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Fantasias de escritura

– filosofia, educação, literatura –

Sandra Mara Corazza

(Organização)

Cristiano Bedin da Costa


Deniz Alcione Nicolay
Eduardo Guedes Pacheco
Ester Maria Dreher Heuser
Fábio José Parise
Gabriel Sausen Feil
Karen Elisabete Rosa Nodari
Luciano Bedin da Costa
Marcos da Rocha Oliveira
Máximo Daniel Lamela Adó

Marcele Pereira da Rosa

(Ilustrações)

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Apoios

CNPq

Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS

........................................

Conselho Editorial do livro


Fantasias de escritura – filosofia, educação, literatura
Alexandre de Oliveira Henz. Professor da Universidade Federal de São Paulo.
Pesquisador do Laboratório de Sensibilidades da UNIFESP.

Eduardo Pellejero. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.


Pesquisador do Grupo The animal condition pela Fundação Ciência e Tecnologia da
Universidade Nova de Lisboa, Portugal.

Julio Groppa Aquino. Professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.


Pesquisador do CNPq.

Pablo Esteban Rodríguez. Professor da Universidade de Buenos Aires e da Faculdade


Latino-Americana de Ciências Sociais. Pesquisador do Consejo Nacional de
Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET), Argentina.

Vânia Dutra de Azeredo. Professora do Centro de Ciências Humanas da Pontifícia


Universidade Católica de Campinas. Pesquisadora do Grupo de Estudos Nietzsche.

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Sumário

Conversatório ... 4
Sandra Mara Corazza

Acerca das matérias de escrita... 5


Cristiano Bedin da Costa

A verdade dos nobres pelo ensino da palavra...17


Deniz Alcione Nicolay

Ensaio da (des)educação musical... 28


Eduardo Guedes Pacheco

Fábula da existência seguida de Notas sobre a fabulação... 40


Ester Maria Dreher Heuser

435207: Cinzas do excesso


– A melancolia na obra de Caio Fernando Abreu... 53
Fábio Parise

O simulacro e o biografema – de A a Z... 63


Gabriel Sausen Feil

Pelos traços do impensado da escola... 74


Karen Elizabete Rosa Nodari

Biografias (im)possíveis: o problema da escritura biográfica em oito atos... 81


Luciano Bedin da Costa

Notas de leitura para um pesteseller pedagógico... 90


Marcos da Rocha Oliveira

O currículo de areia... 102


Máximo Daniel Lamela Adó

Diga-me com quem um currículo anda e te direi quem ele é... 112
Sandra Mara Corazza

Autores... 137

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CONVERSATÓRIO

No princípio? É o BOP – Bando de Orientação e Pesquisa. (O nome próprio como


apreensão instantânea de uma multiplicidade.) Totalização? Impossível! Morna Unidade?
Não o fragmento numérico de uma Totalidade perdida; multiplicidade. (Substantivo.)
Restritos em número? Claro. (E já somos muitos: multidão, ossário, enxame, matilha,
chacais, piolhos, tuaregues.) Representação, substituição, identificações? Preferimos não...
(Despersonalização sobre um corpo sem órgãos a ser formado.) Posição nos planos? A
posição esquizo. (Periféricos, portanto.) Linhas? Distintas emaranhadas: de fuga. (Com
algum cuidado.) Partículas? Feito projéteis. (Desejantes, enlouquecidas: andam mais rápido
que a luz.) Trajetos? Movediços. (Puros infinitivos em campo de intensidades.) Das
distâncias entre eles? Variáveis, indivisíveis, indecomponíveis. (Aproximações e
distanciamentos indefinidos do ponto zero.) Concentração? Não; dispersos.
(Indomesticados.) Organização, código, hierarquias? Alguns e às vezes. (Mas não fixos.)
Metamorfoses? Qualitativas. (Formigamento, inflamação.) Desigualdades? Vividas como
restos ou ultrapassagens. (Nos limites de limiares.) Então, cada um é sozinho? Só. (Mesmo
estando com os outros.) Devir-cabritinhos? Lobos-caçadores. (Cada qual age, ao mesmo
tempo em que participa.) Constelações? Relativas, cambiantes, intervertíveis. Onde cada
um se mantém? Dentro; na borda; na borda e, logo após, dentro. Ao redor do fogo? Em
círculo, ora. (Estranhos.) Vizinhos? De cada lado. (À direita; à esquerda.) E às costas? As
costas ficam expostas à natureza selvagem. Há chefe, líder, orientador? Chefe. (Aquele que
joga tudo de cada vez.) Como permanecem juntos? Por camaradagem, mundanidade,
maneirismos, amores múltiplos, felicidade vertiginosa. (Ligam-se por alguma extremidade
dos corpos: ora uma mão, ora um pé.) (Cf. Deleuze e Guattari, 2004.) É assim que,
fervilhantes, nos aventuramos, estudamos, fantasiamos, escrevemos. Este livro? Feito de
uma educação espremida/exprimida entre filosofia e literatura.
Sandra Mara Corazza (Org.)

Referência bibliográfica – DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. “1914 – Un


seul ou plusiers loups”? In: ___. Capitalisme et schizophrénie – Mille plateaux. Paris: Les
Éditions de Minuit, 2004, p.38-52).

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ACERCA DAS MATÉRIAS DE ESCRITA

Cristiano Bedin da Costa

Matéria de escrita tem aos montes. Devemos a Manoel de Barros (2001, p.11) a
afirmação de que qualquer coisa cujo valor pode ser disputado no cuspe à distância serve
como matéria de poesia, e tal como aquele que frente a uma mão esticada toma para si o
braço todo, digo que essa qualquer coisa não é privilégio apenas da poesia, servindo como
material para qualquer coisa escrita. Para ela – a escrita – cada coisa ordinária é mesmo um
elemento de estima. Um terreninho sujo e os que nele gorjeiam, latas velhas, quatro
garrafas vazias, cada coisa sem préstimo serve demais para a escrita. Tudo aquilo que nos
leva a coisa nenhuma, dejetos e coisinhas sem importância, enfim, todas as coisas jogadas
fora podem convergir para o mesmo ponto, o ponto inicial da escrita.
Pedaços dispersos de conceitos, teorias, fragmentos, parágrafos, refrões, toda uma
série de componentes direcionais apontando para um possível limiar de territorialidade
dentro de um infra-agenciamento textual. Ponto morto da escrita, atemporal, ainda não
transposto. As coisas boas como guias, tal como ensinava Paul Klee (2001, p.45), mesmo
na escuridão da floresta densa e durante o crepúsculo. Coisas boas para a escrita, claro, para
além de qualquer juízo de valor que não tenha por base a possibilidade de movimento das
linhas a serem traçadas. Escapa-se do ponto pelos próprios elementos pontuais, tal como
em uma operação de Giacometti: é preciso ser fiel àquilo que se tem, cuidadoso com aquilo
que se está lidando, mesmo que isso não seja tudo, mesmo que seja necessário dar mais um
passo, ir um pouco mais além, liberar algumas linhas de escrita, de modo que as coisas
todas, assim, encontrem alguma saída.
Sim, escreve-se pelas coisas. Por elas, a partir delas e através delas. Que coisas?
Qualquer coisa, desde que intacta. Esta parece ser a primeira regra, e é justamente isso que
Blanchot (1987, p.150) vai encontrar em Rilke, um olhar desinteressado, sem futuro, pelo
qual as coisas se oferecem na fecundidade inesgotável de seus sentidos que a nossa visão
habitualmente ignora. Coisas inesgotáveis, pois distantes da usura da vida. É nessa tensão
de um começo infinito que encontramos nosso ponto de partida. Assim, se partimos das
coisas, não o fazemos a partir das coisas hierarquizadas e ordenadas tal como a vida
ordinária nos propõe, uma vez que dentro da ordem do mundo cada coisa é por seu valor,

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cada coisa vale e uma vale mais que a outra. Ao ignorar essa ordem, pode-se partir das
coisas sem distinção, e o ponto de partida pode ser mesmo a própria recusa em escolher. Aí
tudo o que se tem é um espaço. Se considerarmos a arbitrariedade da forma de conteúdo em
relação à matéria, ou seja, os incontáveis modos de se lidar com uma mesma matéria com
ausência de sentidos, na constituição e na posterior valoração das coisas e objetos, tal como
entendia Hjelmslev (1991), enxergaremos nas coisas de Rilke, ou melhor, no aquém das
coisas de Rilke, um espaço de indeterminação, onde a tal coisa abordada figura não como
uma matéria formada, mas sim como o ponto de intersecções e de relações infinitas onde
tudo se entrecruza e onde nada começa. Uma matéria, simplesmente, pois que a matéria, tal
como indica Bruno Schulz (1996), é mesmo o informado, o amorfo, o estado
indiferenciado. As Lojas de canela nos dão bem a clareza de uma fecundidade infinita, de
uma inesgotável força vital e de uma espécie de terreno fora da lei, transbordante, à espera
de um sopro ou então de um tratamento qualquer capaz de lhe dar alguma organização.
Já se deve ter notado que aqui não há nenhuma moderação com as citações, e é por
uma questão de honestidade que faço a advertência de que continuará chovendo uma
porção delas sobre as próximas páginas. Artifício nada inocente, visto que citar é citar-se,
bem se sabe, e seja por insegurança ou egoísmo, não deixarei de recorrer àqueles que amo
para assim poder dizer minhas suas matérias. É minha a loucura de Bukowski (2005).
Roubei-a à mão armada e não a desejo a ninguém a não ser a mim mesmo, amém. É minha
a solidão do caixote de madeira de Ponge (2000, p.61), e sou eu quem espera por Godot
(Beckett, 2005), dia após dia, assim como também espero a primavera em meio à neve do
Colorado ou então por entre os corredores e almas empoeiradas de Los Angeles. Sim, pois
são meus os sonhos sonhados em Bunker Hill (Fante, 2003), sou eu Arturo Bandini, e
sendo assim também assopro meus dedos e rezo a Knut Hamsum, suplicando que me
permita escrever uma frase, uma única frase perfeita, pois sei que se conseguir escrever
uma frase boa conseguirei escrever duas, e se conseguir escrever duas conseguirei escrever
três, e se conseguir escrever três conseguirei escrever para sempre. Um homem, você sabe,
precisa começar por algum lugar, e é desse modo que posso pensar os vaivens da escrita.

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Arranjo então um pedaço qualquer em Faulkner (2003). Vou com ele até onde me
apresenta a matéria bruta para o seu som e a sua fúria. Tenho aí um bom início. Um
fundilho enlameado das calças de uma garotinha que se acha trepada numa pereira, de
onde, através de uma janela, pode ver o aposento em que se realiza o funeral de sua avó,
descrevendo aos seus irmãos, que estão embaixo, tudo o que está acontecendo. Agrada-me
a imagem dos fundilhos sujos de terra, que bem poderiam me proporcionar alguns bons
giros, sobretudo filosóficos. Mas prefiro ir adiante, em razão de um outro pedaço. Tenho
então que a única responsabilidade do escritor é para com a sua arte, e aí então será
inteiramente implacável, se acaso for um bom escritor. Pois que é apenas disso que irá se
tratar, e todo o resto não lhe dirá respeito. Honra, orgulho, decência, segurança, felicidade,
tudo isso é importante apenas quanto ao que se refere à paz e contentamento, e seu trabalho
nada tem que ver com paz e contentamento. Sem escrúpulo algum, sem nenhuma hesitação,
roubará a própria mãe, se esse for o caso, pois que uma boa quantidade de linhas em
movimento vale mais que um punhado de velhas senhoras. Eis aí um bom ponto, sem
dúvida. Posso estruturá-lo assim: não se trata de enviar mensagem alguma, de qualquer
preocupação com clareza, com ser bem ou mal interpretado (o que valeria para cartas de
amor, telegramas, anúncios fúnebres, convites de casamento e também de aniversários e
formaturas, panfletos e similares), com o que poderá ser dito daqui pra frente, mas sim de
seu próprio movimento de criação. Ocorre que aquele que escreve deve prestar contas
apenas com as questões da escrita, com a sua matéria, e não com o resto. Agarrar toda a
matéria dada, deixar que nada escape, mesmo percebendo que o tratamento dispensado
nunca será o que julga ser satisfatório. Pois bem. Tentemos então tomar alguma outra
matéria bruta. Aumentar as companhias. Fragmentos do rough de Fitzgerald (2007, p.228).
Um homem renunciando a idéia de si mesmo como herói (talvez limpando o nariz). Aí, eu
até mesmo canto. Pois tudo o que você pensa ter de melhor nessa vida é só mais um dia
comum. Tão normal, nada demais. E isso não pela convicção de que no mundo, em
qualquer canto, tudo tanto faz, como anunciava o homem ridículo de Dostoievski (2003).
Você pode até sentir que para você dá na mesma que exista um mundo ou então que nada
exista em lugar nenhum, que diante de você não há nada, intuindo que também não houve
muita coisa antes e nem vai haver nada jamais, mas isso é uma outra questão, acredite, e se
verdade for que para você tudo é indiferente também verdade é que as questões, resolvidas

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ou não, acabam se afastando, não é mesmo? Tudo tanto faz, tudo tanto faz. Vamos em
frente. Não se pode tomar o filho de um fabricante de arados, cortar os seus testículos e
transformá-lo num artista. Bom. Que questões a respeito do que pode ou não um corpo
fiquem de lado, ao menos por ora. Ele, de repente, perguntando a ela: você já viu esquilos
correndo de rua em rua? Ela bem poderia pensar: não guardo segredo algum, pois ninguém
se interessa mesmo. Ou então roteiristas de aluguel tendo retirado toda a vida de uma
história, substituindo o cheiro ruim da existência por sabe-se lá o que enquanto sabe-se lá
como é que fazem. Sempre um bom ponto no qual podemos nos apegar. Um ponto que vale
por si mesmo, que então está completo e não diz nada mais que aquilo que deixa estampado
em seu enunciado. Desse ponto, tem-se o movimento de chegada ou então de partida.
Chego até aqui. Recupero o fôlego. Ensaio um outro movimento. Salto daqui. A linha que
se solta. Tal qual é a riqueza do bruto em Kafka (2000, p.146). Duas crianças, deixadas
sozinhas em um apartamento, enfiaram-se em uma grande mala, a tampa desta fechou-se,
não puderam abri-la e morreram asfixiadas. É quando a matéria se esvai rápido demais e
ficamos apenas com ponto cru em nossas mãos. Que seja. Ponto cru é meu pastor e nada
me faltará. Mas, em se podendo lapidar, torna-se interessante ao menos tentar. Trabalhar a
matéria, fazer falar o que então não se mostra, encontrar uma que outra borda no esteio.
Para isso é preciso começar por algum lugar, ter de onde partir. Arquitetar a obra. Proceder
por blocos de matéria trabalhada, tal qual o método de Henry James retomado por Deleuze
e Guattari (1997), em seu Platô 11, o grande platô dos refrões e construções, dos
improvisos e dos riscos. É preciso ter cuidado, prudência na hora do salto. Não se saber
longe de mais. Bacon, após incontáveis construções e abandonos de morada a partir de
elementos do Inocêncio X, relata, ao final da vida, ter medo da realidade de Velázquez após
ter remexido tanto nela, passando então a evitá-la (Sylvester, 2007, p.38). É o território que
se torna estranho. A antiga morada agora desposada faz com que nem mesmo possamos nos
reconhecer mais nela.
Posso agora dizer que se trata de atingir um determinado limite, transpondo-o. Mas
é preciso ainda aí ter claro o que isso efetivamente indica. A tela arrastada até o limite do
visual, a música até o limite do auditivo, a escrita carregando a linguagem até o limite
daquilo que ela pode. Este limite agramatical, um fora da linguagem, não designa o que a
mantém sobre uma determinada lei, aquilo que a termina e separa do resto, mas sim aquilo

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a partir do que ela se desenvolve e desenvolve toda a sua potência. Não se trata, então, do
limite como verdadeira limitação de uma forma, mas sim como o elemento em que a
potência é efetuada e fundada. Silêncio como limite musical organizado em Cage, música
confrontada ao impossível do silêncio, como a linguagem confrontada ao silêncio frente à
fórmula de Bartleby (Melville, 2005), ao impedir a continuidade do diálogo e criando um
estupor crescente ao seu redor. Enunciação de um indizível. O plano de nosso escriturário é
o próprio plano dos operadores de tensão na língua, uma verdadeira fórmula-limite. Um
tensor, um instrumento intensivo, um verdadeiro vetor de fuga, que introduz uma tensão de
desterritorialização nos sistemas em que se desenvolve. Tal processo é até mesmo capaz de
indicar um verdadeiro método de criação: tomar um material qualquer (palavras, sons,
imagens, sintaxe, cores) e extrair um bloco de sensações que ultrapassa o limite no qual
nossas percepções se constituem através das experiências vividas. É que não se trata de
representar nada, mas sim de acrescentar novas variedades ao mundo, numa fórmula tão
cara a Deleuze. Não se trata mais de impor uma forma a uma matéria, mas de elaborar um
material cada vez mais rico, cada vez mais consistente, apto a partir daí a captar forças cada
vez mais intensas. Em Mil platôs, o material é visto como uma matéria molecularizada, que
enquanto tal deve captar forças não formadas e imateriais, tornando visível o não visível.
Não mais uma forma expressiva ocupada em legitimar a forma de uma matéria, mas sim
uma material desterritorializado de captura. É a experiência que se abre para a criação de
novos sentidos. O tensor, portanto, vai operar um conjunto de elementos informes, variando
de acordo com suas conexões, com os agenciamentos individuados onde se encontra. Um
pedaço que seja e que será apenas um pedaço, nada além disso. Um pedaço-material.
Quando se diz que a escrita lida com matérias informes do ponto de vista de seu
significado, esse referido estado indiferenciado, essa condição amorfa do material é o que
poderá tensionar a língua até um devir intensivo que lhe garante uma nova potencialidade.
É o mesmo que dizer que o trabalho com uma matéria bruta e então vazia de sentido
confere à escrita a condição de operar com um material extremamente maleável e aderente,
capaz de receber os mais variáveis tratamentos por entre as relações que ele próprio
agencia. Ocorre que a matéria de escrita, enquanto matéria trabalhada no texto, se torna
material para novas conexões, ainda outros encontros. Espécie de captador ou até mesmo
de um atrator estranho fazendo com que a escrita prossiga por entre vários estados em um

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movimento contínuo incapaz de ser determinado. Melhor não confiar muito em caminhos
abandonados, tampouco naqueles feitos de tijolos amarelos. As linhas se fazem na estrada,
evitando ou não qualquer tipo de referência beat. Vibrações em ressonância com os
elementos que temos são bem-vindas, simplesmente por fazerem parte do trajeto. São o
potencial sonoro daquilo que após ter sido capturado irá deixar pequenas ou então grandes
marcas de seu movimento no corpo do texto. Surface noise textual, à maneira modal de
Miles em seus tons de azul.
De qualquer maneira, trata-se sempre de um trabalho de expressão. Todo o exercício
de escrita se faz com matérias diferentemente formadas, e mesmo o uivo de uma derrota em
meio ao arrastar-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em Ginsberg traz ainda uma
formalização e um desmoronamento suficientes, para fazer de uma longa temporada no
inferno uma experiência corriqueira e ao mesmo tempo poética, a ponto de nunca desviar o
olhar enquanto se está derrubado – que Rimbaud, injuriado com a amargura da beleza,
eterno condenado na iminência de soltar o último basta, reserve lugar em sua pequena
choupana em chamas. Ocorre que do lado das formas e das substâncias formadas faz
barulho a insistência de um campo de matérias amorfas, independentes de qualquer relação
entre expressão e conteúdo, traçando assim uma possibilidade de encontro com uma
semiótica independente de semiologias meramente significantes. Um aquém da linguagem
que não cessa de se dispersar, arrastando a própria linguagem até um limite que se
apresenta ao mesmo tempo como seu fora e também sua gênese. Um agramatical inventivo
e imprevisível, repleto de intensidades desconhecidas, capazes de contaminar a
configuração linguageira. Desequilibram-se não apenas as palavras e a fala, mas sim a
própria língua é feita um sistema gaguejante em desequilíbrio.
É Beckett (Andrade, 2001) quem nos diz a dificuldade crescente e até mesmo a falta
de sentido em escrever numa língua mãe oficial. A impressão de cada vez mais perceber a
própria língua como um véu que precisa ser rasgado para se chegar às coisas ou então ao
nada por trás dele. A convicção e a espera pelo tempo em que a linguagem é mais
eficientemente empregada quando mal empregada. A clareza de que, não podendo eliminar
a linguagem de uma vez por todas, é preciso ao menos ter a certeza de que não devemos
deixar por fazer nada que possa contribuir para sua desgraça. Cavar na linguagem um
buraco atrás do outro, até que comece atravessar aquilo que está à espreita por trás, seja isso

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alguma coisa ou nada. Desacreditar em algo paralisadamente sagrado na natureza viciosa
da palavra, dissolver a arbitrária materialidade da superfície da palavra, defender, de
alguma maneira, uma atitude de ironia com as palavras. E fazendo isso através das
palavras. “Nesta dissonância entre os meios e seu uso talvez surja a possibilidade de
experimentar um suspiro daquela música final ou daquele silêncio que subjaz a tudo”
(idem, p.167). Insistir no silêncio. Insistir na necessidade do silêncio. Tudo contra as
orelhas de pau. Tudo contra a apoteose da palavra. A caminho de uma literatura da
despalavra, um ataque às palavras. Pecar contra a própria língua. Saber-se incapaz de
escrever e, sendo obrigado a escrever – mesmo que sem saber o porquê dessa obrigação –,
saber-se sem saída, pois há nada a escrever e nada com que escrever. Fazer com que o ato
expressivo seja, então, a expressão desse fracasso, desse passar à margem daquilo que
representa e daquilo representado, dessa impossibilidade e de sua obrigatoriedade,
admitindo assim também a obrigatoriedade da falha. Deleuze fala de uma pintura e de uma
música próprias da escrita. Efeitos de sons, sonoridades e cores que se elevam acima das
palavras, de modo que é através das palavras, entre as palavras, que se vê e que se ouve.
Uma música de palavras, uma pintura com palavras, que faz com que as próprias palavras
silenciem, incapazes de atingir tal limite de sensação. Escrever, assim, é forçar a
linguagem, levá-la até o seu limite. Trata-se de buscar sempre ir mais longe na
desterritorialização, lidar com o vocabulário dissecado, fazendo-o vibrar cada vez mais em
intensidade. Talvez a necessidade da abertura de um espaço, ao modo de Blanchot, criado e
povoado pela impossibilidade de um corpo pleno da escrita. Uso intensivo da língua ao
invés de um uso simbólico, significativo ou significante. Quando a escrita carrega a
linguagem até o limite que a separa do silêncio, invadindo-o, ela não quer uma pausa nem o
descanso de uma página em branco. Se as palavras silenciam, é por assim poderem
emudecer seu próprio significado, confundindo a sintaxe. Por entre o silêncio das palavras
opera-se com aquilo que as palavras não dizem. Este espaço abandonado de significâncias é
como que o terreno recôndito da despalavra, da palavra ágrafa, e sem pronúncia alguma,
incapaz de ocupar o lugar de uma imagem. Se aí existe som, é um som que ainda não deu
liga, que se insinua sozinho, sem nenhum comprometimento lexical e livre de qualquer
sistema fonológico. O encontro com a despalavra escorre, necessariamente, até uma nova
matéria expressiva em ressonância com o fluxo da vida e as multiplicidades que a

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constituem. É a escrita que traz sua própria coloração, sua própria sonoridade, seu próprio
movimento. Trata-se de operar no terreno da escrita um procedimento ao modo de John
Cage na música: não buscar a total ausência de sons, mas sim a verdadeira possibilidade da
existência de sons e sentidos não organizados dentro da escrita, fazer o som vibrar
intensivamente por entre as linhas de escrita. Não se trata de escrever como um animal,
tampouco tem a ver com uma palavra que seja como um animal, mas sim extrair da
linguagem tonalidades sem significação, encontrar uma palavra que se movimente por
conta própria, sendo um animal ou então um silêncio propriamente lingüístico.
Tudo isso não deixa de soar um tanto opaco, e não haveria mesmo como ser de
outro modo. Dizer o indizível não passa por tentar decifrá-lo, mas por realizá-lo através da
expressão. Um ponto qualquer é apenas um ponto, e cumpre sua função quando nos permite
girar ao seu redor, delineando nosso meio e delimitando então a segurança de um pequeno
território, sempre de porte dos elementos que ele nos dá. Somos educadores, psicólogos,
músicos, filósofos, poetas, romancistas ou então nada disso, demarcando nossa distância a
cada linha traçada. O que é meu é primeiramente minhas distâncias, não possuo senão
distâncias delimitadas por minha expressividade. Tal componente expressivo, no entanto, é
o que irá fazer com que o território se abra ou então seja invadido por outros elementos.
Fixar um ponto e a partir daí organizar um plano, não perdendo de vista que o traçado é
sempre temporário. O plano, dizem Deleuze e Guattari (1997, p.59), seja ele de escrita ou
de vida, só pode fracassar, e isso simplesmente porque é impossível ser-lhe fiel. No entanto,
os fracassos fazem parte do plano, e é próprio do plano que o plano falhe, invadido por
outras sensações, perdendo sua razão inicial. Sempre uma questão de contaminação. O
ponto cutucado, remexido em suas bordas, em seus frágeis contornos, até que uma ferida se
abra, que se dissemine o contágio. Um pequeno ponto, uma pintinha qualquer, sonha com a
massa, quer ser elemento de uma constelação, animal em uma matilha, multiplicidade de
sardas sobre um rosto. É disso o que nos fala Paul Klee (2001, p.44) em sua confissão
criadora: transpor o ponto morto, por um primeiro ato de movimento. Depois de pouco
tempo, uma breve parada para retomar o fôlego. Uma olhada para trás, percebendo o
quanto já percorremos. Avaliar o caminho para lá e para cá. Usar um bote, atravessar uma
ponte, cruzar um rio violento, encontrar alguém do outro lado, alegrar-se pelo encontro,
perceber as diferenças, uma certa agitação das duas partes, mas ainda seguir, por entre

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campos não-cultivados, por uma floresta densa, abandonar a total serenidade, com a
atmosfera carregada e escura, com uma linha em ziguezague no horizonte, enquanto sobre
nós ainda restam estrelas. Tudo isso antes de chegarmos ao primeiro pouso, antes de
adormecermos, antes que algumas coisas ressurjam como lembranças, já que uma pequena
viagem como essa é sempre carregada de muitas impressões. No visível, está tudo aí. Um
pouco de ordem, mesmo que seja apenas este pouco, onde já está contido o salto. É bem
isso o que nos mostra Beckett (2004), em seu Primeiro amor: “eu não me sentia bem ao
lado dela, mas pelo menos me sentia livre para pensar em outra coisa que não ela, e isso já
era enorme, nas velhas coisas experimentadas, uma depois da outra, e assim pouco a pouco
em nada, como que descendo gradualmente em águas profundas. E eu sabia que,
abandonando-a, perderia essa liberdade”. Necessidade de um bom encontro, um pontinho
extremamente tenaz para um bom encontro, com tudo que ele comporta. Livre disso tudo
preso a isso tudo. Justamente, justamente. Agarrar as coisas, agarrar o mundo para fazê-lo
fugir. Agarrar todas as coisas experimentadas, até chegar em nada pelo esgotamento das
próprias impressões, tal a fórmula de um antilirismo em Kafka (Deleuze e Guattari, 1977,
p.89).
Falo em chegar a nada, admitindo a possibilidade de um instante-nada das coisas.
Um instante ausente de significados, usos, definições. Por entre uma linha e outra,
conseguir com que a forma do conteúdo conceda ao conteúdo-substância uma espécie de
desutilidade prática. Encontrar, pois, a matéria inútil por meio da expressão. De todo modo,
trata-se de operar por matéria, e não por substância formada, arranjando para isso seus
próprios termos. Querer escrever sobre nada é o mesmo que escrever com um conteúdo-
matéria? Ora, uma matéria física ou semioticamente não formada, indiferenciada do ponto
de vista do conteúdo, acaba por trazer consigo uma própria desestabilização da forma de
expressão que lhe apresenta, ou antes, é antecedida por ela. Se faço como Francis Ponge
(2000, p.43) e tomo o partido das coisas, deixando-as falar por si, confiro a elas a
possibilidade de encontrar a sua própria expressão e assim talvez até um novo sentido que
lhe apresente. A idéia é simples: todas as qualidades que posso descobrir nas coisas podem
se tornar argumentos a favor de meus sentimentos. Se aceito a imensidão de sentimentos
que não existem socialmente por falta de argumentos, posso também admitir que é possível
fazer uma revolução nos sentimentos do homem simplesmente aplicando-nos às coisas,

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capazes que são de dizer muito mais do que aquilo que comumente as fazemos significar.
Mas como se dá voz às coisas? Bem, o próprio Ponge teria pressa em ver nesse
questionamento um mau início, tão longe estava ele de ousar forçar qualquer coisa que
fosse a dizer algo. Tomar o partido das coisas passa por deixá-las livres o suficiente para
que possam merecer o seu próprio silêncio. Basta apenas que permaneçam com o direito à
palavra, sem nenhuma especulação antecipada sobre prováveis investimentos posteriores. É
em seu instante-nada que a coisa formula uma expressão necessariamente fontana. A
escrita, com a língua distraída o bastante para entrar em seu jogo, torna-se campo
suficientemente limpo para tal aparição. Escreverei eu tomando como partida aquilo que
sinto pelas coisas? Caso sim, não estarei escrevendo nada mais do que aquilo que sinto
pelas coisas, enquanto as coisas mesmas permanecem caladas. Em O que é a filosofia?,
Deleuze e Guattari (1992) não se cansam de insistir no fato de que pintamos, esculpimos,
compomos, escrevemos com sensações. Mais ainda: pintamos, esculpimos, compomos,
escrevemos sensações. Estas, como verdadeiros perceptos, são capazes de tornar sensíveis
as forças insensíveis que povoam o mundo, capazes então de nos afectar, de nos fazer devir.
Ora, antes de tudo, é preciso que a sintaxe introduza as próprias coisas na sensação, ou
melhor, que a coisa em si se torne a própria sensação. Sensação palavra-coisa. Necessidade
de uma vez mais, através da escrita, soterrar o homem e suas percepções e opiniões. O que
quer a escrita, assim, através do exercício do estilo, é arrancar o percepto das percepções da
coisa e do estado daquele que a encontra, de modo que se possa dar vida a uma paisagem
anterior ao próprio homem. Construção de uma paisagem não humana da natureza. Ao
homem, diga-se, àquele que escreve, se faz necessário elevar-se das afecções vividas até
um devir não humano capaz de atingir uma zona de indeterminação onde coisas, animais e
pessoas encontram-se antes de qualquer diferenciação natural. O seixo, a chuva, as bordas
do mar, o ciclo das estações e as árvores se desfazem no interior de uma esfera de nevoeiro,
o fim do outono. É quando a palavra guarda apenas a sensação, carrega por si a solidão de
uma tisana fria, o pesadume quase mortal de um dia seguinte, o perigo que corre aquele que
tem os olhos bonitos. Tudo muito distante daquele que escreve. Como um lápis que é então
um lápis e continuará sendo apenas um lápis esquecido em uma península, pertencido agora
por vazios. Deixadas por si, as coisas talvez carreguem força suficiente para nos dar mais
que um novo sentimento. Talvez carreguem potência suficiente para atravessar o que por

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elas sinto, o que delas digo, o que delas roubo. Haveria de ser essa, no final das contas, a
única questão a ser considerada no exercício da escrita. Não travar um possível contínuo no
processo, não emudecer eventuais murmúrios anônimos, não tomar a palavra por coisa
alguma. Tomar partido pelas coisas, sim. Por uma coisinha minúscula que seja, e então, por
seus próprios termos, poder sustentá-la, resguardar-lhe o direito à expressão, coisa-matéria
que é ou quer ser, intacta, neutra e suficientemente distante.

Referências bibliográficas
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16
A VERDADE DOS NOBRES PELO ENSINO DA PALAVRA

Deniz Nicolay

Devir-aurora ao modo de introdução

Canta, ó Musa, a ira de Aquiles, filho de Peleu, que incontáveis males trouxe às
hostes dos Aqueus. Escrever por Auroras, eis o desafio deste texto, que trata dos versos
homéricos da Ilíada e da Odisséia. Por meio deles, persegue a figura do herói, tipologia do
Nobre, entre os fiéis soldados de Agamenon. Uma fidelidade que é posta à prova pelo
empenho da própria vida, pois uma vez que um juramento é proferido, ele acompanha as
decisões do herói até o fim de sua vida. Nesse sentido, o ensino da palavra merece toda a
atenção dos poetas, dos trágicos e dos idosos. Pois ela é anterior ao texto, ao logos, e dela
somente sabemos pelas lições da Aurora. Mas trata-se de um gênero ou estilo literário?
Nem uma coisa nem outra. São apenas cantos iluminados pelo sol das manhãs, semelhantes
à marcação da vida no ritmo do dia que resplandece. Apolo impera porque é o senhor das
artes, da música e da poesia, a ação viva de toda a expressão estética. Embora isto seja,
antes de tudo, um texto: “O texto é o que é, não está no lugar de outra coisa” (Corazza,
2008, p.77), que tu possas, leitor, aproveitá-lo e senti-lo como uma ponte que liga o divino
ao humano, como a Aurora. A alegria impera, quando uma Aurora anuncia a chegada de
outras Auroras, assim são os cantos de Homero.
***
Nas histórias e epopéias que se perdem pelos confins do universo, que se tornam
lendas pela boca e pela memória dos mais velhos, quando narram aos mais jovens as
façanhas de tempos imemoriais, o poder da persuasão sonora manifesta a volúpia do orador
em multiplicar a narrativa, como um legado simbólico da arte de estender os versos até o
infinito da linguagem. Uma narrativa que se multiplica por si própria, em cada verso amado
e armado por singularidades cotidianas, onde a voz polifônica de um rapsodo (cego por
nascimento, estrangeiro por seu senso de liberdade) invade os séculos posteriores,
semelhante às vagas oceânicas, que penetram o continente pelo aguilhoar de um grão de
areia; ela condensa, em sua força de expressão, o sentido da verdade e da mentira, quando
invocados pela tradição de jurar a palavra. Quer essa palavra venha proferida pela boca

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dos homens (reis, príncipes, paladinos, heróis ou desgarrados), quer venha pelo hálito doce
e, ao mesmo tempo, sombrio dos imperiosos deuses olímpicos. Uma vez que a promessa é
feita em frente ao altar supremo de um deus ou, pelo olhar do herói na sua direção, em meio
aos eflúvios das libações e da fumaça dos sacrifícios, imortais e mortais se harmonizam
num só pensamento, numa única vontade. A promessa, então, em uníssono com os
acontecimentos cíclicos da natureza, torna-se inviolável porque permanece presa ao destino
do herói, seja este trágico ou bem-aventurado. Ao contrário dos deuses que, por vezes,
parecem tomar partido, interferir ou simplesmente brincar com o curso das coisas e,
sobretudo, com a capacidade de interpretação dos adivinhos e videntes, os mortais num
campo de batalhas são determinados pela vontade divina. Ora, o destino de uma divindade
aristocrática do séqüito de Zeus é extemporâneo ao tempo de vida útil dos autômatos
personagens, pois quando um imortal nasce, ele nasce para o tempo de sua vida e ali
permanece para sempre, embora passem os anos sua energia vital jamais passará.
Portanto, se havia um tempo insólito e insofismável da narrativa e da palavra, esse
era o tempo da Ilíada e da Odisséia e, acima de tudo, o tempo de Homero. Quando Zeus, “o
portador da égide” (Homero, 1998, p.11), quebra o ciclo do titã Cronos (seu pai), ele
instaura na ordem cósmica a magia dos acontecimentos cotidianos. Na Ilíada, tudo se passa
para os exércitos Gregos frente aos muros de Tróia, como se a própria existência da vida de
um povo dependesse de seu desfecho no sangrento campo de batalhas. Cada dia é uma
história diversa que alimenta a boca do poeta e cada reles personagem é transformado em
ator principal, mas somente naquele dia. Ora, as descontinuidades da narrativa homérica
são muito mais do que um mero recurso de enredo no gênero épico, na medida em os
versos estão dispostos com a intenção de assumir independência total em relação ao canto
que se prestam. Elas demarcam o ritmo cadenciado dos hexâmetros em prol do surgimento
de uma ambiência de escuta, garantia necessária para que a lenda permaneça através dos
séculos, entre a genealogia de seu povo. Por isso, cada ser que vem ao mundo é um
acontecimento único, carrega os traços estéticos e éticos de seus pais, que, por sua vez,
trazem nas feições a marca de seus antepassados e estes, uma vez ainda, se aproximam da
descendência terrena de um deus. Seu poder, assim, é determinado pelo grau de ligação
divina: quanto mais próximo dos deuses, mais poderoso é o herói e, se maculado pelo
sangue imortal ou prometido como juramento ao sabor da palavra, proferida naquele dia

