotidiana (Hidding 2002). Las tareas realizadas por una madre que
residencia, de trabajo, de ocio, educación, salud, o comercio, se percibe de otra trabaja a lo largo de un día podrían ser las siguientes: llevar a sus hijas al colegio,
manera cuando miramos desde la perspectiva de género. Los lugares de ocio y los acudir al trabajo, aprovechar la hora de la comida para hacer algo de compra o algún
equipamientos son también lugares de trabajo no remunerado y de empleo remu- recado administrativo del hogar, recoger a los hijos del colegio y llevarlos a alguna
nerado para una población mayoritariamente femenina. Las viviendas son luga- actividad extra escolar o deportiva, o a jugar al parque, quizás acompañar a la abuela
res de trabajo, de trabajo no remunerado para las mujeres que viven en ellas, y de al médico, quizás hacer alguna gestión o compra si no la hizo al mediodía o durante
empleo remunerado para las empleadas, valga la redundancia, de hogar. el fin de semana, regresar a casa, preparar la cena y realizar alguna otra tarea domés-
Las restricciones que impone la estructura espacio-temporal de las ciudades tica dentro de la casa. Las tareas que no ha podido hacer durante la semana, como la
a la vida cotidiana pueden llegar a limitar seriamente las opciones vitales de las mu- colada, la compra, el orden o la limpieza, las realizará durante el fin de semana.
jeres. Si no existen los equipamientos necesarios para el cuidado de las personas Cada una de estas tareas se desarrolla en un lugar distinto de la ciudad, o es-
dependientes, o un transporte público eficaz, las mujeres tendrán limitadas sus po- labón en la cadena: lugares de residencia, centros educativos, centros sanitarios, lu-
sibilidades de acceder a un empleo remunerado, especialmente aquéllas con poca gares de empleo, centros deportivos, parques, dependencias administrativas, espa-
capacidad económica y bajo nivel educativo. De hecho, muchas mujeres se ven obli- cios comerciales. A cada uno de estos lugares tendrá que desplazarse con el menor
gadas a trabajar a tiempo parcial. Si el espacio público que separa la vivienda de la coste, la mayor comodidad y el menor tiempo posible, a las horas en que deban
estación de transporte público es inseguro, las mujeres, sobre todo las de más edad, realizarse las tareas -las propias, como el empleo, o las de atención a otros, como el
verán seriamente restringida su libertad de movimientos, especialmente al anoche- acompañamiento y el cuidado-o en que los servicios estén abiertos -administración,
cer, y por tanto sus posibilidades de acceso al empleo y al ocio. Los principales obs- comercio, sanidad, deporte.
táculos tienen que ver con las distancias entre los lugares; con una oferta residencial 6. Sánchez de Madariaga, Inés: Transporte metropolitano y grupos sociales: propuestas para una mejor planificación, 2009,
inadecuada; un transporte público insuficiente; una oferta de equipamientos escasa trabajo encargado por el Centro de Estudios y Experimentación de la Obra Pública, Cedex, del Ministerio de Fomento,
en el que introduzco el concepto de movilidad del cuidado.

506 Ciudades para todos Inés Sánchez de Madariaga (Espanha) 507


Las cadenas de tareas varían entre personas y también de un día a otro. Para de movilidad y que, como tal, se utiliza como criterio principal a la hora de planificar
una misma persona varían también a lo largo de la vida porque los ciclos vitales los sistemas de transporte.
tanto de hombres como de mujeres son cada vez más diversos. La cadena será más En el trabajo mencionado más arriba he propuesto la inclusión en las estadísti-
complicada para las mujeres que trabajan y tienen vástagos de corta edad que para cas de transporte de este nuevo concepto de movilidad del cuidado como motivo pa-
aquéllas que no los tienen, pero, en cualquier caso, son diferentes y tienen más es- raguas que engloba a todos los motivos vinculados a las tareas del hogar (compras,
labones que las realizadas por los hombres, que estadísticamente hasta ahora no acompañamiento, gestiones, cuidado a otros, etc.). Sin embargo, una cuantificación
compaginan las tareas de la vida laboral con las de la vida familiar. y descripción correcta de estos viajes no se puede obtener simplemente sumando
En las ciudades extensas contemporáneas, donde las actividades están se- los datos que aparecen hoy en las estadísticas como viajes de compras, acompaña-
paradas en el espacio como consecuencia de la práctica zonificadora que segrega miento, gestiones, etc., porque las estadísticas se recogen con una serie de sesgos
los usos, y segmentadas en el tiempo por los horarios comerciales y de atención al que minusvaloran los viajes de cuidado. Unas veces los ocultan bajo otras rúbricas
público, realizar todas estas tareas en un sólo día puede convertirse en una carrera y otras veces simplemente no recogen la información al no considerarla relevante.
contra reloj. A veces puede incluso ser imposible: dependerá de la posibilidad de Así, las estadísticas no contabilizan los viajes cortos a pie, típicamente feme-
cubrir las distancias entre lugares, con los medios de transporte existentes o asequi- ninos; no describen correctamente los viajes encadenados, también típicamente
bles, en el tiempo disponible. femeninos; el cajón de sastre “otros” es excesivamente abultado y oculta muchos
Los viajes que se hacen para comprar, acompañar a personas que no tienen viajes de cuidado; y, por último, no deslindan suficientemente los viajes personales
autonomía personal, gestionar papeles o arreglos domésticos, son tan necesarios y de ocio de los viajes vinculados a las distintas tareas domésticas, de manera que
y obligados como los viajes que las estadísticas de transporte llaman técnicamen- muchos viajes de cuidado aparecen como viajes personales o de ocio. Para deslindar
te “viajes obligados”, los viajes al lugar de empleo y a los centros de estudios. Son bien los viajes de ocio de los de cuidado, y para saber qué hay en el cajón de sastre
viajes que describen trayectorias poligonales, a diferencia de los viajes pendulares otros, es necesario hacer preguntas detalladas, precisas y no ambiguas, que reflejen
vivienda-lugar de empleo típicamente masculinos, y que, además, con frecuencia, suficientemente la variedad de los muchos motivos de viaje asociados a las múlti-
se encadenan configurando una serie de recorridos entrelazados con motivos de ples tareas domésticas y de cuidado de otras personas. Conocer bien la movilidad
viaje diferentes. del cuidado exige por tanto ciertos cambios significativos en las formas de recoger
Así, desde la perspectiva de género, el conjunto de los viajes vinculados al los datos estadísticos.
cuidado, a la reproducción social, se podrían entender como un todo. Las estadís-
ticas actuales los separan en una multitud de motivos, cada uno de ellos repre-
sentando un pequeño porcentaje del total de viajes: acompañamiento, compras, Las infraestructuras para la vida cotidiana.
gestiones, etc. Esta manera de describir la movilidad minusvalora el peso de los
viajes de cuidado, porque no permite entenderlos en su globalidad. Aparecen, por Otro concepto acuñado hace ya un tiempo, el de infraestructuras para la vida
el contrario, desmenuzados en una multitud de viajes con motivos distintos, que, cotidiana, puede ser una herramienta útil a la hora de pensar de qué manera la
vistos así por separado, no parecen tener importancia o peso relativo suficiente en acción pública urbanística a todas sus escalas y en todos sus niveles puede contri-
el total de la movilidad. buir a reducir los problemas que la estructura actual de las ciudades genera en la
Sin embargo, estos viajes forman parte de un conjunto más amplio cuyo vida cotidiana de las personas. Las nociones de nueva vida cotidiana y de infraestruc-
motivo se podría definir como de cuidado, considerado como un motivo-paraguas, turas para la vida cotidiana, acuñadas en el contexto escandinavo desde la década
suma de todos esos otros motivos específicos derivados de las distintas tareas de 1970, y desarrolladas por la red EuroFEM durante la de 1990 (Horelli y Vepsa
de atención a la familia. Los viajes cuyos motivos son las compras, las gestiones, 1994, Gilroy y Booth 1999), se refieren a las formas de vida derivadas de los
el acompañamiento, etc., aparecen hoy como pequeños porcentajes del total de nuevos roles de género y a aquellas infraestructuras físicas, económicas y sociales
viajes, bastante por debajo de los viajes laborales. Sin embargo, una visión conjunta que se pueden desarrollar al nivel del barrio, fundamentalmente, pero también de
de todos los viajes de cuidado depara algunas sorpresas. Nos permite ver el peso la región, para facilitar el desarrollo de la vida diaria.
real de la movilidad del cuidado en el total de la movilidad y su casi equiparación con La idea de nueva vida cotidiana implica una responsabilidad frente a la natu-
la movilidad del empleo, que hoy los expertos consideran como el principal motivo raleza y frente a todas las personas, dando valor y reconocimiento al trabajo que se

508 Ciudades para todos Inés Sánchez de Madariaga (Espanha) 509


realiza para cuidar a las personas y al entorno natural. La valorización del cuidado se delos han sido promovidos en distintos países desde muchos ámbitos técnicos y po-
vincula a la idea de un reparto más justo y equilibrado de roles y tareas entre muje- líticos en respuesta a los impactos medioambientales y económicos de la dispersión.
res y hombres, tanto en el ámbito productivo como en el reproductivo, sin recurrir Traducidos a planes que se están gestionando desde hace más de veinte años,
a los estereotipos sexuales. Se trata de un concepto que cuestiona algunas ideas y estos modelos se desarrollan en Europa y en Estados Unidos en respuesta a las re-
formas de hacer asumidas. En primer lugar, cuestiona la división convencional entre percusiones medioambientales y económicas de la dispersión. Aunque, en la prác-
trabajo productivo y trabajo no remunerado, cuando en su vida diaria cada vez más tica, los resultados de estas experiencias todavía parecen limitados en la medida
personas combinan ambas cosas y las viven como una totalidad. En segundo lugar, en que la dispersión urbana continúa siendo el patrón dominante de crecimiento
la práctica funcionalista de la planificación urbana y la organización sectorial de la urbano en casi todos los países. Algunos ejemplos son los desarrollados en Nueva
administración y de la gestión, que crean espacios separados en los que realizar el Jersey o Portland, en Estados Unidos; en Europa, París, Berlín, los programas VINEX-
trabajo remunerado y el trabajo de cuidado. En tercer lugar, los procesos no partici- ABC holandeses, o el Cantón de Berna.
pativos de toma de decisiones, que definen esos espacios, incluidos los domésticos, Sin embargo, la perspectiva de género enriquece notablemente estas visio-
según los puntos de vista de un pequeño grupo de la población, profesionales y nes y propuestas, al añadirles un componente que pone en primer plano el cómo
clase política, que son abrumadoramente varones. Por último, pone en cuestión la mejorar la calidad de vida de una parte de la población que es estadísticamente
falta de valor social atribuido al trabajo reproductivo, que asegura la relegación en mayoritaria: las mujeres, los menores, los mayores, y las personas con capacidad
las prioridades políticas e inversoras de las soluciones y equipamientos que podrían física reducida. Y que al hacerlo redunda en una mejora de la calidad de vida de
reducir la carga de trabajo que supone. toda la población en la medida en que todos los hombres, en más de una época de
Hablar de infraestructuras para la vida cotidiana, utilizando el término infraes- sus vidas, pertenecen a alguno de esos grupos: cuando son mayores, cuando son
tructura, con sus connotaciones positivas política y técnicamente, para referirse a menores, o cuando pierden alguna capacidad física.
todas aquellas infraestructuras, servicios y equipamientos, económicos, físicos y so- En otro lugar he propuesto de manera sistemática algunas recomendacio-
ciales, que permitan una mejor organización de la vida cotidiana, nos permite llamar nes sobre cómo el urbanismo puede contribuir a generar mejores infraestructuras
la atención hacia la importancia que éstas tienen, al equipararlas con las grandes para la vida cotidiana y un espacio urbano más adaptado a las necesidades de
infraestructuras de tipo ingenieril. Tan importante es generar las infraestructuras de género (Sánchez de Madariaga 2004). Esas recomendaciones se refieren a todos
apoyo a la producción económica, como generar las infraestructuras de apoyo a la los campos del urbanismo, tanto en sus aspectos sustantivos, como en las cuestio-
reproducción social. nes de proceso y toma de decisiones. En las cuestiones sustantivas abarcan temas
La visión, proyecto, o modelo normativo de ciudad que emerge de todo lo relacionados con la integración de usos y proximidad, transporte, espacio público
anterior no es otra que una ciudad de proximidad, de distancias cortas y mezcla de y seguridad, vivienda, actividad económica, equipamientos, comercio y ocio. En
usos, buen sistema de transporte público, suficientes equipamientos y comercio en las cuestiones de proceso, se deben aplicar al conocimiento de base, datos y es-
los barrios accesibles a pie, y garantía de acceso en transporte público a los grandes tadísticas, participación, representación en la toma de decisiones, clasificación y
equipamientos que por su propia naturaleza no pueden encontrarse en todos los calificación de suelos, inversión y fiscalidad, coordinación interinstitucional, eva-
barrios. Es un territorio que además de garantizar el acceso a los equipamientos luación, indicadores y seguimiento.
clásicos de educación, sanidad y ocio, dispone de nuevos equipamientos para las
necesidades de las personas dependientes; que concibe la vivienda y sus espacios
urbanos inmediatos desde las necesidades de cuidado y desde las necesidades de La perspectiva de género en el urbanismo, una obliga-
las personas que trabajan para proveer ese cuidado, y no tanto como lugares de ción legal
ocio; y que tiene un transporte y un espacio público seguros y de calidad, donde
las personas con capacidades físicas disminuidas y los menores puedan desplazarse Considerar la perspectiva de género en todas las políticas y planes de urbanis-
con autonomía. mo y vivienda es hoy una obligación legal, en España y en otros países europeos. Di-
Este modelo territorial tiene grandes semejanzas con los modelos de ciudad versos textos legales europeos, declaraciones políticas, programas y disposiciones,
compacta en una región policéntrica, que vinculan los nuevos crecimientos con los han amparado el desarrollo de esta legislación que no tiene todavía un grado de de-
intercambiadores de transporte público y promueven la mezcla de usos. Estos mo- sarrollo uniforme en Europa. ONU-Habitat, por su parte, hace tiempo que promueve

510 Ciudades para todos Inés Sánchez de Madariaga (Espanha) 511


la perspectiva de género en sus actuaciones y ha publicado un cuierto número de La conciliación está adquiriendo una relevancia cada vez mayor en Europa
manuales de buena práctica, el último de ellos por Dory Reeves (REEVES, 2012). por sus implicaciones económicas en la medida en que la mano de obra femenina
La Comisión Europea ha reconocido hace un tiempo que no puede haber una es indispensable para mantener los niveles de crecimiento de la economía euro-
verdadera igualdad en el mercado laboral entre hombres y mujeres mientras no pea. Las mujeres jóvenes constituyen el principal potencial de fuerza de trabajo en
haya medidas públicas de apoyo a la familia, incluyendo servicios y equipamientos, Europa. Así, las necesidades del mercado laboral entran en conflicto con las resisten-
y una mejor organización del espacio urbano. La desigualdad en el mercado labo- cias para crear las infraestructuras de apoyo que necesitan las mujeres para poder
ral se refleja en la segregación por sectores de actividad, en la segregación vertical participar plenamente en ese mercado. Esto es lo que ha entendido la Unión Euro-
dentro de un mismo sector, y en el hecho de que las mujeres cobran de media un pea en el Consejo de Lisboa de 23 y 24 de marzo de 2000, en el que se reconoció
70% del salario que cobran los hombres por igual trabajo. Las medidas de apoyo a la importancia de fomentar la igualdad de oportunidades en todos sus aspectos,
la conciliación son necesarias para garantizar el derecho de las mujeres a tener hijos incluyendo la conciliación de la vida laboral y profesional.
sin sacrificar su profesión y para garantizar su derecho a la igualdad en el mercado La Directiva 2002/73/CE relativa a la igualdad de trato en el trabajo, que desa-
laboral reconocido en el Tratado de Ámsterdam y en las Constituciones nacionales. rrolla los artículos 2 y 3 del Tratado de Ámsterdam, recoge de forma contundente el
Las instituciones europeas han sido especialmente activas en los últimos años mandato a los estados miembros, ya reflejado de manera más leve en regulaciones
en promover medidas en el ámbito de la conciliación entre empleo y familia. Estas anteriores, de aplicar de forma activa el principio de mainstreaming o transversali-
medidas tienen su apoyo jurídico en los artículos 2 y 3 del Tratado de Ámsterdam, dad en el momento de elaborar la legislación, las políticas, los programas, planes y
que consagran la igualdad de oportunidades como uno de los pilares de la Unión, proyectos públicos. El principio de mainstreaming fue establecido por la ONU en la
y por tanto el tratamiento de la diferencia y de la diversidad. Más recientemente Conferencia de Pekín de 1995, adoptado por el Consejo de Europa en 1998, y después
estas medidas también parecen venir auspiciadas por las competencias de la Unión por la Unión Europea en 1999. Implica que todo el proceso de definición, aplicación
Europea en materia de fomento de la competitividad económica. y evaluación de todas las políticas públicas, en todos los campos, y esto incluye el
Tanto el Consejo Europeo como la Comisión han generado un número con- urbanismo y la vivienda, debe considerar desde un principio los impactos diferen-
siderable de directivas, acuerdos, disposiciones y programas sobre la conciliación ciados de género y debe contemplar medidas para reducir los impactos negativos
entre vida laboral y vida familiar. Los más recientes se plantean el problema de la sobre las mujeres. Esta Directiva incluye un mandato de asignación concreta de
conciliación como un problema de gran calado que afecta a una reorganización responsabilidad a un organismo nacional para el seguimiento de la aplicación de
amplia de la sociedad, a la concepción del trabajo en el ámbito laboral, y a la pro- la igualdad de trato, que deberá tener un estatus similar a los de defensa de los
visión de servicios. La conciliación se plantea así como una oportunidad para que derechos humanos y podrá jugar un papel fundamental en materia de conciliación.
todos, hombres y mujeres puedan llevar una vida más plena, los primeros amplian- Las políticas de mainstreaming, o transversalidad de género,constituyen una
do sus oportunidades vitales al ámbito de la familia, y las segundas ampliando esas tercera generación en las políticas de igualdad entre mujeres y hombres. La primera
oportunidades en el ámbito del empleo. generación de las políticas de igualdad serían las de igualdad de oportunidades, im-
La Resolución del Consejo Europeo sobre Conciliación de 2000 afirma que pulsadas por el liberalismo político desde principios del siglo XX, que permitieron el
“tanto los hombres como las mujeres tienen derecho a compaginar la vida laboral acceso de las mujeres a la vida pública eliminando las barreras legales que lo impe-
y la vida familiar”, y que es “necesario un enfoque global e integrado de la articula- dían, por ejemplo, con la obtención del derecho al voto. La segunda generación son
ción de la vida profesional y de la vida familiar como un derecho de los hombres y las políticas de acción positiva, que desde la década de 1960 han diseñado medidas
de las mujeres, un factor de realización personal en la vida pública, social, familiar específicamente dirigidas a las mujeres para reducir sus desigualdades de partida,
y privada, un valor social de importancia y una responsabilidad de la sociedad, los ante la evidencia de que la igualdad de acceso no se traduce necesariamente en
Estados miembros y la Comunidad Europea”. Esta resolución insiste en la necesidad igualdad de resultados. Las políticas de mainstreaming no sustituyen a las anterio-
de trazar un estado de los cambios estructurales ocurridos en las últimas décadas, res, sino que las complementan. Se desarrollan cuando se comprueba que las me-
y en la necesidad de comprender la diversidad de situaciones que convergen en didas específicas desde los organismos de igualdad necesitan ser complementadas
los problemas de conciliación, respecto de las familias, el empleo, los tiempos, los desde los ámbitos sectoriales donde se toman las decisiones y se definen los pro-
servicios y el espacio urbano. Reconoce explícitamente las consecuencias negativas gramas de cada uno de los distintos ámbitos de las políticas públicas. (Mazey 2001)
de la situación actual desde el punto de vista social y económico.

512 Ciudades para todos Inés Sánchez de Madariaga (Espanha) 513


En cuanto a sus propias actuaciones, la Unión Europea adquiere el compromi- visiones sobre urbanismo en la Ley de Igualdad y de provisiones sobre igualdad en
so de aplicar el principio de mainstreaming en el Tratado de Amsterdam. Este Tratado la Ley del Suelo, ambas de 2007. En el ámbito de la legislación autonómica española,
establece también que los servicios públicos deben ser puestos en práctica con una el punto 6 de la Ley de mejora de barrios, áreas urbanas y pueblos catalana de 2004 se
consideración completa hacia la igualdad de trato. El caso de aplicación del mains- refiere a la “equidad de género en el uso del espacio urbano y de los equipamientos”.
treaming desde la UE más relevante para el Urbanismo se refiere a su inclusión en La Ley de Igualdad incluye en su capítulo II sobre Acción administrativa para la
el Reglamento de los Fondos Estructurales. La Resolución sobre Mainstreaming en los igualdad, un artículo completo, el 31, sobre Políticas urbanas, de ordenación territorial
Fondos Estructurales, de 1996, obliga a los organismos solicitantes a especificar de qué y vivienda. El texto completo de este artículo es el siguiente:
manera el proyecto para el cual se pide financiación contribuye a reducir las desigual-
1. Las políticas y planes de las Administraciones públicas en materia de
dades entre hombres y mujeres y qué efectos positivos se estiman tras su puesta en acceso a la vivienda incluirán medidas destinadas a hacer efectivo el prin-
práctica, cómo se va a producir el seguimiento y cómo se van a evaluar. De los 16 cipio de igualdad entre mujeres y hombres. Del mismo modo, las políticas
artículos del nuevo Reglamento de los Fondos Estructurales, 11 tratan sobre la igualdad urbanas y de ordenación del territorio tomarán en consideración las nece-
de oportunidades. Esta medida tiene una importancia clave si consideramos que los sidades de los distintos grupos sociales y de los diversos tipos de estruc-
Fondos Estructurales representan un alto porcentaje de los gastos de la UE. turas familiares, y favorecerán el acceso en condiciones de igualdad a los
distintos servicios e infraestructuras urbanas.
Este requisito está contribuyendo a generar una transformación relevante
en las formas de hacer de las administraciones locales y regionales, y de las empre- 2. El Gobierno, en el ámbito de sus competencias, fomentará el acceso a
sas y organizaciones sin fines lucrativos que participan en los programas europeos. la vivienda de las mujeres en situación de necesidad o en riesgo de ex-
clusión, y de las que hayan sido víctimas de la violencia de género, en
En el caso español, donde los Fondos Estructurales han significado una fuente impor-
especial cuando, en ambos casos, tengan hijos menores exclusivamente
tante de financiación de las administraciones territoriales, está contribuyendo a ex- a su cargo.
pandir una demanda de saber hacer por parte de las administraciones locales. Estos
3. Las Administraciones públicas tendrán en cuenta en el diseño de la
requisitos exigen la introducción de nuevas técnicas de definición de objetivos,
ciudad, en las políticas urbanas, en la definición y ejecución del planea-
planificación, puesta en práctica y seguimiento, que incluyen un uso sistemático miento urbanístico, la perspectiva de género, utilizando para ello, espe-
de indicadores, evaluaciones de impacto, auditorías, y una mejor base estadística. cialmente, mecanismos e instrumentos que fomenten y favorezcan la par-
Sobre todas estas nuevas técnicas la Comisión ha promovido también, dentro de sus ticipación ciudadana y la transparencia.
Programas de Acción Comunitaria sobre la Igualdad de Oportunidades para Mujeres y Ley Orgánica 3/2007, de 22 de marzo, para la igualdad efectiva de mujeres
Hombres, un cierto número de trabajos que proporcionan herramientas e indicacio- y hombres.
nes prácticas: indicadores, evaluaciones de impacto, etc.
La Agenda 21 de 1992, también de Naciones Unidas, incluye explícitamente la La Ley del Suelo, por su parte, en el título preliminar, en el artículo 2 sobre
necesidad de considerar las cuestiones de género como un elemento central de la Principio de desarrollo territorial urbano y sostenible, establece que:
sostenibilidad. Todos los documentos posteriores sobre sostenibilidad han recogi-
(…) en virtud del principio de desarrollo sostenible, las políticas a que se
do y ampliado este principio. Otros organismos internacionales como la OCDE insis-
refiere el apartado anterior deben propiciar el uso racional de los recur-
ten sobre un concepto similar de sostenibilidad. En lo que se refiere a los objetivos sos naturales armonizando los requerimientos de la economía, el empleo,
europeos en materia territorial, la Estrategia Territorial Europea, que da directrices la cohesión social, la igualdad de trato y de oportunidades entre mujeres y
a los estados, insiste en los principios de la sostenibilidad en sus tres dimensiones: hombres, la salud y la seguridad de las personas y la protección del medio
económica, social y ambiental. De manera más precisa, insiste en las ideas de diver- ambiente, contribuyendo a la prevención y reducción de la contamina-
sidad social y funcional, y, en la dimensión espacial, en el crecimiento compacto y la ción, y procurando en particular: (…) Ley 8/2007 de suelo.
accesibilidad, que son dos características fundamentales de una ciudad más sensi-
ble a las necesidades de género. Nótese la diferente redacción de estas dos leyes aprobadas casi simultánea-
En lo que se refiere a España, los principales avances han tenido lugar en la pri- mente. Mientras la Ley de Igualdad desarrolla los requisitos en materia de urbanismo
mera legislatura del gobierno de Rodríguez Zapatero, con la incorporación de pro- y vivienda en un artículo completo, la Ley del Suelo se limita a hacer breve mención
a la igualdad de trato y oportunidades entre mujeres y hombres, al hilo de una enu-

514 Ciudades para todos Inés Sánchez de Madariaga (Espanha) 515


meración variopinta de distintos principios del desarrollo sostenible. Sin embargo, Feinstein, Susan F. y Lisa J. ServonGender and planning. A reader. New Brunswick-New Jersely
esta última es la ley sectorial específica, en la que, según el principio de transversa- – Londres: Rutgers University Press, 2005.
lidad que se deriva de la regulación europea,se deben incorporar claramente los Friedan, Betty La mística de la femineidad, Madrid: Júcar, 1974 (ed. Orig 1963).
requisitos en materia de igualdad entre mujeres y hombres en lo referente al suelo Friedmann, John. Empowerment. The Politics of Alternative Development, Blackwell, Cambrid-
y el urbanismo, dentro de los límites competenciales que tiene la administración ge, Massachusetts-Oxford, 1993.
central del Estado en la materia. Forester, John. Planning in the face of Power, University of California Press, Berkeley-Los Ange-
Una mención tan somera no parece casualidad, especialmente cuando en les-Londres, 1989.
el momento de aprobar la Ley existía voluntad política por parte de las personas Gilroy, Rose y Christine Booth. “Building Infrastructure for Everyday Lives”. European Planning
con máxima responsabilidad. Es indicio de lo difícil que es todavía desarrollar el Studies, 7.3: 307-324, 1999.
mainstreaming, y de las resistencias que encuentran quienes intentan aplicarlas, Greed, Clara. Women & Planning; Creating Gendered Realities. London – New York: Routledge,
casi siempre mujeres, en ciertos campos tan masculinizados como el urbanismo y la 1994.
construcción de la ciudad, en los que además se mueven grandes cantidades eco- Hayden, Dolores. The Grand Domestic Revolution. Cambridge, Mass: MIT Pres, 1981.
nómicas. El primer paso, sin embargo, ya se ha dado, y las administraciones públicas Hayden, Dolores. “What Would a Non-Sexist City Be Like? Speculations on Housing, Urban
tienen ahora la obligación legal de promover la igualdad de género en sus políticas Design and Human Work.” Signs 5, no. 3 (1980).
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Stadt WienFrauen-Werk-Stadt, Viena: Leitstelle Alltags – un Frauengerechtes Planen und case studies, some components of answerd: put a town in image may suggest or elucidate
Bauen Stadt Wien, 2001. a political project, confuse its contours, sustain a geopolitical ambition, lead to a real adver-

Tobío, Constanza y Concha Denche. El espacio según el género. ¿Un uso diferencial? Madrid: tisement to attract future inhabitants ...
Comunidad de Madrid, Dirección General de la Mujer; 1995. Resumen | Del bueno uso (político) de la ciudad en imagens
Unión EuropeaTratado de Ámsterdam. Luxemburgo: Oficina de Publicaciones de las Comuni- ¿Por qué poner una ciudad en imagen? Esta es la cuestión principal de este articulo que
dades Europeas, 1997.
propone, a partir de algunos estudios de casos, algunos componentes de la respuesta: po-
Van de Kaa, D.J. Europe’s Second Demographic Transition, Population Bulletin, 41, 1, Washing- ner una ciudad en imagen puede suscitar o elucidar un proyecto político, confundir sus
ton: The Population Reference Bureau, 1987. contornos, sustentar una ambición geopolítica, llevar a una propaganda real para atraer
Yates, Richard. Revolutionary Road, Greenwood Press, 1961. futuros habitantes...

