Вы находитесь на странице: 1из 11

1783

Clareamento gengival: ensino e etnocentrismo

ARTIGO ARTICLE
Gingival bleaching: teaching and ethnocentrism

Edson Daruich Bolla 1


Paulete Goldenberg 2

Abstract The aim of this study was to identify Resumo O estudo objetivou identificar os padrões
buccal/gingival cosmetic dentistry patterns sub- de estética bucal/gengival subjacentes à formação e
jacent to formation and professional practice of prática profissional do cirurgião-dentista, na pers-
the dental surgeon from the ethnocentrism point pectiva do etnocentrismo. A partir da análise do-
of view. This is an exploratory study with a qual- cumental e da realização de entrevistas (semies-
itative approach based on the thematic analysis. truturadas) com cirurgiões dentistas formados há
Initially a documental analysis was carried out. dez ou mais anos, o estudo recorreu a uma aborda-
Thereafter, dental surgeons were interviewed and gem qualitativa, ancorada na análise temática. No
semi-structured questions were applied. In the âmbito do ensino da periodontia, o estudo eviden-
Periodontal teaching field, this study showed that ciou que a presença da pigmentação fisiológica é
the presence of racial melanosis is omitted or omitida ou tratada como uma alteração de nor-
treated as an alteration in the normality patterns malidade e/ou antiestética. Todos os entrevistados
and it is considered anti-aesthetic. All the inter- aprenderam a realizar o clareamento gengival em
viewers learnt how to practice gingival bleaching nível de pós-graduação, sendo estimulados a ofer-
in the post-graduation courses, they were all en- tar tal procedimento em nome de um sorriso sau-
couraged to offer this cosmetic dentistry proce- dável e bonito. Diante da supervalorização da efi-
dure with the opportunity of obtaining a beauti- ciência da técnica, ressalta a ausência da discussão
ful and healthy smile, thus assuring the belief of da questão estética na perspectiva étnica. Parece
the Caucasian racial aesthetic superiority. This que a oferta do clareamento gengival se faz nortea-
1
study make us think that the offer of gingival da pelo padrão branco de beleza, evidenciando o
Departamento de
Psicologia da Educação, bleaching is oriented by the Caucasian pattern of caráter etnocêntrico do procedimento.
Faculdade de Educação, beauty evidencing the ethnocentric character of Palavras-chave Etnocentrismo, Embranqueci-
UNICAMP. Av. Bertrand
this procedure. mento, Clareamento gengival
Russel 801, Cidade
Universitária “Zeferino Key words Ethnocentrism, Whitening, Gingi-
Vaz”. 13083-865 Campinas val Bleaching
SP. edsonbolla@bol.com.br
2
Programa de Pós-
graduação em Ensino em
Ciências da Saúde, Centro
de Desenvolvimento do
Ensino Superior em Saúde,
Universidade Federal de São
Paulo.
1784
Bolla ED, Goldenberg P

Introdução modalidade de racismo à brasileira, segundo


Domingues8 – o branqueamento era apresenta-
Objetivando identificar padrões de estética bu- do como um processo irreversível no país. Pelas
cal/gengival subjacentes à formação e prática pro- estimativas mais “confiáveis”, o tempo necessá-
fissional do cirurgião-dentista, focalizamos, no rio para a extinção do negro em terra brasileira
presente estudo, o exercício do clareamento gen- oscilaria entre cinquenta e duzentos anos. Ber-
gival na perspectiva do etnocentrismo. nardino9 afirma que, ao lado do mito da demo-
Segundo Thomaz1, o etnocentrismo “[...] con- cracia racial, arquitetou-se no Brasil o ideal do
siste em julgar como certo ou errado, feio ou branqueamento como uma política nacional de
bonito, normal ou anormal os comportamen- promoção da imigração européia que visava su-
tos e as formas de ver o mundo dos outros po- prir a escassez de mão de obra resultante da abo-
vos a partir dos próprios padrões culturais [...]”. lição e modernizar o país através da atração de
Ainda que caminhem juntos, etnocentrismo e mão de obra européia.
racismo não são a mesma coisa. Lévi-Strauss, A ideologia do embranquecimento apresenta
citado por Machado2, afirma que não se pode o branco como modelo de beleza e de sucesso. A
confundir o racismo – considerado como uma hierarquização das pessoas em termos de sua
[...] doutrina falsa que pretende ver nas caracte- proximidade a uma aparência branca ajudou a
rísticas intelectuais e morais atribuídas a um con- fazer com que indivíduos de pigmentação escura
junto de indivíduos [...] o efeito necessário de um desprezassem a sua origem africana, cedendo
patrimônio genético comum – com a atitude de assim à forte pressão do branqueamento, levan-
indivíduos ou grupos cuja fidelidade a certos va- do-os a fazer o melhor possível para parecerem
lores os torna parcial ou totalmente insensíveis a mais brancos10.
outros valores. Entendendo que as posturas et- Segundo Carneiro4, existe um preconceito
nocêntricas podem evoluir para um racismo, velado em nossa sociedade, no qual dificilmente
particularmente diante do intenso processo de encontramos nas falas dos indivíduos a sua ex-
inclusão-exclusão sociais em nosso meio, consi- plicitação. Tal pensamento está nas formas de
deramos a definição de Munanga3: “O racismo é agir, nas opiniões e opções que os sujeitos fazem
uma crença na existência das raças naturalmente julgando os negros – como inferiores – pela cor
hierarquizadas pela relação intrínseca entre o fí- de sua pele e não pela sua capacidade, índole e
sico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o caráter. Para a autora, no Brasil, tem sido usual
cultural”. sustentar a imagem de um país cordial, caracte-
No Brasil, como refere Carneiro4, tem sido rizado pela presença de um povo pacífico, sem
usual sustentar a imagem de uma nação cordial, preconceito de raça e religião.
caracterizada por apresentar um povo pacífico e Tal negação do racismo acaba por propiciar
sem preconceito de “raça”, sendo que durante a hegemonia do branco e, nesse âmbito, se ins-
anos alimentamos a idéia de que vivemos uma creve a formação do clareamento gengival, apre-
democracia racial. Entretanto, tal democracia sentado aos discentes de odontologia como uma
racial não existe, haja vista as desigualdades e técnica resultante dos avanços profissionais.
limites de oportunidades oferecidas aos negros Os primeiros cursos de graduação em odon-
ao longo da história. tologia, no Brasil, foram criados em outubro de
De acordo com Soligo5, em 1501, se inicia a 1884, nas Faculdades de Medicina da Bahia e do
história do negro no Brasil. A transição do tra- Rio de Janeiro. Em 1898, foi fundada a Escola
balho indígena para o africano explica-se pelo (privada) Livre de Farmácia e Odontologia em
tráfico negreiro que abriu caminho a um negócio São Paulo, sendo que em 1933 se concretiza a
rendoso, de alto valor comercial6. separação dos cursos de odontologia das escolas
Segundo Schwarcz, citado por Haag7, no fi- médicas6.
nal do século XIX, se afirmava que a mistura ra- No processo de reorganização do ensino mé-
cial era prejudicial e que um país formado por dico nos Estados Unidos e Canadá, o Relatório
muitos segmentos raciais estava fadado à deca- Flexner, publicado em 1910, refletiu no ensino
dência. Segundo a autora, Nina Rodrigues, assu- superior, defendendo a inserção das escolas de
mindo o “darwinismo racial”, preconizava a se- medicina nas instituições universitárias. O rela-
paração racial: a seleção natural daria cabo, no tório previa a criação de departamentos em lu-
processo competitivo, dos segmentos inferiores gar de cátedras e o desenvolvimento de ensino e
que seriam postos sob controle ou eliminados. pesquisa, destacando a formação em ciências.
No período pós-abolicionista – expressando uma Tais disposições comportariam a criação do ci-
1785