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em que nasceu, torna-se um protegido pelas maquinações divinas. Assim são: Agamenon,
Aquiles, Heitor, Diomedes, Menelau, Ulisses, Nestor, Ájax, Páris, Pátroclo, Fenix, Príamo,
Idomeneu, Enéias, Antíloco, heróis Gregos e Troianos dos versos da Iliada. Entretanto,
apesar dessa proteção, seu tempo também chegará e a mansão de Hades lhes servirá como
última morada. O tempo dos deuses não é o tempo dos homens.
Enquanto os deuses, habitantes do Olimpo, são os que se alimentam de ambrosia,
amam a música apolínea e passam os dias a pensar estratégias sobre os destinos da Guerra
de Tróia, a existência do herói está destinada a um único termo. Esse é apenas a criatura da
ação, o joguete divino que teme a ira dos imortais, que vive cada dia como se fosse o
último dia de sua trajetória terrestre. Os deuses, ao contrário, são os que transformam o
pensamento em palavras e ação e, por isso, não partilham da mesma substância vital que
compõe o corpo do herói. Portanto, “É a ‘força vital’, isto é, a vida, que faz a divisão entre
homens e deuses” (Sissa; Detienne, 1990, p.17). Ou seja, deuses e heróis, embora
semelhantes nas ações do cotidiano, não são iguais em vitalidade, em aiôn. Diante das
potestades olímpicas, o homem é apenas uma espécie fadada ao desvario, oferecendo um
cômico espetáculo de sua impotência congênita: a de deter o tempo contra o
envelhecimento ou de descobrir um remédio contra a morte. Semelhante às folhas de
outono, que ora vivem magnificamente na sua seiva verdejante, ora se esvaziam e caem no
nada, assim é o sublime destino dos amigos de Prometeu. No entanto, deve existir algum
elemento da ordem da afecção, que liga seres tão distantes e, ao mesmo tempo, tão
extraordinários quanto os personagens dos versos homéricos da Ilíada. Tal elemento quer
procurar aproximar o caráter e a atitude de ambos, como se fossem produto de um único e
mesmo movimento da linguagem, de uma voz que encontra na poesia uma forma estética e
acabada da expressão do próprio pensamento divino e, com isso, torna a primazia da ação
um acontecimento único na seqüência dos ciclos vitais da natureza. É uma linguagem que,
pela beleza de seus detalhes, se faz obra de arte e eterniza o tempo para as gerações
vindouras na potência de suas palavras. Ora, se a poesia é a linguagem das paixões, todos
somos vulneráveis às paixões e, nesse caso, deuses e homens são iguais nos sentimentos.
Mas é exatamente o controle das paixões, do thymos, que comporá o traço
característico dos grandes heróis homéricos. Não apenas dos heróis, as potestades também
são volúveis e sujeitas a toda sorte de humores, muitas vezes respondem com um acesso de

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fúria a qualquer provocação dos homens. Ares, deus da guerra, talvez seja o mais colérico
dos deuses, uma vez que na batalha de Tróia muda de posição conforme assim lhe agradar,
a fim de incitar a disputa e a intriga entre os opositores. Dele, manifesta Zeus na Ilíada:
“És, para mim, o mais detestável dos deuses que moram no Olimpo, pois ama sempre a
discórdia, a guerra e as batalhas” (Homero, 1998, p.95). Com exceção de Zeus, todos os
outros deuses são passíveis de julgamento pela insensatez de suas ações. Entretanto,
renunciar à violência, ao desacordo que os leva a colocarem-se do lado dos guerreiros é
também renunciar ao fluxo contínuo da narrativa, pois quando os deuses comungam da
mesma opinião tudo pára no universo homérico. A disputa parece ser o regalo divino e,
também, o próprio motor da história dos homens. É na disputa que são versados os heróis
Gregos e Troianos, mesmo que a guerra destrua-lhes a família, as posses; ainda assim, seu
desejo é o de adentrar nas fileiras inimigas e esmagar o maior número possível de
adversários. No entanto, sob a aparente vontade de matar, de irracionalidade, esconde-se a
obediência aos imortais, o cuidado de si e o autocontrole, virtudes sem as quais o grande
guerreiro dificilmente sobreviveria. Entre os Aqueus (Gregos), se por um lado temos Nestor
e Ulisses, baluartes do exército de Agamenon no uso com as palavras; por outro lado,
temos Diomedes e Aquiles, incontroláveis na sua fúria de destruição e, portanto, incapazes
de se defender contra si próprio. Cada herói carrega sua arte e o peso do seu destino, como
se fossem escudos que protegem o corpo dos dardos certeiros dos Troianos que, aliás,
contam entre os seus eleitos e protegidos por Apolo os nomes de Heitor e Enéias. Ou seja,
nesse fascinante mundo homérico, parece que existe por trás do herói uma virtude
emblemática, talhada por laços genealógicos. Quando essa virtude lhe falha, há uma
potência divina ou musa inspiradora que, nas horas mais difíceis, fornece a força e o poder
persuasivo das palavras, como afagos maternos ao querido filho que aguarda a suprema
entidade do Sono. Sem essa voz de ressonância divina, o herói seria tão volúvel aos
instintos e às paixões quanto um galho balançado por Zéfiro.
Embora seja inegável a influência dos outros deuses olímpicos na trajetória dos
fatos, Zeus é realmente aquele que detém a sentença final de uma querela. Ele representa o
poder da palavra e da ação, nem deuses nem homens têm a coragem de enfrentá-lo. Não
está sujeito às regras democráticas, pois é ele propriamente quem faz a lei, que dita os
destinos dos heróis. Por vezes é uma autoridade despótica, ameaçadora e tirana: “Quando,

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porém, eu desejasse vos arrastar, poderia arrastar-vos e a própria terra e o próprio mar”
(Idem, p.124). Outras vezes é sensível à lástima e às dores de seus congêneres, como na
ocasião em que houve as queixas da deusa Tétis, pedindo-lhe que vingue seu filho
(Aquiles) contra os Gregos. Quando interpelado por um suposto código de nobreza, o
crónida não mede esforços em atender ao direito violado e reparar a falta daqueles
considerados culpados pelo ato. De certa forma, dois heróis da Ilíada incorporam os traços
característicos de Zeus: Páris e Ulisses. O primeiro por sua sensibilidade, seus ímpetos e
vaidades em relação às mulheres e, o segundo, por suas múltiplas habilidades, tanto no trato
com as palavras quanto no manejo com as armas. Com efeito, o ‘Eu’ de Zeus incorpora
todos os aspectos de uma subjetividade em movimento. Exatamente como os movimentos
da narrativa homérica, cujas linhas em permanentes digressões sofrem o efeito da vontade
(boulé), do coração (thymos) e do intelecto (nous) das potestades olímpicas. Todavia, nem
sempre a palavra que predomina nas decisões dos imortais é aquela mais justa e sincera
para a situação, pois a voz que se elogia na primeira pessoa também toma partido pessoal
dos acontecimentos da batalha. Desse modo, Zeus persuade o rei Agamenon durante o sono
sob a aparência de um sonho enganador. Assim, ele lhe promete a vitória contra os
Troianos, mas caso o rei armasse seus exércitos e atacasse naquele momento. Na verdade, o
pai dos deuses pretende que este conduza as fileiras Gregas para a derrota, na medida em
que sugere um ataque desproporcional ao momento vivido pelos guerreiros. Portanto, a
palavra que desencadeia as ações, articulada entre o dizer e o fazer, inquestionável porque
significa a verdade divina, não passa de um engano, de uma mentira extravagante de cunho
unicamente pessoal. Ora, no universo da épos devemos lembrar de que: “A palavra tem
força persuasiva na medida em que engana” (Neves, 1987, p.22). Em Homero, não há
distinção entre a verdade ou a mentira, pois é a ação, o ato, que define o valor dos
pensamentos, mesmo em situações contraditórias, as pretensões de Zeus acabam por se
tornar um acontecimento, que demarca rumos diferentes no destino dos homens.
É inevitável não perceber entre a sociedade dos Olímpicos uma estrutura rígida,
hierática e determinada por relações de poder, cujos domínios se estendem do Ida até o solo
pedregoso de Ítaca. Mas trata-se de um poder exercido por uma autoridade despótica, que
faz uso da violência para impor sua própria vontade, sem jamais se arrepender da dor
provocada por sua fúria impetuosa. Aqueles que lhe acompanham são um grupo de eleitos

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bastante seletos, preocupados em presidir a comédia humana, e geralmente seu número é
equivalente a uma cota de três gerações. Ou seja, todos possuem um certo grau de
parentesco e, mesmo assim, são considerados esposos e esposas, ou melhor, pares de
potências que atuam em lados contrários da existência humana. É do sangue de Zeus que
nascem os grandes heróis: “Um sangue metafórico, poderão dizer: só por analogia, Zeus
alude à geração dos homens” (Sissa; Detienne, 1990, p.45). Entretanto, esses heróis jamais
serão aceitos no primeiro escalão das divindades homéricas, talvez Heracles e Dionísio
mereçam um lugar pela persistência e pela grandiosidade de suas obras. Entre os humanos,
o protegido da tritogênia Palas Atena, Ulisses, é aquele que incorpora os traços imortais do
grande senhor do Olimpo, mas, diferentemente de outros heróis, ele simboliza o produto
mais acabado das raças arianas. Enquanto na Ilíada prolifera uma gama de valorosos e
nobres heróis, temos na Odisséia um único indivíduo capaz de absorver todas as outras
características de seus irmãos guerreiros. Esse herói é Ulisses. Ele é aquilo que Homero
chama de polýtropos (Homero, 2007, p.139), o multifacetado, o portador de máscaras,
aquele de muitas virtudes, são interpretações plausíveis ao neologismo polítropo, atribuído
à complexidade de que é formada a matéria humana. Ora, um verdadeiro rei é produzido
pelas aventuras infinitas do espírito e a vontade de poder, que vem com a natureza, é
despertada naquele que tem o sangue predestinado para as glórias do combate. Também,
aqui, na terra dos homens, Ulisses se impõe por sua descendência, sua força, seus ardis,
mas principalmente por suas habilidades narrativas. Não é como o aedo que, cantando na
sua voz, invoca a Musa para cantar seus cantos, como se fossem melodias jogadas ao léu da
linguagem. Esse que rouba a voz das musas, também fala como alguém que viveu o
narrado em toda sua potência de expressão. Ele é seu co-autor porque ultrapassa a palavra
de Zeus e seu direito senhorial de dizer a verdade, a única verdade. Agora, a partir da
Odisséia, Homero espetacularmente procede por um desajuste entre a palavra e a ação,
onde aquela pode dizer mais do que esta e o possível da linguagem vai muito além dos
riscos da arte poética. Ainda assim, o poder da palavra permanece o mesmo, uma vez que
entre os dois mundos, o da Ilíada e o da Odisséia, todos os eventos se passam entre iguais,
homens livres de longas cabeleiras, nobres que carregam a herança genealógica de seu
povo. O poder da palavra é o poder de ação e criação dos nobres.

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Na odisséia, todos os pretendentes de Pénolope são nobres de Ítaca, que enquanto
Ulisses não retorna, devoram as posses do herdeiro Telêmaco. Este se vê obrigado a
assumir decisões na assembléia, defender a honra de sua mãe e manter o código de nobreza
acima de qualquer suspeita. Proceder como um nobre, eis o desafio do jovem filho de
Ulisses que, ao contrário do pai, repulsa os campos de batalha pelas artimanhas da arte
retórica. Mas ele precisa aprender a enfrentar as investidas daqueles que querem a ruína de
seu reino. Por isso, persuadido pela deusa Palas Atena, disfarçada de Mentor, decide ir a
procura do pai desaparecido. É uma viagem de aprendizagem em que o neófito revive as
linhas perdidas da Ilíada, redescobre seus grandes heróis, os lugares por onde o pai
navegara e, sobretudo, recria, pela experiência da linguagem, um tempo perdido na
memória dos anciões. Tal movimento do tempo em direção, cada vez mais, à liberdade da
palavra divina, ao amadurecimento do personagem, ao retorno das pulsões dos versos
homéricos, pode ser definido como aquilo que os antigos Gregos chamavam por kairós. Ou
seja, o tempo em que um jovem aprende as astúcias da nobreza, de como se portar numa
sociedade de homens livres. No encontro com Nestor, ingenuamente confessa Telêmaco:
“Mentor, não sei como falar-lhe. Faltam-me palavras. Sou tímido, jovem. Isso me
embaraça. Como abordar um senhor idoso?” (Homero, 2007, p.63). Seu receio ao falar é o
receio de um principiante na complexa atividade do dis-cursus, pois o domínio da vida
pública depende de uma certa coerência no uso com as palavras, de uma certa capacidade
persuasiva, que faz de um rei também o porta-voz de seu povo, e Telêmaco quer ser rei.
Para isso, o discípulo procura um modelo em que possa se espelhar, tanto no uso da
linguagem quanto na firmeza de caráter. Sem o pai, a referência logocêntrica de seu
discurso, ele coleta fragmentos de narrativa para compor uma história que se perdeu pelas
vagas do oceano. Reinventando essa história, ele igualmente reinventa os laços
genealógicos de sua linhagem e, acima de tudo, a marca propensa da tipologia dos Nobres.
Nestor é um Nobre, dominador de seu logos e, portanto, um dos instrutores do confuso
herdeiro. Assim como a própria Palas Atena (Mentor) – simbologia da alteridade do
personagem, que exerce a função de consciência superior de um adolescente que ingressa
no mundo dos adultos –, todos os Nobres, que encontra na viagem, lhe presidem os ritos
iniciáticos dessa transição. Com esse gesto, Homero encerra o tempo da palavra de Zeus e
diviniza, antes de tudo, a linguagem humana.

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Mas trata-se de uma linguagem que pertence ao universo real daquele que é o
portador de direitos nos conselhos de guerra. Gleba lavra e fecunda para as decisões da
polis, pois sua palavra tem o peso de gerações inteiras e é capaz de mudar o rumo de muitos
cidadãos. Quando um Nobre fala, ele invoca a tradição dos heróis que pereceram nos
Campos de Ares, ao mesmo tempo em que suas provações são coroadas pela excelência de
seu logos. Os outros das assembléias atendem em ouvi-lo, afim de que suas palavras
quebrem o silêncio dos templos seculares, afirmando o poder avassalador da revolução
prometéica. São os atos dos Nobres que demarcam a liberdade de ação em relação à
vontade de Zeus. Conseqüentemente, isso exige outra escrita de seus feitos, mais formal e
normativa do que a linguagem poética. Tal escrita deve conciliar a verdade objetiva dos
fatos com a subjetividade daquele que tem os dons da oratória, definindo o destino (Moros)
pelo sentido do nome que carrega: “Na verdade, tanto as coisas como os nomes são
momentos do logos” (Neves, 1987, p.28). Agora, o herói, na figura de Nobre conviva do
banquete real, abdica das armas de guerra para digladiar-se no terreno pedregoso dos
sentidos, onde uma idéia pode valer mais do que os despojos da batalha. Se antes fora
estrangeiro em regiões inóspitas da palavra, perambulando em busca de uma causa justa
para registrar suas glórias, a partir desse momento (Grego por excelência), o Nobre afirma
suas próprias forças e faz valer uma justa causa, oriunda do discurso, que profere aos seus
rivais de pensamento e voz. Entretanto, as palavras do discurso excedem a seqüência
regular da linguagem e invadem o espaço natural da phýsis, na intenção de nomear,
denominar, referenciar, revelar, todos os sinais que compõem uma profunda experiência de
aprendizagem. Pois como o rio heraclitiano, que segue seu curso e se multiplica em outros
cursos, se renovando a cada dia, da mesma forma é a busca pela verdade da palavra, ou
seja, quanto mais a procuramos mais somos jogados no acontecer de sua inocência. E um
Nobre é tão inocente quanto uma criança que está imersa na fantasia.
Nesse caso, no momento em que se apropriou dos elementos constitutivos do logos
e fez as palavras convergirem sobre si mesmo, poder-se-ia imaginar que o Nobre não
precisaria mais dos velhos poetas. Mas quão enganosa é nossa imaginação! Urge invocar
um outro perfil de contador de histórias, um poeta que cante, dance, fale e escreva as
façanhas das épocas dos grandes heróis. Perpetuando, assim, por meio do canto, as glórias
de sua raça, antes que essas caiam no nada e desapareçam como traços desenhados na areia.

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É preciso adentrar nos reinos de Hades e vir em socorro dos mortos, empunhando uma
palavra-viva, um poder de expressão que vá além da verdade para completar a obra. É
preciso um Herácles da linguagem. Tal poeta deve encarnar a multiplicidade das vozes
perdidas nos duelos de outrora: “(...) o poeta dramático quando se transforma em outros
corpos, fala a partir deles e, contudo, sabe projetar essa transformação para o exterior, em
versos escritos” (Nietzsche, 1983, p.33). Eis que se ergue, com passos dúbios e olhar
fulgurante, as figuras de: Píndaro, Sófocles, Ésquilo e Aristófanes, em defesa da antiga arte
dos degredados de espírito. Pois na visão trágica, o corpo do herói deve ser fiel à verdade
de seu destino, mesmo que esse destino seja o da aniquilação absoluta. Ele deve manter o
seu pathos (provações) da distância em relação aos versos e às palavras, sob pena de
ridicularizar sua estirpe. Assim, encena, vive e revive, espreita e age, morre e renasce,
conduz cada gesto com a precisão das Parcas, enquanto o som dos crótalos báquicos
determina a seqüência dos acontecimentos. O herói trágico passa a ser o produto mais
sublime da nobreza Grega, aquele que afirma seu nome frente à linhagem genealógica, que
age com velocidade e perspicácia na execução de um raciocínio, que torna a vida sua
grande batalha pessoal. Não é aleatório que a maioria das tragédias gregas invoca conflitos
e dramas familiares. É um clarão da Ilíada que ilumina As Oréstias de Ésquilo, onde
Agamenon é morto por uma dupla traição, pela má fé de um oráculo que lhe ordenou o
sacrifício de Ifigênia e pela relação amorosa de sua esposa, Clitemnestra, com Egisto. Mas
uma morte gera outras mortes, e o que era um detalhe nos versos homéricos se transforma
numa obra-prima do terror doméstico. Ou seja, a verdade da palavra implica uma justa
medida de suas ações, um certo cuidado com os riscos que podem sair da boca daquele que
fala e, sobretudo, o sentido que damos para aquilo que aprendemos da herança narrativa.
Ora, o tempo dos trágicos é igualmente o tempo de Heráclito. Também um Nobre,
que preferiu levar uma vida errante ao desfrutar os prazeres de sua fortuna. Aos poucos, ele
começa a desconfiar das máscaras usadas pelos heróis trágicos e das virtudes de um poeta
cego, que pouco ou quase nada entendia das experiências originárias dos sentidos. Também
percebe que existe algo que foge da tentação nominalista da linguagem, algo como uma
palavra vazia, sem sentido para a poesia. Isso faz com que tal filósofo chamado de “O
Obscuro” pergunte: “O que nomeiam os nomes? Outras máscaras. Nunca o escondido, cujo
vigor as mantém” (Schüler, 2001, p.40). Essa dimensão fugidia das palavras lança a

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linguagem no horizonte infinito do vir-a-ser, ou seja, do fluxo permanente das energias, que
transitam para lá e para cá, determinando a direção e o sentido das coisas. Nesse entremeio,
há um silêncio da voz trágica no seio da cultura Grega, talvez uma nova escuta do discurso
logos, na qual Heráclito não é mais do que uma voz. As palavras carecem de uma fina
sensibilidade para operar com as antinomias, de uma aceitação incondicional das
transformações do ser e do devir, do movimento voluptuoso das ações da linguagem e,
portanto, do exercício multifacetado dos verbos em direção ao tempo presente. Seu
desprezo pela narrativa homérica vem do fato de que esta pertence, muito mais, aos
aspectos subjetivos da personalidade, num espaço entre um passado brônzeo e um presente
mágico. Enquanto no seu Discurso, costurado por fragmentos, reivindica uma linguagem
lógica, impessoal e objetiva, onde o próprio narrador é o protagonista da aventura épica.
Entretanto, Homero não é o inimigo mortal, mas sim outro contemporâneo das tragédias
Áticas, Parmênides. Este nega completamente a dimensão do não-ser na linguagem: “Para
Parmênides, ser e pensar são o mesmo” (Neves, 1987, p.29). Aqui, percebemos uma quebra
no clássico esquema do dizer/fazer. O que predomina agora são as maneiras de nomear o
mesmo objeto, pois a raiz desse objeto permanece inabalável. Posteriormente, o terreno
deixado por Parmênides será profícuo para seu discípulo Platão. Com os pilares da
metafísica, praticamente estabelecidos, o corpo e o espírito passam a compor entidades que
habitam lugares diferentes, embora representem o mesmo ser. É o golpe final sobre o poeta
dramático, sobre o herói trágico e, principalmente, sobre a nobreza dos helenos. Talvez
aquilo que Heráclito escuta não seja a voz suave do Safo, mas a temerosa voz da Sibila.
Se a verdade do herói homérico era o produto de um jogo divino, que dependia da
vitalidade e da intensidade de cada dia, a verdade do herói trágico encarnava a expressão de
seu corpo, de seus gestos na pantomima do instante. Instante em que os cantos penetravam
nas veias dos poetas, falando de seus dramas íntimos e familiares. Em ambos, o sentido
remete para a tipologia dos Nobres, casta que simboliza o tipo ativo, afirmativo, aquele que
defende o seu pathos acima de tudo. Heráclito reconduz o logos para o lugar do Discurso
racional. Mas é Parmênides e após Platão que vulgarizam essa verdade do herói, tornando-a
um elemento da ordem da doxa. Muito próximo, portanto, de uma espécie de gregarismo da
linguagem e de sua tipologia apropriada, a do Escravo. Entretanto, o quadro não ficaria
completo se não definíssemos: “O que é, pois, a verdade? Um exército móvel de metáforas,

26
metonímias, antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram
realçadas poética e retoricamente (...)” (Nietzsche, 2008, p.36,37). Se estou aqui, sentado
nesta cadeira, perto desta janela, se tenho em minhas mãos este livro e esta caneta, se olho
para os lados e o que vejo é a continuidade imediata desta mobília e deste lugar, devo
assumir a crença inabalável do que aquilo que vejo é o que me faz acreditar numa verdade
em si. Se, porém, esqueço desse local em que me encontro e assumo os desafios de
transgredir o cotidiano, e folheio a contracapa de um velho livro, onde está escrita em letras
de tinta escura uma frase temível, mas cruelmente sincera: Nós também mentimos para
viver. Então, encerro a história.

Referências bibliográficas
CORAZZA, Sandra Mara. Os cantos de Fouror: escrileitura em filosofia-educação. Porto
Alegre: Sulina, Editora da UFRGS, 2008.
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1990. (Trad. Rosa Maria Boaventura.)
SCHÜLER, Donaldo. Heráclito e seu (dis) curso. Porto Alegre: L&PM, 2001.

27
ENSAIO DA (DES)EDUCAÇÃO MUSICAL

Eduardo Guedes Pacheco

A única maneira de teres


sensações novas é construíres-te
uma alma nova. /Baldado/esforço
o teu se queres sentir outras
coisas, sem sentires de outra
maneira, e sentires-te de outra
maneira sem mudares de alma.
Por que as coisas são como nós
sentimos – há quanto tempo tu
sabes tu isto sem o saberes? - e o
único modo de haver coisas
novas, de sentir coisas novas é
haver novidade no senti-las.
Mudar de alma. Como? Descobre-
o tu (Pessoa, 1994).

Para o compositor John Cage, a música é um meio de refletir e de abrir a cabeça do


ouvinte para o mundo (cf. Brito, 2003, p.27). Gilles Deleuze e Félix Guattari (2005), por
sua vez, afirmam que é através da canção que a criança busca um centro estabilizador e
calmante no meio do caos. Com essas idéias, apresento os elementos que compõem meu
desejo de escritura: as palavras apresentadas não tratam da música como uma conjunção de
sons, mas sim como uma forma de estar presente no mundo. Ou seja, um modo de fazer um
corte no caos. Afinal, não é por acaso que a criança canta. A criança, que é o alvo dos
olhares adultos famintos por construir caminhos pedagógicos e formadores para este ser.
Desse modo questionamos: e se nos permitirmos fazer uso dessas idéias acrescentando
outros tons (cores) as trazendo para outros lugares, às vezes mais, às vezes menos afastados
das suas intenções originais? Essa criança, então, não estará mais cantarolando, mas
tocando um instrumento de percussão – o pandeiro, e os ritmos por ela produzidos
expressam sua tentativa de estabilização. Ritmos que não se configuram em elementos
reguladores, doutrinários, e sim na passagem entre os meios (Deleuze e Guattari, 2005),
energia utilizada pela criança não só para refletir sobre o mundo, mas para inventar o seu
próprio. E se essa música de pandeiro, esse ritmo, essa energia em movimento que brinca e
dança com as concepções sobre a infância ligadas ao ser, uno, alma, espírito e sujeito

28
insinuar através das suas sonoridades, criações e performances outros olhares para a
infância contemporânea? Por fim, o que buscamos é pensar a música e a infância como uma
forma de atravessar e problematizar os caminhos pedagógicos, através da elaboração de
uma deseducação musical que tenta se livrar das doutrinas sustentadas por ações e olhares
dedicados à música, à infância e à música da infância.
Todos estão surdos
Exatamente às sete horas e trinta e cinco minutos o sinal toca. Parece muito com o
som usado nas fábricas para indicar inícios e finais de turno de trabalho: começa baixo e
fraco e vai aumentando sua intensidade até assumir uma força que é notada por toda a
cidade. No início, sua textura é facilmente confundida com o som de uma sirene de
ambulância, sensação abandonada assim que sua duração ultrapassa tal expectativa. Aquela
chamada dura por volta de vinte segundos. O sinal provoca o surgimento de outras
sonoridades, mudando a paisagem e trazendo alterações para os corpos, vontades e
pensamentos das crianças. O ambiente passa a ser preenchido pelos passos, pelas correrias,
pelas conversas e gritos: todos se dirigindo para as salas de aula. Sem muita demora os sons
dos pés e das vozes ganham o acompanhamento do arrastar das cadeiras, da troca de
lugares das classes, do abrir das mochilas. Uma avalanche sonora que serve como
passagem para o meio escolar, lugar de educação e formação. Como uma onda que nasce
de pequenos movimentos e encontros, idas e vindas das correntes, as crianças passam uma
pelas outras, sonorizando os corredores escolares com suas energias. Encontro de vozes, de
corpos, de expectativas. E, como uma onda que perde a força na beira da praia, a entrada do
professor funciona como o contato da água com a areia seca, encerrando movimentos. A
presença do professor é companheira do silêncio que afugenta todos os sons e ruídos
indesejáveis tomando para si a responsabilidade de conduzir os momentos daquela manhã,
que só é interrompido pelas ordens dadas pelas vozes dos responsáveis pela “educação de
todos os alunos e alunas daquela instituição”. As salas de aula são organizadas em fileiras
de classes. Os alunos sentam uns atrás dos outros. É permitido apenas olhar para frente,
realizar as tarefas apresentadas pelas professoras e falar só quando solicitado. Conversas
entre colegas não são toleradas. E, como principal responsabilidade, os alunos e alunas
devem aprender a ler, escrever, somar, decorar datas históricas importantes, aprender sobre
conceitos científicos e realizar trabalhos artísticos, como forma de depurar a sensibilidade,

29
além de exercitar regras de convívio social. Todos esses aspectos são considerados
fundamentais na busca por uma educação que possibilite a formação de cidadãos aptos a
participar do jogo democrático com autonomia, dando condições para uma atuação na
sociedade como trabalhadores responsáveis e futuros pais e mães de famílias. Por volta das
dez horas da manhã, a escola assume uma nova configuração. Todas as crianças saem para
o pátio. Então, o silêncio é silenciado. E assim, as vozes, as brincadeiras, as discórdias e a
música criam outro lugar. Uma nova mudança de meios acontece. Entre crianças que
correm, o pandeiro é o primeiro instrumento a ser percebido, fazendo insinuações, frases,
brincadeiras no tempo, que servem como introdução da obra, ao mesmo tempo em que
convidam o “tan tan” e o cavaquinho para se juntar e criar o palco, para que a voz do cantor
faça seu discurso. O refrão ganha a densidade do surdo que com suas ondas graves produz
uma sensação de engrandecimento para a música chamando todos que estão na roda,
mesmo aqueles que não estão tocando algum instrumento, para cantar em uníssono a
melodia criada pelas próprias crianças. Esse era o momento mais vibrante do recreio: todos
cantando juntos, tendo o ritmo dos instrumentos de percussão como aglutinador, elemento
condutor das energias. Um mantra que através de suas energias, no lugar de colocar todos
os presentes em estado de meditação, produz agitação, efervescência, desacomodação.
Música geradora de alegria, ritmo, composição, canção. Mas a duração desse meio era
determinada pela produção de outro som: a sirene que se apresentava como uma ordem,
fazendo com que todos abandonassem as suas vontades e retornassem aos processos
educacionais. Volta às suas salas, uma cerimônia que se repete todos os dias, ritual
conduzido pelo desejo de silêncio educacional que vence e toma seu lugar, novamente... Às
dez horas e vinte e cinco minutos todos já estão quietos, ouvindo as professoras. Os sons
produzidos na hora do recreio, a música, a roda, os corpos dançantes, os ritmos e as
percussões emprestavam um novo status ao intervalo educacional. Ao sentirem-se
provocados a participar e contribuir para com a formação de seus alunos, também na hora
do intervalo, os professores lançaram suas atenções para os momentos que não estavam
dirigindo suas energias didáticas aos meninos e meninas na sala de aula. Assim tomaram
uma atitude. Ao perceberem que as crianças tocavam, cantavam, compunham e tentavam
aprender a tocar e cantar sem a orientação de um adulto, proibiram as rodas de samba no

30
recreio e providenciaram, através dos auto falantes colocados no pátio, apenas músicas
eruditas para as crianças.
(Des)educação musical
Como diria um grande amigo, “existem palavras que deveriam fazer parte de uma
nova categoria gramatical chamada de palavras certas. Não por serem perfeitas ou por
muito bem designarem as supostas coisas em si que elas representam, mas por serem
justamente vazadas, líquidas, e por mais sobrecodificados que sejam os sentidos a elas
concebidos, basta um sopro para que outro sentido novamente as coloque fora de rota”
(Costa, 2008, p. 6). Faço desse pequeno furto um gesto de carinho. Minha intenção: fazer
justiça àqueles que conhecemos e amamos, isto é, testemunhar por eles. Isto é, imortalizá-
los... Isso não quer dizer colocá-los em posição central: “são lugares de amor que
funcionam com imãs” (Barthes, 2005, p.5,6). Claro que as palavras que incentivaram as
suas investidas não são as mesmas que me levaram a cometer tal transgressão. A palavra
que motiva meu ato ilícito pode ser, por alguns, considerada ofensiva, pois coloca em
questão outra, esta ícone do mundo contemporâneo: (Des)educação. Ainda existe a
possibilidade de que estudiosos, através de argumentos pinçados da gramática da língua
portuguesa, digam que isto não é uma palavra. Confesso que gosto dessa possibilidade. Por
outro lado, ao trazê-la para a cena não busco criar um lugar de certeza ou de substituição
para verdades. Estou mais interessado em encontrar formas de fugirmos desses. Tenho
alegrias com a desordem e não com certezas sem suspeitas. Tenho desconfianças dos
métodos, compêndios acabados, guias definidos que escolhem caminhos fixos para buscar
lugares, que na grande maioria das vezes é conhecido. O que quero? “Só não copiar, só não
repetir, só não definir, só não dicionarizar, só não reproduzir igualzinho” (Corazza, 2008, p.
27). Quero compor, inventar e se me sobrarem forças...
Se me sobrarem forças, experimentar uma (des)educação. Por outro lado, minha
investida tem um alvo: a música. Não gostaria que essa vontade fosse entendida como uma
redução de possibilidades. Ao escolher o faço por prazer, pois o lugar escolhido é aquele
que me provoca, me remete ao viver, me movimenta. Evidentemente, outros também o
fazem, mas esse assume maior importância. Por quê? A resposta poderia ser construída
facilmente através de argumentos que indicassem a relevância da música na vida das
pessoas, discorrendo sobre como a mesma contribui no desenvolvimento de todos que têm

31
a oportunidade de participar de situações as quais, através de suas especificidades,
contribuem na formação de crianças, jovens, adolescentes e adultos. Mas esse não seria o
motivo, pois esse tipo de argumentação deixa de fora o mais importante sobre as escolhas
que possam ser realizadas. Minha resposta nasce de um momento de (des)educação de qual
participei. Após algumas horas de intensa conversa sobre temas de relevância acadêmica,
abordando aspectos referentes à vontade de escrever e traços que entram em ressonância
com essa vontade, as últimas palavras proferidas pela professora dizem: por que alguém
escreve? A resposta é por que não pode não escrever, é uma necessidade de vida. Escolho a
música por ser músico, por uma necessidade da minha vida.
Os lugares para que a (des)educação musical possa ser experimentada não exigem
maiores preparativos. Tal investida pode acontecer em qualquer lugar, pois não depende de
planejamento, da elaboração de planos, da construção de objetivos ou ainda de processos
avaliativos. Também não é necessária a escolha de conteúdos a serem abordados, tão pouco
a eleição de estilos ou formas adequadas a uma determinada proposta. A única exigência é
a presença da música, ainda que não existam garantias de efetivação dessa situação.
Essa falta de garantia atribui um caráter muito especifico para a sua realização. Por
não se tratar de “leis de aprendizagem submetidas às leis científicas onde os resultados são
passíveis de previsão” (Kastrup, 2001, p. 2008) não é possível antecipar a sua realização. O
acontecimento da (des)educação musical surge de um movimento que não identifica com
clareza o que procura. É o momento de mais alta intensidade que provoca naqueles que
participam dessa situação não a construção de certezas, ou ainda a apropriação de novos
conhecimentos, mas sim a sensação de que a sua pele foi tocada pelo sopro desestabilizador
de sentidos. Colocar o corpo em atenção, não de modo a procurar algo pré-estabelecido,
mas sim perceber o que é fora da ordem, o que destoa, desorganiza. Mas cuidado, esse novo
sentido, essa nova rota merece um tratamento especial. Merece que logo seja esquecida,
abandonada, deixada de lado de modo a não ocupar espaços (des)educacionais. Seu valor
está ligado à energia, às sensações que produz nos momentos achados. Sua força não está
em trazer estabilidades, ou trocar de lugar com as verdades chegadas mais cedo. A
mudança provocada é da ordem dos perceptos e dos afectos, marcas essas que não se guiam
pela necessidade de explicação, pela formatação da razão.

32
Busco na (des)educação musical alimento para a criação artística. Deseducar meus
sentidos, meus ouvidos, meus olhos, minhas mãos para torná-los aptos (não aptos) a
conceber a obra. Como nos dizem Deleuze e Guattari (1992, p.216), “pintamos,
esculpimos, compomos, escrevemos com sensações. Pintamos, esculpimos, compomos,
escrevemos sensações”. Deseducar, para compor música com sensações, para compor
músicas sensações. Todavia, essa busca acontece sem a certeza de que o encontro se
realizará. Se existe a possibilidade de tratarmos algo como certo nesse processo, é a não
elaboração de um caminho. Aqui, todos os mapas são abandonados, e o guia para sua
realização é a matéria música em movimento, em um acontecimento que permite que o
conteúdo possa assumir contornos, estilos, tonalidades não orientados pelos participantes,
mas sim tangenciados, tocados, interferidos, criando condições para que no auge do
momento (des)educacional, a matéria e o conteúdo música tangenciem, toquem, interfiram
nos (des)educandos.
Um pianista senta-se ao
piano. Ele iniciará a
execução em sol menor,
opus 22, de Robert
Schumann. A sonata terá seu
repouso interrompido nesse
momento em que o pianista
se precipita sobre ela e faz
se instalar essa notação fixa
a sua animação,
devolvendo-lhe vida. É desse
lugar que examinas sua
formas na busca de vias
pelas quais ele poderá
operar a vista musical para
operar a desestratificação
de um conjunto. Busca nas
formas que se oferecem a ele

33
o melhor ponto de vista
musical para exprimir o
campo de forças que a
composição conservou. A
sonata faz o mesmo como
ele, guardando para si sua
memória em segredo,
colocando-se como pergunta
através dessas formas que
aparecem, brilham,
consolidam, corroem,
despedaçam, desaparecem:
e se fosse desta vez assim?
Nesse instante e nessa busca
mútua essa sonata reinventa
o pianista. Essa
cumplicidade entre obra e
intérprete, chamaremos de
performance. (Lima, 2007.)
Silenciando o silêncio
O silêncio é o principal ator daquela cena. Seus coadjuvantes eram, por ordem de
importância, as crianças que sentadas ouviam com atenção as palavras ali proferidas. As
professoras ao lado de seus alunos, garantindo a ordem e a manutenção do silêncio exigido
para o momento. As coordenadoras e os dirigentes administrativos, sentados em lugar de
destaque, completavam a platéia. De forma muito curiosa, a voz que proferia o discurso não
representava uma ameaça para o silêncio que ali se instalava. Este vinha de outros lugares.
A menor possibilidade de que esse cenário pudesse ser interrompido era corrigida pela ação
das professoras, estas detentoras de estratégias e de malandragens, capazes de fazer com
que seus alunos e alunas respeitassem o orador. Como destaque para as palavras proferidas,
a voz imprimia uma ênfase especial para algumas frases, fazendo com que a textura
empregada garantisse a relevância da informação dada: “construir uma sociedade mais bem

34
instruída, um homem bem dotado, capaz de construir uma sociedade diferente, construindo
a nossa reforma social pela educação” (Schérer, 2009, p.26). Ao pronunciar frases como
essas, os gestos dos lábios e dos olhos das professoras expressavam a sua alegria e
concordância com o teor das idéias apresentadas. A escola era o lugar para que as crianças
pudessem “superar esse estágio, essa etapa a qual deve ser reprimida e superada para que
possam ir em direção a outros estágios, etapas, condições, tais como puberdade, a
adolescência, a adultez ou a velhice” (Corazza, 2002, p 32). Educação é o caminho, não só
de uma sociedade que precisa de salvação, como também o caminho para que as crianças
deixem para trás seu estado infantil e alcancem um lugar iluminado pela identidade, pela
consciência e pelo exercício de uma cidadania plena, criativa e responsável. Os modos para
que esses objetivos possam ser alcançados passam pelo exercício de controle do corpo.
Controlar seus movimentos, saber a hora de falar, nunca interromper um adulto. Um bom
exemplo de criança educada é aquela que sabe que não pode se meter em assuntos de ‘gente
grande’. Ter em mente a hora certa de ir ao banheiro, de lanchar, de realizar as tarefas,
olhar para frente durante a aula, não conversar com os colegas e nunca interromper o
professor enquanto ele fala. Um bom momento para verificar se todos esses ensinamentos
estão sendo incorporados pelas crianças é a hora do discurso do professor representante da
Secretaria de Educação, que visita a escola para entregar materiais de alto custo financeiro
e agradecer a atenção de todos ressaltando todas as metas, os feitos alcançados, os objetivos
futuros, além de falar da importância daquela escola para a comunidade local. Todas as
crianças têm seus corpos voltados para frente e as suas vozes caladas. Sem chamar a
atenção das professoras, um menino passa a percorrer com seus olhos as paredes do salão
onde acontece a solenidade. Com a visão começa uma viagem por todos os pontos das
paredes, vasculhando como se estivesse procurando algo. A sua busca não era orientada
pelo encontro com algo definido. Tendo como cenário o silêncio imposto pela situação, seu
olhar inicia uma viagem minuciosa por detalhes das paredes antes não percebidos por ele.
Manchas, buracos, nuances de cor, enfeites e até mesmo fotografias passaram a compor,
para aqueles olhos, um novo lugar. Sem movimentar seu pescoço, eram os olhos que
desprendiam toda a energia na busca incessante por novidades. Até que sua visão se depara
com um quadro. Surpresa, pois nunca tinha notado aquela pintura na escola. Ao dedicar

35
para o quadro um olhar mais atento seus olhos começam a fabular sobre o que enxergam. É
neste momento que sua visão o faz ouvir o que o quadro deseja lhe contar.