Imagem das cidades, cidades da imagem, cidades em imagens... a cidade


custa a se conceber fora de um laço – em cuja natureza este dossiê convida a pensar
– com a imagem. E esta relação é antiga. Pensando em Clístenes, há 2.500 anos, que
atribui à cidade de Atenas, cuja reforma espacial ele impulsiona, um projeto central:
a representação da isonomia, princípio fundador da democracia grega (Vidal-Na-
quet, Lévèque, 1964).
Meu propósito concentra-se particularmente em uma questão: por que colo-
car uma cidade em imagens? Respaldando-me em estudos que tenho a oportuni-
dade de realizar há alguns anos, gostaria de evocar aqui algumas das intenções dos
promotores desta posta em imagens, bem como as expectativas que eles depo-

518 Ciudades para todos Laurent Vidal (França) 519


sitam neste jogo semântico. Esses exemplos situam-se no Novo Mundo, cuja con- então, que a implantação das cidades francesas no Novo Mundo comece por uma
quista deu lugar a uma verdadeira “guerra das imagens” (Gruzinsk, 1990) – guerra falsificação (ver plano 1). André Thévet reincidirá, inclusive, alguns anos mais tarde:
que não cessou desde então. A nova cidade, que é a regra nas regiões que eu espe- no Le Grand Insulaire (1586), ele reedita sua ficção, mas inverte o nome: Ville Henry.
cialmente estudei (a América portuguesa e a América francesa), se presta particu- A partir de então, é uma cidade fortificada, cercada por fossas cheias de água, até
larmente ao desdobramento de um jogo de posta em imagens – antes, durante e com sentinelas montando guarda. Porém, mais uma vez, ela está só parcialmente
depois da construção. desenhada. O essencial permanece fora do contexto.
Qual poderia ser o interesse, quinze anos após o fracasso da França Antártica,
de propor um desenho como esse? Notemos em primeiro lugar que, assim como
Henryville, a primeira cidade francesa do Novo Mundo! Guillaume Le Testu, André Thévet participa da invenção do que Franck Lestringant
chama de “ficções cosmográficas” (Lestringant, 1988), que resultam da “combi-
Comecemos nossa investigação pelo que poderia ser a primeira cidade fran- nação do erro técnico e do cálculo estratégico”. Esses mapas servem assim muito
cesa do Novo Mundo... Em 1555, Nicolas Durand de Villegaignon convence o rei da mais os interesses do poder, que faz encomendas, do que àqueles dos navegado-
França da pertinência de seu projeto de instalação de uma colônia francesa na baía res. O que está em jogo é simples: a França foi excluída do Tratado de Tordesilhas
de Guanabara, conhecida há tempos pelos marinheiros franceses como um lugar – “eu gostaria de ver a cláusula do testamento de Adão que me excluiu da divisão
de troca de Pau-Brasil. No mês de novembro do mesmo ano, acompanhado de uma do mundo!” exclamava-se François I no começo do século XVI. Mas as riquezas do
centena de colonos, Villegaignon chega à baía. Ao invés de tentar se instalar no con- Novo Mundo, como esse Pau-Brasil, tão precioso para os tintureiros normandos, são
tinente, e correr o risco de ser ata- um convite permanente à ins-
cado por índios e portugueses, ele talação de uma base francesa
prefere, no começo, se estabelecer no Novo Mundo. Os comer-
em uma ilha, abrigado por um forte, ciantes de Rouen haviam in-
que ele batiza Coligny, em homena- clusive organizado uma festa
gem ao ministro da marinha, o almi- brasileira em 1550, quando
rante de Coligny. Cinco anos depois, da vinda do rei Henri II e de
Portugal expulsa definitivamente os Catherine de Médicis: mos-
Franceses da baía, onde eles terão trando ao casal real o corte
deixado poucos rastros materiais. do Pau-Brasil, seu transporte
Em 1575, André Thévet publi- pelos índios para os navios...,
ca, na Cosmographie universelle, um tratava-se de convencer o
mapa da baía do Rio. Implantada poder a se lançar oficialmente
no coração da baía, protegida por à conquista do Novo Mundo.
Plano 1 Mapa da França Antártica – André Thévet – paliçadas de madeira, e sofrendo o Plano 2 Nova Orleans, Plano de Adrien de Pauger (1724).
E é o que ainda parece indicar
1575. Abaixo, à esquerda, percebem-se as formas abalu-
artadas de Henryville.
fogo de naus portuguesas, esta é a o mapa de Thévet: o fracasso da França Antártica não deve significar o fim dos pro-
Ilha dos Franceses: sob uma ameaça jetos imperiais franceses. Por isso o contraste entre a ilha dos Franceses, sob o fogo
como essa, como ela poderia resistir? Contrastando com esse perigo ameaçador no dos canhões (símbolo do fracasso passado), e Henryville, serenamente pousada à
continente, onde quase só se percebe um dos bastiões, esta é Henryville, instalada beira do continente (símbolo de um projeto a ser realizado). Tal ficção nem choca os
ao longo do rio Cariope: nada parece capaz de atingir a segurança e a serenidade contemporâneos. Assim, para Marc Lescarbot, autor de uma História da Nova França
de sua localização. Esta cidade, tão forte e regular é, contudo, uma falsificação! No (1609): “que exista cidade ou não, eu não vejo motivo para sanção, considerando-se
entanto, é certamente a primeira cidade francesa desenhada no continente ame- o momento em que os franceses possuíram esta terra, tendo feito isto para convidar
ricano (lembremos que a primeira cidade francesa construída no Novo Mundo é
Quebec, em 1608, por Champlain) (Vidal, 1999; Augeron, Vidal, 2002). É notável,

520 Do bom uso (político) da cidade em imagens Laurent Vidal (França) 521
o Rei, no intuito de avançar neste empreendimento”. Esta invenção de Henryville que permite construir uma dezena de cabanas de tábuas por ano, e só. Mas essa
atesta do desejo de oferecer ao Príncipe uma imagem de glória imperial. imagem de cidades regulares no Novo Mundo é também consideravelmente útil
para o poder real na França. Ele está, assim, em condições de reivindicar, perante po-
tências rivais, sua capacidade de construir, nos recônditos de seu Império, cidades
Nova Orleans, jóia do urbanismo francês nas Américas de formas regulares, com belas fortificações abaluartadas. Quanto ao que acontece
na prática, evita-se dentro do possível que seja difundido. Existe assim uma estra-
Tomemos outro exemplo. Estamos no começo do século XVIII: Louis XIV e tégia em termos de imagem de marca, por parte da França, na difusão em grande
seu ministro Pontchartrain empreendem a colonização da Luisiana (Langlois – 1999, escala desses planos de cidades.
Vidal – 2005). Mas que lugar escolher para implantar uma cidade que servirá de Nova Orleans seria, sob esse ponto de vista, uma ilustração perfeita dessas
base à exploração dessa região? Depois dos fracassos de La Mobile (1700 – 1712) cidades do desejo das quais fala Ítalo Calvino (1973): o plano de Adrien de Pauger
e de Biloxi (1715 – 1720), na desembocadura do Mississipi, é finalmente escolhido demonstra o desejo de levar a cabo uma construção tão imponente, e o desejo que
um lugar mais acima. Em 1721, o engenheiro do rei Adrien de Pauger visita o local e o rei nutre de dar seu nome a uma cidade majestosa.
desenhará o plano de Nova Orleans (ver plano 2).
O que chama a atenção quando se observa esse plano (em cores), são primei-
ramente suas proporções majestosas. Localizada numa curva do Mississipi, Nova Or- Em Saint-Domingue, cidades em busca de habitantes
leans é, no papel, maior que Rochefort (a cidade-arsenal mais moderna da França),
dispõe de uma praça central um pouco maior que a Place des Vosges, em Paris. Enfim, Desçamos agora um pouco mais nas
ela é dotada de todas as características do poder real. Depois, a regularidade da trama possessões francesas, em direção a Saint-Do-
surpreende: ruas bem retas, parcelas bem desenhadas, casas bem alinhadas... mingue: a França é proprietária de uma parte
Não obstante, quando se estudam os arquivos, é estarrecedor constatar até dessa ilha, que nada mais é que a antiga His-
que ponto as informações transmitidas pelos intendentes e os engenheiros diver- paniola de Cristóvão Colombo. Aqui, temos
gem, dependendo se são descrições ou planos: por um lado, tem-se uma cidade um outro contexto: a exploração de cana-de-
podre, infestada de ratos, com canais de 50 cm de largura, enquanto os planos apre- -açúcar, com mão-de-obra escrava. Em 1720,
Plano 3 Bombardopolis (1764)
sentam um magnífico canal de aproximadamente 20 metros de largura com água embora a produção açucareira esteja em alta,
corrente, que deságua no lago Pontchartrain. Ao olhar o plano desenhado pelo en- a densidade demográfica é de um habitante por km2. Como garantir a segurança
genheiro Bonichon em 1729, no qual ele se dá ao trabalho de assinalar a localização dessa possessão em tais condições, seja com relação às ameaças externas (pirataria)
exata de cada casa, dando o nome do proprietário, numerando os lotes, e detalhan- ou internas (escravos)? Em alguns anos essa ilha se cobrirá de cidades (ao menos no
do quais são os tetos cobertos de palha, de madeira ou ainda de telhas, percebe-se papel) a tal ponto que Pierre Pinon qualificará maravilhosamente Saint-Domingue
então que as casas não estão de modo algum alinhadas às ruas. Então, o que se vê como “ilha de cidades” (Pinon, 1999).
sob a forma de um ilhote regular não aparecia dessa maneira na prática: como as Por que então projetar a construção de cidades se não há habitantes para
paliçadas não estavam construídas, as casas não estavam alinhadas às ruas. Este é ocupá-las? A resposta está contida na pergunta: para atrair habitantes. Em Saint-
um belo exemplo da diferença de percepção que podia ter o habitante de Nova Or- -Domingue, a França fundou cidades para ter suficientes “petits blancs” capazes de
leans, e o rei ou seu governo, que dispunham unicamente de mapas para apreender carregar as armas em caso de ataque da ilha por Ingleses ou Espanhóis. Diante da
a situação. impossibilidade de fortificar todos os portos, de contar com os proprietários das
Então porque Adrien de Pauger desenha um plano tão majestosamente re- plantações, bem como com os escravos, aos quais nem se pensa confiar armas, a
gular? E porque o rei difunde-o em grande escala? Várias razões podem ser citadas. defesa está nas mãos dos habitantes das cidades: comerciantes, artesãos, operários.
Isto permite, primeiro, que os engenheiros obtenham os créditos de fortificação É para aumentar esta população de “petits blancs” que cidades devem ser fundadas.
necessários à edificação das cidades: eles desenham então planos absolutamente Fundar uma cidade é, assim, um ato voluntário, ao qual nada garante que seja
magníficos, em cores, esperando, com isso, conseguir as subvenções corresponden- seguido de efeito, ou seja, que os habitantes venham populá-la. Para o Môle Saint-
tes à sua solicitação. De fato, a colônia funciona com um orçamento muito apertado, -Nicolas, fundado em 1762, Moreau de Saint-Méry indica: “Já que o solo não atraía

522 Do bom uso (político) da cidade em imagens Laurent Vidal (França) 523
os habitantes, era necessário chamá-los através de estímulos em víveres e em muni-
ções, e até acrescentar uma isenção temporária de impostos”. Por “sorte”, Acadianos,
expulsos da América do Norte, foram enviados, e cada família recebeu um lote. Se a
questão dos habitantes foi resolvida, aqui, pela chegada inesperada dos Acadianos,
esse não é exatamente o caso das outras cidades. É preciso então usar estratagemas:
esta é a razão pela qual são difundidos na França planos de algumas das cidades de
Saint-Domingue, como Bombardopolis, com suas formas tão generosas, tão regula-
res, e apresentando consideráveis vantagens fiscais. Contemplando-se esse plano,
sente-se uma cidade já bem ocupada, ressonante de vida, acolhedora. Fundada em
1764 por Du Portal, ela perecerá de ficar vazia (ver plano 3).
Assim como Bombardopolis, várias cidades são fundadas em Saint-Domin-
gue, sem saber muito bem quem vai verdadeiramente habitá-las, cidades cujos
planos esforça-se em difundir, esperando que eles suscitem vocações. São cidades
mortas, não por causa de uma ocupação, mas por ter esperado demais uma ocupa-
ção, como Torbec ou Les Cayes, ao sul de Saint-Domingue. Mas a que belos planos
elas deram origem!

Nova Mazagão, a cidade que empurra fronteiras

Estamos no Brasil, mais precisamente na Amazônia, no maciço guianês, ao Plano 4 Plano de Nova Mazagão por Domingos Sambucetti (1770).
norte do rio Amazonas. No começo de 1770, Portugal empreende a construção da
arquitetura militar italiana do Renascimento. Os 2.000 ocupantes da praça, sitiados
cidade nova de Nova Mazagão. Desta vez, são considerações de ordem geopolíti-
por 120.000 soldados mouros, não poderão resistir muito tempo: seu governante
ca que temos que colocar para explicar o contexto: em 1750, em conseqüência do
pede reforços. Boa oportunidade para a coroa, que há muitos longos anos procurava
tratado de Madrid, que redesenhava as fronteiras entre as possessões espanholas e
se desvencilhar dessa inútil fortaleza, resíduo anacrônico da época da Reconquista.
portuguesas no Novo Mundo, foi decidido do envio de comissões das fronteiras para
Esses 2.000 habitantes vão ser úteis ao Império: o rei decide tirá-los da fortaleza, para
resolver os casos litigiosos – a região das missões ao sul, e a Amazônia. Por iniciativa
enviá-los à Amazônia, a fim de povoar essa região tão estratégica. Ele pede então
do representante da coroa portuguesa, Alexandre de Gusmão, o princípio jurídico
que seja fundada, para sua instalação, um pouco acima da margem norte do Amazo-
do utipossedetis foi escolhido. Oriundo do direito romano, esse princípio permite a
nas, uma Nova Mazagão (Vidal, 2008). É um engenheiro italiano, Domingos Sambu-
atribuição de uma zona litigiosa à potência capaz de provar a existência de um es-
cetti, o encarregado de escolher o local e desenhar o plano (ver plano 4).
tabelecimento humano permanente na região. Comissões das fronteiras são então
Esse plano de Nova Mazagão foi objeto de uma difusão em grande escala. Várias
instaladas a fim de estabelecer uma cartografia precisa dessas regiões. Decidido a
cópias foram realizadas, as quais são encontradas hoje em vários depósitos de arqui-
reaver o norte da bacia do Amazonas (para ter um controle total da desembocadu-
vos, tanto em Portugal como no Brasil. Trata-se, portanto, de uma operação excepcio-
ra), bem como a região das missões, Portugal decide expulsar os Jesuítas, presentes
nal, reconhecida e reivindicada como tal pela coroa portuguesa, que faz questão de
demais nessas zonas contestadas (1760), e a implantação de uma verdadeira política
garantir sua publicidade. Ela mostra assim, junto a seus súditos e às outras potências
de urbanização das fronteiras: construção de fortes e deslocamento de população
marítimas européias, o perfeito controle de seu território colonial e sua capacidade
(incluídos os famosos açorianos).
de dominar um espaço tão hostil quanto a Amazônia. Tanto quanto o homem, se não
Por um desses felizes acasos que a história reserva às vezes, eis que no começo
mais, a imagem é um vetor da presença portuguesa na Amazônia. Nova Mazagão,
de 1769, o rei recebe uma notícia da fortaleza de Mazagão, instalada no litoral atlân-
cidade imagem, apresenta-se como uma aposta em um futuro possível.
tico do Marrocos – uma esplêndida fortaleza abaluartada, inspirada nos modelos da

524 Do bom uso (político) da cidade em imagens Laurent Vidal (França) 525
Nova Mazagão apresenta todas as características de uma cidade colonial Brasília, cidade prometida
com formas regulares, pronta para receber uma sociedade que tem que se encaixar
sem dificuldade em uma rede O século XX brasileiro oferece-
pré-definida. Mas se a nature- -nos um exemplo famoso de posta em
za colonial de Nova Mazagão imagens de uma cidade nova, e que
está amplamente demonstra- se inscreve na continuidade direta de
da, qual é a situação da relação nossa reflexão: Brasília. De fato, segun-
entre a praça forte e a cidade do seu inventor, Lúcio Costa, a cidade
colonial – laço sabiamente “nasceu do gesto primário de quem
cultivado pela manutenção do assinala um lugar ou dele toma posse:
topônimo Mazagão? A dife- dois eixos cruzando-se em ângulo
rença de forma salta aos olhos reto, ou seja, o próprio sinal da cruz Plano 6 Cruzamento dos eixos em Brasília.
de qualquer observador. Não (...). Trata-se de um ato deliberado de
é provavelmente um acaso se, Plano 5 Mapa topográfico da circunferência de Nova Mazagão posse, de um gesto de sentido ainda desbravador, nos moldes da tradição colonial.”
na mesma época, é estabele- (em uma curva do rio Mutuacá podem ser vistas as fortificações (Costa – 1991: 85-86).
abaluartadas de Nova Mazagão).
cido um “mapa topográfico da Não obstante, quando o presidente Juscelino Kubitschek se compromete,
circunferência de Nova Mazagão”. Este mapa apresenta a situação da cidade colo- durante sua campanha eleitoral, a construir Brasília, a nova capital do Brasil, é por
nial, judiciosamente colocada na curva de um dos afluentes do rio Amazonas, dando razões muito particulares. Desde as primeiras semanas da campanha, em março-
a impressão de dominar a partir do coração de uma rede aquática impressionante. -abril de 1955, sua equipe de conselheiros percebe que o candidato do PSD não
Mas, sobretudo, o autor deste mapa, cujo nome nos é infelizmente desconhecido, decola e que ele é incapaz de conseguir o apoio das massas urbanas. No mês de
desenhou a cidade aprisionada por sólidas muralhas: um campanário e casas de março, por exemplo, segundo uma pesquisa de opinião, Kubitschek recebe só 21,9
tetos bem nítidos se destacam por sobre as muralhas. A cidade retoma então, nessa % das intenções de voto dos cariocas. Nessas condições, as chances de eleição são
representação cartográfica, a forma original da praça forte marroquina (ver plano 5). bem pequenas. É então que surge a idéia de integrar ao seu programa a constru-
Contrariamente aos outros planos, este mapa não teve grande difusão – hoje ção de Brasília – e de torná-la inclusive o objetivo síntese. Uma proposta como essa
existe um único exemplar, no Rio de Janeiro. Este duplo tratamento iconográfico visava claramente encontrar um derivativo a esse impasse político. Mas Kubitschek
de Nova Mazagão e as diferentes modalidades de difusão desses planos parecem e seus conselheiros sabem o quanto essa idéia da transferência da capital brasileira,
indicar dois níveis de discurso por parte da coroa portuguesa. Em um primeiro mo- inscrita na constituição republicana desde 1891, é capaz de“canalizar as esperanças
mento, ela divulga amplamente a imagem da cidade colonial, para demonstrar seu difusas da sociedade”, de “devolver o sentido da coletividade nacional”, e, portan-
controle geopolítico da região amazônica. Depois, ela tenta difundir, de forma mais to, mais pragmaticamente, de ampliar a base eleitoral do candidato(Vidal, 2008).
restrita, a imagem da cidade fortificada, para apresentar, junto a seus súditos, o des- Depois de sua eleição em outubro de 1955, o pais vive um período de graves per-
locamento de Mazagão como o simples traslado espacial de uma fortaleza, de uma turbações políticas: é necessário até um golpe de Estado preventivo para garantir o
cidade encerrada entre suas muralhas. acesso ao poder de Juscelino Kubitschek. Desta vez, ele não podia mais recuar: para
Pouco importa, então, o fracasso da implantação de Nova Mazagão, pouco pacificar a vida social, oferecer uma saída a todas essas tensões, a construção de Bra-
importam as epidemias, a fome ou a morte, cotidiano desses habitantes deporta- sília se transforma em uma prioridade. Um concurso para o Plano Piloto é lançado,
dos: aos olhos da coroa, Nova Mazagão terá perfeitamente atingido seu objetivo. A em março de 1957, e o ganhador é Lúcio Costa.
presença cartográfica de uma cidade ao norte da bacia do Amazonas permitiu que Juscelino vai fazer de tudo para dissimular esse contexto tão específico do
a coroa portuguesa reivindicasse a posse dessa região. nascimento de Brasília: “Como nasceu Brasília? A resposta é simples. Como todas as
grandes incitativas, ela surgiu de quase nada” (Kubitschek,1975: 7-8). “Eu achei a
idéia, que tem 167 anos de idade, de transferir a capital do Brasil para o centro. E en-

contrei prontos os estudos preliminares. Até a localização definitiva. Então construí

526 Do bom uso (político) da cidade em imagens Laurent Vidal (França) 527
Brasília” (Kubitschek, 1962: 57). A história é tão bonita que dá vontade de acreditar... que o homem, é o vetor da presença francesa no Novo Mundo. De Henryville a Bom-
Esta visão descontextualizada repercute, não obstante, de maneira estranha bardopolis, passando por Nova Orleans, a cidade francesa do Novo Mundo é uma
em Lúcio Costa, que explica em seu relatório: “Eu tomo a liberdade de, no máximo, aposta em um futuro possível. Aqui reside certamente um aspecto ainda pouco
apresentar uma solução possível que eu não procurei, mas que apareceu, de certa desenvolvido na pesquisa: o papel da imagem (planos, gravuras, esboços, etc.) na
forma, por conta própria” (Costa – 1991: 85-86). A escolha de Lúcio Costa é cercada orientação e reorientação da política francesa nas Américas.
do mesmo mistério religioso que guiou a mão de Romulus para traçar o caminho Em suma, encontramos aqui a velha questão dos laços entre o político e a
de Roma. Até o geômetra romano encarregado de traçar o cardo e o decumanus, cidade, que alimentou uma abundante literatura. A cidade é, de fato, o espaço pre-
lembra Joseph Rykwert, se interessa pelos ritos de fundação, e envolve seu trabalho dileto do político, que pode, ali, se mostrar melhor do que em qualquer outro lugar,
de mistério: “Os eixos não são nunca traçados sem referência à ordem do Univer- estar sob os holofotes na fundação, desfilando, afirmando seu poder em edifícios,
so, pois os decumani são alinhados aos movimentos do sol, enquanto os cardines praças ou amplas avenidas. Na cidade, o político se apropria do tempo, e, crian-
seguem o eixo do céu” (Rykwrt – 1976: 90). Conscientemente ou não, Lúcio Costa do a ilusão de dominá-lo, se instala indefinidamente – como fora do alcance dos
inscreve o nascimento de seu plano nesse espesso mistério que contribui ainda mais sobressaltos do mundo. Na cidade, o político se apropria também da imagem, e a
para turvar o que está politicamente em jogo na construção de Brasília. prolixidade que ele mostra sobre o acessório lhe permite frequentemente mascarar
A fotografia aérea do cruzamento dos eixos de Brasília, traçados com o refor- o essencial. É exatamente para isso que serve, em suma, a posta em imagens das
ço importante de escavadeiras, no coração de uma natureza virgem, é amplamente cidades: teatralizar o político (Duvignaud – 1965; 1978; Balandier – 1980). Posto em
difundida em todo o Brasil em 1957: ela serve como reforço desse procedimento cena desse modo, o poder não mais se mostra nu perante a sociedade.
de descontextualização da fundação da nova capital do Brasil, colocando-a fora do
alcance das críticas políticas (plano 6). Essas duas linhas depuradas, que se cruzam
em ângulo reto, são uma promessa, uma expectativa: AQUI, vai nascer uma cidade. Referências bibliográfícas
Pouco importa então o sentido político do plano de urbanismo, pouco im-
Augeron (Mickaël), Vidal (Laurent) – 2002, “Du comptoir à la ville coloniale: la France et ses
porta sua simbologia autoritária: a cruz, da qual resulta um plano em grade, sendo
nouveaux mondes américains. Bilan historiographique et perspectives de recherche
uma forma geométrica potente no seio da qual o indivíduo permanece uma uni- (c.1990-2001)”, in:Debates y perspectivas. Cuadernos de historia y ciencias sociales,
dade abstrata. Para o fundador e o planificador, simples intérpretes de uma idéia Madrid, Ed. Talavera, n° 2, pp. 141-171.
genial, o nascimento misterioso da cidade constitui a própria essência da futura ca- Balandier (Georges) – 1980. Le pouvoir sur scènes, Paris, Balland.
pital: Brasília, cidade mistério, cidade mística, cidade mítica.
Calvino (Italo) – 1973. Les villes invisibles, Paris, Seuil,(ed. francesa: 1991).
Esses exemplos, nem um pouco exaustivos, fornecem várias respostas à
Costa (Lúcio) – 1991. “Relatório do plano piloto de Brasília”, in:Brasília, cidade que inventei,
nossa questão inicial. Colocar uma cidade em imagens pode servir para suscitar ou
Brasília, ArPDF, Codeplan, DePHA.
esclarecer um projeto político (Henryville, Nova Orleans) ou para confundir seus
Duvignaud (Jean) – 1965. Sociologie du théâtre, Paris, PUF.
contornos (Brasília), para apoiar uma ambição geopolítica (Nova Orleans, Nova Ma-
zagão), para fazer uma verdadeira propaganda a fim de atrair futuros habitantes Duvignaud (Jean) – 1978. Lieux et non-lieux, Paris, Gallilée.
(Bombardopolis)... Gruzinski (Serge) – 1990, La guerre des images, de Christophe Colomb à Blade Runner (1492–
O caso francês é particularmente revelador. Os planos das cidades francesas 2019), Paris, Fayard.
do Novo Mundo, bastante bem difundidos na França, dão a imagem de uma im- Kubitschek (Juscelino) – 1962. A marcha do amanhecer, São Paulo, Best Seller editora
plantação sólida e durável... Na prática, as dificuldades para ocupar as parcelas, e a Kubitschek (Juscelino) – 1975. Por que construí Brasília, Rio de Janeiro, Edições Bloch
arquitetura de madeira e junco, revelam a grande distância que separa as intenções Langlois (Gilles-Antoine) – 1999. “L’aventure urbaine de la Louisiane”, in: L. Vidal, E. d’Orgeix,
dos fatos. Mas finalmente, esta imagem não tinha uma utilidade na estratégia do dir., Les villes Françaises du Nouveau Monde : des premiers fondateurs aux ingénieurs du
poder real na França (especialmente no contexto europeu) – fazer a demonstração roi (XVIème-XVIIIème siècles), Paris, Somogy Editions d’Art.
de sua modernidade? No fundo, pode-se legitimamente levantar a questão do sen- Lestringant (Franck) – 1988, “La France Antarctique et la cartographie prémonitoire d’André
tido dessa colonização francesa no Novo Mundo: será que ela não foi sobretudo Thévet”, Mappemonde, 88/4, pp. 2-8.
uma colonização pela imagem, uma colonização imaginada? A imagem, muito mais Pinon (Pierre) – 1999. “Saint-Domingue, l’île à villes”, in: L. Vidal, E. d’Orgeix, dir., Les villes

528 Do bom uso (político) da cidade em imagens Laurent Vidal (França) 529
Françaises du Nouveau Monde : des premiers fondateurs aux ingénieurs du roi (XVIème-
XVIIIème siècles), Paris, Somogy Editions d’Art. Importância da história
para as pesquisas sobre
Rykwert (Joseph) – 1976. The idea of a Town: the anthropology of urban form in Rome, Italy, and
the Ancient World, Princeton University Press.
Vidal (Laurent) – 1999. “Fort Coligny et la France Antarctique (1555-1560)”, in: L. Vidal, E.
d’Orgeix, dir., Les villes Françaises du Nouveau Monde : des premiers fondateurs aux
ingénieurs du roi (XVIème-XVIIIème siècles), Paris, Somogy Editions d’Art, 1999, pp.
arquitetura e urbanismo
70-73
Vidal (Laurent) – 2005. “Penser les villes françaises aux Amériques”, in: Philippe Joutard,
Didier Poton, Thomas Wien, coord., Mémoires de Nouvelle France : actes du colloque Nestor Goulart Reis (Brasil)1
international, Presses Universitaires de Rennes, pp. 365-377.
Vidal (Laurent) – 2008. De Nova Lisboa a Brasília. A invenção de uma capital, Brasília, ed. da
UnB, 2008. [ed. original : 2002] Resumo | A atividade central, que dá sentido à Arquitetura e ao Urbanismo, é a de ela-

Vidal (Laurent) – 2008. Mazagão, a cidade que atravessou o Atlântico. Do Marrocos até a boração do projeto. Aprende-se estudando a lógica que presidiu a elaboração de outros
Amazônia (1769-1783), São Paulo, Martins Editora [ed. original: 2005]. projetos, no passado remoto ou no passado recente. Ou seja, aprende-se estudando sua
História. Com esse objetivo, estudamos a lógica dos programas que lhes deram origem, em
Vidal-Naquet, Pierre, Lévèque, Pierre – 1964, Clisthène l’Athénien : essai sur la représentation de
l’espace et du temps dans la pensée politique grecque, Paris, Belles Lettres. suas bases sociais. Isso nos leva a uma razão para o estudo da Arquitetura e do Urbanismo,
1 em perspectiva histórica: a importância da dimensão social do projeto. A fluidez dessas re-
lações, no tempo e no espaço, nos mostra que o conceito de cidade, por ser estático, não
dá conta dos fenômenos a serem estudados. Mais adequado é utilizarmos o conceito de ur-
banização, entendida esta como processo social. A História do Urbanismo é muito recente.
Começou a ser definida nas primeiras décadas do século XX e ganhou consistência a partir
de 1940/45. Após a Segunda Guerra Mundial, acelerado o processo de industrialização, mul-
tiplicaram-se as regiões metropolitanas; internacionalizou-se o dinamismo da urbanização.
Como consequência, ganharam importância as pesquisas sobre história do urbanismo.
Na sociedade industrial passaram a ser focalizadas não apenas as condições de apropriação,
projeto, construção, uso e transformação dos espaços das “formas do poder”, mas também,
com destaque, espaços ocupados ou a serem ocupados pelas massas anônimas. Nosso
objeto de estudo, com tal visão de conjunto, deve ser a elaboração de uma ampla história
do urbanismo da sociedade industrial. Devemos ter consciência de que se trata de espaços
de uma fase de grandes mudanças sociais e tecnológicas. Nossos estudos se organizam com
base nas evidências materiais. Se o espaço urbano é produzido socialmente, como espaço
de vida de uma sociedade, então, estudando as formas de organização do espaço produ-
zido, podemos compreender as razões da sociedade que projeta tais espaços e investe em
sua produção, que os usa e transforma, segundo seus objetivos. Podemos afirmar que, se
pretendemos estudar a urbanização como processo social e o urbanismo como forma de
projeto, para intervenção nos suportes materiais desse processo, a história é um instrumen-
to fundamental. Sem esquecer que, não sendo historiadores, nossos instrumentos privile-
giados não são os textos originais do passado mas as evidências materiais recolhidas em
Este artigo nasceu da iniciativa do professor Paulo César da Costa Gomes. Sem sua proposta de reler, a partir desta
problemática dos laços entre cidades e imagens, alguns de meus trabalhos, ele não teria emergido. Agradeço-lhe
profundamente por isso. 1. Aula de abertura do semestre no Programa de Mestrado da UFF, em 18 de agosto de 2010.

