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ARQUITETURA IV
autores
IGOR FREIRE DE VETYEMY
FRANCISCO PALMEIRA DE LUCENA
1ª edição
SESES
rio de janeiro 2017
Conselho editorial roberto paes e luciana varga
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida
por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em
qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Copyright seses, 2017.
isbn: 978-85-5548-447-6
3. Revisão do Modernismo 83
Preâmbulo crítico à arquitetura moderna 85
Tradição e monumentalidade na obra de Louis Kahn 85
Team X e a revisão do movimento moderno 89
Jane Jacobs: diversidade e a crítica ao urbanismo moderno 92
Perspectivas contemporâneas 96
História e formalismo: o moderno sob a óptica de Tafuri, Rossi e Rowe 96
Utopias hodiernas: Archigram e o metabolismo japonês 104
Eisenman e o pós-funcionalismo na arquitetura 110
4. Pós-Modernismo 115
A condição pós-moderna 117
Desconstrutivismo 165
Desconstrução em Eisenman 170
Prefácio
Prezados(as) alunos(as),
O mito da modernidade
Creio que a tônica para pensar a relação complexa entre Arte, História e Arquitetura
neste livro é sem dúvida sobre a palavra modernidade, ou melhor, uma correção sobre
o marco temporal modernidade, ou seria melhor dizer, sobre o conceito modernida-
de. Continuo na dúvida... A brincadeira serve para pensarmos o quanto este termo é
corriqueiro, comum, de definição tão simples, mas absolutamente complexo de en-
tendimento. Moderno em qualquer dicionário aparece como sinônimo de “novo.”
E esta pequena apresentação trata sobre a busca desse novo, conceitual, definitivo e
necessariamente perene na nossa forma de compreensão da sociedade.
A modernidade representa contextualmente a inauguração de uma ideia de
rompimento, normalmente associada à superação de algo que fora considerado
ultrapassado. Na prática ela é perfeitamente contraditória na sua compreensão.
Afirmo isso pois áreas diferentes enxergam em momentos diferentes da história o
que seria o momento de sua modernidade.
Historiadores, por exemplo, reconhecem no termo um marco histórico-didá-
tico tradicional estabelecido na transição entre o século XV e XVI e que inaugura
a concepção de uma ruptura das estruturas feudo-vassálicas e a implementação de
uma estrutura política conhecida como Antigo Regime, ou as chamadas monar-
quias absolutas, que de absolutas não tinham nada. É interessante notar que esse
marco que estudamos com tanto afinco ainda nos bancos escolares se encontra
para lá de superado. Que as estruturas não se modificam da maneira como são
normalmente propaladas, e muito, mas muito das características do que seria a
Europa medieval permanecem vivas inclusive nos novos modelos coloniais.
O conceito de modernidade não foi construído pelos seus contemporâneos;
assim como todo marco histórico, é uma construção posterior, gestada em um mo-
vimento filosófico-intelectual europeu que ficou conhecido como Iluminismo. Este
movimento pretendia explicar, dar sentido a todo universo. Em especial demonstrar
que o homem com seu intelecto poderia tudo estruturar, explicar e quem sabe con-
trolar. No que tange ao tempo, inventaram a própria linha histórico-temporal, uma
vez que balizam o tempo a partir de seus referenciais escolhidos. É dessa forma que o
início da história da humanidade passa a ser creditada a sumérios, e sociedades gre-
co-romanas passam a ser entendidas como o auge do homem, antes de seu período
de atraso, de meio, de trevas, na visão deles, conhecido com o provocativo nome de
Idade Média. Como fugir desse atraso? Recuperar as relações políticas, sociais, mas
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principalmente artísticas e arquitetônicas, dando a ideia de que o novo recuperava,
de forma melhorada, aquilo que o mundo havia esquecido. Contra o atraso, a mo-
dernidade era constituída como a solução definitiva da humanidade, uma vez que
trazia de volta gregos e romanos, repaginados, com novas técnicas.
Tudo bem que esse era um novo muito velho, em que as sociedades do século
XVI-XVIII, período conhecido por Era Moderna na história, tinha um discur-
so que se legitimava no passado, em uma retomada do mundo conhecido como
clássico, mas superando-o. A razão afinal havia chegado, o cogito de Descartes
anunciava, “penso logo existo.” Tudo emana da capacidade inventiva do homem.
Somos bons, somos maus, como viver em sociedade, qual o papel do governo, e
o mundo todo passa a ser ensinado, treinado, para ser Europa. Outras tradições?
Outras culturas? Civilização deriva da “romanidade” e só pode ser representada
pelos seus dignos sucessores, posso ser negro, índio ou de qualquer etnia, desde
que saiba que o ideal é ser europeu. O mundo, seja onde for, se quisesse passar
como finalmente crescendo, melhorando, experimentando os ideais do que era
entendido como berço da civilização, deve, no mínimo imitá-la. O neoclássico
e suas manifestações ecléticas se multiplicam, se repetem em qualquer capital; o
olhar era o mesmo, o sentido era o mesmo, a modernidade histórica era europeia.
Caem os reis, que venha o capital e as indústrias e o moderno passa ser a cidade e
a tecnologia. O governo monárquico passa a ser chamado de velho, Antigo Regime,
e a República era o futuro, o progresso. O século XIX ainda acreditava plenamente
na capacidade racional do homem para conduzi-lo à modernidade. A Revolução
Francesa inaugura o que os historiadores chamam de Era Contemporânea, mas na
prática, a busca, a discussão era ainda a mesma: a modernidade. Os caminhosdos
positivistas explicavam, demonstravam, precisamos de ordem para alcançar o pro-
gresso. O modelo era indiscutível, tentar de todas as formas copiar a Europa. Se a
Inglaterra crescia com suas indústrias, a França apaixonava o mundo com sua belle
époque. Na segunda metade do século XIX as grandes cidades do mundo sonhavam
em ser Paris, era sua chance de ser novo, agora definitivo, eterno.
O sonho das novas repúblicas, como a jovem República dos Estados Unidos do
Brasil, era tornar suas cidades uma definitiva reedição da França. De Barata Ribeiro,
passando por Pereira Passos e Carlos Sampaio, o modelo pensado para o Rio de
Janeiro era copiar essa França da segunda metade do XIX, os trajes caucasianos em
meio ao calor tropical, eram um detalhe menor. O mesmo ocorre em Florianópolis,
São Paulo, na criação de Belo Horizonte e Salvador, essas cidades sonham em ser a
nova França. Ruas largas, passeios públicos, teatros e novas construções, principal-
mente nova e grandiosas construções. As formas consagradas eram substituídas por
novas linhas artísticas gestadas nas academias europeias, como o Art Nouveau, a
arte nova que inovava nas formas, aparecia em uma nova estrutura de glamour que
8• capítulo
passava a ser experimentada como marco da nova arquitetura das cidades, claro, sem
esquecer nosso imenso potencial de misturar elementos.
Nos anos de 1920, a busca de inovar trouxe ao Brasil o Art Déco. Era a fase do
concreto armado e da ampliação das discussões sobre qual é a identidade do brasi-
leiro. Nessa busca, nosso Déco ganhou formas marajoaras, estruturas peculiares que
davam a indicação do que passará a ser nossa busca. Era o nosso novo surgindo, a
ideia de que uma inovação poderia partir de nossa própria forma de olhar o mundo.
Voltamos ao mundo. Afinal, no início do século XX o mundo estava pronto,
porém para se destruir. A ideia era que em nome do controle do mundo a luta cons-
tante era a busca. Valia tudo, usaremos a arte, a arquitetura, as armas e principal-
mente o capital. O que vale é dominar o mundo. A modernidade torna-se uma peça
icônica, era a busca e o fim, um elemento estruturante poderoso em um mundo
que pretendia usar o passado para legitimá-lo ao construir o novo. Sempre minha
nação, minha cultura, representando tudo e a cultura do outro, só poderiam ser as
marcas do atraso, logo devem ser extirpadas do mundo. Essa realidade leva o mundo
a perceber a necessidade de uma nova modernidade, afinal cada uma das grandes
nações em disputa tinham que erigir de maneira mais clara e mais gigantesca o seu
poder. O novo chegava a reboque de uma disputa de nações, pois junto com as ar-
mas e o desenvolvimento de marcas próprias de arquitetura eram fundamentais. Seja
Alemanha, Espanha, Inglaterra ou suas cópias espalhadas pelo mundo, mas com
algo novo, já que a modernidade exige a formação de novas identidades nacionais.
Problema? Mas e nós? Qual a nossa identidade? Afinal nós éramos portugue-
ses, sonhamos em ser ingleses, mas rapidamente lutamos, construímos um ideal:
convencer o mundo que nós éramos franceses. E agora? A década de vinte viu São
Paulo propor uma nova brasilidade, uma revolução nas artes, na cultura; vamos
assumir nossa antropofagia ritual tupi, assumir que guardamos uma parte da alma
de todos os nossos algozes para nos sentirmos mais fortes, além de um profundo
sinal de respeito à nossa multiplicidade. Era o Brasil da década de 1930, da che-
gada de Vargas ao poder, da ode ao concreto armado e dos grandes prédios. Nossa
crise de identidade resolvida? Nem perto disso. De modismos e planos, realizados
pela metade, construímos, pensamos, estruturamos um novo jeito de pensar nossa
cultura, nossa arte, nossa identidade e isso se refletiu na arquitetura.
O mundo e o Brasil respiravam novamente a modernidade. O motivo? O mes-
mo de sempre, a necessidade de negar um passado que me incomoda. O mundo,
passa pela Segunda Guerra sem desacelerar, sem deixar de ter como busca um cami-
nho que marcasse sua diferença, sua face alternativa, enquanto o velho, travestido
de novo, lutava, o moderno, tentando provar sua jovialidade, apesar do desgaste do
termo, se atrevia a pensar o Novo Mundo em um Velho Mundo depressivo.
capítulo •9
Afinal não eram poucas as mudanças. Velhas ideologias caíram por terra, as
novas emergiram em um mundo dividido entre o capitalismo e o comunismo. A
propaganda se espalhou pelas novas cidades, que explodiam de gente, o mundo
tornava-se mais urbano, mais apinhado, mais sujo, mais sem sentido. O espaço
precisa ser repensado, reocupado, realocado. Arte e arquitetura não eram feitas
apenas para servir, mas principalmente para afirmar novos símbolos de poder, e
não quiseram mais aceitar esse papel. Era necessário repensar o conforto do ho-
mem, para que ele tivesse direito à sua individualidade e à sua terra, que estava
serpenteada de ruelas. As torres da nova solução, o conforto, a coletividade recu-
perada. E junto nossa identidade, curvas, desenhos, em busca de um novo Brasil.
Não ia ter jeito. De tanta modernidade, repetida e repetida, uma hora ela definiti-
vamente iria cair em desgraça, em desuso. A virada linguística veio provocar o mundo
a notar seu diálogo de surdos. As soluções de todas as formas se tornaram patéticas. O
culpado não poderia ser outro, só poderia ser ela, a modernidade. Sonhamos tanto,
mas tanto com o novo, que surge a necessidade de superá-lo. Sem mais olhares ilumi-
nistas, sem mais linhas conceituais, o mundo de novos discursos, das individualidades,
das percepções que fluem e se dissolvem no ar. Como chamar, como pensar esse novo
mundo? Só uma alcunha o atenderia em plenitude: pós-modernidade. A noção do não
ter absoluta noção onde se encontra, mas uma profunda certeza de não se estar mais
onde se pretendeu estar para eternidade. O moderno envelheceu, mas até sua supera-
ção, ou reflexão sobre ela não resistiu a trazer a modernidade à sua reflexão.
Filosofia meus caros, filosofia. Nossas discussões neste texto são uma chamada
a filosofar sobre o tempo, a arte e a arquitetura. Esse texto nada mais é do que uma
provocação. Uma proposital provocação. Essa é a busca da educação na sociedade
da informação. Os professores, os livros, o contexto educacional não servem, já
há longo tempo, para serem processos puramente informativos. O conhecimento
está na construção, no estímulo, na busca. Nesse livro vocês serão constantemente
provocados de forma a estimular sua busca. Quem construirá seu conhecimento
serão vocês. Então, fundamentalmente, divirtam-se!
Bons estudos!
10 • capítulo
1
Depois da
Revolução
Industrial –
O nascimento do
movimento moderno
Depois da Revolução Industrial – O nascimento
do movimento moderno
No final do século XIX, em uma sociedade em profunda transformação como
consequência da Revolução Industrial, forjava-se um terreno fértil para o surgi-
mento de uma quebra de paradigma no campo das artes e da arquitetura. A lógica
da produção em massa impactou todas as áreas da sociedade, criando uma nova
dinâmica de pensamento e testemunhando invenções que iriam transformar total-
mente o mundo construído e o ambiente em que se vivia.
A sociedade passava por um momento de muitas novidades e antecipação
pelas transformações cada vez mais rápidas no espaço em que habitava. A nova
maneira de morar, em cidades industriais, era uma realidade absolutamente dife-
rente dos modos de viver de até então, para o bem e para o mal. Os impactos em
todas as áreas do saber se sucediam em velocidade sem precedentes.
Enquanto o uso da energia a vapor permitia vencer barreiras de distância e
tempo antes inimagináveis, a invenção do elevador em breve libertaria o ser hu-
mano das proximidades do solo, criando possibilidades de reorganizar a cidade de
uma maneira que não poderia sequer ser imaginada antes.
O Iluminismo, movimento que surgira na França durante o século anterior,
fornecia base intelectual para essa nova maneira de viver, ao afirmar a supremacia
da ciência e da racionalidade sobre qualquer crença. O objetivo do movimento,
ao buscar leis e princípios universais que governam todas as coisas, era “iluminar”
os cantos “obscuros” do conhecimento, representados pelo pensamento religioso
e pelas monarquias absolutistas, ambos fundamentados na aceitação da limitação
humana para entender o porquê de tudo ser como é.
A Revolução Francesa de 1889, descendente direta dessa nova maneira de
pensar, assume como lema a famosa tríade da “liberdade, igualdade e fraternida-
de”, instituindo um novo modelo de governo. A percepção de que era possível
organizar a sociedade de uma maneira diferente cria um efeito dominó na Europa,
derrubando e enfraquecendo a monarquia e a Igreja, até então as grandes patronas
da arte em geral e da arquitetura em particular.
O campo profissional enfrenta um momento de crise em que precisa se rein-
ventar, seguindo o caminho das diversas outras áreas do conhecimento já afetadas
por essa nova forma de organização societária.
Dentro deste contexto e com o advento de novos materiais e meios de pro-
dução, surge ao redor do mundo uma série de movimentos. Mais tarde, esses
capítulo 1 • 12
movimentos viriam a ser percebidos como um prenúncio do movimento mo-
derno, que em breve uniria praticamente todos com uma linguagem universal
e onipresente.
OBJETIVOS
• Relacionar as transformações sociais causadas pela Revolução Industrial, pelo Iluminismo
e pela Revolução Francesa com o advento do movimento moderno;
• Reconhecer os principais movimentos de vanguarda que pavimentaram o caminho
do Modernismo;
• Compreender o processo de consolidação do Modernismo e o papel de seus principais
personagens neste processo.
A Revolução Industrial
capítulo 1 • 13
início da Revolução Industrial é o evento mais importante na história da humani-
dade desde a domesticação de animais e a agricultura.
A Segunda Revolução Industrial, com o uso crescente de navios a vapor, ferro-
vias e fabricação em larga escala, sucedeu à Primeira em meados do século XIX, e
antes da próxima virada de século já haveria indícios notáveis da revolução da arte
e da arquitetura que estava por vir.
O Iluminismo
capítulo 1 • 14
para o passado em um momento em que todos os outros campos do saber se vol-
tavam para o futuro. A referência, que já não era mais apenas a do passado clássico,
marcou o século XIX pelo historicismo eclético. O estilo de cada obra passou a de-
pender única e exclusivamente do gosto do arquiteto ou do contratante, não mais de
um produto e expressão de um determinado tempo em determinado local.
E uma profusão de releituras começou a dividir espaço na cidade do sécu-
lo XIX. Neoclássicos, neorromânicos, neogóticos, neobarrocos e muitos outros
“neos” surgiam lado a lado, não raro no mesmo edifício. Fachadas recriando
fielmente o estilo clássico francês ostentavam janelas neogóticas e balaustradas
neorrenascentistas.
Esse uso indiscriminado de referências, não mais como representante de uma
cultura específica de um tempo e de um local, mas simplesmente como algo de-
corativo, no entanto, não resistiu diante das possibilidades trazidas pelos novos
materiais e técnicas construtivas.
Em uma cidade onde fábricas, pontes e trens determinavam o paradigma do
mundo moderno, a arquitetura do ferro surgiria como maior expressão imediata
dessa adesão ao espírito do tempo industrial. A possibilidade de se produzir todas
as peças em velocidade e escala industrial transforma a técnica até então artesanal
de se construir em uma atividade limpa, racional, rápida, econômica e eficiente,
absolutamente alinhada com os tempos modernos.
capítulo 1 • 15
©© WIKIMEDIA.ORG
Figura 1.1 – Leve, etéreo e ainda assim suntuoso: o Palácio de Cristal de Londres, do arqui-
teto Joseph Paxton, de 1851.
Figura 1.2 – Símbolo da Revolução Industrial, a Tour Eiffel, construída entre 1887 e 1889
para ser temporária, acabou eternizando a marca do engenheiro Gustave Eiffel na paisagem
de paris.
capítulo 1 • 16
Nesse momento, em que os maiores acontecimentos arquitetônicos estão in-
timamente ligados às grandes novidades tecnológicas que são apresentadas nas
Feiras Universais, movimentos de vanguarda começam a se distanciar mais
convictamente das referências historicistas.
As possibilidades trazidas por novos materiais começam a criar uma nova
expressividade em cada região, absorvendo aspectos vernaculares de cada país
em determinados movimentos, passando, mais tarde, a ser reunidos sob a alcu-
nha de Movimentos Proto-Modernistas. Ou seja, ainda que bem diferentes entre
si, todos eles possuem características que reconhecidamente foram relevantes na
pavimentação do caminho rumo ao Modernismo.
Sem deixar de reconhecer a importância dos movimentos Arts & Crafts (ou
“Artes e Ofícios”, em tradução pouco utilizada), Cubismo, Abstracionismo,
Expressionismo, construtivismo russo e futurismo italiano, alguns outros movi-
mentos que eclodiram na Europa na virada do século XIX para o século XX e que
viriam a ter uma contribuição ainda maior para o surgimento do Modernismo
merecem um olhar um pouco mais aprofundado.
©© WIKIMEDIA.ORG
O Art Nouveau (francês para “Arte
Nova” e também conhecido por seu
nome em alemão, Jugendstil, ou “Estilo
da Juventude”) foi considerado essencial
na transição entre o Historicismo e o
Modernismo. Fazia uso das novas possi-
bilidades do ferro para criar, com fortes
referências às formas orgânicas da natu-
reza, um estilo “total”, incluindo todas
as escalas do design: arquitetura, design
de interiores, artes decorativas e têxteis,
joias, móveis, prataria e artes visuais. A
arte deveria ser um modo de vida.
Figura 1.3 – O Art Nouveau no design gráfico: um dos famosos cartazes de Mucha que
viraram ícones do movimento.
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©© HENRY TOWNSEND | WIKIMEDIA.ORG
Figura 1.4 – O Art Nouveau no design de interiores: escadaria da Casa Tassel (1892-1893),
de Victor Horta, em Bruxelas, na Bélgica, onde nasceu o movimento.
©© PLINE | WIKIMEDIA.ORG
capítulo 1 • 18
Tendo se espalhado rapidamente pela Europa e atingido escala global durante a
chamada belle époque, o Art Nouveau foi amplamente utilizado na virada do sécu-
lo, entre 1890 e os anos 1910, mas perdeu força com o início da Primeira Guerra
Mundial. O alto custo de produção do Art Nouveau levou o estilo a ser substituído
por um estilo com estética mais simples, mais ágil e retilíneo, que era mais barato e
mais fiel à indústria: o Art Déco (do francês Arts Decoratifs, ou “Artes Decorativas”).
Figura 1.6 – LeVeque Tower, projetada em 1924 por Howard Crane, em Ohio, nos Estados
Unidos.
Sem perder a intenção da “Arte total”, o Art Déco vai se utilizar de formas geo-
métricas e com simetria bem marcada, sem apresentar grandes intenções filosófi-
cas ou políticas, ao contrário da maioria dos outros estilos dessa época. O objetivo
era simplesmente decorativo.
Considerado então como uma maneira elegante, funcional e ultramoderna
de representar a sociedade, o Art Déco viria a utilizar materiais simples (concreto,
madeira, mármore, bronze, prata e marfim) em requintadas decorações geométri-
cas na arquitetura, escultura, design de moda, de mobiliário, de joias, luminárias e
objetos decorativos em geral. Teve seu ápice durante os anos 1920, mas continuou
com bastante força nos Estados Unidos até os anos 1930.
capítulo 1 • 19
Escola de Glasgow e Secessão de Viena
capítulo 1 • 20
arranha-céus do mundo, ainda em meados da década de 1880, pouco depois da inven-
ção, nos Estados Unidos, do elevador elétrico, em 1853. Elisha Graves Otis, ao inserir
um sistema de segurança antiqueda, como uma evolução das plataformas elevatórias
– hoisting plataforms – possibilitou o uso dessa tecnologia em grande escala e com se-
gurança, permitindo esse uso em edifícios comerciais e residenciais.
Pouco depois, em 1896, Sullivan escreve que “a lei que governa todas as coisas,
orgânicas e inorgânicas, físicas e metafísicas, tudo, se reconhecia nessa expressão”
(que ele atribuía a Vitruvius, mas que ficou marcada como sua): “a forma segue a fun-
ção”. Mais tarde, essa viria a se tornar uma das principais máximas do Modernismo,
o que levaria Sullivan a ficar conhecido como “o profeta da arquitetura moderna”.
Curiosamente, a Escola de Chicago e Louis Sullivan viriam a influenciar mais um
importante arquiteto austríaco do que os colegas de sua terra. Depois de passar um
tempo nos Estados Unidos, Adolf Loos retorna a uma agitada Viena trazendo ideias
diferentes que ecoariam mais forte do que o movimento de contestação das normas
tradicionais que vinha sendo promovido por seus conterrâneos, criticados por ele.
Em 1908, Loos escreve um ensaio ao qual dá o título de “Ornamento e Crime”.
Esse manifesto representa o ponto culminante de uma oposição teórica ao movimento
Art Nouveau. Loos considerava a ornamentação na arquitetura algo inaceitável naque-
les tempos por causa do desperdício de trabalho e de materiais da civilização industrial
moderna. Ele dizia que a arquitetura deve servir à necessidade prática, e não à arte. Esse
discurso de Loos seria recebido com entusiasmo pela vanguarda francesa.
Walter Gropius e Le Corbusier, dois dos principais responsáveis pela conso-
lidação do movimento moderno, que serão objeto de estudo mais adiante neste
capítulo, viriam a ser muito influenciados pelas ideias de rejeição à ornamentação
de Adolf Loos.
Mas antes disso, na terra de Petrus Berlage2, o artista, designer, poeta e arqui-
teto holandês Theo van Doesburg funda, juntamente com o pintor Piet Mondrian
e outros artistas, o Neoplasticismo (ou De Stijl, no original em holandês). Em
um curto espaço de tempo, de 1917 até 1931, este movimento deixaria uma he-
rança de riqueza imensurável. No campo da pintura, Mondrian influenciou uma
série de outras correntes abstratas contemporâneas e gerações subsequentes. Na
arquitetura e no design, o intercâmbio com a Bauhaus, na Alemanha, na qual van
Doesburg lecionou, foi uma parceria extremamente frutífera.
2 Hendrik Petrus Berlage (1856-1934), arquiteto holandês, também considerado pelos conterrâneos como o pai
da arquitetura moderna. Um dos membros-fundadores do CIAM, tem grande influência em sucessivas gerações de
arquitetos nos Países Baixos, desde os próprios neoplasticistas até estrelas da arquitetura contemporânea, como
Rem Koolhaas e os grupos MvRdV e Mecanoo.
capítulo 1 • 21
Figura 1.7 – O quadro "Grande Composição A", de Piet Mondrian, de 1920, que exempli-
fica o abstracionismo do movimento relacionado ao espírito urbano, progressista, daquele
momento histórico na Europa.
Figura 1.8 – Cadeira vermelha e azul, desenhada por Gerrit Rietveld em 1917 sob influên-
cia dos primeiros escritos do neoplasticismo.
capítulo 1 • 22
“Até então" porque poucos anos mais tarde, em 1924, Rietveld cria mais uma
peça que entraria para a história, a Casa Schroeder. Uma versão maior, mais complexa
e mais completa do seu rigoroso abstracionismo. Novamente o volume é explodido
em linhas e planos autônomos, que enfatizam essa independência indo além do seu
destino estrutural final, destacados uns dos outros também pelo uso preciso de cores
primárias. A inovação plástica era gritante em relação à arquitetura tão tradicional
dos Países Baixos. O contraste pode ser percebido muito claramente na relação da
casa com seus vizinhos. Além disso, a casa inaugura um conceito que jamais deixará
de estar presente na arquitetura: a polivalência e a versatilidade dos espaços.
Figura 1.9 – A casa Schroeder, construída em 1924 por Gerrit Rietved, em Utrecht, na Ho-
landa. Foto de autoria do autor do livro, de 2016.
capítulo 1 • 23
Consolidação do movimento moderno
A fundação da Bauhaus
capítulo 1 • 24
Política e sociedade: arte e arquitetura como atividades subversivas
capítulo 1 • 25
Sob acusações de comunismo, Hannes Meyer é substituído na direção da escola
por outro personagem central na consolidação do Modernismo.
Menos é mais: Mies van der Rohe, as casas pátio e o super-homem de Nietzsche
capítulo 1 • 26
©© ASHLEY POMEROY | WIKIMEDIA.ORG
Figura 1.11 – O pavilhão de Barcelona reconstruído.
capítulo 1 • 27
uso de grandes panos de vidro de piso a teto, que obrigam a luz penetrar e refletir de
maneira homogênea nos planos horizontais do piso e do teto.
Figura 1.12 – A Cadeira Barcelona, criada para o pavilhão, que se tornou uma das marcas
de Mies van der Rohe e é sucesso de vendas até hoje.
O filósofo Friedrich Nietzsche era uma forte referência para Mies van der Rohe. Seus
textos, especialmente sua obra Assim falou Zaratustra, influenciaram bastante Mies van
der Rohe. O “Super homem” de Nietzsche serviu, conscientemente ou não, de inspiração
capítulo 1 • 28
para o homem que habitaria seus estudos das famosas casas pátio (1931 a 1938),
que não tinham um cliente real e jamais viriam a ser construídas. Construí-las não era a
intenção, mas os estudos tiveram muitos desdobramentos facilmente reconhecíveis na
obra de Mies van der Rohe.
capítulo 1 • 29
Le Corbusier, seus cinco pontos e a máquina de morar
A cidade de Brasília, cujo plano piloto é de autoria do arquiteto e urbanista Lúcio Costa,
extremamente influenciado por Le Corbusier, é considerada como o mais avançado expe-
rimento urbano no mundo que tenha aplicado integralmente todos os princípios da Carta.
4 No original em Francês, Vers une Architecture, livro de 1923, que virou um clássico da arquitetura, com uma
compilação de artigos de Le Corbusier durante os anos anteriores na revista L’Esprit Nouveau, da qual era editor-
chefe.
capítulo 1 • 30
Figura 1.13 – "Villa Savoye, a casa-manifesto de Le Corbusier, de 1929 em Poissy, na Fran-
ça." Fonte: Foto de autoria do autor do livro, de 2006.
Em seu manifesto, ele coloca a questão com as seguintes palavras: “Se eliminar-
mos de nossos corações e mentes todos os conceitos mortos a propósito das casas e examinar-
mos a questão a partir de um ponto de vista crítico e objetivo, chegaremos à “Máquina de
Morar”, a casa de produção em série, saudável (também moralmente) e bela como são as
ferramentas e os instrumentos de trabalho que acompanham nossa existência”.
A partir desta vontade e da liberdade cada vez maior que as novas tecnologias
possibilitavam, Le Corbusier formulou o que ficou conhecido como os 5 pontos
corbusianos, colocando a teoria em prática com uma espécie de “residência-mani-
festo”, a Villa Savoye.
Praticamente todos os pontos têm relação com a libertação das paredes de sua
função estrutural, com a criação da estrutura independente. Le Corbusier já havia
elaborado, entre 1914 e 1917, um estudo libertador chamado casa dom-ino, em
que seu protótipo da construção moderna foi desnudado, representado apenas
por lajes, pilares, fundações e circulação vertical para demonstrar que os demais
elementos da edificação poderiam ser absolutamente livres.
capítulo 1 • 31
Figura 1.14 – Sistema construtivo da Casa Dom-ino, criado por Le Corbusier em 1915,
em parceria com o engenheiro suíço Max du Bois. Disponível em: <http://photos1.blogger.
com/x/blogger/250/4253/1600/167906/07.jpg>.
capítulo 1 • 32
Para deixar clara sua intenção de que o sistema estrutural independia de qual-
quer organização das paredes, o arquiteto, numa atitude firme e – porque não
– quase irreverente, chega a colocar um pilar no meio do banheiro, entre a pia e
o vaso sanitário. A relação da máquina de morar com outras máquinas também
é deixada clara na curvatura do bloco menor, que encosta no térreo, cujo raio
corresponde exatamente à curvatura que um dos símbolos da vida moderna, o
automóvel Citroën do proprietário, podia fazer para estacionar.
O caminho para chegar a essa vaga de estacionamento também não poderia
ser feito sem antes dar a volta na residência, no que o próprio Le Corbusier cha-
mava de “Promenadearchitecturale”, uma espécie de passeio arquitetônico “guiado”
pelos gestos do arquiteto ao definir a implantação e acesso, momento em que de-
veria imprimir sua intenção em relação às possibilidades de aproximação da casa.
A eloquência com que discursava, suas constantes viagens de divulgação da
nova arquitetura, cujo financiamento se credita à então jovem e promissora in-
dústria do aço e sua constante busca de documentar suas ideias e torná-las com-
preensíveis, fez de Le Corbusier uma figura tão importante para o movimento,
que o Modernismo que mais vem a influenciar a criação do movimento moderno
brasileiro é chamado de modernismo corbusiano.
capítulo 1 • 33
Outro personagem essencial que viria a contribuir muito para a consolidação
do Estilo Internacional como movimento hegemônico da primeira metade do
século XX é o arquiteto, crítico e historiador Philip Johnson, parceiro de Mies
van der Rohe no lendário projeto do Seagram Building e primeiro ganhador do
Prêmio Pritzker, considerado o “Oscar da arquitetura”. Foi dele e de seu parceiro
Henry-Hussel Hitchcock o livro de 1932 em cujo título os autores cunharam a
própria expressão “International Style”. Neste livro, os autores definiam três prin-
cipais características formais do Modernismo, que se tornariam cânones do Estilo
Internacional: a ênfase no “volume arquitetônico”, não na massa (planos no lugar
de solidez); rejeição à simetria; e a já comentada rejeição à ornamentação.
O livro acompanhava uma exposição que ajudou muito a dar visibilidade ao
movimento e que se chamava “Moder Architecture – International Exhibition” (em
tradução livre: “Arquitetura Moderna – Exposição Internacional”). Neste momen-
to Philip Johnson era diretor do MoMA (Museum of Modern Arts, o respeitado
Museu de Arte Moderna de Nova York), no qual organizou esta exposição. Bem
mais tarde, em 1988, Johnson tornaria a organizar outra exposição no mesmo
museu que ajudaria a solidificar o conceito do desconstrutivismo, como veremos
mais adiante neste livro.
Isso mostra como se tratava de uma pessoa à frente do seu tempo, um visionário,
considerado um dos pais do Estilo Internacional e autor de uma das suas obras mais
emblemáticas, a “Casa de Vidro”, que construiu em 1949 em New Canaan, também
nos Estados Unidos, como tese de mestrado quando estudava em Harvard com o
célebre Marcel Breuer, da primeira geração de formandos da Bauhaus.