Ciência & Saúde Coletiva, 15(Supl. 1):1783-1793, 2010


clo básico antecedendo ao ciclo profissionalizan- inscreve num quadro de referência cultural. Se-
te, assim como a incorporação do hospital como gundo Mandarino14, a estética é pessoal e subje-
campo de treinamento na formação de médicos. tiva, variando conforme a época e a região em
A reprodução de igual movimento no âmbito da que as pessoas vivem. Para ele, os padrões estéti-
odontologia, de acordo com Gies, citado por Oli- cos da sociedade atual exigem um sorriso bonito
veira6, constituiria a base para o desenvolvimen- e harmonioso, incentivando a procura de trata-
to tecnológico ao lado do desenvolvimento das mento odontológico para correções de imperfei-
especialidades que consubstanciariam o caráter ções dentárias.
tecnicista da formação em odontologia em nos- Katz15 afirma acreditar que a beleza é uma
so meio. conquista e não um dado genético, pois ela se
No decorrer da trajetória desencadeada a conquista dentro de um grupo social. Afirma,
partir da reforma universitária (que se instala ainda, que é sempre uma luta muito difícil alcan-
em 1968), reafirma-se o desenvolvimento da pes- çar o que deve ser o corpo para corresponder a
quisa com a instalação da pós-graduação que um padrão, lembrando que a conquista da bele-
suportaria propostas da formação especializada za é infinita: é um movimento incessante na bus-
de recursos humanos. ca de uma perfeição que não é nem definida.
Nas décadas seguintes, no contexto da inten- Discutindo a questão estética da população
sificação da globalização, renovam-se as propos- negra, Gould16, ao comentar sobre as idéias de
tas relativas ao processo ensino/aprendizagem, alguns abolicionistas, dentre eles Benjamin Frank-
sendo preconizadas reformas curriculares, asse- lin, relata que, mesmo entre aqueles que conside-
gurada a flexibilidade no tocante à sua organiza- ravam a inferioridade dos negros como puramen-
ção. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na- te cultural, a frequência do juízo estético que de-
cional11 de 1996, destacando a necessidade de aten- terminava a superioridade da população branca
der às demandas sociais, no artigo 43, propõe em detrimento das demais era surpreendente.
estimular a criação cultural e o desenvolvimento Em resposta à busca pela “perfeição não defi-
do espírito crítico e do pensamento reflexivo. Tal nida”17, mas associada ao padrão branco de be-
lei dispõe sobre a extinção dos currículos míni- leza, é que muitas técnicas terapêuticas de modi-
mos, desencadeando as proposições em torno ficações de caracteres presentes em pessoas não
de mudanças curriculares explicitadas pelas Di- brancas têm sido desenvolvidas com o intuito de
retrizes Curriculares Nacionais (2001). Desde o assemelhá-las aos padrões estéticos vigentes na
final de 2001, os cursos de odontologia começa- sociedade ocidental: o padrão estético da popu-
ram a buscar soluções, cumprindo as exigências lação branca (branqueamento estético).
de elaboração de projetos político-pedagógicos, Domingues discute o que denomina de “bran-
dando conta de mudanças curriculares envolven- queamento estético” no Brasil. Para ele, a ideolo-
do a profissionalização do trabalho docente. gia do branqueamento se expressava no terreno
Para Péret e Lima12, a formação do professor estético. O modelo branco de beleza, considera-
de odontologia tem sido baseada na racionali- do padrão, pautava o comportamento e a atitu-
dade técnica, fundada na filosofia positivista. de de muitos negros assimilados. Tal ideologia
Assim, são considerados profissionais compe- foi um fetiche muito eficaz na alienação do ne-
tentes aqueles que solucionam problemas ins- gro. Oficializou a brancura como padrão de be-
trumentais, mediante aplicação de teorias e prá- leza, o que representou um entrave para a for-
ticas derivadas de conhecimento sistemático. O mação positiva da autoestima do negro.
conhecimento emergente das particularidades Os avanços da tecnologia e da pesquisa no
dos contextos sociais e culturais dos cidadãos ramo da cosmética, na atualidade, vêm permi-
não tem sido enfocado nesse modelo, o que in- tindo o refinamento e a perpetuação do bran-
duz à necessidade de repensar a formação dos queamento estético. A odontologia passou, se-
professores em uma dimensão humana e crítica. gundo Mandarino, a seguir caminhos que vão
Isso se aplica à ausência de considerações de ques- além de técnicas restauradoras, buscando resta-
tões relativas às desigualdades sociais na forma- belecer a função, a estética e o bem-estar do clien-
ção odontológica ao lado da supervalorização te, devolvendo-lhe a autoestima, o prazer em
da técnica. Neste sentido, coloca-se como exem- sorrir, ou seja, o prazer em viver.
plar a problemática da estética enquanto expres- A propósito da busca contemporânea pela
são de preferências no convívio com a diferença. renovação do ensino, reafirma-se a preocupa-
Segundo Bertollo e Oliveira13, a percepção da ção com os padrões de estética bucal/gengival que
beleza é individual, ao mesmo tempo em que se orientam a formação prática do cirurgião- den-
1786
Bolla ED, Goldenberg P