Nestor Goulart Reis (Brasil) 531


campo, em documentos próprios, raramente registrados ou estudados por outros profissio- La Historia del Urbanismo es muy reciente. Comenzó a ser definida en las primeras décadas
nais mas de fácil leitura pelos urbanistas. del siglo XX y ganó consistencia a partir de 1940/45. Después de la Segunda Guerra Mundial,
ABSTRACT | The importance of history for research on architecture and urbanism con el proceso de industrialización acelerado, se multiplicaron las regiones metropolitanas;
se internacionalizó el dinamismo de la urbanización. Como consecuencia, ganaron impor-
The main activity that gives meaning to architecture and Urbanism, is the project design.
tancia las investigaciones sobre historia del urbanismo
You learn by studying the logic behind the development of other projects in the remote
past or recent past. In other words, one learns by studying its history. To this end, we study En la sociedad industrial pasaron a ser focalizadas no solo las condiciones de apropiación,
the logic of the programs that gave rise to them, in their social bases. This leads us to a proyecto, construcción, uso y transformación de los espacios especiales, de las “formas del
reason for the study of Architecture and Urbanism in historical perspective: the importance poder”, si no también, con destaque, los espacios ocupados o a ser ocupados por las masas
of the social dimension of the project. The fluidity of these relationships, in time and space, anónimas. Nuestro objeto de estudio, con tal visión de conjunto, debe ser la elaboración de
shows that the concept of city, being static, not aware of the phenomena being studied. una amplia historia del urbanismo de la sociedad industrial. Debemos tener conciencia de
The most suitable is to use the concept of urbanization, as a social process. The Urban His- que se trata de espacios de una fase de grandes cambios sociales y tecnológicos.
tory is very recent. It began to be defined in the first decades of the twentieth century and Nuestros estudios se organizan con base en las evidencias materiales. Si el espacio urbano
gained consistency from 1940/45. After The World War II, accelerated the industrialization es producido socialmente, como espacio de vida de una sociedad, entonces, estudiando las
process, the metropolitan areas were multiplied; tthe dynamics of urbanization has been in- formas de organización del espacio producido, podemos comprender las razones de la so-
ternationalized. As a result, research on history of urbanism gained importance. In industrial ciedad que proyecta tales espacios e invierte en su producción, que los usa y los transforma,
society it began to be focused not just the conditions of appropriation, design, construc- según sus objetivos.
tion, use and processing of special spaces, “forms of power”, but also, especially, the overall Podemos afirmar que, si pretendemos estudiar la urbanización como proceso social y el
dimensions or to be occupied by the anonymous masses. Our object of study, with such urbanismo como forma de proyecto, para intervenir en los soportes materiales de ese pro-
overall view, should be to establish a broad history of town planning of industrial society. ceso, la historia es un instrumento fundamental. Sin olvidar que, al no ser historiadores,
It should be aware that these are spaces of a broader process of social and technological nuestros instrumentos privilegiados no son los textos originales del pasado, si no las evi-
change. Our studies are organized on the basis of material evidence. If the urban space is so- dencias materiales recogidas en campo, en documentos propios, raramente registrados o
cially produced, as living space of a society, then, studying the forms of organization of the estudiados por otros profesionales pero de fácil lectura para los urbanistas.
produced space, it is possible to understand the reasons for the company that designs such
spaces and invests in its production, which uses and transforms, according its own goals. It
can be state that if we are to study the urbanization as a social process and urbanism as a Sobre as razões
way of design, material support for intervention in this process, history is a fundamental in-
strument. Without forgetting that, not being historians, our privileged instruments are not A atividade central, que dá sentido à Arquitetura e ao Urbanismo, é a de ela-
the original texts of the past but the physical evidence collected in the field, in the relevant boração do projeto. Em sentido mais específico, é desígnio, é decisão. É decisão de
documents, rarely recorded or studied by other professional but easy to read by planners. poder, decisão de investimento, de organização do trabalho, de apropriação, de uso
Resumen | La actividad central, que da sentido a la Arquitectura y al Urbanismo, es la de e transformação.
elaboración del proyecto. Se aprende estudiando la lógica que rigió la elaboración de otros Os conhecimentos para a prática do projeto são em parte técnicos, em parte
proyectos, ya sea en el pasado remoto o reciente. Es decir, se aprende estudiando su Histo- práticos. São arte. Aprende-se fazendo. Aprende-se estudando a lógica que presidiu
ria. Con este objetivo, estudiamos la lógica de los programas que les dieron origen, en sus a elaboração de outros projetos, no passado remoto ou no passado recente. Ou seja,
bases sociales. Esto nos da un fundamento para el estudio de la Arquitectura y del Urbanis- aprende-se também estudando sua História.
mo en su perspectiva histórica: la importancia de la dimensión social del proyecto. La flui- Em um texto elaborado para um seminário sobre a importância da História
dez de esas relaciones, en el tiempo y en el espacio, nos muestra que el concepto de ciudad, na formação do arquiteto, realizado na FAU-USP há cerca de 15 anos, procurávamos
por ser estático, no da cuenta de los fenómenos a ser estudiados. Lo más adecuado es que mostrar como essa linha de raciocínio se explicita, no caso dos projetos de restauro.
utilicemos el concepto de urbanización, entendida como proceso social. Partimos da obra, em seu estado atual, já usada e transformada, para chegar ao
projeto original, com sua lógica própria, que deve ser recuperada e preservada. Na

532 Importância da história para as pesquisas sobre arquitetura e urbanismo Nestor Goulart Reis (Brasil) 533
ocasião, chamávamos esse método de estudo de “Tradição do Patrimônio” pois o Não menos importante, os chamados processos sociais básicos da socieda-
aprendemos estudando os trabalhos do IPHAN. de contemporânea, como estudados por sociólogos (concentração, racionalização,
O estudo de História da Arquitetura e de História do Urbanismo é portan- padronização, mecanização, industrialização, massificação, urbanização) dizem res-
to o estudo das lógicas de seus projetos, da lógica dos desígnios que lhes deram peito, diretamente, a nosso campo de estudo.
existência e sentido. Com esse objetivo, estamos estudando também a lógica dos
programas que lhes deram origem, ou seja, suas bases sociais.
Essa observação nos leva a uma segunda razão para o estudo da Arquitetu- Sobre a origem desses estudos
ra e do Urbanismo, em perspectiva histórica: a importância da dimensão social do
projeto urbanístico. A História da Arquitetura, como área do conhecimento, ganhou forma
O projeto arquitetônico é quase sempre o resultado de decisões de investi- apenas no século XIX, desentranhando-se do campo da Teoria da Arquitetura, que
mento e uso de umas poucas pessoas e, de outro lado, de um arquiteto ou de um se apresentava até então com a forma de tratados. Com a diversificação dos recur-
profissional que faz as vezes de arquiteto. No caso do projeto urbanístico e, mais sos técnicos, com os conhecimentos trazidos pelas pesquisas arqueológicas e com
especialmente, no caso das decisões sobre diretrizes regulatórias de planejamento a documentação iconográfica dos espaços de outros povos, com a complexidade
urbano, as decisões de autores de projetos e planos envolvem processos políticos. crescente dos novos programas, o que, até então, se resolvia pelo receituário das
Mesmo sob ditaduras têm caráter coletivo. tradições, lentamente transformadas, passa a ser uma questão em aberto. Conse-
Pelo lado dos futuros usuários dos espaços a serem produzidos, o problema qüentemente, tornou-se necessário ampliar os conhecimentos sobre a história das
é mais complexo. Os lotes e edifícios a serem construídos podem ser milhares, decisões do passado, para fundamentar as decisões sobre o presente e o futuro.
com diferentes arquitetos e diferentes clientes. Os espaços de uso público aco- O percurso da História do Urbanismo é ainda mais recente. Como veremos
lherão multidões. Das decisões pessoais desses milhares de usuários dependerá o adiante, começa a se definir nas primeiras décadas do século XX e ganha consistên-
resultado: que se estenderá ao longo do tempo das obras (geralmente por déca- cia somente a partir de 1940/45. Trata-se portanto de campo de conhecimento em
das), que jamais serão inteiramente coerentes com o projeto. Este, muitas vezes, formação. A consolidação será feita pelas novas gerações de pesquisadores, que
jamais será executado. estão se formando, como nesta Universidade.
A fluidez dessas relações, no tempo e no espaço, nos mostra que o conceito Preliminarmente, é bom lembrar que, para compreender um fato ou um pro-
de cidade, por ser estático, não dá conta dos fenômenos a serem estudados. Alguns cesso, às vezes é tão importante observar o não ser quanto estudar seu modo de ser;
tentam flexibilizar, dizendo que as cidades são organismos, que são vivas. Não são estudar a ausência, tanto quanto a presença.
organismos: são formas de organização social. Não são vivas: são espaços construí- Até o século XVIII, os conhecimentos sobre arquitetura estavam baseados
dos. São vividas por seus usuários. E estes vivem transformações sociais permanen- nas análises de exemplos das culturas grega e romana. As atenções estavam volta-
tes. No caso, o mais adequado é utilizarmos o conceito de urbanização, entendida das exclusivamente para espaços de caráter monumental, do poder central e dos
como processo social. grupos sociais ao seu redor. Era uma história mas era também um receituário: um
Processo é o transcorrer de um fenômeno; seu estudo inclui a variável tempo. conjunto de regras, de padrões aparentemente fixos. Eram símbolos do poder, pela
Dificilmente podemos estudar processos dessa magnitude, sem estabelecer uma monumentalidade dos edifícios: palácios, templos, mercados, teatros. Quando o ur-
perspectiva histórica. Por mais que alguns conservadores tentem pensar as socie- banismo era mencionado, era de modo semelhante: fortificações, traçado geral das
dades como estáticas, elas estão em transformação permanente, como seus espa- cidades, estabelecendo uma ordem, também como um conjunto de regras, para
ços de vida. O grande desafio é compreender as diferentes escalas, tempos e lógicas fundar e para defender. Mas os bairros populares das principais cidades eram quase
das mudanças. sempre labirintos. Eram deixados à própria sorte. A geometrização, quando existia,
Uma terceira razão para o estudo do Urbanismo e da Arquitetura em perspec- era para reforçar a ordem social.
tiva histórica é que estamos vivendo uma das épocas de mais intensas mudanças Era um conjunto de regras estáticas para um poder estático. Era uma ordem
tecnológicas e sociais da história da humanidade: a da sociedade industrial. Esses social quase estática. Mais do que isso, os textos disponíveis eram os dos tratados.
processos só podem ser compreendidos, em sua magnitude, em uma ampla pers- Eram conjuntos de regras mas não eram história. Não focalizavam as origens e mu-
pectiva temporal. danças. Não havia problemas; havia apenas soluções. Eram regras para a ação do

534 Importância da história para as pesquisas sobre arquitetura e urbanismo Nestor Goulart Reis (Brasil) 535
Estado. Era um repertorio adequado para as Aulas de Arquitetura Militar, que for- O outro problema era sanitário. O aumento rápido da população não foi
mavam engenheiros militares. Eram regras para o controle do território, para uma acompanhado por medidas de ordem sanitária. As cidades tornaram-se extrema-
ordem de arquitetura e para uma ordem do Estado. mente insalubres. As primeiras reformas foram realizadas em Londres a partir de
Na Europa, ao lado de tanta estabilidade, havia algumas mudanças. Nos sé- 1842; em Paris, pouco depois, a partir de 1850. Em ambos os casos, as reformas ur-
culos XVI a XVIII havia uma relativa autonomia das principais cidades europeias, banas foram acompanhadas da organização de grandes exposições industriais. Era
apoiadas pelo poder central dos estados nacionais nascentes. Nesses espaços, o início de mudanças em termos de padrões de projeto, visando sua adequação à
novos grupos sociais urbanos surgiam, ligados ao comércio internacional e aos ser- sociedade industrial.
viços, inclusive à nobreza togada. Para alojá-los, foram sendo elaborados projetos Na época, as mudanças de caráter sanitário (e, no caso de Paris, de padrões
de praças e ruas especiais. Eram conjuntos urbanísticos, com novas formas de tecido urbanísticos) foram acompanhadas por algumas contribuições teóricas. A principal
urbano. Nos séculos XVII e XVIII começaram a surgir ideias sobre “civilização”, como delas talvez tenha sido a de Cerdá, em Barcelona, que era uma teoria para o projeto
ordem urbana. Eram propostas para disciplinamento da aparência das casas comuns urbano. Na Inglaterra, o grupo de Ruskin e William Morris procurava uma adequação
e das ruas. Surgia a figura do chefe de polícia, isto é, do indivíduo encarregado de das artes aos novos tempos. Em busca de novos caminhos, Morris tornou-se um
estabelecer uma disciplina da polis, que em si mesma seria a condição de civilização, líder socialista. Mas (o que é importante para nós), não havia uma história do urba-
de ordem. Mas esta não é para nós uma questão central. É apenas referência sobre nismo, nem uma história da arquitetura como campo de conhecimento, com uma
precedentes, para tornar mais claras as mudanças posteriores. visão temporal mais ampla.
Para compreender essa questão, podemos delinear uma determinada histó-
ria: a da construção da Arquitetura e do Urbanismo, como campo de conhecimento A segunda onda – 1880/1918
e pesquisa.
O período final do século XIX e das duas primeiras décadas do século XX foi
marcado pela concentração econômica no setor industrial. Foi a época do surgi-
Sobre a sociedade industrial mento do capital monopolista. Suas características eram: concentração industrial,
A primeira onda – 1770/1880 produção em larga escala e início do consumo de massa. No caso, consumo para as
classes médias, com amplas inovações tecnológicas. No plano urbano, foi a época
A grande questão: a questão urbana. da formação das primeiras regiões metropolitanas e da primeira internacionaliza-
A partir do fim do século XVIII, a indústria cresce e se torna o mais importante ção da produção industrial. Nesse período, o grande problema político começou
setor econômico na Inglaterra e na França. A seguir, o processo se repete, em outros a assumir aspectos mais claros. As massas tornaram-se a maioria da população das
países. Com a implantação das ferrovias e o uso do carvão mineral, como combustí- grandes cidades, organizando-se em partidos políticos.
vel, a indústria ganha autonomia e desloca-se para as cidades, com seus trabalhado- A questão urbana já não era uma inferência ou um dado do pensamento
res. Como consequência, dá origem às grandes massas urbanas. geral. Era a questão central. As soluções propostas incluíam reformas sociais e me-
A questão política central era: como controlar essas massas? Ou, dizendo de lhoria nas condições de trabalho. Passava-se de 16 para 12 e depois 8 horas de tra-
outro modo: como o poder central poderia controlar essas massas? No caso, tratava- balho por dia. Proibia-se o trabalho de crianças.
-se da integração social urbana das grandes massas, até pouco antes mantidas no Nessa época surgiriam as teorias sobre a necessidade de uma cultura es-
regime de servidão, nas áreas rurais. O fantasma era o de uma nova invasão de bár- pecífica para a sociedade industrial, em termos de arquitetura e urbanismo. Essas
baros. Como integrá-los socialmente sem destruir a “Ordem”, a civilização, como era mudanças estiveram presentes na Inglaterra, na Holanda, na França, na Itália e em
conhecida até então? outros países. Na Alemanha deram origem a uma entidade específica para estudo
A partir da queda do Império Romano, as maiores cidades do mundo estavam e elaboração de projetos nas áreas de arquitetura e urbanismo, como de desenho
no Oriente. Mas, cerca de 1830, Londres ultrapassou Pequim em número de habitan- industrial: a Deutsche Werkbund. Em termos práticos de urbanismo, foram realiza-
tes, sendo seguida por Paris, por volta de 1850. As principais metrópoles europeias das apenas algumas reformas em bairros operários e a elaboração de projetos para
tornavam-se os grandes centros do comércio mundial. alguns novos bairros, em cidades como Amsterdã, controladas por partidos políti-
cos de caráter progressista. Da mesma época são os primeiros projetos das cidades-

536 Importância da história para as pesquisas sobre arquitetura e urbanismo Nestor Goulart Reis (Brasil) 537
-jardim (que terminaram por servir mais a moradores de classes médias) e os de vilas rodoviarismo financiado e a eletrificação, acelerando o processo de industrialização,
operárias. o mesmo ocorrendo com a urbanização. Multiplicaram-se as regiões metropolita-
De teoria, havia pouco. De história, menos ainda. nas, internacionalizou-se o dinamismo do processo de urbanização e iniciou-se um
processo de saída das unidades fabris das cidades.
A terceira onda – 1918/1945/1960

Essa foi a época dos grandes planos de intervenção do Estado.


Sobre a lenta consciência da questão
Nesse quadro político sim, surgem várias teorias sociais. As da extrema di-
Nessa época, com a lenta e crescente consciência sobre a dimensão das mu-
reita, visando concentrar o poder e reprimir as massas, cooptá-las ou manipulá-las
danças, ganham importância os estudos sobre história do urbanismo, visando esta-
com mitos. Para os tradicionalistas, buscando uma forma de rejeição, um bloqueio,
belecer um corpo consolidado de conhecimento sobre a matéria.
uma repressão violenta, como no caso de Portugal e Espanha. As tecnocráticas pro-
Sigfried Gideon publicou, em 1941, a primeira edição de “Space, Time and
curavam utilizar a força do Estado para atingir as mudanças no plano da inovação
Architecture”, na qual incluía, além de uma história da arquitetura a partir do Re-
tecnológica, sem mudanças sociais significativas, como o fascismo e o nazismo. Com
nascimento e da arquitetura moderna, informações sobre aspectos de história do
mitos, visava-se cooptar as massas e estabelecer um clima de defesa violenta da
urbanismo, com referências ao que chamava de “praças” de cidades dos séculos XVII
ordem centralizada. Os partidos de extrema esquerda propunham-se a apropriação
e XVIII e do início do século XIX, incluindo nos comentários referências aos edifícios
do Estado, que deveria substituir o capital. Para os socialdemocratas o objetivo era
que as rodeavam, certamente o que hoje entendemos como conjuntos urbanísticos.
enfrentar os problemas sociais com processos de reforma, que incluíam com des-
Também em 1941, Lewis Mumford, antigo discípulo de Patrick Geddes, publi-
taque propostas no campo do urbanismo e de programas habitacionais. Também
cou “The Culture of Cities”. Em 1953, Arthur Korn publicou seu livro “History builds
neste caso, as iniciativas de reforma deveriam partir do Estado.
the town”. Três anos depois, em 1956, Frederick Hiorns publicou “Town building in
Exemplos importantes desse período são os da Alemanha, durante o gover-
History”. No mesmo ano, Joseph Hudnut publicou um artigo no qual analisava os
no de Weimar, da Áustria, da Holanda, da Espanha de 1930 a 1936 (principalmen-
conjuntos arquitetônicos do Renascimento. Em 1960, Leonardo Benevolo publicou
te Barcelona) ou de Le Corbusier na França. No plano internacional, a cooperação
sua “História da Arquitetura Moderna” na mesma linha de Gideon, dando destaque
se definiu com a criação dos CIAM. Na América Latina, as mudanças começaram a
especial ao processo de urbanização da sociedade industrial, aos conjuntos de edifí-
ocorrer no México, a seguir no Brasil (depois de 1930) como nos EUA, durante a ad-
cios e bairros projetados no fim do século XVIII e no século XIX, em Londres e Paris.
ministração de Roosevelt. Projetos de arquitetura e urbanismo eram considerados
Na segunda metade do século XX, desenvolve-se na Itália o que alguns chamaram
instrumentos adequados para reforma social, por iniciativa do Estado.
de Escola de Análise Urbana, da qual a principal figura é Bernardo Secchi, também
Ao longo da primeira metade do século XX surgem os primeiros estudos
responsável por estudos sobre a história do urbanismo.
sobre história do urbanismo, alguns ainda sem muito clara definição de seu objeto,
O que chama atenção é que todos estudavam “as cidades”, com o que poderí-
cobrindo em parte a reconstrução histórica, sendo em parte elaboração teórica
amos considerar uma visão estática: uma história como uma sucessão de momentos
sobre o tema. Na Inglaterra, Patrick Geddes, entre 1904 e 1931. Em 1926 foi publica-
especiais ou “linhas de força”, como queria Gideon, sem uma visão de continuidade
do o primeiro volume da História do Urbanismo de Pierre Lavedan, que na introdu-
ou processo.
ção afirmava ser a primeira obra, de caráter geral, nesse campo do conhecimento.
O segundo volume, que cobria a história moderna e contemporânea, foi publicado
após a Segunda Guerra Mundial. Até onde é possível reconhecer, todos os outros Os estudos sobre urbanização
estudos sobre a história do urbanismo, com caráter geral, são posteriores a 1940.
Os estudos sobre urbanização como processo social provavelmente tiveram
Quarta onda 1945/1960-2010 início com a Escola de Ecologia Urbana de Chicago, sob liderança de Robert Park,
por volta de 1908. Essa mesma escola foi revitalizada entre 1950 e 1960, por um
O final da Segunda Guerra Mundial foi marcado também pelo fim do colonia- grupo interagindo na Universidade de Harvard e no MIT, escola denominada Nova
lismo europeu e por uma segunda onda de internacionalização da indústria, com o Ecologia, analisando a urbanização como processo demográfico (estudo estatístico),

538 Importância da história para as pesquisas sobre arquitetura e urbanismo Nestor Goulart Reis (Brasil) 539
a partir das variáveis: território-população-tecnologia. Uma exceção nesse grupo foi Nossa experiência, partindo de algumas lições da equipe do IPHAN, se de-
Erick Lampard, que incluía, além dessas três variáveis, a organização social. Não por senvolveu de início nessa direção, com métodos semelhantes aos da Etnografia e
acaso, seus estudos incluíram, como os de alguns de nós, análises sobre as origens da Arqueologia.
da urbanização, utilizando dados da arqueologia.
Entre 1960 e 1970, esse quadro foi modificado com as publicações de Henry
Lefèbvre e Manuel Castells, em Paris, estabelecendo linhas de análise de sociologia Sobre nossos estudos
urbana, de inspiração marxista, focadas principalmente nas mudanças em curso na
sociedade industrial, no século XX. Nossos estudos se organizam com base nas evidências materiais. Se o espaço
urbano é produzido socialmente, como espaço de vida de uma sociedade, então,
estudando as formas de organização do espaço produzido, podemos compreender
Sobre os critérios para o estudo da história da as razões da sociedade que projeta tais espaços e investe em sua produção, que os
urbanização e do urbanismo usa e transforma, segundo seus objetivos.
Se há uma parte do espaço para a qual não dispomos de uma história e não
O que há de novo: os objetos de estudo dispomos de documentação escrita satisfatória, podemos conhecer sua história (e,
portanto, podemos conhecer melhor a história dos conjuntos e dos seus espaços) a
Nas sociedades tradicionais, na história tradicional, os objetos de estudo
partir das evidências materiais, deixadas ao longo do processo.
eram os objetos de poder. Na sociedade industrial passaram a ser focalizadas não
Como fazer isso? Estudando não apenas o urbanismo (isto é, os espaços pro-
apenas as condições de apropriação, projeto, construção, uso e transformação dos
jetados como uma forma de intervenção controlada, erudita e evidente) mas todos
espaços especiais e das “formas do poder” mas também, com destaque, os espaços
os espaços produzidos na urbanização, como processo social.
ocupados ou a serem ocupados pelas massas anônimas.
Em suas diferentes escalas podemos estudar:
Nesse quadro, o objeto de estudo passa a ser o conjunto dos espaços. Há
1. A organização do conjunto do sistema urbano do território;
portanto uma continuidade, no espaço, do objeto de estudo. Mas há um problema:
2. As formas gerais dos vários núcleos urbanos, isto é, sua configuração;
sabemos pouco sobre esses temas. Não há uma história escrita sobre essas formas
3. As formas dos espaços intra-urbanos.
de urbanização, que não foram produzidas pelo poder mas construídas pela própria
O estudo do processo focaliza um conjunto de relações, em fluxo. São essas
população usuária, sem registros formais.
relações que se configuram no espaço urbano, em suas diferentes escalas. Os meios
Nosso objeto de estudo, com tal visão de conjunto, deve ser a elaboração
de transporte e comunicação são os principais suportes desses fluxos de relações.
de uma ampla história do urbanismo da sociedade industrial, desse processo que
Os historiadores trabalham fundamentalmente com base em documentos escritos.
ainda se desenrola. Devemos ter consciência de que se trata de espaços de uma fase
Em nossa linha de pesquisa, trabalhamos basicamente com evidências materiais e
de grandes mudanças sociais e tecnológicas. Com essa perspectiva, é portanto o
seus registros gráficos:
estudo de um processo: o processo de urbanização da sociedade contemporânea. É
1. Com visitas a campo e registros gráficos, inclusive fotográficos, e digitais;
também uma visão de continuidade no tempo, de processo em curso. Com essa am-
2. Com cartografia histórica;
plitude de objeto, visando continuidade no espaço e no tempo, qual seria o método
3. Com documentos técnicos como plantas de cidades e edifícios, perspecti-
mais adequado?
vas e alçados;
Uma linha de pesquisa muito utilizada para responder questões semelhantes,
4. Com iconografia em geral: desenhos, gravuras etc.
em diferentes países, é o estudo da arquitetura vernácula, especialmente a rural. Pes-
Com essa documentação, analisamos os processos de urbanização da socie-
quisas desse tipo foram realizadas no tempo da Itália fascista, em Portugal sob a lide-
dade industrial, como das épocas anteriores.
rança de arquitetos de formação moderna, na Argentina, no Brasil, nos EUA, como no
México. O assunto era tema de estudo de grupos de esquerda, como de direita, visan-
do compreender as raízes, isto é, a formação dos povos, com uma visão ideológica.