©© STAIB | WIKIMEDIA.ORG
Figura 1.15 – A casa de vidro de Philip Johnson, de 1949, que materializa os preceitos do
Estilo Internacional.
capítulo 1 • 34
Philip Johnson morou por 58 anos nessa casa, cuja maior influência foi a casa
Farnsworth, de Mies van der Rohe, exibida com destaque na exposição do MoMA
em 1947. A casa de vidro, a exemplo da casa Farnsworth, também se tornaria
uma das maiores referências do Estilo Internacional. A particularidade de ter sido
concebida como uma tese de mestrado, fez o projeto ser permeado por preciosas
lições sobre geometria e estrutura minimalista, sobre proporção e sobre os efeitos
da transparência e dos reflexos que vinham do uso de grandes panos de vidro.
Também se tornou referência em relação ao uso de materiais industriais, como o
aço e o vidro, em projetos residenciais.
Exemplos como esses, junto com a força e influência dos CIAMs e da Bauhaus,
do discurso corbusiano e de todos os movimentos vistos neste capítulo, tornaram
o Modernismo – e o Estilo Internacional, em particular – um dogma com extrema
penetração em diferentes culturas. Após a Segunda Guerra Mundial, especialmen-
te, fazia muito sentido a busca por uma arquitetura “industrial”, produzida em
escala e, para tal, replicável em qualquer contexto, como forma de mitigar o déficit
habitacional produzido pela guerra.
Mas um país em particular iria começar a se destacar no mundo arquitetônico
a partir de uma versão particular e local do Modernismo, criada justamente por
uma flexibilização desses dogmas, digeridos e transformados pela cultura local. O
Brasil entraria em cena, com alcance internacional, a partir do revolucionário edi-
fício do Ministério da Educação e Cultura, no Rio de Janeiro, em 1936. Naquele
momento, o país daria início a um ciclo que passaria pela grande exposição “Brazil
Builds”, também no MoMA de Nova York, em 1943 e culminaria com a constru-
ção da nova capital, Brasília, inaugurada em 1960. Tudo isso, que será analisado
mais detalhadamente no próximo capítulo, teria início no episódio marcante da
Semana de Arte Moderna de 1922.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GOODWIN, Philip; SMITH, Kidder G. E. Brazil Builds: architecture new and old, 1652-1942. Nova
York: MOMA, 1943.
BARNES, Rachel. The 20th-Century art book. London: Phaidon Press, 2001.
CORBUSIER, Le. Por uma Arquitetura . São Paulo: Perspectiva, 2004 (Original Vers une Architecture,
Paris, 1923)
DROSTE, Magdalena. Bauhaus: Bauhaus archiv.Taschen, 2011.
GROPIUS, Walter. “Bauhaus Manifesto and Program”. Bauhaus, 1919.
capítulo 1 • 35
McCLOSKEY, Deidre. Review of the Cambridge Economic History of Modern Britain. Cambridge:
Times Higher Education Supplement, 2004.
SARNITZ, August. Otto Wagner: Forerunner of Modern Architecture. Berlin: Taschen, 2005.
SULLIVAN, Louis. The Tall Office Building Artistically Considered. Chicago: Lippincott's Monthly
Magazine (March 1896).
capítulo 1 • 36
2
Tupi or not Tupi –
Modernismo à
brasileira
Tupi or not Tupi – Modernismo à brasileira
Neste capítulo voltaremos um pouco no tempo para ver como todas as mu-
danças pelas quais o mundo estava passando na primeira metade do Século XIX
se refletiam no Brasil às vésperas da revolução que colocaria o país no centro das
atenções mundiais, principalmente no campo da arquitetura. Em um mundo
ainda distante da globalização que vivemos atualmente, novidades tecnológicas
demoravam para chegar ao Brasil, o que postergava alterações substanciais no nos-
so cotidiano, especialmente em obras arquitetônicas, que via de regra demoram
alguns anos para ficar prontas. Por outro lado, esse tempo diferente oferecia uma
oportunidade de digerir assuntos de acordo com a nossa perspectiva. A “antropo-
fagia cultural” proposta por Oswald de Andrade e uma geração genial de artistas
brasileiros se apoiava justamente nessa adaptação das novidades estrangeiras ao
nosso contexto cultural, aos nossos costumes, ao nosso modo de ser e de viver.
Por ser um recorte temático diferenciado, no sentido que o Período Moderno
no Brasil extrapola o tempo do movimento moderno europeu, este capítulo terá
sua própria lógica em relação à cronologia "universal" do moderno. Some-se a isso
a importância dos grandes mestres modernistas brasileiros e temos um capítulo
pouco ortodoxo em um livro de história. O tempo cronológico, neste capítulo,
ficará um pouco em segundo plano enquanto contamos a história de alguns des-
ses mestres até o fim de suas vidas, para então passarmos a outro personagem,
retornando ao início do Período Moderno no nosso país e perpassando diversos
momentos de sua trajetória, para então, num ciclo contínuo, retornar no tempo
enquanto o leitor se familiariza com mais e mais personagens dessa trama.
OBJETIVOS
• Compreender o contexto brasileiro na primeira metade do século XX e as condições para
a chegada do Modernismo ao país;
• Relacionar a Semana de Arte Moderna de 1922 e as influências estrangeiras ao aspecto
singular que definiu o modernismo brasileiro;
• Compreender o processo de consolidação do Modernismo no país e o papel de seus prin-
cipais personagens neste processo;
• Reconhecer os principais eventos e projetos que contribuíram para o sucesso da geração
de arquitetos modernistas brasileiros.
capítulo 2 • 38
Contexto e condições para o estabelecimento do Modernismo no
Brasil
5 Avenida 9 de Julho, Buenos Aires, 1912-1930; 140 metros de largura total, contando as pistas marginais.
6 - Avenida Atlântica, construída entre 1905 e 1906.
7 "Theatro Municipal do Rio de Janeiro", obra do arquiteto francês Albert Guilbert em parceria com o arquiteto
brasileiro Francisco Pereira Passos, filho do prefeito; construído entre 1905-1909.
8 Opera de Paris, por Charles Garnier, construída entre 1862 e 1875.
capítulo 2 • 39
Semana de Arte Moderna de 1922
Foi nesse contexto que, entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922, essa cres-
cente vontade de criar uma identidade cultural nacional explode com a realização,
em uma São Paulo que se industrializava rapidamente e ganhava protagonismo
econômico no país, da famosa Semana de Arte Moderna de 22.
A coesão central em torno do movimento fundamentou-se numa completa
ruptura com qualquer conexão com o que podemos chamar, resumidamente, de
"neo-qualquer coisa". Trata-se de um marco de rompimento do meio artístico
brasileiro com o academicismo predominante até então. As novas possibilidades
na maneira de se fazer arte tornaram o estilo anterior intragável e forçaram a
adoção de uma linguagem bem mais livre, sem formalismos. Mais do que isso,
muitos autores afirmam que a Semana de 22 serviu como uma redescoberta do
Brasil, apresentando o país como fruto de uma cultura mestiça, que transita entre
a barbárie e a civilização, um conflito presente desde a chegada dos europeus no
território brasileiro.
Cada dia dessa semana histórica foi dedicado a uma forma de arte. Na primei-
ra noite, artes plásticas: Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, pintoras controversas
"influenciadas pelas extravagâncias de Picasso e seus companheiros", como escreveu
Monteiro Lobato – à época colunista do jornal Estado de São Paulo9 – foram
apresentadas juntamente com muitos outros artistas até então praticamente des-
conhecidos do grande público, diante de uma plateia atônita e sem palavras. Essa
crítica de Monteiro Lobato, publicada poucos anos antes, foi inclusive o estopim
do movimento, liderado por filhos da oligarquia paulista, que não tiveram dificul-
dades em conquistar a confiança do curador do Teatro Municipal, Paulo Prado,
que foi também quem angariou recursos para o evento.
Anita Malfatti descreveu mais tarde sua empolgação naquela noite com as
seguintes palavras: "Era a noite das surpresas. As pessoas estavam incomodadas
com aquilo, mas não vaiaram. Os ingressos estavam completamente esgotados.
O clima estava ficando tenso. As pessoas não sabiam como reagir a aquilo, como
reagir a nós. Foi o anúncio da tempestade que viria na noite seguinte!"10
9 Artigo de Monteiro Lobato no jornal O Estado de S.Paulo em 20 dez. 1917: "Há duas espécies de artistas. Uma
é representada por aqueles que vêm as coisas normalmente e, como consequência, criam arte pura... Se Anita pinta
uma senhora com cabelos geométricos verde-e-amarela, ela só pode estar sob a influência extravagante de Picasso
e seus companheiros."
10 Voltaire Schilling em especial para o portal Terra. Disponível em: <https://noticias.terra.com.br/educacao/
historia/a-semana-de-arte-moderna-de-1922,200823d6c76da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.htm>.
capítulo 2 • 40
Na segunda noite, a literatura foi representada por alguns dos maiores poetas
brasileiros da história, como Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Oswald de
Andrade. Os artistas apresentaram pela primeira vez no país, "a poesia falada",
declamada no teatro (até então uma arte exclusivamente escrita). O ápice desta
noite foi quando, durante o discurso do multiartista Paulo Menotti del Picchia
sobre os "novos artistas dos novos tempos", vaias e sons semelhantes a animais
vieram do meio da plateia para desorientar o público. Essa noite terminou com
uma confusão generalizada, muito diferente do clima formal e comportado que se
costumava ver nessa época em um palco de tamanha importância.
Mas a semana ainda não tinha terminado e uma última cena antológica,
que marcaria nossa história, aconteceu no último dia daquela Semana de Arte
Moderna. O compositor clássico Heitor Villa Lobos, o respeitado compositor bra-
sileiro da história, no país e no exterior, era esperado por uma multidão menor
e mais tranquila, disposta a, pelo menos, testemunhar uma atitude clássica nessa
semana tão controversa. No momento em que o compositor apareceu no palco,
no entanto, as vaias e protestos do público começaram e foi sob protestos que ele
apresentou sua composição "O Guarani", que se tornaria quase um segundo hino
para o Brasil, sendo até hoje a música que toca na abertura da “Hora do Brasil”,
programa diário oficial do governo transmitido em todas as estações de rádio. A
razão para os protestos foi o fato de que apesar de toda a natureza formal de um
concerto clássico, Villa Lobos, estava vestindo um sapato clássico em um pé e uma
sandália no outro. Mesmo tendo dito mais tarde que era simplesmente por causa
de uma bolha, todo mundo entendeu a mensagem.
A questão mundial de como se portar em um novo mundo moderno, passava,
no Brasil, a ir mais fundo com a investigação sobre como ser moderno e brasileiro
ao mesmo tempo. Daí a frase que virou lema da Semana de 22 e que dá nome a
este capítulo, tirada do “Manifesto Antropofágico” de Oswald de Andrade, um
dos líderes do movimento. Trata-se de um trocadilho com a famosa frase do perso-
nagem Hamlet, de Shakespeare, “Ser ou não ser, eis a questão” (no original em in-
glês: “To be or not to be, that is the question”) transformando o verbo “to be” (“ser”,
em inglês) em “Tupi”, referência a uma das maiores tribos indígenas brasileiras
que à época da chegada dos europeus no país era usada para denominar todos os
índios da costa brasileira. Assim, o trocadilho “Tupi or not Tupi”, se tornou um
lema não só da Semana de Arte Moderna, mas também da grande questão que nos
rondava sobre como ser moderno e brasileiro ao mesmo tempo.
capítulo 2 • 41
Olhar estrangeiro e sangue mestiço
capítulo 2 • 42
Pois é a partir desses personagens, cujas origens explicam a história do nosso
povo, que vamos analisar a partir de agora a consolidação da Arquitetura Moderna
no Brasil.
capítulo 2 • 43
“Acerca da Arquitetura Moderna”. Como alguns materiais essenciais àquela visão
da nova arquitetura ainda não podiam ser encontrados no Brasil, o arquiteto pre-
cisou improvisar e esconder alguns detalhes, como o telhado cerâmico por trás da
platibanda lisa, sugerindo para quem via de fora que a casa tinha uma laje plana
de concreto.
Além disso, para conseguir a licença de obras da prefeitura, Warchavchik pre-
cisou apresentar um projeto um pouco camuflado, com ornamentos para driblar a
rigidez da análise da equipe que tinha o poder de “censurar” uma fachada em de-
sacordo com o que se entendia até então como boa arquitetura. Quando a casa foi
construída, ele justificou a diferença em relação ao projeto aprovado dizendo que
era por falta de recursos financeiros para tais detalhes, e que futuramente, quando
tivesse condições, ele os adicionaria. Mas a verdade é que sem tais ornamentos a
casa estava muito mais próxima aos ideais modernistas, sem muitos afrescos, cor-
nijas e outros detalhes que não têm qualquer função além da decorativa.
De acordo com José Tavares de Lira, autor de uma das mais importantes bio-
grafias de Warchavchik, esta casa é "a peça mais emblemática da mudança com-
pleta na arquitetura brasileira da época. A casa é, ao mesmo tempo, urbana e
suburbana, moderna e clássica, provincial e cosmopolita – a negação de todos os
estilos, em suma".
Essa ambiguidade era reforçada por alguns ornamentos neoclássicos que che-
garam a ser construídos e permaneceram na fachada até 1934, ano de uma reforma
que apagou esses traços de historicismo de uma vez por todas. Mas o fato é que o
debate causado pela casa trouxe para Warchavchik bastante atenção e importantes
projetos, como a casa da Rua Itápolis, que chegou a ficar em exposição em 1930 e
recebeu diversos visitantes ilustres. Um dos mais importantes foi Le Corbusier, que,
impressionado com o jogo volumétrico e com a plasticidade alcançada pela parede
curva que separava o jardim da área de serviço, convidou Warchavchik para ser
representante da América Latina nos famosos CIAM (Congressos Internacionais
da Arquitetura Moderna), que vimos no capítulo anterior.
Outro personagem que já dispunha de enorme destaque na nossa arquitetura
e que viria a ser fundamental para o estabelecimento do Modernismo no Brasil
foi Lúcio Costa. Ao conhecer o trabalho de Warchavchik, o Doutor Lúcio, como
era chamado, fez dois convites. O primeiro, essencial para o estabelecimento de
um arcabouço teórico para o movimento moderno brasileiro, foi para lecionar
na Escola Nacional de Belas Artes, em que ambos influenciariam estudantes que
capítulo 2 • 44
se tornariam grandes nomes do modernismo brasileiro, como Affonso Eduardo
Reidy, os Irmãos Roberto e Jorge Machado Moreira.
O segundo convite, essencial para desenvolver exemplos que influenciariam
essa geração, foi para se tornar seu sócio, em parceria que mudou para sempre o
trabalho de Lucio Costa e, consequentemente, a arquitetura brasileira. Só para
citar um exemplo da importância desse escritório, foi nele que um estudante cha-
mado Oscar Niemeyer trabalhou como desenhista antes de se formar e iniciar a
carreira ímpar que será objeto de estudo ainda neste capítulo.
Figura 2.1 – Lúcio Costa, Frank Lloyd Wright e Warchavichik, em sua "casa na Tonelero",
construída no Rio de Janeiro em 1931. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revis-
tas/read/arquitextos/02.018/829>.
capítulo 2 • 45
construída em Copacabana em 1931. Um dos visitantes dessa casa foi ninguém
menos do que Frank Lloyd Wright, que chegou a declarar que esta foi uma das
maiores influências para a lendária Casa da Cascata, que construiria no ano se-
guinte nos Estados Unidos.
capítulo 2 • 46
Na segunda metade da sua carreira, Lucio Costa, com toda sua influência,
teve a oportunidade de pôr em prática projetos urbanos modernistas de escalas
monumentais, experimentos de dar inveja aos maiores delírios modernistas de Le
Corbusier quando planejava colocar Paris abaixo para construir suas propostas de
cidade contemporânea, com altas torres isoladas no meio de grandes áreas verdes.
Essas referências de Le Corbusier certamente estariam muito presentes no
projeto mais emblemático de Lucio Costa: o plano piloto da nova capital Brasília,
que será objeto de análise mais adiante neste livro. O plano piloto do bairro da
Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, maior em extensão do que o da capital, com
suas altas torres espaçadas lembra ainda mais as perspectivas de Le Corbusier para
seus estudos da Ville Contemporaine. Le Corbusier era uma inspiração extrema-
mente presente desde muitos anos antes, em visitas que influenciaram de maneira
crucial toda a arquitetura de um país.
capítulo 2 • 47
aqui cabe uma explicação etimológica: embora hoje em dia a expressão nos remeta
à ideia de edifícios com formas curvas e complexas como exemplifica a obra de
Zaha Hadid – originalmente o termo “arquitetura orgânica”, se refere a uma ati-
tude e um processo projetual no qual a forma do edifício nasce do ordenamento
das atividades a serem desenvolvidas ali, ou seja, de dentro para fora, a exemplo
de qualquer organismo vivo que possamos encontrar na natureza (daí a origem
da expressão).
“Trocando em miúdos”, isso significa que enquanto a vanguarda europeia ex-
plorava as possibilidades da planta livre para tentar criar uma arquitetura racio-
nalista, uma máquina de morar, lógica e fria, Frank Lloyd Wright buscava criar
um organismo vivo, nascido do seu entorno e extremamente conectado a ele.
Acreditava que os edifícios têm influência demais sobre a vida das pessoas para
serem tratados como máquinas. Isso, em sua visão, aumentava a responsabilidade
dos arquitetos, pois quando se projeta uma casa, o arquiteto está, em algum grau,
sendo um modelador de homens.
O exemplo maior da arquitetura orgânica é a Casa Kaufmann, mais conhecida como Casa
da Cascata e considerada a casa mais famosa do mundo. A relação da casa com a pai-
sagem materializada pela cachoeira sobre a qual se debruça deixa muito clara a sinergia
entre o objeto arquitetônico e o seu entorno. As pedras que compõem seus poucos planos
verticais parecem se erguer da própria cascata e os grandes planos horizontais se assen-
tam sobre as pedras como se fizessem parte daquela paisagem desde sempre.
©© SERINDE | WIKIMEDIA.ORG
capítulo 2 • 48
A exemplo do estilo internacional, o Funcionalismo ainda tem um papel cen-
tral no projeto orgânico; a forma, aqui, ainda segue a função. Mas embora esteja
sob o mesmo guarda-chuva do movimento moderno, a arquitetura orgânica tem
características diametralmente opostas ao estilo internacional quando o assunto
é o approach projetual, que vem de dentro para fora, e não do limite da “caixa
modernista” para dentro.
A forma orgânica, então, vai aparecer mais fragmentada, pois ao contrário da
forma universal do estilo internacional, ela não pretende servir ao homem padrão.
Pelo contrário, ela é criada e se desenvolvida a partir de dentro, gerada pelos hábitos
específicos daquela família, com aquela cultura, com aqueles costumes e com aque-
las vistas em cada canto do terreno, com aquela temperatura característica da sua
terra e com as cores e a intensidade de luz daquele lugar específico. Na Europa, essas
ideias encontrariam eco principalmente no arquiteto e designer Alvar Aalto, que
imprimiu em sua obra o forte diálogo com a natureza presente na cultura finlandesa.
Alvar Aalto: outro arquiteto que desenvolveria uma extensa e importante obra com base
no conceito da Arquitetura Orgânica é o finlandês Hugo Alvar Hendrik Aalto, que também
ficou eternizado como um dos mais importantes designers da história. Ganhou, entre muitos
prêmios, as medalhas de ouro do RIBA (Instituto Real de Arquitetos Britânicos) e da AIA
(Associação Internacional de Arquitetos) tendo dado nome, inclusive, à Medalha Alvar Aalto.
Entre seus projetos mais importantes estão o Auditório Finlândia, o campus da Universi-
dade de Tecnologia de Helsinki, seus cristais, como o famoso vaso Aalto e suas cadeiras
apoiadas na exploração de técnicas industriais que permitem, a partir da colagem de inú-
meras camadas finas, a materialização de suas curvas em peças de mobiliário em madeira.
Diante disso, vale pontuar que embora a visita que Frank Lloyd Wright fez
ao Brasil em 1931 não seja tão lembrada quanto a de Le Corbusier pela maioria
dos autores, sua influência ajudou a moldar uma característica essencial do nosso
Modernismo: a adaptação dos preceitos do movimento às características locais.
Há quem considere que um dos motivos para as visitas de Le Corbusier deixa-
rem uma impressão mais registrada é o fato de que a língua mais comum para se
comunicar internacionalmente à época era o francês, ao contrário de hoje em dia,
em que o inglês costuma ser opção da maioria dos brasileiros que fala uma segunda
língua. Relatos do próprio Frank Lloyd Wright dão conta de que por vezes ele tinha
a impressão de que sequer o tradutor fazia ideia do que ele estava falando, tamanha
era a empolgação do rapaz para explicar frases curtas e simples que ele falava.
Mas o fato é que as visitas de Le Corbusier, em 1929 e, especialmente, em
1936 de fato marcaram profundamente a geração de arquitetos brasileiros que
capítulo 2 • 49
viria a brilhar nas décadas seguintes. Na primeira visita, teve a oportunidade de
sobrevoar o Rio de Janeiro no avião de seu conterrâneo Antoine de Saint-Exupéry.
Figura 2.3 – Croquis do projeto utópico de Le Corbusier para o Rio de Janeiro, de 1929.
Disponível em: <http://archiveofaffinities.tumblr.com/post/10028030412/le-corbusier
-project-for-rio-de-janeiro-brazil>.
capítulo 2 • 50
que os edifícios da recém-criada Esplanada dos Ministérios, no Centro do Rio de
Janeiro, deveriam ser implantados ocupando toda a quadra e mantendo acesso
público a pátios centrais no interior da quadra.
Capanema, modernista convicto, não ficou satisfeito com o projeto vencedor,
de estilo eclético “com influências marajoaras” (uma forma de o autor, Archimedes
Memória, um dos mais respeitados arquitetos ecléticos daquele tempo, defender a
relação do projeto com a cultura local). O ministro então, fazendo uso de um dis-
positivo do edital do concurso, pagou-lhe o prêmio, mas não contratou o projeto
para ser construído.
Gustavo Capanema então decidiu dar a Lúcio Costa a tarefa de montar uma equi-
pe jovem e progressista para criar um edifício moderno, um ícone dos novos tempos.
Lúcio Costa reuniu então os arquitetos que tinham apresentado propostas modernistas
no concurso com alguns colegas também já envolvidos com o movimento. A equipe
foi formada por Carlos Leão (sócio de Lucio Costa àquela altura), Ernani Vasconcellos,
Affonso Eduardo Reidy, Jorge Machado Moreira e o jovem Oscar Niemeyer.
Apesar do enorme entusiasmo da equipe, a tarefa não se mostrava fácil e em
determinado momento Lucio Costa convenceu Gustavo Capanema a convidar
Le Corbusier para ser um consultor para o time de arquitetos, aproveitando a
oportunidade de uma nova viagem do mestre que já estava marcada para outros
compromissos profissionais. O objetivo seria discutir ideias e fazer os primeiros
esboços do edifício em conjunto, cercado pela jovem equipe.
O resultado desta interação foi a construção de um edifício que fez história,
sendo considerado o primeiro edifício modernista público dessa escala no mundo.
Isso porque pela primeira vez os "cinco pontos corbusianos", vistos no capítulo
anterior, foram aplicados em um projeto daquela escala. Além disso, neste edifício
todos os pontos são potencializados por uma aplicação inteligente e alguns deles
chegam a ganharam novos significados.
A "Fachada livre", permitida pela separação entre função estrutural e vedação,
sofreu uma adaptação ao clima brasileiro com precisão cirúrgica, uma aula de
como se implantar um edifício no nosso clima. Apesar de os croquis originais de
Le Corbusier sugerirem uma implantação com o maior eixo do bloco mais alto no
sentido norte-sul, a equipe brasileira inverteu essa lógica, implantando a lâmina
de 16 andares com seu eixo longitudinal no sentido leste-oeste. Além de criar um
sombreamento extremamente bem-vindo para a praça que essa implantação gera-
va, esse gesto fez com que as fachadas leste e oeste, que são as que recebem mais
carga solar, passassem a ser as menores fachadas da lâmina mais alta. Além disso,
capítulo 2 • 51
para evitar a troca de calor mesmo com essas sendo as menores superfícies, elas
foram feitas totalmente cegas (sem janelas ou qualquer abertura).
Embora em um primeiro momento possa parecer estranho que a Fachada Norte,
que recebe sol durante a maior parte do dia no Hemisfério Sul, fique sendo uma das
duas maiores fachadas do edifício, o sol que incide nesta fachada é o mais alto, do
meio do dia, e por isso é mais simples proteger o edifício dele. O que aliás foi extre-
mamente bem feito neste projeto, pois os “Brise-Soleis”11 que ocupam essa fachada
inteira foram implantados com uma distância significativa do plano de vedação para
evitar uma transferência de calor por convecção, uma vez que os brises viriam a ser os
únicos elementos a ficar diretamente expostos ao sol nessa fachada.
Por outro lado, a Fachada Sul, mesmo em um clima tropical, quente e úmido
como o do Rio de Janeiro, ganha a liberdade de estar sempre na sombra. Com isso,
um grande pano contínuo de vidro, que seria impensável nas três fachadas que têm
incidência direta do sol (pelo efeito de estufa que ele causaria), pôde ser colocado nes-
sa fachada inteira, indo um passo além das tais janelas horizontais, dos cinco pontos
de Le Corbusier.
Figura 2.4 – Palácio Gustavo Capanema, de 1936: Fachada Norte (coberta de Brise-soleis).
Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.023/786>.
11 Trecho extraído de tese da professora Marise Machado. Escritório Edison Musa, 1963-1983, Rio de Janeiro,
2010.
capítulo 2 • 52
Figura 2.5 – Palácio Gustavo Capanema, de 1936: Fachada Sul do Palácio Gustavo Ca-
panema, sempre sombreada e por isso capaz de receber a 1a cortina de vidro do mundo.
Disponível em: <https://monolitho.wordpress.com/2009/10/01/ministerio-da-educacao
-e-cultura-%E2%80%93-mec-1936-1942/>.
Mies van der Rohe criou sua obra-prima em Nova York, o Seagram Building com base
neste princípio, para aquecer naturalmente o edifício na fria Nova York e o sucesso mun-
dial daquele projeto foi tão grande que as reproduções de “caixas de vidro” se tornariam
onipresentes mundo afora. Uma ironia, inclusive, que essa tecnologia tenha retornado
ao Brasil, durante as décadas seguintes e até hoje, como uma cópia daquilo que se tor-
nou o modelo norte-americano, sem o espírito crítico de utilizar a cortina de vidro apenas
na fachada onde o nosso clima permite, a Sul, com a equipe brasileira demonstrou com
tanto sucesso no longínquo ano de 1936.
capítulo 2 • 53
Em relação à planta livre, a curta distância entre as fachadas norte e sul permi-
tiu explorar sabiamente o espaço deixado inteiramente vazio, sem qualquer parede
além dos núcleos de elevadores e escada. Cada posição de trabalho no edifício é
separada das demais apenas por divisórias baixas. Isso, aliado ao engenhoso sis-
tema de esquadrias, que permite abrir a parte de cima em separado, garante no
edifício uma ventilação cruzada que renova o ar, sem que o vento venha a varrer
a mesa dos trabalhadores, cheias de papel (vale lembrar que na década de 1930
não existia computador e a quantidade de papéis em um ambiente de trabalho era
infinitamente maior do que hoje).
Os pilotis de Le Corbusier também vão ganhar outra dimensão nesse edifí-
cio, tanto literal quanto metaforicamente. Literalmente porque a equipe triplicou
a altura proposta por Le Corbusier, chegando a 15 metros e permitindo que a
praça, já sombreada, passasse a receber também uma ventilação maior. E metafo-
ricamente porque esse gesto libertador, que materializava o ideal da rue libre do
Le Corbusier, subvertia o até então intocável Plano Agache, que definia que os
edifícios dessa “Esplanada dos Ministérios” deveriam ser implantados nos limites
do terreno com pátios internos de acesso público (uma receita dos edifícios neo-
clássicos e ecléticos).
Ao implantar os blocos em cruz e levantar ambos, um deles a 15 metros de
altura, o que sobrava era exatamente o oposto do que propunha o plano Agache.
Mas um oposto que se configurava como uma praça super agradável, ventilada e
sombreada e, portanto, com uma temperatura consideravelmente mais baixa do
que as demais quadras do seu entorno.
Por fim, o “terraço jardim” preconizado por Le Corbusier para criar um espaço
de convívio entre os usuários do edifício, aqui vai ganhar nova significação com os
jardins do grande Roberto Burle Marx, considerado o pai do paisagismo tropical.
Neste projeto, a cobertura habitada passa a ter muito mais do que alguns vasos de
planta.
Grandes superfícies vegetais, com jardins em formatos ameboides, se espalham
pelas lajes de cobertura dos dois blocos, criando verdadeiros jardins suspensos, em
um design precursor do telhado-verde como conhecemos hoje. Entre diversos be-
nefícios dessa estratégia estão o sombreamento da cobertura, isolamento térmico
da laje, resfriamento do ar por evapotranspiração e a recuperação de parte da área
permeável que se perde no solo da cidade quando se constrói qualquer edifício.
capítulo 2 • 54
Burle Marx, o grande paisagista e artista plástico, completaria a equipe de
autores junto com alguns outros artistas, entre os quais estava o pintor Cândido
Portinari, autor dos enormes painéis de azulejo que recobrem praticamente todas
as superfícies que encostam no chão. Seus painéis, a exemplo das esculturas pre-
sentes no conjunto, integram arte e arquitetura, sublinhando outra característica
que viria a afastar o modernismo brasileiro (conhecido na Europa como “moder-
nismo tropical”) do estilo internacional.
A Escola Carioca, que teria seu início muito ligado ao episódio do Edifício do
MEC, seria eternizada por grandes obras de muitos grandes mestres. Do grupo
que participou desse projeto, além da liderança original de Lucio Costa, Niemeyer
atingiria o status de um dos maiores nomes da arquitetura mundial, mas outros
também chegariam a posições de destaque na arquitetura nacional e internacional.
Jorge Machado Moreira iria receber muitos prêmios por seus edifícios no novo
campus que projetou para a Universidade Federal do Rio de Janeiro, na década de
1950, na Ilha do Fundão. Affonso Eduardo Reidy iria fazer história com uma série
de obras-primas, como o Aterro do Flamengo, que usou a terra do desmanche de
grandes morros no Centro do Rio para criar um o parque linear à beira-mar em
mais uma parceria notável com Burle-Marx, e o Museu de Arte Moderna do Rio
de Janeiro (MAM, 1948), que se localiza no próprio aterro do Flamengo.
Posicionado entre a cidade e uma vista deslumbrante do Pão de Açúcar, o
Museu é projetado como uma estrutura totalmente porosa visualmente, com mui-
to vidro e poucos planos horizontais e verticais de concreto aparente. Acontece
que criar uma caixa de vidro no clima quente e úmido do Rio de Janeiro com
um programa que demanda cuidados climáticos especiais não é tarefa das mais
simples. A solução de Reidy, já ensaiada em projetos anteriores, era extremamente
inovadora por tornar a própria estrutura do museu em seus brise-solieis verticais.
capítulo 2 • 55
Figura 2.6 – Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, de Affonso Eduardo Reidy, na
época de sua construção, durante a década de 60. Disponível em: http://www.archdaily.
com.br/br/758700/classicos-da-arquitetura-museu-de-arte-moderna-do-rio-de-janeiro
-affonso-eduardo-reidy/5483c737e58ece0cb300005a-centro_de_documentacao_e_
pesquisa_do_mam_17-jpg>.