tista, tendo por suspeita que a realização do cla- tempo de formação, natureza da instituição for-
reamento gengival – envolvendo uma postura madora e titulação), identificação dos motivos
etnocêntrica – se faz norteada pelo padrão bran- que levaram os entrevistados a optar pela odon-
co de beleza. Neste sentido é que nos propomos tologia e apreensão e caracterização dos padrões
a trabalhar os referenciais de beleza vigentes no estéticos vigentes na formação e na prática dos
ensino da periodontia no tocante ao clareamen- cirurgiões-dentistas do bairro do Tatuapé.
to gengival, assim como identificar as concep- Tanto em relação à consideração dos docu-
ções de estética bucal do cirurgião-dentista sub- mentos como das respostas registradas nas en-
jacentes à prática do referido procedimento. trevistas, realizou-se a análise de conteúdos para
efeito de apresentação dos dados e, dentre suas
modalidades, optou-se pela análise temática, ten-
Métodos do por referência a perspectiva do etnocentrismo.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética
O presente estudo, em caráter exploratório, en- da Unifesp, os entrevistados assinaram um ter-
volveu três movimentos investigativos: (1) ca- mo de consentimento livre e esclarecido (TCLE)
racterização do clareamento gengival no plano e o anonimato destes foi assegurado.
do ensino e da aprendizagem – exclusivamente –
da disciplina de periodontia; (2) identificação dos
conceitos de estética bucal/gengival subjacentes à Resultados e discussão
prática do clareamento gengival, entre negros e
caucasianos; (3) qualificação, tanto da forma- Formação do clareamento gengival:
ção como da prática, do clareamento gengival na análise de documentos
perspectiva do etnocentrismo.
No tocante ao ensino da periodontia, o estu- A disciplina de periodontia, em ambas esco-
do partiu da investigação documental, sendo las consultadas, tem como propósito o embasa-
consultadas as ementas da disciplina de perio- mento teórico-prático do aluno. No que tange à
dontia de duas escolas de odontologia do Estado saúde do paciente, a preocupação vai além do
de São Paulo: uma pública e outra privada; livros tratamento da doença já instalada, sendo assina-
didáticos da área de periodontia; publicações em lada a capacidade de prevenir a doença perio-
bases de dados através da Biblioteca Virtual de dontal. No caso da escola privada, destacou-se a
Saúde. preocupação com o desenvolvimento dos aspec-
Na análise documental, foram priorizados os tos afetivos relacionados ao atendimento ao pa-
objetivos e referências bibliográficas da disciplina ciente. Em ambas ementas, a abordagem formal
de periodontia nos cursos de graduação de odon- da questão estética está ausente.
tologia de duas instituições, os padrões estéticos Três livros-textos da periodontia foram lo-
vigentes, as técnicas preconizadas para a realiza- calizados na biblioteca da Faculdade de Odonto-
ção do clareamento gengival, na periodontia, as logia da USP, sendo focalizado o olhar para a
justificativas apresentadas para a realização da descrição da anatomia macroscópica da gengiva
prática de tal procedimento cirúrgico entre pacien- e o que estas obras consideravam como normal,
tes negros e a abordagem da questão racial. fisiológico.
As informações acerca do ensino da perio- No “Tratado de Periodontia Clínica e Implan-
dontia no tocante ao clareamento gengival fo- tologia Oral”, de Lindhe17, o primeiro capítulo do
ram complementadas com entrevistas semiestru- livro, denominado “Anatomia do Periodonto”,
turadas, com profissionais da área de odontolo- descreve a anatomia macroscópica da gengiva, no
gia. Como critério de inclusão na população de que tange à cor desta, da seguinte maneira: A gen-
estudo, consideramos cirurgiões-dentistas que giva é a parte da mucosa mastigatória que cobre o
tivessem concluído a graduação há dez anos ou processo alveolar e circunda a porção cervical dos
mais e que realizavam o clareamento gengival em dentes. [...] Em direção à coroa, a gengiva de cor
seus consultórios e/ou clínicas. Participaram do rósea termina na margem gengival livre, que pos-
estudo quinze profissionais. sui um contorno festonado. [...] A gengiva livre,
A apreensão das concepções de beleza do ci- que tem cor rósea, superfície opaca e consistência
rurgião-dentista, no tocante ao clareamento gen- firme, compreende o tecido gengival das partes ves-
gival, levou em conta as informações obtidas a tibular e lingual ou palatina dos dentes.
partir das entrevistas realizadas, nas quais se pri- [...] Com textura firme e cor rósea, a gengiva
orizou o perfil dos entrevistados (gênero, idade, inserida com frequência mostra uma superfície que
1787