“mas eu também escuto os pintores,


Como uma música de fio, como
O pestanejo tetanizante de um fio sob
A língua ou nos mamilos de
Minha sexualidade enterrada
Escuto o tantã
De pedra das ruínas de Picasso [...]Escuto Chacal[...]
Escuto/escutarei sempre
(Derrida e Bergstein, 2009)

Olhando para o quadro são seus ouvidos que ajudam a repintar aquela obra. E o
silêncio, antes o tom principal do ambiente, gradativamente passa a ser substituído por
outros sons. O surgimento dessas novas presenças sonoras não acontecia de forma
previamente hierarquizada. Era a sua percepção que ordenava a intensidade dos sons a
serem ouvidos. A noite se apresenta como uma sinfonia de pequenos sons que aglutinados
compõem um território de energias físicas e espirituais. Logo essa sinfonia ganha a
companhia de ruídos mais intensos, estes voltados para a formação de uma grande roda, na
qual todos terão o direito de se expressar. Seus olhos ouvem a primeira nota, um toque forte
e seco. Logo após, outros toques são percebidos e as mãos negras passam a tocar suas
alegrias e tristezas. Tendo como teto o céu cheio de estrelas uma poderosa polirritmia toma
conta de todo o campo de visão do menino, silenciando o silêncio que há poucos instantes
dominava seu corpo. Seus olhos encantados ouvem com a maior atenção todos os detalhes
daquela música rica em energia, em multiplicidade de vozes, em detalhes das frases
musicais. Percebia com clareza as frases rítmicas, as contraposições entre graves e agudos,
as misturas de texturas provocadas por peles mais ou menos esticadas ou ainda pela troca
das posições das mãos impostas pelos músicos aos seus instrumentos. Ouve, também, os
corpos que dançam ao som dos tambores percebendo toda a vontade de vida de um povo
que escolheu a música como forma de ser um povo.
O menino é interrompido pela professora, que o chama para voltar para a aula, pois
a cerimônia tinha terminado.

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Quando a professora retoma as atividades pedagógicas e distribui as tarefas, o
menino sente, mais uma vez, o silêncio se aproximando. Para se defender dessa
imobilização se coloca em movimento na busca de alimento para seus olhos, e com seus
sentidos, silencia o silêncio através da música da sua visão.
Manifesto da (des)educação musical
1 – Ao modo de Roland Barthes
• Preparação da obra musical: o fazer musical se refere à captura das sonoridades que
compõem o texto da vida, portanto, abandone aquela velha história que flauta doce
é um ótimo instrumento para musicalizar crianças.
2 – Ao modo de Orie Dnap
• Sempre que alguém disser que não tem talento para tocar percussão lembre-se que a
pele do pandeiro é feita do mesmo material que certos casacos de couro.
• Preste muita atenção quando estiver tocando percussão ao lado de instrumentos
melódicos. Sempre que eles pedirem para que toque mais fraco para não abafar a
melodia faça exatamente o contrário, toque com toda a força que possuíres nas
mãos.
3 – Ao modo de Paul Valéry
• É preciso ser leve como um pássaro (não como uma pluma); portanto, quando sua
professora de música quiser didatizar os seus encontros, voe da sala de aula.
4 – Ao modo de Sandra Mara Corazza
• Música é o desregramento do pensamento, do escapamento da morada do
embrutecimento, do delírio, da loucura e do combate contra o que esta aí.
5 – Ao modo de Hermeto Pascoal
• Música é o aprofundamento das possibilidades melódicas e rítmicas tendo a
criatividade como elemento propulsor de combinações entre notas, texturas,
timbres, ritmos, estilos e formas, entre estes, todos os conhecidos e reconhecidos
pela humanidade como patrimônios culturais, além das invenções que estão por
acontecer. No caso de achar tudo isso muito complicado, coloque água dentro de
uma chaleira e sopre pelo bico da mesma.
6 – Ao modo de José Miguel Wisnik

37
• Música é som percebido como produção de sentidos, é o ruído deslocado de sua
natureza, é ordenação e regramento. É quase como colocar as crianças em fila para
na hora do lanche.
7 – Ao modo de Cristiano Bedin
• Preste atenção: imaginou passar a vida toda sendo um sol maior?
8 – Ao modo de Orie Dnap II
• Ritmo é a arte de brincar com o tempo.
9 – Ao modo de John Cage
• Não se engane, o silêncio não é a sinfonia da ausência.
10 – Ao modo de Gilles Deleuze
• Mais vale um bom pequeno ritornelo do que voltas e voltas ao redor do mesmo.
11 – Ao modo de Nietzsche
• Diante de toda a verborragia corrente, de todo blábláblá cotidiano, é preferível que
se fique onze anos a tocar um piano mudo.
12 – Ao modo de Eduardo Pacheco
• A verdade é uma mentira bem contada, por isso não procure certezas com seus
instrumentos, só faça música.

Referências bibliográficas
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Paulo, 2005. (Trad. Leyla Perrone-Moisés.)
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COSTA, Luciano Bedin da. A vida em escritura: biografemas e o problema de um
biografia. Proposta de Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós Graduação
em Educação. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008, 255 p.

38
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Fundação Editora da UNESP (FEU), São Paulo; Imprensa Oficial do Estado S. A.
IMESP, São Paulo, 1998. (Trad. Geraldo Gerson de Souza.)
GILLES, Deleuze e FÉLIX Guattari. O que é a filosofia? São Paulo. Editora 34, 1992.
(Trad. Bento Prado Junior e Alberto Alonso Muñoz.)
GILLES, Deleuze e FÉLIX Guattari. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. São
Paulo. Editora 34, 1997. (Trad. Suely Rolnik.)
KASTRUP, Virginia. “Aprendizagem, arte e invenção”. In: LINS, Daniel (Org.). Nietzsche
e Deleuze: pensamento nômade. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE:
Secretaria da Cultura e do Desporto do Estado, 2001, p. p.207- 222.
LIMA, André Pietsche. Ritmologia. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós
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PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Campinas: Ed. da Unicamp, 1994.
SCHÉRER, René. Charles Fourier para além das crianças. Belo Horizonte. Autêntica
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WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo.
Companhia das Letras, 1989.

39
FÁBULA DA EXISTÊNCIA SEGUIDA DE NOTAS SOBRE A FABULAÇÃO

Ester Maria Dreher Heuser

Em um remoto rincão do universo cintilante, havia uma vez um mundo. Mundo


mergulhado no pessimismo e na dor diante da crueldade da existência – à deriva dos
poderes titânicos da natureza e da Moira a reinar, impiedosa e fatal, sobre todos os homens:
miseráveis filhos do acaso e do tormento. Eis que em um ponto qualquer deste mundo
habitavam homens de estirpe efêmera, que, seduzidos, a continuar vivendo e suportando a
existência, tornaram a vida possível e desejável. Então, deram ao mundo uma
superabundância de vida: criaram a montanha mágica do Olimpo, habitada por deuses da
alegria e da beleza, resplandecentes filhos do sonho que exaltavam a vida. Como rosas a
desabrocharem da moita espinhosa, os deuses legitimaram a vida humana e, sob o brilho do
Sol, a existência tornou-se digna e desejada, a tal ponto que a verdadeira dor, o mal
supremo, era separar-se dela: um dia ter que morrer.
Mascarar os terrores e atrocidades da existência, criar um antídoto para superar a
negatividade da vida e dizer sim a ela, sem querer escapar de seus horrores e belezas em nome
de um além-mundo, eis o que fora conquistado com a criação do Olimpo. Nos deuses
olímpicos, não há elevação moral, santidade, incorpórea espiritualização, misericordiosos
olhares de amor. Neles, nada há que lembre ascese, espiritualidade e dever, só opulenta e
triunfante existência, exaltação da vida inteiramente imanente. O mundo perfeito dos deuses
não atua como imperativo ou censura, mas glorifica as criaturas que o criaram; religião da
beleza como floração que diviniza o que existe. Religião e arte são idênticas, produzidas pelo
mesmo instinto: instinto de vida.
Aparência? Ilusão? Falsidade? Sonho?
Sim! Ao divinizar o mundo, os gregos tornaram-no belo. Mundo dirigido por Apolo
oniromante, o deus da bela aparência, da justa medida e da moderação. O resplendente. A
divindade da luz, do brilho, da ilusão. O deus do sonho e dos poderes configuradores. Apolo,
o pai do mundo olímpico, faz da bela aparência um véu a encobrir a verdade do mundo.
Verdade que deve permanecer velada para que, pela beleza, enquanto intensificação das
forças da vida, aumente o prazer de existir. Nesse mundo onírico, a aparência faz-se

40
necessária para que a dor seja libertada. “Conhece-te a ti mesmo” e “nada em demasia” são
lemas apolíneos, regidos pelo princípio da individuação e da consciência de si. Lemas que
possibilitam que o ético e o estético se complementem e logrem a construção de um universo
no qual o indivíduo é o métron, a única lei. A necessidade da beleza e o princípio da
individuação são valores condutores da civilização apolínea – do Estado, da família, da polis
–, na qual a estética é hegemônica em relação à moral. Uma vida digna de ser vivida é, antes
de tudo, uma vida a ser contemplada, perfeita para ser cantada pelos poetas, merecedora de
elogios, de honras, alçada para a glória. Homero, o sublime poeta apolíneo, proporciona o
arquétipo da vida guerreira orientada pela beleza, digna de ser contemplada e comemorada na
Ilíada e na Odisséia, obras que fazem parte da educação do jovem grego para que este passe a
almejar uma vida bela.
***
Eis que uma estranha força telúrica, surgida das entranhas de um mundo subterrâneo,
invade o universo grego apolíneo da individuação na ilusão e na beleza. Por todos os
caminhos da terra e do mar, a força do devir na natureza penetra, tomada de êxtase e
entusiasmo. Diante da serenidade olímpica aproxima-se um carro coberto de flores e
grinaldas, guiado por um deus, de tirso em punho, que vem do estrangeiro: Dionísio, o
desmesurado, filho da Terra-Mãe, fecundada pelo raio-celeste de Zeus. Seguido de suas
Bacantes – as possuídas – sacerdotisas e acólitas, Dionísio faz sua entrada triunfal na polis.
Sob o seu jugo avançam o tigre e a pantera. Espontaneamente, a terra oferece suas dádivas e,
de forma pacífica, chegam as feras da montanha e do deserto. Por intermédio do deus imortal,
selam-se os laços entre as pessoas e entre a natureza e seu filho perdido, o homem.
Momento de grande perigo e medo. O “véu de Maia”, tecido por Apolo com delicados
fios de aparência e ilusão, já não é suficiente para proteger as harmoniosas formas da Hélade.
Ele não consegue mais encobrir a realidade e dissimular a verdade imanente à vida. Beleza e
ilusão não mais bastam para orientar o homem grego. Sua vida não pode mais ser
completamente absorvida pela beleza. Torna-se impossível pairar além do eterno mar de
devir, pois o homem é o mais frágil filho da Terra. Ele não pode mais negar e esquecer o
outro instinto estético da natureza: o dionisíaco. Durante algum tempo, os gregos permanecem
inteiramente serenos, seguros e protegidos da diversidade e do caos pela figura de Apolo, com
a firmeza de seu olhar solar e de seu escudo com a cabeça da Medusa. Porém, quando das

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raízes mais profundas do helenismo irrompem impulsos febris – força de criação e crueldade
desenfreada –, a ação do deus délfico restringe-se a tirar das mãos de seu poderoso oponente
as armas destruidoras, mediante uma reconciliação concluída no devido tempo...
Os valores mais fundamentais da Grécia são então postos à prova: a experiência
dionisíaca rompe com o princípio da individuação. Pela intensificação do dionisíaco, em
estado de embriaguez, o subjetivo se esvanece em completo auto-esquecimento, desintegração
do eu, da consciência e da individualidade que outrora foram construídas como proteção
contra a verdade da vida como ela é. Pela experiência dionisíaca o homem se reconcilia com a
natureza e com os outros homens em uma harmonia universal. O sonho dá lugar ao êxtase, à
embriaguez e à experiência orgiástica. Equilíbrio, limites, personalidade, ordem, consciência e
razão absolutas tornam-se impossíveis depois da chegada do deus da metamórphosis. A
regressão às forças caóticas e primordiais da vida nunca mais poderá ser negada. Dionísio
penetra em todas as terras, lugares, povos e religiões, deslumbra e atrai tanto camponeses
quanto as elites intelectuais, políticos e contemplativos, ascetas e os que se entregam a orgias
libidinosas. A metamórphosis é a escada que permite ao homem penetrar no mundo dos
deuses. “Agora o escravo é homem livre, agora se rompem todas as rígidas e hostis
delimitações que a necessidade, a arbitrariedade ou a ‘moda impudente’ estabeleceram entre
os homens”. Harmonia universal. “Cantando e dançando, manifesta-se o homem como
membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de,
dançando, sair voando pelos ares (...), do interior do homem também soa algo de sobrenatural:
ele se sente como um deus” (Nietzsche, 1992, §1, p.31).
***
Metamórphosis. Com a invasão de Dionísio, a Grécia não pode mais ser a mesma.
Dionísio também não. Na Ática, a potência dionisíaca se manifesta de modo diferente de
todas as outras terras, ele não é representado pela religião bruta, selvagem, natural,
destruidora. A repugnante beberagem mágica de volúpia e crueldade babilônica demonstrara-
se impotente diante do escudo de Apolo. O dionisíaco aparece para o mundo greco-homérico
como algo de novo e inaudito, por meio de uma estética que excita espantos e pavores: a
música composta de cântico e mímica, com uma comovedora violência do som, torrente
unitária da melodia e o mundo absolutamente incomparável da harmonia – o ditirambo
dionisíaco.

42
Pela segunda vez, a própria vida salva o grego utilizando a arte como instrumento.
“Ele é salvo pela arte, e através da arte salva-se nele – a vida” (Nietzsche, 1992, §7, p.55).
Com a música dionisíaca “o homem é incitado à máxima intensificação de todas as suas
capacidades simbólicas; algo jamais experimentado empenha-se em exteriorizar-se” (ib., §2,
p.35). O véu de ilusão é rasgado. Por entre os fios da fina trama de Apolo, pulsa o dionisíaco
e seu incondicional sim à natureza. Ainda faz sentido crer na vida, porém, “agora a essência
da natureza deve expressar-se por via simbólica (...); todo o simbolismo corporal (...) o
conjunto inteiro, todos os gestos bailantes dos membros em movimentos rítmicos. Então
crescem as outras forças simbólicas, as da música, em súbita impetuosidade, na rítmica, na
dinâmica e na harmonia” (ib., p.35).
Reconciliação entre Apolo e Dionísio. Apogeu da civilização grega. “Apolo não podia
viver sem Dionísio! O ‘titânico’ e o ‘bárbaro’ eram, no fim das contas, precisamente uma
necessidade tal como o apolíneo!” (ib., § 4, p.41). No pacto de paz entre os deuses
adversários, o elemento dionisíaco – crueldade da natureza –, transformado em fenômeno
estético, de veneno passa a remédio, pois Apolo lhe retira as armas destruidoras. O remédio
artístico, apolíneo-dionisíaco chama-se tragédia, “suma de todas as potências curativas
profiláticas, como a mediadora imperante entre as qualidades mais fortes e as mais fatídicas
do povo” (ib., § 21, p.124). Na tragédia, medida e embriaguez estão juntas e acontecem
simultaneamente, como se Apolo servisse o vinho trágico em sonho. A arte trágica é
experiência de embriaguez – sentimento de elevação da força e de plenitude – sem perda de
lucidez: a embriaguez apolínea é excitação do olhar, a dionisíaca é excitação e elevação do
conjunto de afetos.
Unidos pela mesma égide, poesia, mito e música estão enlaçados na tragédia, arte na
qual o destino do herói mítico é sofrer, assim como sofreu Dionísio quando fora despedaçado.
O herói é sempre máscara apolínea de Dionísio que aparece numa pluralidade de
configurações. Com a tragédia, torna-se impossível o véu apolíneo se impor diante do homem
grego novamente. A verdade e a natureza, em sua máxima força, inocência do devir é o que
Dionísio quer: experiência trágica do mundo, não mais o mascaramento da dor, mas a
expressão de uma resistência ao próprio sofrimento. Por meio da tragédia, através da boca dos
sátiros pela qual fala a sabedoria dionisíaca, o nobre espectador heleno, excitado pelo coro
ditirâmbico até o grau dionisíaco, aceita o sofrimento como integrante da existência e diz sim

43
à vida toda, mesmo em seus lances mais duros e estranhos. Eis a vontade de vida. Vida
indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria.
***
Silenciosamente, forças opostas a Dionísio, vindas da Ágora, invadem o solitário vale
montanhoso do teatro grego e lutam contra o deus. No palco, o herói, ferido para sempre, não
passa mais de um arremedo de máscaras e paixões. O coro, a mais alta expressão da natureza
que em seu entusiasmo proferia sentenças de oráculo e sabedoria, entra agora em cena apenas
para pontuar os intervalos da peça. A tragédia é degenerada. Do thêatron, a massa de
espectadores desce até o palco, o espelho onde antes eram refletidos apenas os traços grandes
e audazes do herói mítico, com os quais o mito chegava ao seu mais profundo conteúdo.
Agora o povo vê a si mesmo, sua vida e atividades diárias, em torno das quais está em
condições de opinar. O cotidiano é representado no palco. O populacho prepondera. A massa
filosofa! Os instintos deixam de ser a força afirmativa-criativa e se arremetem uns contra os
outros. A civilização grega degenera. Tempo de decadência. Nunca mais se viveu tão
prodigamente, tão imoderadamente...
Que forças são essas capazes de afugentar do palco trágico o deus Dionísio e, com ele,
o eterno prazer do vir a ser? Quem separou para sempre Apolo de Dionísio, ao excisar da
tragédia o elemento originário e onipotente, trazendo ao palco uma visão do mundo não-
dionisíaca? Não, não foi Apolo, pois sabia que não poderia mais viver sem Dionísio. Ele sabia
que a fonte e essência primordial da tragédia grega eram a expressão dos dois impulsos
artísticos, entremeados entre si, o apolíneo e o dionisíaco! Nenhum outro deus teria
provocado tal rompimento! Quem então pôs abaixo a arte da tragédia grega e, com ela, o sim
incondicional à vida toda?
Forças demoníacas surgidas da mais baixa camada do povo, propagadas pelas ruelas
atenienses que se encontravam junto aos mercadores em plena praça pública; forças que se
alargaram sobre a posteridade e em todo o porvir, qual uma sombra no sol do poente que
lança suas réstias de energia sobre homens de instinto cansado, melancólicos, enfastiados de
vida. Forças da razão, concentradas em um horrível e monstruoso demônio recém nascido,
chamado Sócrates, autodenominado servidor de Apolo. Demônio que subordinou a beleza à
razão e desprezou os instintos, considerando como verdadeiros apenas os conhecimentos
conscientes. Por sua causa, a obra de arte da tragédia grega foi abaixo! Sócrates, o adversário

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de Dionísio e, sem dar-se conta, também inimigo de Apolo. Racionalidade contra instinto. A
racionalidade a todo preço como força perigosa, solapadora da vida!
Sócrates, homem caricatural, aliciador ateniense, instrumento da dissolução grega, o
qual, por estimar apenas aquilo que compreende, torna-se adversário da arte trágica, criada
por poetas em estado inconsciente, quando nenhuma inteligência residia mais neles. Em cada
traço da tragédia vê algo de incomensurável, enigmático, incognoscível, portanto, irracional.
Contra ela, postula o seu princípio estético: “tudo deve ser consciente para ser belo”
(Nietzsche, 1992, §12, p.83), e suas máximas morais: Virtude é saber. Só se faz o mal por
ignorância, e o virtuoso é o mais feliz. A partir daí, entre virtude e saber, crença e moral, tem
de haver, obrigatoriamente, uma ligação. Ao invés de manifestação e configuração de estados
dionisíacos – essência da tragédia grega –, o mundo cênico-socrático é composto por um
herói que defende suas ações por meio de razão e contra-razão, e só consegue respirar na fria
claridade e consciência.
Contra a falta de compreensão e do poder da ilusão, Sócrates julga que deve corrigir a
existência e transforma-se em precursor de uma cultura, arte e moral totalmente distintas.
Equipara, contra todos os instintos dos helenos mais antigos, Razão = Virtude = Felicidade.
Sócrates nega o ser grego. Passa sua vida rindo da canhestra incapacidade dos nobres
atenienses, homens de instinto – como todos os homens nobres – que jamais podiam informar
satisfatoriamente sobre os motivos do seu agir, pois, para eles pouco valor tem aquilo que
precisa ser inicialmente provado. Isso tudo em nome de uma divina vocação: investigar a
questão do Homem; conferir aos valores seu caráter absoluto, superior, isto é, dizer o que são
em si. Em suma, ensinar os homens a conhecer e a cuidar de si mesmos. Eis a tarefa suprema
da qual Sócrates considera ter sido investido pela divindade.
Com essa investida, Sócrates torna-se o novo e jamais visto ideal da nobre mocidade
grega. Isto se dá porque a degenerescência dos instintos não é nele uma exceção. Ela já se
preparava em silêncio por toda a parte; os instintos estavam em anarquia e fazendo-se tiranos
por toda a Ática. A velha Atenas caminha para o fim e vê em Sócrates um anti-tirano, pois ele
fora capaz de assenhorear-se de todos os seus desejos e impulsos. Era um médico e salvador,
detentor do último remédio contra a decadência: a racionalidade. De Sócrates se faz modelo a
ser imitado: “estabelecer permanentemente uma luz diurna contra os apetites obscuros – a luz
diurna da razão. É preciso ser prudente, claro, luminoso a qualquer preço: toda e qualquer

45
concessão aos instintos, ao inconsciente conduz para baixo...” (Nietzsche, 2000, “O problema
de Sócrates”, §10, p.22). Ele, agora, é a divindade-guia.
Razão contra instinto: uma outra doença. Como a crença na racionalidade a qualquer
preço não se concretiza, de forma nenhuma, há o retorno à virtude, à saúde, à felicidade de
outrora, à ascendência da vida. Ao contrário, ao combater os instintos, a vida decai e se
formula uma nova expressão da décadence: não à vida em sua máxima potência! Não aos
instintos fundamentais! Em nome de quê? De uma ilusão metafísica, de uma crença na
verdade. Verdade como valor superior à própria vida. Em nome de um suposto mundo
verdadeiro, que pode ser acessado, conscientemente, na essência, no fundo das coisas, através
do conhecimento.
A Sócrates interessa uma única deusa, por quem fora capaz de morrer, uma nova
divindade que, até então, não era venerada na cidade: a Verdade, deusa da ciência, que deve
ser desnudada a partir da inabalável fé de que “o pensar, pelo fio condutor da causalidade,
atinge até os abismos mais profundos do ser e que o pensar está em condições, não só de
conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo” (Nietzsche, 1992, §15, p.93). Para esse décadent, a
finalidade da ciência é fazer a existência aparecer como compreensível e, portanto, como
justificada, assim como a ocupação autenticamente humana é penetrar nas razões e separar o
verdadeiro conhecimento da aparência e do erro, que são o mal em si mesmo. Depois de
Sócrates, a avidez de saber e de conhecer se dissipa em todo o mundo civilizado, e a ciência
se torna universalizada, estabelecendo leis para todo o sistema solar; mundo cindido em
“verdadeiro” e “aparente”, sintoma de vida que decai, vida transformada em doença.
Sonho, embriaguez, arte, sabedoria mito-poética, culto ao corpo e todas as suas
potencialidades foram erradicadas. O herói trágico abandona a cena e leva consigo o mito.
Dionísio, marginal, refugia-se na religião, degenera-se em cultos e seitas secretas. Apolo,
após desfeito o mágico enlace que uma vez unira duas divindades antagônicas, sente-se
derrotado. O influxo socrático destruíra o que até então fora força vital helênica. Separados os
dois deuses, o espírito da música não mais fora ouvido. Em seu lugar, apenas burburinhos
dialéticos, diálogos que tratam de julgar a vida em nome de valores a ela superiores. Triunfo
do juízo de uma única Deusa.
***

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Teria a vitalidade sido perdida para sempre? Estaria o homem condenado à miséria
universal? Danado a dever infinitamente para a Verdade que transcende a própria vida?
Destinado a nunca mais pressentir a profundeza dionisíaca da música? Nunca mais a força e
a importância da ilusão dos mitos agiriam sobre a pobre existência humana? Estaria
condenado a, tal como Midas, transformar toda fruição musical em retórica intelectual de
palavras e sons? Nenhuma vez mais provar dos estimulantes selecionados produzidos pela
vida? O alimento que brotava do seio materno mítico para sempre teria secado? Estaria o
homem sentenciado a eternamente vagar por áridos caminhos, sem poder ver brotar dos
sombrios abismos do sofrimento a flor da cultura apolínea?
O voraz desejo de conhecer jamais será saciado, conceitos, abstrações e
organizações infinitas nunca satisfarão homem algum enquanto imperar o exclusivo apreço
pela realidade, pela ordem, pela verdade e abstração da educação, dos costumes, dos
corpos, do direito, do Estado... Perpetuamente faminto, o homem ficará a escavar e revolver
antigas e remotas supostas raízes enquanto não reconhecer que o conhecimento nada mais é
que um dos artifícios da vida, e que esta é feita também pelos desvios do engano, pelos
disfarces do incerto e que, por isso mesmo, é impossível escapar de estar envolto por
simulacros, equívocos e ilusões. Quando o homem souber amar e afirmar aquilo que
permanece oculto e misterioso, sob qualquer pretenso desvelamento da verdade, sentirá,
outra vez, o eterno prazer da existência e dirá sim à poderosa vitalidade não-orgânica que
atravessa todos os corpos e enriquece tudo aquilo de que se apossa. Vitalidade que afirma o
combate entre forças telúricas capazes de fazer advirem diversos modos de existência nos
quais arte, ciência e filosofia poderão crescer indissoluvelmente unidas e dizer sim à
existência em sua inteireza: a suas belezas e a seus horrores – a amarga sabedoria do
trágico. Modos de existência guiados pela sensibilidade trágica que aceita com sabedoria o
que é e recusa todo o dever ser, porque a vida é sentida como algo sem objetivo exterior a
si mesma. Modos de existência que assinalam a intensidade trágica de cada instante, de
cada acontecimento em sua singularidade.
Notas sobre a Fabulação
Em Les deux sources de la morale et de la religion, Henri Bergson ([1932] 2001)
desenvolve o conceito de fabulação e pensa-o como um elemento inato ao homem, uma

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necessidade imposta pela natureza. As notas que seguem apresentam uma leitura de sua
perspectiva:
– Desde o surgimento das sociedades humanas estão implicadas compreensões inteligentes
de suas necessidades e uma organização racional das atividades, mas também estão
contidos, em sua formação, fatores irracionais, os quais são os elementos de conservação de
sua existência enquanto sociedade. Não há sociedade sem religião, sem algum tipo de
mistificação, de superstições, de representações coletivas, mais ou menos irracionais e
absurdas, inscritas nas instituições, na linguagem e nos costumes. Exemplos evidentes de
tais representações infundadas racionalmente são a mitologia e a tragédia grega
apresentadas na fábula precedente; outro exemplo de algo arraigado tanto nas sociedades
primitivas quanto nas contemporâneas que lhes dá subsistência e que está fundado em um
fator irracional é a obrigação. Cada obrigação particular é convencional e pode beirar o
absurdo – seja “cumprir com as obrigações morais”, “sempre agir justamente”, ou,
simplesmente, “ter que estudar”, “ter que trabalhar”, “ter que pagar dívidas”. O que há de
fundado é o todo da obrigação, ou seja, a obrigação de ter obrigação, a sua regularidade –
nada mais que a analogia com a ordem inflexível dos fenômenos da vida. Então, a
obrigação é por nós representada como um elo entre os homens, mas também o que liga o
homem individual a si mesmo, trata-se, pois, de uma necessidade determinada pela
natureza a fim de manter a coesão social, ou, em outras palavras, a obrigação é um
fundamento proveniente da natureza, imposto sobre a razão para que uma sociedade
humana possa subsistir (cf. Bergson, 2001, especialmente o capítulo I: A obrigação moral).
– A inteligência e a sociabilidade são atributos essenciais da existência humana, ambas
estão inscritas na evolução geral da vida, porque, em algum momento, ela os exigiu,
precisou elaborar uma resposta sustentável ao problema que comportava a sua conjunção.
Inteligência e sociabilidade aparecem como duas atividades divergentes e complementares.
O social está radicado no fundo do vital, presentificado nas sociedades e nos organismos
individuais é, portanto, um instinto (cf. Bergson, 2001, p. 62ss).
– Com a aparição da inteligência no homem, a vida inventa uma série de faculdades que
rompem com o instinto social, tais como a iniciativa, a independência e a liberdade. No
entanto, com o uso dessas faculdades corre-se o risco de prejudicar a disciplina social, pois,
uma vez enriquecida com todas elas, a vida inteligente tende a romper com os instintos

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gregários, e a ocupar-se, pela reflexão, com o desenvolvimento das potencialidades
individuais. Surge, assim, o egoísmo, ausente nas demais espécies. Para proteger a barreira
que fora aberta pelo egoísmo e que agora ameaça a segurança do social, é preciso um
guardião, uma reação ao poder dissolvente da inteligência: a natureza encontra na religião a
sua primeira defesa contra a inteligência. Por meio dela, o que é habitual aos membros do
grupo passa a ter um caráter religioso e, em certa medida, o elo entre os indivíduos se
restabelece e o social pode ser conservado (cf. Bergson, 2001, p. 66).
– Além de oferecer perigos à sociabilidade, à vida de um povo e de uma cultura, a atividade
da inteligência pode ser arriscada para o próprio indivíduo. Ela pode implicar um excesso
de lucidez sobre o homem quando, por meio da faculdade de observar, toma consciência de
que está sujeito a perigos e doenças e que irá morrer, assim, não poderá exercer o seu poder
de pensar sem representar para si um futuro incerto, que lhe desperta medo. É preciso,
então, uma resposta que ponha freios à atividade da inteligência, uma vez que ela pode pôr
a vida em xeque, não só pelo impulso individualista que põe em risco a coesão social, mas
também porque, devido à excessiva consciência da sua finitude, da incerteza e fragilidade
dos seus empreendimentos, da acumulação de conhecimentos que ultrapassam qualquer
necessidade vital, produz sobre o homem um certo amedrontamento e dificulta a ação do
indivíduo (cf. Bergson, 2001, p. 88, 109ss).
– Como resposta a tais perigos, a natureza teria desenvolvido um contraponto ao poder
dissolvente e desencorajante da inteligência. Por uma necessidade vital, como uma espécie
de instinto, ou melhor, um resíduo de instinto que perdura em torno da inteligência – um
“instinto virtual” –, a natureza exigiu do espírito um outro gênero de atividade e criou no
homem uma função compensatória, uma nova faculdade: a função fabuladora ou a
faculdade de fabulação, que, sem ser um instinto, joga nas sociedades humanas um papel
simétrico ao instinto nas sociedades animais (cf. Bergson, 2001, p. 111).
– Função criadora de representações fictícias que, contrapostas à representação intelectual
do real, tendem a equilibrar a relação de forças entre o social e o individual. Bergson indica
que, em princípio, tratam-se de representações religiosas, tais como os deuses da cidade, o
culto aos ancestrais, crenças nos espíritos, superstições de todo gênero, as quais, por sua
intensidade, levarão os indivíduos a pensar em outra coisa que não em si mesmos. Essas
representações são um conjunto de ficções que constitui uma espécie de inteligência social,

49
complementar das inteligências individuais. Tudo o que é habitual aos membros de um
grupo e o que a sociedade espera dos indivíduos é alcançado pela mediação do fabuloso,
através da imposição de costumes e leis religiosas. Posteriormente, a faculdade fabuladora
passa a inventar, a partir da religião, a literatura e o teatro. Através dela, as fantasias do
artista, do poeta e do dramaturgo se atualizam quando apresentam as fisionomias, as
características e as histórias dos deuses; quando narram suas aventuras e intervenções nos
assuntos humanos. No entanto, a fabulação segue tendo a mesma função enquanto uma
“faculdade de alucinação voluntária” (cf. Bergson, 2001, p. 104).
– Proteção individual e social: a função fabuladora aparece, também, como uma reação de
defesa da vida individual, a própria condição da consolidação do social, uma vez que
indivíduo e sociedade se implicam reciprocamente. A neutralização da hegemonia da
inteligência serve de mecanismo de segurança em situações nas quais o excesso de lucidez
ou de conhecimento acabaria por inundar a vida, pois, a ficção, quando é eficiente, pode ser
comparada a uma alucinação nascente: ela pode contrariar o julgamento e o raciocínio, que
são as faculdades propriamente intelectuais. Ora, o que fez a natureza? Apesar de ter criado
seres inteligentes, a fim de frear certos perigos da atividade intelectual, mas, sem
comprometer o futuro da inteligência, fez do homem também um animal imaginativo e
supersticioso, não por puro prazer, mas por necessidade (cf. Bergson, 2001, p. 59).
– Dentre outros conceitos, Bergson elabora o conceito de função fabuladora para responder
à questão: “como surgem a moral e a religião?”. Pensa, especialmente, o seu funcionamento
na religião estática e na sociedade fechada (a comunidade). Ao abordar o surgimento da
sociedade aberta (que abrange a humanidade inteira) e da religião dinâmica, identifica, mais
uma vez, o papel da função fabuladora: a religião dinâmica se propaga por imagens e
símbolos fornecidos pela faculdade de fabulação (cf. Bergson, 2001, p. 144).
– Assim como Bergson (1995, p.155) demonstra que a manifestação da faculdade de
fabulação está presente ainda hoje nas sociedades modernas, Antônio Cândido (1995,
p.155) defende em, O direito à literatura, a necessidade da fabulação, que ele trata como
sinônimo de literatura, no sentido mais amplo possível, pondo neste conceito qualquer
forma de criação de todos os níveis de uma sociedade e tipos de cultura, das manifestações
mais simples às mais complexas e difíceis produções das grandes civilizações. Para ele, a
literatura se apresenta “como a manifestação universal de todos os homens em todos os

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tempos. Não há povo e não há homem que possam viver sem ela, quer dizer, sem a
possibilidade de entrar em contato com algum tipo de fabulação (...) [portanto], ela resulta
em um fator indispensável de humanização”.
– Ao apresentarem a fabulação como algo inerente ao humano, como uma atividade
genérica, Bergson e Antônio Cândido vão ao encontro do que Nietzsche (1978, p.50)
afirma, em Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, acerca do que é constituinte do
humano e o que nele é motivo de admiração: o seu gênio criador, pois é a própria condição
de inventor de metáforas que demarca a singularidade do homem entre as espécies; em suas
palavras: “Esse impulso à formação de metáforas, esse impulso fundamental do homem,
não se pode deixar de levar em conta nem por um instante, porque com isso o homem
mesmo não seria levado em conta”.
– É para afirmar a necessidade da produção de fabulação também na educação, por
estudantes e professores, para que saiamos da condição de sujeitos conhecedores, alienados
de sua potência criativa e passemos a sujeitos criadores que utilizam sua força sobre si a
fim de afirmar o que há de admirável no homem, que convidamos nossos leitores a
transformarem-se em escrileitores e a produzirem as suas próprias fantasias de escritura.