540 Importância da história para as pesquisas sobre arquitetura e urbanismo Nestor Goulart Reis (Brasil) 541
Sobre alguns exemplos e dentro de certos limites, também em “Dois séculos de Projetos no Estado de São
Paulo” e em uma série de álbuns que estamos organizando.
Pensamos que, a essa altura, convém analisar alguns exemplos de nossas pes- A primeira parte de nosso livro “São Paulo: vila, cidade, metrópole” (2004),
quisas, para esclarecer os principais critérios de trabalho que utilizamos. nos capítulos referentes ao Período Colonial, tem por base documentação de carto-
No início de nossa carreira, entre 1962 e 1964, elaboramos uma série de ar- grafia histórica e iconografia de época, mais do que documentos escritos.
tigos publicados em um jornal de grande circulação, depois reunidos em “Quadro Um bom exemplo é nosso livro denominado “As minas de ouro e a formação
da Arquitetura no Brasil”. Na primeira parte, o tema era “arquitetura e lote urbano”. das Capitanias do Sul”. Apresenta os resultados de uma pesquisa para a qual nos
As análises estavam baseadas nos conceitos de implantação e lote urbano, focali- valemos de registros de cartografia histórica, comparados com os contemporâneos.
zando sua evolução no tempo. Hoje poderíamos dizer que estávamos interessados Com esse procedimento, procuramos localizar os pontos de mineração dos séculos
na evolução das formas de tecido urbano. Definimos agora tecido urbano como a XVII, XVIII e início do XIX, sobre os quais havia referências em registros escritos, com-
materialização das relações entre os espaços públicos e os espaços privados, entre parados com os estudos geológicos realizados em meados e no final do século XX.
os de uso público e os de uso privado. A configuração do tecido urbano é a escala O resultado foi surpreendente: localizamos cerca de 170 pontos de mineração entre
básica de análise do espaço intra-urbano. No final do trabalho, mostrávamos a utili- Guarulhos, em São Paulo, e o Vale do Itajaí, em Santa Catarina, confirmados pela to-
dade desses instrumentos para a compreensão das inovações em Brasília. Portanto, ponímia atual. E, não menos importante, as ocorrências coincidiam com a formação
para análise das mudanças em curso, no presente. No caso, mostrávamos a história das vilas e a consolidação da rede de caminhos, definida no século XVII. Em 1700
como instrumento para a compreensão das formas de intervenção e das mudanças. esse sistema urbano apresentava 19 vilas e 2 cidades na Repartição do Sul, do Espí-
Em “Urbanização e Teoria”, de 1967, procurávamos mostrar como os líderes rito Santo a São Francisco do Sul, região pouco valorizada pela história tradicional (
do Movimento Moderno estavam elaborando novos padrões de tecido urbano (tri- a não ser no que se refere ao Rio de Janeiro). E constatamos as mesmas 19 vilas e 3
dimensional e gerador de arquitetura, como diziam) padrões que foram em seguida cidades, no imenso e próspero território, entre Porto Seguro e Rio Grande do Norte.
apropriados pelo mercado imobiliário e estão presentes em alguns projetos neste A história desse primeiro ciclo de mineração e de seu sistema urbano está registrada
início de novo século. nas evidências materiais e na cartografia histórica.
Com “Evolução Urbana do Brasil”, trabalho apresentado em 1964, mostráva- Tomemos um exemplo mais próximo de nós. Nos estudos sobre as formas de
mos o absurdo de se imaginar que um território como o do Brasil pudesse ter existido urbanização dispersa, que caracterizam mudanças que estão ocorrendo nas últimas
durante os 322 anos do Período Colonial, sem que houvesse atividade urbanística. E três décadas, em várias regiões do país, a perspectiva histórica nos permitiu obser-
procurávamos demonstrar como, em uma colônia, o sistema urbano local podia ser var melhor as várias formas do processo – para indústrias, para bairros operários,
uma extensão do sistema urbano de outra região. Ao mesmo tempo, procurávamos para setores de renda média e alta, para serviços e escritório, em suas origens e suas
mostrar que, seja qual for a condição, há sempre uma forma característica de organi- perspectivas. Podemos ver a dispersão como uma etapa no quadro das mudanças
zação do espaço urbano. Nenhuma dessas conclusões teria sido possível, sem uma em curso, na urbanização da sociedade industrial. Não como um fenômeno isolado
perspectiva histórica sobre o processo de urbanização. e surpreendente mas como um elo em uma cadeia, que teve início no século XVIII.
Uma parte importante de nossas pesquisas está voltada para o recolhimen- O setor secundário da economia, de transformação pesada das matérias-primas,
to de informações iconográficas, de originais de projetos, de cartografia histórica e sempre esteve no campo. No século XIX se descolou para as cidades, alterando
imagens em geral. Em um campo de conhecimento em formação, consideramos de profundamente suas formas de organização. No final do século XX começou a sair
nossa responsabilidade a publicação da documentação de que nos valemos para das cidades, a voltar para o campo. Com uma perspectiva histórica, devemos nos
a elaboração de nossas pesquisas e preparo de nossos livros e artigos, de modo a perguntar qual o futuro que nos espera e em que medida poderemos controlá-lo.
facilitar os estudos dos que nos sucedem, nas várias regiões, para estimular a con- Devemos nos perguntar qual será o futuro das metrópoles e áreas metropolitanas,
tinuidade dos estudos sobre os vários temas. Foi o que fizemos com “Catálogo de tais como foram construídas do século XIX até meados do século XX.
Iconografia das Vilas e Cidades do Brasil Colonial” (1969), com “Imagens das Vilas e O último exemplo é um trabalho recente, que talvez seja esclarecedor. É um
Cidades do Brasil Colonial” (2000), com “Aspectos da História da Engenharia Civil trabalho no qual aprofundamos algumas questões de análise urbana. Em “Dois Sé-
em São Paulo”, com “Memória do Transporte Rodoviário no Estado de São Paulo”, culos de Projetos no Estado de São Paulo: as Grandes Obras e a Urbanização 1800-
2000”, procuramos mostrar como os serviços de uso coletivo – e as grandes obras

542 Importância da história para as pesquisas sobre arquitetura e urbanismo Nestor Goulart Reis (Brasil) 543
que os viabilizam – são pré-condição de existência da vida urbana, sobretudo no
presente. Como são instrumentos de poder político e econômico; como são fruto de Espacios publicos lineales en
las ciudades latino americanas
grandes investimentos e resultado de decisões dos poderes públicos (sob a forma
de concessões e regulações) e de decisões de grandes investidores. Em ambos os
casos é importante reconhecer quais outros interesses estão envolvidos. Nas metró-
poles e nas regiões metropolitanas, o tecido urbano é o suporte; os serviços são a
vida. Os apagões podem ser a morte. Silvia Arango (Colômbia)
A história do urbanismo tem sido escrita, quase toda ela, a partir das formas
de tecido (dos traçados) e das edificações. A crítica de esquerda ataca o setor imo-
biliário, como expressão acabada do capitalismo. Mas a história das grandes obras Resumo | A intevenção no espaço público nas cidades latinoamericanas tem crescido em
(principalmente as de infraestrutura, energia, saneamento, transporte ferroviário e importância como fenômeno urbano nas últimas décadas, tornando-se prioridade política
rodoviário, aeroportos e comunicações) que absorvem cerca de 50% dos investi- de governos municipais. As explicações são plurais: pautam-se na city marketing, no desejo
mentos do setor de construção civil, ainda não foi escrita. Essas são formas de poder de apresentar cidades agradáveis para o turismo e os investimentos externos e, ainda, no
concentrado mas não são registradas historicamente. Para os arquitetos, são obras crescimento vertiginoso suas cidades a partir da segunda metade do século XX. Esses fato-
de engenheiros, sem interesse estético. Para os urbanistas, são complementos. Mas res propiciaram procesos de transformação e deterioração de muitos lugares significativos,
são as bases do poder. O acesso aos serviços configura o privilégio e a desigualdade. além de conviver com a voraz especulação urbana, com adensamento do que antes eram
Em uma perspectiva histórica, podemos reconhecer a ausência de estudos sobre lugares aprazíveis para moradia. Muitas intervenções, com aplicação de grandes recursos
esse tema. Como dissemos de início, a consciência das ausências, em contraste com financeiros, muitas vezes acabam por segregar a população local, mesmo que a maioria dos
as presenças, pode nos ajudar a explicar determinados problemas. projetos amplie a oferta de recreação para todos os habitantes. Nas intervenções destacam-
Concluindo, podemos afirmar que, se pretendemos estudar a urbanização -se dois tipos de espaços públicos: os espaços concentrados, concebidos para a permanên-
como processo social e o urbanismo como forma de projeto, para intervenção nos cia (praças, largos, parques de diferentes portes), e os espaços lineares, destinados aos movi-
suportes materiais desse processo, a história é um instrumento fundamental. Sem mentos (que implicamna ideia de diversão, de encontro casual e frívolo), que é objeto deste
esquecer que, não sendo historiadores, nossos instrumentos privilegiados não são artigo. Para tanto, passou pela busca de conotações entre palavras como rua, beco, pistas,
os textos originais do passado mas as evidências materiais recolhidas em campo, em camino, avenida, bulevar, calçadão, calçada, alameda, vereda, via, arteria, destacando-se
documentos próprios, raramente registrados ou estudados por outros profissionais, as de maior significado para a história das ciudades latinoamericanas e correspondenstes
mas de fácil leitura pelos urbanistas. reflexões. Quanto aos espaços lineares mais recentes, estes em geral fazem parte de um
Estes são apenas alguns pontos, que podem servir para suscitar perguntas e plano de toda a cidade, a exemplo do Plano Sistema de Espaços Públicos feito em Bogotá
desenvolver o debate. entre 1998 e 2001, da reurbanização do Vale do Anhangabaú, na cidade de São Paulo, do
Paseo de la Princesa em San Juan de Puerto Rico, inaugurado em 1993. Em Guayaquil, o
Malecón 2000, sobre o rio Guayas, teve projeto de revitalização encomendado a grupos
de universidade e de técnicos estrangeiros, e o projeto se desenvolveu até 2002. Entre os
numerosos projetos feitos no México, destacam-se por suas magnitudes o Paseo de Santa
Lucía, em Monterrey, realizado por firma norteamericana e o projeto de grandes avenidas,
como o chamado Paseo de los Duendes, Nuevo León, em 1991. Atualmente, em muitas cida-
des centroamericanas são desenvolvidos projetos similares, como na Nicaragua, em San Sal-
vador e em Tegucigalpa. Projetos custosos também são propostos para cidades como Porto
Alegre (recuperacão do porto) e Assunção (franja costeira). Estes exemplos provam que as
intervenções sobre o espaço público não são só uma característica colombiana, mas uma
preocupação latinoamericana e possivelmente mundial. De todos os espaços públicos, os
que têm requerido maior atenção têm sido os espaços lineares de recreação, de pedestres,

544 Importância da história para as pesquisas sobre arquitetura e urbanismo Silvia Arango (Colômbia) 545
com a presença de água e vegetação, conectados com edificios para o lazer. Todas estas ca- which was being imposed as urban reality, overwhelming the planning, under the auspices
racterísticas foram também aquelas dos fins do siglo XVIII, o que marca, possivelmente, uma of finance capital.
inflexão na maneira de pensar a cidade fora do urbanismo “moderno”, que se manifestou Resumen | La intervención en el espacio público en las ciudades latinoamericanas ha crecido
de forma restrita em alguns setores urbanos, que qbrigaram aumento do número de auto- en importancia como fenómeno urbano en las últimas décadas, convirtiéndose en priori-
móveis, o crescimento de cinturões marginais e a voracidade especulativa do solo urbano, dad política de gobiernos municipales. Las explicaciones son plurales: pautadas en el city
que foi se impondo como realidade urbana, sobrepujando o planejamento, sob a égide do marketing, con el deseo de presentar ciudades agradables para el turismo y las inversiones
capital financeiro. externas y, además, en el crecimiento vertiginoso de sus ciudades a partir de la segunda
Abstract | Linear public spaces in Latin American cities mitad del siglo XX. Estos factores propiciaron procesos de transformación y deterioro de
The intervention in public space in Latin American cities has grown in importance as an muchos lugares significativos, además de convivir con una especulación urbana voraz, den-
urban phenomenon in recent decades, becoming political priority of local governments. sificando lo que antes eran lugares agradables para viviendas. Muchas intervenciones, con
The explanations are plural: are guided by the city marketing, the desire to have pleasant aplicación de grandes recursos financieros, muchas veces acaban por segregar la población
cities for tourism and foreign investment, and also in their cities rapid growth from the local, aunque la mayoría de los proyectos amplíe la oferta de recreo para todos los habitan-
second half of the twentieth century. These factors have led processes for the change and tes. En las intervenciones se destacan dos tipos de espacios públicos: los espacios concen-
deterioration of many significant places, and live with the voracious urban speculation, with trados, concebidos para la permanencia (plazas, largos, parques de diferentes tamaños), y
the density that were pleasant places for housing. Many interventions, applying large fi- los espacios lineares, destinados a los movimientos (que implican la idea de diversión, de
nancial resources, often end up segregating the local population, even though most of the encuentro casual y frívolo), objeto de este articulo. Para lo tanto, pasó por la búsqueda de
projects expand the recreation offer for all inhabitants. Interventions include two types of connotaciones entre palabras como calle, callejón, pistas, camino, avenida, bulevar, paseos,
public spaces the concentrated spaces that are designed to stay (plazas, squares, parks of acera, alameda, vereda, vía, arteria, destacándose las de mayor significado para la historia de
different sizes), and linear spaces, for the movements (which imply the idea of fun, casual las ciudades latinoamericanas y sus correspondientes reflexiones. En cuanto a los espacios
meeting and frivolous ), which is the object of this article. Therefore, past the search con- lineares más recientes, estos en general hacen parte de un plan de toda la ciudad, como por
notations of words like street, alley, lanes, road, avenue, boulevard, boardwalk, sidewalk, ejemplo del Plan de Sistema de Espacios Públicos hecho en Bogotá entre 1998 e 2001, de la
lane, path, pathway, artery, especially those of greater significance for the history of Latin reurbanización del Valle del Anhangabaú, en la ciudad de São Paulo, del Paseo de la Princesa
American enclaves and correspondenstes reflections. As for the newer linear spaces, these en San Juan de Puerto Rico, inaugurado en 1993. En Guayaquil, el Malecón 2000, sobre el
generally are part of a plan of the whole city, such as the Plan System Commons done in rio Guayas, tuvo un proyecto de revitalización encomendado a grupos de universidades y
Bogota between 1998 and 2001, the redevelopment of Anhangabaú Valley, in São Paulo, técnicos extranjeros, y el proyecto se desarrolló hasta el 2002. Entre los numerosos proyectos
Paseo de la Princesa in San Juan Puerto Rico, opened in 1993. In Guayaquil, the Malecon hechos en México, destacan por su magnitud el Paseo de Santa Lucía, en Monterrey, realiza-
2000 on the Guayas River revitalization project had ordered the university groups and for- do por una firma norteamericana y el proyecto de grandes avenidas, como el llamado Paseo
eign experts, and the project was developed by 2002. Among numerous projects done in de los Duendes, Nuevo León, en 1991. Actualmente, en muchas ciudades centroamericanas
Mexico, noted for their magnitudes Paseo de Santa Lucia in Monterrey, held by North Ameri- son desarrollados proyectos similares, como en Nicaragua, en San Salvador y en Tegucigalpa.
can firm and the great avenues project, such as the so called Paseo de los Duendes, Nuevo Proyectos costosos también son propuestos para ciudades como Porto Alegre (rehabilitación
León, in 1991. Currently, in many Central American cities are developed similar projects, as del puerto) y Asunción (franja costera). Estos ejemplos prueban que las intervenciones sobre el
in Nicaragua, in San Salvador and Tegucigalpa. Expensive projects are also proposed for espacio público no son solo una característica colombiana, sino una preocupación latinoame-
cities such as Porto Alegre (port recovery) and Assumption (coastal strip). These examples ricana y posiblemente mundial. De todos los espacios públicos, los que han requerido mayor
prove that the interventions on public space are not only a Colombian feature, but a Latin atención han sido los espacios lineares de recreo, peatonales, con la presencia de agua y ve-
American and possibly global concern. Of all the public spaces, which have required greater getación, conectados con edificios para el ocio. Todas estas características fueron también las
attention have been the linear spaces of recreation, pedestrian, with the presence of water de finales del siglo XVIII, lo que marca, posiblemente, una inflexión en la manera de pensar la
and vegetation, connected with buildings for leisure. All these features were also those of ciudad fuera del urbanismo “moderno”, que se manifestó de forma restricta en algunos sectores
the late eighteenth century, marking possibly a shift in thinking outside the city urbanism urbanos, que obligaron un aumento del número de automóviles, el crecimiento de cinturones
“modern”, which manifested itself narrowly in some urban sectors, which housed increase in marginales y la voracidad especulativa del suelo urbano, que se fue imponiendo como realidad
the number of automobiles, growth of marginal belts and speculative greed of urban land, urbana, sobrepujando o planeamiento, bajo la égida del capital financiero.

546 Espacios publicos lineales en las ciudades latino americanas Silvia Arango (Colômbia) 547
Introdução lugares donde se escenifica la vida colectiva y, como en el teatro, uno ve y es visto
por los demás; por ello sirven como lugar de reconocimiento de los distintos grupos
Uno de los fenómenos urbanos más importantes en las últimas dos décadas sociales y como afirmación de la comunidad.
en las ciudades latinoamericanas es el de la proliferación de intervenciones sobre Para abordar el tema, comencé por examinar las palabras que designan es-
el espacio público. El tema se ha convertido en una prioridad política de los gobier- pacios urbanos públicos lineales, como: calle, callejuela, callejón, carrera, jirón, cal-
nos municipales y prácticamente no existe ciudad que no haya emprendido o esté zada, camino, avenida, bulevar, malecón, paseo, alameda, salón, camellón, vereda,
próxima a emprender obras de mejoramiento de los espacios públicos urbanos. vía, arteria… hasta que se hizo evidente que algunas de estas palabras se referían
Puede haber varias explicaciones para esta actitud. La competencia entre a realidades físicas precisas mientras otras funcionaban como sinónimos difusos de
ciudades dentro de lo que se llama el “city marketing” es una de ellas. Con razón ideas abstractas. La palabra “calle” puede considerarse la más general y por ello de-
o sin ella, existe la creencia de que mostrar una ciudad agradable, con lugares de finirse como la unidad mínima de espacio público lineal, con calificativos posteriores
esparcimiento, no sólo atrae turismo sino inversiones extranjeras que benefician a (calle ancha y empedrada, calle arborizada, calle con dos calzadas, etc.). Según el
sus habitantes. En casos extremos, las intervenciones son hasta tal punto turísticas Diccionario crítico etimológico castellano e hispánico de Joan Corominas, calle viene
y con equipamientos tan costosos que su utilización segrega a los ciudadanos rai- del latín callis, ‘sendero, especialmente el del ganado’ y en italiano poético calle era
zales, pero en la mayoría de los casos son proyectos que han ampliado la oferta de ‘camino’ pues se hace para caminar por ella; en este sentido la palabra calle se uti-
recreación para todos los habitantes. Cuando los habitantes de una ciudad usan lizaba (y se sigue utilizando así en algunos lugares) para designar caminos urbanos
intensamente un espacio público, esto indica que ese espacio es significativo, está y rurales que, con frecuencia, estaban entre dos hileras de árboles. En catalán, call
incrustado en la memoria colectiva y forma parte de los anhelos sentidos de su po- es ‘camino estrecho entre dos paredes’, más cercano a su uso urbano actual, puesto
blación, pero también es indicativo del acierto en las características de su diseño que una calle, físicamente, es un espacio comprendido entre construcciones adosa-
arquitectónico. Y en este sentido cabe una segunda explicación: las ciudades lati- das que se enfrentan y se refiere a una realidad urbana occidental.
noamericanas crecieron a ritmos tan vertiginosos en la segunda mitad del siglo XX En esta dinámica entre las palabras y las cosas, decidí analizar sólo las pa-
que las generaciones de habitantes aún vivos vieron, impotentes, desarrollarse as labras que denominaran realidades físicas y sociales precisas, esto es, encarnadas
ciudades procesos de transformación, de deterioro o de desaparición de muchos históricamente en ejemplos particulares. Con esta idea en mente y a la manera de
de sus lugares significativos. En la segunda mitad del siglo XX, las ciudades fueron hipótesis, en el presente texto intento una descripción de los espacios lineales so-
cruzadas inmisericordemente por avenidas de tráfico intenso y una voraz especu- cialmente significativos a lo largo de la historia de las ciudades latinoamericanas,
lación urbana construyó edificios y densificó lo que antes eran barrios apacibles de como antecedentes de los espacios lineales contemporáneos.
casas de habitación. Puede decirse que una buena parte de la población urbana
latinoamericana guarda nostalgias y añoranzas de formas de vida anteriores. Por
Calzada
ello, las recientes intervenciones recientes han sido recibidas con entusiasmo y se
han convertido en tema político.
Para lo que los españoles llamaron calzadas o caminos, existe un amplio
En las ciudades existen dos tipos de espacios públicos: los espacios concen-
léxico en los idiomas prehispánicos: en quechua ecuatoriano camino es ñan (y sus
trados, hechos para la permanencia, y los espacios lineales, hechos para el movi-
derivados asa ñan, jatun ñan, chaki ñan, etc.); en maya es sacbée; en nahuatl es cue-
miento. Entre los espacios públicos concentrados, la plaza es el lugar por excelencia,
pohtli, tepectli, ochpantli, miccaohtli; en chibcha es ie (y sus derivados ie cuhuma, ie
debido a que fue el centro de la ciudad colonial, aunque también se pueden incluir
cho, etc.). Con estas palabras posiblemente se denominaban matices diferenciales
en esta categoría las plazuelas, los atrios y los parques de distintos tamaños. Sin
de los amplios caminos empedrados o terraplenados que se elevaban por encima
embargo, en este artículo sólo se examinarán los espacios públicos lineales, que
del nivel del suelo y conectaban diversos centros rituales dentro de un territorio con
también poseen una larga tradición urbana a partir, fundamentalmente, de fina-
ríos, lagunas y montañas, en el cual se localizaban casas de habitación de manera
les del siglo XVIII y por lo tanto pueden considerarse como parte de los procesos
dispersa. La reconstrucción arqueológica de los territorios más estudiados – como el
de modernización. A diferencia de las plazas, que poseen significados simbólicos
de Cobá en la península de Yucatán para el período maya clásico –, es reveladora de
y suelen albergar varias funciones, los espacios lineales, que son lugares de paso,
este tipo de estructura que era una realidad física distinta a la noción occidental de
connotan más claramente la idea de diversión, de encuentro casual y frívolo. Son

548 Espacios publicos lineales en las ciudades latino americanas Silvia Arango (Colômbia) 549
‘urbe’ y su nítida diferenciación respecto al campo. Todo parece indicar que en las también adecuó otros paseos que en secuencia lineal formaban todo un recorrido su-
concepciones espaciales prehispánicas, la red de calzadas, cuya utilización especí- burbano: el Paseo de las Aguas con su hermoso espejo de agua (que, según las crónicas,
fica es hoy difícil de inferir, estructuraban y daban legibilidad a un amplio territorio. fue hecho para poner la luna a los pies de la Perricholi) y el paseo o alameda de Acho,
En el vocabulario prehispánico también hay palabras que se refieren a po- frente al Rímac, cerca a la Plaza de Toros, terminada de construir en 1768.
blaciones concentradas. En el quechua quichqui denominaba una calle angosta y El camino que conectaba a Bogotá con el convento franciscano de San Diego,
ancha quichqui ñan una callejuela, palabras que parecen referirse a caminos entre es posiblemente también el origen de la Alameda Vieja, llamada así porque a finales
paredes (como la call catalana, literalmente) como las que todavía pueden verse en del siglo XVIII se construye la Alameda Nueva, tal y como aparece consignado en
el Cuzco. La extraña palabra jirón, que actualmente se usa en el Perú, viene del fran- el plano de Bogotá y sus alrededores de 1797. El caso de la Alameda de las Delicias
cés antiguo y significa ‘franja’, ‘fleco’ o ‘faja’ y describe una via urbana compuesta de (también llamado Paseo de la Cañada) en Santiago de Chile está mejor documen-
una tira o franja de calles, entendiendo como calle la que va entre esquinas de una tado. Desde el siglo XVI se establecieron varios conventos franciscanos en el llano
sola cuadra. de Maipú que se conectaban con la ciudad a través de un camino que bordeaba
Por su parte, Tenochtitlán estaba compuesta por un entramado ortogonal una cañada, donde se bañaban los niños. Las crónicas cuentan que se trataba de
de canales y caminos que formaban una isla en medio del lago de Texcoco, con un un camino muy concurrido, pues numerosas personas iban a tomar el chocolate
centro ceremonial del cual partían tres amplias calzadas, como lo muestran varios que hacían las monjas clarisas por la mañana y a comer las lentejas que preparaban
dibujos hechos tras la llegada de los españoles. Estos amplios caminos luego sir- los franciscanos al medio día. El camino se convirtió en paseo por el trazo que hi-
vieron de base a las calles anchas de la ciudad de México durante la colonia y se ciera el general O’Higgins hacia 1803, con dos glorietas ovaladas que permitían dar
mantienen hasta hoy con su denominación como calzadas. vuelta a las calesas y donde se tocaba música en las tardes. En 1809, el padre fran-
ciscano Javier Guzmán trajo unos álamos que se plantaron en las orillas del paseo.
Este último dato es interesante pues puede sugerir que el álamo poseía significados
Alameda y Paseo simbólicos para la comunidad franciscana. No sería extraño, pues desde tiempos
muy remotos el álamo –sobre todo la especie de álamo temblón (Populustremula L.)
Para finales del siglo XVIII y comienzos del XIX encontramos numerosas cró- ha sido relacionado con la fugacidad de la vida debido al estremecimiento de sus
nicas y grabados de un tipo de espacio público lineal ya instalado en varias ciudades hojas por efecto del viento y se plantaba en la tumba de las personas virtuosas y de
latinoamericanas: el paseo que, si estaba bordeado de árboles, se llamaba alameda. héroes. El álamo, además, se presta para la vida urbana: es frondoso, alto y de rápido
Las denominaciones de paseo y alameda se usan indistintamente para designar los crecimiento en todo tipo de suelos, inclusive arenosos.
mismos espacios públicos que indican la actividad de solazarse para recibir el fresco En principio, la palabra alameda designa un lugar plantado de álamos,
y respirar aire puro y se hacían fuera de la ciudad. Se trata de un nuevo espacio aunque, por extensión, en América del sur se refiere a un espacio público lineal
urbano que coloreó y cambió la estructura urbana compacta que agregaba manza- que sirve para pasear, aunque esté bordeado por otro tipo de árboles. No es así en
nas en los pausados crecimientos de las ciudades durante los dos siglos anteriores. México, donde la misma palabra alameda se refiere a un parque de gran tamaño,
Los paseos tuvieron una connotación laica y se asociaron al conocimiento mutuo, al es decir, a un espacio concentrado. La alameda más conocida es la de Ciudad de
flirteo y a las actividades galantes. México, cuyo diseño actual proviene de 1778, cuando se trazó con caminos que se
Es probable que muchos paseos se originaran en los caminos que comunicaban cruzaban, sugiriendo la acción de pasear por ellos contemplando la naturaleza. An-
las ciudades con los conventos franciscanos construidos a las afueras. Así es en el caso tonio María de Bucareli y Ursúa, Virrey de la Nueva España entre 1771 y 1779, trazó
de la Alameda Grande o Alameda de los Descalzos en Lima, que en el siglo XVII era un también el Paseo que lleva su nombre, que arrancaba desde el Coliseo o Plaza de
camino que conectaba la ciudad amurallada y el convento de los franciscanos descal- Toros y continuaba la Alameda.
zos, pasando por un puente sobre el rio Rímac; el camino se convierte en paseo cuando En el caso de ciudades amuralladas al borde del mar como La Habana, por
es remozado hacia 1770 por el Virrey Amat que gobernó el Perú entre 1761 y 1776, y paseo se entendía un recorrido por fuera de las murallas. El Paseo Extramuros fue
probablemente en alameda con los arreglos del presidente Castilla en 1856, cuando inaugurado en 1772 y, al ser arborizado y ornamentado con fuentes y estatuas un
se circunda con una reja y se decora con faroles, bancas de mármol y 12 esculturas que siglo después, hacia 1881 -ya derribadas las murallas-, fue denominado Alameda
representan los signos del zodíaco. Es importante anotar que en Lima el virrey Amat de Isabel II; posteriormente fue remodelado en 1928, ha recibido los nombres de