Ciência & Saúde Coletiva, 15(Supl. 1):1783-1793, 2010


apresenta uns pontilhados delicados, o que lhe con- Focalizando a consideração da questão racial
fere o aspecto de casca de laranja [grifo nosso]. nos textos sobre o clareamento gengival, regis-
Em nenhum momento do primeiro capítulo, tramos no “Compêndio Terapêutico Periodon-
tal obra citou a existência da pigmentação fisio- tal” de Lascala20 que, no capítulo sobre “Gengi-
lógica (melanina – ou melanose racial) predo- vectomia/gengivoplastia”, o autor explicita que a
minante na população negra, enquanto que “cor gengivoplastia “[...] visa, única e exclusivamente,
rósea” apareceu três vezes, sugerindo ser esta a à obtenção de uma arquitetura gengival anato-
condição normal, referenciando o padrão ana- mofisiológica”. Dentre as indicações de tal técni-
tômico predominante na população branca. ca, a “eliminação de pigmentação melânica” se
No livro “Periodontia Clínica de Glickman” de faz presente.
Carranza Jr.18, a abordagem da cor da gengiva Quando da descrição da eliminação da mela-
está descrita também no capítulo 1, no tópico “Os nose racial, o autor afirmou que A presença da
Tecidos do Periodonto”. Tal temática é descrita da melanina, sob diversas formas, no tecido gengival
seguinte maneira: A cor da gengiva inserida e mar- de pacientes melanodermos, não é de maneira al-
ginal é geralmente descrita como rosa-claro, e é pro- guma, sinal de patologia, apenas uma variação da
duzida pela vascularização, [...]. A cor varia em normalidade. Nesses casos a indicação da gengivo-
diferentes pessoas e parece estar correlacionada à plastia se dá apenas por razões estéticas.
pigmentação cutânea. É mais clara nos indivíduos Primeiramente, o texto explicitou que tal téc-
louros de pele branca do que nos morenos. nica cirúrgica “visa, única e exclusivamente, à
Após tal descrição, a obra apresenta, ainda obtenção de uma arquitetura gengival anatomo-
no mesmo capítulo, um tópico denominado “Pig- fisiológica”. Ou seja, devolver à gengiva forma e
mentação Fisiológica (Melanina)”, no qual afir- funções normais. Esta mesma abordagem se ex-
ma que: A melanina [...] é responsável pela pig- pressou nas indicações da técnica envolvendo a
mentação normal da pele, gengiva e membrana eliminação da pigmentação melânica (melanose
mucosa bucal. Está presente em todos os indivídu- racial) que pese o caráter exclusivamente estético
os, [...] A pigmentação melânica na cavidade bucal de tal procedimento. Ficou implícito que o pro-
é acentuada nos negros. pósito de devolver a forma normal à gengiva está
Diferentemente da obra anteriormente dis- associada à eliminação da melanose racial. Con-
cutida, que simplesmente omitiu a existência e a siderando que tal procedimento cirúrgico visa
normalidade da melanose racial, nessa segunda devolver forma e função normais, o autor asso-
obra consultada, já existem referências sobre tal cia a estética à saúde.
característica no primeiro capítulo. Entretanto, é Em relação ao levantamento de periódicos
importante verificar que o autor descreveu a gen- da área de periodontia, encontramos um artigo
giva como um tecido de cor rósea e apresentou sobre o clareamento gengival, referenciado na
ao leitor algumas informações pertinentes a esse Lilacs e na BBO com o título “Três diferentes téc-
tecido. Somente após ter concluído tal raciocí- nicas cirúrgicas empregadas no clareamento gen-
nio, o conceito da pigmentação fisiológica é in- gival” de Amorim Lopes, Lopes, Silva e Almei-
troduzido, afirmando que esta se apresenta, acen- da21. Os autores preconizam diferentes técnicas
tuadamente, na população negra. para a realização do clareamento gengival, des-
No terceiro livro consultado, “Periodontia Clí- tacando a praticidade dos procedimentos, apa-
nica”, de Machado19, o capítulo 1, “Anatomia do relhagem simples, baixos efeitos colaterais e re-
Periodonto”, descreve a anatomia macroscópica sultados alcançados.
da gengiva da seguinte maneira: Na boca, encon- No artigo, encontramos duas referências ex-
tramos três tipos distintos de mucosas: especializa- plicitando a opinião dos autores quanto à pre-
da, mastigatória e de revestimento. [...] A gengiva sença da melanose racial. Na sinopse, referem
recobre o processo alveolar que circunda os dentes: que “A hiperpigmentação gengival pode causar
em indivíduos caucasianos, possui coloração rósea e problemas estéticos, especialmente em pacientes
consistência firme; em negros e asiáticos, apresenta com sorriso gengival [...]”.
também significativa quantidade de melanina. Após a descrição de um caso clínico, afirmam
Tal obra reconhece desde o início o que é nor- que “[...] O sorriso agora parece estar mais
mal em distintos grupos étnicos. Para os caucasia- atraente, satisfazendo completamente a expecta-
nos, uma gengiva rosa e, para os negros, uma tiva da paciente”.
gengiva que apresenta também significativa quan- Os autores explicitaram, nestas falas, que acre-
tidade de melanina. Sem omissões, sem confun- ditam que a hiperpigmentação gengival é uma
dir/associar a melanose racial como um desvio da característica antiestética e que os pacientes que
normalidade e sem hierarquizar as informações. se sujeitam à melanoplastia (cirurgia para remo-
1788
Bolla ED, Goldenberg P