E se para isso era necessário afastar os pilares da pele de vidro, Reidy tiraria
mais um coelho da cartola e criaria um quadro estrutural, em concreto aparente,
que seria repetido ao longo do edifício, sempre apoiando por baixo a primeira laje
e por cima a última. A laje do meio, que ficava sem qualquer contato com os pi-
lares de concreto ficou atirantada, ou seja: pendurada por tirantes de aço à laje su-
perior. Com esse gesto, Reidy criou, abaixo, um pavimento inteiro livre de pilares,
com um teto que parece flutuar acima das cabeças dos visitantes. A base inclinada
dos quadros estruturais permitiu ainda criar um excelente espaço público livre
abaixo do museu e sombreado por ele. Além disso, esse espaço é especialmente
ventilado pela brisa que vem da Baía da Guanabara e é capturada pela forma curva
da laje acima, feita assim para ajudar a descarregar seus esforços na parte lateral,
no encontro com a peça inclinada dos quadros que a suportam.
Reidy construiu diversos outros projetos relevantes, com destaque para
seus complexos de habitação social, o conjunto habitacional do Pedregulho
capítulo 2 • 56
e o da Gávea, que poderiam ser considerados uma versão brasileira das Unités
d'habitatión de Le Corbusier. A forma dos seus volumes, por ser curvarem para
se adaptar à topografia local, criaram uma plasticidade especial e prestam certa
reverência ao desenho que Le Corbusier fizera em sua primeira visita ao Rio de
Janeiro em 1929.
Figura 2.7 – Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes, de Affonso Eduardo Rei-
dy, mais conhecido como “Pedregulho”. Disponível em: <http://www.archdaily.com.br/
br/01-12832/classicos-da-arquitetura-conjunto-residencial-prefeito-mendes-de-moraes
-pedregulho-affonso-eduardo-reidy>.
capítulo 2 • 57
Brasileira de Imprensa (ABI), no centro do Rio de Janeiro, se tornando responsá-
veis pela primeira grande obra da arquitetura moderna no Brasil.
O projeto é levemente anterior ao do MEC e sua conclusão, em 1938, é bem
anterior à do ministério. No prédio da ABI, caracterizado pelo volume austero, já
podem ser identificados alguns dos elementos vernaculares do modernismo cor-
busiano como a planta livre, brises fixos e pilotis.
A dupla, que mais tarde se tornaria trio com a chegada do irmão Maurício
(quando o escritório estabelece o nome como ficaria conhecido, MMM Roberto)
seguiria trilhando um caminho paralelo ao do grupo liderado por Lucio Costa,
com importante pesquisa formal em uma série de projetos com soluções cada vez
mais interessantes. O projeto do aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, de
1937, evolui em relação à forma do edifício da ABI, pesada por conta das soluções
investigadas para proteger a grande carga solar a que ficamos expostos no Rio de
Janeiro.
De acordo com o historiador Yves Bruand, o projeto do aeroporto é “mais
aberto e principalmente mais leve, aliando habilmente força, equilíbrio e elegân-
cia”. Um mérito desse projeto, que vai ecoar durante toda a carreira dos irmãos
Roberto é a forma como eles se utilizam das possibilidades da técnica construtiva
moderna para resolver os diferentes problemas funcionais de cada projeto.
Embora não fizessem parte do badalado grupo de arquitetos que ganharia
o mundo em torno da figura de Lucio Costa, com destaque para Niemeyer, os
Irmãos Roberto também teriam sua obra reconhecida internacionalmente, com
importantes prêmios como a escolha do seu projeto para o Instituto de Resseguros
do Brasil pela Enciclopédia Britânica como uma das melhores construções do
mundo em 1941 e a Medalha do Riba (Royal Institute of British Architects) por
seu projeto para uma colônia de férias da Tijuca, encomendado pela própria
Enciclopédia Britânica.
A partir da segunda metade da década de 1950, o trabalho dos Irmãos Roberto
migra para uma escala urbanística. Entre os principais projetos dessa fase estão
os planos para um conjunto residencial na Penha e para a cidade proletária de
Ricardo Albuquerque. O mais notável, no entanto, não chegou a ser construído:
a proposta deles para o concurso do plano piloto de Brasília. Apesar de ser consi-
derado por muitos como o melhor projeto, por prever possibilidades para o cresci-
mento da cidade, a proposta ficou classificada em terceiro lugar. Enquanto o pro-
jeto ganhador, de Lucio Costa, que será abordado no próximo capítulo, congelava
o plano, não prevendo essa expansão e levando, futuramente, ao estabelecimento
capítulo 2 • 58
das chamadas “cidades-satélites”, o projeto dos Irmãos Roberto previa sete unida-
des urbanas – que poderiam se multiplicar até 14 com 72 mil pessoas cada uma.
Cada núcleo teria como centro um departamento governamental e uma série
de atividades que viabilizariam uma cidade “plurinuclear”, uma das premissas da
atual busca por uma cidade sustentável, principalmente no que tange à mobili-
dade urbana (a premissa de que nenhum transporte de massa é suficientemente
bom para ser mais eficiente do que a possibilidade de a população não precisar se
deslocar, vivendo próximo a seus locais de trabalho, lazer, comércio e serviços). O
júri, no entanto, à luz do que era considerado como ideal em uma época da utopia
da máquina e da razão, considerou que o trabalho não era masterplan para uma
capital, com toda a simbologia que isso demanda, apesar de apresentar o melhor
estudo sobre utilização da terra e de ser prático e realista.
Enquanto no Rio esses diferentes grupos viriam a compor uma escola profí-
cua e relativamente plural, em São Paulo, onde o movimento artístico moderno
teve seu berço, o processo de criação de uma linguagem própria na arquitetura
seria mais convergente, uníssona e centralizada na figura de um grande mestre:
Vilanova Artigas. Nascido em Curitiba e formado engenheiro-arquiteto na Escola
Politécnica da Universidade de São Paulo, em 1937, Artigas é considerado um dos
maiores nomes da arquitetura paulista não só pelo número de obras-primas que
projetou e construiu por lá, mas também por seu forte posicionamento político,
a qual iria nortear sua produção prática, didática e teórica, que teria enorme in-
fluência na formação de toda uma geração.
Grande crítico de Warchavichik, Artigas prezava pela “verdade estrutural”,
uma arquitetura marcada pela ênfase na técnica construtiva, pela extensa utiliza-
ção do concreto armado aparente e pela valorização da estrutura como protagonis-
ta na obra arquitetônica. Artigas, tanto metafórica quanto literalmente, fez escola
em São Paulo. Responsável pela reforma curricular que estabeleceria o perfil do
profissional formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Artigas
foi também o arquiteto responsável, junto com seu parceiro Carlos Cascaldi, pelo
projeto da sede da escola, um edifício revolucionário em diversos sentidos.
Vilanova Artigas era um humanista, socialista e extremamente envolvido na
luta por justiça social, igualdade de oportunidades e democracia. O edifício da
FAU USP incorpora essas preocupações sociais em gestos arquitetônicos claros,
capítulo 2 • 59
coerentes e relevantes. O volume em concreto aparente, todo fechado, é suspenso,
pesado em cima, mas quase flutuando, apoiado em delicados pilares em forma
de duas pirâmides em sentidos opostos, que se interseccionam de cima abaixo. O
contraste desse peso com a fluidez do térreo, absolutamente aberto, sem qualquer
barreira, torna-o quase uma extensão da calçada, convidando o transeunte a en-
trar e participar das atividades de reflexão e concentração que acontecem dentro
daquela caixa tão simbólica.
Edifício da FAU-USP (1966-69), de Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi: Caixa bruta de con-
creto poeticamente apoiada sobre delicados pilares esculturais.
capítulo 2 • 60
O Átrio Central do edifício da FAU-USP, perfeita materialização da Ágora Moderna, onde
as lutas sociais e assembleias participativas de docentes e discentes encontrariam espaço
durante os duros anos da ditadura militar.
capítulo 2 • 61
Bauhaus. Cadeias de disciplinas de desenho e de projeto estruturam o curso, que se
desenvolve em torno de estúdios ou ateliês, pensados como espaços de aula e tam-
bém de discussão. Os espaços comunitários indicam a necessidade de aprendizado
político; afinal, é nas grandes assembleias que ali se dão, que devem ser tomadas,
em conjunto – por professores, alunos e funcionários – as decisões pedagógicas.
Com toda essa carga simbólica deste espaço, a exemplo do edifício do MEC
no Rio, é a partir do edifício da FAU USP que as linhas mestras da chamada Escola
Paulista vão se solidificar. Suas características de introversão, continuidade espacial
e iluminação zenital, se multiplicarão por São Paulo, bem como o uso de grandes
vãos, que demandará a aplicação e desenvolvimento de técnicas construtivas mais
elaboradas, como o concreto protendido. Mais do que uma pesquisa puramente
estética, formal, isso vai representar um projeto político para o país, uma aposta na
industrialização como saída para a condição de subdesenvolvimento.
Por essa relação com a técnica construtiva e a verdade dos materiais, a Escola
Paulista também vai ser chamada de Brutalismo Paulista. Curiosamente, Artigas,
o “pai” dessa escola não era entusiasta nem de uma nem da outra denominação,
pois recusava tanto a impressão de oposição à escola carioca que uma sugeria
quanto a proximidade ao brutalismo inglês que a outra imputava.
O modernismo brasileiro, até pelo nível de sucesso que viria a alcançar, con-
tinuaria em voga por aqui por muito mais tempo do que no resto do mundo,
especialmente o modernismo paulista, que levaria mais tempo que o carioca para
se estabelecer. Com isso, importantes obras do próprio Artigas iriam ser cons-
truídas em um momento histórico que, como veremos mais adiante, o mundo
já estava em um processo de revisão do Modernismo e até estabelecimento do
Pós-Modernismo. Importantes exemplos são o Estádio do Morumbi, de 1960,
e a Estação Rodoviária de Jaú, mais uma parceria com Carlos Cascaldi, de 1973.
Neste projeto modernista tardio, o arquiteto cria um gesto sutil que mostra a
sensibilidade poética com que a Escola Paulista enfrentava os desafios estruturais.
No ponto mais tenso de uma estrutura, o encontro do pilar com a laje, os pilares
da rodoviária se abrem como uma flor e um óculo se abre na laje, permitindo que
a luz, entre exatamente sobre as colunas, aliviando a tensão daquele encontro es-
trutural e convidando uma luz dramática a invadir o espaço.
Sua influência para o amadurecimento de toda uma geração, como vimos,
seria imensurável. Mas ironicamente, o nome da arquitetura paulista daqueles
tempos que ficaria marcado no exterior não era o dele, mas o de uma arquiteta
que, a exemplo dos irmãos Roberto no Rio de Janeiro, se colocava à margem do
grupo representado pela Escola Paulista: Lina Bo Bardi.
capítulo 2 • 62
Nascida Achillina Bo, em Roma, em 1914, Lina Bo Bardi foi mais uma das
fortes figuras brasileiras nascidas no estrangeiro, que depois desenvolveram uma
ligação forte e intensa com o nosso país. Depois de trabalhar clandestinamente
no partido comunista da Itália, a arquiteta foge do regime fascista e escolhe
o Brasil como a terra ideal para a sua vida no exílio. Ela e seu marido, o histo-
riador e crítico de arte Pietro Maria Bardi, migram primeiramente para o Rio de
Janeiro, mas a falta de oportunidades de trabalho e o convite para que ele criasse
o novo Museu de Arte de São Paulo, em 1947, fez o casal se mudar para o novo
centro financeiro do país, onde se tornariam figuras centrais do métier artístico
e cultural.
Ela se naturaliza brasileira em 1951, mesmo ano da construção de seu pri-
meiro projeto, sua própria “casa de vidro” no novo bairro do Morumbi. Nesse
ponto, o racionalismo italiano ainda influencia bastante seu trabalho, apesar das
concessões à exuberante natureza brasileira, que abre espaços na caixa modernista
de vidro e atravessa a sala em dois grandes vãos abertos em reverência às preexis-
tências naturais do terreno. Imersa na cultura brasileira, seu pensamento criativo
começa a se tornar mais expressivo. Ela torna-se famosa pelos generosos espaços
que concebeu e construiu. Seu projeto para a sede do Museu de Arte de São Paulo
se tornaria uma de suas obras de mais visibilidade. Famoso pela extensão de mais
de 70 metros entre os pilares gigantes nos extremos do terreno, o museu é um dos
ícones mais populares da cidade.
Mais importante do que a plasticidade alcançada pela ideia da imensa caixa
de vidro suspensa, no entanto, é o caráter contextual desse gesto, que define a
principal diferença entre o modernismo brasileiro e os movimentos contempo-
râneos na Europa e nos Estados Unidos. O Museu fica na principal avenida de
São Paulo, que se situa no ponto mais alto da cidade. O gesto arquitetônico de
levantar o edifício sem qualquer pilar a interromper seus 70 metros de vão criou
uma enorme praça sombreada no coração da metrópole, promovendo sombra no
verão e um espaço protegido da chuva no coração da chamada “terra da garoa”.
Além disso, permitiu que a Avenida Paulista mantivesse pelo menos em um ponto
sem qualquer edifício em frente, o que viabiliza uma rara vista ampla na cidade.
A potência desse gesto é tão grande que se torna responsável por um hábito
importante no cotidiano de São Paulo e de seus quase 12 milhões de habitantes
até os dias atuais. É sob esse vão protegido que a interação entre população e mu-
seu começa e é lá que algumas das maiores manifestações populares do mundo se
concentram antes de tomar a grande avenida onde o museu se situa. Foi lá, por
exemplo, que se concentraram manifestantes em defesa da democracia contra os
capítulo 2 • 63
golpes de estado de 1964 e de 2016. E foi também lá que nasceram algumas das
maiores passeatas do mundo pelos direitos da comunidade GLBT, das mulheres
e pelos direitos humanos em geral, além de comemorações esportivas e das sur-
preendentes jornadas de junho de 2013, quando a população se levantou contra
o sistema político vigente.
Figura 2.8 – MASP –Museu de Artes de São Paulo, de Lina Bo Bardi, e a materialização de
sua função social. Disponível em: <http://bancariosal.org.br/noticia/29703/atos-reunem-
milhao-em-todo-o-pais-contra-o-golpe>.
capítulo 2 • 64
o cuidado com os usuários são um forte traço de seu trabalho. Quando Bo Bardi
descreve seu próprio trabalho, ela fala de um espaço a ser construído pelos pró-
prios usuários. Para ela, o arquiteto é responsável apenas por um esboço inacabado
de espaço, que deve ser preenchido pelo usuário, dia após dia.
Sua interação com os usuários começa antes mesmo do projeto, como ela
mostra em uma obra muito sensível em seus últimos anos. Com a encomenda
de construir um complexo de habitação comunitária em Camurupim, uma das
regiões mais pobres do país, ela iria passar um bom tempo na comunidade ru-
ral, produzir um grande número de esboços da paisagem, estudos sobre o local e
questionários detalhados sobre o estilo de vida dos moradores. O resultado é um
projeto extremamente sensível, em que os princípios funcionalistas modernistas
são trabalhados de modo a servir aos hábitos daquela comunidade específica com
seus hábitos e sua relação com o ambiente ao seu redor.
capítulo 2 • 65
Figura 2.9 – Croquis e manuscritos de Lina Bo Bardi extraídos do livro Lina Bo Bardi – Obra
construída, de Olivia de Oliveira (São Paulo, 2014).
Em 1977, Lina projeta uma de suas obras mais paradigmáticas, o centro cul-
tural do SESC Pompéia. Ao visitar o terreno destinado ao projeto, que tinha uma
fábrica de tambores abandonada, a arquiteta encontrou um belo edifício. Pesado,
com estrutura de concreto em seu estado bruto, bem como as paredes de tijolos
aparentes dos armazéns. A arquitetura de uma fábrica não demandava gastos com
retoques finais. O que mais chamou a atenção da arquiteta, no entanto, foi o fato
de que, durante todos esses anos de abandono, nos fins de semana famílias vizi-
nhas aproveitavam o espaço para tomar sol, relaxar, um espaço onde seus filhos
podiam brincar e correr à vontade.
A arquiteta, compreendendo a espontaneidade e honestidade daquela ocupa-
ção, considerou que tudo deveria permanecer daquele modo, “com toda aquela
alegria" em suas próprias palavras. As intervenções de Lina foram cirúrgicas, com
recortes ameboides e passarelas assimétricas criando um ar mais lúdico aos auste-
ros volumes de concreto e unindo os armazéns.
capítulo 2 • 66
©© THOMAS HOBBS | WIKIMEDIA.ORG
Figura 2.10 – SESC Pompéia, de Lina Bo Bardi, construído entre 1977 e 1986.
O centro cultural foi aberto com um programa que incluía oficinas para a
comunidade, instalações esportivas, um restaurante popular e manteve a mesma
aspereza dos tijolos aparentes e do concreto, agora com seus volumes austeros per-
furados por formas ameboides, criando um diálogo mais estreito com as crianças
que continuavam a brincar nos jardins.
A produção de Lina manteve-se forte até o final de sua vida, em 1992, quando
ela morreu aos 77 anos. Ela morreu, no entanto, tornando seu velho sonho: ela
sempre disse que ela queria morrer de trabalho; e assim ela fez, deixando projetos
inacabados para outra cultural.
capítulo 2 • 67
todo o mundo: mais de 2 000 projetos, mais de 600 deles construídos. Ganhou
inúmeros prêmios, incluindo o Prêmio Pritzker em 1988, tido como o mais im-
portante de todos, frequentemente chamado pela imprensa de “o Oscar da arqui-
tetura”, em referência à premiação do cinema.
Tendo participado do nascimento dessa geração desde aquele episódio que
ficou como marco referencial do início da Escola Carioca, Niemeyer viria a se tor-
nar a personificação da aura que se formou em torno da arquitetura brasileira. Nos
primeiros anos de sua carreira, trabalhou com alguns dos grandes mestres daqueles
tempos, como Lúcio Costa, Gregori Warchavichik, Carlos Leão e Le Corbusier.
No episódio do Ministério, inclusive, ele teve papel fundamental ao propor a
mudança no sentido da lâmina principal e a triplicação da altura do pé-direito dos
pilotis, de 5 para 15 metros, duas das características mais importantes do edifício.
São elas que tornam possível a criação de microclimas agradáveis tanto na praça
pública quanto no interior do próprio edifício, como vimos nas páginas anteriores.
Depois dessa experiência, impressionado com o jovem, Lucio Costa generosa-
mente o convida para uma viagem a Nova York, onde Oscar Niemeyer o acompa-
nha como corresponsável pela construção do Pavilhão Brasileiro na Feira Universal
de 1939. O projeto de Niemeyer ficara em segundo lugar, o de Lucio Costa, em
primeiro. Neste pavilhão, simbólico, o Brasil começa a mostrar que a tecnologia
do concreto armado não apenas possibilita a arquitetura “reproduzível”, em série,
que vinha sendo desenvolvida no exterior, mas também permite a criação de uma
arquitetura mais delicada, única, local, curvilínea, com certo “gingado” brasileiro.
Esse que foi, inclusive, um dos destaques do júri em seu parecer sobre o projeto de
Lucio Costa: O “espírito de brasilidade”, aliado à resposta eficiente ao princípio da
feira o de estabelecer “uma visão do amanhã”. O que remonta ao ponto inicial deste
capítulo, “Tupi or not Tupi” ou, “como ser moderno e brasileiro ao mesmo tempo”.
Figura 2.11 – A caixa explodida do pavilhão Brasileiro na Feira Universal de 1939. Dis-
ponível em: <http://pt.slideshare.net/universidadedasquebradas/aula-sobre-modernismo>.
capítulo 2 • 68
O pavilhão de Lucio Costa e Niemeyer, que novamente colaborou com mu-
danças importantes no projeto, explode a “caixa modernista” de Le Corbusier com
leveza e sensualidade. Enquanto uma fachada se curva adaptando-se ao limite do
terreno, outras são quase “desmaterializadas”, ora pela transparência do vidro, ora
pela porosidade de elementos vazados. Uma rampa dramática e sinuosa vai buscar
o público fora do pavilhão e o conduz para um mezanino que, dentro da caixa
explodida, serpenteia entre os pilares herdados do rígido grid corbusiano, ora se
apoiando nos pilares que sustentam a cobertura, ora passando ao largo delas.
A mesma tecnologia trazida pela Revolução Industrial que criou condições
para o surgimento do estilo internacional, curiosamente também criava condi-
ções, no Brasil, para o surgimento de uma maneira bem brasileira de ser moderno.
E Niemeyer aprenderia a explorar como ninguém as não apenas as possibilidades
práticas, mas também as possibilidades plásticas do concreto armado.
Em documentários, textos e entrevistas, o arquiteto costumava associar a busca
por essa arquitetura mais curvilínea, mais suave e “sensual”, à referência das nossas
montanhas, nossas praias e da “beleza da mulher brasileira". Por sua investigação
formal e pela surpresa e emoção causadas por seus volumes platônicos esculturais
Niemeyer também ficou conhecido com o “poeta do concreto armado”.
capítulo 2 • 69
Em 1937, antes ainda do Pavilhão de Nova York, Niemeyer já construíra seu
primeiro projeto próprio, a Obra do Berço: uma instituição de assistência social a
bebês no Rio de Janeiro, cuja sede foi projetada por ele voluntariamente, de graça.
Esse foi o primeiro edifício a utilizar brise-soleil verticais, uma importante adapta-
ção da tecnologia à nossa realidade.
No Brasil, ao contrário da Europa, o sol da manhã e, principalmente, o sol da
tarde, que incidem, respectivamente na fachada leste e oeste, são muito quentes
e a incidência direta de seus raios dentro do edifício não pode ser bloqueada com
elementos horizontais, por ser um sol baixo, quando surgiu há pouco tempo no
horizonte ou quando falta pouco para se pôr.
O “problema” é que a despeito da necessidade de bloquear esse sol, em cidades
como o Rio de Janeiro, muitas vezes a vista é tão deslumbrante, que fazer uma
fachada cega, sem aberturas, simplesmente não é uma opção. Esse é exatamente
o caso da Obra do berço, que fica de frente para a Lagoa Rodrigo de Freitas, de
onde se vê a cidade aos pés de uma linda cadeia de montanhas, cobertas de Mata
Atlântica, incluindo o Corcovado, com sua estátua do Cristo Redentor majestosa,
de braços abertos no topo.
CURIOSIDADE
Reza a lenda que diante desse dilema, num terreno em que a busca por uma solução era
imperativa, a solução Niemeyer de instalar os brise-soleis no sentido vertical foi tão original,
que os operários, sem acreditar nas instruções, achando que era um equívoco do desenho,
chegaram a montá-los na direção errada. O arquiteto então, além de não receber, preferiu
pagar do próprio bolso para que o equívoco fosse corrigido e os painéis instalados no sentido
vertical. E um novo vocábulo estava criado especificamente para o nosso contexto.
capítulo 2 • 70
que Kubitschek tornou-se prefeito da cidade de Belo Horizonte, em 1940, ele já
estava familiarizado com o trabalho promissor do jovem arquiteto.
Quando Juscelino Kubitschek, um visionário, também com um discurso mo-
dernista, conhece o trabalho de Niemeyer, ele vê no arquiteto a possibilidade de
uma parceria frutífera. No mesmo ano em que se torna prefeito, imediatamente
o convida para conceber um conjunto de edifícios ao redor do lago artificial da
Pampulha, uma região da cidade que precisava se desenvolver. O programa in-
cluía um cassino (hoje transformado em museu), um clube, uma igreja, um salão
de baile e um hotel (o único edifício que não chegou a ser construído). Com a
liberdade criativa que Niemeyer teve para conceber esse conjunto, mais uma vez
trabalhando com Burle Marx e Portinari, o arquiteto constrói mais um marco
internacional em outra cidade brasileira.
©© PRANDRADE | WIKIMEDIA.ORG
capítulo 2 • 71
Este projeto, que ficou conhecido como conjunto da Pampulha, construído
entre 1942 e 1944, inclui aquela que é considerada a primeira obra-prima com
uma das principais marcas de Niemeyer: a exploração das curvas com uma finali-
dade estrutural. Na Igreja de São Francisco de Assis, de 1943, Niemeyer faz novas
experiências com o concreto armado, deixando para trás os pilotis corbusianos
para usar uma espécie de casca autoportante, em que trabalha a intensificação da
rigidez do material a partir da forma que cria.
©© SÉRGIO MOURÃO | WIKIMEDIA.ORG
Para isso ele utiliza uma série de troncos de cone elípticos, criando volumes
em forma de túneis parabólicos de concreto, parecidos com o que até então era
utilizado apenas em hangares de dirigíveis. A busca dessa “rigidez pela forma”
pode ser mais facilmente entendida com uma experiência simples: pegue um papel
e curve-o para cima, como a grande superfície de concreto armado da Igreja da
Pampulha. Seu papel ganhará uma rigidez muito maior, podendo receber uma
carga (digamos, o peso de uma caneta ou uma borracha) que em sua forma plana
não conseguiria receber sem se deformar, ceder. Niemeyer cria ali outro conceito
que perpassaria sua obra, a de unicidade entre estrutura e arquitetura. Uma vez
finalizada a estrutura, a arquitetura já aparecia – e parecia pronta.
A ousadia do gesto de Niemeyer, em 1943, no entanto, foi recebida como
uma provocação pela Igreja Católica. Aos olhos de Dom Antônio dos Santos
Cabral a igreja era "apenas um hangar" e um templo, para ser sagrado, mereceria
uma forma mais nobre que a de um galpão. Para completar o drama, o painel
capítulo 2 • 72
de Portinari que se tornaria um clássico da arte modernista brasileira também
soou ofensivo para a igreja, com um cão representando um lobo ao lado de São
Francisco de Assis. Durante anos as autoridades eclesiásticas proibiram culto na
igreja, mas 14 anos depois, entenderam a importância e o legado daquela inovação
e consagraram a igreja. Hoje em dia, ela é protegida pelos três níveis de Patrimônio
Histórico e Artístico Brasileiro (municipal, estadual e federal) e em 2016 a Unesco
reconheceu como Patrimônio Cultural da Humanidade o conjunto da Pampulha,
que conta com outros gestos ousados e inovadores nos edifícios do cassino, da casa
de baile e do clube.
Esta primeira obra de grande escala de Niemeyer foi apenas mais uma das
muitas razões para a atenção do mundo se voltar para a arquitetura brasileira nos
anos seguintes. Ainda em 1943, o MoMA (Museu de Arte de Nova York, na sigla
em Inglês) apresentou ao mundo aquela geração brasileira com a exposição 'Brazil
builds’ (em tradução literal, ‘Brasil constrói’, mas que pode ser interpretado neste
contexto também como Brasil produz). Logo depois essa mesma exposição rodou
por alguns países da Europa e deu uma visibilidade à produção local que nunca
existira até então. É nela que a expressão “Brazilian Style” é cunhada para deno-
minar o nosso Modernismo. Curiosamente, também neste momento uma crítica
de Mário de Andrade sobre a importância da exposição cria a expressão Escola
Carioca, o que leva muita gente a tomar equivocadamente a produção carioca
como a totalidade da produção nacional.
capítulo 2 • 73
para apresentar um projeto no concurso para novo o edifício das Nações Unidas
em Nova York. Assim que chegou, no entanto, Oscar foi convidado por Le
Corbusier para participar como colaborador em seu projeto, que estava recebendo
muitas críticas até então. Niemeyer inicialmente atendeu à solicitação do antigo
mestre, mas logo foi chamado por Harrisson, que pediu para ele desenvolver a sua
própria proposta, objetivo original do convite. Ele teve então duas semanas para
trabalhar em seu projeto. Niemeyer confessa que não gostava nada do projeto de
Le Corbusier, que lhe parecia ter sido concebido para outro lugar. Ele criticava a
posição do bloco proposto, que dividia o terreno em duas áreas desconectadas.
Em seu projeto, Niemeyer concebe um bloco horizontal mais curto, colocado ao
lado do rio e o mais alto na esquina do terreno, criando com esse gesto a Praça das
Nações Unidas.
Depois da apresentação dos projetos, Harrisson propôs que o projeto de
Niemeyer fosse construído, o que foi aprovado por unanimidade pelo júri. No en-
tanto, na manhã seguinte Le Corbusier pediu para falar com Niemeyer novamen-
te e pediu-lhe para alterar a posição do volume maior, levando-o para uma posição
central como na sua ideia. Wallace Harrisson discordou, mas com a insistência de
Le Corbusier, Niemeyer aceitou elaborar um projeto final com poucas mudanças
em colaboração com seu antigo mestre.
O projeto final construído para sede da NY Nações Unidas, de 1947, foi
assinado por Niemeyer e Le Corbusier. Foi quando a relação "mestre-aprendiz"
se tornou uma relação entre iguais, dois dos maiores personagens da história da
arquitetura, sem qualquer hierarquia. De acordo com Niemeyer, a generosidade
de que o gesto foi reconhecido anos mais tarde por seu velho mestre em um jantar
em seu apartamento na França.
A explosão da caixa cartesiana, que Niemeyer já ensaiara com Lucio Costa em
1939 no pavilhão brasileiro em NY, foi retomada em 1951, em uma versão bem
mais radical, no projeto para a sua própria casa na Estrada das Canoas, no Rio
de Janeiro, construída dois anos mais tarde. Niemeyer dizia que sua intenção era
conceber essa residência com total liberdade, adaptá-la às mudanças de nível do
terreno sem modificar a sua forma, com as curvas da casa permitindo que a natu-
reza penetrasse na edificação, sem a separação arbitrária da linha reta.
A Casa das Canoas tornou-se uma das obras mais reconhecidas de Niemeyer,
incluída na lista de Patrimônio Nacional no mesmo ano em que o arquiteto com-
pletou, vivo, 100 anos de idade. A casa de fato materializou uma integração sem
precedentes entre espaços fechados e abertos, naturais e artificiais.
capítulo 2 • 74
Figura 2.15 – Casa Canoas, de Oscar Niemeyer, em 1951, em total integração com
a natureza. Disponível em: <http://www.archdaily.com.br/br/01-14512/classicos-da-
arquitetura-casa-das-canoas-oscar-niemeyer/frank-van-leersum_6>.
capítulo 2 • 75
Novamente recorrendo à autobiografia de Niemeyer, uma passagem interes-
sante mostra o espírito que ele viria a imprimir em todos os edifícios oficiais. Ele
narra um diálogo na ocasião de sua primeira visita ao planalto onde seria cons-
truída a cidade, na companhia do presidente e de seus ministros. Representando
o setor mais conservador da sociedade, o Ministro da Guerra, Comandante Lott,
perguntou-lhe se os edifícios para o Exército seriam construídos em um grandioso
estilo clássico, “como se poderia esperar”, ou seriam modernos como o arquiteto
costumava fazer seus projetos. A resposta de Niemeyer foi no tom que o presidente
Kubitschek esperava: "Quando você entra em uma guerra, você prefere usar armas
clássicas ou modernas?" Segundo Niemeyer, o comandante compreendeu imedia-
tamente a mensagem, sorriu com simpatia e nunca falou sobre isso.
Além da confiança absoluta do presidente no arquiteto, ele tinha muita pressa
para cumprir a promessa de campanha de desenvolver "50 anos em 5". Com isso
a liberdade de Niemeyer, mais uma vez, foi imensa. A ideia, que já existia desde
o século anterior, de mudar a capital para a parte central do país, tinha dois obje-
tivos principais: levar o centro político do país para uma cidade mais protegida,
que correria menos riscos de ataques militares externos; e, principalmente, levar
o desenvolvimento ao interior, já que as maiores cidades eram todas na costa. O
local escolhido, além de ser próximo à fonte das principais bacias hídricas o país
(rios Paraná, São Francisco e Tocantins), teve uma forte simbologia: ficava exata-
mente no centro geográfico do país e, para completar, em um enorme planalto,
exatamente mil metros acima do nível do mar.
Esse conjunto de fatos ajudou a definir o tom de fantasia e as expectativas de
que o projeto da nova capital gerou. E o objetivo de concluí-lo em cinco anos fez o
presidente pedir a Niemeyer, funcionário público, para elaborar o plano piloto ele
mesmo. Mas Niemeyer recusou e insistiu na elaboração de um concurso. Reza a
lenda que Lúcio Costa nem chegou a entregar sua proposta completa, sem tempo
para completar seus estudos. Indícios apontam que sua filha pegou o projeto ina-
cabado e entregou em seu nome, achando que tais ideias não poderiam ser jogadas
fora só porque o estudo não foi concluído a tempo. O fato é que, mesmo com uma
proposta incompleta, o projeto de Lúcio Costa ganhou o concurso e causou muita
discussão no cenário arquitetônico à época.