550 Espacios publicos lineales en las ciudades latino americanas Silvia Arango (Colômbia) 551
Paseo del Prado y Paseo Martí y constituye, hasta hoy, el espacio urbano privilegiado El origen de la palabra avenida está ligado a la noción de calles anchas que
para el encuentro ciudadano. El Paseo del Prado fue complementado con el Paseo o canalizaban los desbordes de los ríos en época de lluvias y en este sentido era sinó-
Alameda de Paula, construido por el Marqués de la Torre –gobernador entre 1771 y nimo de ‘riada’ o de ‘torrentera’. En el siglo XIX, en Estados Unidos, la palabra aveni-
1776– y consistía en un terraplén ornamentado con faroles y bancas presidido por el da pasó a denominar una calle ancha de tráfico vehicular intenso que servía como
Coliseo o Teatro Principal; el lugar fue ampliado y hermoseado con una fuente y una espina dorsal de la vida urbana. A la manera de un río principal, las demás calles
columna entre 1841 y 1845 y conocido como el Salón O’Donnel. La utilización de la llegan a ella como afluentes. La palabra se popularizó a partir del trazado regular
palabra “salón” para denominar un paseo público es poco usual en América Latina, de Manhattan, adoptado desde 1811 y construido con pocas variaciones durante
pero el sector del viejo Paseo del Prado en Madrid que fue ampliado y ornamentado el siglo XIX, donde se decidió llamar avenidas a las calles anchas de corren de norte
a partir de 1763, se llamó “Salón del Prado”. Es necesario recordar que tanto Cuba a sur para diferenciarlas de las simples calles, menores, que corren de este a oeste.
como Puerto Rico continuaron siendo colonias españolas durante todo el siglo XIX. La distinción cartesiana entre dos tipos de calles que se entroniza en las ciudades
En San Juan de Puerto Rico, el Paseo de la Princesa, que bordeaba por fuera la mu- latinoamericanas en la segunda mitad del XIX, lleva a conservar estas mismas deno-
ralla de la ciudad, fue bautizado así por haberse inaugurado el 20 de diciembre de minaciones en ciudades como Guatemala. En Bogotá se prefiere la distinción entre
1884, día del cumpleaños de la Princesa de Asturias. carreras a las calles que corren en el sentido norte-sur y calles para las que lo hacen
En este breve repaso de paseos y alamedas en ciudades latinoamericanas cabe en sentido este-oeste que, dicho sea de paso, es una distinción muy antigua. Según
resaltar los paralelismos: la simultaneidad cronológica de paseos construidos en la Corominas, la palabara carrera está documentada desde el siglo IX como abrevia-
década de 1770 revela una voluntad explícita de la corona española por construir- ción de via carraria, ‘camino para carros’, concurridas, a diferencia de las calles, se-
los. Aunque estas intervenciones urbanas, que son parte de las reformas borbónicas, cundarias y poco concurridas.
hacen presumir una influencia francesa, es curioso que la palabra bulevar no haya Es significativo que dos de las ciudades más grandes y cosmopolitas de Amé-
sido utilizada en esta época, sino que se impusieron los nombres españoles de paseo rica Latina a comienzos del siglo XX, cuando decidieron hacer una gran calle ancha
y alameda. En francés, la palabra boulevard (derivada del holandés bollwerk, que sig- que cortara el centro de la ciudad y representara el progreso, hayan escogido la
nifica baluarte, muralla defensiva) se refiere a los paseos por encima de las murallas y palabra avenida: en Buenos Aires, la Avenida de Mayo, inaugurada en 1894, y en Río
por extensión a los paseos fuera, dentro o en vez de las murallas, con la connotación de Janeiro, la Avenida Central (luego Avenida Rio Branco) inaugurada en 1905. En la
de calles anchas que circundan una ciudad. Los paseos latinoamericanos de fines década de 1910, por estas avenidas, como por los paseos, circulaban en coexistencia
del XVIII son más cercanos, como realidades físicas, a los llamados jardines públicos, pacífica peatones, caballos, bicicletas, carros de tracción animal, tranvías y algún
siendo el más antiguo el de las Tullerías (1664-1669). La palabra promenade, que sería eventual automóvil. En las décadas siguientes, con el aumento de automóviles, las
la traducción más precisa de paseo, designa en francés más la actividad de caminar avenidas pasaron a designar las calles anchas con alto contenidode tráfico y per-
para recrearse que un espacio físico y está ligada también al siglo XVIII. En las ciu- dieron su carácter peatonal. Con frecuencia, ya en los años 30, se diseñan avenidas
dades latinoamericanas, por otra parte, la invariable localización a las afueras de las con dos calzadas para que circulen los automóviles en direcciones opuestas y un
ciudades muestra la intención higienista de “exponerse a los aires frescos”, es decir, espacio central, llamado “camellón” que confina el recorrido peatonal. Por ejemplo,
refrescarse y respirar aire puro; la presencia de la vegetación y el paisaje lejano seña- así diseñó Karl Brunner la avenida Caracas en Bogotá. Con influencia estadinense se
lan la noción iluminista de que la naturaleza es objeto de contemplación, y la relación popularizaron luego las avenidas-parque (park avenues) con anchos camellones ser-
con actividades como corridas de toros y teatros, subraya el carácter popular de los penteantes, entre los cuales, además de los ejemplos de la Avenida de las Américas
paseos y alamedas y sus connotación como lugares de recreo. y el Parkway de Bogotá, se puede citar la Avenida General Paz que bordea Buenos
Aires, diseñada en 1939.
La palabra camellón que designa -sobre todo en México-, el espacio peatonal
Avenida, camellón y malecón central de una avenida, tiene su origen en la agricultura y se refiere a los promon-
torios de tierra que corren entre escurrentías por las que corre el agua; su nombre
A finales del siglo XX y comienzos del XX tres nuevas palabras, y sus consi- deriva de camello por su parecido a las jorobas de este animal. Se trata de una técni-
guientes realidades físicas, enriquecen el léxico lingüístico y urbano de los espacios ca agrícola muy antigua practicada también por algunos pueblos americanos como
públicos lineales: avenida, camellón y malecón. los agricultores prehispánicos de la cuenca del lago Titicaca. Traslados a la ciudad,

552 Espacios publicos lineales en las ciudades latino americanas Silvia Arango (Colômbia) 553
los camellones forman en ocasiones verdaderos paseos públicos en sí mismos, como Unos de los primeros paseos en restablecerse fue el del Valle de Anhangabaú
es el caso, en el Caribe colombiano, del Camellón de los Mártires en Cartagena, o el en São Paulo. Hasta mediados del siglo XIX, São Paulo era una ciudad pequeña que
Camellón de Arévalo – luego Paseo Colón – en Barranquilla. había crecido alrededor de un núcleo triangular sobre una colina -su centro históri-
En su origen, la palabra malecón designaba el muro de contención de los co-, limitada en un costado por el río y el valle de Anhangabaú, que corrían longitu-
bordes de agua en mares, ríos o lagos y el terraplén anexo que se construía. Con el dinalmente varios metros más abajo. El río fue canalizado y en los años 1920, a partir
aumento del comercio ultramarino y de la actividad portuaria a comienzos del siglo de un proyecto de embellecimiento y ensanche, se construyó un largo parque lineal
XX, los muelles atrajeron actividades desagradables que se buscaba contrarrestar. en el valle. Con el tiempo, y el crecimiento vertiginoso de la ciudad, los prados, árbo-
Los malecones se diseñaron, entonces, como paseos ornamentados al borde del les y bancas del paseo favorito de los paulistas, fueron cediendo el paso a sucesivas
agua y como prolongaciones que salían de los puertos, y fueron construidos profu- ampliaciones de calzadas para automóviles hasta que en los años 1970 se convirtió
samente en los años 1920 y 1930. Jean Claude Nicolas Forestier diseñó el Malecón definitivamente en una autopistade alta velocidad. En 1981, la municipalidad de São
de Buenos Aires frente al río de La Plata dentro del “Plan de Estética Edilicia” en 1925 Paulo, preocupada por la decadencia del centro histórico, citó a un concurso para la
y tres años después, el Malecón de la Habana que se conectaba con el Paseo del reurbanización del valle de Anhangabaú. Entre las 153 propuestas recibidas, resultó
Prado. Otros puertos, como Valparaíso, Veracruz y Guayaquil arreglaron sus maleco- ganador el proyecto presentado por los arquitectos paisajistas Jorge Wilhem y Rosa
nes hacia la década de 1930. Kliass, que consistía en cubrir la autopista a lo largo de varias cuadras para recuperar
el paseo público, ya no como foso limítrofe del centro histórico sino a nivel con él. A
lo largo del recorrido del paseo, el proyecto incluye caminos serpenteantes colori-
Espacios lineales recientes dos siguiendo la tradición brasileña y tres pequeñas plazas alrededor de los edificios
más significativos. Desde su inauguración en 1991, el Valle de Anhangabaú se con-
Como decía al comienzo, en años recientes se han intervenido numerosos virtió en un lugar muy aceptado y concurrido -por él circulan diariamente unos dos
espacios públicos lineales en América Latina. Con frecuencia, estas intervencio- millones de personas – y en el lugar que identifica a la ciudad.
nes forman parte de un plan coordinado y general de toda la ciudad. Esa ha sido En San Juan de Puerto Rico, se recuperó el Paseo de la Princesa como parte
también la intención del Plan Sistema de Espacio público que se hizo en Bogotá de un plan general de rescate del centro histórico emprendido en los años 1990 por
entre1998 y 2001, con su ambicioso sistema de alamedas que han sido construidas la municipalidad, y fue inaugurado en 1993 para la celebración de los 500 años del
parcialmente. En Colombia, hasta el momento, han resultado más completos los Descubrimiento de América. El proyecto no sólo recupera el antiguo paseo sino que
proyectos coordinados en Medellín y algunas acciones de gran impacto en ciudades lo completa; se inicia con una calle amplia donde se organizan ferias y exposiciones
menores como en Montería (la ronda del río Sinú), Neiva, Riohacha y en la isla de San al aire libre que remata en una fuente-escultura alegórica del descubrimiento, para
Andrés. Sin embargo, el propósito de este artículo no es el de examinar el detalle los luego internarse en el estrecho sendero, de diseño sobrio, que permite apreciar sus
proyectos colombianos, sino el de proporcionar un marco comparativo que muestre dos límites: las antiguas murallas y el mar. En Lima, también como parte de un plan
cómo existe una preocupación generalizada en América Latina sobre los temas de general de rescate del centro histórico incentivado por la declaratoria como Patri-
espacio público. Por ello, aquí examino prioritariamente algunos ejemplos en otras monio Histórico de la Humanidad en 1991 se construyó, con diseño del arquitecto
ciudades latinoamericanas en donde la calidad de diseño arquitectónico y urbanís- Augusto Ortiz de Zevallos, la nueva Alameda Chabuca Granda sobre la ribera del
tico ha contribuido a su éxito como lugar de encuentro ciudadano. río Rímac adyacente al centro, y se inauguró en 1999. A pesar de las críticas que sus-
Buena parte de los proyectos más ambiciosos son espacios lineales y es eviden- citó su diseño, la alameda tuvo tanto éxito que en el 2003 se inició la construcción
te que las tradiciones antes señaladas gravitan sobre las nuevas intervenciones y recu- de un parque lineal al borde del río como continuación de esta alameda. Durante
peraciones de espacios públicos y paseos urbanos. Las denominaciones actuales no la construcción del parque se encontraron restos de las antiguas murallas que ro-
siempre respetan las diferentes características de sus orígenes históricos, pero es no- deaban Lima y fueron incorporadas al diseño por el arquitecto Fernando Romaní
torio que las palabras predominantes para bautizar estos espacios son las de malecón, adquiriendo el nombre de Parque de la Muralla. Esta acción se complementó con la
paseo y alameda. Esta continuidad muestra cómo la costumbre de recorrer una y otra restauración de la Alameda de los Descalzos y del Paseo de Aguas con la intención
vez un lugar para reconocerse y ver a los demás es un componente fundamental de la manifiesta de recuperar la memoria urbana de Lima y con otros proyectos de mejo-
vida urbana latinoamericana y sigue identificándose con la idea de recreo y diversión. ras del espacio público.

554 Espacios publicos lineales en las ciudades latino americanas Silvia Arango (Colômbia) 555
En Guayaquil, el Malecón 2000, sobre el río Guayas, fue pensado para reci- rápidas en medio de amplias zonas verdes salpicadas de torres de habitación, confi-
bir el nuevo siglo. Sus antecedentes se remontan a 1996 cuando el ex presidente y gurando un paisaje que iba en contravía de las calles delimitadas de las tradiciones
entonces alcalde León Febres Cordero solicitó un primer proyecto a la universidad espaciales de las ciudades latinoamericanas. Sin embargo, las utopías modernas no
inglesa de Oxford Brooks y a un grupo de inversionistas extranjeros, para revitalizar llegaron a construirse sino en sectores urbanos restringidos pues a las inercias de
el viejo malecón y extenderlo a lo largo de 2,5 km. Con la intervención de un grupo usos y costumbres se sumó lo que el urbanismo moderno no previó: el aumento es-
de arquitectos ecuatorianos, el proyecto se desarrolló por etapas hasta quedar ter- calar de los automóviles, el crecimiento de los cinturones marginales y la voracidad
minado en 2002. El Malecón incluye, además del paseo mismo, la remodelación de especulativa del suelo urbano, que fueron imponiéndose como realidades urbanas
la antigua plaza de mercado en un extremo y una serie de edificios para museos y que sobrepasaron toda planeación. El interés contemporáneo manifiesto por los es-
un Teatro Imax en el otro. El éxito nacional e internacional del Malecón 2000 fue in- pacios públicos peatonales de paseo puede entonces leerse como un retorno a los
mediato y actualmente se desarrolla, también por etapas, uno nuevo: El Malecón del viejos principios de higiene corporal y mental de la ciudad realizada desde el XVIII
Estero Salado, dentro de un plan general de espacios públicos en la ciudad. hasta la primera mitad del XX con formas de vida más pausadas y gratas, y su éxito
Entre los numerosos proyectos emprendidos en México, destaca por su mag- tal vez se pueda interpretar como un indicio de la crisis de la ciudad moderna y las
nitud el Paseo de Santa Lucía en la ciudad de Monterrey, que conecta la Macro Plaza realidades impuestas por el capital financiero.
en el centro con el parque La Fundidora en las afueras. El paseo se desenvuelve
alrededor de un canal artificial y la primera etapa fue concluida en 2007. El proyecto
fue encargado a la firma norteamericana RTKL Associates, que había diseñado con
anterioridad el River Walk en San Antonio, Texas.
También vale la pena mencionar algunos proyectos realizados en los came-
llones de las avenidas amplias, como el llamado Paseo de los Duendes, del arqui-
tecto Fernando González Gortázar en la población de San Pedro Garza García en
Nuevo León, de 1991, que resuelve, con un original puente curvo, el paso peatonal
y de bicicletas sobre un cruce de avenidas de alto tráfico. Actualmente en muchas
varias ciudades centroamericanas se desarrollan procesos similares: en Nicaragua
se revitalizan los malecones de Masaya y Managua sobre el lago de Masaya; en San
Salvador, el bulevar de la Zona Rosa; en Tegucigalpa, el bulevar de San Juan. Por
su parte, grandes proyectos con inversiones cuantiosas se proponen en ciudades
como Porto Alegre (la recuperación del puerto) y Asunción (Franja costera).
En el recuento anterior faltan muchos proyectos y ciudades por citar, pero
posiblemente estos ejemplos son suficientes para dar consistencia a la aseveración
inicial: las intervenciones sobre el espacio público no son sólo una característica
colombiana sino una preocupación latinoamericana y posiblemente mundial. De
todos los espacios públicos, son los paseos los que han requerido más atención: es-
pacios lineales de recreo, peatonales, con presencia de agua y vegetación y conec-
tados con edificios para el placer. Todas estas características, que fueron también
características urbanas de fines del siglo XVIII, marcan, posiblemente una inflexión
en la manera de pensar la ciudad.
El urbanismo llamado “moderno” estaba en su apogeo en la segunda mitad
del siglo XX, cuando las ciudades latinoamericanos crecieron de manera más acele-
rada. Con el ideal de proporcionar aire, luz y sol a grandes masas de población, este
urbanismo planteó una racionalidad funcional con separación de funciones y vías

556 Espacios publicos lineales en las ciudades latino americanas Silvia Arango (Colômbia) 557
Quando as aldeias vieram à
cidade, quando as cidades foram
até às aldeias. Da exposição do
mundo português ao “inquérito”
1940-1961
Tânia Beisl Ramos (Portugal)

Resumo | Corria o ano de 1938 e o governo de Oliveira Salazar anunciara a realização de um


evento de profunda relevância para o país: a Exposição do Mundo Português. Pretendia-se
comemorar os oitocentos anos de Fundação da Nacionalidade (1140) e os trezentos anos de
Restauração da Independência (1640). Nesta altura estava já organizada a engrenagem que
viria a concretizar esta tarefa, enquanto o território de Lisboa sofria transformações urbanís-
ticas e arquitetônicas que viriam apoiar a ideologia do Estado Novo (1926/1933-1974). Novas
edificações institucionais e novos bairros habitacionais foram construídos tendo em vista
a erradicação das “barracas”. O objectivo consistiu na recuperação da imagem de Nação e
procurou valorizar a aldeia e a tradição, o antigo e a história, a família e o trabalho. Para re-
forçar esta trajetória foi realizado o concurso para eleger a aldeia mais portuguesa de Portu-
gal, enquanto no cinema o contraste entre a ruralidade da aldeia e a modernidade da cidade
viria a ser imortalizado no filme “A Aldeia da Roupa Branca” (1938). É neste contexto de exal-
tação do nacionalismo que se insere a Exposição do Mundo Português reunindo no mesmo
espaço os imponentes pavilhões comemorativos da história do país e das províncias ultra-
marinas, mas também das edificações que reproduziram as Aldeias Portuguesas. O evento
transferiu o modo de vida da aldeia para a cidade por meio de edificações construídas de
raiz e habitadas pela gente portuguesa, que deixou a sua terra de origem para aí viver du-
rante os seis meses em que a Exposição esteve aberta ao público. Situada numa zona de
aterro junto ao Tejo, o rural e o urbano estiveram representados no evento que pretendeu
ser a maior propaganda política do Estado Novo. Mas somente em meados da década de
1950 o meio rural e as suas edificações viriam a ser considerados como objetos de inquirição
e de registro pelos arquitetos portugueses, que com o apoio financeiro do governo, percor-
reram o país registrando o vocabulário arquitetônico das aldeias. Tal investimento assume,
em Portugal o desejo de construção de um projeto nacional. Este registro seria publicado

Tânia Beisl Ramos (Portugal) 559


como Arquitetura Popular em Portugal (1961). O fio condutor deste estudo consiste em es- ment acquired, in Portugal the desire to build a national project. This survey would later be
tabelecer um paralelismo entre o modo como Estado e intelectuais recorreram à arquitetura published as Popular Architecture in Portugal (1961). The underlying thread of this study
popular como meio de justificar, por um lado, a memória e o modo de habitar tradicional seeks to establish a parallel between how the State and intellectuals resorted to popular
relacionado ao nacionalismo e, por outro lado, como meio de consolidação da arquitetura architecture as a means to justify, in one hand, the traditional memory and manner of living
moderna em Portugal. Dois tempos da historiografia da arquitetura portuguesa em que se as related to nationalism, and on the other, a means of consolidation of modern architecture
destacam: a “reconstituição” das aldeias na capital durante a Exposição de 1940, e o regis- in Portugal. Two periods in the historiography of Portuguese architecture stands out: the
tro destas aldeias realizado pelos arquitetos de Lisboa e Porto que percorreram o território ‘reconstitution’, in the capital, of the villages during the 1940 Exhibition, and the documen-
nacional fotografando a arquitetura popular. O desfecho viria a permitir leituras distintas. tation of these villages undertaken by architects from Lisbon and Porto, who toured the
Políticos e intelectuais interpretaram estes resultados como melhor lhe convinha: para o national territory photographing the popular architecture.
regime de Salazar, as imagens do “Inquérito” eram manifestações do vernáculo português, The outcome would allow for differing readings. Politicians and intellectuals interpreted
enquanto para os arquitetos, estas mesmas imagens da arquitetura popular consideravam o these results as best suited them: for the Salazar regime, the images of the ‘Survey’ were
consolidar do “moderno”. Este artigo tem por finalidade a análise da relação entre a tradição manifestations of the Portuguese vernacular, while for architects, these same images of
e a modernidade por meio das transformações físicas e ideológicas instaladas no intervalo popular architecture were the consolidation of the ‘modern’. This paper provides an analysis
de tempo marcado entre o reforço do nacionalismo (1940) e a abertura ao novo vocabulário of the relationship between tradition and modernity, through the physical and ideological
arquitetônico (1961). transformations installed in the period between the strengthening of nationalism (1940)
Abstract | When the villages came to the city, when the cities went to the villages. and the gateway to the new architectural vocabulary (1961).
From the Exposition of the Portuguese World to the ‘Survey’: 1940-1961 Resumen | Era el año 1938 y el gobierno de Oliveira Salazar cuando anunció la realización
It was the spring of 1938 and the government of Oliveira Salazar proclaimed the realization de un evento de profunda importancia para el país: la Exposicióndel Mundo Portugués, con la
of an event of profound relevance for the countr: the Exposition of the Portuguese World. intenciónde conmemorar los ochocientos años de la fundación de la nación(1140) y los tres-
The aim was to celebrate the eight hundred years of the nation’s foundation (1140) and the cientos años de la restauración de la independencia (1640).
three hundred years of the restoration of independence (1640). This point was already orga- Para este momento ya tenían organizado toda la estrategia que serviria para concretar esta
nized the gear that would achieve this task, while the territory of Lisbon suffered urban and tarea, mientras tanto, el territorio de Lisboa, sufria transformaciones, urbanísticas y arquite-
architectural transformations that would reinforce the ideology of the New State (1926/1933 tonicas, que contribuirian a reforzar la ideologia del Estado Nuevo (1926-1933-1974). Nuevas
– 1974). The mechanisms that would accomplish this task were already in place. New institu- edificaciones institucionales y nuevos barrios residenciales, fueron construídos, com el fin de
tional structures and dwelling quarters were built with a view to eradicate the ‘shacks’. The erradicar las “Barracas”. El objectivo principal, la restauración de la imagen de la nación, en bus-
main objective is to recoverer the image of Nation, seeking to value village and tradition, queda de dar valor a los pueblos y su tradición, la antigua y su historia, la família y el trabajo.
the ancient history, family and work. To reinforce this trajectory, a competition has held to
Para ejecutar este proyecto, se llevo a cabo un concurso, a fin de elegir al Pueblo más por-
elect the most Portuguese village in the country. Whilst in film, the contrast between village
tuguês de Portugal, en cuanto al cine o contraste entre el Pueblo rural y la modernidade
rurality and city modernity would be immortalized in the motion picture ‘The Village of
de la ciudad se inmortalizó en la película “ El pueblo de la ropa blanca” (1938). En lo que se
White Clothes’ (1938). It is in this context of nationalist exaltation that the Exposition of the
refiere a la exaltación del nacionalismo, que incluye la exposición del Mundo Portugués,
Portuguese World situates itself, combining in the same space the imposing memorial halls
reunidos en un mismo espacio, donde los pabellones imponentes, conmemoran no solo la
of the Portuguese Empire’s history, but also the buildings that reproduced the Portuguese
historia del país y las províncias de Ultramar, sino también los edifícios que reproducen los
Villages. The event transferred the village lifestyle to the city, through newly built structures
pueblos portugueses. El evento transladó el modo de vida del Pueblo a la ciudad, por medio
occupied by Portuguese peoples who left their rural homeland to inhabit the new buildings
de edificaciones construídas desde el comienzo y habitadas por la gente portuguesa, que
during the six months that the exhibition was open to the public. Located in a landfill along
dejó a su tierra de origen para vivir durante los seis meses que la Exposición estuvo abierta
the Tagus, the rural and urban were both represented in an event who claimed to be the
al público. Situado en un vertedero, junto al “Rio Tejo”, lo rural y lo urbano, estuvieron re-
largest political propaganda of the New State. However, it would only be in the mid-1950s
presentando un evento que pretendió, ser la mejor propaganda política del Estado Nuevo.
that the rural condition and its edifications were to be considered research and documenta-
Pero solo a mediados de la década de 1950, el medio rural y sus edificaciones pasaran a ser
tion objects by Portuguese architects whom, with the financial support of the of the govern-
consideradas como objetos de investigación y registro por los arquitetos portugueses, que
ment, traveled the country documenting the rural architectural vocabulary. Such an invest-

560 Quando as aldeias vieram à cidade, quando as cidades foram até às aldeias Tânia Beisl Ramos (Portugal) 561
com el apoyo financiero del gobierno, recorrieron el país, registrando el vocabulário arqui- do país onde se situavam as origens lusas, nas aldeias portuguesas vistas na exposi-
tectónico de los pueblos. Esto se presume que la inversión se realizó com el propósito de ção de 1940 sob o filtro da “tradição” (Ramos, 2013).
que Portugal, pudiera construir un proyecto nacional y este registro seria publicado como A política cultural que permitiu sustentar a realização da Exposição do Mundo
Arquitetura Popular en Portugal (1961). El hilo conductor de este estúdio, consistió en esta- Português esteve sob a responsabilidade de Antônio Ferro (1895-1956)3. O plano ur-
belecer un paralelismo entre la forma del Estado y los intelectuales, recurriendo a la arquite- banístico do recinto tem a assinatura do Arquiteto-Chefe Cottinelli Telmo (1897-1948)
tura popular como un medio para justificar, por un lado, la memoria y la manera tradicional e a coordenação geral de Duarte Pacheco (1900-1943)4, cuja primeira intervenção foi
de vivir e de relacionarse con el nacionalismo y por outro lado como medio de consolidar la transferir o espaço urbano da exposição para a frente do Mosteiro de Santa Maria
arquitetura moderna en Portugal. Dos épocas de la historiografia de la arquitetura en la que de Belém dos Jerónimos, numa área de aterro entre este Mosteiro e o Tejo. Esta área
se destacan: la “ reconstitución” de los pueblos en la capital durante la Exposición de 1940 central foi denominada por Praça do Império. Para os projetos dos imponentes pa-
y el registro de estos pueblos, hechas por los arquitetos de Lisboa y Oporto que recorrieron vilhões estiveram envolvidos os arquitetos que ao longo do tempo mantiveram-se
el país, fotografiando la Arquitetura Popular. El resultado permitiria diferentes lecturas. Los na órbita do regime salazarista, colaborando na execução de encomendas públicas.
políticos y los intelectuales, han interpretado estos resultados como mejor les convino: para Formam um grupo de arquitetos ativos que ao longo dos períodos sequenciais da
el régimen de Salazar. Las imágenes de la “ Pesquisa” eran manifestaciones del genuíno história da arquitetura portuguesa, como o I Congresso Nacional de Arquitetura de
português, mientras que para los arquitetos, estas mismas imágenes de arquitetura popular 1948 e a realização do “Inquérito à Arquitetura Popular Portuguesa” iniciado em 1955
lo consideraron la consolidación de lo “Moderno”. olharam para as aldeias portuguesas com o filtro do “moderno”. Esta proximidade
Este artículo tiene como finalidade un análisis acerca de la relación entre lo tradicional y la assumiria na Exposição do Mundo Português, especial relevância por ter procurado
modernidade, por medio de las transformaciones físicas e ideológicas, instaladas en el in- dar resposta às obras de vulto, algumas já iniciadas por estes arquitetos desde iní-
tervalo de tiempo entre el fortalecimento del nacionalismo (1940) y la apertura de un nuevo cios de 1930, com uma nova sintaxe arquitetônica (Augusto-França, 1991). A ideia era
vocabulário arquitectónico (1961). dar a conhecer a capacidade de realização de Portugal num evento desta grandeza.
Entre a imponência dos pavilhões, esteve situada uma área onde se reproduziu a
habitação, o trabalho e o modo de vida da população rural como se de um museu ao
Exaltar a Nação “dentro de portas” ar livre se tratasse. A reconstituição das aldeias de Portugal foi construída na lateral
periférica da exposição seguindo a divisão do país em regiões e foi publicada num
Portugal manteve-se como território neutro face ao conflito mundial iniciado pequeno livro, Aldeias portuguesas na Exposição do Mundo Português, FIGURA 1 A E B.
em finais da década de 1930. No quadro político de uma Europa em guerra o país
volta-se para si próprio empenhando-se em cumprir o programa de comemorações
traçado em 1938 por Oliveira Salazar1: o Duplo Centenário da Fundação da Nação
(1140) e da Restauração da Independência da Espanha (1640). Para as comemora-
ções Portugal projeta e constrói em 1940 a Exposição do Mundo Português. O evento
está inserido na iniciativa político-ideológica do regimede exaltação do nacionalis-
mo (Acciaiuoli, 1998). Curiosamente este olhar introspectivo acabaria por projetar
o território português segundo escalas distintas. A primeira, mais ampla, integrava
as províncias ultramarinas2 nos continentes – africano e asiático –, afinal “a extensão
de um país reside no prolongamento dos seus usos e costumes” (Damasceno, 2010). Figura 1 A E B
Livro da autoria de Jorge Segu-
Tal dimensão territorial esteve representada na Exposição do Mundo Portuguêspelo rado publicado no âmbito da
Pavilhão das Colónias. Enquanto a segunda escala volta-se para o interior profundo Exposição do Mundo Por-
tuguês sobre o núcleo das
Aldeias Portuguesas.

1. Em nota oficiosa de 27 de março de 1938. 3. Diretor do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), onde desenvolve a “Política do Espírito”.
2. A partir da Conferência de Berlim (1885), Portugal redefiniu a sua organização administrativa e passou a denominar as 4. Ministro das Obras Públicas e Comunicação, Presidente da Câmara Municipal de Lisboa (Prefeitura) e membro da
suas colónias como províncias ultramarinas. Comissão dos Centenários.