ção da melanose racial) ficam mais atraentes, Perguntados sobre o que lhes foi dito, duran-
logo, mais bonitos. te a graduação, a respeito de um sorriso bonito,
De acordo com Rocha22, os livros didáticos, onze entrevistados fizeram referência à colora-
em função mesmo do seu destino e de sua natu- ção branca dos dentes associada a tamanhos e
reza, têm um valor de autoridade, ocupando um formas regulares, além da ausência de cáries; nove
lugar de supostos donos da verdade. Suas infor- entre eles fizeram referência à gengiva de cor ró-
mações obtêm tal valor de verdade pelo simples sea, saudável e sem edemas; e três entrevistados
fato de que quem sabe seu conteúdo é aprovado. explicitaram gengivas sem manchas.
Seu saber tende a ser visto como algo rigoroso, Tais resultados mostram que mais da meta-
sério e científico. Os estudantes são testados em de dos entrevistados recordavam ter aprendido
face do seu conteúdo, o que faz com que as in- que um sorriso bonito era um sorriso associado
formações neles contidas acabem se fixando no a uma gengiva livre de pigmentos e com colora-
fundo da memória de todos nós. Com ela, se ção rósea. Valorizando a gengiva característica
fixam também imagens etnocêntricas. da população branca, estas lembranças sinaliza-
A maioria das obras consultadas nesta análi- ram para uma postura etnocêntrica, visto que a
se de documentos sinaliza que o ensino da perio- gengiva da população negra é por vezes pigmen-
dontia, no que diz respeito à descrição da anato- tada e tem uma coloração que tende para tons
mia macroscópica do periodonto – destacando mais escuros. A propósito, são significativas as
a gengiva – e das indicações de remoção da pig- falas: Uma gengiva rosa, sem manchas, com aspec-
mentação melânica (fisiológica) privilegiam as to saudável, com “cara” de saúde e dentes muito
características da população branca. brancos, com tamanhos regulares, com forma bo-
nita. Socialmente legal. (Entrevistado C)
Formação do clareamento gengival: Focalizando, especificamente, a temática do
entrevistas clareamento gengival, perguntamos aos entrevis-
tados se esse tema havia sido abordado na gra-
Com relação ao perfil dos entrevistados, ob-
duação, em que condições e em que ocasião eles
servamos um grande contingente feminino, for-
aprenderam a realizar a(s) técnica(s). Apenas três
mados entre dez e quinze anos e provenientes de
entrevistados afirmaram recordar referências ao
escolas públicas e privadas.
tratamento de tal temática na graduação, eviden-
Quase 50% dos sujeitos da amostra respon-
ciando que o clareamento gengival foi pouco dis-
deram ter afinidade com a área da saúde. Prazer
cutido nos cursos de odontologia entre alunos
em cuidar, a presença de algum familiar exercen-
formados até 1996.
do a odontologia e gostar de trabalhar com a
Os três dentistas que se recordaram da abor-
estética também fizeram parte dos argumentos
dagem do clareamento gengival no curso de gra-
relevantes para a escolha da odontologia entre
os entrevistados. Trazendo implícita a crença na duação mencionaram que ele foi apresentado como
supremacia estética da população branca, o en- uma intervenção puramente estética, descolada da
trevistado refere: Eu acho que as pessoas devem se questão racial. As discussões sobre o procedimen-
sentir bonitas. É importante. Eu gosto de poder to do clareamento gengival se davam no plano
contribuir para que isso aconteça. Clarear a gen- técnico-biológico: Quanto à abordagem dos profes-
giva é uma das coisas que tornam a pessoa mais sores, eles não ficavam falando que era coisa de ne-
bonita. (Entrevistado C) gro, que era uma questão do branco ser mais bonito
A questão da estética nos cursos de odonto- que o negro e etc. Eles simplesmente falavam das
logia está presente, sendo referenciada por múl- técnicas, das indicações, de como fazer e etc. Uma
tiplas disciplinas. Na periodontia, ela se coloca coisa é fato: uma gengiva sem melanose é mais boni-
prioritariamente relacionada à preservação de ta que uma com melanose. (Entrevistado H)
uma gengiva saudável, sendo por todos ressalta- As falas do Entrevistado H revelam a aparen-
da sua importância para um sorriso bonito, ao te neutralidade da técnica. Quando este entrevis-
qual se associa a importância da estética na vida tado afirma que uma gengiva sem melanose é
social, pessoal e profissional. Associando o as- mais bonita, identificamos a naturalização do
pecto saudável à beleza, os entrevistados afirma- padrão estético vigente da população branca.
ram que: Hoje a sociedade dá uma ênfase grande à Todos os entrevistados afirmaram que apren-
questão estética. Ter uma gengiva saudável, sem deram a técnica da remoção da pigmentação fi-
inflamações, sem retrações, é desejado. Para se ter siológica após a conclusão da graduação. Para
um sorriso bonito, temos que ter uma gengiva bo- estes dentistas, o aprendizado de tal técnica ocor-
nita também. (Entrevistado C) reu em nível de pós-graduação.
1789