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51
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52
435207: CINZAS DO EXCESSO
– A MELANCOLIA NA OBRA DE CAIO FERNANDO ABREU

Fábio Parise

Hipócrates & Freud: da medicina à psicanálise; de Saturno aos Srs. F’s


Melancolia tem sua origem na língua grega [(elas (= negro) e chole (= bile)].
Considerando-se a etimologia da palavra, o termo designa bile negra, a qual, desde os
primeiros estudos acerca deste tema, foi associada ao estado melancólico. Suas origens na
cultura ocidental nos remetem a, por um lado, visualizá-la como fonte de estudos de
médicos e, por outro, de filósofos, escritores e de artistas em geral.
Ao refletir sobre a história da melancolia, Starobinski (1962) divide-a, até o
século XIX, em três períodos: o da Antiguidade clássica, o da faixa temporal que se estende
da Idade Média até o século XVIII e o da época que abrange os séculos XVIII e XIX, dita
época moderna.
Em Walter Benjamin: tradução e melancolia, Lages (2007) afirma que na
Antiguidade, alguns filósofos, entre eles, Hipócrates, estudaram a melancolia enquanto uma
doença do corpo ou da mente. Tal pressuposto derivava de uma concepção na qual
acreditava-se que a melancolia era um efeito da alteração na produção da bile negra.
Seguindo essa prescrição, alguns pensadores, mais precisamente Hipócrates, associavam
essa doença a humores e temperamentos possíveis de ocorrerem aos melancólicos. Ou seja,
para cada humor corpóreo, haveria um correspondente temperamental: para o sangue, o
temperamento sanguíneo; para a linfa, fleumático; bile amarela, colérico; e para a bile
negra, o temperamento melancólico. Não obstante, cada humor destes está associado a uma
estação do ano e, também, à influência planetária, que, no caso da melancolia tem como seu
astro-mor Saturno, planeta associado a Cronos, regente dos humores melancólicos.
De acordo com Lages, Saturno, segundo a tradição antiga, destaca-se por sua
lentidão e vagarosidade. Estendendo-se um pouco mais sobre este apontamento, pode-se
pensar em Saturno enquanto sábado, o último dia da semana; o dia em que, conforme o
Gênesis – um dos primeiros livros que compõem a Bíblia judaico-cristã, Deus descansou,

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após a criação do mundo. Ou seja, situação que O colocou em estado de suspensão e
lassidão.
Acerca ainda do entendimento hipocrático sobre a noção melancólica, a
concepção da doença e os seus respectivos sintomas que esta produzirá dependerão da
direção tomada pela bile negra: se ela incide sobre o corpo provoca epilepsia, se incide na
inteligência, melancolia.
Lages mostra-nos que com o advento da época moderna, a melancolia passa a ser
compreendida como uma perturbação de origem mecânico-nervosa, por um lado, e moral
ou psíquica, por outro. Tal concepção leva-nos a conceber os contornos iniciais de uma
psiquiatria moderna, a qual, em seguida, tratará de contemplar o nascimento da psicanálise
freudiana. Dessa forma, a teoria humoral da melancolia passa a ser rechaçada; no entanto,
na prática, ainda se mantém, por justamente carecer de um maior conhecimento acerca de
sua causa e conseqüente tratamento.
Embora procurasse uma compreensão mais dinâmica sobre o estado melancólico
— se comparada à tradição médico-filosófica antiga — a psicanálise, mais precisamente
Freud, de uma forma geral, pautou seus estudos numa configuração rígida e pouco
maleável dessa afecção, restringindo suas análises a observações clínicas.
No formato de apontamentos (foram cinco os que de fato abordavam a questão
melancólica), na base de correspondências, o austríaco foi compondo sua teoria acerca da
melancolia.
De início os rabiscos. Pequenas composições literárias sobre melancolia. Traços
contundentes sobre o cinza (faço uso aqui deste termo mais como uma ambiência, uma
atmosfera do que propriamente uma cor ou uma estética; penso o cinza enquanto sinônimo
de melancolia, por acreditar que tal termo carrega consigo mundos inconstantes e
conflituosos. O cinza é um fluxo rizomático que perpassa os corpos melancólicos, nestes
deixando traços, cortes e incisões inexoráveis).
Indica-nos Peres (1996) que em cartas endereçadas a Fliess (médico alemão e
mais importante interlocutor do primeiro psicanalista da história no período que
corresponde ao nascimento da psicanálise), Freud inicia as primeiras teorizações no que diz
respeito à melancolia. As correspondências entre os Srs. F’s vinham, por parte do austríaco,

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acompanhadas de supostos rascunhos, nos quais uma questão em torno da depressão era
sempre posta em evidência.
A, B, E, G e N (rascunhos freudianos), assim, “a golpes de pequenas solidões”
(Barthes, 1984, p.11), o fundador da psicanálise foi literalmente rabiscando suas noções
iniciais acerca do termo melancolia e, em sua concepção, de suas forças mortíferas. Em seu
abecedário de anotações, Freud antecipava o que mais adiante seria matéria de escrita
daquele considerado por muitos críticos e estudiosos como um de seus mais belos textos
produzidos: Luto e Melancolia.
Neste texto, como já foi referido anteriormente, o literato judeu preocupou-se
eminentemente em fazer uma explanação referente à melancolia do ponto de vista clínico,
afirmando que “a sombra do objeto caiu sobre o ego” (Freud, 1974, p.281). Para tanto fez
uma distinção significativa entre as noções de luto e melancolia.
Partindo-se, então, desta escrita acima referenciada, podemos listar algumas
considerações pontuais condizentes com a teoria melancólica em Freud:
− Na melancolia é o próprio ego que se torna vazio e pobre; ele se desfaliciza
(diferente do luto, no qual essa condição pertence ao mundo externo);
− O ego é suspenso momentaneamente;
− O eu identifica-se com o objeto perdido (diferente do luto, no qual depois de
um tempo o ego está livre novamente para investir em outros objetos);
− É um processo patológico (no luto não deve ser patológico);
− Auto-recriminações e autodesprezamentos são atitudes comuns adotadas pelo
melancólico (auto-estima bastante afetada);
− Questão central da melancolia: “o sujeito sabe quem perdeu, mas não sabe o
que perdeu nesse alguém” (ib., p.277).
Tanto em Hipócrates quanto em Freud evidenciamos uma preocupação constante
com a situação egóica. Desde os primeiros estudos referentes à bile negra dos médicos
hipocráticos, passando pelos rascunhos freudianos, até a troca de correspondências entre os
Srs. F’s, é notório o entendimento de caráter patológico que esses pensadores denotam a
respeito da afecção em questão. O esgotamento aqui se dá pela ordem do vazio, do silêncio
do nada-mais-porvir, tal qual nos destaca a citação a seguir sobre o desejo do melancólico:

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“é o de abismar-se no vazio do sem-sentido – para, enfim, fazer confluir todos os sentidos
no silenciar definitivo da morte” (Lages, 2007, p.37).
Para encerrar essa primeira parte do artigo, essa lufada saturna melancólica, na
qual nos deparamos com as pulsões mortíferas de uma melancolia prostrada e
contemplativa, de um estar-se morto em vida — posição essa que, desde já afirmo, não é a
que pretendo traçar em Caio —, reproduzo um trecho de Os últimos dias de Charles
Baudelaire com a intenção de sintetizar o que foi escrito e trabalhado até agora sobre a
melaschole.
O trecho remete a Baudelaire, hospedado num quarto do hotel Grand-Miroir, em
Bruxelas, surpreendido pela proximidade de seu fim, relatando que jamais — até então —
conhecera tamanho vazio em sua existência. Tantas vezes conhecera torpores e letargias,
mas nunca algo parecido com o que estava vivenciando naquele momento. Nem nos dias
mais negros de sua existência sentira-se tão mal. E o pior: não era spleen, tampouco tédio.
O que o deixara surpreso é que não há mais nenhum desejo. Nenhuma concentração, a não
ser um tempo morto e petrificado, que sente escoar-se nele.
“O que faz aquele homem? Nada. Ou melhor, nada digno de nota. Está lá,
simplesmente. Imóvel. Sob os lençóis. Após dois dias assim repousando, os olhos cerrados,
pregado em sua enxerga por um torpor tenaz, não fala; não vê ninguém; não responde mais
a madame Lepage, sua senhoria, quando ela vem pelo corredor, inquirir da sua saúde, ouvir
o barulho que ele não faz ou trazer, praguejando a gamela diária. Ele continua a rejeitar a
gamela. Tampouco abre os exemplares de L’Indépendance Belge que ela faz deslizar sob a
porta, de manhã. Ele que, toda a vida, tanto nos tempos de miséria como nos outros,
vangloriou-se de consagrar pelo menos duas horas do dia à sua higiene, não se levanta mais
a não ser para, com passo arrastado, ir refrescar o pano úmido, embebido em terebentina,
que amarrava à volta da cabeça” (Lévy, 1988, p.9-10).
Aristóteles & o problema XXX, 1
Entre a melancolia hipocrática e freudiana e a melancolia em Caio F. Abreu,
existe um intermezzo, um meio do caminho; ou, melhor, um problema, literalmente um
problema, a ser enfatizado. Problema este jamais aventado por outro filósofo, escritor ou
artista. Não diz respeito a um tempo específico (mesmo que tenha sido postulado na
Antiguidade), pois perpassa a todas as épocas e movimentos históricos.

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O problema ao qual me refiro, foi criado por Aristóteles (1998, p.7) e
compreendia a seguinte questão: “por que todo ser de exceção é melancólico”?
Tal questionamento rompe um pouco com a idéia da melancolia ligada –tão
somente – à patologia (entendendo aqui a patologia no sentido mais patológico possível do
termo, diria quase excludente e pejorativo). Mais do que romper com a noção de patológico
como sendo um conceito conectado à desordem e à exclusão, Aristóteles evoca, chama, põe
para dançar, tal qual uma Pomba-Gira (entidade advinda das religiões africanas, mais
precisamente da Umbanda), com suas cores voluptuosas e ritmo eloqüente, a própria
loucura, assumindo-a como parte inexorável e constituinte da condição humana.
Dessa maneira, ao convocar a loucura/Pomba-Gira para pisar nos
territórios/terreiras da vida, o filósofo grego em questão traz a bile negra para o centro das
ações, correlacionando-a com o vinho, por acreditar que ambas possuem naturezas
semelhantes. A bile negra agiria no organismo da mesma forma que o vinho age, isto é,
produzindo um grande número de caracteres e oferecendo à melancolia todos os estados de
embriaguez possíveis, inclusive os perigosos. O gênio, sendo assim, surgiria pela ação da
própria bile negra, que, como o vinho, teria poderosa ação sobre a mente. Segundo ainda
Aristóteles, o melancólico é essencialmente polimorfo, concentrando em si todos os
caracteres possíveis. Por aí, então, se explica o porquê da criatividade melancólica, pois
sendo o vinho uma bebida democrática (de fácil acesso), quem o bebe incorpora um
número significativo de personalidades.
Ainda dentro do pensamento aristotélico podemos sugerir que os homens
excepcionais (perittos – expressão grega que indica aquilo que ultrapassa a medida;
excesso; excepcional), ou seja, os ditos melancólicos, carregam consigo um excesso de
criatividade que, quando bem conduzidos, os tornam bastante produtivos, seja na filosofia,
na poesia ou nas artes. Essa proximidade deste temperamento melancólico com aquilo que
o homem tem de mais primitivo, lembra Morin (1999) que, ao discorrer sobre o gênero
homo, atribuindo-lhe a qualidade de sapiens (qualidades de um ser racional e sábio), afirma
que não tem nada de racional e sábia nesta idéia. Para ele, ser homo-sapiens implica,
necessariamente, ser homo-demens também, que nada mais é do que manifestar não
somente o pensamento racional, argumentado, crítico e complexo do sapiens, mas,
sobretudo, dar corpo e voz a uma afetividade extrema, compulsiva, composta de paixões,

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cóleras, gritos, mudanças brutais de humor; em carregar consigo uma fonte permanente de
delírios; ou seja, é abarcar as desordens da afetividade, a loucura do impossível; é, antes de
tudo, criação e pura invenção: é ser homo sapiens-demens.
Dessa forma, como reforça Aristóteles, os melancólicos, no que pese toda sua
criatividade borbulhante, pagariam, por vezes, um preço muito alto por tamanha ebulição
criativa: através de seus talentos, são arrastados pela vida como um barco desgovernado.
Caio e sua escrita: uma melancolia do excesso
Comecei por Hipócrates e a medicina na Antiguidade. Em seguida, por Freud e a
psicanálise no século XIX, passando, logo depois – ou seria retornando? — a Antiguidade
com Aristóteles — o intermezzo — para agora então chegar à questão nerval deste artigo: a
melancolia em Caio F.
Tal itinerário se faz importante pelo fato de melhor situar essa afecção ao longo da
história da humanidade. Quais as características principais, foco de análise e interesse de
cada autor neste instigante conceito? Por onde cada pensador dessas paixões tristes se
debruçou para melhor compreendê-las?
Essas foram algumas questões que procurei colocar em movimento nas páginas
anteriores para melhor situar de onde parti e para onde quero chegar nesta viagem pelos
meandros melancólicos existenciais. Não as respondi, até mesmo porque este não era o
objetivo de tal estudo. Tampouco me detive muito em seus aspectos. Apenas as coloquei lá,
como apontamentos de estudo, registros de leitura, à mercê de possíveis conclusões. Faça
você as suas.
Portanto, após informações gerais acerca do processo de estudo percorrido até
aqui, chegou o momento final deste texto: o momento de nos encontrarmos com os
pequenos traços biografemáticos de Caio F., espalhados por entre suas personagens de
alguns de seus contos, mas, especialmente, o traço que mais (me) encanta: o da melancolia.
A idéia é, aos poucos, chamar alguns interlocutores para este desafio, e, na
medida do possível, fazer aproximações destes com a obra de Caio.
Isto posto, começo, melhor, regresso até o século XVII na Alemanha para com
Walter Benjamin e o barroco alemão prosseguir nesses registros.
Walter Benjamin estudou as interpretações do Barroco na Alemanha, postulando
concepções acerca do conteúdo do conceito de melancolia. Sua obra, assim como a de

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Caio, apresenta uma escrita ensaística e fragmentada, tal qual, também, a melancolia (Cf.
Benjamin, 1984).
O drama barroco alemão sucintamente descrevendo, é um gênero literário no qual
se apóia uma visão de história como história natural e não numa perspectiva de história da
salvação, que era caracterizada pela estética clássica. Este movimento, do qual Benjamin é
idealizador, pensa a melancolia como resultado de circunstâncias histórico-sociais. A
Reforma Protestante e as reflexões acerca de algumas concepções de mundo foram dois
aspectos que contribuíram para que Benjamin pensasse a melancolia a partir de referenciais
histórico-sociais.
Nesta obra, o filósofo alemão distingue entre os gêneros desse movimento
literário o príncipe como uma de suas alegorias. Este possui uma condição ambivalente,
visto que é ao mesmo tempo um mártir e um tirano, estando sujeito a sofrimentos e
suplícios (manifestações extremas da condição principesca).
Em Hamlet, o príncipe, ao tentar vingar a morte de seu pai, cometida pelo seu tio,
oscila entre o sofrimento opressivo (tristeza) e a raiva fervorosa (cólera) (Benjamin, 1984).
Justamente essa ambivalência de sensações, essa lógica dualista das emoções, esse
choque de forças entre um sentimento que oprime e paralisa, e outro que coloca em
desassossego e movimento, é o que marca a melancolia em Caio, especialmente a de seus
personagens.
“Fala fala fala. Estou muito cansado. Já não identifico nenhuma palavra no que diz.
Apenas me deixo embalar pelo ritmo de sua voz, dentro dessa melodia monótona angustiada
perplexa repetitiva. Quase três da manhã. Não temos onde ir, nunca tivemos aonde ir. Um nojo,
vezenquando me dá um asco – nojo é culpa, nojo é moral – eu tenho medo, não quero correr riscos
– mas agora só existe um jeito e esse jeito é correr o risco – não é mais possível – vamos parar por
aqui [...] Eu quero muito, eu quero mais, eu quero tudo. Eu quero o risco, não digo. Nem que seja a
morte” (Abreu, 1995b, p.205-206).
A condição do príncipe hamletiano, de hesitação e de sofrimento, fruto de uma
alternância de papéis (tristeza e cólera), é a mesma pela qual passa a personagem de Caio
descrita no fragmento acima (nojo e riscos). Tal hesitação Benjamin irá nomear de acedia
(a sombria indolência da alma), traço mais geral da sintomatologia melancólica (Benjamin,
1984, p. 178).

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Acedia ou acídia, do grego Akedia, também encontra eco na teoria barthesiana.
Em Preparação do Romance I, Barthes (2005, p.9) se refere a essa noção como algo da
ordem da impotência de amar: “Sou objeto e sujeito de abandono”.
Acedia é a sensação de se estar vivendo na fronteira entre dois mundos; é oscilar
entre dois sentimentos distintos e opostos.
“Em luta, meu ser se parte em dois. Um que foge, outro que aceita. O que aceita diz: não.
Eu não quero pensar no que virá: quero pensar no que é. Agora. No que está sendo. Pensar no que
ainda não veio é fugir [...] Pensar no que está sendo [...] enfrentar e penetrar no que está sendo é
coragem” (Abreu, 1995a, p.70).
Mesmo sob fortes contradições existenciais, os personagens de Caio afirmam sua
acedia; eles captam a epifania passional do instante, vagam por aí, sempre às bordas de um
suicídio (jamais diante do suicídio). No limite tensional entre a vida e a morte, dissolvem-
se, mas não se despedaçam.
“Aí os olhos dele ficaram muito brilhantes outra vez, parecia que ia começar a chorar
quando de repente, sem que ninguém esperasse, deu um salto em direção à janela gritando que ia se
jogar, que ninguém o compreendia, que nada mais valia a pena, que estava de saco cheio e não
apostava um puto na merda de futuro. O rapaz de camisa vermelha chegou a colocar uma das pernas
sobre o peitoril, abrindo os braços, mas os outros dois o agarraram a tempo e o levaram para o
quarto, perguntando muito suavemente o que era aquilo, repetindo que ele estava demais nervoso, e
que estava tudo bem, tudo bem. [...] Lá no quarto, o rapaz de blusa vermelha ouviu e deu um sorriso
largo antes de adormecer com os outros segurando nas suas mãos. Então sonhou que deslizava
suavemente, como se usasse patins, sobre uma superfície dourada e luminosa. Não sabia ao certo se
um dos anéis de Saturno ou uma das luas de Júpiter. Talvez Titã” (Abreu, 2005, p.30-31).
O contexto barroco marca uma melancolia ativa, que se contrapõe a um ato
contemplativo diante das ruínas existenciais, assegurando uma consciência crítica acerca da
história. A perspectiva melancólica de Benjamin supõe um caráter de criticidade, traço
evidente na escrita de Caio.
“Chovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro da chuva ao encontro dele, sem guarda-
chuva nem nada, eu sempre perdia todos pelos bares (...) eu só ia indo porque ele me chamava, eu
me atrevia, eu ia além daquele ponto de estar parado, (...) hesitava mas ia indo” (Abreu, 2005,
p.45-47).

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Da mesma maneira em que o Japão colocou Barthes em situação de escrileitura, a
melancolia assim o fez com Caio. Ela é o punctum de sua escrita, sua Pomba-Gira, sua
parte demens, seu vinho tinto (cf. Barthes, 2007).
A melancolia na escritura de Caio não é silenciosa, prostrada e contemplativa (tal
qual como a vimos em Freud). Bem pelo contrário, ela é ruidosa, intempestiva, angustiante.
Em grande parte de seus textos, deparamo-nos com personagens jogados em situações
limítrofes, confrontados em sua própria solidão e impotência.
Embriagar-se desta escrita melancólica é morrer um pouco mais em cada coisa,
em cada canto. É uma morte pelo descomedimento, pela concentração de vida. É um
exagero, um rasgo, um profano gesto de esgotamento. É o tombo do soldado nietzschiano
na neve (cf. Nietzsche, 1995), é a força dos rostos pintados de Giacometti (cf. Genet, 2000),
é o retorno de Saturno, são os morangos que, embora mofados, ainda mantém a essência de
seu frescor (cf. Abreu, 2005) e, por fim, são as cinzas do excesso que, de uma capela
mortuária de número 435207, infligem à melancolia toda a desmesura de se estar vivo.

Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia: o problema XXX, 1. Rio de Janeiro:
Lacerda Editores, 1998. (Trad. Alexei Bueno.)
BARTHES, Roland. A preparação do romance I. São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Trad.
Leyla Perrone-Moisés.)
______. A preparação do romance II. São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Trad. Leyla
Perrone-Moisés.)
______. O império dos signos. São Paulo: Martins Fontes, 2007. (Trad. Leyla Perrone-
Moisés.)
______. A câmara clara: notas sobre fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
(Trad. Júlio Castañon Guimarães.)
BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.
(Trad. Sergio Paulo Rouanet.)
ABREU, Caio Fernando. Inventário do ir-remediável. Porto Alegre: Sulina, 1995.
______. Morangos mofados. Rio de Janeiro: Agir, 2005.
_____. Ovelhas negras. Porto Alegre: Sulina, 1995.

61
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: Obras completas. Vol. XIV. Rio de Janeiro:
Imago, 1974. (Trad. Themira de Oliveira Brito, Paulo Henrique Britto e Cristiano
Monteiro Oiticica.)
GENET, Jean. O ateliê de Giacometti. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. (Trad. Célia
Euvaldo.)
LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: EDUSP,
2007.
LÉVY, Bernard-Henri. Os últimos dias de Charles Baudelaire. Rio de Janeiro: Rocco,
1989. (Trad. Celina Luz).
MORIN, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. (Trad.
Edgard de Assis Carvalho.)
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995. (Trad. Paulo César de Souza).
PERES, Urania Tourinho (Org.). Melancolia. São Paulo: Escuta, 1996.
STAROBINSKI, Jean. Historia del tratamento de La melancolia desde las orígenes hasta
1900. Basle: Acta Psychosomatica, 1962.

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O SIMULACRO E O BIOGRAFEMA – DE A a Z

Gabriel Sausen Feil

Atualização. Admitimos que, em Incidentes, Roland Barthes (2004) escreve sobre a


sua vida; e que ao fazê-lo atualiza as suas memórias em palavras. Mas, ao mesmo tempo,
concordamos com Deleuze (2006b, p.136) que “atualizar-se é diferenciar-se”: ao atualizar
as suas memórias, Barthes diferencia os fatos vividos dos acontecimentos descritos. Ao
atualizar, Barthes diferencia-se de si mesmo; Barthes reinventa um novo Barthes. É por isso
que a atualização é morte: ao fazer determinações, encerra outras possibilidades; porém, e
acima de tudo, a atualização é vida, na medida em que implica uma diferenciação e,
portanto, a invenção de uma nova vida. O crucial está na distinção entre o “c” (de
diferenciação) e o “ç” (de diferençada). A atualização envolve determinações, mas nem por
isso ela é diferençada: ora, envolve determinações porque estria o caos indeterminado, mas,
ainda assim, é indiferençada por se tratar de uma nova determinação, desassociada de tudo
aquilo que já era conhecido e identificável. Envolve uma diferenciação, na medida em que
se compõe por novas relações e dispõe de novas singularidades. Em suma, a atualização é
sempre indiferençada (pois lhe faltam as qualidades da representação), determinada (pois
virtuais se atualizam) e diferenciada (pois singular). Com isso, a regra do claro e do distinto
não vale para o atual: o atual não é claro e distinto, mas distinto e obscuro. Distinto = a
escritura (atual) diferencia-se dos fatos (originais). Obscuro = a escritura não se enquadra,
não se associa, não condiz com nada mais neste mundo; ela não é verificável, a não ser nele
mesma. Disso tudo, conclui-se que o virtual (aquilo que, embora seja real desde sempre,
ainda não recebeu uma Forma, uma existência percebível; no caso mencionado de Barthes,
aquilo que aconteceu entre as suas experiências e a escritura de Incidentes) não se atualiza
por semelhança, mas por divergência: se houve uma atualização, é somente porque havia
uma divergência possível. A atualização, nesse sentido, “é sempre criadora em relação ao
que ela atualiza” (Deleuze, 2006b, p.137). Em outros termos: a escritura é sempre criadora
em relação à sua matéria. Se Deleuze deixou os pensadores da Diferença com um pé atrás
em relação ao sujeito, foi ele também que os liberou: não há problema algum em escrever
sobre nós mesmos, pois ao fazê-lo, já nos encontramos em outro plano, desde que não nos

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limitemos às qualidades representadas. (E mesmo que nos limitemos a elas, em verdade, já
estaremos, na pior das hipóteses, criando um novo sujeito, ainda que fraco e previsível).
Beaufret. Ao final de sua conferência intitulada O método de dramatização,
Deleuze, em resposta a A. J. Beaufret, diz que “Dionísio atém-se a que permaneça obscuro
aquilo que é distinto”. Óbvio; afinal, por qual motivo o Deus esquartejado iria desejar a
conciliação? Dionísio não pode suportar a conciliação, não sem deixar de ser Dionísio. “Ele
encarregou-se do distinto e quer que esse distinto seja para sempre obscuro” (Deleuze,
2006a, p.150). Admitimos: a impressão de reconciliação é sempre uma possibilidade; mas
apenas do lado do claro. Se por vezes, portanto, parece haver essa impressão, é devido,
exclusivamente, ao excesso de luz.
Coexistência. A questão não é tão ordinária. Não estamos, simplesmente, querendo
dizer que a escritura se diferencia dos fatos, ou que a escritura se diferencia da outra que a
disparou. Não é a segunda que se diferencia da primeira, mas ambas se diferenciam a um só
tempo. É certo que podemos afirmar que a primeira veio antes, enquanto que a segunda
depois; mas essa lógica sucessiva é limitada e dependente “do ponto de vista dos presentes
que passam na representação”. É desse mesmo ponto de vista, aliás, que se diz que a
segunda se assemelha à primeira, “mas já não é assim em relação ao caos que as
compreende” (Deleuze, 2006b, p.118). Desse ponto de vista caótico, por menor que seja a
diferença interna entre as duas escrituras, uma não serve de modelo à outra, simplesmente
porque ambas coexistem. Se há uma semelhança, esta é apenas efeito do funcionamento da
lógica representativa. Sem dúvida, é dessa lógica e desse ponto de vista que parte o
biógrafo convencional, o qual se interessa por ter a impressão (ilusão) de semelhança entre
duas escrituras; interessa-se por submeter a produção atual a um suposto modelo.
Demoníaco. A intenção do biografólogo é outra (distinta da do biógrafo): ao se
apropriar de pormenores da vida de um sujeito, a sua intenção não é fazer com que o seu
trabalho escritural coincida com os “verdadeiros fatos” da vida desse sujeito. Ele faz ficção!
Não por escolha própria e voluntária, mas por ser só o que ele pode fazer: os pretensos
“verdadeiros fatos” são igualmente ficções e, por essa razão, povoam a ordem dos
simulacros tanto quanto o trabalho fantasioso do biografólogo. Isso significa que cada
versão da vida desse sujeito, incluindo a “verdadeira”, é uma obra autônoma. É por isso que
o simulacro é “uma imagem demoníaca” (Deleuze, 2006b, p.122), destituída de

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semelhança, de modo que jamais podemos dizer o que é uma cópia e o que é um modelo.
Não se trata, portanto, de acabar com a dualidade modelo-cópia, mas se trata de afirmar o
simulacro. A escritura biografemática afirma o simulacro, ao mesmo tempo em que o
simulacro garante a positividade da escritura biografemática.
Escritura (biografemática). (1) Traços biografemáticos: detalhes que passam
despercebidos pelos biógrafos e pesquisadores em geral, simplesmente porque são vazios
de significação prévia (comumente, biógrafos e pesquisadores procuram justamente pelos
detalhes (já) significados). Os traços biografemáticos são detalhes insignificantes
transformados em signos de escritura. Signo entendido como aquilo que instiga e dispara
um texto; como aquilo que nos encanta. Trata-se de uma inflexão: aquilo que passa
despercebido pelas interpretações diversas, valoriza-se na escritura atual. (2) Biografema:
precisamente, a escritura que foi disparada por traços biografemáticos. Difere-se da
biografia: enquanto a grafia (da biografia) tem significado, o grafema (do biografema) não.
A potência de um biografema é a sua proliferação na escritura; a potência (ou a impotência)
da biografia é a de estabelecer a vida última, verdadeira, plena de significação. Nesse
sentido, a escritura biografemática pode ser entendida como um modo de lidar com a
biografia sem se limitar à história referenciada, o que, em outras palavras, quer dizer a
história de vida do sujeito. O biógrafo, nessa perspectiva, não narra, de maneira linear,
cronológica, coerente, a sua própria vida (nem a de ninguém), mas produz vidas: o
biografólogo como um inventor de vidas. (Não se trata de ignorar a biografia; aliás,
biografia e biografema sequer estão em oposição. Enquanto a escritura biografemática
ocupa-se dos procedimentos de reinvenção de um autor, a escrita biográfica ocupa-se do
levantamento de informações históricas sobre um sujeito. Nesse sentido, a biografia aqui se
constitui apenas em um dos materiais ocupados pela escritura biografemática).
Ficção. O biografema, como diz Haroldo de Campos (2006), acontece quando vida
e obra encontram-se, tornam-se indiscerníveis. Trata-se do encontro entre a ficção e o real,
entre o imaginário e a história. Diante disso, a dita escritura ficcional não é menos
verdadeira do que aquela que vive para a verdade, ou: aquela que vive para a verdade não é
menos mentirosa do que a ficcional. (Nota sobre o Eu: não precisamos negá-lo; ele não
passa de um faz-de-conta, de um efeito, de um vício de linguagem; uma questão de
conveniência adquirida.)

65
Graça. Já que ficção e real confundem-se, os traços biografemáticos podem ser
extraídos tanto da vida do autor, como de figuras, personagens, conceitos que movimentam
as obras. Tanto as figuras, os personagens, os conceitos são percebidos como reais, como os
autores são percebidos como ficções. Tudo é simulacro, eis a graça!
História (de vida). A distinção que Barthes (2005b, p.170-172) faz do biógrafo e o
do biografólogo é a seguinte: o primeiro é aquele que faz história de vida; o segundo é
aquele que faz escrita de vida. Nesse caso, quando um escritor inventa vidas, é mais
adequado que o chamemos de biografólogo. O biografólogo como um escritor de vidas.
Nesse ponto, traços biografemáticos e os próprios biografemas confundem-se, já que cada
traço é um detalhe, e cada detalhe, a possibilidade de uma nova escritura. Biografema:
aquilo que sobra da biografia. Mas “sobra” num sentido positivo, num sentido de
Acontecimento: o biografema como o Acontecimento da biografia. Sobra como as cabeças
erguidas e inclinadas nos romances de Kafka, identificadas por Deleuze e Guattari (1977)
em Kafka: por uma literatura menor: sobras na medida em que se constituem em detalhes
que somente adquiriram sentido na escrita desse texto, e se constituem em traços
biografemáticos na medida em que surgem de uma zona indiscernível onde é impossível
distinguir a realidade da ficção. Ou seja, já não se pode dizer o que pertence, de fato, à obra
kafkaniana e o que é devedor da imaginação de Deleuze e Guattari.
Inventários (de traços biografemáticos). Ter a intenção de identificar traços
biografemáticos é sempre uma tarefa legítima. Porém, não existe identificação sem
invenção. Isso não quer dizer que os traços sejam falsos, uma vez que, nesta perspectiva, a
ficção não se opõe ao real, pelo contrário, constitui-o. É nesse sentido que, em verdade, os
traços não são identificados, mas inventariados: a invenção não se dá apenas após a
identificação dos traços, mas ocorre desde sempre. É por isso que, mesmo sendo impossível
prever a produção de biografemas, ainda assim é perfeitamente legítimo dizer que é
justamente essa produção incerta que nos coloca a produzir. E, por outro lado, afirmar que
inventariar traços biografemáticos é um passo legítimo pode ser arriscado, visto que o
biografema jamais cessa de produzir novos sentidos. É nessa indistinção, entre biografema
e traços biografemáticos, que a lista de traços inventariados nunca cessa de crescer (ou de
diminuir). Fazer tal distinção não se constitui em um problema, desde que não
desconsideremos que o movimento de ambos encontra-se sempre em pressuposição: do

66
mesmo modo que não há como inventariar traços biografemáticos sem desejar produzir
biografemas, não há como produzir biografemas sem inventariar traços biografemáticos.
Jogo (de passar anel). Barthes (2005b) sinaliza para um aspecto sensual existente
nos biografemas. É que são eles que convidam e mesmo seduzem o leitor a compor com os
fragmentos, a produzir um novo texto. Mas, assim como no jogo de passar anel, o mais
importante (o que sustenta o jogo) não é o conteúdo (no caso o anel), mas é o ato sutil e
sensual de passar as mãos em mãos alheias.
Larval: O biografema e a larva. “Há movimentos que somente o embrião pode
suportar” (Deleuze, 2006b, p.133). O sujeito já formado, o cogito, não suporta esse
dinamismo de intensidades. É isto! O sujeito do biografema só pode ser larval: o
biografema lida com o sujeito, mas ele em estado larval. O biografema como regressão;
porém, não no sentido de regressão cronológica, mas no de regressão ao estado puro, isento
de qualidades e organizações. A escritura biografemática ativa um sujeito larval.
Método (de dramatização). Quem dramatiza? Não apenas aqueles que fazem ficção
voluntária, tal como a literatura e o teatro, mas também o conhecimento científico, a moral,
a filosofia. Mesmo a representação somente tem existência devido a um empreendimento
dramático. A Maurice de Gandillac, Deleuze define: as dramatizações são dinâmicas “pré-
qualitativas e pré-extensivas que têm ‘lugar’ em sistemas intensivos onde se repartem
diferenças em profundidades, que têm por ‘pacientes’ sujeitos-esboços” (Deleuze, 2006a,
p.145). O método de dramatização substitui o sujeito histórico, constituído e dependente de
qualidades subjetivas, por um sujeito que só pode ser esquartejado, fragmentado, esboçado,
larval, formado graças a um milagre do inconsciente.
Nova (postura). Embora a escritura biografemática esteja envolvida com o novo,
isso não quer dizer que esteja relacionada a uma mudança de conteúdos, ou mesmo a uma
mudança de estilo de escrita; a escritura biografemática passa por uma mudança
metodológica, que diz respeito ao modo como nos apropriamos de um autor e escrevemos
sobre ele e/ou sua obra. Comumente, nos apropriamos de um autor escrevendo sobre ele
(sua história de vida), sobre o que ele quis dizer (seus argumentos teóricos), sobre o que ele
quis negar (seus inimigos)... Em suma, tradicionalmente, nos apropriamos de um autor
escrevendo sobre: permanecemos submetidos à escrita transitiva. É que não temos
conseguido nos desviar dos significados contidos nas obras e nas histórias de vidas dos

67
autores. Isso faz com que sempre nos apropriemos deles do mesmo modo; as variações se
devendo apenas às particularidades de cada linha de pesquisa. Em outras palavras,
interpretamos um mesmo autor de diversas maneiras, porém, não nos permitimos reinventá-
lo. A escritura biografemática tende a produzir nova escritura reinventando um autor e/ou
sua obra, a partir de detalhes até então irrelevantes. É um modo de garantir que toda vez
que um autor seja tomado como objeto de escritura, ele seja tomado sempre de modo
inédito. Segundo Leyla Perrone-Moisés (2007, p.50-51), a escritura funciona como um
“ensino escritural”: um “ensino artístico” na medida em que implica o ensino de uma
postura e não de um know-how; na medida em que não envolve a transmissão de um saber,
e sim a exibição de uma postura que tende a produzir ao invés de sistematizar. O que
permanece não é o que foi dito, mas sim a tendência em querer produzir uma nova
escritura.
Original. Não há nada depois da máscara! Para o original permanecer: o original
somente se torna proveitoso, na medida em que é tomado como matéria a ser dissimulada;
na medida em que serve de base para a dissolução da sua própria identidade.
Platonismo. Conforme atesta Deleuze (2006b, p.69), todo platonismo “é dominado
pela idéia de uma distinção a ser feita entre ‘a coisa mesma’ [o original] e os simulacros”.
Trata-se de um empreendimento filosófico que tende a subordinar os segundos à primeira.
O sistema envolve um original (a Idéia) e as suas variações (simples opiniões que apenas
expressam maneiras confusas de pensar o original). Para reverter o platonismo, Deleuze dá
a dica: reverter o platonismo implica em “recusar o primado de um original sobre a cópia,
de um modelo sobre a imagem. Glorificar o reino dos simulacros e dos reflexos” (Deleuze,
2006b, p.69). Para que isso aconteça, é preciso “que as diferenças de intensidade entrem em
comunicação. É preciso como que um ‘diferenciador’ da diferença, que reporta o diferente
ao diferente. Cabe esse papel ao que denominamos precursor sombrio” (Deleuze, 2006a,
p.132-133). O sistema escritural seria este: 1) a vida de um autor é uma série (séries de
séries ao infinito); 2) o sombrio é o biografólogo trazendo uma série outra; 3) a nova série
que transborda dessa comunicação é o biografema.
Quimera. Modelo e Cópia na lógica platônica: o modelo goza de uma identidade
originária superior; a cópia é julgada segundo uma semelhança interior derivada. A
diferença acaba aparecendo apenas depois, somente podendo ser pensada a partir da

68
identidade e da semelhança. Segundo Deleuze, “a distinção modelo-cópia existe apenas
para fundar e aplicar a distinção cópia-simulacro, pois as cópias são justificadas, salvas,
selecionadas em nome da identidade do modelo e graças a sua semelhança interior com este
modelo ideal” (Deleuze, 2006b, p.121). A noção de modelo (os fatos da “vida real”)
seleciona as boas imagens, aquelas que se assemelham a ela (as biografias), e elimina as
más, os simulacros (biografemas). É nesse sentido que, para Deleuze, o sistema de Platão é
uma visão moral do mundo, e não representacional (como será a de Aristóteles). É por
razões morais que o simulacro será concebido como uma quimera.
Representação. A representação não basta: a diferença não se dá em função de
diferentes sujeitos que vêem a coisa. É a própria coisa que não existe como coisa; ela
somente existe como puro simulacro. Não é uma questão de representação infinita: a
representação infinita apenas multiplica os pontos de vista, mas ainda assim conserva o
objeto estático e sagrado. É por isso que o perspectivismo não pode se reduzir à
multiplicação de pontos de vista; é preciso que cada perspectiva seja uma obra autônoma
(Deleuze, 2006b, p.71), no sentido de valer por si mesma.
Simulacro. Tudo é simulacro! Qualquer outra afirmativa é o mesmo que
permanecer no culto à coisa. Ou: Simulacro = Instância que abole toda possibilidade de
haver um original.
Tipos (psicossociais). (1) A vontade de potência, em Nietzsche, é um conceito,
porém, tem pressupostos implícitos. Tais pressupostos, pré-conceituais, são os personagens
conceituais. Nem sempre são nomeados, mas nem por isso devem ser ignorados. Por vezes,
têm nome próprio: Nietzsche, por exemplo, é um personagem conceitual da obra
deleuziana. Nietzsche, personagem conceitual, não é o mesmo Nietzsche, sujeito alemão,
que morreu em 1900. Nietzsche, em Deleuze, é um personagem conceitual porque instiga a
criação de conceitos. É precisamente isto que os personagens conceituais fazem: eles
intervêm na criação de conceitos, operam os movimentos conceituais (Deleuze e Guattari,
1992, p.85). Pensando no biografema, pode-se dizer que Nietzsche, personagem conceitual
de Deleuze, é aquilo que permaneceu, em Deleuze, da obra produzida em nome do sujeito
alemão que morreu em 1900. Quando se faz anedotas envolvendo a liga das meias de Kant,
o gosto de Espinosa pelos combates de aranhas, não se está remetendo “simplesmente a um
tipo social ou mesmo psicológico de um filósofo (...). Elas manifestam, antes, os