O Instituto Nacional de Arquitetos sugeriu que o governo organizasse um
novo concurso, mas Israel Pinheiro, responsável pelas decisões no governo, foi
imediatamente pedir a opinião de Niemeyer, um ex-pupilo de Costa, que respon-
deu: "No que depender de mim, você vai encontrar todos os obstáculos possíveis!"
capítulo 2 • 76
E, com sua proximidade com o presidente, Niemeyer ajudou a manter o projeto
de Lucio Costa como o escolhido para a nova capital.
As obras começaram rapidamente e depois de construir, em 15 dias, uma resi-
dência temporária de madeira para o presidente (Conhecido como Catetinho, em
referência à então residência oficial do presidente no Palácio do Catete, no Rio de
Janeiro), o primeiro edifício permanente a ser construído em Brasília foi Palácio da
Alvorada, entregue em 1958. Projetado para ser a residência oficial e local de traba-
lho do presidente, o maior mérito do palácio de dois andares, segundo o próprio
arquiteto, é o “entrelaço” dos dois programas sem perder a independência de cada
um. Plasticamente, chama atenção pela grande varanda do andar inferior, apenas um
metro acima do chão, o que permite que não se use guarda-corpo ou corrimão, com a
extensão dos pilares servindo de limite. Essa colunata virou um clássico da arquitetura
brasileira, sendo copiada nos por outros arquitetos nos EUA, na Grécia, na Líbia.
capítulo 2 • 77
Em frente ao Palácio, ficaria a Praça dos Três Poderes: o Executivo, representa-
do por ele; o Legislativo representado pelo Congresso Nacional; e o Judiciário, re-
presentado por Supremo Tribunal Federal. Por sua escala, é o Congresso Nacional,
entregue ainda em 1958, que chama atenção não só de quem está na praça, mas
de qualquer pessoa dentro do chamado "Eixo Monumental”, que começa ali e
atravessa a cidade, com todos os ministérios e edifícios públicos ao seu redor.
©© ZIMBRES | WIKIMEDIA.ORG
capítulo 2 • 78
Outro edifício de Brasília que se consolidou como uma das bem-sucedidas
experiências de Niemeyer é o da Catedral. É impressionante como um arquiteto
ateu, agnóstico, consegue estabelecer, com gestos tão simples, tamanha simbo-
logia e conexão com a representação do Divino. Quando descreve a arquitetura
de Brasília, o próprio arquiteto cita a Catedral como exemplo: "A ideia de fazer
uma arquitetura diferente me permite afirmar hoje aos que visitam a nova capital:
'Vocês vão ver os palácios de Brasília, deles podem gostar ou não, mas nunca dizer
terem visto antes coisa parecida. E isso se verifica na Catedral de Brasília, diferente
de todas as catedrais do mundo, uma expressão da técnica do concreto armado e
do pré-fabricado. Suas colunas foram concretadas no chão, para depois criarem
juntas o espetáculo arquitetural."
E o projeto é, de fato, um espetáculo da arquitetura. Com duas curvas,
Niemeyer cria uma espécie de coluna que ao mesmo tempo é viga e é pratica-
mente o único elemento que compõe o edifício. Repetida 16 vezes, rotacionando
360° em torno de um eixo central, as colunas/vigas, criam a moldura para um
belíssimo vitral moderno. Este conjunto se torna a cobertura de um grande vão
no nível térreo que delimita uma nave escavada, de planta circular, ao contrário da
clássica forma de cruz feita pelo encontro da nave principal com o transepto. Para
acessar esse espaço, o usuário precisa descer à escuridão de um corredor de acesso e
quando chega ao salão redondo, a luz zenital colorida o convida a olhar para cima
e estabelecer contato com o céu onde acredita estar seu Deus, uma possibilidade
sem precedentes na história da arquitetura religiosa.
Brasília mudaria para sempre não só a vida de Niemeyer, mas a arquitetura
de Brasil e, em certa escala do mundo. Além do pico do Modernismo, Brasília foi
apontada por muitos como também um ponto de inflexão e marco inicial do pro-
cesso de decadência do Modernismo no Brasil. Nos próximos capítulos veremos
que no resto do mundo esse processo já estava acelerado neste momento, com o
movimento pós-moderno próximo da maturidade.
O plano do mestre Lúcio Costa, sem considerar alternativas para a expansão
futura em um projeto racionalista e “fechado”, como uma máquina, em breve
começaria a estimular o nascimento das chamadas “cidades-satélites”. E o Distrito
Federal, projetado e construído a partir da premissa de seu tempo de que o auto-
móvel deveria ser seu personagem principal, rapidamente se torna obsoleto quan-
do confrontado com as ideias de Jane Jacobs que veremos nos próximos capítulos.
Outro personagem importante da segunda metade deste livro, o grande ar-
quiteto, professor e crítico holandês Rem Koolhaas, chegaria a explicar a relação
capítulo 2 • 79
confusa entre o ciclo do Modernismo e a construção de Brasília: "Brasília não é
uma decepção, mas também não é um reencontro espetacular com um antigo
ideal solista. Mais um último espasmo do que uma nova alvorada. Uma confirma-
ção que este ideal, por agora, não é mais crível."
A arquitetura de Niemeyer ainda teria importantes momentos depois de
Brasília, ajudando a perpetuar outros “pequenos espasmos modernos” até sua re-
cente morte, em 2012, aos 104 anos de idade. O exílio após o golpe de 64 ajudou
a internacionalizar sua herança, levando o espanto e admiração característicos de
sua obra a diversas cidades da Europa e África. Em seu retorno, ainda produziria
no Brasil muitos edifícios importantes, como o conjunto do MAC e Caminho
Niemeyer em Niterói, ou o Museu Niemeyer de Curitiba. Seguiria até o fim de
sua vida lutando por uma cidade mais justa, se tornando um dos últimos grandes
defensores da utopia comunista ou, como ele chamava, humanista, e influencian-
do seguidas gerações no Brasil e no mundo. O peso de sua influência seria ainda
um dos responsáveis diretos pelo prolongamento do uso do vocabulário moder-
nista no país.
No Brasil, como veremos nos próximos capítulos, a linguagem moderna, ao
contrário do resto do mundo, seguiria fortemente presente ao menos até meados
da década de 1980, especialmente em São Paulo, onde a “Escola Paulista” só se
estabelecera tardiamente, em meados da década de 1940. Enquanto isso, no resto
do mundo, o movimento moderno já começaria a sofrer uma revisão desde os
anos 1950, com o surgimento do Team X, como veremos nos próximos capítulos.
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capítulo 2 • 81
capítulo 2 • 82
3
Revisão do
Modernismo
Revisão do Modernismo
Este capítulo se configura como uma análise de projetos e textos de teor crítico
aos ditames paradigmáticos da arquitetura moderna. Tratam-se de obras, entre as
décadas de 1960 a 1970, que se estabeleceram na história enquanto promotoras
de um revisionismo do modernismo arquitetônico.
Num primeiro momento, apresentamos as obras que provocaram uma reto-
mada de alguns aspectos da tradição arquitetônica. No caso do arquiteto Louis
Kahn, por exemplo, a monumentalidade; no movimento do TEAM X, surgido
dentro dos próprios CIAM (congressos dedicados às formulações das premissas da
arquitetura e do urbanismo modernos), a busca de reatar o laço entre o indivíduo
e a rua, com projetos que combatiam as setorizações funcionais do espaço urbano
relatados na carta de Atenas; em seu argumento crítico, Jane Jacobs, em seu texto
“A morte e Vida das Grandes Cidades”, defende a diversidade e a complexidade,
condições, segundo ela, inerentes ao espaço urbano e eliminadas nos axiomas do
urbanismo moderno.
A segunda parte do capítulo lida com propostas de ultrapassar as fronteiras,
sejam históricas ou formalistas, da modernidade arquitetônica. Manfredo Tafuri,
Aldo Rossi e Colin Rowe são discutidos dentro de uma contextualização histórica
que aborda o modo como cada uma lida com a questão da crise da arquitetura
moderna. Tafuri, na crítica dos mecanismos pelos quais a arquitetura vinha se
vinculando e se apropriando dos novos materiais e novos meios de produção as-
sim como a relação entre este contexto e a arte de vanguarda moderna. Rossi na
identificação de uma continuidade histórica de tipos e arquétipos arquitetônicos
e Rowe, na análise diagramática da forma arquitetônica moderna e do espaço
urbano, indicando, a partir de seus estudos – que constatam fragmentações e su-
perposições de formas e temporalidades históricas tanto da arquitetura como das
cidades – o colapso da noção de espírito do tempo, mais especificamente, do
tempo moderno.
OBJETIVOS
• Apontar as primeiras obras e teorias arquitetônicas após a segunda metade do século XX
que refletem criticamente as premissas ideológicas do movimento moderno;
capítulo 3 • 84
• Identificar a produção de arquitetos de relevância histórica atuantes no pós-guerra e apon-
tar, nas obras destes, características de diferenciação com o modernismo arquitetônico;
• Consolidar as questões colocadas pelas obras e teorias comentadas como um ponto de
partida para um entendimento mais abrangente da produção das gerações seguintes, de
arquitetos contemporâneos.
“New Deal” foi uma série de programas socioliberais criada pelo então presidente norte-
americano Franklin Roosevelt em resposta à Grande Depressão econômica de 1929.
O programa tinha como lema os três “erres [R]”: Relief, Recovery e Reform [Redução,
Recuperação e Reforma].
capítulo 3 • 85
Por esta razão chegou-se a falar de uma Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade)
americana.
A Nova Objetividade (Neue Sachlichkeit) foi um movimento artístico alemão que suce-
deu ao Expressionismo e tinha como característica a simplificação dos objetos de arte
por meio da sua forma, materiais e representação. O período da Nova Objetividade, não
por acaso, coincide com o período da república de Weimar, da reconstrução da Alema-
nha após a Primeira Grande Guerra, da Deutscher Werkbund e da Bauhaus. Todos estes
eventos históricos estavam interligados com uma nova atitude do indivíduo alemão dian-
te do mundo que buscava a racionalização, a economia e a socialização dos recursos e
dos modos de produção artística e arquitetônica.
capítulo 3 • 86
Este foi um período em que Kahn trabalhou em parceria com George Howe –
arquiteto que projetou, junto com William Lescaze, o P.S.F.S. (Philadelphia Savings
Fund Society). Hoje operando como Loews Philadelphia Hotel, este foi o primeiro
arranha-céu americano classificado como Estilo Internacional (International Style).
Kahn desenvolveu, ao logo de sua carreira, um forte interesse na ordem formal
da arquitetura e por esta razão cultivou por um tempo, certo fascínio pela geome-
tria modular de Buckminster Fuller – arquiteto atrelado às premissas projetuais
do New Deal e que acreditava que o “novo” e uma linguagem arquitetônica livre
podem ser realizados a partir de princípios geométricos abstratos.
De 1930 até meados da década de 1950, Kahn tentou em vão suprimir os
reflexos de sua educação apoiada na École des Beaux Arts buscando obstinadamente
o ideal modernista, mas sem atingir resultados satisfatórios. Foi apenas quando ele
resolveu cessar sua contenda contra sua formação clássica que ele encontrou sua
própria arquitetura.
Isso se deu de modo acidental, em 1951 – embora não totalmente por aca-
so – durante o curso oferecido pela American Academy em Roma. Ali ele revisi-
tou a Antiguidade Clássica que era o centro e origem de seu conhecimento em
arquitetura.
Esta experiência o levou, para além da tradição europeia, a investigar outras
culturas antigas de construção, como a grega e a egípcia. Disso emergiu em sua
arquitetura um senso mais arcaico transliterado na retomada de ambientes isola-
dos – contrariando um dos cinco pontos da arquitetura moderna de Le Corbusier,
a paradigmática planta livre – e também no uso de paredes e invólucros mais
sólidos, possibilitando uma monumentalidade, do mesmo modo, revogada pela
arquitetura moderna.
Em 1957, ele projetou o Richards Medical Research Laboratory para
Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia, um modesto edifício que desafiou a
doutrina imaculada do modernismo miesiano. No lugar do “espaço universal”
do Modernismo, o espaço de Kahn foi insistentemente e impiedosamente parti-
cular. Ele dividiu o edifício em blocos de laboratórios e os shafts de ventilação e
instalações (torres verticais) em espaços segregados e distintos de áreas de serviços
e áreas assistidas, criando uma hierarquia que o Estilo Internacional modernista
buscou demonstrar.
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©© SMALLBONES | WIKIMEDIA.ORG
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©© THENOSE | WIKIMEDIA.ORG
Figura 3.2 – Salk Institute [Louis Kahn].
capítulo 3 • 89
Liderado por Alison e Peter Smithson e Aldo van Eyck, o grupo atacou de modo
contundente as quatro categorias funcionalistas da Carta de Atenas: moradia, tra-
balho, lazer e transporte.
Falar do Team X, portanto, implica um entendimento básico a respeito dos
CIAM. Sumariamente, podemos revisar os anos de existência dos CIAM mostran-
do que eles basicamente tiveram três etapas distintas, categorizadas pelo historia-
dor Kenneth Frampton da seguinte forma:
A primeira etapa: de 1929 a 1933, compreendeu os congressos de Frankfurt,
em 1929 e de Bruxelas em 1930. Foi, sob muitos aspectos, a mais doutrinária.
Dominados pelos arquitetos alemãs da Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade), em
sua maioria de tendências socialistas, “esses congressos voltaram-se num primeiro
momento, em Frankfurt, sob o título de Die Wohnung für das Existenzminimum
(alojamentos para unidade mínima de habitação), para os problemas de padrões
mínimos de vida, e em seguida, em Bruxelas (CIAM III) sob o título Rationelle
Bebaungsweisen (práticas de desenvolvimento racional), que abordava questões de
gabarito (altura ideal) e do espaçamento entre blocos, visando à eficiência tanto da
terra quanto do material”;
A segunda etapa: “1933 a 1947, foi dominada pela personalidade de Le
Corbusier, que deliberadamente alterou a ênfase predominante, fazendo-a incidir
sobre o planejamento urbano”.
A terceira etapa: quando ocorreu uma ruptura decisiva com o CIAM IX, reali-
zado em Aix-en-Provance em 1953, foi também quando os Tem X se organizaram
contra ao funcionalismo proposto pela Carta de Atenas ao urbanismo moderno.
Neste sentido, o Team X trouxe, enquanto proposta, um conjunto alternativo
de abstrações. Os Smithson, Van Eyck, Jacob Bakema, George Candilis, Shadrach
Woods, John Voelcker e Willian e Jill Howell analisaram criticamente os princí-
pios estruturais do desenvolvimento urbano consolidados por Le Corbusier na
etapa anterior do CIAM. O fruto desta análise revelou o descontentamento com
o funcionalismo “da velha guarda” – com o “idealismo” de Le Corbusier, Van
Eesteren, Sert, Ernesto Rorgers, Alfred Roth, Kunio Mayekawa e Gropius – e teve
seu reflexo justo na reação do grupo ao relatório do CIAM VIII. Neste sentido,
veio a resposta dos membros do Team X, manifestando um padrão urbano que
atendia a uma nova sensibilidade contemporânea, que compreendia uma necessi-
dade e urgência de “identidade” para o espaço citadino. Escreveram: “Pertencer é
uma necessidade emocional básica – suas associações são da ordem mais simples.
Do pertencer – identidade – provém o sentido enriquecedor da urbanidade. A
capítulo 3 • 90
ruazinha estreita da favela funciona muito bem exatamente onde fracassa com
frequência o redesenvolvimento espaçoso”.
Assim, o elã crítico de encontrar uma “relação mais precisa entre a forma fí-
sica e a necessidade sociopsicológica tornou-se o tema do CIAM X”. O CIAM X
ocorreu em Dubrovnik, em 1956 – último encontro dos CIAM. Foi nele que este
grupo de arquitetos passou a ser denominado de Team X. Também definiu a ex-
tinção oficial dos CIAM e teve a indicação o Team X como o sucessor confirmado
em 1959, quando do novo encontro do grupo no cenário melancólico do Museu
de Otterlo, de Van de Velde, com assessoramento do mestre belga.
A reação do Team X às premissas dos CIAM se dava, para além do campo
teórico, nas ações projetuais de seus integrantes. Temos como exemplo notório, de
relevância histórica, o Golden Lane dos Smithson.
Alison e Peter Smithson, em idos de 1950, representantes do brutalismo in-
glês com influência do existencialismo francês, buscaram na obra do fotógrafo in-
glês Nigel Henderson inspiração para o projeto do Golden Lane. Grosso modo, o
arquivo fotográfico de Henderson representa a realidade física e social de Londres.
Um ensaio de Henderson em especial foi importante para a dupla de arquitetos, a
do East End Londres – que retratava o cotidiano da comunidade de Bethnal Green.
Foi com uma descrição imagética que Henderson foi capaz realizar fotografica-
mente, o que ficou patente foi que ele havia captado a expressividade da “vida
das ruas” da população de Bethnal Green – e foi a partir desta “expressividade do
cotidiano das ruas” que os Smithson começaram a elaborar as ideias de identidade
e associação.
Assim, desta relação com a obra de Henderson, os arquitetos propuseram – a
partir de uma análise, ainda que por demais racionalizada, da Bye Law Street – o
projeto do conjunto habitacional Golden Lane, de 1952.
“Apesar de toda sua semelhança com o projeto Ilot Insalubrede Le Corbusier,
de 1937, Golden Lane tinha a nítida intenção de ser uma crítica à Ville Radieuse
e ao zoneamento das quatro funções da cidade em habitação, trabalho, lazer
e transporte”.
Os Smithson claramente objetaram a essas quatro funções uma proposta mais
fenomenológica de reconhecimento do lugar mais imediato: a casa, a rua, o bairro
e a cidade. O ponto criticável da proposição dos Smithson reside na diferença de
escala do espaço que abrange o ensaio fotográfico de Henderson e daquela que
um projeto como o Golden Lane engloba – isto é, o espaço do bairro e da cidade.
A presença da Bye-Law Street podia ser identificada nos primeiros esboços dos
capítulo 3 • 91
Smithson, “mas a natureza de Golden Lane – alta densidade num lugar pequeno
–e a aceitação dos postulados funcionalistas por parte dos Smithson impediam
uma solução que pudesse dar sustentação a tal vida”. A escala da Golden Lane,
sua proposta de acomodar o adensamento do lugar, levou a solução programáti-
ca a comprometer a proposta inicial e recair em alguns preceitos urbanos de Le
Corbusier defendido pelos CIAM.
Havia, dentro do próprio Team X, uma contradição de diretrizes projetuais,
que pode ser encontrada na obra de Jacob Bakema. Sua proposta de uma mega-
construção como o “determinante psicológico da posição” para paisagem metro-
politana era um paradoxo, uma proposta diametralmente oposta à dos Smithson,
que eram, justamente, reticentes quanto à viabilidade de tais estruturas. Ainda, a
diversidade do Team X era também representada pela abordagem insólita de Aldo
van Eyck, que acreditava na evolução nas cidades da ideia de uma “forma lugar”
adequada às vicissitudes do espaço urbano ao fim da Segunda Guerra Mundial.
Apoiado na sua bagagem de pesquisas antropológicas de culturas primitivas,
Van Eyck estava, em relação aos outros membros do Team X, mais apto a combater
o desvario abstrato moderno, apontando já uma continuidade histórica cognitiva
das formas construídas encontradas nos ambientes das tais culturas que ele havia
investigado – neste sentido, van Eyck apresenta para arquitetura uma autonomia
atemporal das formas arquitetônicas, descoladas de uma representação escrava da
tecnologia de um determinado momento histórico.
capítulo 3 • 92
Segundo Jacobs, Howard detestava a cidade, seus erros e seus equívocos. A
cidade para ele era a encarnação dos desvios e enganos da humanidade refletidos
no adensamento e aglomeração urbana. “Sua receita para salvação das pessoas era
acabar com a cidade”.
O desejo de Howard era poder criar espaços de vivência autossustentáveis,
bucólicos e agradáveis nos quais seus habitantes poderiam viver livres do stress das
metrópoles e das ambições profissionais do mundo moderno. Um projeto utópico
destinado a um estilo de vida simples e despretensioso.
Nada despretensioso, no entanto, era a empreitada de se realizar pequenos
espaços citadinos apoiados na ideia inovadora de Cidade-Jardim na qual um cin-
turão verde, reservado à produção agrícola, deveria circunscrever seu território. No
intuito de descolar a superposição de funções num mesmo espaço, foi proposto
para estas Cidades-Jardins a segregação dos usos industriais – a serem implantados
em áreas residenciais predeterminadas –, comerciais, esportivos e culturais – estes
últimos destinados ao território central do plano. Para Howard, “a melhor manei-
ra de lidar com as funções da cidade era selecionar e separar completamente os
usos simples e dar a cada um deles uma independência relativa”.
As cidades de Howard não deveriam exceder o número de trinta mil habitan-
tes e precisar, justamente com o intuito de conter qualquer expansão demográfica,
ser gerida e administrada sempre por um poder público local, diretamente ligado
à fundação da cidade.
Não se tratava apenas de um novo espaço e um novo estilo de vida, mas
principalmente, segundo a crítica de Jacobs, “de uma sociedade política e econo-
micamente paternalista”. Embora utópicas, as Cidades-Jardins de Howard foram
viabilizadas em Letchworth e Welwyn. Depois da Segunda Guerra Mundial, algu-
mas cidades da Inglaterra e da Suécia adotaram os princípios da Cidade-Jardim.
Desse modo, a Cidade-Jardim de Howard é entendida por Jacobs como uma
“anticidade” e para ela o homem que foi capaz de aplicar a desconcertante ideia
da anticidade dentro dos próprios centros urbanos foi o arquiteto franco-suíço Le
Corbusier.
O exemplo mais relevante disto que Jacobs está chamando de anticidade
foi a cidade imaginária de Corbusier denominada Ville Radieuse. O projeto de
Corbusier se erguia a partir de um parque na parte central da antiga Paris como
uma miríade de arranha-céus se contrapondo a toda cidade preexistente.
capítulo 3 • 93
Figura 3.3 – Villa Radieuse [Le Corbusier]. Disponível em: <http://www.archdaily.
com/411878/ad-classics-ville-radieuse-le-corbusier>.
Sobre este aspecto Jacobs cita Corbusier: Imagine que estamos entrando na
cidade pelo grande parque [...]. Nosso carro veloz toma a rodovia elevada especial
entre os majestosos arranha-céus; ao chegar mais perto, vemos contra o céu a sucessão de
vinte e quatro arranha-céus; à esquerda e à direita, no entorno de cada área específica,
ficam os edifícios municipais e administrativos; e circundando esse espaço, os prédios
universitários e os museus. A cidade inteira é um parque.
Assim como Howard, o que Le Corbusier tinha em mente e projetava era
utopia social. É nesse sentido que Jacobs diz que a Ville Radieuse é oriunda da
Cidade-Jardim. Porém, embora adote seus princípios, a estratégia de Le Corbusier
se diferencia da Cidade-Jardim de Howard por idealizá-la dentro de um perímetro
urbano demograficamente adensado. Como disse Corbusier: “a solução está na
Cidade-Jardim vertical”.
A crítica de Jacobs a esta “utopia social moderna” recaía justo no que ela iden-
tificou como sendo um “mito nostálgico”. O mito de que o progresso econômico
e o acúmulo de “uma centena de bilhões de dólares”, realizaria o projeto moderno
e suprimiria a degradação e a degeneração dos espaços urbanos – dando vida aos
sítios suburbanos ora vazios, ora mal ocupados e decadentes. A esse respeito ela
nos conta:
“Mas veja só o que construímos com os primeiros vários bilhões: conjuntos
habitacionais de baixa renda que se tornaram núcleos de delinquência, vandalismo
capítulo 3 • 94
e desesperança social generalizada, piores do que os cortiços que pretendiam subs-
tituir; conjuntos habitacionais de renda média que são verdadeiros monumentos
à monotonia e à padronização, fechados a qualquer tipo de exuberância ou vivaci-
dade da vida urbana; conjuntos habitacionais de luxo que atenuam sua vacuidade,
ou tentam atenuá-la, como uma vulgaridade insípida. Centros comerciais que são
fracas imitações das lojas de rede suburbanas padronizadas; passeios públicos que
vão do nada a lugar nenhum e nos quais não há gente passeando; vias expressas
que evisceram as grandes cidades. Isso não é urbanizar as cidades, é saqueá-las”.
O ponto de sua teoria é que existe uma incapacidade por parte do plane-
jamento urbano moderno, com toda sua cultura tecnomecanicista, de conter o
declínio e a falta de presença das cidades.
Avessa ao culto da aparência das cidades imaginárias perfeitas, ela nos conta
que a construção das cidades e de seu espaço se dá como um “imenso laboratório
de tentativa e erro” e que arquitetos e urbanistas deveriam ficar atentos mais a essa
dinâmica empírica latente das cidades (de tentativa e erro) do que se dedicarem à
corrida progressista e frívola de um futuro idealizado – descolado muitas vezes das
verdadeiras vicissitudes do espaço citadino.
“... precisamos urgentemente adquirir e aplicar o mais rápido possível todo
conhecimento sobre as cidades que seja útil e verdadeiro”.
Ainda neste sentido, Jacobs comenta que ...
... “planejadores, arquitetos do desenho urbano e aqueles que os seguem em
suas crenças não desprezam conscientemente a importância de conhecer o fun-
cionamento das coisas. Ao contrário, esforçam-se muito para aprender o que os
santos e os sábios do urbanismo moderno ortodoxo disseram a respeito de como
as cidades deveriam funcionar e o que deveria ser bom para o povo e os negócios
dentro delas. Eles se aferram a isso com tal devoção, que, quando uma realidade
contraditória se interpõe, ameaçando destruir o aprendizado adquirido a duras
penas, eles colocam a realidade de lado”.
Jacobs defende, assim, uma consciência dos aspectos complexos dos espaços
urbanos – suas diversidades, provenientes da vida real das cidades. Propõem com
isso que os urbanistas estimulem em suas diretrizes urbanas mais a densidade das
relações funcionais observadas na urbe e menos a sua idealização.
O comportamento social da população no espaço urbano, o desenvolvimen-
to econômico e a observância dos processos de decadência e revitalização são os
três tópicos fundamentais do estudo de Jacobs que dão suporte à sua argumen-
tação da gestão das cidades enquanto manejo ordenado das suas complexidades,
capítulo 3 • 95
especialmente no que diz respeito à habitação, ao trânsito, ao projeto, ao planeja-
mento e à administração.
“Não estudadas, desprezadas, as cidades têm servido de cobaia”.
Perspectivas contemporâneas
capítulo 3 • 96
promovendo um colapso na percepção do indivíduo, tornando-o um sujeito apá-
tico e blasé, desconectado das coisas do mundo e imerso num universo de excen-
tricidades. As consequências deste momento de choque são deletérias e geram
uma hipertrofia da sensibilidade e a criação de um distanciamento intelectual. Por
um lado, o conceito e a vida intelectual, tornam, supostamente, a experiência con-
creta em algo indiferenciado; por outro, a economia monetária insiste em retirar a
substância das coisas, nivelando-as a um mero valor de troca.
Neste contexto, todos os objetos flutuam sobre o mesmo plano, com a mesma
importância específica, no movimento constante da economia monetária, e nele, a
cidade seria também como um produto a ser consumido, como parte da ideologia
de consumo. Tal ideologia era servida ao público como um modus operandi da
cidade, ou seja, como um modo de se fazer o uso correto da cidade.
Para Tafuri, este novo universo de convenções, regido pelos meios de pro-
dução, foi um dos principais motivos pelos quais os movimentos de vanguarda
estabeleceriam uma ruptura com o passado, interpretando tudo que é novo como
algo da ordem do universal. Isso implicou um caráter totalizante das vanguardas
construtivas, ou positivas, da primeira metade do século XX.
Na visão de Tafuri, as colagens, as técnicas de construção e montagem cubista
e neoplasticista contribuíram para modelar um universo absoluto para a civilização
mecanicista. O primitivismo e o anti-historicismo seriam as consequências e não
as causas das ações de artistas como Picasso, Braque, Gris e, mais tarde, Mondrian
e Rietveld. Os métodos de análise crítica do Cubismo e do De Stijl conduziam,
através de uma dinâmica da forma, a uma fetichização do objeto artístico e seus
mistérios. A aura posta em ação nestes objetos funcionaria de forma a superar a
passividade do indivíduo blasé e do flâneur, e os introduziria num universo de
precisões dominado pelas leis de produção.
Podemos, assim, considerar alguns pontos de tangência entre os mais cons-
trutivos e os mais destrutivos movimentos de vanguarda do século XX. Segundo
Tafuri, a decomposição do material linguístico do Dadaísmo estaria promovendo
a sublimação do automatismo e da comercialização dos valores expandidos pelo
avanço do capitalismo.
O panorama da produção industrial, que espiritualmente empobrece o mun-
do, foi disseminado como um universo sem qualidade, sem valor. Mas isso foi
retomado após ter sido transformado, assumindo um novo valor por meio de sua
sublimação. A técnica do De Stijl de decomposição geradora de formas complexas
a partir de outras, elementares, correspondeu à descoberta de que a nova riqueza
capítulo 3 • 97
de espírito não poderia ser encontrada fora da nova pobreza assumida pela civili-
zação mecânica.
Desse modo, não é surpresa que a anarquia dadaísta e a ordem do De Stijl con-
vergiram para uma prática na qual o caos e a ordem foram aprovados pelos movi-
mentos das vanguardas históricas como os valores, no próprio sentido do termo,
da nova cidade capitalista. Aqui, o caos é um datum e a ordem é um objetivo. Esta
é a ordem que confere importância ao caos e ganha o valor de liberdade. O uso
sistemático do inesperado e a técnica de construção formam juntos as premissas
de uma nova linguagem não verbal, com base na improbabilidade, a mesma que o
formalismo russo chamou de distorção semântica.
A deformidade e o caos da cidade são a razão a ser redimida pela exclusão de
todas as suas virtudes progressistas. A necessidade de um controle da produção
tecnológica foi claramente apontada pelos movimentos de vanguarda. Esse é o
ponto em que a arquitetura parece ter se posicionado como o único mecanismo
de produção da sociedade capaz de suprir as necessidades indicadas pelo Cubismo,
Futurismo, Dadaísmo, De Stijl e o Construtivismo, uma vez que todos estes mo-
vimentos haviam sido lançados na crise. Neste sentido, a Bauhaus pode ser vista
dentro de um projeto industrial e de um método de organização da produção. A
ideologia, agora não estava mais sobreposta às operações artísticas – o moderno
havia se tornado concreto, por ter sido conectado a um ciclo real de produção, e
tornou-se também uma parte interna das próprias operações processuais.
Dessa forma, Tafuri afirma que existe na arquitetura e no urbanismo, uma
nova ordem utópica distinta das vanguardas históricas que está agora a serviço dos
objetivos de reorganização da produção e em que o planejamento dos movimentos
arquitetônicos revela uma contradição: os ideais adotados pelas vanguardas refe-
riam-se mais aos processos econômicos e, desse modo, o planejamento anunciado
pelas teorias arquitetônicas e urbanas estava determinado por algo além delas. Esta
determinação derivava da reestruturação da produção e do consumo em geral; em
outras palavras, a coordenação de uma produção planejada. Assim, a arquitetura
mediou realismo e utopia. A utopia de que a ideologia de planejamento poderia
controlar processos técnicos escondia o fato de que na esfera da reorganização da
produção, a arquitetura e o urbanismo se tornariam meros objetos subsidiais e não
os agentes fundamentais do plano.
Tafuri está, a princípio, alinhado com a ideia de que a prática social seria uma
especificidade da arquitetura que configura uma noção de autonomia diferente
das outras disciplinas artísticas, uma vez que a faz depender de sua finalidade de
capítulo 3 • 98
uso. A pintura, por exemplo, pode ser vista como uma forma de prática social.