Ciência & Saúde Coletiva, 15(Supl. 1):1783-1793, 2010


Os entrevistados afirmaram, também, que preocupando. E era boa aluna também. Lembro
nunca participaram de discussões acerca das ca- que ela tinha boas notas. Não tive muito contato
racterísticas da população negra associadas à com ela. (Entrevistado F)
melanose racial e sua remoção. As justificativas No meu curso de aperfeiçoamento tinha [um
se pautavam pela argumentação em torno do aluno negro], mas era um rapaz mulatinho, não
padrão de estética almejado em nome de um sor- negro, daqueles super escuros. Ele era até boniti-
riso bonito: Pra dizer a verdade, não me recordo nho, sabia? Tinha o cabelo liso, não era “pichaim”,
nem uma vez de termos discutido esses problemas. tinha os dentes bonitos. Não lembro de ele ter fala-
Nosso curso é da área da saúde, não de psicologia. do alguma coisa sobre o clareamento gengival. Nem
Quem tem que discutir isso é o pessoal das huma- sei se a gengiva dele era manchada. Se era não dava
nas. Nosso papel é outro. Discutimos saúde, não para perceber. Mas ele não era negro, era só mula-
neuroses. Se os negros se sentem inferiores, quem to. (Entrevistado I)
resolve isso são os psicólogos. Nós cuidamos da saú- No plano discursivo, ao lado do reconheci-
de. (Entrevistado D) mento da pequena presença de negros, estas fa-
A beleza se circunscreve neste conjunto de res- las remetem a um preconceito velado, explicita-
postas a uma questão individual como se a sub- do no espanto das considerações a respeito dos
jetividade não tivesse relação com as condições colegas negros, expresso nas construções adver-
socioculturais na qual ela se desenvolve. Na ver- sativas. Partilhando de um convívio no qual os
dade, os entrevistados não associam a configu- negros e/ou mulatos não pareciam questionar a
ração de padrões estéticos no âmbito dos grupos própria negritude, os entrevistados se referiram
étnicos. Nesse sentido, não associam o clarea- aos alunos negros dizendo que “e (ela) era boa
mento gengival à questão racial. aluna” ou “ele era até bonitinho, sabia?” “tinha o
Quando o Entrevistado D afirmou que os cabelo liso, não era ‘pichaim’”, etc. Ao tecer tais
negros “se sentem inferiores”, ao mesmo tempo comentários, eles assumiam a valorização nega-
em que reconhece a existência de desigualdades tiva da diferença e o posicionamento de desagra-
sociais e exclusão, ancoradas na hierarquização do em relação aos traços étnicos diferenciados
dos indivíduos (como colocam Munanga3, Gui- por referência aos padrões do continente grupal
marães23 e Soligo5, entre outros); ele atribui o branco do qual faziam parte. Tais comentários
sentimento de inferioridade aos próprios negros. nos remeteram ao conceito de racismo segundo
Ao colocar que o problema de sentimentos não Munanga5.
constitui questão a ser considerada pelos dentis- Neste contexto, se enquadra a consideração
tas, o entrevistado não situa a inferioridade no do clareamento gengival enquanto técnica, des-
plano das relações sociais e de poder existentes pojada da consideração da questão sociorracial
na sociedade. subjacente à qualificação do procedimento de
Em relação à convivência com os negros du- embelezamento no plano estético.
rante a graduação, os entrevistados afirmaram Em meio ao desconforto que a discussão so-
que em suas turmas havia de dois a três mula- bre a questão racial suscitou entre os entrevista-
tos/negros, sendo que não necessariamente nas dos, se destaca a “neutralidade” da técnica que o
respectivas turmas. Quatro afirmaram não se procedimento do clareamento gengival envolve.
recordar de alunos negros no curso. Na pós-gra- Ratificando as disposições, foi explicitado a pro-
duação, apenas dois entrevistados afirmaram pósito do ensino: Que eu me lembre, ele não falava
que havia dentistas “mulatos” em suas turmas. nada. Acho que nem tinha que falar nada mesmo,
Estes dados são reveladores do elitismo do por que iria ser contra a explicação de uma técnica?
ensino e das limitadas oportunidades de acesso Ninguém estava agredindo ele. (Entrevistado I)
do negro ao ensino superior, em meio à exclusão Todos os entrevistados afirmaram que eram
social. Uma pesquisa realizada pelo Instituto estimulados a ofertar – no que tange à perio-
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais dontia – o clareamento gengival aos pacientes
Anísio Teixeira (Inep)24 revelou que a média geral portadores de melanose racial, tanto no curso de
de representação da população negra nos cursos especialização como nos cursos livres, de aper-
universitários era de apenas 3,6%, e somente 0,8% feiçoamento ou estágios, reiterando que se trata-
dos alunos matriculados nos cursos de odonto- va de um procedimento estético.
logia de escolas públicas e privadas do Brasil eram Negando o viés etnocêntrico associado à con-
negros. A propósito, são ilustrativas as falas: Na cepção de beleza, a indicação da prática do clare-
graduação, havia uma moça negra, na minha es- amento gengival era estimulada junto aos paci-
pecialização, não. Ela era tranquila, não ficava se entes, ancorada na argumentação de que, sendo
1790
Bolla ED, Goldenberg P

uma característica pertencente a um determina- Os entrevistados que responderam serem


do grupo de pessoas, não se tratava de uma do- procurados para a realização de tal técnica afir-
ença, mas tão somente de uma prática de embe- maram que a justificativa apresentada pelos pa-
lezamento. A propósito da pergunta se os entre- cientes era que estes achavam as manchas feias
vistados indicavam o clareamento gengival aos ou simplesmente aspiravam ficar mais bonitos,
seus pacientes, são ilustrativas as referências so- evidenciando o desejo de embranquecer-se: Eles
bre o estímulo da indicação do procedimento: acham as manchas feias, se incomodam com elas,
Tudo que era de melhor para os pacientes, eles nos querem tirar. (Entrevistado C)
faziam indicar. No curso [de pós-graduação], eu Eles dizem que querem ficar mais bonitos, se
fiz dois clareamentos gengivais. Ficaram lindos. incomodam com as manchas. E é feio mesmo, né?
Eu falava para os pacientes que não precisavam se (Entrevistado F)
preocupar, pois era uma característica da raça de- Doze entrevistados declararam oferecer o cla-
les, mas que deveriam remover, pois era antiestéti- reamento gengival aos portadores de melanose
co. Eles concordaram e eu fiz. (Entrevistado D) racial. Questionados sobre quando e porque,
Sempre fomos estimulados a indicar o que é o dois afirmaram que ofereciam em quaisquer cir-
melhor para os pacientes. Se acreditarmos que um cunstâncias; outros o faziam quando percebiam
clareamento gengival tornará aquele paciente mais que o paciente se preocupava com a aparência
bonito, mais apresentável, por que não indicar? ou quando o paciente apresentava um sorriso
Éramos estimulados, sim. E é certo. Sempre avisei gengival que interferia na estética. Um entrevista-
que não era uma doença. (Entrevistado C) do afirmou oferecer o clareamento gengival quan-
Reafirmando a concepção da pigmentação do notava que os pacientes tinham condições fi-
gengival como antiestética, sob a eficiência da técni- nanceiras de realizar o tratamento.
ca, professores de periodontia e alunos endossa- Todos os entrevistados compartilhavam da
vam a proposição do clareamento gengival que crença de que o clareamento gengival deixa os
alimenta o embranquecimento do negro na vigên- pacientes com um sorriso mais bonito, ressal-
cia da valorização do padrão branco de beleza. tando-se que fazia parte de seu papel profissio-
nal informar aos pacientes aquilo que existe de
A prática do clareamento gengival mais moderno dentro da odontologia: Sugiro.
Eles nem sempre conhecem o serviço. Eu sugiro
Todos os dentistas entrevistados afirmaram quando o paciente tem condições financeiras de
que realizavam o clareamento gengival. Alguns o fazer e interessa. Por que eu sugiro? Para vender
faziam raramente e outros faziam cerca de um a [risos]. Uma vez que a pessoa clareia os dentes,
três clareamentos gengivais por mês: Não sei te fica bonito. Mancha é mancha, não importa em
dizer exatamente quantos eu faço por mês. É raro. quem está instalada. Igual nos brancos que remo-
Não são muitos, pois não atendo muitos pacientes vem manchas do rosto, por que o negro não pode
negros no meu consultório. Você sabe qual é a rea- remover as manchas da gengiva? (Entrevistado C)
lidade dos negros. Eles não têm muito acesso a den- Sugiro sempre. Eu sugiro porque é um plus que
tista. Eu só atendo particular, e não sou da rede eu posso oferecer aos meus pacientes, pois nem todo
pública. (Entrevistado L) dentista faz e eles ficam muito mais bonitos. (En-
Perguntados sobre a demanda da parte de trevistado G)
pacientes, a maioria afirmou que atendia poucos Reafirmando o uso do procedimento na pers-
negros porque não trabalhavam com convênios. pectiva etnocêntrica, é interessante observar a re-
Alguns entrevistados afirmaram que atendem troalimentação que se estabelece entre a satisfação
alguns mulatos e negros, mas que estes não che- do paciente e a admiração do profissional em rela-
gam a 50% dos seus pacientes. ção à técnica. A maioria dos entrevistados afirmou
Com o propósito de identificar se a popula- que todos os pacientes que se submeteram ao cla-
ção negra que vai ao consultório destes dentistas reamento gengival manifestavam contentamento
solicitava espontaneamente o clareamento gen- e satisfação, expressos através de sorrisos e/ou ver-
gival, identificamos que cerca de um quarto dos balizando o entusiasmo com o resultado final:
entrevistados responderam afirmativamente e os Muito. Eles ficam parecendo crianças, tadinhos. Você
restantes afirmaram que os pacientes, em geral, precisa ver. Você não faz? Eles abrem um sorriso bem
desconheciam a possibilidade de clarear a gengi- grande! Alguns falam que não acreditavam que fica-
va: É difícil, não pedem pra fazer a melanoplastia ria tão bom. As mulheres são mais falantes. Elas fi-
porque eles não sabem que é possível remover as cam todas se achando o máximo. O clareamento dei-
manchas. (Entrevistado O) xa mesmo o paciente mais bonito. (Entrevistado A)
1791