69
personagens conceituais que o habitam” (Deleuze e Guattari, 1992, p.96). Em outros
termos: quando inventariamos traços biografemáticos de um autor ou de elementos de sua
obra, não estamos nos remetendo ao sujeito, ao autor, mas, no caso da filosofia, aos
personagens conceituais que o habitam. (2) Enquanto os personagens conceituais são
potências de conceitos, as figuras estéticas são potências de afectos e perceptos. As figuras
estéticas “não têm nada a ver com a retórica. São sensações: perceptos e afectos” (Deleuze
e Guattari, 1992, p.87-88; p.229). Ou seja, não dizem respeito ao dito, ao escrito, mas
dizem respeito justamente ao que excede disso. Perceptos e afectos se diferenciam das
percepções e das afecções. O dito diz respeito a essas últimas, as quais estão do lado do
ordinário, daquilo que é reconhecível, identificável; que pode ser compartilhado,
comunicado, entendido. Os afectos e perceptos transbordam as afecções e percepções, e
dizem respeito ao extraordinário, justamente por ser da ordem do singular, do raro, do não-
repetível. Enquanto que a percepção e a afecção tangem somente o que o homem já
qualificou, os perceptos e afectos independem da história, do vivido; independem também,
no caso do romance, da narrativa. Afectos e perceptos “são seres que valem por si mesmos
e excedem qualquer vivido” (Deleuze e Guattari, 1992, p.213). (3) Dentre os três
personagens (tipos psicossociais, figuras estéticas e personagens conceituais), os tipos
psicossociais são os únicos que testemunham, de fato, uma terceira pessoa (Deleuze e
Guattari, 1992, p.86). Criamos tipos psicossociais quando estabelecemos territórios:
gêneros, identidades, raças; patologias... O sentido dos tipos psicossociais é, justamente,
tornar perceptíveis essas formações, mas também tornar perceptíveis os processos que as
fazem vacilar. O filósofo, o artista, o cientista, mas também o advogado, o médico, o
professor, são tipos psicossociais. Eles são os sujeitos das biografias, as quais levam em
consideração apenas aquilo que remete à vida reduzida do tipo psicossocial. A biografia,
nesse sentido, não é uma escrita da vida, mas é a escrita da história de um tipo psicossocial.
Tudo aquilo que não tem significado já estabelecido, é desconsiderado; tudo aquilo que
transcende às percepções do vivido (conceitos, perceptos, afectos), é ignorado. Entretanto, é
preciso notar que o tipo psicossocial, assim como o personagem conceitual e a figura
estética, também não se reduz ao autor, ao sujeito. Ao mesmo tempo em que todo mundo é
constituído por traços psicossociais, ninguém, absolutamente ninguém, é um tipo
psicossocial. Talvez o maior problema das biografias esteja na sua ingenuidade: ela escreve

70
sobre um tipo psicossocial como se estivesse escrevendo, de fato, sobre um verdadeiro
autor.
Urgência. Aquilo que urge agora! Se Barthes (2005a, p.XVI-XVII) reúne, em Sade,
Fourier, Loyola, um escritor maldito, um filósofo utopista e um santo jesuíta, não é,
simplesmente, para provocar o leitor através de uma inusitada relação, mas para enfatizar
um modo outro de se apropriar de um autor. Apropriar-se de um autor, em Barthes, é o
mesmo que amá-lo; e se existe a possibilidade de amarmos um sujeito do texto, esse sujeito
é sempre disperso: podemos amar traços biografemáticos desse suposto sujeito; amar
pedaços que nos colocam em situações de urgência: – Não posso fazer mais nada a não ser
escrever sobre o regalo branco de Sade!
Vazios (de significações). O modo que Barthes se apropria de Marquês de Sade,
Fourier e Inácio de Loyola, em Sade, Fourier, Loyola (2005a), é um exemplo de modo
biografemático: ao invés de deter-se nos elementos em que cada um desses autores é
reconhecido (pornografia: Sade; socialismo utópico: Fourier; mística da obediência:
Loyola), Barthes detém-se em algo novo. Identifica o que faz deles escritores, ou melhor, o
que faz de suas escritas, escrituras. Sade, por exemplo, faz escritura, segundo o autor
francês, porque inventa a língua do crime (Barthes, 2005a, p.18), a qual faz com que o seu
texto valha por si mesmo, independentemente dos seus conteúdos (dito obscenos, violentos,
perversos). Com isso Barthes inventa um novo Sade, e, por essa razão, faz biografema.
Concebe Sade não como o autor da pornografia (não o limita a isso), mas como escritor,
produtor de escritura, a partir de detalhes que até então eram foscos e desprovidos de
sentidos, tais como o regalo branco que Sade usava nos invernos (ou como os vasos de
flores de Fourier ou os olhos espanhóis de Inácio): “O que me vem da vida de Sade não é o
espetáculo, embora grandioso, de um homem oprimido por uma sociedade em razão do
fogo que ele carrega (...). É seu regalo branco quando abordou Rose Keller (...); o que me
vem da vida de Fourier é seu gosto pelos ‘mirlitons’ (bolinhos parisienses aromatizantes),
sua simpatia tardia pelas lésbicas, sua morte entre os vasos de flores; o que me vem de
Loyola não são as peregrinações, as visões, as macerações e as constituições do santo, mas
somente ‘os seus belos olhos, sempre um pouco marejados de lágrimas’” (Barthes, 2005a,
p.XVI). Barthes não se apropria dos detalhes já significados, mas se apropria dos detalhes

71
vazios de significação. É nesse sentido que os detalhes não são identificados, mas são
inventariados, pois inéditos.
Xícara (de chá). Nas palavras de Barthes (2005a, p.XVII): “Se eu fosse escritor, já
morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um biógrafo amigo
e desenvolto, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos:
‘biografemas’, cuja distinção e mobilidade poderiam viajar fora de qualquer destino e vir
tocar, à maneira dos átomos epicurianos, algum corpo futuro, prometido à mesma
dispersão; uma vida esburacada, em suma, como Proust soube escrever a sua na sua obra”.
O que passa para a obra de um autor (de Proust, por exemplo) pode ser entendido como a
sua vida; porém, trata-se de uma vida desorientada, que não coincide com a vida das
biografias convencionais, justamente por ser constituída por detalhes que se encontram fora
dos fatos comumente consideráveis: a vida de Proust (1967) sendo reinventada
(redescoberta), pelo próprio protagonista de Em busca do tempo perdido, a partir da
sensação provocada pela degustação de um simples bolinho mergulhado em uma xícara de
chá.
Zona (indiscernível). Se a escritura biografemática afirma o simulacro, é porque ela
não foge do seu modelo, ao mesmo tempo em que o trai. E se o simulacro garante a
positividade da escritura biografemática, é porque ele mostra que esta não é devedora
daquela outra que a disparou, pois surge de uma zona indiscernível onde os simulacros
exibem-se.

Referências bibliográficas
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Guimarães.)
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Laranjeira.)
______. Preparação do Romance vol II. São Paulo: Martins Fontes, 2005b. (Trad. Leyla-
Perrone-Moisés.)
CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem & outras Metas. São Paulo: Perspectiva, 2006.
DELEUZE, Gilles. “O método de dramatização”. In: ______. A ilha deserta e outros textos.
São Paulo: Iluminuras, 2006a, p.129-154. (Trad. Luiz B. L. Orlandi.)

72
______. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006b. (Trad. Luiz Orlandi e
Roberto Machado.)
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro:
Imago, 1977. (Trad. Júlio Castañon Guimarães.)
______; ______. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. (Trad. Bento Prado Jr. e
Alberto Alonso Muñoz.)
PERRONE-MOISÉS, Leyla. “Lição de casa”. In: BARTHES, Roland. Aula. São Paulo:
Cultrix, 2007, p.50-89.
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido vol I. No caminho de Swann. Rio de
Janeiro: Globo, 1967. (Trad. Mário Quintana.)

73
PELOS TRAÇOS DO IMPENSADO DA ESCOLA

Karen Elizabete Rosa Nodari

E, como era esperado aquilo tudo se repete, incessantemente, entre o início e o


término de cada jornada. É bem verdade que nada naquele lugar ocorre uma única vez...
Primeiro, segundo, terceiro, quarto e quinto período do turno da manhã. Primeiro, segundo,
terceiro, quarto e quinto período do turno da tarde. A chamada, os atrasos, a leitura, a
mochila, o caderno, a correção do exercício, o laboratório, a prova, a apresentação do
trabalho, o recreio... Tudo retorna entre a segunda e a sexta-feira, das 8 h. às 17 h., entre
março e dezembro. Uma vez mais se começa para terminar e termina-se para começar. É
possível ver em toda essa repetição sempre a mesma coisa. Como se tudo que a escola
produzisse já fosse visto, vivido em outro lugar, mais parece um clichê (Deleuze, 2005). No
entanto, nunca se sabe, exatamente, o que vai passar, ou o que vai passar exatamente. Há
algo de extraordinário, de inexplicável, de inapreensível, em toda aquela repetição
(Deleuze, 1988).
O ruído dos passos, aos poucos, toma conta do saguão. Ao invadir o espaço, torna-
se impossível ignorá-los então, só resta acompanhá-los... O dos lentos arrastando as
mochilas ou por elas puxados mistura-se aos dos apressados, o dos decididos que não tem
tempo a perder confunde-se com os dos exploradores que deambulam na amplidão. Tão
certo como há manhãs em que o sol aparece e, outras em que permanece envolto em
nuvens... Há dias em que eles aguardam mais, outros aguardam menos. Certas vezes eles
conversam mais, outras conversam menos. Em determinados instantes eles correm mais,
noutros correm menos. Primavera, verão, outono, inverno. A roda das estações a girar e, os
passos para onde irão guiar?
De repente, o estridente sinal atravessa o burburinho, impondo-se. Um chamado a
todos para que ocupem os seus lugares no labirinto escolar. Onde tudo recomeça, sempre,
no mesmo local, na mesma hora, a cada novo dia... Alunos de várias idades conversam pelo
corredor, surge uma professora de Português, grupos de estudantes encaminham-se para a
aula, a porta da sala se fecha, três alunos correm, não conseguem entrar na sala, passam-se
cinqüenta minutos, sai a professora de Português, retornam os atrasados, ao fundo do
corredor surge o professor de Espanhol, mais um período de aula, uma aluna é excluída da

74
sala, todos aguardam o recreio, novamente, soa o sinal, professores andam rapidamente em
direção às suas salas, alunos correm pelo pátio, outros conversam, adolescentes sentam-se
abraçados, ouvem-se gritos na fila do bar, uma funcionária do Serviço de Atendimento ao
Estudante faz um curativo no braço de um aluno, dor, espera, fome, o sinal toca uma vez
mais, termina o recreio, professores com os seus materiais voltam às suas turmas, alunos,
aos poucos, se deslocam para as suas respectivas salas...
E, assim, professores e alunos são guiados por uma linha que liga um ponto a outro:
de uma experiência da aula de Ciências para um filme de História, da discussão da aula de
História para o auditório do Teatro, da encenação de uma peça para mais uma aula de
Matemática, do exercício de Matemática para uma saída de campo. O espaço vai sendo
estriado, repartido como uma grade, onde as diversas áreas do conhecimento se encontram
representadas. É necessário que cada disciplina crie um meio, a fim de afastar as forças do
caos, fixe um ponto como centro. Além da demarcação do território, através de suas
particularidades, o tempo é, também, por elas fracionado: quatro períodos para Português,
mais quatro para Matemática, outros três para História, sem esquecer os de Geografia e de
Ciências e, assim por diante. O espaço é ocupado de um ponto a outro de acordo com os
movimentos que nele se produzem.
Mas, será essa trama composta somente por uma sucessão de normas, horários,
rotina e regularidades? Se assim for uma grande e eterna mesmice se instala. Como um
teatro clássico, onde se repete uma cena várias vezes, a fim de atingir uma semelhança
extrema ou equivalência perfeita. Então, ao caminhar pelo labirinto, vêem-se apenas coisas,
estados, um mundo estático. Cria-se um ponto de vista para ser reproduzido. Dá-se uma
forma ao que a escola produz. Regida pelo intelecto. Apartada de tudo que não possa ser
conhecido, identificado, dominado. É importante lembrar que as ações produzidas na escola
devem ser pautadas pela racionalidade e o equilíbrio, uma vez que a força de que dela flui
provém de Atena, deusa que nasce da cabeça de Zeus (Hamilton, 1999). Cabeça, a parte
mais elevada do corpo, integra a esfera do mundo superior, relaciona-se com o céu, com a
transcendência, com modelos... De modo que tudo o que a escola produz passa pelo
reconhecimento. Independentemente do dia, da hora, ou da época do ano, devem estar de
acordo com o modelo de escola, de professor e aluno. Estão submetidas a um plano
perfeito, ideal, que não pertence a esse mundo. E, assim, passa-se a pensar e a escrever,

75
principalmente, sobre a parte extensiva da produção escolar. Aquela que ocorre no tempo
de Chronos, que mostra o que é certo e o que é errado, a permitir que o produto da escola
possa ser medido, classificado, enfim, avaliado. Pois, é uma ameaça muito grande não
reconhecer o que deve ser reconhecido. Deixar de conhecer. Não representar o que deve ser
representado. Deixar de representar. Não ser capaz de encontrar a verdade. Formular
perguntas para as quais não se tem a resposta. Habitar um não lugar...
Uma vez mais os passos percorrem os corredores do labirinto. Novamente, o
movimento circular é refeito? Talvez sim, talvez não. Ou, quem sabe os dois? Sim e não.
Ao mesmo tempo. Ao contrário de Teseu, ninguém recebe auxílio de Ariadne, ou segue
algum fio de seda. Não se trata do labirinto construído por Dédalo para encerrar o
Minotauro. Muito menos os jovens que lá se encontram esperam ser devorados por um
monstro, apesar de tremem frente a uma prova de Matemática. Porém, ninguém sabe muito
bem o que pode acontecer quando se percorre os seus caminhos. Mesmo aqueles que
conduzem para mais uma reunião. Conhecido trajeto, incontáveis vezes trilhado no decorrer
das semanas. Do andar térreo basta caminhar até o fim do corredor, subir dois lances de
escada, seguir em linha reta por mais um corredor, passar por três portas e dobrar à direita.
E, a reunião? Qual rumo seguirá? O esperado? O de sempre? Seguirá uma linha reta entre a
produção e o produto da escola, entre a aprendizagem e os aprendizes.
Mais uma reunião, uma reunião a mais entre tantas de mais um ano letivo. É
importante deixar claro que, neste caso, o mais não somente indica acúmulo. Somam-se e
perdem-se horas, trabalho, força. Reuniões que reproduzem o movimento circular do
Ouroboros, aquele animal com o corpo flexível, a descrever um círculo largo a volta do
corpo e a abocanhar com os dentes a própria cauda. Ou, quem sabe, uma reunião
permanece de uma semana para outra? Os assuntos não são vencidos, eles ressoam, ecoam
pelos corredores, pelas salas, até em festas... Mesmo com a troca de lugares os alunos da
turma 71 seguem conversando, um grupo de alunos da turma 72 foi visto circulando pelo
pátio no horário da aula, há vários alunos da turma 71 que não estão assistindo às aulas de
laboratório, um aluno da turma 72 foi visto pulando o muro da escola... Ou, melhor, uma
reunião segue após a outra, ininterruptamente, de forma que parece sempre a mesma. A sala
é a mesma. A pauta é a mesma. Mudam os alunos? Ou, também, são sempre os mesmos?
Embora não tenha sido explicitado, cada professor possui pressupostos sobre o que é

76
aprender, o que é uma aula ideal, um bom aluno, os quais regem as suas ações neste
trimestre – os alunos vão realizar trabalhos de campo, escreverão relatórios, elaborarão
pesquisas, farão trabalhos individuais, além das provas. Enquanto, para outro – como
estamos estudando a Segunda Guerra Mundial, os alunos assistirão a dois documentários
sobre esse tema, além de elaborarem em grupo pesquisas a serem, posteriormente,
apresentadas aos colegas. Por enquanto, não pretendo aplicar provas. Já, para um terceiro
as provas são fundamentais, pretende aplicar várias no decorrer do trimestre, todas sem
consulta.
Porém, o traçado das linhas da reunião começa a se misturar quando se trata de
reconhecer e representar o que a escola produz. A capacidade de representar pressupõe uma
identidade num conceito, duas coisas são entendidas como idênticas somente se elas
coincidem num conceito idêntico (Deleuze, 1988). Ou seja, os professores passam horas e
mais horas sentados a fim de estabelecer a identidade entre a aprendizagem e os aprendizes.
Será que essa identidade realmente existe, ou ela é fabricada por uma vontade de recuperar
um mundo que existe lá fora, uma reflexão sem mediação entre um dentro e um fora? Um
legado platônico que entende que a produção escolar tem que ser reconhecida e
representada. A ilusão de que é possível representar o que a escolar produz gera a certeza
da medida exata, do controle. No entanto, não é nenhuma novidade, faz parte do
funcionamento da escola não funcionar bem... Nem todos os alunos foram ao trabalho de
campo, outros reprovaram nas avaliações, enquanto alguns não entregaram nenhum
trabalho, nem individual, ou mesmo de grupo. Nada naquele espaço coincide inteiramente,
porém tudo funciona ao mesmo tempo, nos hiatos, nas rupturas, nos enguiços, numa soma
que nunca integra as partes em um todo.
O coordenador da reunião ia começar a ler os nomes dos alunos de cada turma, a
fim de que cada professor falasse sobre o rendimento escolar de cada um. De repente, antes
de o primeiro nome ser lido, ouve-se a porta da sala de reuniões abrir e fechar. Alguém
entrou? Aparentemente, não. Como, também, ninguém foi visto circulando pelo corredor.
Mas, um ar gelado invade a sala, apesar de a janela estar fechada. Ao mesmo tempo, a
luminosidade da peça fica prejudicada. Há mais alguém na sala? É difícil esconder o
desconforto, o mal-estar, ninguém sabe muito bem o que pensar, nem o que dizer sobre
aquele que pode estar em aula e não estar, aparece e desaparece, faz alguns trabalhos e não

77
faz outros. Imiscui-se entre os demais, quer tornar-se imperceptível. Parece um aluno como
os outros, mas não é. Furta-se aos padrões, aos modelos. Não se deixa representar. Como é
possível não saber o que se passa com esse aluno? Há alguma patologia que justifique o seu
comportamento ou não? Como pode algo não ser representado? A impossibilidade de saber
do que se trata desconcerta. Um grande desconforto se instala... O frio e a escuridão
aumentam. Como é possível não ter respostas na ponta da língua sobre tudo, suportar o
silêncio do não saber, numa escola que se caracteriza pela sua produção?
No lugar do silêncio, no lugar do pensamento, para se restituir o encontro das
faculdades, facilmente, pode-se traçar uma linha dura. Aquela que tentará reconhecê-lo,
classificá-lo na categoria do desvio, da doença. O traçado desta linha pode dar origem a um
carimbo, um rótulo. E o risco que se corre é o de colocar o rótulo no aluno, passar a não
enxergá-lo nele mesmo e, sim de acordo com o nome que lhe foi dado. Será que isso
tornará tudo mais fácil? Será que assim todos respirarão aliviados? Afinal, uma categoria
foi encontrada para ele. A partir desse momento se saberá como trabalhar com esse aluno?
Ou, tão logo ele for enquadrado, as queixas de sempre voltarão? Direcionadas para aqueles
que não se deixam representar, confundem os sentidos, dificultam o reconhecimento?
Ainda com a visão prejudicada, envoltos pelo ar frio, vários integrantes da mesa
querem falar, eles têm algo a dizer sobre o aluno – simulacro. Aqueles que disfarçam,
desafiam os modelos produzidos pela escola, encerram uma dessemelhança interior. As
linhas da reunião se enrolam mais um pouco... Ah! Ele aparece na tua aula? Na minha não.
E, contigo? Ele entrega os trabalhos? É, comigo ele não quer falar, só escrever. Assim não
dá para entender nada, pois para mim é o oposto. De quem estamos falando? Do mesmo
aluno ou de um outro? Comigo ele não escreve nem uma linha. Pede até que escrevam
para ele. Mas, acompanha bem a aula. Além de adorar ler, devora o que cai em suas mãos.
Quando está disposto a participar faz boas perguntas. Não, comigo o maior problema são as
faltas, pois ele sabe a matéria. Mas, faz tempo que não o vejo. Não tenho o que me queixar
dele, pois na minha disciplina além dele ser assíduo, os seus desenhos são muito criativos.
A semelhança que se busca não é de uma percepção sensível, mas de uma semelhança
interna. Diz-se que dois alunos são semelhantes não quando existe entre eles uma
similitude aparente ou exterior, senão quando existe uma identidade entre as suas relações
internas (Deleuze, 2000). Nomeia-se um aluno na medida na medida em que se parece à

78
Idéia de aluno. Mas, o que dizer daqueles que não possuem nenhuma relação intrínseca a
um modelo ou fundamento? Desde muito tempo se quer acorrentá-los no fundo do mar,
uma vez que eles encerram uma perversão, um desvio essencial. Em absoluto eles são umas
cópias degradadas, pois são portadores de uma potência positiva ao negar tanto o modelo
como a sua produção. Mas, não importa o tamanho ou o peso das correntes ou o tempo que
se passe sentado em reuniões, pois eles sempre conseguem escapar, subir à superfície e
aparecer em mais uma reunião de Série.
E, se de tão confusos, de tão estarrecidos, todos permanecerem calados na reunião?
Olho em volta e não mais reconheço a sala, uma penumbra vermelha envolve a todos,
assim como cortinas pesadas e escuras cobrem as janelas. Não consigo mais distinguir
nenhum rosto, somente uma voz. Trata-se de uma voz perturbada, ansiosa, tem algo a dizer.
Será mais uma de suas aparições? O professor estava confuso, assombrado, com os sentidos
embaralhados. Nesse momento, um outro colega levanta-se em direção a um candelabro
para acender umas velas. Ele estava lá, tinha certeza que era ele. Apareceu no laboratório
de Ciências, durante uma experiência comum, na semana passada. No fundo da sala, num
lugar pouco iluminado... Sacudindo o seu corpo numa cadeira, com a sua mochila fechada
no chão, para frente e para trás, alheio a tudo. Não, ele não copiou nada. Não que ele não
soubesse escrever. Ele não queria escrever. Não queria deixar rastros. No entanto, era capaz
de fazer o relato da experiência e de explicar aos colegas o que se passou em aula. Depois
de certo tempo, após ter dado algumas instruções no quadro, foi falar com o aluno. Mas,
para a sua surpresa ele já não estava mais lá. Desapareceu, não sabe dizer como, sem deixar
nenhum trabalho, nenhum material, nenhum rastro.
Ao ouvir o relato sinto um calafrio percorrer a espinha. Sentimentos misturados se
apoderam de mim, enquanto procuro por um lugar para sentar. Partilho com os colegas o
desconforto de ser confundida. A angústia por não ter o que dizer. De não saber o que fazer
para me aproximar dele, quando todas as abordagens conhecidas falharam. Entrevistas?
Todas foram em vão. Como não assustá-lo? O que fazer para conhecê-lo? E, ao mesmo
tempo, preservar o seu mistério? Pois, sou atraída pelo simulacro – fantasma. Pela potência
que encerra ao se disfarçar em meio ao outros, de ser e não ser, de se encaixar e não se
encaixar nos padrões estabelecidos. Potência de abalar o que é dito nas reuniões
pedagógicas, as verdades sobre aprender, sobre as suas etapas, sobre a caracterização

79
psicológica da sua faixa etária. Potência positiva ao negar tanto o modelo de aluno como a
sua reprodução. Uma atração pelo que embaralha a visão, pelo impensado, pelo que
provoca o pensar, pelo que desafia o sentido único, reto e bom de uma aula, pelo que pede
para ser visto nele mesmo.
Quando, finalmente, encontro um lugar para sentar não reconheço os colegas. O que
houve? Não entendo mais nada. Olho em volta e percebo que outra reunião já teve início.
Onde foram os colegas? Saíram da sala? Sem que tivesse percebido? Sem ter me
manifestado? A sala é a mesma, a pauta é a mesma, os alunos são outros. As linhas de mais
uma reunião estão para serem traçadas. Como um show, a reunião não pode parar. Mas, o
abrir e fechar da porta? E a brisa gelada? E a falta de luminosidade? Será que ele
voltará a aparecer? Ele voltará a assombrar? Tanto melhor, mais uma oportunidade para
provocar um estranhamento, um mal-estar... Mal posso esperar por mais um dos seus
passeios pela escola, livre das correntes, entrando e saindo das salas, dos corredores, das
reuniões, a romper com a circularidade do labirinto escolar. Uma nova oportunidade de,
quem sabe, pensá-los, independentemente, dos padrões e modelos.

Referências bibliográficas
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988. (Trad. Luiz Orlandi,
Roberto Machado.)
_______. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2000. (Trad. Luiz Roberto S. Fortes.)
______. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988. (Trad. Claudia Sant’Anna Martins.)
______. A imagem-tempo. São Paulo: brasiliense, 2005. (Trad. Eloisa de Araujo Ribeiro.)
HAMILTON, Edith. Mitologia. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Trad. Jefferson Luiz
Camargo.)

80
BIOGRAFIAS (IM)POSSÍVEIS: O PROBLEMA DA ESCRITURA BIOGRÁFICA
EM OITO ATOS

Luciano Bedin da Costa

Este ensaio tem por objetivo problematizar o tema acerca da escritura biográfica,
partindo da concepção grega de βιογραφία (bíος - bíos, vida e γραφή – gráphein, escrever).
Neste sentido, busca novas perspectivas para os dois termos que a envolvem – bios e
gráphein – articulando-os ao pensamento de pesquisadores como Georges Gusdorf,
Dominique Viart, Roland Barthes, Nietzsche, dentre outros. A questão da biografia é
pensada para além da historiografia de vida, rompendo com a concepção dualista Realidade
X Ficção. A biografia enquanto expressão fidedigna de uma vida torna-se um objeto
impossível, invadida pelo campo dos mundos possíveis produzido pelas demandas do
imaginário.
I – De βιογραφία

A palavra Auto-Bio-Grafia é uma palavra feia, artificialmente médica, uma


palavra sem alma, desprovida de vibração histórica e de encantamento poético,
algo necessário aos profissionais da crítica dita literária. Mas esta palavra
antipática tem ao menos o mérito de dizer o que ela diz, com uma rara precisão.
GUSDORF, Auto-Bio-Graphie.

Não tendo pretensão maior do que ser um breve ensaio sobre o exercício biográfico,
este escrito se propõe a suscitar algumas reflexões aos estudiosos e interessados pelo tema.
Desta forma, assim como Georges Gusdorf (1991), procuraremos nos deter no sentido
grosseiro daquilo que costumeiramente é chamado de biografia. O problema talvez esteja
na palavra, nos limites e entraves de um nome. Dizer que algo se trata de uma escritura
biográfica é atribuir a este algo uma série de determinações, submetê-lo a um regime de
relações capaz de sustentar a palavra-nome a ele incorporado. Nomear é encarnar, atribuir
carne ao que antes era etéreo. O nome, neste sentido, acaba por ser uma compressão disto
que se volatiza. A biografia, dependendo do corpo assumido, pode não ser uma palavra
grosseira. O mérito de dizer o que ela diz. Tomaremos como nosso o argumento de Gusdorf
referido na citação inicial deste texto. Ficaremos com a secura do termo biografia, sabendo
que o deserto é o terreno propício daquilo que é nômade. Partiremos da biografia como

81
“escritura da vida”, de sua perspectiva grega – βιογραφία (bíος - bíos, vida e γραφή –
gráphein, escrever). No sentido corrente, espera-se que o narrador de uma biografia seja
exterior ao escrito biográfico, que ele se contente, ao menos teoricamente, em restituir, pela
escritura, a vida de um personagem geralmente célebre, com toda objetividade e
neutralidade possíveis. Gusdorf optou em permanecer fiel ao vocábulo medíocre. Nós, em
relação à biografia, também ficaremos. Entretanto, cabe-nos definir o que possam ser os
dois termos envolvidos no nosso grosseiro vocábulo.
II – De Bios
Para que possamos definir o que aqui chamaremos de bios, é preciso voltarmos ao
problema da encarnação. De certa forma, o fato de falarmos em bio-grafia leva-nos
inexoravelmente à relação Vida X Escrita, de bios tomada a partir de uma condição
escriturária. Em outras palavras, trata-se de uma vida que ganha corpo pelo ato singular de
escritura, que se vê intrinsecamente ligada aos movimentos de um Texto. Quando falamos
em Texto (assim grafado com inicial maiúscula), estamos nos refererindo à concepção
barthesiana de Texto, como um gesto eminentemente coletivo, sempre escrito e lido a
várias mãos. Para Roland Barthes (2004; 2006) o Texto é aquilo que põe em xeque os
ditames daquilo que se entende por uma obra literária. Enquanto esta guarda consigo uma
posição desenvolvimentista e estrutural acerca do processo literário – a obra de um dito
autor seria a síntese de sua carreira literária, o conjunto de suas produções, dotada de
determinação e sentido históricos – o Texto seria isso que faz essa mesma obra correr, isso
que é desagregado, isso que se só existe porque não pertence a um só domínio ou gênero.
Em núpcias com o Texto, bios passa a ser essa vida que se engendra, menos pela monotonia
de um sujeito consciente que busca exprimir sua interioridade ou a verdade sobre a
interioridade de um outro, e mais por “aquilo que a assembléia viva de leitores e escritores
lhe solicita”, conforme bem assinala Roland Barthes em Jovens Pesquisadores (2004). Será
por esta solicitação de escritura que bios será afirmada – vida trans-individual, que
comporta uma estilhaçada constelação de personagens na qual o escritor é mais um dentre
os tantos autores e escritores que habitam os domínios do Texto. Em outras palavras, bios é
este gesto coletivo engendrado pelo próprio ator da escritura – convencionalmente chamado
de biógrafo – do qual ele mesmo faz parte. Sendo seu objeto o Texto, é a partir dele que
uma bio-grafia é escrita, e a ele que esta se remeterá. Sempre ao Texto, e não a um sujeito

82
costumeiramente posto na função de receptor. Bios como coletividade dispersa, multidão de
vidas que povoa os domínios de um Texto. Em Ensaios (1965), Montaigne parece
descrever aquilo que aqui procuramos chamar de bios: “ninguém projeta plenamente sua
vida; nós só a deliberamos em parcelas (...) somos todos pedaços e de um contexto tão
informe e diverso que cada peça e cada momento faz seu próprio jogo”. Bios é esta vida
fragmentária, caleidoscópica, submetida a regimes dos mais diversos e imprevisíveis.
Diante dessa perspectiva acionada por tão poucas certezas, Viart & Vercier (2008, p.2008)
acabam por ver um duplo movimento por parte da crítica literária: de uma lado estariam os
escritores ligados às biografias originais, clássicas, que não toleram a chamada “mentira
biográfica”; de outro estariam aqueles que assumem um aspecto “literário”, enveredando-se
por uma certa “estetização deformante”. A questão posta pelos dois autores acima é a de
como legitimar um gênero que se debruça sobre uma existência que é forçosamente atirada
ao acaso, sobre uma vida que é por si só proliferante, caótica e incerta? Ora, nesta
pulverização de vidas e fragmentos de existências, biógrafo, biografado e leitor são postos
em relação de contágio, assombrados pelo espectro de tantos outros autores e personagens
que reinvindicam o direito de gozar com os prazeres da carne no Texto. Bios é essa scripto-
esquizo-encarnação, acionada por uma maquinaria coletiva desejante. A grafia de vida
partiria de um desejo, de um prazer de ler e de escrever ao modo barthesiano, de um desejo
de interrogar o passado – não para imitá-lo ou reconstituí-lo – mas para que se possa
“revitalizar certas curiosidades deixadas de lado” (Viart & Vercier, 2008, p.20). Em outras
palavras, a biografia seria o ato de escritura que se coloca a partir de um fazer com: sempre
com um passado, com os modelos, com as vidas vividas, com as vidas pregressas e,
sobretudo, com as vidas vindouras. Bios é, neste sentido, essa estranha com-vivência.
III – De Gráphein
Tudo se passa por um Eu escrevo, pela mão daquele que escreve, aponta-nos
Gusdorf (1991). Ao contrário do que possa parecer, segundo o autor, a figura do hommo
scriptor seria primeira, precedente ao virtual imaginário que povoa o exercício de produção
de uma biografia. A biografia – como qualquer outro gênero de escrita – mostra-se como
um ato de escritura, um gesto escriturário. Em outras palavras, Gusdorf nos diz que a
escritura seria antes uma arte manual. A arte da escrita não começaria com a composição de
um texto, com as regras que concernem ao bom uso da redação e organização de uma obra

83
sintática-gramatical qualquer. A arte de escrever seria primeiramente uma técnica do corpo.
Mesmo parecendo ser somente uma técnica da mão, a escritura teria a potência de colocar
em prontidão toda uma postura do corpo. Isto aconteceria também com a figura do escultor,
na medida em que opera, com os seus meios particulares, sobre matérias duras. O pintor
experimentaria o poder latente da cor sobre uma superfície plana. Entretanto, o papel da
matéria e do meio parece não despertar grande importância na análise da produção literária.
O escritor, neste sentido, lidaria apenas com os desígnios de sua maquinaria intelectual e
imaginativa, fato que reforça a concepção ainda corrente de que tratar-se-ia de uma
entidade suprema, imersa aos cânones de uma metafísica escriturária. Entretanto, ao
trazermos para a análise literária a necessidade da postura de escrita, da condição
presencial daquele se põe a escrever, ao escritor atribuímos um outro estatuto. O escritor
passa a ser essa presença recusada, colocando-se como necessidade, ao lado de seu texto e
dos textos que correm a partir de sua escritura. A vida de uma biografia terá algo dessa vida
que corre a partir deste que a escreve. Escrever sobre a vida de alguém é inscrever-se com a
vida deste alguém.
IV – De Stilus
No Egito antigo, stilus era uma espécie de pinça escriturária, um instrumento
utilizado para traçar caracteres sobre a cera ou argila seca, antes do uso do pergaminho ou
mesmo do papirus. A raiz Sti – também encontrada na palavra estímulo, evoca a ação de
picar ou furar. O stilus, neste sentido, seria essa marca, esse atravessamento de uma
superfície provocado por uma superfície pontiaguda. O stilus comportaria a ação e o
registro, um duplo movimento estético e sobretudo violento. Uma violência produzida na
relação entre superficies, despertada somente na medida em que há encontro. Partindo-se da
perspectiva de que o stilus é encontro, seria interessante perguntarmos pelo mesmo na
análise daquilo que estamos chamando de biografia. Ora, o ato de trazermos a mão daquele
que escreve para o seu Texto, ao reconhecermos o seu poder de atravessamento na estrutura
de seu escrito biográfico, parece-nos já ser um gesto estilístico. Em outras palavras, trata-se
da vida biografada sendo violentada pela vida que se afirma sempre que há o contato da
caneta com o papel, do toque do dedos sobre o teclado do computador. O stilus biográfico
apresenta-se como assinatura, uma espécie de signature colletive que não se restringe a um
regime de autoria, que registra um estado presente sobre a vida biografada, uma espécie de

84
nome timbrando um outro nome, e assim por diante. O stilus será esta assinatura borrada
sobre a qual é inútil reinvindicar propriedade exclusiva. A mão do escritor está ali, assim
como os dedos de seu biografado e os dedos dos outros tantos que foram lidos e que se
colocarão a lê-lo. Em outras palavras, bios é este estado de permanente corrimento, isso que
corre na medida em que há stilus, sempre que um texto é perfurado pela assembléia de
dedos que o toma por carícia.
V – De Ars Moriendi
“Eu não possuo outra coisa senão minha morte, minha experiência de morte, para
dizer minha vida (...) é preciso que eu fabrique uma vida com toda esta morte”, escreve
Jorge Semprun (1994, p.215). em seu tanatográfico livro L’Écriture ou la vie. De toda
forma, a obra de qualquer escritor é um curso contra o relógio, um procedimento engajado
à morte, um combate na solidão do ato de escritura. “A decisão de fazer uma obra de
escritura se situa nos confins da escatologia, como um desafio às ameaças de morte que dão
sentido à condição humana” (Gusdorf, 1991, p.21). A escritura, mesmo tanatográfica, é um
testemunho de uma existência, de um encontro de vidas que não se encerra com a morte
propriamente dita. Mesmo mortos – biógrafo e biografado – a biografia provavelmente
subsistirá, atingindo outras superficies, perfurando outros corações, alimentando a
composição de outras tantas leituras e biografias. Tomando partido desta posição, François
Dosse (2005) se refere à biografia como uma espécie de máquina de morte, na medida em
que se deve aceitar que há lacunas e buracos em qualquer documentação – mesmo nas ditas
historicamente comprovadas. O certo é que a verdade histórica de um documento comporta
tais espaços mortuários, sobre os quais não se consegue encontrar nada mais concreto do
que um apelo ao imaginário. Será, pois, deste apelo à fabulação que a escritura biográfica
retirará as enzimas criativas para escapar da lógica meramente historiográfica. A máquina
de morte apontada por François Dosse se aproxima daquilo que, em Images de l'homme
devant la mort, Philipe Ariès (1983) chama de Ars Moriendi, uma forma de se familiarizar
com a morte, recriando-a continuamente pela escritura; uma maneira de pegar a flecha
lançada por um outro – repleta de lacunas e espaços sombrios – e jogá-la ao nosso modo,
assim como faz o Zaratustra de Nietzsche.
VI – De Laudatio

85
De acordo com Gouiffès (2002, p.15), a biografia teria o poder de ser envolvida por
uma espécie de áurea mágica, como se a linguagem fosse capaz de recriar uma vida e de
perpetuá-la, mantendo-se sempre a uma certa distância. Segundo a autora, esta tomada de
distância frente à morte constitui, em parte, o gênero biográfico. Fazendo uma espécie de
genealogia da questão biográfica, Gouiffès acaba se remetendo ao laudatio, um tipo de
elogio fúnebre da Antiguidade, pronunciado na ocasião do enterro de algum grande
homem, no objetivo de perpetuar sua lembrança, de restituir sua vida na memória dos
homens e de conferir-lhe uma espécie de apoteose. De um modo geral, o laudatio iniciava
pela evocação da historiografia do defunto, pelo desenrolar de sua vida como homem
público, pelos beneficios de sua vida privada, encerrando-se, naturalmente, pela
enumeração de suas qualidades e virtudes. Graças a este elogio biográfico, a vida do
defunto tornava-se um modelo aos olhos dos seus contemporâneos, pronta para ser
perpetuada às gerações vindouras. Este modelo biográfico levantado pelo laudatio foi
responsável, segundo a autora, pelo surgimento das hagiografias, das ditas biografias
religiosas, escrituras que se propunham a relatar a vida de santos e de personagens
litúrgicos, com o intuito de fortalecer a crença em suas proposições morais e dogmáticas.
Desta maneira, encontramos tanto no laudatio (biografia pagã) como na hagiografia
(biografia religiosa), uma concepção de bios como receptáculo de valores, tão mais
importante na medida em que consegue comportar e sintetizar valores maiores que o
sustentem e que teriam a capacidade de perpetuá-lo. Diante dessa perspectiva, cabe-nos
sempre perguntar pelos valores que estão envolvidos em nossas biografias, se tais valores
vão ao encontro daquilo que chamamos de bios, se sustentam essa vida tomada como
proliferação e invenção. Entretanto, se há alguma função de receptáculo na escritura
biográfica, será em relação àquilo que toma partido da vida proliferante, e não à fria
tanatografia que vela defuntos e que faz destes verdadeiros personagens ad-infinitum.
VII– De Pari Biographique
Quem biografa quem? De acordo com Oliver (2001, p.96), esta pergunta tem o
poder de sintetizar o grande desafio da escritura biográfica, na medida em que questiona o
papel dos seus dois principais personagens: biógrafo e biografado. Perguntar quem biografa
quem? é adentrar ao universo literário particular que envolve o ato de escrever uma vida, ao
que François Dosse (2005) mesmo chama de aposta biográfica. De toda forma, mesmo que

86
não estejamos falando de auto-biografia, o que parece ser colocado em jogo nesta relação é
o problema do Eu. O desafio biográfico é este intercambiamento de Eus, que por vezes se
sobrepõem, que se borram, que parecem a todo custo produzir variações no campo
biográfico propriamente dito. A pergunta quem biografa quem? traz para o plano de análise
uma espécie de espelhamento de Eus, de um Eu biográfico como depositário de todos os
outros Eus que reivindicam vida no corpo do texto – além da vida do personagem
biografado, encontramos tantas outras vidas, assembléias de personagens que atuam no
corpo do texto, que o alimentam e que por vezes o assombram; isto sem falar no biógrafo
que, com sua mão, participa desse banquete de espelhamento biográfico. Sobre esta
questão, Michel Beaujour (1980) diz que se trata de uma espécie de espelho de tinta onde
vidas são borradas e que por vezes aparecem no texto com extrema lucidez e transparência.
De toda forma, parece-nos que este espelhamento e sobreposição de Eus acaba por definir
novas práticas de escritura, complexificando os domínios estritos dos gêneros literários.
Trata-se de novas filiações literárias, de mutações formais que se engendram na relação
com o componente biográfico. “Frente ao mundo que se mundializa, a literatura constitui
um real desviante, do qual suas perturbações contaminam romances, escritos, teatro e
poesia”, escrevem Dominique Viart e Bruno Vercier (2008, p.5). Segundo estes dois
autores, esta contaminação cria margens para o que a própria noção de biografia se dilua,
fato que se verifica mais facilmente na literatura contemporânea. Ao invés de fazerem uso
de terminologias pré-determinadas, os escritores preferem inventar seus próprios termos. É
o caso de Serge Doubrovsky, com sua Autoficção; da Automitobiografia de Claude Louis-
Combet; da Otobiografia de Derrida; do Biografema de Roland Barthes; do Curriculum
Vitae de Michel Butor; da Prosa de Memória de Jacques Roubaud; da Novela
Autobiográfica de Alain Robbe-Grillet; da Egoliteratura de Philippe Forest, dentre outras
tantas variações literárias. Se anteriormente a biografia ocupava um lugar confortável no
que tangia os seus domínios – um escrito que tinha por característica retratar a vida de um
personagem real, normalmente em 3ª pessoa – hoje ela parece transbordar, constituindo um
campo biográfico em permanente mutação. Se anteriormente o contrato de leitura de uma
biografia era do tipo referencial – líamos uma biografia a partir de um referente real e
histórico, na certeza de que era a expressão fidedigna de uma vida qualquer – hoje tais
escritos exigem do seu leitor um pacto outro, como bem afirma Philippe Lejeune (1996).