Então, o que a difere da arquitetura? Residiria mais no fato de que, por um lado,
na pintura não haveria problemas, dentro de uma análise crítica, de distinguirmos
sua autonomia de sua prática social; por outro, no caso da arquitetura, sua práxis
vital seria um condicionante da disciplina.
O ponto é que as vanguardas absolutistas, positivas (Cubismo, De Stijl), ope-
rariam como uma subversão geradora de novos contextos e a modalidade experi-
mental, das vanguardas negativas (Dadaísmo, Surrealismo), estaria decompondo e
recompondo o material linguístico em uma atitude crítica. Esta distinção e articu-
lação de Tafuri entre vanguarda e atitude crítica – na qual, a primeira está sempre
comprometida com o novo e o com o espírito do tempo (com uma noção de
constante transformação) e a segunda com a delimitação do trabalho experimental
– seria a condição para uma vanguarda arquitetônica.
Diferentemente desta ideia de Tafuri de que todas as formas de execução são
cúmplices em alguma medida do ciclo produtivo do capital, o pensamento de
Colin Rowe (1920-1999) aponta para uma análise mais formal do cenário citadi-
no. Com base no argumento de Tafuri já apresentado, analisaremos brevemente a
concepção de Rowe.
Rowe vê a cidade como uma colagem, isto é, ele analisa e julga as fragmen-
tações do espaço urbano segundo preceitos formais sob o pretexto de se descolar
do contextualismo das vanguardas arquitetônicas. Assim, a crítica ao modernismo
de Rowe, ao contrário de Tafuri e Aldo Rossi (1931-1997), é descolada dos as-
pectos históricos, embora seja paradoxalmente historicista na medida em que está
associada a um certo tipo de tradição de formalista ligada à arquitetura de Andrea
Palladio (1508-1580) e aos preceitos de Rudolf Wittkower (1921-1971). A crítica
ao modernismo de Rowe pode ser vista como um contraponto à postura de Tafuri,
embora ambos ataquem a maneira pela qual toda ideologia e cultura técnico-me-
canicista se vê refletida na forma da arquitetura moderna.
Rowe vai dizer que a cultura moderna é uma expressão do Zeitgeist, isto é, do
“espírito do tempo” modernista da primeira metade do século XX, e propõe uma
potencialização da abstração formal para arquitetura, uma mais ligada às estraté-
gias formais da arte, especialmente a colagem cubista. Por sua vez, Tafuri entende
que tal expressão técnico-mecanicista é mediada por uma estética representativa
do poder capitalista, e defende o discurso crítico das ideologias históricas despreo-
cupado com resultados estéticos.
capítulo 3 • 99
A ruptura da ideia de Zeitgeist (espírito do tempo) coincide com o colapso do
movimento arquitetônico moderno. A princípio, Rowe entende a arquitetura mo-
derna como uma arquitetura das boas intenções13, isto é, uma arquitetura que sob
influência do historicismo hegeliano e equipada de todas inovações e transformações
dos últimos séculos, embora tenha falhado na buscada conexão entre arte e vida,
entre arquitetura e sociedade, tinha lá uma boa causa, ainda humanista e romântica.
Rowe retorna ao século XV para indicar que a partir de 1400, a noção de tempo
linear, que marca os períodos cronologicamente, “tem sido frequentemente a ban-
deira de advertência para importantes mudanças de estilo”.14 Seriam exemplos disto
a arte de Brunelleschi, Donatello e Masaccio na Florença renascentista; a exuberân-
cia barroca de Caravaggio e Carracci na Roma de 1600; e a turbulência cultural e
artística parisiense de 1800, caracterizada por uma explosão das vanguardas.
A partir de 1900, o que se tem é uma variedade de estímulos – a psicologia
freudiana, a música atonal, a relatividade, o balé russo, o verso livre, a pintura
cubista, o jazz15. A arquitetura, por sua vez, se manifestou neste período como
uma resposta às inovações tecnológicas e mecanicistas, procurando se adaptar ao
temperamento da época. Logo se tornou áspera, esplêndida, metálica, claramente
fria e exata. Sua conexão com os movimentos de vanguarda artística se daria graças
a herança do Romantismo do binômio arte e vida, no qual Rowe já podia estipular
uma conexão intrínseca entre a forma dos edifícios e a condição da sociedade.
Arquitetura e sociedade tornaram-se possíveis por meio da conjunção do pen-
samento determinista da tecnologia de produção com o pragmatismo social. Isso
quer dizer que o aspecto técnico à serviço do programa de necessidades sociais era
o que viabilizava a forma arquitetônica. Havia, neste momento, um espírito cético
e classicista de orientação claramente utópico e voltado para o futuro, no qual a
arquitetura deveria se adaptar a uma estratégia de inovação constante por meio da
objetividade e abstração.
Uma vez que a ideia da arte como reflexo da sociedade se tornou o novo pa-
radigma, não era difícil supor que a arquitetura viria a se estabelecer na efetivação
desta regra. Rowe então coloca a pergunta: [...] “deveria ser surpresa que, apesar
de um antagonismo geral inicial, a nova arquitetura rapidamente descobrisse um
apoio poderoso e devotado?” 16Nestes termos, a consagração da arquitetura pode
13 ROWE. Colin. The Architecture of Good Intentions, towards a possible retrospect. Italy: Academy Editions,
1994., p. 8.
14 Idid., p. 10.
15 Ibid.
16 Ibid. [tradução nossa]
capítulo 3 • 100
ser entendida por apresentar uma explícita vocação para trabalhar a serviço da
sociedade e para assimilação da tecnologia das máquinas na construção.
A partir de 1950, o movimento moderno começa a desmoronar. Com o fim
da Segunda Guerra e a ida dos principais arquitetos do modernismo para os EUA
– principalmente a figura de Walter Gropius – seus ideais foram questionados
em meio ao capitalismo avassalador da indústria de construção americana. Neste
contexto, a arquitetura começa a se tornar um produto, uma mercadoria alta-
mente vendável que reduziu toda competição a um estado de impotência criativa,
silenciando a hostilidade dos críticos. 17Neste sentido, a arquitetura das boas
intenções não teria sido, em seus 40 anos, uma bênção absoluta.
capítulo 3 • 101
nal. A contrapartida pode ser tomada da fala anterior de Le Corbusier de que
arquitetura acontece quando uma janela é muito grande ou muito pequena para
um cômodo ou fachada. Há, nessa ideia, uma suposição de alguma regra clássica
ou normativa. Os dois exemplos parecem apontar para alguma forma de condição
interior da arquitetura, para um formalismo irrefutável da arquitetura.
Até aqui, reconhecemos historicamente dois projetos teóricos da arquitetura
que não podem mais ser classificados como meramente formalistas. Os dois sur-
giram simultaneamente nos anos 1960. Um foi o projeto italiano, concentrado
nas figuras de Aldo Rossi e Manfred Tafuri; o outro, que buscava uma analogia
arquitetônica na linguística e nas estruturas profundas (deep structure) envolvendo
os arquitetos Colin Rowe e Peter Eisenman.
Rossi e Tafuri, a despeito das diferenças entre suas teorias, invocaram de modo
contundente uma reintrodução da história no discurso arquitetônico. O proje-
to de Rossi, mais preocupado com desenvolvimento dos elementos arquetípicos
que se repetem no decorrer da história – cúpulas, frontões, cilindros e outros
–, enquanto Tafuri ocupava-se da história como uma condição autônoma fora
do projeto arquitetônico. Para os italianos, isso acontece no momento em que
eles estabelecem uma ligação, rejeitada pelo Modernismo, entre a arquitetura e a
história. Isto é, os aspectos históricos da arquitetura são reconhecidos como um
caráter de continuidade interna, autônoma, no sentido de algo mais permanente,
essencial e universal.19
Por sua vez, o projeto estruturalista da arquitetura de Eisenman, tinha a lin-
guagem como um jogo autorreferencial dos signos arquitetônicos que buscava
uma profundidade estruturante descolada do tempo histórico e se autoproclamava
atemporal. E neste sentido, ambos projetos – italiano e estruturalista – negavam a
energia propulsora do Zeitgeist.
Entretanto, as concepções de tais projetos seriam ainda convencionais em re-
lação ao discurso contemporâneo, embora conservem o mérito de terem ido além
do formalismo modernista.
Podemos entender, a partir destas considerações, que os dois projetos cita-
dos anteriormente eram calcados na relação da arquitetura com outras disciplinas
– história e formalismo (estruturalismo). Até este ponto, tais projetos, embora
equivalentes no sentido de que rompiam, ao menos teoricamente, com a tempo-
ralidade histórica, com a ideia de Zeitgeist, eram distintos quanto à sua natureza.
Eram na verdade projetos, por vezes, de natureza opostas.
19 EISENMAN, P. Autonomy and the Will to the Critical. In: EISENMAN. Written Into the Void, p. 98. [tradução
nossa]
capítulo 3 • 102
Tafuri tinha na autonomia da história um fundamento crítico para arquitetu-
ra. Isso significa que as transformações na arquitetura se davam por imperativos
históricos, de fora para dentro; por exemplo, na ideia de que o desenvolvimento
capitalista havia removido da arquitetura um elemento fundamental: sua ideolo-
gia.20 O argumento é que, enquanto neomarxista, o arquiteto italiano pontuava a
importância de uma utopia que perdurasse a ligação entre arquitetura e sociedade,
independente de tendências estilísticas – ou, em outras palavras, das determinantes
estéticas. Para ele, sem uma prévia condição ideológica o drama contemporâneo “é
ver a arquitetura obrigada a retornar à arquitetura pura, à forma sem utopia; no
melhor dos casos, à inutilidade sublime.”21 Neste sentido, Tafuri combatia direta-
mente a redução da forma arquitetônica à pureza formal dos arquitetos modernos.
Dado que a tarefa tradicional da crítica arquitetônica se desenvolveu a partir
das suas estruturas internas, estruturando-se de um modo reflexo, falando de si
mesma, analisando sua própria linguagem, a arquitetura modela-se na forma de
um discurso contínuo e cerrado22. Tafuri diz: “a arquitetura que fala da arquitetura
recusa, no fundo, entrar num diálogo profundo com a crítica.” 23Novamente, o
aspecto crítico defendido por Tafuri é de fora para dentro e contra o hermetismo
autônomo dos modernos.
O posicionamento de Rossi era mais positivo comparado ao de Tafuri. Rossi
buscava nos tipos históricos arquétipos formais passíveis de continuidade, isto é,
buscava uma abstração de modelos histórico da arquitetura, uma abstração com
carga semântica, capaz de ser utilizada em novos projetos e novos materiais.
O posicionamento de Rossi não era crítico como o Tafuri, mas teve a impor-
tância deixar em aberto um caminho possível de ligação entre forma e história.
Sobre sua obra Rossi nos conta em sua “Autobiografia Científica”:
[...] continuo a minha arquitetura com a mesma obstinação e parece-me que
este oscilar entre uma geometria rígida e histórica e o quase naturalismo dos obje-
tos seja uma condição para este tipo de trabalho. 24
Esta ideia de oscilação entre forma histórica e forma literal de Rossi, ou mes-
mo o pensamento neomarxista de Tafuri, cada um à sua maneira, se apresenta
enquanto crítica ao movimento modernista da arquitetura, especialmente naquilo
que concerne à exclusão dos seus aspectos históricos, seja ele formal ou ideológico.
20 TAFURI, Manfredo. Architecture and Utopia, p., ix.
21 Ibid. [tradução nossa]
22 TAFURI, Manfredo. Teorias e Histórias da Arquitetura, p. 165.
23 Ibid. p. 159.
24 ROSSI, Aldo. Autobiografia Científica, p. 126.
capítulo 3 • 103
A figura de Rossi nesse contexto, se não foi revolucionária, ao menos foi
embrionária, tendo apontado uma possibilidade de se trabalhar a forma histo-
ricamente, porém descolado do historicismo. Essa é uma distinção importante
cuja diferença reside na ideia do historicismo modernista, que Rossi acreditava
ser um obstáculo para criatividade projetual. A respeito dessa questão em Rossi,
Eisenman comentou:
“Historicismo lida com causas e imperativos enquanto que a história centra-se
nos efeitos ou fatos”.25
“um limite não é aquilo em que algo se detém, mas, como reconheceram os
Gregos, o limite é aquilo a partir do qual alguma coisa inicia sua presença”26
Heidegger
capítulo 3 • 104
com o imaginário destes arquitetos foi a corrida espacial da Guerra Fria, advinda
na ressaca do fim da Segunda Guerra Mundial.
Por um lado, o Archigram emergia de um contexto artístico POP, refletido em
seus projetos com uma linguagem de metáforas complexas que se referiam às ima-
gens do cotidiano – nas quais equipamentos eletrônicos (televisão, computadores
e satélites) e o colorido do mundo das revistas em quadrinhos eram especialmente
adotados, de modo superposto, na representação dos projetos. Por outro, o grupo
buscava criar um mundo futuro, hipotético, apoiado na sofisticação técnica para
uma projeção imaginária de cidades capazes de se autossustentarem num day-after
(pós-armagedom).
Projetavam, assim, megaestruturas que já haviam sido, à sua maneira, ideali-
zadas pelo designer tecnocrata norte-americano Buckminster Fuller. O crítico de
arquitetura inglês Reyner Banham disse ter sido Fuller o “paladino” e o “redentor”
do futuro. Um exemplo paradigmático da adjetivação Banham foi a proposta de
1960 de Fuller para construção de uma cúpula translúcida gigante sobre a par-
te central de Manhattan que funcionaria como um escudo geodésico da cidade
contra eventuais transformações da qualidade do ar. Embora o grupo inglês não
tivesse uma preocupação específica com a questão social ou ecológica, em termos
formais, o influxo das ideias de Fuller sobre os arquitetos do Archigram se viam
retratadas em suas estruturas arquitetônicas pelo emprego de soluções high-tech
(se apropriando do uso das tecnologias de ponta da época) que possibilitaram a
projeção de um ideário futurista para a arquitetura e as cidades.
O paradoxo do Archigram foi justamente buscar na tecnologia – visando à
subsistência humana num suposto pós-armagedom – um meio de imaginar e pro-
jetar um universo espacial que não era adaptável às cidades e ao modo de vida
existente, não estando, portanto, sujeito à execução. Em outras palavras, o projeto
do Archigram, como um todo, foi um projeto teórico e utópico. Entre os que
ganharam notoriedade podemos citar o Sin Center (Centro do Pecado – Mike
Webb, 1959-62); Plug-in City (Cidade conectável – Peter Cook, 1964-66); e a
Walking City (Cidade andante – Ron Herron, 1964).
A Sin City, também chamada de Entertainment Palace tem em seu programa
uma pista de boliche, um cinema, teatro, cafés e pistas de dança. Conta ainda com
uma grande loja de departamentos e escritórios na parte superior. Os espaços,
ainda que distintos, foram pensados para permitir a circulação por toda instalação.
Para isso foi projetado um sistema de rampas que permitisse o trânsito de carros e
capítulo 3 • 105
estacionamento por todo complexo arquitetônico. Sua estrutura é composta por
cabos de aço que suportam todo o corpo do edifício e os pisos são sustentados por
vigas protendidas engastadas nas torres das escadas.
Plug-in City – como o próprio nome sugere, o projeto de Cook é uma grande
estrutura em rede, isto é, um enorme sistema de módulos arquitetônicos interliga-
dos, conectados por vias de acesso multifuncionais, ora suspensas, ora vinculadas
ao solo, ao longo das quais serviços essenciais são distribuídos. Segundo Cook,
“nesta rede são inseridas unidades que atendem a todas as necessidades [...]. Elas
são servidas e manobradas por meio de guindastes que operam em trilhos situados
no ápice da estrutura. O interior contém diversas instalações eletrônicas e mecâni-
cas destinadas a substituir as atuais operações de trabalho”.
Walking City – a cidade andante de Herron pode ser definida por uma des-
crição quase que literal da imagem de um préstito de edificações que se deslocam
sobre a extensão territorial da cidade após uma catástrofe nuclear, como se fossem
insetos mecânicos gigantes.
capítulo 3 • 106
]
Figura 3.6 – Walking City [Herron]. Disponível em: <http://www.archdaily.com/786504/
yesterdays-future-visionary-designs-by-future-systems-and-archigram/5722ba-
2fe58ecee44a000152-yesterdays-future-visionary-designs-by-future-system-
s-and-archigram-photo>.
Outros projetos, como Instant City (Cidade Instantânea – Peter Cook, 1968-
70) e a Inflatable Suit-Home (Casa Inflável – David Greene, 1968), também com-
punham o registro projetual de um esforço, mais do que progressista, de índole
futurista, na medida em que se apresentavam mais proféticos e apocalípticos do
que realísticos.
Uma das exibições do grupo que refletia esse universo foi a Cápsula Archigram
para a Expo’70 em Osaka, no Japão – em que foi possível reunir grupos e ar-
quitetos que testavam as possibilidades de seus projetos para arquitetura e a
cidade diante do novo contexto histórico que vinha se conformando no pós-
guerra. Assim, membros do Archigram, do Team X – como Giancarlo de Carlo
– Christopher Alexander, Yona Friedman, junto com os principais representantes
do metabolismo japonês, estavam ali reunidos expondo e testando suas idealiza-
ções megaestruturais.
A afinidade do Archigram com a vanguarda japonesa se dava justo na ideali-
zação projetual de megaestruturas para arquitetura e as cidades. No entanto, dife-
rentemente do grupo inglês, o metabolismo japonês tinha uma preocupação social
que se apoiava, já em final da década de 1950, na superpopulação do país. Isto
capítulo 3 • 107
é, se por um lado o Archigram pensava a cidade pós-apocalíptica, as propostas do
metabolismo refletiam a inquietação dos japoneses com o espaço urbano existente
e sua alta densidade demográfica.
Assim, os projetos eram pensados no sentido de suprir uma demanda espa-
cial emergente – buscando uma verticalização modular na forma de arranha-céus
e megaestruturas.
Os principais membros do metabolismo japonês, dez anos antes da Expo’70 de
Osaka, já eram representados pelos arquitetos que participaram do World Design
Conference de 1960 em Tóquio, a saber: Noboru Kawazoe, Kiyonori Kikutake,
Masato Otaka, Fumihiko Maki, Noriaki (Kisho) Kurokawa.
Como dito, as concepções do movimento metabolista davam uma atenção
especial à questão habitacional, e por esta razão mesma, suas formas e suas estru-
turas eram inspiradas nas tecnologias navais e aeronáutica. Não se tratava apenas
de uma inspiração estética do transatlântico ou da aeronave, e sim do estudo da
possibilidade de se criar estruturas arquitetônicas dentro do mar, isto é, que su-
portassem as variantes físicas marinhas – assim como aeronáuticas, no caso dos
arranha-céus.
Embora se diferenciasse do Archigram por terem um posicionamento político
definido, de esquerda, a releitura que o metabolismo fazia do Construtivismo,
apoiada nas novas tecnologias, acabavam por fim denotando também um caráter
estético futurista de suas estruturas. Porém, o futuro do metabolismo não era apo-
calíptico e sim um progressismo marcado pela abdicação da fixação japonesa com
a memória e a identidade.
A esse respeito Noboru Kawazoe disse: “Nossa era construtiva será uma era de
intenso metabolismo. A ordem nasce do caos, e o caos da ordem. A extinção é o
mesmo que a criação [...], esperamos criar alguma coisa que, mesmo na destrui-
ção, conduza a uma nova criação. Essa ‘alguma coisa’ deve ser encontrada na forma
das cidades que vamos fazer – cidades em constante processo de metabolismo”.27
27 KAWAZOE, Noboru. Metabolism 1960: The Proposal for New Urbanism. Bijutsu Shuppansha, p. 49, abr. 1960.
Citado em: Cohen, Jean-Louis. O Futuro da Arquitetura desde 1889. São Paulo: Cosacnaif, 2013, p. 387.
capítulo 3 • 108
©© JORDY MEOW | WIKIMEDIA.ORG
capítulo 3 • 109
Figura 3.8 – Casa do Céu [Kiyonori Kikutake]. Disponível em: <http://www.archdaily.
com/477882/le-corbusier-model-for-the-metabolists>.
capítulo 3 • 110
direta do par dialético forma (tipo) e função (programa). A primeira, em defesa
de uma autonomia pura, portanto formal, contra um funcionalismo moderno
ultrapassado; e a última, a favor de um resgate de estilos históricos do século XIX
numa “afirmação implícita de que o futuro reside paradoxalmente no passado.”28
O que está em jogo na crítica de Eisenman aos detratores do funcionalismo
moderno é justamente que estes ainda regulam, tal qual os modernistas o fizeram,
seus argumentos dentro de uma dialética humanista. Isto é, o tipo de dialética que
atua no projeto arquitetônico modernista – assim como naqueles defendidos na
Trienal de Milão e na exposição da Beaux-Arts, e, ainda dirá Eisenman, no neo-
funcionalismo de Reyner Banham e do grupo Archigram – é de índole humanista
e não moderna.
O problema, na concepção do arquiteto, é que o projeto arquitetônico huma-
nista havia encontrado seu limite já na era pré-industrial. A esse respeito ele diz:
“No interior da prática humanista pré-industrial conseguiu-se preservar um
equilíbrio entre eles (forma e função) porque tanto a função como o tipo (forma)
foram investidos de uma visão idealista da relação entre o homem e o mundo
objetivo. [...]
O advento da industrialização parece ter rompido a essência desse equilíbrio.
Devido à necessidade de compatibilizar problemas de natureza funcional mais
complexa principalmente no que diz respeito ao atendimento a uma clientela de
massa, a arquitetura foi se tornando uma arte cada vez mais social ou programáti-
ca. E, à medida que as funções adquiriram maior complexidade, a capacidade de
manifestar a forma-tipo pura foi erodindo”.29
Eisenman identifica dois impasses fundamentais que resultaram no “fracasso
do humanismo”: o primeiro, de que as composições formais passaram, na era in-
dustrial, a deixar de obedecer a um imperativo moral para seguirem “fundamentos
de natureza mais formal”; o segundo, de que o positivismo atrelado à ideia de fun-
cionalismo também estava fortemente ligado a uma visão idealista da realidade.
A consequência foi que esta ambição idealista do funcionalismo passou a ser
a ética do form-giving30 por meio das “formas radicalmente desnudas da produção
28 EISENMAN. O Pós Funcionalismo. Em: Nesbitt. Uma nova agenda para Arquitetura, p. 97.
29 Ibid., pp. 97-98.
30 O termo form-giving, é relacionado tanto ao design quanto à engenharia, tendo no primeiro um caráter estético
e no segundo a elaboração da forma, levando-se em conta as propriedades funcionais dos materiais. Em Eisenman,
o termo está sendo utilizado para apontar a relação destes dois aspectos no funcionalismo da arquitetura moderna:
o estético como resultante objetiva da funcionalidade estrutural das formas e dos materiais aparentes. Ver: ZAINAL
ABIDIN, Shahriman; SIGURJÓNSSON, Jóhannes; LIEM, André; KEITSCH, Martina. On The Role of Formgiving in
Design. EISENMAN. Post-Functionalism. In: EISENMAN, Inside Out, p. 85.
capítulo 3 • 111
tecnológica.”31 Tal ideia pode ser referida tanto à eliminação dos ornamentos, ética
manifestada por Adolf Loos em seu ensaio paradigmático Ornamento e Crime,
como à transparência e objetividade alemã, características do funcionalismo ar-
quitetônico moderno.
Para Eisenman a sensibilidade modernista não deveria estar apoiada neste
novo modelo ético do funcionalismo uma vez que este nunca foi uma alternativa
ao humanismo, mas sim sua “expressão tardia”.
Eisenman está interessado em identificar um pathos legitimamente mo-
derno para arquitetura, um que não seja o da pura objetividade (sachlichkeit) e
do funcionalismo.
Pathos é o elã de uma expressão artística, sua verdadeira vocação, seu apelo a um sen-
timento – no caso descrito anteriormente, a um sentimento de modernidade.
Neste sentido, ele considera que a arquitetura estava atrasada quando com-
parada a outros campos do conhecimento, pois ainda não havia promovido uma
mudança de atitude cultural radical – isto é, atingido o tal pathos moderno – e en-
tenda-se por atitude cultural o modo pelo qual uma disciplina lida com a dialética
da forma/função. A esse respeito ele comenta:
“[o] abandono das atitudes humanistas que prevaleceram nas sociedades oci-
dentais por mais de quatrocentos anos ocorreu em momentos distintos do sé-
culo XIX e em áreas tão diversas quanto a matemática, a música, a pintura, a
literatura, o cinema e a fotografia. Revela-se na pintura abstrata, não objetiva de
(Casimir) Maliêvitch e de (Piet) Mondrian; na escrita atemporal e não verna-
cular de (James) Joyce e de (Guillaume) Appoliaire; nas composições atonais e
politonais de (Arnold) Schönberg e (Anton) Webern; no cinema não narrativo de
(Hans) Richter e de (Viking) Eggling”.32
Todavia, o arquiteto não está defendendo que abstração, atonalidade e atem-
poralidade sejam a essência do Modernismo. Com essas manifestações estilísticas
o que podemos inferir é um “deslocamento do homem do centro do seu mundo.”
É isso que estaria no cerne da questão para Eisenman. Isto é, o artista assumindo a
crise do sujeito em meio à complexidade das linguagens preexistentes:
“Derivado de uma postura não humanista com respeito às relações entre um
indivíduo e seu ambiente físico, o Modernismo rompe com o passado histórico,
31 EISENMAN. O Pós Funcionalismo. In: Nesbitt. Uma nova agenda para Arquitetura, p. 99.
32 EISENMAN, P., loc. cit, p. 99.
capítulo 3 • 112
quer com as concepções do homem como sujeito, quer com o positivismo ético de
forma e função. Por isso, não pode ser associado ao Funcionalismo. É por esse mo-
tivo que o Modernismo não foi até o presente elaborado arquitetonicamente”.33
O que podemos entender desse deslocamento do homem e da crise do sujeito
moderno anunciado por Eisenman está na maneira pela qual o homem reage ao
mundo em que vive – no modo pelo qual o indivíduo resiste e absorve a multipli-
cidade de linguagens que o mundo contemporâneo lhe impõe a cada momento
de sua existência. No caso do sujeito arquiteto, na forma como ele elabora seu
processo projetual face a essa multiplicidade de linguagens culturais possíveis, sem
perder os laivos linguísticos da arquitetura.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COHEN, Jean-Louis. O Futuro da Arquitetura desde 1889. São Paulo: Cosacnaif, 2013.
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FRAMPTON, Kenneth (1997). Arquitetura Crítica da Arquitetura Moderna. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.
JACOBS, Jane. Morte e Vida de Grandes Cidades. São Paulo, Martin Fontes, 2007.
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The MIT Press,1979.
TAFURI, Manfredo. Teorias e Histórias da Arquitetura. Lisboa: Presença, 1985.
capítulo 3 • 113
capítulo 3 • 114
4
Pós-Modernismo
Pós-Modernismo
O desafio de apreender as manifestações artísticas e arquitetônicas do período
que vai de final da década de 1950 até início da década de 1990, chamado de pós-
moderno, são fundamentalmente dois:
O primeiro é o de entendermos os parâmetros socioculturais que, caso não
definam, ao menos nos conscientizam da diversidade e heterogeneidade próprias
do pós-moderno.
O segundo, já consciente da diversidade coexistente das expressões sociocul-
turais deste tempo histórico, é o de compreender justamente as diferenças entre os
principais movimentos artísticos. Isto é, como a pluralidade pós-moderna se revela
no modo da Arte Pop, do Novo Ecletismo Arquitetônico e do Minimalismo se
apropriarem de aspectos distintos da vida pós-moderna:
O Pop, se ocupando dos mecanismos da vida cotidiana em
sua contemporaneidade.
O Novo Ecletismo na identificação de uma linguagem interna da arquitetura
e propondo novas composições a partir de tipos históricos.
E o Minimalismo, na contracorrente da arquitetura, buscando a literalida-
de do objeto artístico e sua relação não histórica de presença com o contexto
imediato.
OBJETIVOS
• Apresentar os parâmetros do pensamento sobre a sociedade pós-moderna;
• Expor as manifestações pós-modernas no campo da arte e da arquitetura: a arte e os
novos meios de comunicação, a linguagem histórica da arquitetura e a relação do contexto
com a obra de arte;
• Mostrar, por meio da organização tópica dos temas, que as manifestações artísticas e ar-
quitetônicas pós-modernas se dão, cada qual; por vias distintas.
capítulo 4 • 116
A condição pós-moderna
Pós-moderno:
Designa o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos
jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do final do século XIX.
Jean-François Lyotard
Este “estado da cultura” anunciado por Lyotard pode, grosso modo, ser an-
tecipadamente interpretado, neste breve prólogo, como um estado das artes cuja
diversidade, pluralidade e heterogeneidade cultural se tornam características mar-
cantes de uma nova condição da vida em sociedade, a condição pós-moderna.
O que está em jogo na ideia de uma pós-modernidade é todo um conjunto
dentro do qual diversas posições passam a ser consideradas concomitantemente
sem uma ordenação hierárquica de uma posição em relação à outra. trata-se mais
de uma nova consciência do estado das coisas em relação à sociedade moderna
do que a inauguração, propriamente dita, da diversidade cultural. A pluralidade
já estava ali no moderno, basta nos lembrarmos dos “ismos” que coexistiam no
período em suas contradições e oposições – capitalismo, socialismo, Cubismo,
Dadaísmo, entre outros. O que parece ter mudado é a condição cultural da so-
ciedade, que passou de uma pulsão totalizante, da crença de um ideal absoluto
– próprio dos manifestos modernos – à resignação pós-moderna na qual uma
posição já se coloca ciente da sua diferença. Isto é, ciente de que seu deslocamento
em relação ao “outro” irá em direção mais a uma coexistência das multiplicidades
latentes do que uma superação de classe de uma posição sobre a outra.
Em termos acadêmicos, o pós-moderno tem uma forte relação com o pensa-
mento norte-americano, embora tenha seu correlato no pós-estruturalismo euro-
peu, mais especificamente o francês. No entanto, esta correlação guarda diferenças
culturais significativas. Por exemplo, se por um lado o pós-moderno americano
está lidando com a nova conjuntura na ciência e na cultura de massa, condi-
ções provenientes da modernidade – sempre a tomando como partido, ora de
modo crítico, ora de forma irônica –; por outro, o pós-estruturalismo francês
carrega uma forte índole filosófica cuja agenda é a desconstrução de toda uma tra-
dição interna apoiada no estruturalismo, também francês, iniciado por Ferdinand
Saussure (1857-1913). Em suma, o que os diferenciam é justo a vocação histori-
cista do pós-moderno face ao caráter filosófico/linguístico do pós-estruturalismo.
capítulo 4 • 117
Não obstante, a questão da diversidade, pluralidade e da heterogeneidade cultural
pode ser encontrado em ambos os discursos.
Neste sentido, as formulações mais relevantes sobre a ideia de pós-moderno –
a saber: as obras The Structures of Scientific Revolutions (A Estrutura das Revoluções
Científicas)34 do físico norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996), La Condition
Postmoderne (O Pós-moderno)35 do filósofo francês Jean-François Lyotard (1924-
1998) e The Condition of Postmodernity (Condição Pós-moderna)36 do também
norte-americano e teórico sociopolítico David Harvey (1935-) – nos serviram de
base conceitual para todo discurso que se segue nos campos específicos da arte e
da arquitetura.
Thomas Kuhn, na qualidade de físico, de homem da ciência, busca mostrar
um conceito de ciência com base nos registros históricos da própria atividade de
pesquisa. Segundo ele, sendo a ciência uma coleção de “fatos, teorias e métodos”
registrados em textos o papel dos cientistas, para além da relevância de suas expe-
riências, seria de colaborar para a construção deste acervo específico da cultura.
“... a história da ciência torna-se a disciplina que registra tanto esses aumentos
sucessivos a como os obstáculos que inibiam a sua acumulação”.
No trecho anterior, Kuhn fala da importância das anotações das experiências
científicas, não importando se foram ou não bem-sucedidas, como elementos ne-
cessários para a composição da história da ciência enquanto disciplina.