Ciência & Saúde Coletiva, 15(Supl. 1):1783-1793, 2010


Muito. Eles gostam muito dos resultados, fica ções sociais vigentes na sociedade, seja na pers-
realmente bom. Eu pergunto o que acharam e eles pectiva do branco como do negro.
dizem que está ótimo, a gente vê a satisfação na
cara deles, não precisa dizer muita coisa. (Entre-
vistado H) Considerações finais
Reiterando o destaque da técnica, estas falas
acobertam a descaracterização de alternativas de No contexto do debate nacional em torno da
distintas ordens de beleza, adstrita às diferenças questão da exclusão social, na qual se inscrevem
étnicas. Nesse sentido, parece que priorizavam a proposições como as Políticas Afirmativas ou as
beleza do branco em detrimento de outros gru- Reformas Curriculares, contemplando o incen-
pos “raciais”. Como afirma Mandarino14, O sen- tivo à atuação responsável, a presente investiga-
so estético é influenciado pela cultura e auto-ima- ção enveredou no plano da identificação de pos-
gem; o que é considerado belo por uma civilização turas etnocêntricas no espaço do cotidiano da
pode ser extremamente feio para outra. As mulhe- atividade profissional. Em caráter exploratório,
res obesas já representaram o padrão de beleza em o trabalho sinalizou, especificamente, a valoriza-
determinada época, sendo que atualmente as mo- ção do padrão branco de beleza na formação e
delos de sucesso são bastante magras. na prática do clareamento gengival, no que tange
Sem pretender justificar esses posicionamen- ao ensino e prática da periodontia.
tos (afirmativos ou evasivos), solicitamos aos A consulta aos livros-textos que apóiam a
entrevistados que tecessem comentários relacio- formação profissional dos dentistas evidenciou
nados às correções estéticas na população negra. a ausência de consideração dos diferenciais étni-
Negando sumariamente o caráter racista da in- cos de beleza, descortinando o espaço para abso-
dicação da prática, sob os imperativos da técni- lutização do padrão branco de beleza. Em nome
ca, alguns entrevistados destacaram que “A área da supervalorização da técnica, tida como neu-
da saúde não é racista” (Entrevistado B). tra, a recomendação do clareamento gengival no
Dissociando a relação entre o procedimento ensino se faz, assim, abstraída das condições so-
do clareamento gengival e sua indicação para ciais nas quais se inscrevem as relações dentista-
negros, os entrevistados argumentaram que “Os paciente, obscurecendo as preferências estéticas
orientais também apresentam pigmentação na em relação às diferenças étnicas.
gengiva” (Entrevistado D). Imprimindo a racionalidade biologicista que
Os entrevistados reafirmaram que a presen- preside à saúde, o intervencionismo tecnicista –
ça da melanose racial é antiestética, sendo signifi- particularmente no contexto da prática liberal –
cativo o depoimento: Você pode falar o que quiser, é reforçado pela associação entre beleza e saúde,
dizer que eu sou racista. Mas se eu tivesse a gengiva que consubstancia a patologização das diferen-
pigmentada eu já teria feito o clareamento gengi- ças. Sem desmerecer a liberdade de acesso à téc-
val. (Entrevistado C) nica, legitima-se, nestas condições, a opção pelo
Numa outra vertente, explicitando a perspec- branqueamento tanto da parte do profissional
tiva etnocêntrica de suas concepções de beleza, al- como dos pacientes negros. Omitindo ou rele-
guns entrevistados assumem que: Se os negros gando ao segundo plano a normalidade da pig-
querem ficar parecidos com os brancos, é por que os mentação melânica, em meio à desconsideração
brancos devem ser mais bonitos. (Entrevistado O). da diversidade étnica de beleza, a oferta, assim
Numa variante dessa vertente, alguns entre- como a demanda pelo clareamento gengival, ali-
vistados justificam a prática do clareamento gen- mentam a hierarquização presente nas relações
gival em função das demandas do próprio ne- sociais interétnicas de nossa sociedade.
gro: Não é o branco que quer que o negro se pareça O clareamento gengival se inscreve no âmbi-
com ele. É o próprio negro que quer se assemelhar to da preocupação da estética, inerente à profis-
ao branco. (Entrevistado A) são, associada ao “sorriso bonito”, dimensiona-
Trata-se, nesse caso, da percepção do movi- do em função do caráter funcional e saudável.
mento do embranquecimento que constitui, na No quadro da desconsideração das diferenças
verdade, a contraface do preconceito explícito. étnicas, estas concepções demarcam o espaço
Ao justificar a realização do clareamento gen- para posturas etnocêntricas, seja quando os pro-
gival explicitando ou negando o caráter racista fissionais parecem assumir a desqualificação da
do procedimento, reafirmam, em nome da téc- beleza negra em detrimento da branca, e/ou res-
nica, a valorização do padrão branco de beleza, ponsabilizam os próprios negros que demandam
reproduzindo o preconceito implícito nas rela- o clareamento gengival em nome do embran-
1792
Bolla ED, Goldenberg P