87
Neste jogo no qual os Eus se misturam, em que outras vozes são colocadas num mesmo
plano de escritura, a biografia necessariamente terá que lidar com o seu demônio de
outrora, tendo que dividir seu hálito com aquilo que chamamos de ficção. É quando, ao se
deparar com a dimensão falível da memória e da historiografia, a vida faz um apelo ao
imaginário. A vida, se não fora de toda forma plenamente vivida por alguém em algum
lugar do passado, terá ela de ser inventada. Em Le miroir qui revient, Alain Robbe-Grillet
(1984) parece dizer desta necessidade de fabulação, afirmando que a ficção romanesca
passa a ser o devir-mundo de toda vida vivida. A biografia, esta sobre a qual nos referimos,
pactua ao certo com tal perspectiva.
VIII – De Ethos
A título de encerramento deste breve ensaio, julgamos importante afirmar que isto
que procuramos chamar de biografia comporta uma ética e um engajamento. Falamos de
uma literatura biográfica engajada sobre o fio da ficção, que não deixa de falar de uma
verdade, embora seja a verdade do Texto propriamente dito, não somente aquela regrada
aos apelos de uma historiografia de vida. A biografia aqui levantada pactua com aquilo que
Viart & Vercier (2008, p.31) apontam acerca do procedimento literário contemporâneo,
quando dizem que “a verdade de cada indivíduo deve ser inventada, e ela (a verdade)
inventa, cada vez, uma nova escritura”. O exercício biográfico apresentado ao longo deste
ensaio é aquele que carrega consigo um procedimento ético, que cria para si uma ética, uma
postura ética de modo a escapar dos ditames morais e amarras de um real desmilinguido.
Nosso grosseiro termo biografia comporta tantas variações quanto forem as demandas das
vidas sobre as quais ele se debruça e que igualmente se debruçam sobre ele. Se há um
“dever” estendido sob o fio de nossa biografia é aquele preconizado pela filosofia-destino
de Nietzsche – o de não se fazer da vida um triste depositário de valores e de,
principalmente, tornar-se aquilo que se é.

Referências bibliográficas
ARIÈS, Philippe. Images de l'homme devant la mort. Paris : Seuil, 1983.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2006. (Trad. J. Guinsburg.)
_______.O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Trad. Mario Laranjeira.)

88
BEAUJOUR, Michel. Miroirs d’encre : rhetorique de l’autoportrait. Paris: Ed. du
Seuil,1980.
DOSSE, François. Le pari biographique : écrire une vie. Paris: Éd. la Découverte, 2005.
GOUIFFÈS, Nathalie. Le biographique – les raports entre réalité vécue, écriture et fiction ;
les diverses formes du biographique. Paris: Éditions Magnard, 2002.
GUSDORF, Georges. Auto-bio-graphie. Lignes de vie 2. Paris: Éditions Odile Jacob, 1991.
LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Éditions du Seuil, 1996.
MONTAIGNE, Michel. Les Essais – Tome I. Paris: Gallimard et Librarie Générale
Française, 1965.
OLIVIER, Annie. Le biographique. Paris: Hatier, 2001.
ROBBE-GRILLET, Alain. Le miroir qui revient. Paris: Ed. de Minuit, 1984 .
SEMPRUN, Jorge. L’Écriture ou la vie. Paris: Gallimard, 1994.
VIART, Dominique & VERCIER, Bruno. La littérature française au présent (héritage,
modernité, mutations). Paris: Éditions Bordas, 2008.
VIART, Dominique. Vies minuscules de Pierre Michon. Paris: Gallimard, 2004.

89
NOTAS DE LEITURA PARA UM PESTESELLER PEDAGÓGICO

Marcos da Rocha Oliveira

NOTA PLAGIOTRÓPICA I
Necas de épicas. As pedras de vidas. E em preparação. E assim, as descoordenadas,
uma “babelbarroca” escolar. Da evidência à imanência, na pesquisescritura. Trata-se
da fantasiação de Notas de Leitura para um “pesteseller” em Educação (uma
homenagem à inteligência do leitor – elogio mallarmaico – e a alguns “nigrolivros”,
sobremodo Galáxias – “um horrídeodigesto de leitura apfelstúrdia para vagamundos
e gatopingados”). Tal fantasia implica a invenção de antepassados que passam a
praticar uma pedagogia escritural, e estes não coincidem com uma tradição de
escrevência, que se dedica a exegese de seus antepassados, que se debruça sobre si
ou sobre uma suposta cena educacional para facilitá-la, explicá-la, desbabelizá-la
(num sentido haroldiano). Estas Notas de Leitura configuram um tempespaço
escritural, donde sua impossibilidade de ensinar algo sobre A Educação, sobre A
Última Emergência, sobre A Realidade Escolar, sobre A Escrita Acadêmica, “pois
não se trata aqui de um livro-rosa para almicândidas e demidonzelas ohfélias nem
de um best-seller fimfeliz”. A ficção como fundação, pode-se dizer, é a variação
contínua de sua concreção, devolvida sempre à leitura. Tal postura crítico-inventiva
não facilita o texto, mas requer do leitor (o leitor barthesiano, aquele que escreve o
texto lido) a afirmação de uma pedagogia praticada na própria escritura, de modo
que cada Nota de Leitura prolongue a fantasiação de um pesteseller, em preparação,
sem “acabarcomeçar”. Escrito, assim, por um leitor que afirma, a cada linha, que “se
você quer o fácil eu requeiro o difícil e se o fácil te é grácil o difícil é arisco e se
você quer o visto eu prefiro o imprevisto e onde o fácil é teu álibi o difícil é meu
risco”.
NOTA DE LEITURA I: A ADVERTÊNCIA DO SENHOR EDUCADOR (S.E.)
“Trata-se dos fatos, da forma grosseira dos episódios. Fantasia fatuográfica. 13½
episódios: pois era necessário escolher um número de episódios, poderia ser um
número qualquer? ou escrever sem alguma regulação e contá-los após isso? Não,

90
trata-se, também, da fantasia de criação de uma estrutura – precisa, necessária.
Então: Joyce fez ¾ dos episódios da odisséia = o texto com ¾ dos episódios do
Ulisses joyciano (a graça seria a de fazer meio episódio, o “Inventário Escolhar”).
Odisséia: 24. Ulisses: 18. Um Pesteseller: 13½. Torto. Como não poderia deixar de
ser. Seguem as anotações – para oficina, o trabalho no texto – há grande despudor
ao exibi-las, são anotações de certa fantasia racional (bensiana).”
NOTA DE LEITURA II: E SAIU NA IMPRENSA
“O Senhor Educador”, mais um texto da série “Biografemática do homo
quotidianus”. Tal coleção pratica a Escrita de Vida implicando-a numa não-relação
com a já triste metodologia de pesquisa Histórias de Vida – maltratada pela
estereotipia da escrita em Educação, pelo pesadume do sentido. O cotidiano lido
com Maurice Blanchot, James Joyce, Haroldo de Campos, encontra as condições
operatórias para a implicação da noção de biografema, de Roland Barthes. Este
cenário, tempespaço de escrileitura, é posto à prova na composição fragmentária de
um personagem que dá movimento as qualidades fantasmáticas do homo
quotidianus: “O Senhor Educador” mostra, em pormenores exacerbados e traços
recolhidos de um amplo inventário sócio-cultural – uma literatura necessária, uma
Educação amada – a insignificância, a vida fugidia, a abertura, o desfazimento
operado por sua escritura nos Estudos do Cotidiano e nas narrativas de ênfase
biográfica e autobiográfica. “O Senhor Educador” faz, a um só tempo, uma extensa
crítica educacional e uma intensa fantasiação de Vita Nova.
NOTA DE LEITURA III: A ATIVIDADE ESTRUTURALISTA
Rabiscado: “Um Pesteseller, com três eixos. Sendo: dois verticais e um horizontal.
Dos verticais: 1) Poemepsódio: trata-se de... Folhas pares; 2) Topoemas: nome
roubado de Octavio Paz, escritura galática, pedagodelia pneumática... Folhas
ímpares. Do horizontal: 1) Um volume acompanhado não de uma fortuna crítica,
mas de sua ninharia.” < Os eixos dizem respeito ao volume de um Pesteseller, sua
vida útil – enquanto objeto >.
NOTA DE LEITURA IV: UM TEXTO INICIANTE
Episódio 1 – ESPIRRO: Enquanto glosa sua fala, mas falando para o quadro
“nerde”, “vergro”, o S.E. está em outra – o pensamento na rua, longe daqueles

91
corpos, longe da escola. O pó-de-giz entra em sua narina e ele espirra versos verdes,
catarro no quadro, as crianças riem, o barulho é ensurdecedor, ele fixa o olhar no
quadro, no ranho escorrendo, e o próprio ranho pode disparar uma cena (daquelas
“cenáforo”: exemplo pode ser o verde da meia calça com a brancura da perna da
pesquisadora que falava sobre a postura das pernas – Joyce usou isso em Ulisses,
tremendo roubador...). Cria-se uma existência anterior ao episódio. O episódio
irrompe quando o texto já está ali (lembrar a técnica de suspense, dar traços do S.E.
que serão repetidos. < Este episódio termina com a sineta/sirene: termina 10h,
horário do recreio. > “As meias dela estão soltas acima dos tornozelos. Eu odeio
isso: de tão mau gosto. Aqueles seres literários etéreos são eles todos. Sonhadores,
sombrios, simbolistas. Estetas eles são. Eu não ficaria surpreso que fosse esse tipo
de alimentação você sabe que produzisse essa onda de cérebros de veia poética”
(Ulisses, p.203).
NOTA DE LEITURA V: A FALA COTIDIANA
Episódio 2 – COMENTÁRIO: Um colega seu (Senhor Comentador, outro da série
homo quotidianus) o chama, retirando-o de sua dispersão frente ao quadro (fundo
“vergro”). Ele demora para entender mas entra no assunto. Banalidades. Caderno de
chamadas < Aqui o Senhor Educador faz uma lista dos nomes de todas as pessoas
que conhece o nome inteiro: escolher um número: 365, 31, nomes, múltiplos de 13
>. O poemepisódio, indexador, deve ser a síntese do episódio e ligar-se, de alguma
forma, ao outro, de tal maneira que seja possível ler todos episódios apenas por seus
quase-fatos, pelos 13 poemetos. Faz a lista de nomes enquanto não ouve (elude) os
comentários do colega – atravessando o pátio, sobe as escadas, entra na sala dos
professores. < Ao mesmo tempo que um poema é a contração sintática, diverge do
movimento prosaico, narrativo; porém, os poemepisódios são justamente prosaicos,
pois a contração que operam é a de sinalização, engôdo, de fatos narrativos – as
folhas ímpares, tentam sua prosopoesia ao enfatizar a microartesania e a elusão do
sentido: claro, ambas as páginas (ímpares e pares) tencionam esta ênfase, porém
suas funções de predominância devem ficar marcadas. >
NOTA DE LEITURA VI: O CATÁLOGO ALIMENTAR

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Episódio 3 – SALA DOS PROFESSORES: Escaninhos, comércio. Aqui ele faz um
inventário de biografemas dos educadores. Plenária para manifestação no palácio. O
inventário pode ser feito em forma de tabela literária, sem linhas, marcadas por um
som, no mesmo formato dos escaninhos, uma tabela mimética, que mimetiza os
escaninhos e os traços duros (estereotipados) dos educadores. (Enquanto rola a
reunião, é isso que o S.E. escreve, fingindo que anota considerações sobre o
assunto, tão importante e urgente, que tratam). Os Professores terminam a reunião
11h47min. E vão almoçar no Eco-restaurante-descolado. O S.E. Prefere salsichas e
vai até o cachorro quente – sozinho.
NOTA DE LEITURA VII: SEM CHEIRO, COM CHEIRO
Episódio 4 – ALMOÇO: Cachorro quente na towner – praça. As pombas. Os
homens da rua. A praça. As velhas alimentando as pombas e as pessoas catando as
merdas dos cachorrinhos. A praça podre. Milhos e velhos e mijos. Pode ocorrer um
vômito. Restalhos. Pombas: o bico escrito sempre com pequenas palavras, pequenas
junções: o máximo de contração, mas neste caso tentando um efetivo reducionismo.
Catar merda-de-ração. Os restos de gente. As pombas criam dentes, roem ossos,
“isso <o texto> é o demo!”: envergadura satânica. <“Por exemplo um daqueles
policiais transpirando ensopado irlandês de carne de carneiro em sua camisa você
não poderia espremer nenhuma linha poética dele.” (Ulisses, p.203).> O Senhor
Educador come salsichas. <“Stephen Dedalus, professor e autor” (Ulisses, p.785) >.
O Senhor Educador Come Salsichas.
NOTA DE LEITURA VIII: A GRAMÁTICA BARBUDA
Episódio 5 – MANIFESTAÇÃO NO PALÁCIO: Usar verbos no imperativo,
gramática barbuda, dura; iniciar uma tipologia do Senhor Revolucionário, mais um
da série homo quotidianus (não será desenvolvido, logo apanhará). É interrompido
pela polícia (com as mesmas palavras de ordem: marcar o imperativo do
manifestante e da polícia). Sinetas/sirenes do receio (fazer melopéia). 13H31min.
(Dos gritos, das palavras de ordem.)
NOTA DE LEITURA IX: O CASSETETE LÚDICO
Episódio 6 – APANHAR DA POLÍCIA: As botinas, as pedras do calçamento
histórico-retrô, a linha reta de cassetetes e paus de bandeiras em contraste com as

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volutas da fachada do palácio (sirene). Apanhar da polícia às 15h13min. No
“Percurso Textual Sumário”, localizado no eixo horizontal de Um Pesteseller, após
“À Guisa de Guisado: Como Ler Um Percurso Textual Sumário”, mais
precisamente na linha 12 da coluna da direita, lê-se a expressão exata da cena:
“cacettes lúdicos”.
NOTA DE LEITURA X: E NÃO CONVENCE
Episódio 7 – DEAMBULAR: Depois de apanhar da polícia, vaga pelas ruelas do
centro histórico indo para lugar nenhum. Contração. Dar a entender que é muito
tempo (em Ulisses um suspiro dura quatro páginas). Tenso. Mas irão se passar
poucos minutos (H.C.E. de FW; o suspeito, Blanchot). Foge da polícia (aprende
com os cacetes lúdicos), perde as consistência barbuda-travestida das palavras de
ordem. O Homem a Caminho Está. <O Episódio 7 carece de um nome preciso,
“Deambular” não convence.>
NOTA DE LEITURA XI: O COMÉRCIO INTELECTUAL
Episódio 8 – SEBO/CAFÉ: Entra num sebo-café (15h27), num prédio antigo,
casarão de 1922, toma um expresso, água da torneira, sem biscoito, um analfabeto é
o dono do sebo e avalia livros para compra e venda. Combinações: sebo e café.
Livros mal lavados, traças no café. Dois velhos conversam banalidades. Fica triste.
Pesa. Bengala e chapéu. A fuga é disparada pela luz que entra, colorida, laranjazul,
pelo vitrô de uma das janelas (ver o tipo de janela para o ano do prédio) e mostra o
pó que flutua. Ele paga e sai. Guiando-se pelas janelas. Pó. < Adicionar: aqui o S.E.
descarta os livros de Certeau, Augé, Lefebvre, e cata os seguintes livros (que troca
pelos descartados mais três moedas – “um grande negócio!”: O homem sem
qualidades, M. S. de João Miramar, Serafim Ponte Grande. Nas “Estantes
Bibliográficas Comentadas”, último sítio de Um Pesteseller, aparece a referência ao
Episódio 8 – no texto do episódio não é necessário a referência clara aos nomes dos
livros: na “E.B.C”, tais livros podem ser catalogados como: a) livros descartados; b)
livros necessários; c)livros catados... Sobre bengala, ver as fotos encartadas em
“Giacomo Joyce”, de James. “Toque de leve com dois dedos indicadores.
Experiência de Aristóteles. Um ou dois? Necessidade é aquilo em virtude do qual é

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impossível que algo possa ser diferente. Portanto, um chapéu é um chapéu”
(Ulisses, p.233).
NOTA DE LEITURA XII: A JANELA.
Episódio 9 – DAS JANELAS. Ligação com próximo episódio: o S. E. Sai do café
(15h58) guiando-se pelas janelas dos prédios antigos (usar os tipos/descrições de
janelas catalogados na Biblioteca de Arquitetura). Nas janelas. A janela de Gilles. A
janela e a idioritmia de Roland Barthes. E a janela da “rua da parede”. Olhando para
cima, o S.E. tropeça num ambulante (boa figura: Nação Zumbi), é aparado por
ciganas (eis a ligação), tumulto, pequeno furto (do troco do café) que só será
percebido noutro episódio (quando ele se perde, quando toma o ônibus e tem que
descer e ir caminhando pelas ruas escuras – noite, Episódio 13 – e encontra as
garotas “Langorosas haurindo esse mal de ser dois”, tridução de Décio Pignatari
para L’apprès-midi d’um fauno, Mallarmé).
NOTA DE LEITURA XIII: UMA METAMORFOSE – AMBULANTES CIGANAS POMBAS
Episódio 10 – DOS DA RUA: (16h34) Ambulantes, mais pombas, fala onírico-
mefistotélica das ciganas – a hora da cigana e a hora do psicanalista: leitores de
linhas, ambos pegam signos do corpo e contam, criam uma história para seus
pequenos furtos.
NOTA DE LEITURA XIV: OS SEM-NARINAS
Episódio 11 – LATTES MORALIA MORDDES: Decide voltar para a escola (sua
escola – um Nota-CAPES 5 ou 6). Faz o trajeto. Rua arborizada. No campus: mais
Senhor Comentador. Comenta a manifestação. 17h02min. Posturas. Laboratório de
informática. Produzir. Atendentes de telemarketing pedagógico: boa figura:
responde à demanda social. Babaquice. Contabilizável. Pernas cruzadas.
NOTA DE LEITURA XV: A NÉVOA-NADA
Episódio 12 – AINDA SEM NOME: 18h06, assiste a uma Mesa, um dos caras é
estrangeiro. A pronúncia do nome. A pronúncia do nome do homem que é tema da
Mesa. Como inventar a pronúncia certa. Todos tentando a pronúncia certa. As
canetas, os detalhes, as anotações, as posturas, as pernas cruzadas. As pernas
fascinam. < Há nos originais centenas de desenhos rudimentares que denotam um
extenso estudo dos ângulos estabelecidos pelas pernas de diversos intelectuais. >

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Criar alguma coisa aqui: alguma coisa que o disperse, que o faça desaperceber-se,
até sair sem precisar abrir a porta, quase que como soprado – sempre inapercebido:
o S.E. monta seu corpo com pequenos traços catados, sua presença é sempre incerta,
homem-pó (Haroldo de Campos: “homemmoendahomemmoagem”).
NOTA DE LEITURA XVI: A ZONA BRANCA.
Episódio 13 – TANATOGRAFIA: 23h43min. Boca que muito fazia fede. Ovo rosa
servido na unha. Dedo de Sírias. Agora param os horários. Quase que como uma
aliança. Os cult (“cuhlde cravos”), os papinhos, o tipinho, os jovens doutores,
cabelos picotados, unhas, brecholentas, jovens senis: os signos fáceis de uma
vanguardabutox. Pras favas e vai-se (veja: o S.E. sempre sem falar com ninguém,
quase sempre sem falar com ninguém). O S.E. é quase cenário também. E os traços
que ele destaca são os que o fazem: ele também é brecholento. Já quase só. Segue a
rua até o fim para pegar o táxi trem ônibus até sua casa. Apalpa o bolso certo onde
fica a grana cartão passagem. < “com a pretensão de se organizar, o Senhor
Educador sempre, já com seu pijama de listras azuis, arruma seus pertences para a
partida do dia seguinte. Seria a noite um breve fechar d'olhos? Ao acordar tudo
como antes: os objetos de uso certo ao alcance da mão direita; os objetos de uso
certo postos com a mão direita no bolso direito, frontal, da calça de frisos. Os
objetos que não podem ser misturados ao alcance da mão esquerda; os objetos que
não podem ser misturados postos com a mão esquerda no bolso esquerdo, frontal,
da calça de frisos. Mas os dias quentes sempre insistem, bem como bolsos que, sem
nenhum motivo aparente, possuem furos em seu fundo. Como, também, meias
cinzas que sempre insistem em habitar suas gavetas” >. As ciganas o roubaram! Pro
inferno, se ele as encontrasse... terá de ir caminhando. As ninfas/putas. Joycianas
<conforme a série de poemas que vão do Joycianas I ao Joycianas VIII>. Tridução.
Barba Cabelo Bigode. Zona perto do cais. Indeterminação. Fina névoa clara. Quase
shem. Um labirinto até chegar onde. Chega ainda indo. Ele está na zona branca:
tanto pode ser a casa quanto a perdição total (ele criando sua morada, texto).
Retomar elementos. Entre o fictor e o histrio (Haroldo de Campos). Mora no centro
histórico (como se fosse perto do cais – bruma de Giacomo Joyce, Trieste lida).
Prédio antigo. Muitos livros. Mãos quase laranjamarelas. Mão Gaguejante do homo

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joyciano. Janelas ausentes. Dispersão. Mofo. Escrita sonada. Sonahda. Sonho +
nada. Blanco. Azucrim, sspirro prismático da idéia mallarmaica. Um leque: efeito
de real.
NOTA DE LEITURA XVII: UM FIM-COMEÇO.
Episódio 13½ – INVENTÁRIO ESCOLHAR: O “Inventário Escolhar” é a recriação
dos episódios anteriores em minúcias formais, em notas de artesania, e, ainda, com
invenções de leitura. Eixo horizontal. Trata-se de um quasepisódio, de meio
episódio, pois comporta matérias outras que não as usadas nos 13 episódios
anteriores (mas são anteriores?). A função deste I.E. é pedagógica – num sentido
restrito, de doação de uma leitura fabulada: ela dá uma outra forma ao leitor e a este
cabe a responsabilidade de tomá-la em sua tópica escritural, ou seja, de prolongar
sua distância do sentido, ou, ainda, de tomá-la como a verdade, o sentido último, a
chave de leitura para os episódios anteriores. Inventário: inventa rio: formante
movente, sítio da invencionice crítica; Escolhar: escolho escólio escola: o trabalho
no texto, sobre o texto e as doações acadêmicas sobre os conceitos estudados. E
tudo finda numa ausência de fala, num nada-ninguém-diz de um espirro <
inominável >.
NOTA PLAGIOTRÓPICA II
Virem-se. Disse Leminski sobre seu Catatau. Mas não tenho a paciência. Por isso
descoordeno as notas artesanais – artesianas, nesta parábase “moída que mói tudo
que ainda mói nada”. A voz que insurge é uma voz sem fala, daquelas inomináveis
como a bolota tátil sonora n’O inominável de Beckett. Eu, sem maiores pudores, é
quase uma figura fácil para encarnar, nesta cena-moagem, eira dum dia, justamente
O-Sem Nome. Assim, fica a cargo do desaviso esta economia de letras: O Senhor
Comentador, O Senhor Educador, O Leitor, O Scriptor, O Pesquisador. Eu ganha
em velocidade. Uma questão prática. Então sigo, não eu, eu, suspeito. Trata-se de
um mapa, um sumário-texto (por sua função, que fique dito).
NOTA PLAGIOTRÓPICA III
A estruturação é exemplar – desde muito achei um desperdício um sumário que não
tivesse outra função que dar páginas, coordenadas pouco expressivas. Se por um
lado um tensor prosaico me garante certo manuseio do referente – que mantém o

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cenáforo, a flamífera vitalidade de uma concreção espacial desejável, ou seja,
passível de duplicidades fantasmáticas, um trabalho microartesanal, poético, para
ficar nestes termos, me possibilitaria uma contração própria à matéria textual em
questão: um cenário, o cotidiano, encarnado fantasisticamente por um tipo muito
especial, um educador. Um cenário, uma vida. Mas esta indecisão já seria pouca
coisa quando tudo estivesse lá – o que eu não sabia é que o texto não espera,
suspeito. O Senhor Educador, então, anima-se pelo seu redor, o contorno tracejado
(como o espetacular círculo de pó de giz que perfaz a morte no asfalto earredores) é
a tópica escritural de um homem, num dia, estraçoado. Homo quotidianus. O homo
ainda por comodidade, uma comodidade que tanto Lefebvre quanto Blanchot não
conseguiram ou quiseram desfazer. E aí a graça. O suspeito é ainda antropomórfico,
mas só por sua posição cenográfica – os ratos, as moscas, a bola carnal
desorganizada e rolante bekettiana, não são vistos, não pedem a palavra – para
ganhar voz. E por isso O Senhor Educador quase desaparece (ele fala? ele cheira?
ele espirra?); ele está lá, ele faz: mas sua ação é a própria suspeição, e sua presença
só é notada por sua política de catação. E é isso que faz. Uma fantasiação danada.
NOTA PLAGIOTRÓPICA IV
Se por um lado a narrativa prosaica mantém molezas, falta-lhe as devidas pedras.
Não se trata de biografia, de fluxo de consciência, de, muito menos, autobiografia,
literatura de testemunho. Por uma questão de método. “Necas de épicas. As pedras
de vidas”. Um slogan. O herói não se encontra, ou melhor, ele encontra outra forma
e, como ele O-Sem Nome quase arguiu, o encontro entre duas formas é dispersão
(BECKETT, p.36). Proto prosopoesia, pronto. A dispersividade de certa
consistência espaço-temporal, cheia de rutilezas e pessoalidades, de uma
“verdadeira vida” (LEFEBVRE, 1991, p.116) de educador perfaz vapores funéreos,
dispostos aos ventos de uma vita nova. Os traços estão aí, árdua escritura
detetivesca – Blanchot bem soube escrever esta dimensão do cotidiano, onde só há a
suspeição, sem crime, fato a ser julgado, e sem corpo a submeter-se ao julgamento.
HCE, de James Joyce em Finnegans Wake. A pedregosa via de Cordisburgo – a
cidade onde Guimarães Rosa fez-se nascer, pelo parteiro Haroldo, após as minúcias

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de seu Sertão (uma brasilírica cidadezinha, que só ganha sentido depois da prosa
rosiana).
NOTA PLAGIOTRÓPICA V
Trata-se, na pesquisa, no texto, de dois movimentos, ou melhor, nesta economia, de
um duplo. Há, certamente, ênfases marcadas, digamos, sumoformantes, em
diferentes sítios. É certa concreção tempespacial. A biografemática. Se por um lado,
volto, a poesia conclama uma nota outra que não a épica, sua pura epifânica função
me rogaria a sorte das musas, do haxixe baudelairiano, do peiote de Michaux, do
aliado de Castañeda – há muito, desde um relance de dados mallarmaico não me
cabe tal empresa, isto, que fique dito, por uma questão fisiológica – há uma
implicação daquilo que Max Bense chamou de uma fantasia racional, e não há
criação sem a invenção de certas contingências. Por outro, o afastamento do herói
material, comprovado pelos estertores de um materialismo histórico, ficaria assim
mais próximo – em efeito, ao menos, diante da visão tão transparente. Mescalina-
de-mim-mesmo (Transblanco).
NOTA PLAGIOTRÓPICA VI
“Da evidência à imanência, na pesquisescritura”. Quase isso. Um duplo, quase. O
“Percurso Textual Sumário” de Um Pesteseller. O sumo diário. Na coluna da
esquerda, o duplo do tempespaço da folhas pares do texto, os pequenos
cronocarcinomas, as horas, marcadas, como um toque da morte diária, em vida, que
mostra a implacável cotidianidade. Poemepisódios: a poesia epifânica (visões,
mesmo que através de uma consciência como droga – n’O Neutro, Barthes
roubando Blanchot) adquirindo uma ênfase épica (narrativa, encadeação de vetores
heroicizantes – A Odisséia antes de Ulisses, a prosa antes de Finnegans Wake, a
autobiografia antes de Galáxias). No interstício de encontro, a “zona branca do cais”
no cenário vivido com O Senhor Educador, a numeração das páginas, dos factóides,
uma espécie de faits divers topológico. Só se contam as paridades, a invenção delas
reverberada na linha equânime da coluna da direita: uma outra animação, um O-
Sem Nome para Ele-O Nome (Beckett no Éden de Haroldo). Na coluna da direita,
um texto vertical, de uma insignificância vital e paradigmática – se a linha de
encontro que corre de um Poemepisódio até uma outra animação na coluna que

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multiplica, tanatograficamente, as páginas ímpares (as chamadas, para fins de
editoração, “folhas nobres”, aqui o sítio de maior grau dispersivo, de uma prática
pedagógica escritural), isso não diz de uma mesmidade: as páginas ímpares não
estão sinalizadas neste Percurso Textual Sumário: os algarismos não a alcançam:
eis, de forma muito lúdica, o efeito sintático de uma concreção cotidiana
(Finismundo), de sua fisicalidade escritural (em detrimento de uma existência, outra
vez, material e histórica, passível de gestão por intermédio da cotidianidade): o eixo
paradigmático não chega aos alicerces de uma Torre de Babel: o diálogo que fique
para os homens (Blanchot: o diálogo só é possível entre Deuses), não há nisso muita
pretensão, suspeito. Assim, a linha de certa horizontidade se quebra por concreção
tempespacial, fisicalidalidade do texto, aquém de um referente, cheio de
referencialidade – do tipo joyciana, o que equivale a dizer antinaturalista, onde,
entregue à leitura configura uma fantasiação sem fim: toda significação possível,
pós-utópica, pós-babélica, fantasística (para Blanchot eu perguntaria, ainda, se o
homem sem horizonte ainda seria homem, ou é só este Finismundo, na última
viagem sem fim, este cenário textual, o cotidiano – que não cessa de escapar). Por
isso a prosaica ênfase ostensiva nas folhas ímpares: de longe o volume diz que ali se
encontra, de fato, a história, O Senhor Educador, em sua minúcia diária. Mas trata-
se do intensivo, correndo do evidente ao incidente, no meio da rua, nékuia,
torvelinho neobarroco nonada (“O Senhor Educador, então, anima-se pelo seu
redor”): a ênfase épica some com o herói, a escritura é personagem e as estripulias
roubam de Lézama Lima (o recriado nas falas de Haroldo) a divisa que a separa dos
vanguardistas de brechó, daqueles que destroem todo referente na fumaça de uma
escrita de palavrinhas e artíficios carapalidecidos: só o difícil interessa: mas não o
deliberadamente ilegível: o scriptível.
NOTA PLAGIOTRÓPICA VII
< “Virem-se, é só, escrever.” >

Referências bibliográficas
BARTHES, Roland. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 2003a. (Trad. Leyla
Perrone-Moisés.)

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_____. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2006. (Trad. J. Guinsburg.)
BECKETT, Samuel. O inominável. São Paulo: Globo, 2009. (Trad. Ana Helena Souza.)
BENSE, Max. “A fantasia racional”. In:____. Pequena estética. São Paulo: Perspectiva,
2003, p.227-233. (Trad. J. Guinsburg e Ingrid Dormien Koudela.)
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita – a experiência limite. Vol. 2. São Paulo:
Escuta, 2007. (Trad. João Moura Jr.)
CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de. Panaroma do Finnegans Wake. São Paulo:
Perspectiva, 2001.
CAMPOS, Haroldo de. Signantia quasi coelum: signância quase céu. São Paulo:
Perspectiva, 1979.
_____. A educação dos cinco sentidos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
_____. A máquina do mundo repensada. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.
_____. Galáxias. São Paulo: Editora 34, 2004.
JOYCE, James. Finnegans wake = Finnicius revém. Livro I: capítulo1. Cotia: Ateliê
Editorial, 2004. (Trad. Donaldo Schüler.)
_____. Ulisses. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. (Trad. Bernardina da Silveira Pinheiro.)
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Editora Ática, 1991.
(Trad. Alcides João de Barro.)
OLIVEIRA, Marcos da Rocha. Biografemática de um educador. Proposta de Dissertação
de Mestrado. Porto Alegre: UFRGS - PPGEDU, 2009.
PAZ, Octavio; CAMPOS, Haroldo de. Transblanco. São Paulo: Siciliano, 1994.
SCHÜLER, Donaldo. Notas de Leitura. In: JOYCE, James. Finnegans wake = Finnicius
revém. Livro I: capítulo1. Cotia: Ateliê Editorial, 2004, p.89-132.