Neste sentido, o novo historiador teria duas tarefas principais; uma seria a
identificação histórica, determinação de datas e personagens, das conquistas e des-
cobertas mais recentes no campo científico; e a outra, seria a descrição dos equívo-
cos, “mitos e superstições que inibiram a acumulação mais rápida dos elementos
constituintes do moderno texto científico”.
O ponto de relevância de se registrar também os “erros” científicos seria o
de esclarecimento às dúvidas quanto à contextualização do processo cumulativo
– isto é, quanto à investigação do modo pelo qual cada contribuição individual
havia sido formulada. Kuhn aponta que afinal estas dúvidas resultaram no que ele
entende como sendo uma “revolução historiográfica no estudo da ciência”. Sobre
esta nova abordagem historiográfica, ele diz:
“Em vez de procurar as contribuições permanentes de uma ciência mais an-
tiga para nossa perspectiva privilegiada, eles (os novos historiadores) procuram
apresentar a integridade histórica daquela ciência, a partir de sua própria época”.
34 KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas.
35 LYOTARD, Jean-François. O Pós-Moderno.
36 HARVEY, David. Condição Pós-Moderna.
capítulo 4 • 118
O exemplo que ele traz é o dos estudos sobre a obra de Galileu. Os historia-
dores, neste caso, não teriam estabelecido uma relação das concepções de Galileu
com as da ciência moderna e sim com as dos cientistas e professores contemporâ-
neos ao mestre do século dezessete.
Como dito, os novos historiadores estudam as opiniões sob a perspectiva de
um grupo relacionado ao momento do fato histórico original. O que é significa-
tivo nesta ideia é que é geralmente estes relatos divergem dos realizados a partir
da ciência moderna, e como consequência o que se é construído é uma ampliação
contextual, uma narrativa que acaba por se consolidar com um alto grau adequa-
ção e coerência interna justo por terem sido expostas as contradições e resoluções
das experiências científicas de seu tempo. Essa nova abordagem histórica insinua,
na concepção de Kuhn, uma contingência para uma nova representação da ciência.
A partir disso, uma questão é colocada pelo físico americano: “Que aspectos
da ciência revelar-se-ão como proeminentes no desenrolar desse esforço”? A inda-
gação recai sobre as consequências desta nova historiografia e a resposta dada pelo
autor é que fundamentalmente se evitaria a insuficiência das diretrizes metodoló-
gicas que ditam uma única conclusão substantiva para várias espécies de questões
científicas. Ou seja, é muito mais rico para o campo da ciência a ampliação do
contexto histórico estudado, englobando as experiências “malsucedidas” do perío-
do, do que tentar esquadrinhar as conquistas científicas da época às realizadas na
contemporaneidade. Ganhamos com isso, no panorama historiográfico, uma di-
versidade de problemáticas antes oculta pela história universal. O que é desconcer-
tante no argumento de Kuhn é que o fato de ele ter identificado precisamente na
história uma maneira de se trazer um maior esclarecimento para ciência praticada
nos dias de hoje – justo para ciência, a mais progressista das disciplinas.
Esse esclarecimento implica que é exatamente no momento em que os mem-
bros da comunidade científica não são mais capazes de se esquivarem “das anoma-
lias que subvertem a tradição existente da prática científica” que as investigações
extraordinárias aparecem, conduzindo a ciência a um novo grupo de “compromis-
sos, a uma nova base para prática da ciência”.
“Os episódios extraordinários nos quais ocorre essa alteração de compro-
missos profissionais são denominados (...) de revoluções científicas. Elas são os
complementos desintegradores da tradição à atividade da ciência normal, ligada
à tradição”.
As revoluções de Kuhn podem ser relacionadas a princípio com o modo como
Lyotard nos alerta, a respeito do conceito de pós-moderno, sobre a condição do
capítulo 4 • 119
saber nas sociedades mais desenvolvidas. Isto é, a ideia desta condição está dire-
tamente ligada ao estado da cultura científica e seu estágio de desenvolvimento.
Embora filósofo contemporâneo ligado ao pensamento linguístico, Lyotard
entende que as transformações que tocaram de forma decisiva a arte e a literatura,
assim também o fizeram com a ciência a partir de uma ideia similar ao argumento
de Kuhn, através da crise dos relatos:
“... a ciência entra em conflito com os relatos. Do ponto de vista de seus
próprios critérios, a maior parte destes últimos revelam-se como fábulas. Mas, na
medida em que não se limite a enunciar regularidades úteis e que busque o verda-
deiro, deve legitimar suas regras de jogo. Assim, exerce sobre seu próprio estatuto
um discurso de legitimação, chamado filosofia. Quando este metadiscurso recorre
explicitamente a algum grande relato, como a dialética do espírito, a hermenêu-
tica do sentido, a emancipação do sujeito racional ou trabalhador, o desenvolvi-
mento da riqueza, decide-se chamar “moderna” a ciência que a isso se refere para
se legitimar. É assim, por exemplo, que a regra do consenso entre o remetente e
destinatário de um enunciado com valor de verdade será tida como aceitável, se
ela se inscreve na perspectiva de uma unanimidade possível de mentalidades ra-
cionais: foi este o relato da Luzes, em que o herói do saber trabalha por um bom
fim ético-político”.
[...] Legitimando o saber por um metarrelato, somos conduzidos a questionar
a validade das instituições que regem o vínculo social: elas também devem ser
legitimadas. A justiça relaciona-se assim com o grande relato, no mesmo grau que
a verdade. [...] Simplificando ao extremo, considera-se ‘pós-moderna’ a increduli-
dade em relação aos metarrelatos”.
Fica claro no trecho anterior que para Lyotard o pós-moderno se dá na crítica
dos grandes discursos da filosofia tradicional, dos grandes metarrelatos, no sentido
de que eles se posicionam como totalizantes e universais num momento em que a
verdade na pós-modernidade se revelava cada vez plural e relativa.
Lyotard aponta esta pluralidade e relatividade dizendo que as combinações de
linguagem que formulamos não são absolutamente estáveis, e que seus atributos,
por nós construídos, não são necessariamente comunicáveis. Para ele, no pós-
moderno existe uma ampla diversidade de jogos de linguagem possíveis devido à
heterogeneidade dos elementos.
Neste contexto, ocorreu o desuso do dispositivo metanarrativo de legitimação.
Essa perda refere-se sobre tudo “à crise da filosofia metafísica e a da instituição
universal que dela dependia. A função narrativa perde [...] os grandes heróis [...] e
capítulo 4 • 120
o grande objetivo”. O que está sendo indicado é a passagem de um estruturalismo
para uma “pragmática das partículas de linguagem”, isto é, perdido então o elo
semântico que atava de forma absoluta o ser e as coisas, passamos a este pragma-
tismo de fragmentação da linguagem na narrativa moderna.
Assim, essa ideia de pragmática linguística levou a sociedade a um mecanismo
de otimização das performances do sistema apoiado na concepção de eficiência e
eficácia. O ponto crítico para o pensador francês é que esta pressão sobre o desem-
penho não se deu sem suas contradições:
“Esta lógica do melhor desempenho é, sem dúvida, inconsistente sob muitos
aspectos, sobretudo no que se refere à contradição no campo socioeconômico: ela
quer, simultaneamente, menos trabalho (para baixar os custos da produção) e mais
trabalho (para aliviar a carga social da população inativa)”.
Essa contradição era latente à vida moderna, isto é, sem solução – até mesmo
para o alemão Karl Marx (1818-1883), um dos maiores pensadores da moderni-
dade. Isso implica que a resultante deste pragmatismo linguístico está carregada de
dúvidas, de uma incredulidade irresolúvel.
Face a esse contexto, a condição pós-moderna se posicionou numa nova pers-
pectiva na qual se encontra deslocada tanto da utopia como da mera literalidade
das coisas, dos fenômenos per se. Isto é, se posiciona numa atopia em relação à tra-
dição narrativa, num estado intermediário entre os metarrelatos e as coisas em si.
“A condição pós-moderna é, todavia, tão estranha ao desencanto como à posi-
tividade cega da deslegitimação. Após os metarrelatos, onde se poderá encontrar a
legitimidade? O critério de operatividade é tecnológico; ele não é pertinente para
se julgar o verdadeiro e o justo”.
Diferentemente de Lyotard e Kuhn, o americano David Harvey aponta seu
discurso sobre a pós-modernidade – não a partir das narrativas filosóficas/liguísti-
cas ou científicas – mas diretamente à cultura artística:
“Algo chamado pós-modernismo emergiu de sua crítica do antimoderno para
estabelecer-se por si mesmo como estética cultural.”
Neste sentido, o argumento de Havey ganha relevância para o campo da arqui-
tetura e do urbanismo. Ele parte da análise da obra Soft City de Jonathan Raban:
“Raban opôs a imagem da cidade como “enciclopédia” ou “empório de estilos”
em que todo o sentido de hierarquia e até de homogeneidade de valores estava em
vias de dissolução. Raban respondia com um quadro da cidade como labirinto,
formado, como uma colmeia, por redes tão diversas de interação social orientadas
para metas tão diversas que “a enciclopédia se torna um livro de rabiscos de um
capítulo 4 • 121
maníaco, cheio de itens coloridos sem nenhuma relação entre si, nenhum esque-
ma determinante, racional ou econômico”.
Embora sua abordagem se apoie evidentemente numa leitura das cidades, po-
demos identificar, em sua interpretação de obra de Raban, traços do que temos
visto até aqui como “aspectos do pós-moderno”. Quando ele diz que “o sentido
de hierarquia e até de homogeneidade de valores estava em vias de dissolução” esta
anunciando a mesma fragmentação e heterogeneidade própria do pós-moderno –
segundo, também, as formulações teóricas de Kuhn e Lyotard.
As cidades nas palavras de Raban:37
“As cidades, ao contrário dos povoados e pequenos municípios, são plásticas
por natureza. Moldamo-las à nossa imagem: elas, por sua vez, nos moldam por
meio da resistência que oferecem quando tentamos impor-lhes nossa própria for-
ma pessoal. Nesse sentido, parece-me que viver numa cidade é uma arte, e pre-
cisamos do vocabulário da arte, do estilo, para descrever a relação peculiar entre
homem e material que existe na contínua interação criativa da vida urbana. A
cidade como tal a imaginamos, a suave cidade da ilusão, do mito, da aspiração, do
pesadelo, é tão real, e talvez mais real, quanto a cidade dura que podemos localizar
nos mapas e estatísticas, nas monografias de sociologia urbana, de demografia e
de arquitetura”.
Para Harvey, o momento crítico do discurso de Raban foi identificar a pro-
blemática por trás da mistura estilística do pós-moderno que não deixava de ser
certo modismo, o qual sempre supõe um ‘imperialismo do gosto’. Na arquitetura
pós-moderna, mais especificamente, isso se deu na tentativa de recriar significados
de formas preexistentes e suas respectivas hierarquia de valores. “As próprias qua-
lidades plásticas que fazem da grande cidade o libertador da identidade humana
também a tornam especialmente vulnerável à psicose e ao pesadelo totalitário”.
Refletindo sobre a etimologia da palavra no campo da arquitetura, Harvey
está de acordo com Rabana respeito do “pós-modernismo” representar “alguma
espécie de reação ao “modernismo” ou de “afastamento dele”. Para ele o próprio
termo “modernismo” já é em si confuso – por sua ampla possibilidade de aborda-
gem e significação dentro da história – e, neste sentido, não seria difícil de imagi-
nar que a reação ou afastamento ao termo “pós-modernismo” o seria duplamente.
Esta reação, Harvey demonstra em uma citação de Terry Eagleton, que trans-
crevemos aqui na íntegra:
capítulo 4 • 122
“Talvez haja consenso quanto a dizer que o artefato pós-moderno típico é
travesso, autoironizador e até esquizoide; e que ele reage à austera autonomia do
alto modernismo ao abraçar impudentemente a linguagem do comércio e da mer-
cadoria. Sua relação com a tradição cultural é de pastiche irreverente, e sua falta de
profundidade intencional solapa todas as solenidades metafísicas, por vezes com
uma brutal estética da sordidez e do choque”.
Outra citação, mais positivista em relação ao termo, é relativa aos editores da
revista de arquitetura PRECIS 6 (1987, 7-24) que veem o pós-modernismo como
uma reação legítima ao fastio do universalismo moderno:
“Geralmente percebido como positivista, tecnocêntrico e racionalista, o mo-
dernismo universal tem sido identificado com a crença no progresso linear, nas
verdades absolutas, no planejamento racional de ordens sociais ideais, e com a
padronização do conhecimento e da produção”. O pós-moderno, em contraste,
privilegia “a heterogeneidade e a diferença como forças libertadoras na redefinição
do discurso cultural”.
Embora os argumentos de Kuhn, Lyotard e Harvey apresentem abordagens
distintas sobre o pós-moderno, é importante retomar os parâmetros gerais de nos-
sa breve introdução tópica sobre a ideia de pós-moderno e apontar como os as-
pectos da diversidade, da pluralidade e da heterogeneidade permeiam suas teorias.
A partir destas, outras características se desdobram, como a fragmentação e a in-
determinação, concepções que consolidam o pensamento pós-moderno enquanto
um vigoroso ceticismo, crítico dos discursos totalizantes dos “ismos” modernos,
indicando o arrefecimento das suas metanarrativas – da quimera de uma histó-
ria universal.
Arte Pop
38 DANTO, Arthur. Após o Fim da Arte: A Arte Contemporânea e os Limites da História.
capítulo 4 • 123
o expressionismo abstrato norte-americano havia atingido sua consolidação en-
quanto movimento artístico moderno de relevância internacional.
Num sentido amplo, a Arte Pop surge na contramão da consagração da arte mo-
dernista, buscando a diluição das fronteiras entre a “alta cultura”, ligada ao sistema
de arte das galerias, museus e às grandes obras da Arte Moderna, e a “baixa cultura”,
associada ao conteúdo veiculado pelos novos meios de comunicação de massa, de-
senhos em quadrinhos, desenhos animados, o imaginário do universo espacial das
histórias de ficção científica, as propagandas comerciais e as figuras públicas recor-
rentes nas manchetes de jornal – celebridades representadas por artistas e políticos.
Embora mais ligada às obras dos artistas como Andy Warhol (1928-1987),
Roy Lichtenstein (1923-1997), James Rosenquist (1933-) e Claes Oldenburg
(1929-), que atuavam em Manhattan na década de 1960, quem iniciou o processo
de trabalhar com uma imagética referente ao universo popular dos quadrinhos, da
vida cotidiana e das figuras públicas foram os artistas, a partir da década de 1950,
do The Independent Group em Londres.
The Independent Group, criado em 1952, foi uma reunião de artistas que se
dedicava a debater tópicos relacionados ao ready-made, à ciência, à tecnologia e ao
lugar da cultura de massa nas belas artes.
capítulo 4 • 124
Figura 4.2 – Interior, 1964-5. Richard Hamilton. Disponível em: <http://www.tate.org.uk/
art/artworks/hamilton-interior-p04250>.
O grupo inglês contava com a presença, entre seus principais integrantes, dos
arquitetos Alison (1928-1993) e Peter Smithson (1923-2003), mais tarde mem-
bros fundadores da revista (e movimento arquitetônico) Archigram, os críticos
Reyner Banham (1922-1988) e Lawrence Alloway (1926-1990), assim como,
os artistas Eduardo Paolozzi (1924-2005) e Richard Hamilton (1922-2011).
Outros artistas, como Peter Blake (1932-), Patrick Caulfield (1936-2005), David
Hockney (1937-) e Allen Jones (1937-) foram, também, expressões importantes
da Arte Pop na Inglaterra.
A Arte Pop, assim, surge, especialmente na Inglaterra, da inquietação dos ar-
tistas ao refletirem sobre o conteúdo dado nas escolas de arte e as premissas das
belas artes com o universo cotidiano à sua volta. Cotidiano este contaminado
por imagens de propagandas, novas tecnologias, novos meios de comunicação
(cinema, televisão, quadrinhos, entre outros) e pelo imaginário de ficção cientifica
estimulado pela corrida espacial entre a os Estados Unidos e a União Soviética.
Em Nova York, a característica mais marcante, que veio a diferenciar a Arte
Pop americana da inglesa, foi a sua querela com o expressionismo abstrato. Se por
um lado a pintura de Jackson Pollock (1912-1956), com seu drip – técnica de
capítulo 4 • 125
pintar sem tocar o pincel na tela –, promovia o que o crítico de arte norte-ameri-
cano Clement Greenberg veio a chamar de all-over painting (pintura integral), isto
é, uma pintura cuja superfície era não diferencial no que diz respeito à definição
dos limites da forma; por outro, a Arte Pop americana tinha como aspecto de
expressão pictórica a delimitação da forma por meio de linhas de contornos fortes
e bem definidos.
No entanto, seja em Londres, seja em Manhattan, o que está em jogo na estraté-
gia “pop” da arte é o olhar crítico sobre uma tradição cultural, se apropriando, de um
modo um tanto irônico, dos meios da cultura de massa, na medida em que, ao mes-
mo tempo que se apoderam das novas técnicas de produção, também lançam sua
crítica ao novo modo de vida, tanto das celebridades como do cidadão comum – o
ponto é que a Arte Pop se propõe a retratar o cotidiano contemporâneo, e não a sua
celebração, partindo das novas técnicas de representação. Isto é, quando um artista
como Warhol retrata a Marilyn Monroe ou o Elvis Presley, ele não o faz no sentido
de uma reiteração de um mito, mas com o modo como ele próprio apreende estas
personalidades – e nesse movimento, desvela e desfaz o mito mais do que o celebriza.
Andy Warhol
Pelo que vimos no tópico anterior, podemos afirmar que a Pop Art tem um
caráter urbano. Surgido nos anos de 1950, se desenvolve nas décadas seguintes
tendo como principais representantes nos Estados Unidos Japers Johns e Andy
Warhol, artistas que se inspiraram nos temas e imagens do cotidiano da sociedade
como forma de expressão, criticando a massificação da cultura popular capitalista
americana e fixando-se na estética das massas. O contexto cultural de Manhatan
no qual Warhol vivia, era, naquele momento – devido ao deslocamento de Paris
para Nova York de artistas como Piet Mondrian, Marcel Duchamp, e mesmo pela
consolidação do expressionismo abstrato – o centro da Arte Moderna. Suas expe-
rimentações e exposições de certa forma puseram fim na história da arte vigente,
num sentido de uma razão, de uma narrativa preexistente.
O crítico de arte Artur Danton coloca Warhol sob o contexto de Manhatan, e
reflete quanto ao fim da arte, segundo o preceito hegeliano, e a relação deste com a
obra do artista. A tese de Danto diz que quando o tempo de suas obras passou, isto é,
na posteridade das obras, Warhol pôde ser entronizado como artista, pois ninguém
poderia agora repetir sua experiência artística, seu olhar sobre os acontecimentos
capítulo 4 • 126
de sua época – da Jacqueline Onassis no enterro do Kennedy, das latas de sopas
Campbell – e os meios que adotou para transformar essa visão em arte.
Figura 4.3 – Campbell’s Soup Cans, 1962. Andy Warhol. Disponível em: <http://www.
moma.org/collection/works/79809>.
O que a Arte Pop de fato anuncia é que a verdade da produção não está no
consumo, nem em toda tradição construtiva da Bauhaus, dos arquitetos, dos ar-
tistas, preocupados em espiritualizar o cotidiano através da produção em massa de
objetos que semanticamente representam a abstração projetual do ato criativo. O
Pop entendeu esse mecanismo e o converteu em expressão artística.
No Pop, o que se consome na verdade é a imagem, não o objeto. A imagem
para Warhol está ligada a um processo do consumo; nele, o que é consumido não é
o produto e sim a imagem do produto, tanto que o produto vai recebendo imagens
diversas. Isso, do ponto de vista racionalista do pintor abstrato Piet Mondrian e do
arquiteto Walter Gropius, é a perversão absoluta do ideal de espiritualização, isto
é, do elo das coisas com aquilo que elas representam. Em outras palavras, no Pop,
o significado da coisa, do produto, da obra, é assumidamente diverso.
Um exemplo disso é o fato de os quadros de Jaspers Johns terem alcançado o
valor de 25 milhões de dólares no mercado da arte. O ponto é que um quadro nes-
sa escala de valores desmente sua origem Pop porque vira um ícone, vira uma ou-
tra coisa, de espírito consolidado. Warhol, por outro lado, não tinha propriamente
obras-primas, no sentido de que o que ele fazia era de uma outra natureza que se
confundia, em certos casos, com o universo da propaganda. Durante muitos anos,
capítulo 4 • 127
qualquer pessoa com 10 mil dólares entrava em sua Factory e era fotografada. O
próprio artista, ou quem quer que estivesse disponível, fazia o retrato.
©© WIKIMEDIA.ORG
capítulo 4 • 128
alguns a considerarem este movimento como sendo a própria arte contempo-
rânea, pois toda sequência insólita e polêmica de seus ready-mades se mostrava
estranhamente bela.
©© WIKIMEDIA.ORG
capítulo 4 • 129
Figura 4.6 – Brillo Box, 1964. Andy Warhol. Disponível em: <http://www.warhol.org/edu-
cation/resourceslessons/Brillo--But-is-it-Art-/>.
capítulo 4 • 130
surpresa não era assim grandiosa, como a que promovia o movimento dadaísta
de Duchamp, que era um escândalo. Se por um lado a personalidade de Warhol
era exuberante diante da figura de Duchamp, o inverso pode ser dito a respeito
de suas obras. A obra de Warhol se adaptava mais à realidade cotidiana, chocava
menos que a de Duchamp, embora tratar-se também de arte experimental, de arte
contemporânea, explorando e tensionando os limites do próprio conceito de arte.
Linguagem arquitetônica
Com isso, Peter Eisenman (1932-) indica que a linguagem arquitetônica pro-
posta por Rossi e Venturi pode ser entendida como autônoma e descolada do
40 EISENMAN. Autonomy and Avant-Garde: The Necessity of an Architectural Avant-Garde in America. In:
Autonomy and Ideology: Positioning an Avant-Garde in America, p. 73. [tradução nossa]
capítulo 4 • 131
“vetor propulsor do zeitgeist”. Isso implica o fato de que que Rossi e Venturi co-
meçaram a identificar alguns aspectos mais universais e atemporais da linguagem
arquitetônica. Isto é, reconheciam e apresentavam arquétipos da forma arquitetô-
nica que perduravam e atravessavam os tipos históricos. No entanto, o pensamen-
to do século dezenove, embora trate da efemeridade dos estilos, dos modismos,
também se pretendia um pensamento universal. Em outras palavras, se os tipos
arquitetônicos eram tidos como reflexo de uma época ou período histórico, a
teoria que assim os determinava era de índole totalizante, absoluta. Nesse sentido,
Eisenman lançar um olhar crítico as obras de Rossi e Venturi apontando que os ar-
gumentos de ambos, contra as tendências progressistas modernistas, acabavam por
ser “similares às várias teorias do século dezenove,”41 na medida em que tratavam
mais das polêmicas progressistas do moderno, no sentido de resgatar o dado histó-
rico como dado atemporal para valer de conteúdo “consolidado” para arquitetura.
De todo modo, Rossi e Venturi podem assim ser entendidos enquanto arqui-
tetos relevantes no contexto da arquitetura mundial a partir da década de 1960,
cujas teorias influenciaram os caminhos da geração desconstrutivista, por ressal-
tarem o aspecto autônomo e a validade de algumas características históricas dos
modos prévios de representação da arquitetura, descolados da tipologia moderna.
A esse respeito Rossi diz:
“Desprezava as recordações e simultaneamente valia-me das impressões ur-
banas, procurava por detrás dos sentimentos leis imutáveis de uma tipologia sem
tempo [...]. O tempo da arquitetura não estava já na sua natureza de luz e sombra
ou de envelhecimentos das coisas, mas propunha-se como um tempo desastroso
que retoma as coisas”.42
O modo com que Rossi interpreta as organizações espaciais urbanas relatando
que “os claustros e pátios, as galerias, a morfologia urbana dispunham-se na cidade
com a pureza da mineralogia”43; nos leva a refletir sobre uma atemporalidade dos
tipos arquitetônicos por meio de uma transliteração abstrata dos modelos históri-
cos da arquitetura. Esses dois modos num mesmo pensamento – da pura abstração
e dos tipos arquitetônicos – foram importantes para a arquitetura desconstrutivis-
ta, se não para todos, ao menos para alguns dos seus arquitetos, tais como Daniel
Libeskind (1946-) e Eisenman.
Em termos gerais, ambos reconhecem a importância e a permanência de certos
tipos arquitetônicos e expandem a lição de Rossi, da leitura dos tipos, e de Venturi,
41 EISENMAN, Peter. Eisenman Inside Out, p. xi. [tradução nossa]
42 ROSSI, A. Autobiografia Científica, p. 42-43.
43 Ibid.
capítulo 4 • 132
no que concerne ao potencial da comunicação da forma arquitetônica. A questão
da autonomia da linguagem arquitetônica em Venturi se encontra elaborada no seu
livro Complexidade e Contradição, no qual defende a legitimidade da construção lin-
guística da arquitetura como forma de ampliação do sentido. Num outro, posterior,
Aprendendo com Las Vegas, uma análise dos modos de representação da arquitetura
de Las Vegas demonstrou que sua comunicação pode se dar também pela persuasão
propagandística, numa imagética de signos e simbolismos por meio da forma.
O ponto de inflexão da lição de Vegas é compreender que o conteúdo das
mensagens pop e o modo como ele é projetado não implicam a concordância
com ele – aprová-lo ou reproduzi-lo. Se as persuasões comerciais que piscam de
modo reluzente na Strip são uma manipulação materialista e uma subcomuni-
cação insípida, que apela astuciosamente aos nossos impulsos mais profundos,
operando através do engodo de mensagens superficiais com o intuito de que ou-
tras, subliminares, afetem nossos desejos mais básicos, isso não implica que nós,
arquitetos, que aprendemos com suas técnicas, devamos reproduzir o conteúdo ou
a superficialidade de suas mensagens – levando-se em conta o caráter permanente
da arquitetura face a efemeridade da comunicação comercial.44
Quando a arquitetura assim se propõe a uma abordagem direta do simbolismo
arquitetônico, sua comunicação serve ora às especulações pós-modernas para uma
variedade de imagens meramente de cunho mercadológico e corporativo –expresso
no “pós-modernismo” arquitetônico, como um pastiche de estilos históricos. Em
outros casos, como em Libeskind e Eisenman, esta comunicação é elevada a um
certo grau de complexidade cujo conteúdo não se revela de modo evidente na forma
arquitetônica. Isso significou para arquitetura que sua forma pode conter discursos
de outras áreas do conhecimento – embora, diferentemente de Venturi, os discur-
sos que incidem na forma desconstrutivista sofram invariavelmente um processo de
decomposição do seu sentido anterior tornando-se um signo de presença ausente
– fragmentado e desmotivado. Retomaremos estas questões no próximo capítulo.
capítulo 4 • 133
entre outros. Assim, a arquitetura eclética pós-modernista investigava e adotava
elementos e sistemas oriundos da própria história da arquitetura, com o propósito
de criar novas composições formais e novas relações estéticas a partir de uma arti-
culação histórica de estilos.
Depois da publicação em 1966 dos livros Arquitetura da Cidade, de Aldo
Rossi e Complexidade e Contradição em Arquitetura, de Robert Venturi – nos quais
a ideia de arquétipos tipológicos imanentes da arquitetura, em Rossi, e a identifi-
cação de uma tensão positiva nos maneirismos arquitetônicos e na integração de
estilos, em Venturi –, a teoria da arquitetura passou reconhecer um tipo de auto-
nomia ligada a certos elementos linguísticos da disciplina. O que estava em jogo
era uma noção de continuísmo, de alguns princípios históricos da arquitetura. Tal
noção levou a geração da década de 1970 e de início da 1980 a uma tendência ao
que estamos chamando aqui de novo ecletismo arquitetônico.
Sem linguagem ou estilo próprio, apoiado fundamentalmente na cultura ar-
quitetônica, o novo ecletismo se propôs, na mesma medida em que se subjugou,
a um anacronismo próprio da condição pós-moderna, de diversidade e heteroge-
neidade, por meio da investigação e opção de múltiplos momentos da história e
da teoria da arquitetura.
Dentro do próprio discurso teórico pós-moderno da arquitetura, já concomi-
tante à vigência da produção do novo ecletismo arquitetônico, temos a figura do
teórico e historiador norte americano Charles Jenks (1939-), que identificou parte
importante dos arquitetos dedicados a esse tipo de arquitetura classificada por ele
de radical ecletism (ecletismo radical).
Em um dos seus livros, The Languageof Post-Modern Architecture, de 1991, Jencks
anuncia a morte da arquitetura moderna e apresenta uma classificação que buscou
enquadrar a ampla produção da arquitetura contemporânea de meados da década de
1970 até final de década 1980 (a primeira edição deste livro foi publicada em 1977,
e não contava com parte da produção apresentada sobre o ecletismo radical).45
Para Jecks, a morte da arquitetura moderna teve data, hora e lugar marcados: Saint
Louis, Missouri, 15 de julho de 1972, às 15h32m. Este foi o momento da implosão
do edifício Pruitt-Igoe, um dos principais ícones, na América do Norte, da habitação
popular. Nele haviam sido empregados os preceitos fundamentais da arquitetura mo-
derna. Neste sentido, a implosão do Pruitt-Igoe, para Jecks, foi a metáfora da implosão
do ideário modernista da arquitetura – isto é, da morte da arquitetura moderna.
45 O tópico Towards Radical Eclectism (Rumo ao ecletismo Radical – tradução nossa) foi publicado na terceira
edição do livro em 1981.
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©© WIKIMEDIA.ORG
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capítulo 4
©© WIKIMEDIA.ORG
capítulo 4 • 136
Figura 4.8 – The Portland Building, 1982. Michael Grave . Disponível em: <http://www.
archdaily.com/407522/ad-classics-the-portland-building-michael-graves/>.
capítulo 4 • 137
Figura 4.9 – Piazza d’Italia, 1978. Charles Moore. Disponível em: <http://www.dezeen.
com/2015/08/21/postmodern-architecture-piazza-d-italia-charles-moore-new-orleans/>.
capítulo 4 • 138
algumas características comuns que as diferenciam da Arte Pop, por exemplo. A con-
dição, assim, é a identificação de um grupo em um período determinado, por meio da
avaliação do contexto em que tais obras de austeridade estilística se apresentam.
Todavia, a coisa se torna complexa quando percebemos que cada artista neste
período específico cria seu próprio contexto, isto é, cria seu próprio discurso, sua
própria teoria artística. A razão desta mudança de atitude do artista minimalista
foi a crise no campo da história, teoria e crítica de arte que se viu desprovida de
argumentos diante de obras que se situavam nos limites dos campos artísticos.
Levando em conta o radicalismo dos novos processos de elaboração da forma e os
materiais utilizados por Donald Judd, por exemplo, poderíamos, afinal, conside-
rar uma peça minimalista sua uma escultura?
O que tínhamos então era uma carência de corpo crítico que pudesse validar
esta produção. A consequência direta disto se viu retratada na forma de textos
conceituais que acompanhavam os processos construtivos destas obras. Tais textos
revelavam muito da intenção do artista nos seus processos de trabalho. Essa inten-
cionalidade não se via refletida como um controle da resultante formal, mas como
modos diferenciados de cada artista do processo de elaboração da forma – daí a
razão de dizer que cada artista cria seu próprio discurso, seu próprio contexto,
fugindo radicalmente de qualquer contexto preestabelecido ou preexistente.
O efeito deste movimento é sabido enquanto característica fundamental dos obje-
tos minimalistas, a saber, uma literalidade desconcertante na qual o vazio semântico da
presença estrita da peça instala toda sua frivolidade no ambiente no qual se encontra.
capítulo 4 • 139
Nestes novos contextos podem-se identificar duas vertentes: uma que está re-
ferenciada às obras de caráter tridimensional com figuras geométricas espaciais
simples e com um grau zero de expressividade e ornamentação, em que Donald
Judd e Tony Smith são alguns dos seus representantes; e outra, que diz respeito à
condição de não arte na utilização de objetos pré-fabricados como no caso de Carl
André, Dan Flavin e Robert Morris.