562 Quando as aldeias vieram à cidade, quando as cidades foram até às aldeias Tânia Beisl Ramos (Portugal) 563
Autor do plano e do livro, o arquiteto Jorge Segurado (1898-1990) destacou a uni- equipa local arquitetos arquitetura popular/aldeia
dade no “modo de ser português”. Mas a mensagem tinha ainda uma outra face, 4 Estremadura, Nuno Teotónio O Ribatejo nasce do Rio. Chaminés coloridas com
perceptível para os mais atentos: a diversidade na arquitetura habitacional do inte- Ribatejo e Pereira (1922-) frente decorada com flores saltam dos telhados e
rior do país. Jorge Segurado (1940) sintetizariano seu livro as características dessas Beira Litoral António Pinto armam em pequenos pombais ou simples suportes
de Freitas de telhas encostadas como cartas de jogar, duas a
aldeias segundo estas diferentes regiões, diferenciando tipologias, registrando de- duas. Por dentro a casa tem o que precisa e pouco
(1925-)
talhes e técnicas construtivas, relacionando a influência do clima, da vegetação e da é. Uma sala, umas cadeiras, uma mesa, as caixas ou
Francisco Silva
harmonia com a paisagem local. A Tabela 1 resume estas características. arcas de roupa Tem menos compartimentos que o
Dias (1930-) coração da castiça.

equipa local arquitetos arquitetura popular/aldeias A Estremadura aproxima-se do Tejo. As escadas exte-
1 riores sobem do quintalinho com parreiras. Estas ca-
Minho, Douro Fernando As escadas exteriores das casas do Minho têm, al-
sinhas valem aguarelas de artista, ali vivem as saloias,
Litoral e Beira Távora pendres que guardam como dosséis a entrada. Os
lavadeiras de roupa suja de Lisboa e fornecedores de
Litoral (1923-2005) espigueiros manifestam o trabalho forte e ativo da
verduras. Na Beira Litoral repetem-se as caracterís-
agricultura. Erguem-se ao pé da eira, solitário aqui,
Rui Pimentel ticas das casas e das aldeias da montanha. As casas
aos pares ali e frequentemente em número maior
(1924-) de madeira os palheiros dão acolhida de recurso aos
escalonados um a um, dois a dois. (…) As Casas da
trabalhadores do mar.
António Me- Ribeira são mais frescas e alegres na paisagem farta
néres de verduras como odre cheio de vinho dão ares de 5 Alentejo Frederico As casas feitas de tijolo e precisadas de se refrescar
miradouro escondidos na folhagem. As casas da George (1915– na terra sob um céu que escalda, são baixas. Cal e
montanha, tristonhas cobrem-se de colmo e lousas, 1994) mais cal veste-as de brancura sem par a não ser no
às vezes com telhas vermelhas de novidade, ou já Algarve, na defesa heróica da planície contra o sol.
António Aze-
negras de ferrugem do fumo e do tempo. No Douro As chaminés sobem ao ar à busca de espaço livre e
vedo Gomes
Litoral as hortas e as quintas são muito verdes. de vento que lhes leve, para o alto e longe o fumo.
(1929-2008)
2 Trás-os-Montes O Lixa Filguei- As casas de Trás-os-Montes nas serras e nos vales Rendilhadas e muito brancas. Interiormente as casas
Alfredo da
e o Alto Douro ras formam o quadro das aldeias transmontanas. Casas são tão brancas como por fora. As mobílias coloridas
Mata Antunes
de pedra sem cal, aqui xisto ali granito sobem as e os papéis de cor forte
(1922-1996)
encostas cobrem-se de colmo. As janelas pequenas 6 Algarve e Alen- Artur Pires No Alentejo e no Algarve predomina a brancura das
Arnaldo Araújo deixam entrar escassa luz. As varandas recatam-
tejo Litoral Martins (1914- casas, vegetação rica, chaminés de recorte
(1925-1984) -se. Sai fumo dos tetos. No lajedo irregular do chão 2000)
Carlos Carva- batem-se tamancos. (….)Lá dentro nas lareiras com
Celestino
lho Dias (1929-) o escambo os trempes-fogareiros ardem o fogo da
Castro
casa que nunca se apaga.
(1920-2007)
3 Beiras Keil do Amaral Na Serra da Estrela se projecta a Beira inteira quer ca-
Fernando
(1910-1975) minhe para o mar e forme a Beira-Litoral, quer desça
Ferreira Torres
para o interior e forma a Beira Alta com as casas de
José Huertas (1922-2010)
pedra de granito. Na Beira Baixa as casas são de xisto,
Lobo (1914- onde aquele falta (…) paredes mistas de uma e outra Tabela 1 Síntese da descrição – Jorge Segurado (1940) sobre a arquitetura popular segundo as regiões.
1987) dessas pedras ou feitas de grossos seixos rolados das
João José ribeiras da serra. No adro o moinho de vento, branco
Malato
A Figura 2 b apresenta as seis equipes de três arquitetos (sendo um mais ex-
de neve como a farinha que moe,
periente e dois arquitetos mais novos) segundo as áreas onde fizeram o “inquérito”.
(1926-2003)
Estes arquitetos percorreram o país em “lambretas”, em automóveis, a cavalo ou
ainda à pé, observando, fotografando e concluindo que o país apresenta uma di-
versidade arquitetônica de soluções do habitar rural. Conclusão já divulgada pelo
exemplos de aldeias portuguesas da Exposição de 1940. A diferenciação entre os
dois momentos históricos ocorre pelo modo como se olhou para os mesmos objetos
– com o foco na tradição ou na modernidade.

564 Quando as aldeias vieram à cidade, quando as cidades foram até às aldeias Tânia Beisl Ramos (Portugal) 565
A Exposição do Mundo Português: uma síntese

A imensa área quadrangular de 560 mil metros quadrados acolheu edifica-


ções de grande escala e de construção efémera, tendo como objectivo criar uma
imagem de identidade nacional que fosse ao mesmo tempo “moderna” e “portu-
guesa”. Tal tarefa vai reunir, de modo inédito, um grupo de arquitetos a quem ficou
incumbida a construção dos pavilhões comemorativos da Exposição, sob a orien-
tação de Cottinelli Telmo, entre eles: Pardal Monteiro, Carlos Ramos, Jorge Segura-
do, Rodrigues Lima, António Lino, Veloso Reis, João Simões, Vasco Regaleira, Keil do
Amaral, Cassiano Branco e Raul Lino. A Exposição foi organizada em três secções,
tendo sido definido inicialmente os pavilhões comemorativos e os respectivos pro-
jectistas. A oportunidade histórica de exaltação do nacionalismo é aceite por estes
profissionais que viriam a projectar, entre outros, os pavilhões da Secção da História
(“de Honra e de Lisboa”, “dos Portugueses no Mundo”, “da Fundação Conquista e
Independência”, dos Descobrimentos, da Colonização e do Brasil”), da Secção Etno-
gráfica Colonial (“Aldeias Portuguesas”, e o Pavilhão da Vida Popular) e da Secção
destinada às Colónias (entre eles o “Padrão dos Descobrimentos” e o “do Brasil”).
Deste conjunto de edificações algumas intervenções se destacam no percurso de
FIGURA 2 a Mapa do percurso de Lucio Costa durante as três viagens realizadas para o registro da arquite-
tura popular segundo cartas disponíveis em “Casas de Lucio Costa”; realização doevento. A Figura 3 apresenta o esquema do recinto da exposição com
FIGURA 2 b Mapa de Portugal indicando a divisão em seis núcleos onde foi realizado o Inquérito à Arqui- indicação de algumas referências, como o núcleo das aldeias portuguesas na lateral
tetura Popular Portuguesa, publicado como Arquitetura Popular em Portugal (1961), e os arquitetos que do recinto.
participaram no registro em meados da década de 1950. Legenda: 1 – Minho, Douro Litoral e Beira Litoral;
2 – Trás-os-Montes e Alto Douro; 3 – Beiras; 4 – Estremadura, Ribatejo e Beira Litoral; 5 – Alentejo;6 – Algarve
e Alentejo Litoral

O impulso para a construção de Portugal

Esta capacidade realizadora era visível, pois não se limitando ao recinto da


Exposição, o plano das celebrações traçado por Oliveira Salazar abrangia um con-
junto de obras que Duarte Pacheco havia incluído no Plano de Urbanização da Cidade
de Lisboa. Trabalhava-se dentro e fora do recinto expositivo5. Eram prioritários os
acessos à capital, com atenção à auto-estrada Lisboa-Cascais, e era urgente finalizar
grandes obras, construídas de raiz como a Casa da Moeda ou o Estádio Nacional e
outras por restauro como o Teatro Nacional de São Carlos ou o Palácio de Queluz.
A realização da Exposição do Mundo Português impulsionou uma transformação da
cidade de Lisboa, onde estavam em construção um conjunto de equipamentos ur-
banos de funções diversas, para além dos bairros de casas económicas em Lisboa e
também no Porto, que procurou fazer frente à expansão das “barracas”. Referia-se
Antônio Ferro que “a tradição também é território” (Damasceno, 2010). Figura 3 Área central da Exposição do Mundo Português (1940) com indicação de referências: Mosteiro
dos Jerónimos, Secção de História, Secção de Etnografia Colonial, Aldeias Portuguesas e Pavilhão do Brasil.
5. Fora do recinto foi ainda organizada a 1ª Exposição Nacional de Floricultura no Palácio de Exposições na Tapada da (Fonte: Indicações da autora sobre base 3D, Inês Rodrigues).
Ajuda.

566 Quando as aldeias vieram à cidade, quando as cidades foram até às aldeias Tânia Beisl Ramos (Portugal) 567
Brasil: o único país convidado Outro aspecto repetidamente referido por Raul Lino em Auriverde Jornada
está relacionado à vegetação exuberante e ao respeito pelas velhas árvores no
O Brasil independente foi o único país convidado, tendo-lhe sido dedicado Brasil. Por mais de uma vez Raul Lino referiu-se “à presença das palmeiras reais so-
um pavilhão projectado por Raul Lino (1879-1974), arquiteto tradicional e defensor berbas, altíssimas, isoladas ou em fileiras imponentes” (Lino, 1037:63). “A palmeira real,
do conceito da “casa portuguesa”. Identificam-se aqui conexões relevantes como a importada das Antilhas, é um motivo que sobressai na paisagem do Brasil, elevando-se
presença da representação brasileira na exposição e a autoria do pavilhão. sempre muito acima de tudo que a rodeia”. (Lino, 1937: 55). É de destacar que, numa
Quanto à presença da ex-colónia sabe-se que o Brasil associou-se às come- estilização decorativa, Raul Lino desenhou os longos pilares do átrio de entrada do
morações promovendo a sua divulgação no próprio território brasileiro, sediando Pavilhão do Brasil com base nas palmeiras reais, conjugando a monumentalidade
no Rio de Janeiro uma amostra dos produtos portugueses. com a leveza da estrutura vazada da cobertura. Raul Lino solicitou ao regime uma
Na mesma altura, Salazar apontaria algumas razões para segunda viagem ao Brasil, que entretanto lhe foi negada permanecendo o Auriverde
Jornada como uma descrição ímpar deste autor sobre o Brasil.
“(...) pedir ao Brasil que venha a Portugal no momento em que festejare-
mos os nossos oitocentos anos de idade ajudar-nos a fazer as honras da
Casa; que erga o seu padrão de História ao lado do nosso; que não seja As aldeias portuguesas reconstituídas na capital
apenas nosso hóspede de honra, mas como da família” (Salazar, 1939).

Fato igualmente interessante está relacionado à “Segunda Secção dedicada


Quanto ao projeto da edificação, a situação é curiosa, tanto pelo fato de o Pa-
à etnografia metropolitana”, como referiu Augusto-França (1974), e diz respeito à
vilhão do Brasil ter sido projectado por Raul Lino, arquiteto que ao longo da sua vida
reconstituição do núcleo dedicado àsaldeias portuguesa sem pleno recinto expositi-
profissional defendeu a “tradição” na arquitetura com forte impacto no meio cultu-
vo e em plena cidade. As conexões entre a tradição e o carácter genuíno e original
ral português, como pela linguagem arquitetônica do mesmo pavilhão. As razões
da portugalidade estiveram reflectidas nos traços culturais estruturantes do Estado
que estiveram na origem deste fato merecem uma reflexão crítica.
Novo e da ideologia de Salazar. As habitações construídas constituíam uma síntese
representativa da arquitetura popular. Mais uma vez a exposição surpreenderia o
Raul Lino e o Pavilhão do Brasil visitante: estas casas foram apresentadas ao público “habitadas”, onde trabalhavam
gente de profissões diversas e ofícios simples reproduzindo o quotidiano da aldeia
Reconhecido como o principal patrocinador do conceito da “casa portugue- original, como foi registrados em documentários do cineasta António Lopes Ribeiro
sa” Raul Lino assumiria uma posição contrária ao “moderno”. Posição que permite tal como ir“ à igreja rezar a Ave-Maria, (ou ir) à fonte encher a cantarinha”.
notar, por meio do edifício que projetou para representar o Brasil, uma integração A juntar-se aos “habitantes” estiveram presentes grupos de dança caracte-
dos conceitos tradicionais com um “tom” de moderno. Influência da viagem que faz rísticos para animar o ambiente. Referia-se Antônio Ferro que a “arte popular dava
em 1935 ao Brasil? identidade às aldeias”, A existência deste espaço de costumes simples no recinto da
Na verdade, em 1937 é publicado o livro de recordações dasua viagem ao grandiosa Exposição do Mundo Português tem uma leitura política dominante. Pre-
Brasil, o Auriverde Jornada. Explicaria o autor“pois que fique este título a encapar as tendia-se valorizar a vida rural e deste modo aproximar o governo da gente simples.
folhas com o relato daquela minha viagem de sonho”. Dedicado “à saudade do Rio”, Neste contexto a presença na exposição do núcleo das Aldeias Portuguesas assumiu
cidade que lhe custou deixar e partir, o seu detalhado Diário de Viagemnarra, entre um valor ideológico de aproximação às origens lusas dispersas pelo mundo, uma vez
outros fatos o encontro que o arquiteto português teve na antiga sede do Jockey que em Portugal referia-se que os portugueses deram “ao mundo novos mundos”.
Club com Lucio Costa “por quem estava cheio de curiosidade por conhecer” (Lino, E contrariamente ao que se referiu Raul Lino, a tradição terá um peso impor-
1937: 91). Narra também o desacordo que os dois arquitetos tiveram quanto à defi- tante na definição da arquitetura moderna por Lucio Costa, que tal como as disci-
nição do “moderno”. Registraria Lino: “Lucio Costa não quer ouvir falar em tradição” plinas da geografia, da economia, da sociologia, da antropologia, entre outras, se
(Lino, 1937: 95), mas não deixa de referir que” interessava-lhe particularmente tomar interessa por conhecer a origem da arquitetura popular em Portugal, registrando de
contacto com Lucio Costa cuja personalidade goza do merecido prestígio de um verda- Norte a Sul, de Leste a Oeste do território (Matos e Ramos, 2010), Figura 2A , as carac-
deiro mentor dos jovens arquitetos do Brasil. (…). terísticas da arquitetura portuguesa, ainda antes do próprio “inquérito” ter início em

568 Quando as aldeias vieram à cidade, quando as cidades foram até às aldeias Tânia Beisl Ramos (Portugal) 569
1955 (Costa, 1997) como Inquérito à Arquitetura Popular Portuguesa e ser publicado de do país, por outro lado, o seu desenvolvimento assenta em campos disciplinares
pelo SNA6 em 1961 como Arquitetura Popular em Portugal. distintos com objectivos diferenciados.
A influência da agronomia ocorreria de uma forma metódica com base no
levantamento das condições económicas e higiénicas da habitação dos trabalha-
O interesse na realidade rural dores agrícolas e das suas famílias. Para os engenheiros agrónomos, a habitação
rural era o núcleo a partir do qual estava associado o desenvolvimento agrícola do
Mas se por um lado a presença das “Aldeias Portuguesas” na Exposição do país. Destaca-se nesta área o papel da agronomia ao defender a importância e a
Mundo Português pode ser considerada como o reacender da discussão sobre a casa necessidade de se tomar conhecimento da ruralidade da época. Neste sentido, os
portuguesa, por outro lado sabe-se que o tema da arquitetura popular despertou o engenheiros agrónomos lançariam já em 1936 o Inquérito-Económico-Agrícola e em
interesse da elite intelectual do país ainda em finais do Século XIX7, altura em que seguida o Inquérito à Habitação Rural, em que interessava identificar as caracterís-
essemovimento emerge como espelho do “nacionalismo português”. Vários aconte- ticas físicas da habitação relativamente à salubridade – aberturas de ar e de luz -,
cimentos vieram reforçar esta relação a partir da década de 1930, mais precisamente ao número de compartimentos, de pessoas que viviam naquela casa, ao acesso à
no ano de 1938. Altura em queo cinema viria a dar contributos importantes para o água, e à existência de esgotos, por exemplo. O foco estava em conhecer para me-
tema, em que se destaca o filme “A Aldeia da Roupa Branca” (1938), que expõe os lhorar as condições de vida no campo onde a habitação era o interesse principal.
contrastes entre a vida de trabalho árduo das lavadeiras de roupa suja da capital, e a Mas a realidade encontrada é dura e entre as décadas de 1930 e 1940, esta realidade
vida em Lisboa, onde mais uma vez tradição e modernidade se misturam. Também seria exposta como um cenário de miséria, tanto em termos materiais, quanto ao
em 1938 é lançado o concurso “A aldeia mais portuguesa de Portugal”. Pretendeu-se nível daconservação da habitação e“recheio” da casa. Estava feita a associação entre
destacar a aldeia do país que maior resistência ofereceu às influências exteriores e habitação rural e espaços de miséria. A pobreza e as necessidades que passavam
que estivesse em melhor estado de conservação. Monsanto foi a aldeia escolhida. a população rural começariam a ser cruelmente expostas. Situações rapidamente
O concurso não voltou a decorrer mas constituiu um modo de afirmação da “Polí- abafadas pelo regime de Salazar, e recriadas na Exposição do Mundo Português em
tica de espírito”, política de desenvolvimento cultural e de propaganda do regime 1940 pelo núcleo dedicado às aldeias portuguesas – a reprodução de uma parte do
salazarista. Ainda durante o ano de 1938 o geógrafo Orlando Ribeiro (1911-1997) território rural, e da casa como símbolo de nacionalidade, no recinto da exposição
realiza o Inquérito do Habitat Rural para o Instituto da Alta Cultura, percorrendo as referida ilustra esta postura.
províncias do país e registando os aspectos construtivos e a organização espacial Diversas áreas científicas viriam dar contribuições valiosas que permitiram es-
das habitações. truturar o retrato do país rural (Leal, 2009). Um retrato que não se desejava divulgar,
Tem início outro período da historiografia da arquitetura portuguesa, perío- mas que entretanto já era conhecido, inclusive pelos arquitetos.
do em que os profissionais trocam a cidade para se deslocarem e para registrarem Interessa entretanto, salientar nesta pesquisa que os resultados divulgados pela
in loco o modo de habitar a arquitetura popular em meio rural. arquitetura seriam outros. As imagens foram criteriosamente seleccionadas pelos ar-
quitetos possibilitando, a partir de uma mesma fotografia, possibilitar diferentes inter-
As cidades foram até às aldeias pretações. Foram diferentes modos de olhar para a realidade com uma leveza, e uma
docilidade que permitiam ver um duplo significado: para o regime era o consolidar da
E o modo como a arquitetura popular veioconstruir um campo de estudo tradição e para os arquitetos era o consolidar do “moderno”, Figura 4 A-D.
tendo como base a “tradição” e o “moderno” exerceu um fascínio em várias áreas É de salientar entretanto, que o coletivo dos arquitetos foimarcado em finais
disciplinaresque reforçaram a exaltação do nacionalismo. A Exposição do Mundo de 1940por um afastamento relativamente ao regime político do Estado Novo. Este
Português espelha esta consagração. Mas se por um lado, o estudo a arquitetura afastamento assume, desde o início de 1940 contornos específicos em torno do “mo-
popular assume contornos culturais relacionados com a representação da identida- derno” por parte da classe profissional na altura, formalizada pelas duas Escolas de
Arquitetura do país, representadas pelos seus diretores. Na Escola Superior de Belas-
-Artes de Lisboa – ESBAL por Cristino da Silva (1896-1976) que pugnava pela tradi-
6. Sindicato Nacional dos Arquitetos.
7. O arquiteto e arqueólogo português Ricardo Severo (1869-1940)reúne elementos arquitectónicos de diversas regiões
ção, e na Escola Superior de Belas-Artes do Porto – ESBAP por Carlos Ramos (1892-
de Portugal e aplica-os em moradias no Norte do país, no Porto, mas também em São Paulo e Rio de Janeiro onde 1969) apoiante do “moderno” e seu defensor chegando mesmo a promover uma
encontra seguidores e defensores da tradição lusa aplicada como José Mariano Filho.

570 Quando as aldeias vieram à cidade, quando as cidades foram até às aldeias Tânia Beisl Ramos (Portugal) 571
pesada herança da ideologia da casa portuguesa. Távora continua a dar orientações
para o processo de registro das arquitetura popular:

É indispensável que na história das nossas casas antigas ou populares se


determinem as condições que as criaram e desenvolveram (…) A casa po-
pular fornecer-nos-á grandes lições quando devidamente estudada, pois
ela é a mais funcional e a menos fantasiosa, numa palavra, aquela que está
mais de acordo com as novas intenções. (Távora, 1945)

Será Távora a defender a importância da realização de um estudo da arquite-


tura portuguesa para além do que se conheceu na Exposição do Mundo Português.
As redes das Figuras5 A e B apresentam os períodos da historiografia da ar-
quitetura portuguesa referidos nesta pesquisa. É possível verificar um conjunto de
conexões entre estes períodos e arquitetos, entre estes arquitetos e as edificações,
e entre os próprios arquitetos. É ainda possível verificar a passagem de testemunho
entre as diferentes gerações de arquitetos e a sobreposição de arquitetos em perío-
dos distintos. Estas conexões estão esquematizadas nas três elipses que identificam
em 1 – os arquitetos que contribuíram com obras antes de 1940 e aqueles que par-
ticiparam na Exposição do Mundo Português; em 2 – junta aos dois períodos anterio-
res o I Congresso Nacional de Arquitetura de 1948; e em 3 – reúne o Congresso de
Figura 4 A-D Imagens da aldeia de Arcos de Valdevez: A vista da aldeia, B centro, C casa senhorial e
1948 e o Inquérito. Nota-se uma distinção entre os pontos 1 e 2 relativamente ao 3.
D espigueiro. Fonte: fotos da autora, 2013

remodelação no ensino da Arquitetura, introduzindo a atualização dos métodos de


trabalho. Mas estas duas cidades viriam surgir dois grupos associados à defesa do
“moderno”, as Iniciativas Culturais de Arte e Técnica – ICAT (1946) em Lisboa, e a Orga-
nização dos Arquitetos Modernos – ODAM (1947), no Porto. Mais tarde a oportunida-
de de realização do Inquérito viria a ocorrer,após oCongresso Nacional de Arquitetura
de 1948, reforçada pela ação conjunta das ICAT e da ODAM (Fernandez, 1988). O
evento reuniu os profissionais do país que defenderam os princípios da arquitetu-
ra moderna, para eles, já retratada no núcleo das Aldeias Portuguesas na Exposição
do Mundo Português.Aldeias como Arcos de Valdevez nas imagens abaixo. Um ano
após o congresso é divulgada a realização do Inquérito pelo arquiteto Keil do Amaral
(1910-1975). Mas não antes de Fernando Távora (1923-2005) referir a necessidade

de um trabalho sério, conciso, bem orientado e realista, cujos estudos po-


deriam agrupar-se em três ordens: a) do meio português; b) da Arquitetu-
ra portuguesa existente; c) das possibilidades da construção moderna no
mundo (Távora, 1945)

O texto teria forte impacto no meio profissional. A mensagem de Távora de-


fendia a revisão dos princípios da arquitetura moderna de forma que pudessem ser
melhor adaptados às condições locais. Reflexão consciente e aprofundada sobre a Figura 5 A Conexões entre arquitetos e os períodos significativos da arquitetura portuguesa.

572 Quando as aldeias vieram à cidade, quando as cidades foram até às aldeias Tânia Beisl Ramos (Portugal) 573
tarefa de investigação das especificidades existentes nas diversas regiões do territó-
rio nacional”. Mas para os arquitetos interessava buscar argumentos que pudessem
associar a arquitetura tradicional à linguagem moderna com base na simplicidade
arquitetônica e nas características construtivas das arquiteturas populares nas di-
ferentes regiões do país (Almeida e Fernandes, 1986). Estes profissionais viriam a
demonstrar não haver uma arquitetura portuguesa tal como indicava o movimento
dacasa portuguesa e do nacionalismo do Estado Novo, mas um conjunto de tipolo-
gias diferenciadas, que a Exposição do Mundo Portuguêshá muito dava a conhecer. A
arquitetura popular foi objeto de interesse pelo olhar da “tradição” como do “mo-
derno”. As raízes da identidade lusa e do nacionalismo daquela época entretanto,
foram desaparecendo com o tempo.

Referências Bibliográficas
ACCIAIUOLI, Margarida. Exposições do Estado Novo 1934-1940. Livros Horizonte, Lisboa, 1998.
ALMEIDA, Pedro e FERNANDES, José. História da Arte em Portugal. A arquitetura moderna. Vol.
14. Lisboa: Alfa, 1986.
Figura 5 B Relevância conferida à Exposição do Mundo Português como o evento que maior número de
AUGUSTO-FRANÇA, José. A Arte em Portugal no Século XX. Bertrand Editora, Vendas Nova,
conexões estabeleceu ao longo da história com maior impacto na rede.
1974. (Edição consultada: 3ª Edição 1991).
E finalmente destaca-se a relevância conferida à Exposição do Mundo Português no COSTA, L. Lucio Costa. Registro de uma Vivência. (1ª Edição). São Paulo: Empresa das Artes,
cenário da arquitetura em Portugal como o evento que maior número de conexões 1995. (Edição consultada: 2ª Edição 1997).
estabeleceu ao longo da história. DAMASCENO, Joana. Museus para o povo português. Imprensa da Universidade de Coimbra,
Coimbra, 2010.
FERNANDEZ, Sérgio. Percurso – Arquitetura Portuguesa: 1930-1974. Dissertação de Agregação
As leituras das aldeias portuguesas na ao Curso de Arquitetura da Escola de Belas Artes do Porto em 1985. Porto: FAUP,
Exposição do Mundo Português 1988.
LEAL, João. Arquitetos, Engenheiros, Antropólogos: Estudos sobre Arquitetura Popular no século
A relevância deste estudo consistiu em marcar o momento que na época os- XX Português. Fundação Marques da Silva, Porto, 2009.
cilava entre os modelos arquitectónicos internacionais e as características tradicio- LINO, Raul. Auriverde Jornada.Recordações de uma viagem ao Brasil. Edição Valentim de
nais portuguesas, enquanto referências a seguir. Carvalho, Lisboa, 1937.
Tal como referiu Antônio Ferro no discurso de despedida em 1949, que o MATOS, Madalena Cunha e RAMOS, Tânia Beisl. “Lucio Costa e a herança lusa. Na trilha do
programa da exposição definia apenas que os arquitetos portugueses definissem livro, das cartas e das viagens”. In: I Seminário Internacional. Academia de Escolas de
um novo vocabulário – moderno e português. Os profissionais procuraram respon- Arquitetura e Urbanismo de Língua Portuguesa. Uma Utopia Sustentável. Arquitetura e
der ao desafio, embora de modo isolado. Somente passados dez anos, em 1948 os Urbanismo no Espaço Lusófono: que futuro? V.1. p.776-787, Lisboa, 2010.
arquitetos viriam a apresentar-se como um grupo organizado e convicto de seus RAMOS, Tânia Beisl.O Inquérito visto pelo olhar de outras Áreas Científicas: o registo do “país
ideais, no I Congresso Nacional de Arquitetura. Ou seja, entre 1940 e 1961 ocorre profundo”.In Câmara Municipal de Arcos de Valdevez/Colóquio Internacional
Arquitetura Popular/Casa das Artes de Arcos de Valdevez, no prelo (2013).
um movimento a favor do moderno cuja relevância é assumidamente trabalhada no
“inquérito” e cuja diversidade seria apresentada no Arquitetura Popular em Portugal. RIBEIRO, Orlando Inquérito do Habitat Rural. Ministério da Educação Nacional. Instituto para a
Alta Cultura. Coimbra, 1938.
Para o Regime de Salazar o Inquérito viria permitir aos arquitetos reunir voca-
bulário arquitetônico para definir um “estilo nacional” por meio de uma “cuidadosa

574 Quando as aldeias vieram à cidade, quando as cidades foram até às aldeias Tânia Beisl Ramos (Portugal) 575
SEGURADO, Jorge. As Aldeias Portuguesas na Exposição do Mundo Português. Edição Câmara
Municipal de Lisboa/Ministério das Obras Públicas, Lisboa, 1940. Urban mobility and the death of
the automobile era (EAU)
SINDICATO NACIONAL DOS ARQUITETOS Arquitetura Popular em Portugal. Lisboa: Volumes I e
II, 1961 (1ª Edição); Edição da Ordem dos Arquitetos, 4ª Ed., (Ed. consultada 2004).
TÁVORA, Fernando. O Problema da Casa Portuguesa, Porto, Cadernos de Arquitetura, 1947
(publicado inicialmente na Revista ALÉO, 10 de Novembro de 1945).
Walter Hook (Estados Unidos)

Resumo | Mobilidade urbana e a morte da era do automóvel


Este artigo revela que há uma tendência global nas cidades de orientar seus sistemas de
transporte fora da acomodação privada do movimento de veículo motorizado em favor do
incentivo a caminhadas, ciclismo e transporte de massa (Bus Rapid Transit). Esta tendên-
cia manifesta-se na recente expansão rápida de quilômetros de corredores do sistema Bus
Rapid Transit vistos em nível global, dos sistemas de compartilhamento de bicicletas, e das
alterações das normas de estacionamento, para estimular a reconstrução de novas unida-
des em substituição. Ele procura argumentar que a importância do declínio econômico das
indústrias automotivas pesadas e o crescimento das indústrias baseadas no conhecimento
conduziram a bem sucedidas políticas urbanas para re-orientar o espaço público urbano, do
consumo estimulado de veículo a motor para a criação de espaços culturais vibrantes que
atraiam os trabalhadores mais bem educados.
Abstract | This paper argues that there is a global trend for cities to orient their trans-
portation systems away from accommodating private motor vehicle movement in favor of
encouraging walking, cycling, and bus-based mass transit (Bus Rapid Transit). This trend
manifests itself in the recent rapid expansion of kilometers of Bus Rapid Transit system cor-
ridors globally, of bike sharing systems, and a reversal in parking regulation from encour-
aging the construction of new parking units to their removal. It argues that the declining
economic importance of heavy automotive industries and the growth of knowledge-based
industries have led successful urban politicians to re-orient urban public space away from
stimulating motor vehicle consumption to creating vibrant cultural spaces that appeal to
better educated workers.
Resumen | Este artículo revela la existencia de una tendencia mundial en las ciudades de
orientar sus sistemas de transporte fuera de la comodidad privada de los desplazamientos
en vehículos a motor, en favor de fomentar el caminar, ciclismo y transportes públicos (Bus
Rapid Transit). Esta tendencia se manifiesta en la reciente y rápida expansión de kilómetros
de vias del sistema Bus Rapid Transit a nivel mundial, de sistemas de bicicletas compartidas
y de los cambios en las normas de aparcamiento, para estimular la reconstrucción de nue-
vas unidades que sustitutas. Se pretende argumentar que la importancia de la decadencia
económica de la industria automovilística pesada y el crecimiento de las industrias basadas

576 Quando as aldeias vieram à cidade, quando as cidades foram até às aldeias Walter Hook (Estados Unidos) 577
en el conocimiento, llevan a buenas políticas urbanas de éxito, para reorientar el espacio
público urbano, del consumo estimulado de vehículos a motor a la creación de vibrantes
espacios culturales que atraigan a los trabajadores mejor educados.