101
O currículo de areia
Máximo Daniel Lamela Adó

O texto deixa-se seduzir por um texto amado e com ele traça linhas outras; recorre à
expressão textual para elaborar a urgência de um currículo desagregado; currículo de um
tempo que não passa e não pára; granífero especioso e miríade de diferenças.
***
Trace uma linha no quadro-negro e verá nas formas do gizar o máximo de diferença.
Eis que, Quicquid corporis nostri agendi potentiam auget vel minuit, iuvat vel coercet,
eiusdem rei idea mentis nostrae cogitandi potentiam auget vel minuit, iuvat vel coercet. Se
uma coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de agir de nosso corpo, a
ideia dessa coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potencia de pensar de nossa
mente. Benedictus de Spinoza; Proposição 11; terc. Parte. A origem e a natureza dos afetos
(Spinoza, 2007, p.176-177).
A linha consta de um número infinito de pontos; o plano, de um número infinito de
linhas; o volume, de um número infinito de planos; o hiper-volume, de um número infinito
de volumes. Não, decididamente não é este more geométrico a melhor maneira de iniciar o
relato. Afirmar que o mesmo é verídico seria uma convenção de todo relato fantástico; este
relato, no entanto, é verídico (cf. Borges, 1992, p.179).
Reconheço, e devo deixar claro ao leitor, que a expressão latina more geométrico
significa: segundo o costume geométrico. Chamo a atenção que para Spinoza o pensamento
é uma consciência do corpo. O mesmo modo é concebido sob o atributo da extensão e do
pensamento, de maneira que corpo e a mente não estão relacionados casualmente, sendo
antes expressões paralelas de uma realidade que seria Deus (cf. Blackburn, 1997, p.124); e
ainda sustento que, em Ética, Spinoza se expressa por axiomas, definições e teoremas e,
destarte, sua filosofia pode ser conhecida como uma “geometria das emoções”. Dito isto,
damos continuidade ao relato.
Leciono — parlapatório em solilóquio — num quinto andar da Avenida Paulo
Gama, há algumas horas atrás, pela manhã, estava na sala 505 e ouvi um bater à porta. Abri
e, sem cerimônias, logo foi entrando um senhor que me era desconhecido. Um homem alto
e de feições fugidias. Quem sabe devido à minha miopia o vi assim. Estava vestido de cinza

102
e trazia uma maleta cinza. Notei, em seguida, que era estrangeiro. Primeiramente pensei
que era velho, usava um escasso cabelo penteado por sobre a calvície acentuada. No
decorrer de nossa conversa, que não durou trinta minutos, soube que ele procedia da Europa
Ocidental, da cidade mais populosa da França. Apontei para uma cadeira. O homem com
movimentos lentos demorou a falar. Com um semblante de riso — digo semblante, pois,
não poderia, não consigo definir os traços de seu rosto, mas, posso dizer que sorria — e
uma voz rouca disse:
— Vendo livros didáticos; podem ser de utilidade para as suas aulas.
Com sorriso irônico e sem deixar o pedantismo de lado, respondi.
— Que tipo de livro didático o senhor vende? Pois, aqui, e em minha casa é claro, o
que há em grande quantidade são livros. Livros de literatura, de teoria, dicionários, a
didática magna, a Paidéia de Jaeger, livros religiosos, de métodos e técnicas, de regras,
livros grandes e pequenos, obras de referência, livros raros; primeiras edições,
autografados, resgatados do anonimato como o de King Shelter, livros de artista,
eletrônicos em e-book, em compact disk, do século XIX, XX e XXI. Como pôde ver, ou
ouvir; livros não nos faltam. Aliás, livros didáticos muito menos. Para ser sincero, sem
querer ser ofensivo, não sou adepto aos livros didáticos. Eles são, em geral, levianamente
sintéticos. Seria genial se pudéssemos compilar todo o pensar num livro. Um livro que
contenha todos os livros. Há, há, há, Convenhamos, não!?, se bem que uma babel eletrônica
se nos afigura, não é mesmo?
Acomodado na cadeira que lhe havia apontado, parecia fitar um infinito entre o
espaço que compreendia a distância de seus joelhos e o chão. De pernas cruzadas, com os
dedos das mãos entrelaçados e antebraços apoiados sobre as pernas, depois de algum
silêncio, respondeu:
— Não vendo somente livros didáticos. Posso mostrar-lhe um livro que talvez lhe
interesse. O adquiri na região do Aleph.
— Ah, sim, que interessante. Respondi de imediato, em seguida nutri minha
imaginação com as retenções que me havia ficado do professor Scholem, pensava: a região
leva o nome da primeira letra do alfabeto hebraico e é símbolo tradicional dos místicos da
Kabbalah. De acordo com Gershom Scholem, filólogo e historiador da mística judaica, o
Aleph representa para os judeus a raiz espiritual de todas as letras e implica todo o alfabeto,

103
e ainda, para a tradição jasídica, apresenta-se como símbolo da vontade de Deus, pois, seria
a única letra que o povo judeu escutou da sua boca. E lembremos que é, também, um
símbolo panteísta, e no panteísmo o universo, a natureza e Deus são equivalentes. Para o
panteísmo Deus está em tudo ou, por outras palavras, Deus e o universo são um. Unindo
um pensamento ao outro lembrei que, o mais conhecido sistema panteísta da filosofia
moderna é o de Benedictus de Spinoza.
— Ah, olhe só, quanta coisa em apenas um ponto, quero dizer, em um nome; estava
aqui pensando e lembrei que El Aleph é o título de um conto de Jorge Luis Borges. Neste
conto ele apresenta o Aleph como a idéia da totalidade do universo em um microcosmos, é
um ponto no espaço que contém todos os pontos e fica no sótão da sala de jantar de uma
casa situada, segundo o conto, na calle Garay. Você já foi a Buenos Aires?
Sem me responder abriu a maleta e colocou o livro sobre a mesa. Era um volume em
oitavo, encadernado em pano. Sem dúvida já havia passado por muitas mãos. Examinei-o,
seu peso era inusitado e surpreendeu-me. Na lombada, com letras bem gastas, estava escrito
Aion e logo abaixo Aleph.
— Parece ser do século XIX. Observei.
— Não sei, nunca soube. Foi a resposta.
O abri ao acaso. A tipografia não me era estranha, mas não reconhecia a sua
ordenação. Parecia ver um bloco amorfo de letras. Um aglomerado de frases, dados e
referências em seqüência. Observando bem elas estavam organizadas com todos os critérios
de pontuação, no entanto, faltava-lhes certo espaçamento e parecia não oferecer, aos meus
olhos conformados em olhar formas repetidas, o fôlego necessário para enxergar o que via.
No ângulo superior das páginas havia cifras arábicas. Fiquei estupefato, no entanto, pois, na
página par, lia-se um número com cinco cifras, digamos: 26032 e, na ímpar, apenas três,
505. Virei a página par, e no ângulo superior do dorso lia-se um numeral de oito cifras,
88888888; nela havia uma pequena ilustração e parecia ser uma fita de Moëbius desenhada
por Escher. Então, neste momento, o desconhecido me disse:
— Olhe-a bem. Jamais a verá novamente.
A afirmação parecia conter uma ameaça, no entanto, a voz não. A voz não era
ameaçadora. Fixei os dedos nas páginas que havia aberto e fechei o livro. Imediatamente o
abri naquela marcação e procurei em vão, folhando rapidamente algumas páginas, o

104
desenho que me pareceu ser de Escher. Neste momento, distrai-me pensando na inscrição
que havia lido na lombada, e ocorreu-me que o tempo em Aion não cresce e não diminui, é
a eternidade em que passado e futuro são dimensões infinitas, nenhum tempo é
rigorosamente presente. É a forma vazia, é o tempo “infinitamente subdivisível” do
labirinto como reta, de Jorge Luis Borges, em A morte e a bússola, do tempo da Tartaruga
de Zenão, da hora do chá de Alice, do instante de Nietzsche. E no caso de Nietzsche, devo
ter presente que o instante é um longo corredor para trás, que dura uma eternidade; um
longo corredor para diante, que dura outra eternidade; passado e futuro como eternamente
ilimitados, linha reta sem fim, para frente e para trás e, para Deleuze, a menor fração
possível do presente (cf. Marcondes Filho, 2004, p.83). Para esconder o meu espanto,
recorri como sempre se recorre, a uma frase pronta, querendo mascarar o interesse pelo
desinteresse, ou vice-versa; querendo mascarar a ignorância e o desconhecimento pela pose
daquele que sabe; de um saber tão tosco e volumoso que faz crescer uma imagem de grande
ímpeto e sorriso vazio, então disse:
— É, parece interessante; trata-se de um compêndio, uma história das ideias
ilustrada, não é verdade?
— Não. Ele respondeu. Este é o livro do currículo de areia. É chamado assim, pois,
nem o livro, e vejamos que neste caso também não o currículo e, obviamente, não podemos
esquecer que nem a areia, metaforicamente, tem fim. E poderia completar dizendo que,
sendo assim, não carrega nostalgia de origem; não representa nada anterior a cada página
vista, ou lida, a anterioridade está concebida nela mesma, na página texto-fantasia de um
empirismo transcendental imanente. Lança-se para um sempre novo do currículo,
eliminando qualquer ilusão transcendente para a educação, afirma, a cada nova página, a
vida.
— Não pode ser. Respondi imediatamente. Um currículo, para possuir esta
identidade, deve ser determinado, finito e prático.
Então ele disse.
— Abra na primeira página.
Posicionei meus dedos rentes à capa e abri. Instantaneamente havia um bloco de
páginas entre a capa e a folha na qual se posicionava meu polegar, o mesmo acontecia ao
procurar abrir na última página. Sempre já começado. Sempre sem terminar.

105
— O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Disse o homem. E
completou: — O livro é ilimitado como o futuro e o passado, mas, finito como o instante.
Esse livro currículo é povoado de efeitos que o habitam sem nunca preenchê-lo. Esse livro
é a verdade eterna do tempo: pura forma vazia do tempo, que se liberou de seu conteúdo
corporal presente e por aí desenrolou o seu círculo, alonga-se em uma reta, talvez tanto
mais perigosa, mais labiríntica, mais tortuosa por esta razão; a linha reta como labirinto do
tempo, é também a linha que se bifurca e não para de bifurcar-se, passando por presentes
incompossíveis, retomando passados não necessariamente verdadeiros. Nada sobe à
superfície sem mudar de natureza (cf. Deleuze, 2003, p.170; 2005, p.160).
As considerações dele irritaram-me; como conceber um currículo para ser
administrado num finito como o instante? Mas, fiquei sem questionar o que ele havia dito a
respeito desse currículo. Então, para dissimular meu interesse pelo livro, perguntei se ele
estava de passagem pela cidade, e foi aí que soube que ele era francês de Paris. Disse então
que gostava pessoalmente da França por amor a Rabelais e Montaigne.
— E a Condorcet. Corrigiu.
— Ah, sim; o professor Caritat e seu Esquisse, é claro.
Enquanto falávamos continuava a folhar o livrocurrículoinfinito. Com falsa
indiferença perguntei:
— Tu propões oferecer este livro para a biblioteca da FARCED? Ele poderia ser um
livro de referência para o grupo de pesquisa do Powell Farced Circus.
— Não. O ofereço a você; que é leitor. Respondeu. E em seguida completou a
resposta com uma soma elevada.
Sorri e afirmei que aquela soma não se adequava às minhas possibilidades
financeiras do momento. Silenciei um instante e logo intervi com uma oferta.
— Penso numa proposta; tenho aqui um bornal cheio de ideias. E sorri.
— Nele carrego hoje vários livros, veremos. E fui retirando os livros.
— Este da contradição, este da dialética, este com uma lógica, uma teleologia
magnífica, este para a formação do sujeito soberano, este sobre a ação comunicativa, pode
ver: é Habermas; não se desconfia destes livros. O senhor pode levá-los juntamente com o
bornal. Verá que não terá dificuldade em comerciá-los. Já esse que me oferece...

106
O homem, em silêncio, examinou um por um: as lombadas; virava-lhe as folhas.
Perscrutou o peso e o volume de cada um.
— Trato feito. Disse.
Fiquei espantado, pois ele não pechinchou e tampouco fez alguma objeção. Mas,
logo em seguida compreendi que o homem havia entrado naquele prédio, ou melhor,
naquela sala com a decisão de negociar o livro. Conversamos mais alguns minutos, sobre
livros. Sobre Lucrécio e Epicuro, Nietzsche, Deleuze, Foucault, Derrida, etc. Eu nem notara
que na sala já havia algumas pessoas, estava compenetrado em sua fala. Ele dizia algo
como: — O livro integra-se à crítica da subjetividade, rouba conceitos, atraiçoa-os e com
eles inventa uma espécie de maquina abstrata infernal para discutir a crítica do sujeito da
Educação, que é também a do mundo, da sociedade, da história. Compreenda que falo
educação para trazê-lo ao território desta sala, mas, não vamos habitá-la. Com essa máquina
abstrata e infernal, o livro, problematiza o sujeito essencialmente representativo, coerente,
ativo, autônomo, consciente, racional, submetido ao Princípio de Identidade Universal,
capaz de exorcizar toda forma de diferença. Critica a condição transcendental desse sujeito,
buscando dissipar a sua identidade, erigida como fundamento da experiência, do
conhecimento, da moral e das relações pedagógicas. Considera que essa identidade nada
mais é que uma ficção sobre a natureza humana, seja ela psicológica, humanista,
fenomenológica, dialética, cristã. Ficção que se eleva ao estatuto de verdade, oferece-se
como princípio causal e sentido onipresente, permitindo à Educação organizar a
apropriação de todos os corpos educáveis. Além de exercer uma função mais prática, ao
servir de ponte para que cada indivíduo educado persiga a inteligibilidade de seu corpo-
alma e valide a sua unidade de Sujeito-Verdadeiro. Ficção-prática que faz do sujeito
unitário da Educação um ser idêntico ao pensamento de si mesmo. Uma forma-e-função de
sujeito modelar, que é, para esse livro, O problema. Uma vez que possibilita às práticas
educativas substancializar, represar, fixar as relações e conexões entre todas as
multiplicidades e individualidades atuantes na Pedagogia, no Currículo, na Escola. Esse
livro tem uma filosofia do inferno na Educação.
E ele não parava de falar. A sala já cheia e todos a ouvir o grande e atroz dizer de
uma escritura.

107
— Se o inferno atravessa o mundo da Educação, ele pode aterrorizar o seu
pensamento. VAMOS PENSAR O INFERNO, TORNÁ-LO UM PONTO DE
ALUCINAÇÃO, TOMÁ-LO COMO UMA ARMA DE GUERRA CAPAZ DE ATIRAR
PROJÉTEIS, EM VELOCIDADE ABSOLUTA, contra as fortalezas da Bem-Aventurança
Educacional, que protegem a Boa-Vontade do Educador, que ensinam A Verdade, e
capturam a idéia da Boa-Natureza do Pensamento (cf. Corazza, 2002).
Terminou a fala com um sorriso diabólico e vital, Eros e Thanatos em comunhão na
violenta síntese de sua voz.
— Vamos, abram; ajudem a este professor a abrir o livrocurrículoinfinito.
Abrimos. Estava escrito.
Ler nem mesmo requer dons especiais e faz justiça desse recurso a um privilégio
natural. Autor, leitor, ninguém é dotado, e aquele que se sente dotado, sente, sobretudo que
não o é, sente-se infinitamente desprovido, ausente desse poder que se lhe atribui, e assim
como ser “artista” é ignorar que já existe uma arte, ignorar que já existe um mundo, ler, ver
e ouvir a obra de arte exige mais ignorância do que saber. Exige um saber que investe uma
imensa ignorância e um dom que não é dado de antemão, que é preciso de cada vez receber,
adquirir e perder, no esquecimento de si mesmo. Cada quadro, cada obra musical, faz-nos
presente desse órgão de que temos necessidade para acolhê-lo, “dá-nos” o olho e o ouvido
de que necessitamos para ver e ouvir. Os não músicos são aqueles que, por uma decisão
inicial, recusam essa possibilidade de ouvir, que se lhe esquivam como a uma ameaça ou a
um incômodo a que se fecham, desconfiados (cf. Blanchot, 1987, p.192).
Um vento entrou na sala e fez com que o movimento da página apagasse o espaço
literário. Tínhamos, então, outra coisa a ocupar aquele espaço.
Um objecto exacto
Entreter o infinito.
Tratar o infinito como objecto, atirá-lo ao chão, partir-
lhe a FACE,
curar-lhes as feridas, chamar pelo pai e pela mãe; dar-lhe
pão à boca no dia das doenças, contar-lhe os ossos e, por
fim, desprezá-lo.
Entreter o infinito.

108
Tratar o infinito como objecto (Tavares, 2008, p.81).
E Zéfiro, com suavidade, moveu uma vez mais as folhas daquele livro; assim o
infinito dava-nos sua efígie no finito do instante.
***
Powell Farced Circus - O nome é apresentado como reapresentação paródica do conto
Powell Circus de Simenon, acrescido do termo Farced, que pode ser interpretado como uma
“variação” do termo farce do inglês; consta que, por vezes, ouve-se a designação da
FACED [Faculdade de Educação] como FARCED; a letra R acrescida à sigla faz às vezes
fonética do termo farsa em inglês e a designação teria uma conotação pejorativa legando a
produção da FACED ao âmbito da farsa. Powell Farced Circus, então, faz às vezes do que
seria, foneticamente: “Poderoso Circo da Farsa”, ou algo do gênero. Com isso, interessa-
nos associar à brincadeira, com conotação pejorativa, ao texto “As potências do falso” em
Deleuze. Para Deleuze, ao falar sobre o cinema: “É uma potência do falso que substitui e
destrona a forma do verdadeiro, pois ela afirma a simultaneidade de presentes
incompossíveis, ou a coexistência de passados não-necessariamente verdadeiros. A
descrição cristalina atingia já a indiscernibilidade do real e do imaginário, mas a narração
falsificante que lhe corresponde vai um pouco adiante e coloca no presente diferenças
inexplicáveis; no passado, alternativas indecidíveis entre o verdadeiro e o falso. O homem
verídico morre, todo modelo de verdade se desmorona, em favor da nova narração” (2005,
p.161). Este tema também estaria associado à ideia de falso e verdadeiro como proposição
moral em Nietzsche [ver: Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. In: Obras
incompletas (Col. Os pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 53]

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110
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VOLTAIRE, François-Marie. Cândido ou O otimismo. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998.
(Trad. Miécio Táti.)

111
DIGA-ME COM QUEM UM CURRÍCULO ANDA E TE DIREI QUEM ELE É

Sandra Mara Corazza

I – Das 18 necessidades inadiáveis


(1) Nesta mundialização liberal, polimorfa e cruel, temos um pensamento curricular
que nos força a criar problemas e a nos posicionar, cada vez mais criticamente (“crítico é o
adjetivo correspondente à palavra ‘crise’”; Barthes e Nadeau, 1979, p.21), diante da
megamáquina capitalista, que não cessa de produzir imprevisíveis formas de controle social
e dominação subjetiva, miséria e mediocridade, crimes, solidão e horror.
(2) Nesta contemporaneidade emaranhada, acentrada e sem princípios, a
racionalidade desterritorializadora de nossos cérebros vividos (que funcionam por meio de
conexões prévias aos estados mentais) engendra um currículo da multiplicidade (não-
métrica, mas do latim plicare: “o múltiplo é não só o que tem muitas partes, mas o que é
dobrado de muitas maneiras”; Deleuze, 1991, p.14), que nos capacita a realizar
diagnósticos e enfrentar metamorfoses e mutações vetoriadas, transformações e mixagens
qualitativas, transplantes e reciclagens de vidas preexistentes.
(3) Neste momento de fascínio pela globalização econômica reprodutora e cultural
homogeneizadora (em que muitas comunidades e indivíduos portam um niilismo absoluto
ou um pessimismo atávico), um currículo nos mantém em devir-revolucionário (no
domínio do indestrutível), confrontados aos abismos econômicos, sociais, tecnológicos,
políticos.
(4) Neste aqui-e-agora de ligação (alienadoramente apaixonada) com a mídia
humanista e a publicidade multicultural, um currículo cria uma nova sensibilidade
(“pedagogia dos sentidos”; Deleuze, 1988, p.378) para: (a) afectos e perceptos, disjunções
inclusivas e conjunções intensitárias, anteriores aos códigos e irredutíveis à cognição; (c) o
limite neutro de níveis marginais de sentido (“o sentido consiste precisamente numa relação
de forças, segundo a qual algumas agem e outras reagem num conjunto complexo e
hierarquizado”; Deleuze, 1994, p.21); (d) a violência inerente às definições e identificações;
(e) processos gerativos de individuação ou de subjetivação, antes do que para
subjetividades ou sujeitos, constituídos pela Filosofia do Indivíduo coextensivo ao Ser (cf.
Deleuze, 2001).

112
(5) Nestes espaços de neo-arcaísmos (família universal; juventude eterna; saúde
puritana; lei seca do álcool; drogas molhadas; ossários recobertos; corrupção rotineira;
terrorismo religioso; justiça adiada; direitos humanos estupefatos; esporte analfabeto
bilionário; tirania disfarçada de pregação; etc.), ainda impregnados pelas dicotomias
Indivíduo/Estado, Homem/Mulher, Inclusão/Exclusão, um currículo orienta-se no tecido
fibroso da realidade (real atual) e transborda essas dicotomias, introduzindo, entre elas,
insuspeitas dobras (“dobragem, dobra, dobro, duplo, duplicação, dação em dois, doação –
dados”; Campos, 1975, p.120) e lutas tanto mais variadas.
(6) Nestes tempos (Aiôn, Chronos, Kairós) de avançada, segura e confortável
modelização (subjetiva, teológica, política), um currículo revaloriza linhas moleculares e
partículas submoleculares (em vez das formações e dominações molares de instituições,
regras codificadas e leis coercitivas), bem como fatores ontológicos de fuga: fluxos,
phyluns maquínicos, territórios existenciais, universos incorporais, vapores dos
acontecimentos (cf. Deleuze, 1998a; 2002; Guattari, 2000).
(7) Nesta rede planetária de tecnocosmos, ciberespaço, reprodução regulada por
computador, exploração genética, pedofilia em rede, fast-food googleano, bioética,
biodiversidade, DNA, células tronco, idiotia comunicacional, automatismos informatizados,
besteiras mecânicas, industriais e windowsianas, um currículo nos livra da Epistemologia
da Pureza Essencial e da correspondente apreensão de seres, fenômenos e coisas estáveis.
(8) Nesta sociedade desenraizada, progressivamente mais complexa, um currículo
expressa e condensa: (a) mais acontecimentos do que substâncias; (b) mais fluidos do que
fixações; (c) mais focos de resistência molecular do que anseios da massa consumidora.
(9) Nesta época de fragmentação cultural e aniquilação da diversidade, em que
estaríamos fortemente individuados e personalizados (como seres humanos, pessoas, etnias,
gêneros, classes), um currículo: (a) questiona a serialidade majoritária e as formas inerciais
da subjetividade capitalística (trivial, frívola, supérflua); (b) desvela o engano de achar que,
fora das luzes da razão e dos centros de significância, divisões e hierarquias identitárias,
existe somente confusão, anarquia, absurdo ou o indiferenciado.
(10) Agora, em que as minorias coincidem com o povo por vir (multidão indefinida,
que não está aqui), um currículo: (a) abre a educação para subjetividades esgarçadas e
sujeitos desfigurados; (b) metamodeliza figuras emergentes e tipos sociais transitórios; (c)

113
amplia e transborda os viscos dos agrupamentos subjetivos (que promovem incestos,
roubos, homicídios), penetrando em costumes e revirando maneirismos do avesso; (d)
estimula processos de minorização (cf. Deleuze e Guattari, 1996a) e singularização; (e)
incorpora zonas de indeterminação (de sentido e não-sentido), que acompanham formas de
organização (concernentes à manutenção-abertura de determinadas formas), e são correlatas
à Substância de Spinoza (cf. Deleuze, 2002) e à Vida para Nietzsche (cf. Deleuze, 1994;
1999).
(11) Nesta hora, em que não temos o direito de permanecer fechados e imunes ao
ineditismo de mundos incompossíveis (cf. Deleuze, 1991), um currículo: (a) arranca o
cimento da estupidez corrente; (b) seqüestra o desejo do sacrifício e da privação; (c) pela
via do sentido, neutraliza o erro e ultrapassa o verdadeiro; (d) nas bordas da individuação e
nos “planos de vida” (em sentido geométrico, faz corte, intersecção; cf. Deleuze e Guattari,
1997a, p.57), que incluem o acaso, traça um diagrama suprassensível de forças, que se
formaliza num arquivo audiovisual (cf. Deleuze, 2007, p.102-112; 2004); (e) alcança um
plano de imanência (de Natureza, univocidade, consistência, composição, proliferação,
povoamento, contágio) para o pensamento (sem imagem dogmática, pressupostos
implícitos, ideais conciliatórios de bom senso e senso comum), definido tão-somente por
sua potência de afirmar algo vital (cf. Deleuze e Guattari, 1992, p.51-79).
(12) Neste pesadume do presente, um currículo: (a) não se fundamenta em
resultados ou na expertise de alguém, não prediz nem conserva certezas de conhecimentos
estabelecidos; (b) desorbita a tradição e a faz abandonar suas elipses para inserir-se em
outras; (c) reelabora o que extrai das culturas, trabalhando o sentido da novidade e da
originalidade, não como transgressão ou interrupção, mas como arte da conexão e da
experimentação, isto é, ousadia de querer pensar, deixar-se afetar e se apaixonar: “há uma
familiaridade prática, inata ou adquirida, com os signos, que faz de toda educação alguma
coisa amorosa, mas também mortal” (Deleuze, 1988, p.54).
(13) Um currículo de hoje nos leva a: (a) prestar atenção total às forças do Fora
(não-relação, não-lugar, espaço de virtualidades que resiste ao poder; cf. Deleuze e
Guattari, 1992, p.136-137; Deleuze e Guattari, 1997c, p.46); (b) expormo-nos às insólitas
forças (fluxos contínuos de matéria-energia, cuja “relação chama-se vontade”; Deleuze,
1994, p.22) e arborizadas formas (criadas e destruídas pelas forças) do pensamento, da

114
existência, das relações, do mundo; (c) afastar os apologistas, com sua doxa e gesticulação
ocas; (d) atender aos desconhecidos que batem a nossa porta (cf. Deleuze, 1990), como as
máquinas de Kafka e suas forças diabólicas do porvir; as línguas menores, estrangeiras; (cf.
Deleuze e Guattari, 1996a); os signos mundanos, amorosos, sensíveis e artísticos (cf.
Deleuze, 1998d).
(14) Povoando zonas do acontecimento, do acaso, do improvável, imagina
procedimentos (cf. Deleuze, 1997b) para liberar: (a) afectos de sentimentos pessoais; (b)
sensações de clichês e jargões; (c) perceptos da percepção comum; (d) “conceitos-múmias”
(Nietzsche, 2006, p.25) da moral; (e) a incessante transmutação das pequenas diferenças.
(15) Inventando travessias, produz efeitos de margem: fim das continuidades e
ultrapassagem das fronteiras. Encontra mistérios. Cria outras materialidades para os
fazeres-saberes. Produz coletividades anômalas, idades bastardas, pensamentos vagos: além
de Bem e Mal. Estabelece ressonâncias, articulações, encontros, traduções, transduções,
entre elementos dos diversos domínios culturais. Abre mundos possíveis (cf. Deleuze,
1998b). Acaba de vez com o Juízo de Deus (cf. Deleuze, 1997b).
(16) Tornando visíveis problemas que persistem nas soluções, concebe: (a) uma
ciência nômade (anexata, itinerante, ambulante), que não se confunde com a “ciência régia”
(de Estado), cujos procedimentos científicos são “de reprodução, de iteração e reiteração”
(Deleuze e Guattari, 1997c, p.39-40); (b) o método da “retificação vital e óptica”: “Trata-se
do terceiro olho, aquele que permite ver a vida para além das falsas aparências, das paixões
e das mortes” (Deleuze, 2002, p.19-20; cf. p.90-92).
(17) Operando com um empirismo transcendental imanente (cf. Deleuze, 1988;
2001), impelido pelo vitalismo: (a) age sobre o que está em gestação; (b) redefine noções
de realidade, prática, abstração, fantasia; (c) mantém-se no fictício e excede o real; (d) não
formula problemas lógico-identitários, que remetem ao domínio do Ser (O que é o
currículo?), e sim problemas de vida, que vão em direção às potências do devir (Como
construir um currículo para mim e para o mundo?).
(18) Confiando que algo passará do seu agenciamento trans-histórico (cf. Deleuze e
Guattari, 1997c, p.218-220), embora não forneça certeza do que será, um currículo pensa.
Torna o pensamento curricular de novo possível e nele injeta novidades que não podem
deixar de ser pensadas. Choca-nos. Cai fora das ilusões educacionais de transcendência.

115
Cria a alegria afirmativa de educar. Busca na vida um sentido próximo a ela e distante de
convenções. Fornece procedimentos inatuais para que nunca mais tenhamos de tolerar o
Intolerável.
II – Da luta da diferença em muitas perguntas
Mas, de que tipo é esse “um currículo”, do qual se diz que promove tantas ações?
Qualquer currículo ou um currículo determinado? Neste caso, o que o especifica? Ele
possui, assim como a diferença, “um adversário inapreensível” (Deleuze, 1988, p.63)?
Qual? Ele luta? De que modo? Aquilo que dele se distingue “opõe-se a algo que não pode
distinguir-se dele e que continua a esposar o que dele se divorcia”? Apresenta um estado de
determinação como distinção unilateral? O seu problema não seria, justamente, esta “A
Determinação”? Isto é, “o ponto preciso em que o determinado entretém sua relação
essencial com o indeterminado, a linha rigorosa, abstrata, que se alimenta do claro-escuro”
(ib., p.65)? Trata-se de um currículo baseado no reconhecimento da tradição? Um currículo
que possui um desejo natural de conhecer? Um currículo que considera o pensamento como
cogitatio universalis? (Pensamento que se crê dotado de “uma boa natureza”; atribui ao
pensador “uma boa vontade”; e proclama que “só o Bem pode fundar a suposta afinidade
do pensamento com o Verdadeiro”; ib., p.219). Um currículo que reverencia a opinião? As
coisas? As vanguardas? Habilidades e competências? O segredo? O consenso? O silêncio?
A comunicação? A informação? A iluminação? Um currículo que objetiva corrigir erros?
Dissipar a superstição? Criticar a Ideologia? Desmistificar? Conscientizar? Salvar?
Converter? Subverter? Transgredir? Um currículo multi/intercultural? Contemplativo?
Reflexivo? Sonhador? Militante? Engajado? Humanista? Intimista? Profundo? Redentor?
Complexo? Conversacional? Analítico? Representativo? Transcendente? Mimético?
Hermenêutico? Dramático? Midiático? Estratigráfico? Inimitável? Um currículo que
expressa possibilidades imanentes a uma vida, que ficam aquém da pessoalidade? Promove
espaços-tempos para as singularidades pré-individuais e pré-sociais surgirem e se
encontrarem? Relaciona essências singulares, subtraídas a regimes de reconhecimento
social? Vive junto e constrói um ethos com os singulares? Vê, intui, explora problemas, que
exigem maneiras não-dogmáticas de pensar? Torna-nos nativos da Terra (a grande
Desterritorializada, Máquina das máquinas: “a Mecanosfera, ou risosfera”; Deleuze e
Guattari, 1998b, p.91), antes de sê-los dos territórios da Civilização, da Nação, da Família?

116
Desconhece os Eus dados pelas identificações? Testemunha que as maiorias têm história e
as minorias somente devires? Aligeira as estratificações? Sanciona diferenças vitais?
Indaga acerca do que podemos saber, ver e dizer em tais condições de luz e visibilidade?
Aponta os poderes que temos de enfrentar e as possibilidades de resistência? Discerne
nossos modos de existência, dobras, processos de subjetivação? Abandona o papel
representacional por saberes-fazeres experimentais? Diagramatiza O Currículo, localizando
diagonais e transversais? Esboça mapas (“orgânicos, ecológicos e tecnológicos”), que
implicam zonas de indistinção e seus devires? Cartografa pontos singulares, “a serem
estendidos no plano de consistência” (Deleuze e Guattari, 1995b, p.78; cf. Deleuze, 1988;
Deleuze e Guattari, 1992; 1997)? Intersecciona e bifurca linhas em outras, as quais, mais do
que desenhar espaços (como na linguagem náutica: faire le point), determinam a própria
posição? Pesquisa processos de desterritorialização e descodificação e, em suas relações
diferenciais e singularidades adjacentes, recria mundos extemporâneos, póstumos?
III – Da epistemologia política em 20 e tantos porquês
Sem a inocência da epistemologia, pensamos, ensinamos, escrevemos sobre a
natureza e o funcionamento de um currículo geograficamente orientado, isto é, do
geocurrículo. Por quê?
(1) Porque, desterrados e clandestinos, habitamos lugares permanentemente
controlados ao ar livre (cf. Deleuze, 1992). Periferias transformam-se em desertos. Bandos
e maltas aumentam o seu poder de fogo. Somos conjunção-disjunção de comércio de
informações, sobre-produção global, internacionalização do acelerado capitalismo de
mercado. Espaços e tempos estendem-se indefinidamente, em função da linhagem
tecnológica do todo-poderoso “Sistema”.
(2) Porque, desconhecidos de nós mesmos, vivemos no cruzamento dos múltiplos
gostos, hábitos, idéias (conjuntos de acontecimentos transcendentais). Nômades de um
mundo altamente estriado, questionamos a noção de território (“A história sempre contesta,
mas não chega a apagar os rastros nômades”; Deleuze e Guattari, 1997c, p.84). Máquinas
de guerra, procedemos a reterritorializações radicais de circuitos. Sedentários, não
toleramos desterritorializações absolutas. Desertores, tememos linhas de destruição e morte.
(3) Porque nos damos conta da impotência do entendimento binário para lidar com o
contemporâneo. Desconstruímos a “equação socrática de razão = virtude = felicidade”

117
(Nietzsche, 2006, p.19). Despojamos categorias de auras metafísicas, em missão
impossível. Desejamos outra humanidade, tecida de matéria-fluxo impalpável. Trilhamos e
esburacamos o solo nômade do espaço liso.
(4) Porque nossos conhecidos pertencimentos manifestam a sua exaustão. Ativamos
paradoxais revides. Estranhamos perpetuamente. Enxergamos paradas, associações e
agregados de informatização e industrialização; paisagens pré-urbanas (“platô, estepe,
montanha”); hecceidades (modo de individuação diferente de um sujeito, coisa ou
substância: “relação de movimento e de repouso entre moléculas e partículas, poder de
afetar e ser afetado”); “conjuntos de correlações (ventos, ondulações da neve ou da areia,
canto da areia ou estalidos do gelo, qualidades tácteis de ambos)” (Deleuze e Guattari,
1997b, p.47; p.52; p.54). Somos videntes.
(5) Porque o pensamento curricular se autoriza a experimentar (tateando) um
currículo (longe das coações) e produz uma geografia inédita. Assume-se como integrante
do conjunto antropomórfico das ficções úteis à manutenção da vida: “nós ‘sabemos’ (ou
cremos, ou imaginamos) exatamente tanto quanto pode ser útil ao interesse da grege
humana, da espécie: e mesmo o que aqui se chama ‘utilidade’ é, afinal, apenas uma crença,
uma imaginação e, talvez, precisamente a fatídica estupidez da qual um dia pereceremos”
(Nietzsche, 2001, p.250). Experimenta currículos como pesquisa: prática plural. Mostra as
próprias variações intrínsecas, que modificam tanto videntes quanto trajetórias. Proclama a
função curricular: não reconhecer “algo estranho” remetido a “algo conhecido” (ib., p.250),
típico do mundo da opinião; nem construir ou adquirir conhecimentos pré-estabelecidos (o
que bloquearia a ousadia de pensar e viver, mantendo tudo como se encontra); mas liberar o
ar fresco de outras possibilidades.
(6) Porque a educação ameaça o império da verdade e sua entropia mortífera.
Exerce modos de educar, que comportam estriamentos e também oportunidades de
recriação. Conjuga uma realidade surpreendente, que parece debilitar as energias, mas cujo
desequilíbrio abre recomeços. Conserva a sutileza estética de lutar.
(7) Porque os educadores mantêm um pouco de atenção e estão suficientemente
distraídos, para não caírem nas armadilhas da coincidência consigo mesmos. Renunciam à
unidade. Esquecem a busca das origens perdidas. Perdem a nostalgia dos fundamentos.
Escapam dos assentados em temporalidades e lugares seguros. Detestam a árvore da

118
metafísica, seus ramos universais de sentido e raízes essenciais. Navegam em novos mares,
desembarcam e não colonializam.
(8) Porque, com Nietzsche (desde os Estóicos e os Cínicos: cf. Bréhier, 1997; Brun,
1986; Deleuze, 1998a; Deleuze e Guattari, 1997c; Goldschmidt, 1953), o pensamento deixa
de ser recolhido na forma do verdadeiro, opera por revezamento, questiona todas as
orientações: “um pensamento-acontecimento, hecceidade, em vez de um pensamento-
sujeito, um pensamento-problema no lugar de um pensamento-essência ou teorema, um
pensamento que faz apelo a um povo em vez de se tomar por um ministério” (Deleuze e
Guattari, 1997c, p.48). Larga a construção de sistemas para traçar “espaços, eixos,
orientações, tipos”, pois é “segundo outras dimensões que o ato operatório de pensar se
engendra no pensamento e que o pensador se engendra na vida”. Prefere a superfície
plissada da Terra: “Há aí dimensões, horas e lugares, zonas glaciais ou tórridas, nunca
moderadas, toda a geografia exótica que caracteriza um modo de pensar, mas também um
estilo de vida” (Deleuze, 1998a, p.131-132).
(9) Porque, para formular um currículo, os educadores não usam mais asas nas
alturas celestes (águia de Platão), nem as profundezas dos abismos infernais (percorridas
pela sandália de chumbo de Empédocles); mas tão-somente a autonomia das misturas (em
coexistência e sucessão) venenosas da superfície (a estranha arte do “animal chato das
superfícies, o carrapato, o piolho”). Não mais a conversão, nem a subversão; mas a
perversão com o seu “sistema de provocações”. Não mais idéias elevadas, substâncias e
universais; nem corpos, acidentes e particulares; mas “a descoberta dos acontecimentos
incorporais, sentidos ou efeitos, que são irredutíveis aos corpos profundos e às Idéias altas”.
Não mais Dionísio, nem Apolo; mas “o Hércules das superfícies, na sua dupla luta contra a
profundidade e a altura: todo o pensamento reorientado, nova geografia” (ib., p.132-136).
(10) Porque a educação aprendeu que as verdades de um currículo não preexistem a
ele, mas decorrem da reformulação das formas de conteúdo e de expressão (cf. Deleuze,
2004; Deleuze e Guattari, 1995b); da invenção de problemas e suas condições; da
suscitação de originais modos de ver, sentir, pensar. Intuiu que os saberes, poderes e
subjetividades (cf. Foucault, 1993), produzidos por um currículo, são sempre verdadeiros,
segundo as verdades que ele introduz, passa, faz fugir. Não há, assim, resultados melhores