quecimento, seja quando negam ou não assu- mento e/ou à limitação de acesso da população
mem conscientemente o caráter racista que pode negra – principais demandantes do procedimen-
estar embutido na indicação do procedimento, to – aos serviços privados da odontologia. Ape-
alegando que a melanose não é exclusividade do sar da limitada frequência, o clareamento gengi-
negro ou que ela é um produto decorrente da val se constitui num caso exemplar por referência
valorização da beleza global. Esta negação se ins- à (re)consideração do ensino na graduação em
creve na ausência da consideração do racismo odontologia. No contexto das reformulações cur-
no âmbito da cultura da cordialidade brasileira riculares, ressalta-se, a propósito, a propriedade
que coincide com a absolutização da beleza – que de ver tratada a questão da estética para além do
se reduz, nestas circunstâncias, a escolhas indivi- senso comum. Esclarecer sua vinculação com a
duais em detrimento do reconhecimento dos realidade social concreta e histórica contribui para
padrões socioculturais. ampliar o debate em torno da exclusão social e do
O clareamento gengival não é propriamente convívio com a diferença enquanto componentes
uma prática frequente – ao menos – na perio- da formação para o exercício socialmente respon-
dontia, atribuindo-se tal restrição ao desconheci- sável da prática profissional.

Colaboradores

ED Bolla participou de todas as etapas da pes-


quisa, P Goldenberg participou da elaboração do
projeto até a confecção do presente artigo.
1793

Ciência & Saúde Coletiva, 15(Supl. 1):1783-1793, 2010


Referências

1. Thomaz OR. A antropologia e o mundo comtem- 14. Mandarino F. Cosmética em restaurações estéticas.
porâneo: cultura e diversidade. In: Silva AL, Gru- [site da Internet] [acessado 2007 mar 15]. Disponí-
pioni L, organizadores. A temática indígena na esco- vel em: http://www.forp.usp.br/restauradora/
la. Novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. dentistica/temas/este_cosm
Brasília: MEC/MARI/UNESCO; 1995. 15. Katz C. A busca infinita. Folha de São Paulo 2007; 08
2. Machado FL. Os novos nomes do racismo: especifi- abr.
cação ou inflação conceptual? Sociologia [periódico 16. Gould SJ. A falsa medida do homem. São Paulo:
na Internet] 2000. [acessado 2007 abr 22]. Disponí- Martins Fontes; 1991.
vel em: http://www.scielo.oces.mctes.pt/scielo.php 17. A gengiva também pode ser clareada. Plástica &
3. Munanga K. Uma abordagem conceitual das no- Beleza 2002; ago.
ções de raça, racismo, identidade e etnia. In: 3º 18. Lindhe J, Karring T, Lang NP. Tratado de periodontia
Seminário Nacional Relações Raciais e Educação; 2003; clínica e implantologia oral. Rio de Janeiro: Guana-
Rio de Janeiro. [Palestra] bara Koogan; 2005.
4. Carneiro ML. O racismo na história do Brasil. 8ª ed. 19. Carranza Jr FA. Periodontia Clínica de Glickman.
São Paulo: Ática; 2005. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1986.
5. Soligo A. O preconceito racial no Brasil: Análise a 20. Machado WAS. Periodontia clínica. Rio de Janeiro:
partir de adjetivos e contextos [tese]. Campinas (SP): Medsi; 2003.
Pontifícia Universidade Católica; 2001. 21. Lascala NT. Compêndio terapêutico periodontal. São
6. Oliveira LSR. A interdisciplinaridade e a mudanças Paulo: Artes Médicas; 1999.
curriculares nos cursos de graduação em Odontologia 22. Amorim Lopes JC, Lopes RR, Silva KV, Almeida
[dissertação]. São Paulo (SP): Unifesp; 2006. RV. Três diferentes técnicas cirúrgicas empregadas
7. Haag C. Quase pretos, quase brancos. Pesquisa FA- no clareamento gengival. J. bras. clin. estética odon-
PESP [periódico na Internet] 2007 abr. Disponível tol 2003; 4(23):80-83.
em: http://revistapesquisa.fapesp.br/?art=3188&bd 23. Rocha EPG. O que é etnocentrismo. São Paulo: Bra-
=1&pg=1&lg= siliense; 1999.
8. Domingues PJ. Negros de almas brancas? A ideolo- 24. Guimarães ASA. Racismo e anti-racismo no Brasil.
gia do branqueamento no interior da comunidade São Paulo: Editora 34; 1998.
negra em São Paulo, 1915-1930. Estud. afro-asiát.
2002; 24(3):563-599.
9. Bernardino J. Ação afirmativa e a rediscussão do
mito da democracia racial no Brasil. Estud. afro-
asiát. 2002; 24(2):247-273.
10. Hasenbalg C. Discriminação e desigualdades raciais
no Brasil. Rio de Janeiro: Graal; 1979.
11. Niskier A. LDB - A nova lei da educação. 2 a ed. Rio
de Janeiro: Consultor; 1996.
12. Péret ACA, Lima MLR. A pesquisa e a formação do
professor de odontologia nas políticas internacio-
nais e na educação. Rev. ABENO 2003; 3(1):65-69.
13. Bertollo R, Oliveira M. A percepção do belo e a
proporção divina. In: Marzola C. Fundamentos de
cirurgia buco maxilo facial. [site da Internet] [aces- Artigo apresentado em 14/11/2007
sado 2006 jul 18]. Disponível em: http://www. Aprovado em 21/08/2008
clovismarzola.com/textos/CAPXXXI.Pdf Versão final apresentada em 29/10/2008

Вам также может понравиться