In the first decades of the 21st Century, cities around the world are rapidly
turning away from the private motor-vehicle oriented urban mobility paradigm of
the mid-20th Century towards a more environmentally sustainable and equitable
urban transportation paradigm heavily dominated by walking, cycling, and bus-
based surface mass transit known as ‘bus rapid transit’ (BRT). There are three funda-
Inhabitants per vehicle in São Paulo
mental reasons for this shift.
First, consumption and production of the automobile used to constitute a
major share of global economic activity and employment. As such, using private
automobile-oriented urban planning (the construction of roads, parking lots, etc) to
stimulate the continued consumption of automobiles played a positive role in stim-
ulating economic growth and avoiding cyclical economic crises. Today, the motor
vehicle industry and related industries are, like all heavy industrial and manufactur-
ing industries, less important economically, and competition for scarce urban land
is being won by alternative, more economically important uses.
The second is ecological, and the associated economic risks of both oil price
volatility and climate change.
The third is that competition between cities for attracting investment is favor-
ing those cities that are able to attract and retain highly trained knowledge-based
workers. The the lack of a functional pricing mechanism for the allocation of scarce
road space has led, with increasing incomes, to ever growing traffic congestion and Ratio evolution: [parking area/floor footage] ( black) and [parking area/total built foota-
air pollution, degrading the urban environment and wasting time. Cities which are ge] (gray) in São Paulo Source: Hamilton Leite
able to resolve these problems, by re-orienting scare public road space to buses,
bicycles, and pedestrians, are proving more competitive. home construction in new areas of the city where land prices were made cheaper
by lower cost road access.
This was reflected in a highway construction boom that was virtually inter-
Declining importance of the automobile industry national starting in the 1950s, and continuing into the 21st Century, particularly in
developing countries. In Rio, for instance, the Tunel do Pasmado (Botafogo) opened
Starting primarily after World War II, but somewhat later in the developing in 1952, opening the South Zone to development and ushering in the age of the
world, the production and consumption of automobiles became critical to global automobile but also contributing to a period of robust economic growth that lasted
economic growth. Governments wishing to stimulate economic growth, and main- into the 1980s. The Rebouças Tunel and the Vev. Eng Freysinnet opened in 1968,and
tain growth as a counter-cyclical economic policy, tended to build highways. This all streetcars (trams) except for Santa Teresa had stopped operating by 1967. The
generated a lot of employment for lower and moderate income employees for bridge to Niteroi opened in 1974. While major urban highway construction virtually
road construction, automobile manufacturing, transport operations, oil supply, and stopped in the US after the rioting of the 1960s and early 1970s, in Brazil it con-

578 Urban mobility and the death of the automobile era (EAU) Walter Hook (Estados Unidos) 579
China
tinued much longer, with the
Linha Amarela opening in 1998,
Korea
Japan providing higher speed access
Germany to Barra de Tijuca and opening
Brazil
France up development in this fully
Overall
Italy car-oriented area of Rio. The
USA
United Kingdom trends were largely parallel in
São paulo. By 2010, automobile
Manufaturing as percent of GDP 1980-2008 Source: Curious
Cat Economics Blog ownership in Brazilian cities Source: GIZ
started reaching levels similar
to developed countries, with the majority of the population having access to a pri-
A growing number of cities are realizing that what makes them competitive
vate automobile.
is an urban environment attractive to ‘knowledge workers’. The growth industries
All these new car owners needed to park somewhere, so zoning regulations
of tourism, IT, health, biotechnology and other better paid sectors today all require
were mostly changed starting in the 1950s and 1960s around the world to require
well educated, healthy workers who these days prefer urban environments with lots
new homes and apartments to build at least one and sometimes two parking spaces
of amenities like high quality public spaces, bike lanes, sidewalk cafes, and cultural
per residential unit, and often one parking space per 100m2 of commercial proper-
institutions. As congestion has worsened, and people are demanding more exercise-
ty, depending on the type of commercial use. This meant that about 1/3 of any new
rich healthier, lifestyles and less local pollution and noise, cities that convert their
building was taken up with parking, often blighting the streetscape with breaks in
streets from parking spaces to parks and bikelanes are being rewarded. Witness the
the sidewalk to allow for cars to access parking garages. This parking was, as a result,
urban mobility revolutions occurring in most major ‘global cities’ such as New York,
embedded in the built environment in a way that cannot easily be removed.
London, Paris, Tokyo, Seoul, Berlin, Amsterdam, San Francisco, etc. These are the
With the growing mechanization of the production of automobiles and road
most economically powerful cities in the world, and they have very low mode share
construction, however, automobiles and road construction generated less and less
for private cars. Bike use has tripled in New York in the last decade, and virtually all
of the share of total employment, and also a falling share of economic output. The
new growth of trips generated in New York have gone to transit and bike trips, while
major oil and automobile companies used to represent the largest and most power-
traffic fatalities have been cut in half. (New York City Department of Transport).
ful companies in the world. In 1990, GM and Ford were the two largest companies
in the world, Chrysler was 9th, and big oil (Exxon, Shell, Mobil, Texaco, Amoco) rep-
resented five more of the largest 15 companies. While big oil remains important Oil price volatility, climate change, and economic risk
(Exxon is 5th, Shell 7, Petro China 10th, and Chevron 12th, only VW remains in the top
15 (14th), having been largely displaced by US and Chinese banks (5 out of 15), hold- The second reason for a fundamental shift in urban transport policy is the
ing companies, and electronics companies (Apple, Samsung, etc). (Forbes) growing economic risks associated with over-reliance on private cars and imported
While automobile ownership is increasingly ubiquitous in Brazil and much oil. These risks are two fold: oil price volatility and the unknown economic conse-
of the developed world, the global share of automobile manufacturing and manu- quences of climate change.
facturing in general as a share of GDP has been falling everywhere except in China. No one is really sure whether the world is reaching ‘peak oil’ or a period of ever
This has meant that countries wishing to stimulate economic growth can no increasing oil prices, or whether the recent discovery of large commercially viable de-
longer build highways and in other ways subsidize motor vehicle use as a means posits of natural gas, the growing feasibility of biofuels, and the widespread dispersal
of stimulating employment. The automobile industry no longer employs nearly as of fuel efficient engine technologies such as hybrids will be sufficient to replace the
many workers as it did in 1960. In 1960 it took 200 labor hours to build a car; by decline of known oil reserves and avoid significant future oil shocks. One way or an-
2010 it took only 30 labor hours to make a car. Governments wishing to stimulate other, fuel price volatility appears to be with us for the time being. This uncertainty
employment, dollar for public dollar, are therefore no longer advised to turn to the about fuel prices increases the risk of being dependent on oil. Powerful economic
automobile as a form of economic stimulus. interests are increasingly aware of this. Small changes in oil prices represent massive

580 Urban mobility and the death of the automobile era (EAU) Walter Hook (Estados Unidos) 581
transfers of cash from fuel importing countries like the US, China, and Brazil, to oil The spread of bus-based mass transit
exporting countries like Saudi Arabia, Russia, Iran, Iraq, etc. The political economic
consequences of such transfers are concerning to the security establishments in the Globally, mass transit was a first world megacity phenomenon until the oil
developed world. shocks in the 1970s. Bus rapid transit, a technology that replicates the benefits of
In addition, many major coastal cities are increasingly aware that climate heavy rail metro systems using exclusive bus lanes and metro-like stations on sur-
change could have very severe economic consequences. The costs of reconstruction face streets, has spread across the globe in the early part of the 21st Century largely
in New York City after hurricane Sandy alone was estimated at $50 billion,significantly because it made mass transit affordable to the developing world. Total world ki-
greater than all of the money spent on climate change mitigation annually ($500 mil- lometres of mass transit remained under 500 km until the two major oil shocks of
lion), convincing a growing and powerful sector of the global economy to take cli- the 1970s convinced national governments to begin investing in urban mass transit.
mate change seriously. Tthe banks, insurance companies, and the real estate industry Kilometers of metros have grown steadily and arithmetically since then. BRT, after
are the most threatened, and bear the economic costs of climate change; these indus- its introduction in Curitiba in the 1970s, stagnated globally at under 500km until
tries have significant political clout. Shanghai, London, Sydney, New York, many of the after 2000. With the introduction of new BRT systems in Quito, Brisbane and Bogota,
world’s great megacities are coastal, so it is increasingly plausible that the world will however, a wave of new BRT construction began, and BRT was first introduced into
take the climate change problem ever more seriously. Asia (with TransJakarta opening in 2004), and Africa (starting in Johannesburg in
The International Energy Agency (IEA) projects that under current policies, 2009.) Today there is about 4500 km of mass transit in the world’s major cities, and
global oil demand will increase another 18 percent by 20301. Ninety percent of all about 1000 km is BRT, most of which was built in the first decade of the 21st Century.
the cars, trucks, tractors, buses, planes and ships in operation today depend on oil BRT is a technology which is still evolving. The basic concept was first intro-
as their fuel source. Even if the world decided to stop using oil tomorrow, the global duced in Curitiba in the 1970s and was later improved in São Paulo in the late 1980s
economy could not do it Under a low-carbon scenario consistent with warming and then further improved in Curitiba in the early 1990s, with important additional
limited to 2°C, oil’s share in global primary energy demand will need to decline 10 innovations occurring in Bogota, Colombia in 2001 and Guangzhou, China in 2010.
percent by 2030 compared to 2010 (versus a projected BAU increase of 25 percent), Though BRT was invented in Brazil, the dissemination of BRT within Brazil
with almost three-quarters of the reduction coming from the transportation sector. stopped almost entirely from 1992 until the opening of Trans Oeste in Rio in 2012.
This reduction in oil consumption would cut carbon dioxide emissions from oil by 3 Closest to true BRT systems. Beijing, Jakarta, Delhi, Mexico City, Seoul, Dalian,
Gt versus projected 2030 emissions. Most experts believe that only about half of this Changzhou, Xiamen, Pune, Guatemala City, Los Angeles, Eugene, Oregon, Istanbul,
can be achieved through improvements in the fuel efficiency of vehicles, with the and many other cities have since opened BRT-type bus systems but none of them
other half having to come from reductions in private motor vehicle use. have matched the speed, capacity, and operational sophistication of TransMilenio.

Urban mobility, livability, and congestion

The final reason for the shift in urban transport policy is that as motorization
has become more ubiquitous, the status associated with owning and operating a
motor vehicle has declined. At the same time, the lack of a functional price mecha-
nism for the allocation of scarce road space has resulted in severe traffic congestion
and local air and noise pollution all around the world. There is simply not enough
land to build sufficient roads and parking lots to accommodate the entire popu-
lation of the world’s dense urban metropolises to commute using private cars. As
a result, cities have been forced to reallocate their scarce road space to prioritize
public transit, walking, and cycling. The new generation of urban youth, no longer
seeing much social status with a motor vehicle ownership which has become ubiq-
uitous, is rapidly abandoning the automobile oriented lifestyles of their parents.

582 Urban mobility and the death of the automobile era (EAU) Walter Hook (Estados Unidos) 583
700 All of them managed to draw some
Total Mass Transit
10% to 20% of their passengers away
400 from private cars, but most of them
Metro
BRT are in cities with rapid motorization
Metro
and serve too few passengers to fun-
0 damentally reverse the modal split
1974

1984

1994

2004
slide for transit.
Brazilian BRT and Metro system expansion By the early 1990s, Curitiba’s BRT

BRT had the following characteristics:


1. Physically segregated exclusive bus lanes
2. Large, comfortable articulated or bi-articulated buses
3. Fully enclosed bus stops that feel like a metro station, where passengers
pay to enter the BRT station through a turnstile rather than paying the bus driver
Global BRT and Metro system expansion
4. A bus station platform level with the bus floor
5. Free and convenient transfer between lines at enclosed transfer stations ing the system. Today it is about 54% — still high for a city with motor vehicle own-
6. Bus priority at intersections, largely by restricting left hand turns by mixed ership of around 400 cars per 1,000 people.
traffic vehicles Brazilian cities such as São Paulo, Belo Horizonte, and Porto Alegre built bus
7. Private bus operators paid by the bus kilometer lanes similar to Curitiba’s but without ever upgrading them with the key elements
introduced in the early 1990s: prepaid platform-level boarding stations, restruc-
tured bus routes, and bus priority through the city center. The next full featured
Curitiba’s BRT system: Still one of the best BRT was not opened in Latin America until 1996 in Quito, Ecuador. Quito’s electric
trolleybus BRT went boldly through the city’s historical core on narrow streets open
Prior to Curitiba’s BRT system, traffic engineers believed that bus lanes could only to buses. The success of the system soon led to a spate of additional BRT sys-
move about 6,000 passengers per direction per hour in a single lane at average tems throughout Latin America.
speeds around 15 kilometers per hour (kph) (assuming normal distances between Bogota’s Trans Milenio BRT system which opened in 2001 made several criti-
stations of about 500 meters). Curitiba, using bi-articulated buses and the measures cal technical improvements over the Curitiba system. The main bottleneck in Curiti-
mentioned above, was able to move 15,000 passengers per direction at peak hour ba is the bus stop. During rush hour, buses back up waiting to discharge passengers.
(pphpd) at average speeds just above 20 kph in a single traffic lane. This speed and TransMilenio’s principal innovation was to put a passing lane and multiple stopping
capacity is similar to even the best light rail systems. The cost of construction, at only bays at each stop. This had earlier been done in São Paulo on the Santa Amaro corri-
about $2 million per kilometer; was a fraction of most light rail systems (generally dor but without the other features of BRT developed in Curitiba. TransMilenio put all
greater than $20 million per kilometer). The most important measures were the pre- of these features toegether. At TransMilenio’s largest stations, up to five buses can
paid boarding stations. This reduced the boarding and alighting time per passenger allow passengers to board and alight at once. As soon as a bus finishes the boarding
from about 2 to 3 seconds on average to about 0.3 seconds. With large numbers of and alighting process, it can pull out of the stop, regardless of whether or not the
passengers, this amounts to very significant time savings, far more important than bus in front of it has completed the boarding and alighting process, significantly
changes in traffic signals. reducing delay.
Because BRT systems are less expensive and can be built much faster, they The introduction of a passing lane at the bus stop also allowed for significant
are able to expand much faster. Only cities that have built and continued to expand innovation in the nature of services offered. With a single lane light rail line or BRT
BRT systems have actually managed to stabilize public transit’s share of total trips. system, all services have to stop at all stops. The construction of a passing lane at
The share of trips in Curitiba taken by public transport remained above 70% each station stop makes it possible to put a wide variety of express and limited stop
for over two decades, though it began to diminish when the city stopped expand-
services inside the BRT system.

584 Urban mobility and the death of the automobile era (EAU) Walter Hook (Estados Unidos) 585
Other systems, like in São Paulo
and Porto Alegre in Brazil and Bris-
bane in Australia, use normal buses
that operate in mixed traffic, then
enter a busway on a major arterial,
and then leave it again. Because they
are normal buses, their interface with
the station platform lacks the special
BRT characteristics that allows for Bogota’s TransMilenio BRT system with its sub-stops
By the introduction of limited stop services, TransMilenio achieved an operat- and passing lanes.
very rapid boarding and alighting, so
ing capacity of 35,000 pphpd and average speeds around 29 kph. With overcrowd-
the operation within the trunk corridor is slower and the capacity is lower, and sta-
ing, TransMilenio moves 45,000 passengers per direction per hour, comparable to
tions tend to experience frequent bottlenecks.
all but the highest-capacity metros. While the addition of a passing lane consumes
The newest wave of BRT systems combine the benefits of direct services with
additional road space, this passing lane is not required everywhere, only at the sta-
the full off board fare collection and other BRT features previously only found in
tion. TransMilenio also built bike lanes and significantly widened sidewalks along
trunk-and-feeder systems. The new Guangzhou BRT system provides trunk corridor
the entire BRT corridor, important because in Curitiba the busway is frequently used
stations that are designed like a traditional trunk and feeder system, with a suffi-
by cyclists, often with fatal consequences.
cient number of substations and passing lanes to avoid any bus congestion at the
TransMilenio also implemented a number of state-of-the-art contracting
station stop. On the trunk lines, passengers enter all doors of the bus at once from
procedures. Unlike most Latin American BRT systems, where a monopoly of the
a platform level with the bus floor. Off the trunk corridor, however, passengers will
former private bus operators was allowed to take control of the new BRT business,
enter the same bus, but they can only enter the front door and pay the driver. Cali,
in TransMilenio the new services were competitively tendered to three separate op-
Colombia’s new Mio system has a similar combination of direct services with full
erating companies. The performance of these companies is continually monitored
BRT features. Most of the Johannesburg Rea Vaya BRT system is a trunk and feeder
against some contractually determined performance indicators, and if they fail to
service, but some buses will operate on the trunk corridor and in mixed traffic, with
meet these performance targets they are forced to pay fines into an escrow account.
the left side doors designed for an elevated BRT station, and the right side doors
These fines are then given to the company providing the best quality of service at
designed as traditional curb boarding doors.
the end of each month. This has ensured a very high quality of service.
The planned TransBrasil BRT in Rio de Janeiro promises to be the highest ca-
TransMilenio proved to many cities that they really didn’t need to build far
pacity BRT system in the world. Because of extremely high projected passenger vol-
more expensive metro systems, and cities that already had metro systems decided
umes and a very peculiar demand pattern,TransBrasil will have a traditoinal trunk and
to build BRT on corridors that otherwise might have been additional metro lines.
feeder style of service, but it will have an unusually high share of express bus routes
Between 2001 and 2012, new full-featured BRT systems were built in Guayaquil, Ec-
using the BRT trunk corridor. Virtually all services will originate at a station and then
uador, Guatemala City, Guatemala, Jakarta, Indonesia, Perreira, Colombia, Cali, Co-
run directly to downtown without stopping, yielding very high speeds and capacities.
lombia, Mexico City, Mexico, Beijing, China, Johannesburg, South Africa, Lima, Peru,
Guangzhou China, Ahmedabad, India, and dozens of other cities.
TransMilenio and Curitiba are ‘trunk and feeder systems.’ These require pas- Cycling
sengers to take a feeder bus (which operates in mixed traffic) to a transfer terminal
Bike use has also taken off internationally since 2000. Bike use became fash-
where they switch to a special, higher capacity articulated trunk line bus that inter-
ionable again in the developed world partially because auto use had become so
faces with the elevated BRT platforms. Because the BRT infrastructure requires spe-
generalized that it was no longer a status symbol, because of rising ecological con-
cial buses, the feeder network allows the system to cover a much larger area without
sciousness, and the demand for healthier lifestyles and more liveable urban envi-
having to buy a large number of special buses. This routing structure does introduce
ronments for the increasingly wealthy ‘knowledge workers’ that drive the modern
some transfer delay and indirectness of route, however.
economy. Bike sharing, which overcomes the problem of where to park a bicycle,

586 Urban mobility and the death of the automobile era (EAU) Walter Hook (Estados Unidos) 587
has taken off in the 21st Century in particular. Today, more than 400 cities around

Cities with Shared Bike System


the globe have their own bike-share systems, and more programs are starting every Systems Bikes

Total Shared Bike System Flee


year. The largest systems are in China, in cities such as Hangzhou and Shanghai. In 400 250,000
Paris, London, and Washington, D.C., highly successful systems have helped to pro-
Growth in bicycle-sharing
mote cycling as a viable and valued form of transport.. 150,000 schemes and fleet 2000-
Source: Peter Midgley, “Bicycle-Sharing Schemes: Enhancing Sustainable Mo- 200
2010
bility in Urban Areas,” Global Transport Knowledge Partnership, 2011. Source: Peter Midgley,
“Bicycle-Sharing Schemes:
The growing use of bicycles more generally started in initially in Northern. Enhancing Sustainable
European cities followed US and other international cities in embracing the automo- 0 0 Mobility in Urban Areas,”

2000

2005

2010
Global Transport Knowled-
bile in the 1950s and 1960s, but Northern Europe changed directions already start- ge Partnership, 2011.
ing in the 1970s. Bike use in Copenhagen had fallen to only 1/3 of car use in 1970,
and today bike use exceeds car use, at 36% mode share. A similar phenomenon of East Coast cities, bicycle use is recovering and new cycling facilities are being built,
increased bicycle use is observable in most Dutch and German cities as well. This while motorbikes are being systematically banned in a growing number of cities.
resulted from a major shift in policy to promote cycling since the 1970s. In India, bicycle use varies greatly from city to city. Bike infrastructure in India
US cities are far behind on this trajectory. New York City has seen a near tri- is decades behind China, and virtually non-existent, though bike mode share was
pling in bike trips since 2000, largely contemporaneous with the dramatic expansion pretty high, around 9% in Delhi in the early 1990s. Bike mode share has been drop-
of cycling facilities under the Bloomberg administration, but as a share of total trips it ping fast in India since. The new BRT systems being designed in Delhi and Ahmed-
remains below 2%, though the bike share in specific neighbourhoods is much higher. abad both have good cycling facilities designed into them, and their success or
In the developing world, from the 1970s until the 1990s, Chinese cities were failure is tied to the fate of the BRT movement. Cycle rickshaws still constitute an
the most cycling friendly cities in the world, with some cities like Tianjin having important part of the commercial traffic in some secondary cities and in parts of
over 60% of their trips by bicycle, and even heavily motorized cities like Guangzhou Delhi, and modernizing them and incorporating them into modern traffic system
having 25% bike mode share into the 1990s. Highway interchanges featured fully designs is something ITDP and IIT TRIPP have done where we can.
grade segregated cycling facilities, commercial areas virtually all had secure guard- In Latin America, bike mode shares had generally followed US trends, slip-
ed and extremely inexpensive bicycle parking. In the 1980s, as families became ping below 1% of trips in major metropolitan areas. Bogota, under the leadership
richer, many people switched from overcrowded buses and walking to cycling, to of Mayor Penalosa, did an about-face. The construction of some 300 km of Grade
the point where many roads were congested with bicycles. In the 1990s national A cycling facilities brought bike mode share up to about 4%. Rio de Janeiro also in-
policy turned against the bicycle to encourage both increased bus ridership and the vested heavily in cycling facilities, and saw their bike mode share increase similarly,
consumption of automobiles and motorcycles. The East Coast cities which hosted from about 0.5% to about 4%. Curiously, bike mode share in Curitiba also increased
automobile manufacturing facilities were the most aggressive in tearing out their to nearly 5%, though the cycle lanes that they built were primarily recreational and
cycling facilities, while Western cities without auto manufacturing, such as Cheng- many cyclists are simply using normal streets or operating inside the bus lanes.
du, tended to retain their cycling infrastructure. In Guangzhou, bike use dropped
from something like 26% in 1990 to under 5% by 2005, while in Chengdu and other Travel demand management
westen cities it stabilized around 30% to 40%. This drop was actually reflected in
targets embedded in the municipal master plans. The other recent success has been the growth of travel demand manage-
Somewhere around 2005, a growing number of Chinese cities started to real- ment measures that have reduced light vehicle travel. Most important has been the
ize that this policy was causing a lot of traffic congestion and air pollution. Particu- proliferation of the use of on-and off-street parking management and regulation
larly in the south, motorcycle use was exploding with adverse social consequences, to manage traffic congestion. In Europe it is increasingly common to cap the total
such as increased motorcycle based crime, but also pollution and accidents. This led amount of on and off street parking that a city will allow in the downtown areas of
to a backlash against motorcycles, and a growing tolerance for bicycles again as of a city at a level that avoids the streets from congesting. Zurich is perhaps the most
today. After a decade of tearing out bike lanes in Shanghai, Guangzhou, and other advanced parking management system. Private car use dropped in just five years

588 Urban mobility and the death of the automobile era (EAU) Walter Hook (Estados Unidos) 589
in Zurich with the introduction of the parking cap from 40% of trips to 33%, with a valid electronic cash unit on board. These enforcement cameras were generally
the transit system picking up most of the new trips. London, Paris, and a growing placed on the same gantries.
number of other cities around the world have cut their overall parking supply and The impact of the ALS and ERP in Singapore was as follows. When the system
changed their parking regulations to replace minimum parking requirements on first opened, trips into the CBD by private car were cut in half in one year, and the
new developments with maximum parking allowable regulations. number of car trips into the CBD has still not risen to the same volume as the pre-
In Brazil, unfortunately, parking policy is still more car-oriented than in most toll level despite a 250% increase in the vehicle fleet (Singapore LTA). Singapore has
of Europe and the more progressive cities in the US. Little has changed about park- maintained nearly stable public transit ridership for three decades, in part because
ing regulation since the 1960s. While downtown Rio does not require parking mini- they adjust their congestion fare quarterly to ensure a constant level of system per-
mums for new buildings much of the rest of the city requires at least one and some- formance.
times two parking units per new residential unit. Singapore, which implemented a cordon toll in 2006, today sees a 10% re-
Cities are also increasingly charging closer to market rates for on-street park- duction of CO2 emissions in the CBD and a 2% reduction county-wide since imple-
ing. This practice has been in place in Europe for many years, and was finally intro- mentation. Modal split in Singapore for transit has remained roughly stable, falling
duced into the US with the SFPark system in San Francisco. Mexico City introduced from around 60% in the 1780s to about 54% today. So far this has been maintained
closer to market rate parking in several districts starting in Polanco in 2012. Thus far, because the fare is allowed to increase to ensure that 85% of the time the traffic is
however, no Brazilian city has significantly reformed parking policy. moving at free flow speeds.
Congestion charging has also been discussed as an option since a seminal London, which implemented a cordon toll in 2006, saw a significant reduc-
economic article by Nobel Prize winning economist William Vickery in the 1950s, tion in car trips into the cordon zone, a big increase in bus trips, taxi trips, and both
and a first real world example emerged in Singapore in 1975. At that time, it was motorized and non-motorized two wheeler trips. The categorical emission benefit
an ‘area licensing scheme’, where motorists wishing to enter the central business was not that big because buses and taxis in London tend to run on diesel and gener-
district (CBD) had to have a special second license on their windshield. The license ate higher levels of particulate emissions than the car trips they replaced. The travel
cost $3 per day or $60 per month. If they did not have this license they had to pay a time savings benefit has also eroded since the system opened because the charge
fine. It was enforced by police standing at gantries around the city center. This very has not continued to increase to maintain a stable level of service.
low technology solution was relatively cheap to implement and worked well. It cut Several Nordic cities introducing a ring toll around their CBD, including Tron-
congestion significantly and played a key role in maintaining a public transit mode ingen, Oslo, and Riga. These ring tolls were a flat toll for entering the CBD on any of
share in Singapore of around 63% today, which is extremely high for being one of the major roads which did not vary with congestion and used simple toll gates. There
the highest per capita income countries in the world. The system was expanded in were very few roads accessing the CBD and a couple were actually closed. These toll
1990 to also include highway tolls. gates introduce travel delay, but they were required by law to accept cash payments.
The area licensing scheme was not exactly a congestion charge because It succeeded in reducing traffic by 3% – 5%, and increased mass transit use by 6% –
whether or not there was congestion you had to pay to enter the zone, and the 9%. None of these systems vary charges according to congestion level or time of day.
charge did not vary during times of the day that are more congested. In 1998, Singa- London reviewed these experiences and decided to implement an electronic
pore upgraded to an electronic road pricing (ERP) scheme. The ERP operated with a cordon charge costing L8. The idea was to avoid the need to open payment accounts
small electronic unit inside the vehicle. The car operator has to put cash on the pay- and electronic systems for both the cash points on the gantry and the camera en-
ment unit in advance, create an account with the payment system manager, and pay forcement system. Instead, they set up an ‘enforcement only’ system, where it is in-
in advance. Each time the vehicle passes a gantry a charge is deducted from the cash cumbent on the driver to pay in advance by a variety of means. If they have not paid,
card or unit. There were initially 33 gantries in 1998, most of these in a ring around when their license plate is recognized by an enforcement camera, you are ticketed
the CBD, and by 2005 the number of gantry points expanded to 48, with a growing with an L80 fine if you don’t pay by midnight. The idea of this system was to reduce
number of them on congested areas of major highways. In this way, the charge is the operational costs of the tolling scheme, but in practice the operational costs
set based on a rough approximation of actual congestion conditions on the road, were higher than in Singapore. This system had limited flexibility to move away from
so it is closer to a real congestion charge than the ALS. The system required a set of a flat charge, and as such did not vary with congestion levels at specific times of day
enforcement cameras that took a picture of any car that passed which did not have or on specific streets.