119
ou piores de um currículo, em relação a outros, apenas os mais apropriados às verdades
formuladas por cada um.
(11) Porque desmoronamos o theatrum mundi, onde tudo parece encontrar-se já
representado. Feitos pintores, não pintamos sobre telas virgens. Feitos escritores, não
escrevemos sobre páginas em branco. Feitos educadores, não ensinamos sobre um nada.
Feitos curriculistas, não elaboramos um currículo desde o zero. A tela, a página, um curso e
um currículo encontram-se cobertos de clichês, que raspamos e destruímos, para liberá-los
dos asfixiantes comentários consensuais, paradigmas enfadonhos, repetições mortas.
Compomos o caos: “um caosmos”, “um caos composto – não previsto nem preconcebido”
(Deleuze e Guattari, 1992, p.263).
(12) Porque um currículo abdica da propriedade e da estabilidade. Libera a relação
entre o “atributo de um Sujeito e a representação de um Todo” (Deleuze e Guattari, 1997c,
p.50). Renega a diferença como desvio de normas. Resiste à tirania dos idealismos
(ontológico, deontológico, teleológico, ético). Odeia a própria incapacidade de se fluidificar
mais intensamente.
(13) Porque o pensamento curricular susta a repetição do mesmo e a reiteração do
idêntico. Abandona o domínio controlado da semelhança e da representação (“Não se
representa, engendra-se e percorre-se”; Deleuze e Guattari, 1997c, p.30). Exila-se da
supersaturação da história monumental, antiquária e crítica (cf. Deleuze, 2004; Foucault,
1990; Nietzsche, 1974). Vira as faces para os devires da diferença. Descobre, no cotidiano,
só aquilo que é louco e impessoal. Extrai a possibilidade da probabilidade, a multiplicidade
da unidade, a singularidade da generalidade, o simulacro da cópia fundada.
(14) Porque um currículo não antecipa, instrui, transmite, transporta, transforma,
civiliza, custodia, desafia. Descobre forças migrantes que agem nos processos pedagógicos.
Ofende a crueldade dos espaços escolares e não-escolares. Formula uma heterogênese de
elementos didáticos e um conjunto heteróclito de programas. Desgarra a educação para fora
da escravização dos desejos singulares.
(15) Porque os educadores trabalham imersos em contaminações sem-fundo. Sabem
que a impureza das criaturas criadas (como um currículo) é o seu tesouro mais precioso.
Rejeitam a fidelidade aos velhos problemas e às antigas soluções. Abrem currículos no
currículo presente. Tornam visível o próprio nomadismo: (a) “Os nômades estão sempre no

120
meio”; (b) “Os nômades não têm passado nem futuro, têm apenas devires”; (c) “Os
nômades não têm história, têm apenas a geografia” (Deleuze e Parnet, 1998, p.41).
(16) Porque a educação é flutuante. Considera traços (de atributos, personagens,
espécies), que se apagam e deslocam com os percorridos. Não narra sucessão de fatos,
regidos pela lei da casualidade. Não se movimenta em territórios eternos. Não enraíza
comunidades em meio natural. Visa paragens da diferença.
(17) Porque um currículo comporta objetos (verificáveis pela experiência) e quase-
objetos (denotados por elaboração discursiva), que não têm padrões constantes ou moldes
primordiais. Possui “objetos-projéteis”, que ocupam lugares “em um contínuo por
variação”. Em vez de sujeitos, tem “superjectos” (Deleuze, 1991, p.37-43), que ocupam
pontos de vista: “Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um ‘conhecer’ perspectivo; e
quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos,
soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso ‘conceito’ dela, nossa
‘objetividade’” (Nietzsche, 1998, p.109).
(18) Porque seguimos trajetos, determinados por pontos e subordinados a eles. Em
espaços abertos, distribuímos meios (“ambiente”, “atmosfera ambiente”; Deleuze e
Guattari, 1992, p.125) e ritmos (cf. Deleuze e Guattari, 1997b), dotados da consistência de
um conjunto fluido: sem partilha, indefinidos, não comunicantes, sem fronteiras, não
cercados. Realizamos viagens, em processo estacionário e movimento absoluto: não nos
movemos (em extensão), mas adquirimos velocidade máxima (intensiva). Não temos
caminhos, mas itinerários. Não seguimos pistas, índices, símbolos, ícones, mas nossos
próprios vetores de desterritorialização (cf. Deleuze e Guattari, 1997c).
(19) Porque fazer um currículo não tem nada a ver com a fria gramática do logos e a
pegajosa identidade do sujeito. Não é tarefa de alguma comunidade imaginária, mas
aventura agônica, aberta à plurivocidade. Não atende a nenhuma condição utópica (que
integra um sonho de messianismo, de não-identidade), à qual apelamos para interromper as
continuidades. Segue uma filosofia prática, ao modo de Spinoza (cf. Deleuze, 1996b;
2002), construindo um plano involutivo, no qual, “a forma não pára de ser dissolvida para
liberar tempos e velocidades” (Deleuze e Guattari, 1997a, p.56) e, sem se perderem, as
singularidades combinam-se com outras, em multiplicação molecular.

121
(20) Porque a educação, os educadores e o pensamento educacional são
arquipélagos: territórios atípicos, difíceis de delimitar, não integráveis, em errância, desde
sempre desterritorializados. E porque um currículo não é somente mais um pensamento,
mas a ética desejante de viver com o caos e seus devires: “Viver – isto significa, para nós,
transformar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo o que nos
atinge; não podemos agir de outro modo” (Nietzsche, 2001, p.13).
IV – Do sentido espacial em 7 orientações
(1) Após quase um século de direção histórica (domínio de constituição dos corpos),
imprimida ao campo curricular, uma orientação espacializante se impõe. Quando, hoje,
perguntamos e respondemos O que é nos orientar no pensamento curricular?, não
acentuamos a necessidade do elemento histórico, mas uma geografia (como domínio
diferencial de transformações potenciais). Ao designar “o conjunto das condições”, das
quais nos desviamos para criar “algo novo”, a historiografia fornece apenas a atualização de
“matérias e lugares variáveis para a forma histórica” (Deleuze e Guattari, 1992, p.125).
Desviada da história, a geografia lança seus eixos e orientações virtuais para um currículo
poder devir.
(2) Mesmo que não baste opor uma dimensão espacial (que seja estática) a
movimentos históricos (progressivistas), um currículo tem, primeiramente, uma geografia,
e só então tem uma história. A genealogia (cf. Foucault, 1990) de um currículo articula as
lutas com a memória e descreve as forças históricas e seus enfrentamentos, que possibilitam
culturas e formas de vida. Já a orientação geográfica “não é somente física e humana, mas
mental (“desenho abstrato”), como a paisagem” (Deleuze e Guattari, 1992, p.125; 1997a,
p.55).
(3) Ao ferir a dominância do sentido histórico, um currículo não nega a história,
somente “a abstração do elemento histórico tornado circular” (Deleuze e Guattari, 1992,
125). Ao recusar o elemento histórico (como forma de interioridade), conhece a pluralidade
infinita das histórias reais. Antigenealógico, sem autômato central, não possui memória
longa (“família, raça, sociedade ou civilização”), que “decalca e traduz”. Funciona com
memória curta (ou antimemória): “a memória curta é de tipo rizoma, diagrama, enquanto
que a longa é arborescente e centralizada (impressão, engrama, decalque ou foto)” (Deleuze
e Guattari, 1995a, p.25; p.26).

122
(4) Se, no pensamento curricular espacializado, ainda resta alguma história, é aquela
feita de elementos não-históricos, que não vão de um estado estabelecido a outro, mas
circulam em séries divergentes, procedendo por variação, expansão, conquista, picada,
captura. Pensamento que implica uma linha de “catástrofe”, não como desastrosa, mas
como promotora de partidas e chegadas, aquém e além das territorialidades (cf. Deleuze,
2007, p.103).
(5) Assim como “a história é uma geo-história” e “a filosofia é uma geo-filosofia”
(“A filosofia é devir, não história; ela é coexistência de planos, não sucessão de sistemas”;
Deleuze e Guattari, 1992, p.78), também um currículo é o geocurrículo.
(6) (Mas, por que agora? Por que neste momento, e não em outros? Por que neste
lugar? Por que nós?) Não temos como não assumir a dimensão espacializante (logo, de
exterioridade), na medida em que a mundialização é correlata à urgência de integrar (sem
condescendência demagógica, via auto-integração, integrações recíprocas, integrações
unilaterais, mas localizáveis em limites, etc.), num devir comum, vários territórios, culturas,
relações, subjetividades.
(7) Desse modo orientado, o geocurrículo deixa de ser mediador entre a história
curricular e os seus modos de saber-fazer. Assume as fragilidades do que se apresenta como
evidente. Afirma a irredutibilidade dos meios e a potencialidade das passagens. Pensa nos
limiares da ciência, da arte, da filosofia. Arranca-se do culto das suas estruturas, para
aventurar-se na poiesis da própria manufatura e, logo, na criação de outros currículos que
recaem na história, mas nela não se originam.
V – Dos 21 mas...
A variabilidade do geocurrículo aparece em 21 mas..., que podem dar a impressão
de invariantes ou modelos majoritários. Mas, eles projetam a singularização de currículos
estandartizados.
(1) Pode ser que o geocurrículo seja tomado como coisa-em-si, abstração conceitual
ou verbalista, sem qualquer concretude, impossível de ser relacionado com o observável da
experiência. Mas, em vez dessa clausura metafísica, ele consiste em um conjunto de
processos auto-organizadores, relativos a estratos (orgânicos, físico-químicos, tecno-
sociais, bio-políticos), isto é, numa máquina revolucionária: “tanto mais abstrata quanto é
real” (Deleuze e Guattari, 1997d, p.229; 2002).

123
(2) Talvez o geocurrículo seja visto como uma universal estratificação (cf. Deleuze
e Guattari, 1995b), que captura intensidades em sistemas e as explica. Mas, ele é, antes,
uma máquina abstrata (ib., p.227-232): (a) traça o diagrama do acontecimento; (b) sobrevoa
a paisagem curricular, constituída por rostos, corpos, coisas, figuras, cenas; (c) procede a
mineralizações, endurecimentos, desacelerações dos fluxos (de biomassa, gens, códigos),
definidos tanto pelos materiais, quanto pela escala temporal dessas operações.
(3) Falar do geocurrículo, como máquina (abstrata-revolucionária), que opera em
agenciamentos concretos, é falar metaforicamente. Mas, trata-se de uma analogia entre
noções de ordem erótica e sensível (indicados por uma sedimentação antiga de signos: a
significação) e noções de uma ordem inteligível e literária (indicados por figuras de escrita:
o significado), bem como dos efeitos de transferência de uma a outra ordem.
(4) Compostos por camadas sedimentares, formações históricas, práticas,
positividades, empiricidades, variáveis limitadas, os estratos do geocurrículo parecem uma
repetição quantificada do real, que nega qualquer novo modo de existência. Mas, eles
realizam uma itinerância interminável, que foge e faz fugir, que não julga e faz existir.
(5) A estratificação do geocurrículo é um instrumento de poder, logo, uma forma
molar, equilibradora, regulatória. Mas, ela consiste numa metaestável (nem estável nem
instável) e bi-direcional máquina, provida da energia potencial de afetar e de ser afetada:
“Num estrato, há duplas-pinças por toda parte, double binds, lagostas por toda parte, em
todas as direções, uma multiplicidade de articulações duplas que ora atravessam a
expressão, ora o conteúdo” (Deleuze e Guattari, 1995b, p.59).
(6) A dupla articulação do geocurrículo é constituída por substância e forma,
antagônicas entre si e que exigem a síntese dialética. Mas, a sua bi-polaridade: (a) é de
conteúdo e de expressão (cada qual possuindo substância e forma); (b) opera sobre e entre
os estratos e, ainda, no plano de imanência; (c) aponta a virtualidade da diferença e o
processo puro do devir; (d) considera a individuação dos seres como um movimento que
vai do virtual ao atual: “Cada estrato procede assim: pega nas suas pinças um máximo de
intensidades, de partículas intensivas, onde vai estender suas formas e suas substâncias e
constituir gradientes, limiares de ressonância determinados” (ib., p.70).
(7) A superfície de estratificação do geocurrículo é um organismo. Mas, ele age,
antes, como: (a) uma membrana, que estabelece contato entre o espaço interior e o exterior;

124
(b) como um corpo sem órgãos (cf. Deleuze e Guattari, 1996b); (c) de distribuição nômade
(do puro spatium; cf. Deleuze e Guattari, 1997a; 1997b; 1997c), atravessado por matérias
não-formadas (leves, livres, transitórias), que correm e se interrompem em todos os
sentidos da topologia de contato.
(8) O geocurrículo opera por codificação e territorialização, em temas, níveis,
conteúdos, atividades, objetivos, avaliação, etc. Mas, ele é traçado sobre um plano,
tornando-se mais compacto e espesso no nível dos estratos, os quais consistem em: (a)
fenômeno de acumulação, coagulação e sedimentação, cujas camadas são os próprios
estratos, que se agrupam (no mínimo) aos pares, cada uma servindo de subestrato à outra;
(b) agenciamento maquínico, que possui interestrato (com uma face voltada para os
estratos) e metaestrato (com outra face voltada para o corpo sem órgãos ou plano de
consistência desestratificado).
(9) Nos estratos do geocurrículo, existem a dualidade forma e conteúdo, um
esquema causal e divisão hilemórfica (forma transcendente à matéria). Mas, neles,
depositam-se matéria, conteúdo e expressão, forma e substância.
(10) A estrutura ou os regimes de signos do geocurrículo determinam os seus tipos
de estratos. Mas, o processo de estratificação não acolhe o significado e o significante, nem
a infraestrutura e a superestrutura, pois todos são partículas em fluxos, que
desterritorializam o próprio currículo.
(11) A matéria do geocurrículo é um receptáculo inerte de formas originárias do
exterior. Mas, essa matéria: (a) possui recursos imanentes próprios, que geram formas
desde dentro através das forças; (b) é informe, substância semioticamente não formada,
estado indiferenciado e nebuloso.
(12) A substância do geocurrículo centraliza o conteúdo, pela seleção de materiais
heterogêneos. Mas, essa substância é: (a) aquilo de que a matéria é feita, o componente
organizado da matéria já formada (que não se confunde com a forma); (b) a matéria já
integrada à forma e referida a territorialidades espaciais.
(13) O conteúdo do geocurrículo é dado por matérias amorfas. Mas, esse conteúdo é
produção de matérias selecionadas (territorializadas) e formadas (codificadas),
consideradas tanto do ponto de vista da substância quanto da forma.

125
(14) A expressão do geocurrículo é uma estrutura não funcional. Mas, essa
expressão é considerada: (a) desde a organização da forma e da substância (que com a
forma se compõe); (b) pela maneira como o conteúdo é utilizado para produzir novas
entidades por sobrecodificação.
(15) A forma do geocurrículo é a matéria ainda não organizada. Mas, essa forma:
(a) implica um código ou um ordenamento temporal; (b) produz a matéria formada
(arcabouço, estrutura, esqueleto, aramado, sistema de diferenciação).
(16) O geocurrículo é atual: identifica coisas e palavras, fixa e unifica significações,
fabrica realidades. Mas, ele: (a) em grande parte, é virtual, logo, auto-diferenciador e
criador (cf. Deleuze, 1998c); (b) ocupa-se de idealidades, que agem como limites daquilo
que pode ser visto-e-dito e da desterritorialização dos estratos; (c) modifica formas de
representação, compreensão, apreensão e ação, propiciando efeito de presença e presença
do real (cf. Cossutta, 1989).
(17) O geocurrículo é um caos indiferenciado. Mas, a sua natureza caosmótica
implica um ser mutável, o qual: (a) divide-se e é dividido por intermináveis bifurcações; (b)
é capturado na margem infinita do devir.
(18) O geocurrículo é centralizador e hierárquico, absorve e bloqueia a força dos
fluxos. Mas, como um espaço-tempo virtual a-histórico, ele é campo transcendental.
(19) O geocurrículo é científico. Mas, ele constitui uma filosofia política da
corporeidade.
(20) O geocurrículo é realista (tem os pés no chão). Mas, ele possui uma linha de
sobrevôo dada por: (a) criacionismo do desejo; (b) movimento impessoal das
subjetividades; (c) uma pragmática ativa, sem direção, sempre reinventada.
(21) O geocurrículo é dotado de diferença empírica, extensiva, relativa. Mas, ele é:
(a) morada da diferença imanente, anti-essencialista, intensitária; (b) diferença pura que,
num jogo de espelhos sem fim, é evasiva do próprio pensamento e do mundo.
VI – Dos 18 do método
(1) O método do geocurrículo: (a) não é teorético (opõe à unidade abstrata da teoria
a multiplicidade concreta dos fatos); (b) nem positivista (desqualifica o elemento
especulativo, para contrapor-lhe, sob um cientificismo banal, o rigor de conhecimentos
legitimados); (c) é perspectivista e deriva do ponto.

126
(2) A partir de uma determinada inflexão, estabelece-se um ponto de vista, o qual:
(a) não percorre a inflexão; (b) não é o ponto de inflexão; (c) tampouco é “exatamente um
ponto”; (d) consiste em “um lugar, uma posição, um sítio, um ‘foco linear’, linha saída de
linhas” (Deleuze, 1991, p.39).
(3) A atitude perpectivista: (a) “é uma radicalmente diferente liberdade na
constituição da objetividade”; (b) como na arte renascentista, “o processo de construção do
espaço no quadro pictórico supõe a escolha de um ponto realmente original, escolhido ad
libitum pelo artista” (Marques, 2003, p.113); (c) o artista-sujeito da perspectiva é aquele
que se instala no ponto de vista, isto é, na variação ou na sua própria inflexão; (d) assim,
“não é o ponto de vista que varia com o sujeito” (Deleuze, 1991, p.39); (e) mas, o ponto de
vista consiste na condição para que o sujeito apreenda algo (= x, anamorfose) ou uma
variação (metamorfose); (f) essa subjetividade articula objetividades, já que “a liberdade e
arbitrariedade”, que a compõem, “não deixam de conter regras objetivas e verificáveis”
(Marques, 2003, p.115),
(4) Mesmo que haja uma variedade (caóide) de pontos de vista, “todo ponto de vista
é ponto de vista sobre uma variação”, e esta não existe sem aquele (Deleuze, 1991, p.40).
(5) O ponto de vista não consiste em “um juízo teórico”, pois o procedimento de
perspectivar “é a vida mesma” (Deleuze, 1998a, p.179-180): “Até onde vai o caráter
perspectivista da existência, ou mesmo se ela tem algum outro caráter, se uma existência
sem interpretação, sem ‘sentido’ [Sinn], não vem a ser justamente ‘absurda’ [Unsinn], se,
por outro lado, toda a existência não é essencialmente interpretativa” (Nietzsche, 2001,
p.278).
(6) Um ponto de vista não possui regras exclusivas, que fazem cada um abrir-se
sobre outros pontos, na medida em que convergem; mas abre-se sobre uma divergência que
afirma: “A perspectiva – o perspectivismo – de Nietzsche é uma arte mais profunda que o
ponto de vista de Leibniz, pois a divergência cessa de ser um princípio de exclusão, a
disjunção deixa de ser um meio de separação, o incompossível é agora um meio de
comunicação” (Deleuze, 1998a, p.180).
(7) O perspectivismo: (a) não é um agregado unilinear de pontos de vista, sem
dinamismo interno e sem abertura para outros pontos e ângulos; (b) faz um trajeto ficar
entre dois pontos, mas o “entre-dois” ganha relevância, autonomia e direção próprias (cf.

127
Deleuze e Guattari, 1997c, p.50-62); (c) não é um relativismo comum (“variação da
verdade de acordo com um sujeito”), e sim a “condição sob a qual a verdade de uma
variação aparece ao sujeito” (Deleuze, 1991, p.40); (d) leva o mundo a se tornar infinito:
“hoje, pelo menos, estamos distanciados da ridícula imodéstia de decretar, a partir de nosso
ângulo, que somente dele pode-se ter perspectivas. O mundo tornou-se novamente ‘infinito’
para nós: na medida em que não podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre
infinitas interpretações” (Nietzsche, 2001, p.278).
(8) Sendo infinito, o perspectivismo implica não uma descontinuidade, mas uma
“distância positiva dos diferentes”: distância topológica, que afirma “toda sua distância”,
“como o que os relaciona um ao outro” (Deleuze, 1998a, p.178-179). Assim: (a) não há
vazio entre os pontos de vista porque o espaço vazio não existe, já que tudo é força; (b)
existe uma continuidade dada pela variação infinita: “temos diante de nós um continuum,
do qual isolamos algumas partes” (Nietzsche, 2001, p.140); (c) pontos singulares (que não
são contíguos) integram o contínuo (infinito e inacessível) de acontecimentos; (d) pontos de
inflexão determinam dobras, constituindo uma primeira singularização no extenso; (e) o
extenso é a repetição contínua da posição (do ponto de vista) e atributo do espaço: “como
ordem das distâncias entre pontos de vista que torna possível essa repetição”; (f) pontos de
vista são “um segundo tipo de singularidade no espaço”, enquanto “envoltórios de acordo
com relações indivisíveis de distância” (Deleuze, 1991, p.40-41).
(9) Como “modelo óptico da percepção e da geometria na percepção”, o ponto de
vista funciona como “jurisprudência ou arte de julgar” (ib., p.42-43). Ou seja: (a) toda
qualificação que fazemos ao contínuo de puras quantidades é uma intervenção
perspectivista; (b) qualquer distinção entre pontos de vista é uma ficção reguladora
(interpretação); (c) toda “interpretação é determinação do sentido de um fenômeno”
(Deleuze, 1994, p.21); (d) como os pontos são sempre de alternância (e só existem para
serem abandonados), não há nenhuma interpretação que prepondere sobre as demais.
(10) Embora, na multiplicidade das interpretações, não exista centro de
configuração, hierarquia transcendente ou caráter de generalidade, nem todas as matérias-
movimentos são equivalentes. Cada perspectiva seleciona, dispõe, põe em funcionamento
instrumentos (representacionais, cognitivos, esquematizantes, corporais), em relação à
vontade de poder (Wille sur Macht): “Não se deve perguntar ‘quem, afinal, está

128
interpretando’, porém a própria interpretação, como uma forma da vontade para o poder,
tem existência como um afeto (mas não como um ‘ser’, e sim como um processo, um
devir)” (Nietzsche, 2002, p.159-160).
(11) Assim, cada geocurrículo apresenta valor mais forte ou mais fraco, em função
de: (a) abrangência multiforme e plural do seu campo interpretativo; (b) maior ou menor
desconhecimento do próprio caráter ficcional (o que leva a graus também diversos de
substancialização); (c) delimitação interperspectivista, na relação com outras ficções
necessárias (cf. Marques, 2003, p.69-101); (d) possibilidade de realizar experimentações
com movimentos marginalizados por outras perspectivas: “Certos caminhos (movimentos)
não tomam sentido e direção, senão como os atalhos ou os desvios de caminhos apagados”
(Deleuze e Guattari, 1992, p.77).
(12) Nas relações móveis entre os geocurrículos: (a) não há incomensurabilidade
absoluta entre seus planos pensáveis, perspectivas, pontos de vista; (b) eles podem se reunir
ou se distanciar, uns dos outros, mas possuem em comum a restauração da transcendência
(da ilusão): “(não podem evitá-lo), mas também combatê-la com vigor”; (c) ao querer
distinguir qual deles é “o melhor” (o “bom ponto de vista”, que “nos dá as respostas e os
casos, como em uma anamorfose barroca”; Deleuze, 1991, p.43), verificamos se
determinado geocurrículo abdica da imanência; fecunda o transcendente; inspira mais ou
menos ilusões; “não entrega a imanência a Algo = x”; “não simula mais nada de
transcendente” (Deleuze e Guattari, 1992, p.78); (d) em outras palavras, se “isso de que lhe
falo, e no que você também pensa, está você de acordo em dizê-lo dele, com a condição de
que se saiba a que se ater sobre ela e que se esteja também de acordo sobre quem é ele e
quem é ela”? (Deleuze, 1991, p.43).
(13) Para avaliar um geocurrículo, não usamos nenhum critério (naturalista ou
metafísico) de verdade, mas atentamos para: (a) se a “causa da criação é o desejo de fixar,
de eternizar, de ser”; (b) ou “desejo de destruição, de mudança, do novo, de futuro, de vir a
ser”; (c) se o “anseio por destruição, mudança, devir, pode ser expressão da energia
abundante, prenhe de futuro” (dionisíaco); (d) ou o “ódio do malogrado, desprovido, mas
favorecido, que destrói, tem que destruir, porque o existente, mesmo toda a existência, todo
o ser, o revolta e irrita”; (e) se a vontade de eternizar vem “da gratidão e do amor”, como
“uma arte da apoteose, talvez ditirâmbica”, “venturosa-irônica”, “límpida e amável”; (f) ou

129
se é a “tirânica vontade de um grave sofredor, de um lutador, um torturado”, que “gostaria
de dar ao que tem de mais pessoal, singular e estreito, à autêntica idiossincrasia do seu
sofrer, o cunho de obrigatória lei e coação”; (g) vingando-se, assim, de “todas as coisas, ao
lhes imprimir, gravar, ferretear, a sua imagem, a imagem de sua tortura” (Nietzsche, 2001,
p.272-274).
(14) Produzido por um ponto de vista, que nos fornece um tipo de permanência no
mundo do devir, o geocurrículo apresenta os seguintes traços: (a) é sempre um outro
geocurrículo que corresponde a cada ponto de vista; (b) todos os geocurrículos ligam-se e
se afirmam por meio de suas distâncias e ressoam, entre si, pela divergência dos seus
conceitos, seres, objetos; (c) há, sempre, um outro currículo no geocurrículo, mas não um
que seja inferior ou superior aos outros; (e) o geocurrículo não carece de qualquer
instrumento ou órgão para conhecer a verdade, já que não existe “nem espírito, nem
entendimento, nem pensar, nem consciência, nem alma, nem vontade, nem verdade: tudo
ficções” (Nietzsche, 2002, p.79).
(15) O geocurrículo: (a) instaura sentidos, idéias, generalizações, empirias,
abstrações, imagens, vocabulário, recorrências, paráfrases, metáforas, polêmicas, esquemas
de inteligibilidade, vozes, referentes enunciativos, condições de validade, regras de leitura,
operadores textuais, etc., na medida em que realiza atos curriculares; (b) apresenta os seus
componentes associados aos de outros currículos, campos semânticos, lógicos e
ontológicos, áreas de saber-fazer, planos precedentes de pensamento, etc.; (c) reordena
formas de organização pré-estabelecidas (cristalizadas ou em movimento), encetando
prolongamentos e curvaturas, tracejando outras imagens, dispondo superposições “numa
ordem estratigráfica”: “mudanças de orientação que só podem ser situadas sobre a imagem
anterior (e mesmo para o conceito, o ponto de condensação que o determina supõe ora a
explosão de um ponto, ora a aglomeração de pontos precedentes)” (Deleuze e Guattari,
1992, p.77).
(16) O perspectivismo fornece, exatamente, o tipo correspondente de mundo, cuja
tipologia é integrada pelo “mundo vulgarizado”, qual seja: “a natureza da consciência
animal ocasiona que o mundo de que podemos nos tornar conscientes seja só um mundo
generalizado, vulgarizado – que tudo o que se torna consciente por isso mesmo torna-se
raso, ralo, relativamente tolo, geral, signo, marca de rebanho, que a todo tornar-se

130
consciente está relacionada uma grande, radical corrupção, falsificação, superficialização e
generalização” (Nietzsche, 2001, p.250).
(17) Frente ao processo interpretativo, não totalizante, eternamente movente,
maximamente diferenciado (perspectivado) de todos os geocurrículos, se algum jactar-se de
não possuir um ponto de vista, isto se deve à assunção do ponto de vista único, absoluto,
“fixo, exterior” daquele que vê “fluir, estando na margem” (Deleuze e Guattari, 1997c,
p.40). Então, esse ser perspectivo (mas que nega tal condição) não será um geocurrículo,
mas um currículo que não renova o pensamento educacional, por introduzir uma ficção
(completa e substancializada), derivada da “beatitude de um pensamento inteiramente
pronto” (Deleuze e Guattari, 1992, p.69).
VII – Da cartografia
(1) Para montar um geocurrículo, que localize a própria posição, num determinado
plano de composição, sem elementos primeiros e transcendentes: (a) não elaboramos um
gráfico, programa, projeto, desenho, fotografia, retrato, decalque, plano de
desenvolvimento ou de organização; (b) usando a arte cartográfica (do grego chartis, carta,
mapa, e graphein, grafia, escrita), traçamos um mapa (cf. Deleuze e Guattari, 1995a;
Rajchman, 2000).
(2) Por uma “questão de método”, consideramos que o mapa geocurricular, através
de “operações transformacionais”, caracteriza-se por ser: (a) aberto a locais e percursos,
que podem tomar direções imprevistas ou promover ações de modo desordenado; (b)
passível de constante modificação; (c) conectável em todas as dimensões; (d) desmontável,
rasgável e reversível, em suas múltiplas entradas e saídas; (e) adaptado “a montagens de
qualquer natureza”.
(3) Não confundimos o mapa com o decalque, pois: (a) mesmo que o mapa possa
ser decalcado, o decalque é como uma foto ou um rádio: isola aquilo que reproduz, via
“procedimentos de coação”; (b) ao traduzir o mapa em imagem, o decalque organiza,
estabiliza, neutraliza “as multiplicidades segundo eixos de significância e de subjetivação
que são os seus”; (c) o decalque reproduz do mapa apenas “os impasses, os bloqueios, os
germes de pivô ou os pontos de estruturação”; d) o decalque estrutura o que é rizomático:
“não reproduz senão ele mesmo quando crê reproduzir outra coisa. Por isto ele é tão
perigoso”; (e) por sua vez, também o mapa possui e propaga fenômenos de redundância

131
(estratos): “onde se enraízam unificações e totalizações, massificações, mecanismos
miméticos, tomadas de poder significantes, atribuições subjetivas”; (f) mas, o mapa “é uma
questão de performance”; (g) enquanto o decalque “remete sempre a uma presumida
‘competência’”: “É sempre o imitador quem cria seu modelo e o atrai”; (h) por isso,
religamos “os decalques ao mapa”, ou seja, voltamos a situar os impasses (“poderes
significantes”, “afetos subjetivos”, “territorialidades endurecidas”) sobre o mapa; (i) “e, por
aí”, abrimos tais impasses “sobre linhas de fuga possíveis” (Deleuze e Guattari, 1995a,
p.22-24).
(4) O mapa pode ser: (a) “preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação
social”; (b) desenhado “numa parede”; (c) construído “como uma ação política ou como
uma meditação”; (d) concebido “como obra de arte” (ib., p.22).
(5) Usamos o princípio de seleção do mapa, seguindo coordenadas anteriores aos
objetos, sujeitos e identidades, de modo que só retemos e conservamos (portanto, criamos e
tornamos consistente) aquilo que “aumenta o número de conexões a cada nível da divisão
ou da composição” (Deleuze e Guattari, 1997d, p.223).
(6) Assim, grafematizar o mapa curricular é uma crítica-clínica do pensar, do educar
e do viver, dotada de rara e eletrizante beleza.
VIII – De com quem anda, quem é
Podemos, agora, lembrar o provérbio, presente no título, e defender que o
geocurrículo anda com os nômades; logo, é um nômade. Preparado para o embate com o
caos, ele é feito por nômades e para nômades. Desperto, não habita a cidade da consciência.
Leve, não tem guarda-chuva, sombrinha, nem guarda-sol, para se proteger do “caos livre e
tempestuoso” (Deleuze e Guattari, 1992, p.261). Desagregado, não rasteja atrás de
consoladoras leis transcendentes. Espantado, não estabelece contratos prévios. Divertido,
não formula uma humanidade estereotipada, acanhada, estúpida. Armadilha amorosa, não
possui ideais de formação. Sabedor de que não “cabe temer ou esperar, mas buscar novas
armas” (Deleuze, 1992, p.220), não avaliza as imagens que criamos nem a opinião
dominante que as sustenta. Com valor de fecundação, não renuncia àquilo que cria
problemas para nós. Tempestade de forças, não projeta conteúdos diferentes dos pensados
até então. Desestratificado, não pressupõe o que existe para ser pensado. Espaço anterior
(onde nada é ainda), não se ocupa com métodos para pensar ou com modos canônicos de

132
viver. Relação da força consigo mesma, dobra o lado de fora e derruba os próprios mapas e
diagramas (cf. Deleuze, 2004). Topologia extraordinariamente fina, “não repousa sobre
pontos ou objetos”, mas varia no espaço táctil, háptico, sonoro, e “modifica sua cartografia”
(Deleuze e Guattari, 1997c, p.54). Leque a dobrar-se e desdobrar-se, dramatiza estranhos
potenciais. Dotado de ligeireza, fantasia existências fragmentárias. Curvilíneo e turbilhonar,
informa a bandidagem de naturezas descontínuas. Atravessador do Rubicão, tematiza a sua
estética múltipla, que complica vários currículos. Abertura ao futuro, pensa de outra
maneira: afirmativamente. Roubado ao além, reparte aprendizagens sem fim no espaço
aberto. Alquimista em deslocamento, não entroniza a vida como sobrevivência. Arabesco
esfumaçado de contornos, deixa-se ativar pela vida. Fabulosa reserva rizomática, existe
para reinventar a vida. Sísmico, em labirintos, faz circular nuances infinitas da vida, pelas
quais vale a pena constituir novos modos de existência. Artistagem do viver, para tornar-se
“vivível, praticável, pensável” (Deleuze, 1992, p.138), o geocurrículo biografematiza (cf.
Barthes, 2005) a sua própria feitura, identificando-se com Mallarmé 2006, p.31-32), quando
este premedita e arquiteta “o Livro”: “mostrar um fragmento executado, fazer cintilar a
partir de um ponto sua autenticidade gloriosa, indicando todo o resto para o qual uma vida
não basta. Provar pelas porções feitas que este livro existe, e que conheci o que não poderei
ter cumprido”.

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AUTORES

Cristiano Bedin da Costa. Psicólogo pela Universidade Federal de Santa Maria, RS.
Mestre e doutorando em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Divide
a vida em antes e depois dos Ramones.
Deniz Alcione Nicolay. Licenciado em Pedagogia pelo Centro Universitário FEEVALE.
Mestre em Educação e atualmente doutorando em Educação pela UFRGS. Professor e
sobrevivente das Odisséias escolares.
Eduardo Guedes Pacheco. Bacharel em Percussão e Mestre em Educação pela UFSM,
RS. Professor de Música na UNISC e UNICRUZ. Coordenador pedagógico da Associação
CUICA.
Ester Maria Dreher Heuser. Professora do Curso de Filosofia da UNIOESTE/PR.
Pesquisadora do Grupo DIF – artistagens, fabulações, variações. Feliz por não ter sido
destituída do Bando após a defesa do doutorado.
Fábio José Parise. Psicólogo. Professor substituto do Colégio de Aplicação da UFRGS.
Mestrando em Educação na UFRGS. Apreciador intrépido dos dias cinzentos.
Gabriel Sausen Feil. Doutor em Educação pela UFRGS. Professor de Comunicação Social
na Universidade Federal do Pampa. Pesquisador do DIF - artistagens, fabulações,
variações. Acredita que o único jeito de manter um autor vivo é o reinventando toda vez.
Karen Elisabete Rosa Nodari. Coordenadora do Núcleo de Orientação e Psicologia
Educacional do Colégio de Aplicação da UFRGS. É Pedagoga e Doutora em Educação pela
UFRGS. E, como pesquisadora do DIF – artistagens, fabulações, variações, especializou-
se em nadar contra a corrente.
Luciano Bedin da Costa. É psicólogo, tem Mestrado em Educação pela UFRGS e integra
o DIF como doutorando. Faz parte daqueles que partilham da lógica: biografo, logo isso
existe.
Marcele Pereira da Rosa. Psicóloga pela UFSM, Mestre em Psicologia Social e
Institucional pela UFRGS. Agregada-amiga do Bando, gosta de brincar com nanquim e
com o vento.

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Marcos da Rocha Oliveira. Licenciado em Pedagogia e mestrando em Educação pela
UFRGS. Pratica catações azucrinadas, escrituras biografemáticas, plagiotropias
neobarrocodélicas. Possui as ventas ruivosas. Não usa meias cinzas – dizem.
Máximo Lamela Adó. Mestre em Literatura e licenciado em Ciências Sociais pela
Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, mestrando em Educação na UFRGS.
Sua atenção parece querer a superfície; a manufatura mais que a forma.
Sandra Mara Corazza. Professora de Filosofia na Faculdade de Educação da UFRGS.
Pesquisadora do CNPq. Líder do Grupo DIF – artistagens, fabulações, variações. Chefe do
Bando de Orientação e Pesquisa (BOP). Por isso, arrisca tudo a cada vez.

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