Estas tendências revelam em sua presença distinções óbvias que podem ser
discutidas quanto à sua pertinência do ponto de vista da narrativa do artista para
o esclarecimento da obra. O que está em jogo é: estas obras precisam ser esclare-
cidas? Ou se encerram na sua literalidade frívola, carente de significado? De um
ponto de vista formalista como o de críticos como Michael Fried e de Clement
Greenberg, tais distinções não servem a seus propósitos, uma vez que toda a pro-
dução minimalista, como a da pintura Frank Stella, dilui a fronteira formal exis-
tente entre pintura e escultura.
Para Fried uma obra deve comunicar algo que está embutido em sua forma fí-
sica, então, por sua posição em seu ensaio “Art and object hood”, o que lhe interessa
é que estes novos artistas estão desafiando os paradigmas modernistas, os mesmos
defendidos por ele, cuja presença de um objeto por si só, destituída de toda carga
semântica, não o credenciaria como objeto de arte. Mesmo assumindo a distinção
das duas vertentes supracitadas, Fried não vai abrir mão de suas “convicções”; para
os trabalhos de Flavin e André que guardam características dos ready-mades du-
champianos, Fried faz uma analogia direta das luminárias de Flavin e das cerâmi-
cas de André com os ready-mades, classificando-os de meros objetos sem relevância
artística. Da mesma forma, ele critica as obras da vertente de Judd e Smith dos
objetos tridimensionais, apontando que estes não realizam uma transcendência
de sua literalidade para o estado pictórico. Para Fried a escultura não pode ser um
ready-made, a exemplo das lâmpadas de Flavin, e um objeto tridimensional literal
não pode ser pictórico, como os quadros de Stella e os cubos de Judd.
Já o ponto de vista de Rosalind Krauss, crítica de arte mais próxima dos con-
ceitos desenvolvidos pelos minimalistas, vem a colocar Flavin e Judd, aqui apre-
sentados em correntes distintas, em pé de igualdade no sentido em que, segundo
Kraus, podemos perceber na obra dos dois uma permanência pictórica ainda mo-
dernista e acadêmica, o que explicaria seu fracasso como arte. O que é relevante
ser analisado aqui não são as razões procedentes nos dois casos e sim a constata-
ção irrefutável de que o contexto criado pelo artista está sujeito aos critérios de
capítulo 4 • 140
abordagem crítica do observador. Esta liberdade já se encontra institucionalizada
e neste caso Krauss demonstra estar mais consciente desta nova condição analítica
do que seus predecessores, não por sua análise específica da obra de Flavin e Judd,
mas quando propõe uma leitura distanciada e deslocada do objeto para construção
de uma nova sintaxe que redefina o significado e reposicione o espectador. Ela
entende que o observador já não reconhece o significado no objeto, como pressu-
põem os próprios artistas, mas que, no entanto, o significado emerge agora de sua
relação com outros objetos, com o próprio lugar específico em que se encontra.
Nos escritos originais de artistas como Judd, Stella, Sol Le Witt e Morris o texto
se desenvolve numa elaboração de conceitos que tentam justificar os processos cons-
trutivos de suas obras. No cerne da discussão das narrativas desses artistas sobre suas
obras está a ideia de que eles produziam objetos de arte que impugnavam um caráter
singular, estrito e inacessível da experiência comum. Esta contestação repercutia, no
âmbito das artes visuais, às questões próprias dos filósofos interessados na linguagem
verbal e a forma como ela comunica uma experiência interna, pessoal.
Segundo Krauss46,o filósofo Ludwig Wittgenstein interrogou-se quanto à pos-
sibilidade de haver algo que pudéssemos classificar como uma linguagem particu-
lar, uma linguagem em que o caráter único da experiência interna do indivíduo
pudesse determinar um significado.
Assim, entende-se que não se pode conhecer verdadeiramente o que uma pessoa
designa com as palavras que usa para descrever algo, já que aos outros não é dado ter
essa experiência. Na impossibilidade de, por meio da palavra, expressar e exteriorizar
uma experiência interna em que ela possa ser compreendida da mesma forma por
todos, a linguagem estaria, assim, imersa em uma espécie de solipsismo no qual o
significado verdadeiro das palavras seria dado a elas distintamente por cada indivíduo.
Trazendo este conceito para escultura, mais do que uma mera presença, o obje-
to vai agora fazer parte do ambiente trabalhando com outras entidades de maneira
descentralizada e redefinindo até mesmo a própria noção de espaço arquitetônico
pela ampliação dos limites da escultura. Esta nova perspectiva “piagetiana”47 se re-
fere à estrutura como algo que existe através das interações e são construídas pelos
sujeitos, não sendo necessário que estes tenham consciência da obra construída.
Mantém-se assim, para as obras minimalistas, uma esperança de inteligibilidade
da realidade, em que uma estrutura exibe um caráter autônomo em relação a algo
46 KRAUSS, E. Rosalind. Caminhos da escultura moderna. Martins Fontes. São Paulo, 2001. Págs,: 291 à 33.
47 Jean Piaget (1896-1980). Estudou biologia e trabalhou nas áreas de educação, epistemologia e psicologia
ficou conhecido por organizar o desenvolvimento cognitivo em uma série de estágios.
capítulo 4 • 141
externo a sua natureza. Isso pode ser exemplificado no modo como uma das obras
de Morris, na qual peças idênticas em forma de “L” são dispostas aleatoriamente
em um mesmo ambiente, permite ao observador presenciar visões diferenciadas
destes objetos, seja pela sua luminosidade seja pelas suas relações espaciais com o
entorno. Percebe-se assim o lado positivo da produção minimalista por rejeitar um
centro ilusionista no interior de uma obra de arte, revendo a lógica de uma fonte
particular de significado para novas possibilidades de leitura do objeto.
Figura 4.11 – Untitled – Three “L” Beams, 1965. Robert Morris. Disponível em: <https://
www.khanacademy.org/humanities/art-1010/minimalism-earthworks/a/robert-mor-
ris-untitled-l-beams>.
48 A condição de neutro aqui exposta corresponde ao neutro do grupo matemático de Klein encontrado em seu
texto conhecido como "Reflexos no espelho". O neutro é representado pelo numero zero designando seu contato
ele próprio onde nada faz, se anula.
capítulo 4 • 142
Figura 4.12 – Diagrama de Klein do Campo Ampliado, 1979. Rosalind Krauss. Disponível
em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.182/5614>.
Esta lógica está associada ao Grupo Klein criado pelo matemático prussiano
Felix Klein (1849-1925) e se caracteriza por ter uma função de transformação. O
psicanalista francês Jacques Lacan, com sua lógica quaternária, exposta no semi-
nário “A identificação”, transformará os laços cartesianos entre o pensamento e o
ser (Penso, logo existo (Cogito ergo sum) – de Descartes). Mais tarde, no seminário
“A lógica do fantasma” de 1967 (La logique Du fantasme) o cogito cartesiano é
novamente retomado agora sob o prisma dos grupos Klein.
Com a lógica da alienação (ou... ou...), Lacan encontrou uma alternativa de
escritura para a falta original do sujeito. "O interesse desta teoria dos conjuntos é
que ela introduz no pensamento matemático, sob uma forma mascarada, o sujeito
da enunciação que vem, assim, se igualar à função de conjunto vazio. Isso justifica
no cogito a passagem do "penso, logo sou", à sua negação "não penso, não sou",
sob forma de uma reunião: reunião daqueles que negam a conjunção das duas
proposições"49.
Neste sentido, Krauss50 diz que Morris é o artista minimalista responsável por
atingir essa condição de lógica inversa assumida na escultura:
49 VICTORIA, Ligia Gomes. Os grupos de Klein na obra de Lacan. Disponível em: <http://www.freud-lacan.com/
articles/article.php?url_article=lvictora130506>. Acesso em: 14 maio 2006.
50 KRAUSS, Rosalind. The Anti-Aesthetic – Essays on Post Modern Culture. Sculpture in the Expanded Field.
Washington, Bay Perss, 1984.
capítulo 4 • 143
“Os exemplos mais cristalinos do início dos anos 1960 que nos ocorrem, são
ambos de Robert Morris. Um deles foi exposto em 1964 na Green Galery: dígi-
tos quase arquiteturais cuja condição como escultura se reduz simplesmente a ser
aquilo que está no quarto que não é realmente um quarto; o outro trabalho são
caixas espelhadas expostas ao ar livre – caixas cujas formas diferem do cenário no
qual se encontram somente porque, apesar da impressão visual de continuidade
com relação à grama e às árvores, não fazem parte da paisagem.”51
O “complexo” arquitetura e paisagem é agora admitido dentro do proble-
matizado campo ampliado da escultura, no qual são adicionadas duas categorias:
locais demarcados em oposição às estruturas axiomáticas e local de construção em
oposição à escultura.
Isso é proposto no diagrama de Krauss como uma consequência lógica em
que artistas como Robert Smithson com seus Earthworks, confirmam o raciocínio
de Krauss ao trabalhar com a negação escultórica no campo expandido, ou seja, o
local de construção.
Figura 4.13 – Spiral Jetty, 1970. Robert Smithson. Disponível em: <http://www.
robertsmithson.com/earthworks/Spiral_Jetty_03.htm>
A partir de 1968 tanto Smithson como Morris e outros artistas tais como
Michael Heizer, Richard Serra e Walter Maria começam a ocupar estes novos cam-
pos de possibilidades para realizar trabalhos que já diferem muito dos primeiros
51 Tradução de Elizabeth Carbone Baez da “A escultura no campo ampliado”, Sculpture in the Expanded Field.
Washington, de Rosalind Krauss para revista Gávea.
capítulo 4 • 144
trabalhos minimalistas do início dos anos 1960, e há naturalmente uma nova ne-
cessidade de classificação para esta nova condição artística, Krauss a chama de pós-
moderna enquanto outros preferem pós-minimalismo. O Minimalismo e a Arte
Conceitual aparecem aqui como duas linhas artísticas distintas que, cada uma à
sua maneira, conseguiram ampliar as possibilidades para uma condição artística.
Isso se deu tanto pelos caminhos apontados pelos diagramas de Krauss como pela
crítica severa do artista conceitual Joseph Kosuth ao formalismo moderno apoiado
na nova filosofia analítica. É importante frisar o fato de que nos dois casos isso se
realiza por meio de uma abordagem linguística. Isto é, embora sejam abordagens
diferenciadas, transpassam um mesmo campo do conhecimento, a linguística.
Este caráter de abordagem linguística existente no Minimalismo e na Arte
Conceitual mudou o rumo da arte até nossos dias. Parece que toda uma geração
resolveu seguir os passos de Duchamp, em seu viés subversivo contra uma socie-
dade de valores arcaicos e inexoráveis diante do abismo existencial do mundo
moderno. A reação destes artistas acabou criando um ambiente de efervescência
intelectual e filosófica, no mundo das artes de Nova York, preocupada com as
novas questões da linguagem e de como a arte assume seu lugar no mundo. É
no ponto de intersecção da Arte Minimalista com a Arte Conceitual que temos
uma pulsão para encontrar o conteúdo da arte fora do objeto. O Minimalismo
e Arte Conceitual, assim, se valem mais pela sua capacidade de nos mantermos
antenados a uma nova raison d'etre (razão de ser), não mais dada por virtuosismos
segregados no indivíduo, mas na ideia da busca vanguardista do sentido inusitado
que emerge da relação do objeto artístico, seja ele físico ou conceitual, no contexto
cultural no qual está inserido.
EXERCÍCIO RESOLVIDO
EISENMAN, Peter. Eisenman Inside Out. Ed. Mark Rakatansky. New Haven and London: Yale
University Press, 2004.
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992.
JENCKS, Charles. The Language of Post-Modern Architecture. London: Academy Editions, 1991.
KRAUSS, E. Rosalind. Caminhos da escultura moderna. Martins Fontes. São Paulo, 2001.
KRAUSS, Rosalind. The Anti-Aesthetic – Essays on Post Modern Culture. Sculpture in the
Expanded Field. Washington, Bay Perss, 1984.
KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006.
capítulo 4 • 145
LYOTARD, Jean-François. O Pós-Moderno. Rio de Janeiro: Edições José Olympio, 1988.
ROSSI, A. Autobiografia Científica. Lisboa: Edições 70, 2013.
VENTURI, R.; BROWN, D. S.; IZENOUR, S. Aprendendo com Las Vegas. São Paulo: Cosac&Naify,
2003.
WARHOL, Andy. The Philosophy of Andy Warhol (from A to B and Back Again). New York, London:
Harcourt Brace Jovanovich Publishers, 1975.
SOMOL, R. E. Autonomy and Ideology: Positioning an Avant-Garde in America. New York: The
Monacelli Press, 1997.
capítulo 4 • 146
5
Contemporaneidade
na arte e
arquitetura
Contemporaneidade na arte e arquitetura
A noção de contemporaneidade, diferente da pós-modernidade, como pre-
tendemos abordá-la aqui, se dá em dois movimentos. Estes se desdobram dentro
do período da década de 1960 até inícios dos anos 1990. E suas características se
distinguem tanto da revisão estilística pós-moderna dos “neos” e do novo eclético
proposto pelo arquiteto e crítico Charles Jecks, assim como da literalidade feno-
menológica e contextual das obras minimalistas e pós-minimalistas, analisadas no
capítulo anterior.
O primeiro está apoiado na ideia de conceito aplicado à Arte e à Arquitetura
– na qual, ambos buscaram trabalhar, na virada da década de 1960 para 1970,
em seus respectivos campos, jogos de linguagens com o intuito de se gerar novas
possibilidades de sentidos da obra, seja artística, seja arquitetônica. Dentro de
uma perspectiva histórica, do momento em que o conceito passa a ser relacionado
mais conscientemente com a linguagem, identificamos algumas personalidades
determinantes para esta estratégia específica, como os artistas Sol Le Witt (1928-
2007), Henry Flynt (1940-), Joseph Kosuth (1945-) e o arquiteto Peter Eisenman
(1932-) – cujo conceitualismo arquitetônico foi baseado na gramática gerativa de
Noam Chomsky (1928-).
Eisenman, é ainda a figura principal do nosso segundo movimento, o descons-
trutivismo – que se inicia em finais da década de 1970 e vai até início dos anos
1990, tendo como corolário a exposição Deconstructivist Architecture do MoMA
em 1988. Embora mantenha a referência no campo linguístico, a referência teóri-
ca agora é a desconstrução literária do pensador franco-magrebino Jaques Derrida,
ele vai buscar a decomposição da forma arquitetônica por meio do que ele chamou
de desmotivação do signo arquitetônico preexistente. Ou seja, no lugar da tentati-
va “pós-moderna” de se trazer para o presente o sentido de uma tradição, por meio
da repetição tipológica, Eisenman partirá do estudo desta mesma tradição para
desconstruí-la, rearticulá-la em outros sentidos.
Nos dois movimentos a questão linguística está presente. Mas de um modo
diferente daquela pós-moderna, da reutilização de tipos históricos. O que veremos
aqui é a busca, por meio da linguagem, de novos processos de elaboração das ex-
pressões artísticas e arquitetônicas.
capítulo 5 • 148
OBJETIVOS
• Apresentar as estratégias da arte e da arquitetura contemporâneas como sendo distintas
do movimento pós-moderno;
• Apontar a questão da linguagem como característica fundamental dessas vertentes;
• A partir da produção da arte e arquitetura conceituais e do desconstrutivismo, expor as
problemáticas e avanços que essas tendências colocaram para o campo da arte em geral.
Arte Conceitual
Sempre que a arte americana feita nos anos 1960 é abordada, mais especifica-
mente a produção dos artistas de Nova York, encontra-se uma arte submersa em
um mar de termos e tendências que é derivada de uma multiplicidade de artistas
que ao mesmo tempo guardam algumas similaridades formais entre si e estão con-
comitantemente determinados por uma pluralidade artística que remonta à época
das vanguardas históricas do início do século XX, que tinha Paris como seu centro
artístico. A relevância de se indicar tal deslocamento histórico/geográfico, do centro
mundial da arte, reside no fato de que as atividades artísticas ocorridas em Nova
York na década de 1960 são frutos de um mesmo contexto social, cultural, político e
econômico local, quando surge a reboque de acontecimentos políticos de mobiliza-
ção internacional e de uma reação radical à assim chamada Arte Moderna.
Mesmo antes da Segunda Guerra já havia na Europa um sentimento coletivo
de pessimismo com relação ao mundo marxista e tecnicista. Dos últimos anos
do romantismo alemão, no qual a filosofia de Hegel já anunciava o fim de uma
época em que o mundo era regido pela vontade divina, até as primeiras décadas
do século XX, pouco tempo se passou para que o homem europeu visse frustrado
todo um universo iluminista defendido por ele. A tecnologia armamentista que
dentro de um imaginário bélico e mecânico apontava para um futuro positivista
da sociedade, mostrou muito cedo sua fragilidade com o evento e os resultados da
Primeira Guerra Mundial iniciada em 1914.
Muitas revoluções se deram neste momento. Com o surgimento do pensa-
mento freudiano, a ideia de sujeito entra em crise, se transforma e isso se reflete
capítulo 5 • 149
tanto nas vanguardas positivas como nas negativas, mas não ainda ao ponto de
chegar a comprometer definitivamente o legado iluminista e racional da cultura
ocidental. Embora as vanguardas negativas – Surrealismo, Dadaísmo, Futurismo
– tenham se aproximado mais desta ruptura, o impacto alcançado por suas ativi-
dades artísticas ainda não foi suficiente para atuar como transformação irrevogável
do conceito de arte. Não obstante, o caráter conceitual das ações do artista Marcel
Duchamp, por exemplo, mais do que sua obra propriamente, pode ser visto como
uma semente de algo que veio florescer alguns anos mais tarde.
A Arte Conceitual como movimento de vanguarda surge na Europa e nos
Estados Unidos no final da década de 1960 e se desenvolve até meados dos anos
1970. A manifestação desta tendência é marcada pelo ensaio de Henry Flynt52
(1940), músico e matemático, chamado “Conceptual Art” escrito em 1961 e pu-
blicado 1963. Em seu texto Flynt diz (em tradução livre dos autores):
“Arte Conceitual é, antes de tudo, uma arte cuja matéria é o “conceito,” por exem-
plo, para a música a matéria é som. Uma vez que os “conceitos” estão intimamente
ligados com a linguagem, a Arte Conceitual vem a ser um tipo de arte em que a ma-
téria é a linguagem. Isto é diferente, por exemplo de um trabalho de música, no qual
a música é propriamente apenas o som, a Arte Conceitual envolverá a linguagem.”53
Neste contexto, da linguagem como matéria-prima para artes visuais, as possi-
bilidades expandem-se, não só para “escultura”, “pintura” e arquitetura, que agora
são passíveis de uma abordagem linguística, mas também para outras mídias como
cinema, fotografia, performances e até mesmo a dança – já que todas carregam
ao menos alguma característica da arte visual. Todavia, não é este o foco da Arte
Conceitual, seu objeto está a serviço de uma ideia na mente do artista, e é nela em
que ocorre seu sentido.
Outra personalidade que se destaca neste contexto iniciado por Flynt, é a figura
de Joseph Kosuth (1945), proeminente artista de tendência conceitual que traba-
lhou em colaboração com grupo Arte & Linguagem (Art and Language), surgido na
Inglaterra entre 1966 e 1967 e que teve um papel importante tanto na divulgação
como no desenvolvimento da noção de arte como conceito. O grupo composto ini-
cialmente por Terry Atkinson (1939), Michael Baldwin (1945), David Bainbridge
(1941) e Harold Hurrel (1940), publica em 1969 a primeira edição da revista Art-
Language. Nela investiga-se uma nova forma de atuação crítica da arte e, assim como
Kosuth, se beneficia da tradição analítica da filosofia – mais voltada para análise
52 Participava das reuniões de George Maciunas, idealizador do grupo Fluxus.
53 FLYNT, Henry. Concept Art. 1961. (tradução nossa)
capítulo 5 • 150
linguística dos textos do legado filosófico – para o fazê-lo. Neste sentido, Kosuth
chama atenção para natureza tautológica da arte, declara o fim da filosofia tradicio-
nal e anuncia uma nova era marcada pela análise linguística:
“O século XX trouxe à tona uma época que poderia ser chamada o fim da
filosofia e o começo da arte. Não afirmo isso de maneira estrita, claro, mas sim
como uma tendência da situação. Certamente a filosofia da linguagem pode ser
considerada herdeira do empirismo, mas é uma filosofia de uma só marcha.54 E
certamente existe uma condição artística para a arte que precedeu Duchamp, mas
as suas outras funções ou razões de ser são tão pronunciadas, e a sua habilidade de
funcionar claramente como arte limita a sua condição artística tão drasticamente,
que ela é apenas minimamente arte”.55
Kosuth reconhece que não há um sentido de consequência entre o que ele
considera o fim da filosofia e começo da arte, esta conexão realizada por ele é
assumidamente uma arbitrariedade sua. Se por um lado, Kosuth estabelece esta
ligação, por outro, nega haver uma conexão conceitual entre arte e estética. Ele
levanta a questão da relação entre arte e estética, ou seja, toma emprestado o dis-
curso da arte formalista para depois derrubá-la denunciando nela a perpetuidade
de uma função estática da arte, relacionada a representações de valores de uma
sociedade estratificada, que é mascarada por uma modernidade representacional
que se renova em suas transformações de modelos formais.
Assim, pode-se dizer que para ele a relação da estética com a arte seria a mesma
da estética com a arquitetura, em que um pensamento estético seria estabelecido
como uma função, função estética. Ele exemplifica a arquitetura das pirâmides
do Egito que não trazem em si nenhuma relação com a “arte”. Desse modo, ele
conclui que a estética não agrega as verdadeiras funções do objeto de arte – que
Kosuth chama de “razão de ser” –, a não ser que sua função seja puramente estética
como acontece com os objetos decorativos. A intenção do artista é fundamental
para Kosuth, como ele (artista) articula suas ideias é o que estaria em jogo na Arte
Conceitual, mais do que sua aparência estética. Kosuth chega a chamar a arte for-
malista da pintura e da escultura de vanguarda da decoração, entendendo que sua
condição artística é tão reduzida que não se trata de arte e sim de “puros exercícios
no campo da estética”.56
54 Kosuth afirma que tal filosofia assumiu é a única “função” que ela poderia realizar sem fazer afirmações
filosóficas.
55 KOSUTH, Joseph. Arte depois da filosofia. COTRIM, Cecília; FERREIRA, Glória. Escrito dos Artistas, anos
60/70. p. 212 e 213.
56 KOSUTH, Joseph. Arte depois da filosofia. COTRIM, Cecília; FERREIRA, Glória. Escrito dos Artistas, anos
60/70. p. 215.
capítulo 5 • 151
O crítico de arte norte-americano Clement Greenberg aparece nesse contexto
de Kosuth como um mero crítico do gosto, relacionando seu juízo estético como
sendo simplesmente seu juízo de gosto, relacionado tão somente ao gosto em voga
na década de 1950. Ele continua detratando o juízo de gosto de Greenberg por seu
descaso com os quadros de artistas contemporâneos – minimalistas, mas já com
certo teor conceitual – como Frank Stella e Ad Reinhardt, por não poderem ser
aplicáveis dentro do esquema histórico/formalista do crítico.
O ponto para Kosuth é que há uma consideração de que tal esquema forma-
lista tem uma condição artística que é dada por um “conceito” formulado pelo
artista minimalista Donald Judd que diz “se alguém chama de arte é arte”. Ele
parece querer enfatizar assim a força de um conceito no processo de consolidação
de uma obra enquanto arte por acreditar ser esta a única condição para tal. Está
ao mesmo tempo enfatizado sua crítica a um suposto baixo grau de esforço usado
pelos artistas, ditos formalistas, na realização de suas obras.
Outro crítico formalista, Michael Fried, estaria, segundo Kosuth, do mesmo
modo que Greenberg, alinhando a morfologia da arte formalista a uma arte tra-
dicional por não levar sua crítica ao ponto de questionamento quanto à natureza
artística de um objeto. Deixando o elemento conceitual de fora do processo ana-
lítico de uma obra, a justificação morfológica deste objeto estaria sendo realizada
por meio de um “conceito a priori”, preexistente, que necessariamente mina a
raison d’etre (razão de ser) crítica da arte, isto é, reprime a função crítica da arte.
O que está sendo colocado é que o reconhecimento da natureza da obra é
um caminho importante para o entendimento da função da arte. Nesse ponto
retornamos a Duchamp em reconhecimento de ter sido ele o primeiro artista a
levar para sua obra, de modo proeminente, a preocupação com a identidade da
obra, mudando radicalmente a linguagem artística. Não se tratava de uma mesma
linguagem que se renovava constrita em questões morfológicas, a questão agora é
a função, mudando o foco da “aparência” para “concepção”.
A obra de Willem de Kooning Erased (Apagado), apresentado por Robert
Rauschenberg em 1953 aparece aqui também como um precedente histórico mais
próximo a Flynt e a Kosuth que deflagra uma ideia conceitual de arte, a obra se
constitui de um desenho realizado por Kooning – artista ligado ao expressionismo
abstrato – a partir do qual Rauschenberg, com a permissão de seu colega, apaga e
desfaz o gesto original.
O resultado é um papel vazio quase em branco que questiona a noção moderna
de arte quanto à sua materialidade e sua frivolidade conceitual. Nesse sentido o
capítulo 5 • 152
pensamento de Kosuth é consonante com o gesto de Rauschenberg e com rom-
pimento da ideia da materialidade do objeto como condição sine qua non para a
obra de arte. Começa-se assim ver a arte como uma tautologia na qual o que vale é
a intenção do artista, e o objeto é sua mera apresentação de uma condição artística,
sua estética não importa necessariamente, o que importa é a comunicação do con-
ceito, esta podendo ser “realizada” de diversas maneiras – sendo uma delas a própria
materialização do conceito. Assim entende-se que na Arte Conceitual, a atitude in-
telectual tem prioridade em relação à materialidade da obra, à sua aparência e ao seu
meio de expressão. Sua realização não implica uma ação necessariamente direta do
artista na produção do objeto, ela pode ser confeccionada pelas mãos de outra pessoa
ou mesmo por uma máquina, como no caso de Duchamp e Warhol. O mais im-
portante é a invenção da obra, o conceito. Diferentemente do caso minimalista no
qual o mais importante era o processo, a ideia aqui já está pronta antes de virar obra.
Arquitetura conceitual
capítulo 5 • 153
entendida como o significado por trás da palavra; isto é, aparece como uma estru-
tura conceitual predeterminada.
O modelo de Chomsky serviu para descrever o processo no qual o ambiente
físico da arquitetura é gerado a partir de uma série de regularidades abstratas for-
mais que ocorrem num outro nível, no qual as relações formais interagem.
O uso de Eisenman deste modelo tem implicações específicas que estão dire-
tamente ligadas à concepção de interioridade arquitetônica já abordada. A interio-
ridade arquitetônica deve ser entendida aqui como uma estrutura profunda, um
conceito predeterminado, um datum. Podemos dizer que o trabalho de Eisenman
busca o deslocamento da estrutura profunda da arquitetura – dos seus aspectos
interiores.
Partindo do paradigma linguístico, Eisenman lança duas propostas teóri-
cas e similares: a Cardboard Architecture (arquitetura de papelão) e a Conceptual
architecture (arquitetura conceitual). Ambas são teorias conceituais que trabalham
com relações formais na arquitetura e já têm uma relação intrínseca com suas
estratégias projetuais. A ideia de cardboard surge no texto Cardboard Architecture:
House I and House II57, no qual Eisenman relaciona seu conceito às duas primeiras
casas de uma de suas séries. O texto foi escrito para o livro Five Architects, publica-
do em 1972, resultado de uma reunião do grupo CASE (Conferência de arquitetos
para estudo do ambiente, na sigla em inglês: Conference of Architects for the Study
of the Enviroment que ocorreu em 1969 no MoMA. Peter Eisenman, Michael
Graves, Charles Gwathmey, John Hejduk e Richard Meier compunham o que
ficou conhecido como a Escola de Nova York: The New York Five (ou os cinco de
Nova York). O grupo defendia uma proposta de continuidade do caráter inovador
das vanguardas, como crítica aos preceitos do movimento moderno. Isto é, pro-
movia um tipo de continuidade diferente das propostas por Aldo Rossi e Robert
Venturi. Estes últimos, embora trabalhassem também a ideia da arquitetura como
linguagem, buscavam a identificação de tipos arquitetônicos passados no contexto
urbano real. Por sua vez, os Cinco Arquitetos queriam levar o discurso modernista
(seu tipo específico) a uma etapa avançada, ampliando suas possibilidades a partir
do interior das premissas formais do Modernismo, e não como resgate de tipos
históricos, como proposto pelo pós-moderno – ainda que Michael Graves tenha,
mais tarde, se tornado um importante representante da arquitetura pós-moderna.
Em Eisenman, este avanço ocorreu por meio da ideia de cardboard, adota-
da por seu teor irônico dentro do contexto da arquitetura. O termo teria uma
57 EISENMAN, Peter. House I, House II. In: Row, Collin (Org.). Five Architects: Eisenman, Graves, Gwathmey,
Hejduk, Méier. New York: Oxford University Press, 1975, p.15.
capítulo 5 • 154
conotação depreciativa no campo de debate crítico da arquitetura, “assim como
foram o Barroco e o gótico quando usados pela primeira vez”.58
Muita coisa mudou nos anos que separam a tese de doutorado de Eisenman
do ensaio Cardboard Architecture. O modelo para o novo discurso era claramente
linguístico e oposto ao histórico-arquitetônico – o termo cardboard sugeriu tanto
uma expressão estilística quanto a relativização da materialidade da arquitetura
a fim de superar a presença. O conceito de cardboard59 foi importante na época
porque incluiu o status do material na discussão sobre o formal e como aspecto
crítico da interioridade arquitetônica.
Eisenman60 resume o conceito de cardboard em três características
fundamentais:
1. Cardboard questiona a natureza da nossa percepção da realidade e dos
significados atribuídos a ela. Assim, não é tanto uma metáfora descrevendo
as formas do edifício, mas sim sua intenção. Por exemplo: modelos são fre-
quentemente feitos de cardboard (papelão), então o termo levanta a ques-
tão da forma em relação aos processos de projeto: isto é um edifício ou
uma maquete?
2. Cardboard muda o nosso entendimento da forma existente, de um con-
texto estético e funcional para uma concepção da forma como uma marca
ou sistema notacional, da forma como linguagem.
3. Cardboard é o resultado de um modo particular de transformação
de uma série de relações primitivas, em um conjunto mais complexo de
relações específicas, as quais conformam o edifício construído. Assim,
Cardboard é a definição do espaço em uma série de finas camadas verticais
e planares geradas por meio de uma representação diferenciada e particular
de colunas, paredes e vigas. A ideia não é a percepção literal da superfície
real como cardboard, mas da estratificação virtual produzida pela configu-
ração particular do processo.
capítulo 5 • 155
nem meramente signo funcional (portas, janelas, paredes) – mas um conjunto de
relações arquetípicas que afetam nossa sensibilidade primitiva sobre o ambiente.
Essas relações existem independentemente do estilo ou da forma superficial e são
manifestadas e apenas entendidas em certas justaposições de sólidos e vazios.
Esse foi um momento em que o modelo linguístico operava menos como
uma analogia e mais como algo já existente na arquitetura, reprimido pelo caráter
natural atribuído ao material, à função e à estética. “Neste sentido, a interiori-
dade arquitetônica estaria operando entre a linguagem e o tipo”.61 A linguagem
estaria propondo algo diferente de uma arquitetura com base apenas no estilo e
na imagem. O modelo linguístico do cardboard seria distinto do adorado pelos
outros integrantes do Five Architects – cujos trabalhos eram vistos como um revival
americano do modernismo europeu. A linguagem compreenderia um conjunto de
estruturas sintáticas preexistentes que poderia fazer referência a qualquer arquite-
tura. Essas relações são diferentes da ideia de uma norma arquitetônica e da ideia
clássica de uma essência formal. Entretanto, poderiam ser consideradas como
possibilidades informes a serem organizadas, ou seja, um caráter visual superfi-
cialmente desestruturado e aberto para diversas interpretações que se desdobram
a partir de uma forma básica. A forma básica em si não se constitui de um estilo,
tipo ou imagem arquitetônica previamente estabelecida. Assim, as tais possibili-
dades informes, que não são visíveis no espaço real da arquitetura, introduziram a
ideia de conceptual (conceito).