590 Urban mobility and the death of the automobile era (EAU) Walter Hook (Estados Unidos) 591
The system opened in 2000. The system decreased congestion delay by about Shenzhen, Mumbai, and San Francisco all mooted congestion charging schemes but
30%, it increased bus speeds by about 20%, introduced considerable mode shift to to date none have been implemented.
the bus system, bicycles, and some motorcycles (not covered by the charge for tech- A growing number of cities are removing urban highways or refusing to build
nology reasons) and decreased ridership by private cars and the metro somewhat. It new highways. The most famous case is the removal of the major highway over
brought about significant reductions (13% – 15%) in NOx and PM10. downtown Seoul that was torn down in recent years. The highway was so blighting
By offering temporary discounts to cleaner vehicles, the scheme was also that the economic effects of the road itself were far more negative than the eco-
used in London to encourage people to purchase cleaner vehicles. These discounts nomic benefits of serving the traffic. Seoul upgraded its bus system to a light BRT
cannot be made permanent, however, or the congestion mitigation effect will ulti- system serving the same corridor, and the result was a huge shift to mass transit.
mately be undermined with the generalization of the cleaner technology. Milwaukee, Wisconsin has also torn down some highways, and San Francisco never
Politically, the Phase I of the London system was successful, and Livingstone rebuilt some highways that fell during the earthquake.
was re-elected. The expansion of the system had less demonstrable benefits, howev- In some cases older elevated roads serve no important traffic function, yet
er. The charge has now increased to L12 for a bigger zone. Livingstone lost his re-elec- severely blight neighborhoods. This is often the case for roads that served ports that
tion bid, not primarily because of this but because of a general trend against Labor have subsequently been relocated, or roads that blocked downtown waterfronts.
nationally and some unrelated scandals. Thenew conservative Mayor has promised Such roads can often be removed, as was the case in Portland.
to reduce the congestion charging zone and fare back to the Phase I system. Even Some cities, particularly in the developing world, are still building new el-
under the higher L12 fare (around $20), the increased charge has been unable to halt evated highways. Mexico City, Santiago, and most Chinese and Indian cities recently
the recovery of motor vehicle traffic. It is quite possible that in wealthy cities like built or are still building elevated highways in congested downtown areas, blighting
London the fare will have to be quite high to maintain a constant level of vehicular large areas of the city.
use, and already at L12 the equity of an extremely high charge is being questioned. Boulevards are designed to accommodate a variety of longer and shorter dis-
In 2006 Stockholm opened a trial congestion charge. Their system used a tance trips handled by a variety of modes. In the 1960s and 1970s many two way
similar cash box/cash card technology similar to that used in the Singapore ERP urban boulevards were turned into high speed one way urban highways. From a traf-
system. Stockholm like Singapore has very limited access points, and only 13 points fic speed perspective this appears to be an attractive option, but it often decreases
control access to the CBD. Each of these was given a gantry with a cash point. The the directness of route, increases pedestrian fatalities, significantly increasing vehicle
charge for entering the control zone varied during the time of day from 0 – 20 SEK kilometers traveled and inconveniencing bus passengers and cyclists. Surabaya, Indo-
but not by location. The capital cost of the technology to implement the system was nesia’s excessive one way street system is estimated to generate a needless 7000km
significantly higher than London ($260 million compared to $150 million) but lower of vehicular traffic. As part of Paris’ modernization program it completely redesigned
to operate ($26 million compared to $180 million), and the revenue was a lot lower the Boulevard Magenta, changing it from a high speed road to a boulevard.
($105 million/year compared to $350 million/year) Congestion dropped by 25% on In São Paulo, the rodizio, a ring of high speed one way roads that circle and
the specific roads where the toll was applied, 30 – 50% less delay time in cues, and blight the city center, used to be a series of tree lined two way boulevards. Returning
an estimated 10-14% reduction in CO2 emissions, and other category emissions this back to a two way boulevard with bus lanes and bike lanes would dramatically
dropped by around 10%. transform downtown São Paulo.
Politically, the congestion charge was a trial and voters were allowed to retain
or reject it in a referendum in 2006. The measure was approved by the general voters
by a fairly narrow margin. The Social Democratic government which implemented the Urban Revitalization
charge lost the re-election campaign, but because of the referendum the new govern-
ment decided to reimpose the system, and it was reimposed permanently in 2007. The simple goal of encouraging high density development along high capac-
São Paulo considered seriously introducing congestion charging under the ity transportation corridors, and low density along low capacity transportation cor-
Martya Suplicy administration, but the plans died when she lost the election to Serra ridors seems trivial theoretically, but politically it is exceedingly rare.
who was opposed to congestion charging, as was Kassab. New York also tried and In the US, the decline of the central city and the resulting automobile based
failed to introduce congestion charging in the second Bloomberg administration. transportation system resulted from a combination of push and pull factors, varying

592 Urban mobility and the death of the automobile era (EAU) Walter Hook (Estados Unidos) 593
from the structure of housing finance, a history of racism, subsidization of private cilities, and running a BRT down bus only streets to serve the area. The results have
car travel, weak municipal control over criminal activity, and reasonably standard been a significant increase in property values in the Centro Historico and a visible
problems of old building stock, like old machinery, developed under different eco- revitalization of the area.
nomic conditions, being obsolete to the economic needs of the modern economy, São paulo also relocated the municipal offices back into the historical center,
and the relative costs of facilitating this transition. invested in significant urban revitalization efforts around the Luz train station, re-
The US has made enormous strides in the last few decades slowing down and stored cultural facilities, and made other efforts which helped to restore the eco-
reversing the process of central city decline, though the process is highly heteroge- nomic vitality of its historical core. Rio’s efforts to revitalize its historical core have
neous. New York City has added population since 1980, and has finally reached an all also been extremely successful, with Lapa becoming now one of the city’s hottest
time high, after several decades of losing population after World War II. The density night spots.
of the city, and transit ridership are growing rapidly and this process is projected to
accelerate. There were many factors behind this turnaround, some of them macro-
economic, but some of them with relevance to an action agenda.
Conclusion
Large areas of New York were badly blighted, with disinvestment and criminal
activity. Turning these areas around required not only transport system investments Since the beginning of the 21st Century, most major cities around the world
(the NYC MTA was saved by a massive investment in infrastructure renewal starting have realized that accommodation of private motor vehicles does not result in a
in the 1980s that saved the system) but also the creation of a variety of public private better city. The cities that are thriving the most economically are almost all making
partnerships for assembling and redeveloping land (the Empire State Development bold steps to turn away from the automobile-dominated paradigm of the mid-20 th
Corporation), infrastructure modernization and investment, and pro-actively mar- Century. Parking lots are becoming public plazas, streets are being carved up into
keting these areas of the city and attracting major investors. In addition, Business busways and bike lanes, highways are being torn down, and the remaining private
Improvement districts were created which did a lot to bring activities to the areas, motor vehicle traffic is being tightly managed to avoid adverse impacts on the qual-
improve street cleaning, security, installation and maintenance of high quality street ity of urban life. The age of the automobile is dead.
furniture, and promotional activities.
These interventions are now well established in the US and Europe, but virtu- (Endnotes)
ally unknown even in the better developed parts of the developing world. 1. IEA, 2012, World Energy Outlook.
In post-socialist Central and Eastern Europe, the dynamics of urban restructur-
ing were fundamentally different. Huge international developers were desperate to
invest in the central cities of Central Europe but were prevented from doing so largely
by regulatory barriers intended to protect indigenous capital, and by a complex maze
of property title complications related to restitution claims from pre-Socialist times,
to corrupt and opaque land privatization processes after the transition, and a host
of bureaucratic regulatory problems that served no particular purpose other than to
drive any developer to the suburbs just to escape the regulatory tangle. This mess was
as true for brownfields as blighted historical neighborhoods as it was for transit acces-
sible old railway yards. Only a few Central European cities have since made progress
on brownfield redevelopment, mostly on properties of high economic value.
Urban blight has in the last few decades also spread to car-oriented Latin
American cities. São paulo and Mexico City saw the emergence of city center blight
as a problem. In Mexico City, the Ebrard Administration began a huge clean up effort
in the historical core, relocating street vendors to markets, removing illegal park-
ing, pedestrianizing several main thoroughfares (Madero), opening new cultural fa-

594 Urban mobility and the death of the automobile era (EAU) Walter Hook (Estados Unidos) 595
Sobre os autores

Docentes do PPGAU e coautores

Christopher Thomas Gaffney – Doutor (UTA,2006)


Graduação em Historia e Filosofia pela Trinity University, San Antonio, Texas;
Mestrado em Geociências pela University of Massachusetts at Amherst.; Dou-
torado em Geografia pela University of Texas at Austin.
Área de atuação e interesse: Transformações sócioespaciais, megaeventos
esportivos, transporte, equipamentos esportivos, produção imobiliária e se-
gurança pública. Professor visitante PPGAU/UFF.
Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Grupo de Pesquisa Grandes Projetos
de Desenvolvimento Urbano – GPDU e Laboratório Globalização e metrópole.

Dinah Tereza Papi de Guimaraens – Doutora (NYU, 1998)


Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Santa Ùrsula/RJ;
Mestrado em Antropologia Social pela UFRJ; Doutorado pela New York Uni-
versity. Pós-Doutorado pela University of New Mexico/EUA.
Áreas de atuação e de interesse: Cultura, Estética, Transculturalidade, Arquite-
tura Contemporânea, Arquitetura de Museus, Patrimônio imaterial;Arquitetura
e Paisagem.
Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Coordenação CAPES-COFECUB.

Eduardo Mendes de Vasconcellos (University of London, 1994)


Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela UFRJ; Doutor em History and
Theory Programme pela Architectural Association/ Birkbeck College / Uni-
versity of London.
Área de atuação e de interesse: História e Teorias da Arquitetura e do Urbanis-
mo e História da Cultura.
Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Colaborador junto ao Setor de Pes-
quisa e Desenvovimento do Departamento de Produção Cultural / Pólo Rio
das Ostras.

597
Fernanda Éster Sánchez García – Doutora (USP, 2001) Glauco Bienenstein – Doutor (UFRJ, 2000)
Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela UFPR; Mestrado em Plane- Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Escola de Arquitetura e Urbanis-
jamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ; Doutorado em Geografia mo da Universidade Federal Fluminense – EAU/UFF; Mestrado em Geografia
Humana pela USP. pelo Instituto de Geociências da UFRJ; Doutorado em Planejamento Urbano
e Regional pelo IPPUR/UFRJ.
Áreas de atuação e interesse: grandes projetos urbanos, planejamento
urbano, cultura e ideários urbanos. Pesquisadora/Produtividade em Pesquisa Áreas de atuação e interesse: planejamento urbano, grandes projetos urba-
– CNPq. nos, teoria de planejamento, teoria do projeto de arquitetura.
Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Coordenadora do Grupo de Pesqui- Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Coordenador do Grupo de Pesquisa
sa Grandes Projetos de Desenvolvimento Urbano – GPDU. Coordenadora do Grandes Projetos de Desenvolvimento Urbano – GPDU. Coordenador do La-
Laboratório Globalização e Metrópole/PPGAU/UFF. boratório Globalização e Metrópole/PPGAU/UFF.

Fernanda Furtado de Oliveira e Silva – Doutora (USP, 1999) Jorge Baptista de Azevedo – Doutor (UFF, 2007)
Graduação em Arquitetura e Urbanismo pelo Instituto Metodista Bennett; Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Escola de Arquitetura e Urba-
Especialização e Mestrado em Planejamento Urbano e Regional pela UFRJ; nismo da Universidade Federal Fluminense – EAU/UFF; Mestrado em Educa-
Doutorado e Pós-Doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP. ção pela Universidade Federal Fluminense; Doutorado em Geografia Humana
pelo Instituto de Geociências da UFF.
Áreas de atuação e interesse: planejamento urbano, gestão do solo urbano,
estruturação urbana e dinâmica imobiliária e instrumentos de intervenção Área de atuação e interesse: Paisagismo, desenho e ensino.
urbana – Brasil e América Latina.
Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Grupo de Pesquisa Avaliação pós-
Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Rede Urbanismo no Brasil – Subpro- -ocupacional da Urbanização da Universidade Federal Fluminense.
jeto Rio de Janeiro: teorias e práticas em temporalidades diversas. Colabora-
dora do Lincoln Institute of Land Policy. José Simões de Belmont Pessôa – Doutor (IUA, 1992)
Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela UFRJ; Especialização em conser-
Gerônimo Emilio Almeida Leitão – Doutor (UFRJ, 2004) vação e restauração de monumentos e sítios pela UFBA; Doutorado em Pia-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela UFRJ; Mestrado em Geografia nificazione Territoriale pelo Instituto Universitario Di Architettura Di Venezia;
pelo Instituto de Geociências da UFRJ e em Arquitetura e Urbanismo pela Pós-doutorado pela Universidade de Coimbra.
UFRJ; Doutorado em Geografia pela UFRJ e em Planejamento Urbano e Re-
Áreas de atuação e interesse: patrimônio histórico, morfologia urbana, teoria
gional pelo IPPUR/UFRJ.
e história da arquitetura e do urbanismo. Pesquisador/Produtividade em Pes-
Áreas de atuação e de interesse: habitação social, regularização fundiária e quisa – CNPq.
urbanização de favelas.
Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Rede Lucio Costa, obra completa.

Jonas Delecave
Lélia Mendes Vasconcellos – Doutora (USP, 1997)
Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Escola de Arquitetura e Urba-
Graduação em Arquitetura pela FAU/UFRJ; Mestrado em Urban Design pela
nismo/ UFF.
Oxford Brookes, Grã Bretanha; Doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela
Área de atuação e interesse: Teoria do projeto arquitetônico e Projeto urbano. Universidade de São Paulo.
Áreas de atuação e interesse: Teoria e história do urbanismo, morfologia
urbana, planejamento e gestão do espaço.

598 Sobre os autores 599


Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Grupo de Pesquisa: Transformação, Maria de Lourdes Pinto Machado Costa – Doutora (USP, 1998)
intervenção e gestão do território – TIGT/PPGAU/UFF. Graduação em Arquitetura e Especialização em Urbanismo pela UFRJ; Mes-
trado em Analyse Régionale et Aménagement de l’Espace pelo IEDES/Uni-
Louise Land Bittencourt Lomardo – Doutora ( UFRJ, 2000) versidade de Paris I – Panthéon Sorbonne; DEA em Geografia pela Ecole de
Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/UFRJ; Mestrado em Enge- Hautes Etudes en Sciences Sociales; Doutorado e Pós-Doutorado pela FAU/
nharia Nuclear e Planejamento Energético pela UFRJ; Doutorado em Plane- USP.
jamento Energético pela COPPE/UFRJ; Pós-doutorado pelo ISE Fraunhofer Áreas de atuação e interesse: planejamento urbano e regional, teoria da urba-
(Alemanha). nização, gestão municipal, paisagem e meio ambiente.
Áreas de atuação e interesse: meio ambiente, sustentabilidade, tecnologia da Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Coordenadora do Grupo de Pesquisa
edificação, eficiência energética predial. Transformação, intervenção e gestão do território – TIGT. Rede Dispersão urbana.
Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Coordenadora do Laboratório de
Aline Couto da Costa
Conservação de Energia e Conforto Ambiental – LabCECA.
Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Mestrado pelo PPGAU/UFF. Profes-
Ingrid Chagas Leite da Fonseca sora dos Cursos de Graduação em Arquitetura, Urbanismo e Engenharia de
Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/UFRJ; Doutorado em Con- Produção / ISECENSA.
forto Ambiental e Eficiência Energética pelo PROARQ/FAU/UFRJ; Pós-douto-
Diana Bogado Correa da Silva
rado no PPE/COPPE/UFRJ.
Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela EAU/UFF. Bolsista de Iniciação
Carla Cristina da Rosa de Almeida Científica PIBIC-UFF; Mestrado pelo PPGAU/UFF.
Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela EAU/UFF; Mestrado pelo
PPGAU/EAU/UFF. Maria Lais Pereira da Silva – Doutora (UFRJ, 2003)
Graduação em Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Ja-
Estefânia Neiva Mello
neiro; Mestrado em Planejamento Urbano e Regional pela COPPE-UFRJ; Dou-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela EAU/UFF; Mestrado pelo torado em Geografia pelo Instituto de Geografia da UFRJ.
PPGAU/EAU/UFF.
Área de atuação e interesse: política habitacionais, habitação social, sociolo-
gia urbana, cultura, identidade e representações sociais.
Lucia Capanema Alvares – Doutora (UIUC, 1999)
Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Grupo de pesquisa Patrimônio
Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas
urbano
Gerais; Mestrado em City And Regional Planning, pela Memphis State Univer-
sity; Doutorado em Regional Planning/ University of Illinois At Urbana Cham-
João Paulo Oliveira Huguenin
paign; Pós-doutorado em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ.
Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela EAU/UFF; Bolsista de Iniciação
-Área de atuação e interesse: planejamento comunitário, movimentos sociais Científica – PIBIC-FAPERJ; Mestrado pelo PROURB/UFRJ.
e conflitos urbanos, desenvolvimento socioeconômico, teoria do planeja-
mento, paisagem e planejamento do turismo.
Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Rede de cooperação em pesquisa e
projeto sobre espaço público, ordenamento territorial e urbanismo em escala
regional – RCORT/UFF.

600 Sobre os autores 601


Marlice Nazareth Soares de Azevedo – Doutora (IUP,1987) Eloisa Helena Barcelos Freire
Graduação em Arquitetura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Mes- Graduação e mestrado em Engenharia Civil. Pesquisadora associada ao
trado em Planejamento Urbano e Regional pela COPPE/UFRJ; Doutorado NEPHU/UFF.
pelo Institut D’Urbanisme de Paris.
Natalia Oliveira
Áreas de atuação e interesse: teoria e história do urbanismo, planejamento
Graduação em Assistente Social; Especialização em Planejamento e Política
urbano e regional, meio ambiente. Pesquisadora/Produtividade em Pesquisa
Pública pelo IPPUR/UFRJ.
– CNPq. Professora titular/UFF.
Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Coordenadora do Grupo de Pesqui- Daniela Amaral
sa Patrimônio urbano. Rede Profissionais da cidade Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela EAU/UFRJ; Mestrado pelo
PPGAU/UFF; Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pelo PPGAU/UFF.
Nireu Oliveira Cavalcanti – Doutor (UFRJ,1997)
Graduação em Arquitetura pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Sergio Roberto Leusin de Amorim – Doutor (UFRJ,1995)
Federal do Rio de janeiro; Doutorado em História Social pela Universidade Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela UFRJ; Mestrado e Doutorado
Federal do Rio de Janeiro. em Engenharia de Produção pela UFRJ.

Áreas de atuação e interesse: História Urbana, cidade do Rio de Janeiro e Rio Área de atuação e interesse: gestão de processo de projeto, gerenciamento e
de Janeiro Colonial. gestão da qualidade na construção civil e aplicações de tecnologia de infor-
mação em AEC. Professor titular/UFF.
Pedro da Luz Moreira – Doutor (UFRJ, 2007) Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Rede Bim-Brasil Modelagem e re-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de presentação de produto. Rede cooperada de programas de pós-graduação.
Janeiro; Mestrado e Doutorado em Urbanismo pelo PROURB/UFRJ.
Áreas de atuação e interesse: Teoria e História do Projeto, Urbanização de Fa- Sonia Maria Taddei Ferraz – Doutora (UFRJ,1999)
velas, Habitação, Mobilidade, Densidade. Graduação em Arquitetura pela UFRJ; Mestrado em Analyse Régionale et
Aménagement de l’Espace pela Universidade de Paris I – Panthéon Sorbonne;
Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Grupo de Trabalho sobre Habitat da
Doutorado em Comunicação e Cultura pela UFRJ.
União Internacional de Arquitetos – UIA.
Área de atuação e interesse: Estudos da Habitação, Teoria da Arquitetura, Ha-
Regina Bienenstein – Doutora (UFRJ, 2001) bitação social.

Graduação em Arquitetura pela FAU/UFRJ; Mestrado em Arquitetura pela Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Coordenadora do Grupo de Pesqui-
Syracuse University, EUA; Doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/ sa Arquitetura da Violência.
USP.
Bruno Amadei Machado
Áreas de atuação e interesse: habitação social, informalidade habitacional,
Aluno da Escola de Arquitetura e Urbanismo/UFF e Bolsista de Iniciação Cien-
gestão urbana e habitação, urbanização e regulação fundiária de favelas, im-
tífica PIBIC UFF.
pactos de grandes projetos urbanos. Professora titular/UFF.
Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Coordenadora do Núcleo de Estu- Juliane Guimarães Baldow
dos e Projetos Habitacionais e Urbanos da Universidade Federal Fluminense Aluna da Escolade Arquitetura e Urbanismo/UFF e Bolsista de Iniciação Cien-
– NEPHU/UFF. tífica UFF-FAPERJ.

602 Sobre os autores 603


Thereza Christina Couto Carvalho – Doutora (OBU, 1994) Áreas de atuação e interesse: Projeto e Teoria do Urbanismo e Geografia Hu-
Graduação em Arquitetura pela UFRJ; Mestrado em Planejamento Urbano e manista, paisagem e lugar, adequação ambiental, dispersão urbana, mobili-
Regional pela UFRJ; Doutorado pela Oxford Brookes University; Pós-doutora- dade e transporte.
do pela Universidade Técnica de Lisboa. Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Coordenador do Grupo de Pesquisa
Áreas de atuação e interesse: morfologia urbana, espaços públicos, planeja- Cidade, processo de urbanização e ambiente.
mento urbano e regional, meio ambiente e habitação.
Camila Quevedo dos Santos
Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Coordenadora da Rede de coope-
Graduação em Arquiteta e Urbanismo. Bolsista de Iniciação Científica – CNPq/
ração em pesquisa e projeto sobre espaço público, ordenamento territorial e
PIBIC e UFF.
urbanismo em escala regional RCORT/UFF.

Aline Lima Santos


Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela UFF; Mestrado pelo PPGAU/UFF.
Autores colaboradores externos
Vera Lucia Ferreira Motta Rezende – Doutora (USP, 1995)
Graduação em Arquitetura pela UFRJ; Mestrado em Engenharia de Produção
Profa Dra Anne-Marie Broudehoux (Canadá)
pela COPPE/UFRJ; Doutorado e Pós-doutorado pela FAU/USP.
Graduação em Arquitetura. Doutora em Arquitetura pela University of Califor-
Área de atuação e interesse: teoria e história do urbanismo, planejamento nia Berkeley (2002). Pofessora da School of Design da Universida de Quebec,
urbano e regional, meio ambiente. Pesquisadora/Produtividade em Pesqui- Montreal. Pesquisadora, publicou vários livros e artigos sobre a construão da
sa-/ CNPq. imagem urbana no contexto dapreparação de megaeventos.
Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Rede Urbanismo no Brasil – Coordena-
dora do Subprojeto Rio de Janeiro: teorias e práticas em temporalidades diversas. Profa Dra Ada Esther Portero Ricol (Cuba)
Graduação em Arquitetura; Mestrado em Ciências e Doutorado em Ciências
Vinicius de Moraes Netto – Doutor (UCL,2007) Técnicas pela Universidade de Havana. Professora titular de Tecnología de la
Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela UFRGS; Mestrado em Planeja- Construcción, Rehabilitación y Mantenimiento de Edificaciones do Departa-
mento Urbano e Regional pelo PROPUR/UFRGS; Doutorado em Advanced mento Docente de Extensión Universitaria.
Architectural Studies/University College London; Pós-Doutorado em Áreas Laboratório-Grupo de pesquisa: Grupo para la Protección y Conservación del
Estratégicas do PNPD/CAPES. Patrimonio Cultural de la CUJAE (GPCC).
Áreas de atuação e interesse: relações sociedade – espaço, sistemas de comu-
nicação; espaço urbano e arquitetônico; interpretações da cidade; experiên- Profa Gina Rey (Cuba)
cia urbana; efeitos sociais da morfologia arquitetônica. Graduação em Arquitetura pela Universidade de Havana; Professora da Fa-
Grupo de Pesquisa – Laboratório – Rede: Urbana Rede de Pesquisa. cultad de Arquitectura del ISPJAE y del Colegio Universitario San Gerónimo
de La Habana.
Werther Holzer – Doutor (USP, 1998)
Graduação em Arquitetura e Urbanismo e em Comunicação Social – Cinema,
pela Universidade Federal Fluminense; Mestrado em Geografia pela UFRJ;
Doutorado em Geografia Humana pela USP.

604 Sobre os autores 605


Prof. Giorgio Piccinato (Itália) Profa Silvia Arango (Colômbia)
Professor emérito de Planejamento urbano e Chefe do Departamento de Arquiteta pela Universidade dos Andes, Bogotá. Diploma de Desenho Urbano
Urban Studies, Roma Tre University, desde 2010. Diretor do Programa de Dou- pela Oxford Polytechnic e Doutorado em Urbanismo pela Universidade de
torado Territorial policies and local project. Paris XII.
Consultor para as Nações Unidas, União Européia e Slovenian Research Pesquisadora de História da arquitetura latinoamericana. Professora do Mes-
Agency para programas de planejamento urbano e regional e conservação trado em História e Teoría da Arquitetura e do Doutorado da Faculdade de
urbana. Artes da Universidade Nacional da Colombia.

Profa Dra Inés Sánchez de Madariaga (Espanha) Profa Dra Tânia Beils Ramos (Portugal)
Graduação em Arquitetura pela Columbia University, EAU; Doutorado em Ar- Graduação em Arquitetura pela Universidade de Brasília; Mestrado em Plane-
quitetura pela Universidad Politécnica de Madrid. Profesora Titular de Urba- amento Regional e Urbano pela Universidade Técnica de Lisboa; Doutora em
nismo de la Escuela de Arquitectura de Madrid. Engenharia do Território pelo Instituto Superior Técnico;Pós-Doutorado em
Sustentabilidade Urbana; Professora do Centro de Investigação em Arquite-
Prof. Dr Laurent Vidal – Doutor (Paris III, 1995) tura, Urbanismo e Design da Univeridade de Lisboa.
Formação em Estudos políticos pelo Institut d’Etudes Politiques (1987), Licen- Grupo de pesquisa Transformação, intervenção e gestão do território PPGAU/
ciatura em História (1988), DEA em Echanges culturels internationaux (1990) e UFF.
doutorado em História (1995), todos os títulos pela Universidade de Grenoble
II. Coordenador de Pesquisas pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Socia- Prof. Dr. Walter Hook (EUA)
les (2005).
Formação em Desenvolvimento Econômico pela Columbia University School
of International Affairs,1983. Mestrado (1989) e Doutorado (1996) pela Colum-
Prof. Dr. Nestor Goulart Reis (Brasil) bia University School of Urban Planning; Chief Executive Officer / Institute for
Graduação em Arquitetura e Urbanismo pela FAU e em Ciências Sociais pela Transportation and Development Policy.
Universidade de São Paulo. Livre docente FAU/USP. Professor titular FAU/USP.
Coordenador do Laboratório Estudos sobre Urbanização, Arquitetura e Pre-
servação – LAP/FAU/USP e da Rede Dispersão urbana e pesquisador A1 do
CNPq.

Prof. Msc. Ricardo Machado Jardo.


Graduação em Arquitetura pelo ISPJAE; Mestrado en Vivienda social; Profes-
sorAssistente do Departamento Docente de Extensión Universitaria.
Laboratório-Grupo de pesquisa Grupo para la Protección y Conservación del
Patrimonio Cultural de la CUJAE (GPCC). Dirección de Extensión Universitaria

Alunos Colaboradores
Mirelle Cristóbal Fariñas, Abniel Ramirez González, Roberto Adám Bell Sellén
da Universidade de Havana.

606 Sobre os autores 607


Niterói, 2014

Edição
FAPERJ e Casa 8

Coordenação editorial
Ernandes Fernandes e Maria de Lourdes Costa

Capa
Ernandes Fernandes e Beatriz Ferreira

Revisão técnica
Maria de Lourdes Costa e Maria Laís Pereira da Silva

Revisão português
Caroline Soares

Revisão inglês
Cinthia Serrano

Revisão espanhol
Milena Sampaio da Costa e Antônio Carrizosa Pérez

Padronização , Projeto Gráfico e Diagramação


Elayne Fonseca e Beatriz Ferreira

Secretária
Angela Carvalho

Editora
Casa 8
DOCENTES PPGAU |

Dinah Papi Guimaraens


Eduardo Mendes de Vasconcellos
Fernanda Ester Sánchez García
Fernanda Furtado de Oliveira e Silva
Gerônimo Emilio Almeida Leitão | Jonas Delecave
Glauco Bienenstein
Jorge Baptista de Azevedo
José Simões de Belmont Pessôa
Lelia Mendes de Vasconcellos
Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas L. da Fonseca,
Carla Cristina da Rosa de Almeida e
Estefânia Neiva Mello
Lucia Capanema Alvares
Maria de Lourdes Costa | Aline Couto da Costa e Diana Bogado da Silva
Maria Lais Pereira da Silva | João Paulo Oliveira Huguenin
Marlice Nazareth Soares de Azevedo
Nireu Oliveira Cavalcanti
Pedro da Luz Moreira
Regina Bienenstein | Eloisa H. Barcelos Freire, Natalia Oliveira e Daniela Amaral
Sergio Roberto Leusin de Amorim
Sonia Maria Taddei Ferraz | Bruno Amadei Machado e Juliane G. Baldow
Thereza Christina Couto Carvalho | Aline Lima Santos
Vera Lucia Ferreira Motta Rezende
Vinicius M. Netto | Julio Celso Vargas e Renato Saboya
Werther Holzer | Camila Quevedo dos Santos

COLABORADORES EXTERNOS
Anne-Marie Broudehoux – Canadá
Ada Esther Portero | Ricol Ricardo Machado Jardo – Cuba
Gina Rey – Cuba
Giorgio Piccinato – Itália
Inés Sánchez de Madariaga – Espanha
Laurent Vidal – França
Nestor Goulart Reis – Brasil
Silvia Arango – Colômbia
Tânia Beisl Ramos – Portugal
Walter Hook – Estados Unidos

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