Em seus ensaios sobre Arquitetura Conceitual, Eisenman consolida a ideia da
arquitetura como linguagem. Três versões são desenvolvidas sobre este tema: Notes
on Conceptual Architecture, Noteson Conceptual Architecture II e Notes on Conceptual
Architecture IIa (Notas sobre Arquitetura Conceitual, Notas sobre Arquitetura
Conceitual II, Notas sobre Arquitetura Conceitual IIa). Cada uma pode ser en-
contrada em outras versões com subtítulos diferenciados, de acordo com a publi-
cação. Essa é uma característica presente em alguns textos de Eisenman, mesmo
nos mais recentes.
Na definição do termo conceitual dada pelo arquiteto, temos, em primeira
instância, uma distinção entre os aspectos formal e perceptual (definidos pelas
relações de proporção de simetria e eixos) e os aspectos de ordem mental e não
perceptual (que trabalham com noções como compressão e tensão); em segunda
instância, a distinção entre os aspectos abstratos e materiais.
61 EISENMAN, Peter. Inside: Peter Eisenman. Yale Critical Texts: Peter Eisenman. Ed. Mark Rakatansky. New
Haven: Yale University Press, 1997, p. 22.
capítulo 5 • 156
Essa diferenciação feita feita a partir de duas questões conceituais na arte:
uma, ligada à Art Language (Arte Linguagem), cujo objeto tem sua importância
relativizada, podendo operar como uma abstração geométrica na representação
de uma condição de não objeto; e outra, cujo objeto é autorreferencial – o objeto
representando o próprio objeto – tal como manifestado nas pinturas de Frank
Stella, Jasper Johns e nas estruturas primárias da Minimal Art (Arte Minimalista).
A questão da autorreferencialidade é posta por Eisenman por meio de um pensa-
mento sobre a relação entre a pintura e arquitetura. Para o arquiteto, existem dois
tipos de pintura que sugerem uma condição de autorreferencialidade: de um lado,
as abstrações de Mondrian, Malevich e Albers; de outro, as telas abstratas de Frank
Stella e Jasper Johns.
No primeiro ensaio de Notes on Conceptual Architecture há um argumento
dizendo que tanto a pintura preta com linhas cinzas de Stella quanto a bandeira
e o alvo de Johns estariam operando um tipo de autorreferencialidade, diferente
do que existia no Modernismo do pré-guerra. No caso de Mondrian, Malevich e
Albers, a autorreferencialidade seria uma abstração da forma figurativa62. Já nos
quadros de Stella, a abstração diria respeito ao aspecto de condição imanente da
tela que implica, no ato da pintura, o trabalho das bordas e das superfícies. No
caso da bandeira de Johns, estaria implícito um movimento de abstração mais
complexo, por envolver elementos de significado e valor icônico. Neste caso,
Johns operaria uma tensão das proporções e das bordas tanto da tela quanto da
bandeira. Reside nesta dupla autorreferencialidade crítica de Johns – entre a tela
em si e o signo do objeto representado – a ideia de conceitual a ser transposta da
arte para a arquitetura.
No entanto, é importante dizer que o signo autorreferente se manifesta de for-
ma diferenciada em cada disciplina. Na arquitetura, o signo figurativo é também
imanente; ou seja, a representação de uma coluna (construída ou pintada) é vista
como um signo da arquitetura além do seu caráter estrutural imanente. Por sua
vez, uma bandeira não pode ser vista como signo da pintura e, a tela, entendida
como signo da pintura, não é capaz (em sua autorreferência) de representar nada
além de si mesma. A ideia é que mesmo as abstrações de Stella não poderiam ser
classificadas como signo da pintura, muito embora tirem partido da configuração
imanente da tela para a definição de sua forma.
Notes on Conceptual Architecture, de 1970, foi um dos primeiros trabalhos
críticos de Eisenman. O texto se constitui de um diagrama de treze pontos
62 Ibid., p. 24.
capítulo 5 • 157
enumerados aleatoriamente em três páginas em branco; cada ponto corresponde
numericamente a uma nota de rodapé. As notas funcionam como um índice con-
ceitual daqueles pontos. Nas notas de rodapé, há uma referência bibliográfica à
Arte Conceitual, à Arte Minimalista, à Linguística, entre outros.
A questão a ser discutida reside agora na transição da Arte Conceitual para
uma arquitetura conceitual. Em Notes on Conceptual Architecture: Towards a defi-
nition, de1971, esta transição é ainda desenvolvida como uma teoria.
Como dito, Eisenman parte da linguística para viabilizar a ideia de arquitetura
conceitual identificando, a despeito de suas diferenças, que tanto linguagem quan-
to arquitetura podem ser vistas em três categorias semióticas distintas: pragmática,
semântica e sintática63:
1. Pragmática relaciona forma e função;
2. Semântica relaciona forma e iconografia;
3. Sintática distingue entre as relações das formas físicas de um espaço ou
construção e os espaços conceituais de uma estrutura.
63 EISENMAN, Peter. Notes on Conceptual Architecture: Towards a Definition. In: Eisenman, Peter. Inside Out. Ed.
Mark Rakatansky. New Haven and London: Yale University Press, 2004, p.11-27.
capítulo 5 • 158
“O que a arquitetura faz, seja um trabalho de arte ou não, precisa ser utilitário,
senão ela fracassa completamente. A arte não é utilitária. Quando a arte tridimen-
sional começa a assumir algumas das características da arquitetura, tais como for-
mar áreas utilitárias, ela enfraquece a sua função como arte. Quando o observador
é diminuído pelo tamanho de uma peça muito grande, essa dominação enfatiza a
força física e emotiva da forma, pondo a perder a ideia da peça”.64
Eisenman está, a princípio, de acordo com o ponto de vista de Le Witt quan-
do este diz que a diferença fundamental entre arquitetura e arte está no caráter
funcional de utilidade apresentado pela arquitetura. Contudo, discorda que a pre-
sença de utilidade subtraia o conceito de um edifício. Seu ponto de vista é similar
às propostas da Art and Language e das proposições de Joseph Kosuth, nas quais
uma obra de arte conceitual relativiza a necessidade da confecção de objetos. Em
Le Witt, o valor do objeto é o que dá entendimento sobre o conceito que, por sua
vez, é gerado no processo de execução da peça. Já o arquiteto, assegura que as qua-
lidades formais do trabalho não são importantes na medida em que contribuem
para qualquer coisa menos para o entendimento do conceito.
Assim, seguindo o paradigma linguístico, Eisenman acredita que arquitetura
conceitual é legítima. A presença física de elementos funcionais não diminuiria a
qualidade conceitual do trabalho; por exemplo, “se a Fountain de Duchamp fun-
cionasse como urinol, conservaria sua qualidade conceitual desde que a relação da
peça e o contexto da galeria permanecesse intacta”.65 A funcionalidade pode ser
um elemento contido no processo de se fazer arquitetura sem que desempenhe
um papel determinado dentro de uma escala hierárquica, da mesma forma que
o componente perceptual da Arte Conceitual pode ser um aspecto presente. Isto
é, pode-se transformar o signo de um edifício de tal forma que seu conceito é
manifestado em sua leitura primária, enquanto sua função é perceptível após o
conceito. O principal desafio para um arquiteto conceitual está em encontrar o
método transformacional que gera espaço com esses significados profundos exclu-
sivamente por meio da manipulação da forma.66
Neste sentido, a busca de Eisenman por alternativas estratégicas do modo de
fazer e ver (ler) a arquitetura se traduz, a princípio, em uma série de projetos de
casas entre finais das décadas de 1960 e 1970. As casas publicadas com textos e
64 LEWITT, Sol. Parágrafos sobre arte conceitual. In: Cotrim, Cecília; Ferreira, Glória (Org.). Escrito dos Artistas,
anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 80.
65 HICKERSON, C. R. Three Essays on Concept in Art. London: Architectural Association School of Architecture,
16 January 2004, p. 7 (tradução nossa)
66 EISENMAN, Peter D. Notes on Conceptual Architecture: Towards a Definition. Casabella, December 1971,
p. 359-360.
capítulo 5 • 159
imagens são as numeradas a seguir: Houses I, II, III, IV, V, VI, VIII, X e XIa. Destas,
iremos analisaras duas primeiras cujos projetos participaram da exposição do The
New York Five no MoMA de 1969: Houses I, II.
capítulo 5 • 160
por aqueles primeiros movimentos – deslocamentos, translações – que permitem
o começo do processo”.67
A House I parte da criação de duas retículas distintas sobre o cubo tripartido
para a marcação da estrutura no espaço, gerando assim, duas estruturas simultâneas
que se sobrepõem e interagem. Eisenman promove um deslocamento lateral entre as
duas retículas dando lugar tanto a pontos de intersecções quanto a postos residuais.
Dentro da configuração de cada grade existem elementos como pilares, vigas e jane-
las, que não podem ser mais identificados de imediato como agentes de sua função
estrutural. Isso acontece porque a sobreposição das grades gera tanto elementos es-
truturais quanto elementos sem função; estes por sua vez, geram uma ambiguidade
na percepção daquilo que aparentemente desempenha o papel de suporte, revelando
o enfraquecimento de sua capacidade cognitiva enquanto significantes. Dessa for-
ma, indaga-se: quais são os elementos estruturais?68 Esta ambiguidade de sentidos
ocorre de forma autônoma com a relação formal entre signo e significante de um
elemento arquitetônico (um pilar ou uma viga); isto é, independente do programa
e da função estrutural. A função não deixa de existir, mas perde seu caráter de cau-
salidade, na qual a forma segue a função; ou seja, ela existe, mas não corresponderá
necessariamente à forma que tradicionalmente a simboliza.
Assim, podemos encontrar elementos na casa que não desempenham função
estrutural, embora pareçam como tal. Três destes elementos são colunas cilíndricas
entendidas como os pontos de intersecção entre as duas grades geradas enquan-
to as colunas retilíneas (de base retangular) são vistas como elementos residuais
deste encontro. É importante ressaltar que as marcações tanto cilíndricas quanto
retilíneas das colunas não determinam se estas cumprem ou não seu suposto pa-
pel estrutural. Na verdade, as vigas expostas e as colunas de posicionamento livre
– todo aparato de estrutura aparente encontrado na casa – são definidas como
non-structural (sem função estrutural). Essa foi uma estratégia utilizada por
Eisenman para induzir uma leitura que evidencia o aspecto semântico do sistema
estrutural aparente; isto é, seu significado estrutural sendo tomado como imanen-
te à forma, mesmo sendo non-structural.
Um exemplo disso é a existência de duas vigas paralelas entre si e suspensas
horizontalmente. Uma viga surge de uma parede e a outra de um pilar retangular;
cada uma das vigas termina em uma das colunas cilíndricas existentes. Nesse caso,
67 MONEO, Rafael. Inquietação Teórica e Estratégia Projetual. São Paulo, Cosac Naif, 2008, p.146. (tradução
Flávio Coddou)
68 EISENMAN, Peter. Cardboard Architecture, House I and House II. In: ROW, Collin (Org.). Five Architects. New
York: Oxford University Press, 1975., p.16. (tradução nossa)
capítulo 5 • 161
nem as vigas nem a coluna cilíndrica exercem função de suporte da casa – ou seja,
o complexo da coluna com as vigas mal suportam a si mesmos. 69
capítulo 5 • 162
é lateral). Se na House I Eisenman buscou o signo na redução da forma aparente a
elementos non-structural (não estrutural) na House II, embora também exista essa
preocupação, esse aspecto se fará por uma redundância explícita não funcional.
Figura 5.4 – House II: deslocamento vertical da estrutura. 1970 (Peter Eisenman).
capítulo 5 • 163
Figura 5.6 – House II: fotos e diagramas axonométricos.
capítulo 5 • 164
ou [3] um sistema era o signo do suporte”. 70No excesso, surge a redundância e, a
partir dela, um signo arquitetônico foi criado: “a função de cada sistema significou
sua própria falta de função”. 71
Desconstrutivismo
70 EISENMAN, Peter. Misreading Peter Eisenman. In: EISENMAN, Peter. Inside Out. Ed. Mark Rakatansky. New
Haven and London: Yale University Press, 2004, p. 215. (tradução nossa)
71 Ibid.
72 Em 1967 foi fundado o IAUS (Institute for Architectureand Urbans Studies), tendo Eisenman como primeiro
diretor executivo. Em 1974, o instituto publica a primeira edição da Oppositions, uma revista de ideias e crítica na
arquitetura. A revista foi publicada até o ano de 1984.
capítulo 5 • 165
teóricos contemporâneos como Rem Koolhaas (1944-), Anthony Vidler (1941-),
Bernard Tschumi (1944), Kenneth Frampton (1930), entre outros.
O debate levantado pela Oppositions, também abordado nas publicações da
Perspecta73 e sucedido pelas revistas Assemblagee Any, transcorreu sob a influência
inevitável do estruturalismo francês e do pensamento desconstrutivista – em voga
no debate cultural da época. A ideia de ‘desconstrução’, importante no nosso en-
redo, estava alinhada aos principais argumentos de seus críticos e teóricos. A esse
respeito, podemos dizer de forma sucinta que a palavra ‘desconstrução’ está direta-
mente ligada à teoria de Jacques Derrida (1930-2004), assinalando uma operação
de indecisão dos limites da metafísica ocidental, na articulação de duas impossi-
bilidades: de se estar plenamente dentro ou inteiramente fora; sustentando assim,
um obscuro espaço intermédio.
“[...] abandonar a referência a um centro, a um sujeito, a uma referência privi-
legiada, a uma origem ou a uma hierarquia absoluta”.74 Este era ponto nevrálgico
da desconstrução para Derrida.
Entretanto, a obra de Derrida não foi a única a ter forte influência entre o
grupo de críticos que atuavam na Oppositions. O pensamento daqueles que con-
tribuíram para o desenvolvimento e o uso da linguagem como possibilidade crí-
tica à fenomenologia existencial – Ferdinand de Saussure (1857-1913), Roman
Jakobson (1896-1982), a escola vienense de Ludwig Wittgenstein (1889-1951),
o estruturalismo de Noam Chomsky (1928-), o pragmatismo de Charles Sanders
Peirce (1839-1914) e o estruturalismo e pós-estruturalismo francês de Roland
Barthes (1915-1980), Michael Foucault (1926-1984), Gilles Deleuze (1925-
1995) e do próprio Derrida – era de alguma forma usado pelos autores da revista.
Neste contexto, o problema do uso indiscriminado da linguagem na formu-
lação teórica da arquitetura pode ser explicado através de um princípio básico do
pensamento de Saussure75 na qual a linguagem é vista como um sistema estabe-
lecido por um conjunto de diferenças. Isto implica que não podemos imaginar o
resultado da linguagem como mero fruto de sua relação com as coisas que nomeia.
O significado não seria assim produto de uma correlação predeterminada entre
o signo e o significante – objeto que ele representa –, e sim decorrência de um
sistema de diferenças entre os elementos que o compõe, que no caso de Saussure
73 Perspecta: The Yale Architectural Journal é uma revista criada pelo departamento de arquitetura da Yale
University – YSOA (Yale School of Architecture) – no qual Peter Eisenman atua como educador. Editada hoje pelo
MIT Press, a revista teve sua primeira edição em 1952. Ela tem contribuído ao longo dos anos de forma relevante
para o desenvolvimento prático e teórico da arquitetura contemporânea.
74 DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença, p. 232.
75 SAUSSURE, Ferdinand. Course in General Linguistics.
capítulo 5 • 166
é dado pelos fonemas. É aí que reside a questão; o espaço em que ocorre esse jogo
de diferenças é um campo indeterminado onde uma enorme variedade de signi-
ficações é possível.
É face a este aspecto de indeterminação e abertura, próprio da linguagem e
da desconstrução, que se observa o arrefecimento e o fastio do discurso crítico na
arquitetura. É a partir desta abertura que a crítica Sarah Whiting indaga: “[...] se
uma multiplicidade de posições é permitida ou mesmo exigida, então como se
julga o que constitui uma posição?”76
Diferentemente de Whiting, Michael Hays77 defende a desconstrução e a
abertura que ela promove afirmando que a teoria da arquitetura está apoiada em:
primeiro, numa perda de sentido da unidade daqueles objetos arquitetônicos e
textos críticos da tradição modernista; segundo, numa tentativa de romper com a
distinção entre arquitetura, objeto de arte e texto crítico; e ainda, numa promes-
sa de desordem da “alta hegemonia monolítica do Modernismo e do dispositivo
de autoafirmação ideológica”.78 Há então uma mudança de paradigma na teoria
arquitetônica, na qual os objetos se tornam estruturas textuais, múltiplos e di-
ferenciados. Surge, a partir desta consciência, o que Hays chama de object-text
(texto-objeto), no qual o jogo intertextual de construção interna dos sentidos é
evidenciado. Desse modo, o texto crítico deixa “de ser uma mera descrição in-
terpretativa para alcançar o status de um object-text, uma ampla combinação de
signos e códigos aberta a novas interpretações, jogos e reescrita”.79
De meados da década de 1970 à de 1990, é que estas teorias da desconstru-
ção entram mais fortemente no discurso teórico dos arquitetos e abrem o campo
disciplinar da arquitetura para uma complexidade maior para novas possibilida-
des formais.
No projeto desconstrutivista não só a linguagem e a história puderam ser
agregadas simultaneamente em projetos arquitetônicos, como também as áreas da
filosofia, ciência, arte e outras narrativas que sugeriam um campo disciplinar de
abertura extrema no qual a questão da sua autonomia começou a ser questionada
até os dias atuais.
A questão é que ficou difícil identificar num objeto arquitetônico desconstrutivista
um sentido que faça referência aos limites internos do seu campo. E neste contexto de
alteridade semântica da arquitetura, o que passa a ter importância e a ser identificado
76 WHITING, Sarah. Critical Refletions. Assemblage no 41, p. 88-89. (tradução nossa)
77 HAYS, K. Michael. Editorial. Assemblage no 5. The MIT Press, 1988, p. 4.
78 Ibid. (tradução nossa).
79 Ibid.
capítulo 5 • 167
como próprio do campo são os seus procedimentos de elaboração da forma. Isto é, o
processo como ponto convergente das narrativas e das possibilidades formais.
Quando da exposição Deconstructivist Architecture realizada no MoMA em
1988, que marcou a reunião de sete arquitetos – Peter Eisenman (1923-), Frank
Gehry (1929-), Zaha Hadid (1950-), Coop Himmelbau, Rem Koolhaas (1944-),
Daniel Libeskind (1947-) e Bernad Tschumi (1944-) –, ficou patente o ímpeto
crítico às normativas formais, no qual o distanciamento estilístico se revelava em
insólitas resultantes formais. Isso de certo implicou uma crise da autonomia en-
quanto autonomia estética, mas não o seu fim.
capítulo 5 • 168
A posição Wigley sobre a ideia de desconstrução arquitetônica é mais elabora-
da e vai além da mera ideia de negação dos estilos de Johnson. É justo nessa ideia
de que o arquiteto desconstrutivista se move de modo muito preciso, mas sem um
fim definido, que ele chama a nossa atenção para os processos de elaboração da
forma e, portanto, para a questão dos procedimentos internos da disciplina. Mais
do que uma questão formal, embora ainda fundamental, a ideia de processo se es-
tabelece como meio de distinção entre os modos possíveis de se fazer arquitetura.
Seja como referência ao construtivismo russo, seja como a transliteração do
pensamento pós-estruturalista, o desconstrutivismo arquitetônico trata da crítica
logocêntrica das suas formas e de seus fundamentos e isso se dá precisamente por
meio do processo projetual.
Crítico a qualquer polarização binária – ausência/presença, prática/teoria – o
desconstrutivismo está alinhado às formulações da teoria linguística pós-moderna
nas quais os signos perdem sua posição hierárquica de significante primordial, são
desmotivados e passam a pertencer à categoria do excesso.
Isto é, juntos, vários signos desmotivados e de temporalidades distintas são
justapostos de forma a gerarem uma resultante formal de temporalidade própria,
de um sentido singular.
Sobre o aspecto autônomo e de continuidade da arquitetura desconstrutivista,
o teórico Andrew Benjami (1952-) diz:
“A história da filosofia poderia ser entendida como a reposição contí-
nua de questões que raramente variam, tal que a história é a continuidade do
always-the-same (sempre o mesmo). Entretanto, uma vez que um interesse crítico
entra, então qualquer prática, enquanto continuidade, o realiza com o reconhe-
cimento que a continuidade é em si um compromisso com sua própria possi-
bilidade. Em outras palavras, não pode ser simples continuidade, nem pode a
continuidade ser entendida como uma repetição dos mesmos elementos ideais.
Continuidade surge, assim, como uma forma de descontinuidade”.82
Segundo Benjamim, uma obra, enquanto resultante de um processo, é um
tipo de formalismo cujo potencial de transformação ao novo é dado no modo
pelo qual a criticalidade se torna evidente com as contingências formais à conti-
nuidade. Isto é, o interesse crítico no processo, lugar das possibilidades formais,
só ganha expressão na forma final se estiver lidando com a decomposição de uma
continuidade histórica em prol de outra, livre de sua carga metafísica. Insistir na
82 BENJAMIN, Andrew. Passing Throught Deconstruction: Architecture and the Project of Autonomy. In:
BENJAMIN. Architectural Projections, p. 118. (tradução nossa)
capítulo 5 • 169
criticalidade da forma em termos de continuidade, por um lado, reafirma o aspec-
to estético da autonomia; por outro, este aspecto ganha dimensão relativa à crítica
da continuidade histórica dentro do processo, no caso da arquitetura, projetual.
A esse respeito, da resultante contínua e autônoma da forma desconstrutivista,
Wigley se manifesta de modo similar dizendo que a forma desconstrutivista é “uma
condição estrutural estranha, um evento estrutural contínuo, um deslocamento contí-
nuo de uma estrutura que não pode ser avaliada nos termos tradicionais, justamente,
por ser a frustração desses termos.”83 Ainda, segundo ele, a arquitetura desconstrutivista:
“não é a fonte de um tipo particular de arquitetura, mas uma investigação
do papel discursivo contínuo da arquitetura. Como a tradição da metafísica é a
definição da arquitetura como mera metáfora, qualquer rompimento do papel da
arquitetura como uma figura é já um rompimento da metafísica. Isso não é o mes-
mo que dizer que este rompimento ocorre fora do reino dos objetos materiais. Ao
contrário, isso é o rompimento da linha entre discurso e materialidade por meio
da qual o sentido de um objeto material é entendido para ser um efeito discursivo.
Não é que as distinções tradicionais, organizadas ao redor dessa linha, que são tão
evidentes no discurso arquitetônico (teoria/prática, ideal/material, projeto/edifí-
cio, entre outros), desaparecem. Ao contrário, elas são complicadas em modos que
transformam o status das operações discursivas familiares e expõe outras operações
que são contínuas e produzem certos efeitos visuais, mas que não podem ser reco-
nhecidas pelos discursos institucionalizados da filosofia e da arquitetura”.84
Pensar a arquitetura desconstrutivista como uma investigação do papel discur-
sivo contínuo da arquitetura é pensar complexamente. É derrubar alguns preceitos
históricos sobre autonomia, mas sem intenção de negá-la. E é precisamente este
não negar a ideia de uma arquitetura preexistente que reside a possibilidade de
crítica, de um objeto existente passível de crítica.
[...] autônomo é aquilo que sempre se esforça para superar a resistência cogni-
tiva entre signo e figuração.85
Desconstrução em Eisenman
capítulo 5 • 170
perceptual externa das estruturas profundas fundamentais, conclui que existe uma
contingência para um estado de originalidade da estrutura, na qual pode produzir
significado a partir de si próprio e assim tornar disponível um novo nível de infor-
mação. Sobre este tópico o professor inglês Clive Knights argumenta:
“O projeto, então, propõe abrir as possibilidades de significado, explorando as
estruturas profundas sintáticas inerentes, trazendo-as à superfície do trabalho arquite-
tônico de tal maneira que ele se apresente como fenômenos primários organizados”.86
O objeto não é o mais importante, pois é ele quem vai agora apresentar o pro-
jeto, um projeto virtual em processo, de formas inacabadas e sem ênfase na função
utilitária, invertendo o sentido e a finalidade do desenho de mera ferramenta de
execução, de um objeto encarnado, de um sentido determinante, de uma época,
uma cultura e uma história.
O colapso dos sentidos na nova linguística estrutural se diferenciava das ver-
dadeiras intenções puristas e construtivas de Eisenman. Enquanto Chomsky bus-
cava alcançar uma competência linguística levando em conta estruturas universais
preexistentes, Eisenman rejeitava qualquer contexto ou intencionalidade expres-
siva, mesmo em uma matriz subjetiva de sentido. Uma vez avaliadas as casas em
série produzidas por Eisenman, pode-se concluir que se trata de outra gramática,
diferente de Chomsky, uma gramática que não remete a nada, apenas se autor-
referencia no andamento dos processos nos quais ela está inserida. Dessa forma,
Eisenman vai entrando em contato com o pós-estruturalismo francês, que por sua
crítica ao racionalismo moderno, serve de fundamentação para o anticlassicismo
do arquiteto. A linguagem da arquitetura de Eisenman é decomposta e os signos
seguem à deriva, em significações oscilantes rumo à desconstrução.
Segundo Diane Ghirardo87, Jaques Derrida (1930-2004), com sua teoria da
desconstrução, teve uma influência sem precedentes na arquitetura, apesar de
concordar em essência com os estruturalistas a respeito das fontes do significado.
Seus argumentos passaram a abordar criticamente a tradição ocidental que, segun-
do ele, sempre funcionara de maneira tal que as bases estruturais do significado
podem ser elucidadas fundamentando-se na existência de Deus, da natureza, da
história ou da ciência. Isto, para ele, não se constitui como verdade, apesar dos
estudos filosóficos sempre terem sido realizados com base nessas possibilidades.
Sua crítica desconstrutivista propõe uma estratégia de análise serial e constante
das grandes obras da tradição ocidental, focando a incoerência fundamental dos
86 Ibid. (tradução nossa)
87 GHIRARDO, Diane. Arquitetura Contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 26-35.
capítulo 5 • 171
textos, em detrimento de uma ordem estabelecida e rejeitando a clara e direta
relação entre os objetos e a linguagem usual. O significado, assim, seria gerado
pela ausência de estabilidade na linguagem e não pela intencionalidade humana.
Knights diz que no contexto do estruturalismo, Eisenman e Derrida utilizaram
a instabilidade para seus próprios fins criativos e problemáticos como uma propos-
ta de desconstrução da metafísica ocidental: a renúncia da validade da identidade
transcendental e uma justaposição inativa de inúmeros termos neutralizados ne-
garam a possibilidade de um fundamento no mundo. Num mundo globalizado,
no qual a inércia tecnológica domina como um remanescente contemporâneo da
filosofia ocidental, Eisenman e Derrida estão desconstruindo a linguagem a fim de
atingir um domínio em que não há começo, não há limites e, fundamentalmente,
uma ideia absoluta de história linear não pode ser mais concebida – uma história
que só pode ser sequencial e progressiva com início, meio e fim. Há um parado-
xo surgindo a cada instante e que continua nesta discussão como algo obscuro
e incompreensível. Eisenman, questionando o valor da representação, substitui
a condição do modelo, pela condição de não modelo. Acreditando que ao não
representá-lo, estaria, assim, movendo-se para a liberdade de não representar mo-
delo algum. Isto é, o livre representar per se (por si mesmo), como uma atividade
pura em seu próprio direito, não exigindo nenhum incentivo externo.
“A inferência é que a arquitetura tem uma realidade legítima [...] – sua con-
dição como um meio representativo – e que sua nova tarefa é representar essa rea-
lidade. Assim, tem-se que acolher o paradoxo; tem que reconhecer sua realidade
como uma mera representação, mas ao mesmo tempo nos dizer sobre o seu lado
obscuro, sua realidade escondida [...]. Uma representação de si mesma, de seus
próprios valores e experiência interna. A arquitetura como representação é afirma-
da e negada ao mesmo tempo”.88
A ideia de desconstrução em Eisenman parte de uma nova consciência que
problematiza, mais do que nega, a origem histórica dos aspectos interiores da
arquitetura. Ou seja, uma consciência crítica que questiona o caráter de condição
natural e irrefutável dos conteúdos racionais e programáticos tanto dos tratados
arquitetônicos quanto do idealismo moderno da arquitetura. Eisenman parece
não apenas gozar de uma consciência crítica em relação à arquitetura moderna,
mas ainda demonstra estar direcionado a uma investida projetual, na qual as-
sume a impossibilidade de se poder traduzir uma teoria ou proposta em uma
88 KNIGHTS, Clive R. The fragility of structure, the weight of interpretation: Some anomalies in the life and
opinions of Eisenman and Derrida. In: BORDEN, Iain; RENDELL, Jane. Intersections: Architectural Histories and
Critical Theories. UK: Routledge, 2000, p. 71. (tradução nossa)
capítulo 5 • 172
materialidade física da arquitetura e vice-versa. Entretanto, ele confere ao texto
arquitetônico uma importância ímpar na sua estratégia projetual. Se o texto não
pode ser representado pela forma ou mesmo representá-la, será, no entanto, parte
da leitura do que ele veio a se chamar de arquitetura não clássica.
No texto O fim do clássico: o fim do começo, o fim do fim89, Eisenman toma
como principal argumento a questão da periodização histórica. Recorrendo ao
conceito de corte epistemológico90 de Michael Foucault, ele dirá que tal ruptura
histórica ainda não ocorreu na arquitetura. Por essa razão, a arquitetura manteria
assim três instâncias clássicas na disciplina: representação, razão e história. Na pri-
meira, a ficção da representação está relacionada com a simulação do significado,
na qual Eisenman identifica uma excessiva concentração de energias criadoras no
objeto representacional; na razão, com base no valor clássico, é atribuída à ideia
de verdade, ou seja, a simulação da verdade; e a terceira relata a ficção simulada
da história do movimento arquitetônico moderno como reflexo do presente e do
zeitgeist que poderia remeter simultaneamente ao atual, ao eterno e ao universal.
Assim, Eisenman, com a sua crítica ao realismo e ao funcionalismo, propaga o fim
do clássico e o fim destas três ficções convencionais.
Para isso, Eisenman vai deslocar o sentido do termo episteme encontrado em
Foucault, invertendo o sentido atribuído ao clássico e ao moderno. A ideia é que-
brar com a estratégia de composição clássica, sua proporção e a tradição figurativa
da arquitetura. Eisenman elege então uma secção na episteme dita clássica para
uma não clássica, uma vez que julga ser a instrumentalidade entre forma e função,
um aspecto determinante da arquitetura clássica que operaria como elemento li-
mitador para a geração de novas formas arquitetônicas. Este corte epistemológico
é identificado por meio de uma análise crítica distinta das três ficções citadas aci-
ma: representação, razão e história.
Eisenman não estaria assim propondo um modelo alternativo e sim buscando
uma estrutura de ausências, uma estrutura que não estaria a serviço da recons-
tituição de algo previamente concebido. A ideia é de uma criação arbitrária, de
uma artificialidade isenta de significação, diferente da qual Baudrillard chamou
de simulação. Esta outra concepção de criação seria da ordem da dissimulação. A
diferença entre simulação e dissimulação é dada da seguinte forma: a simulação
tentaria esconder a diferença entre o real e o imaginário, enquanto a dissimulação
89 EISENMAN, Peter. O fim do clássico: o fim do começo, o fim do fim. Publicado em: NESBITT, Kate. Uma nova
agenda para a arquitetura. São Paulo: Cosacnaif, 2006, p. 233-252.
90 Ibid., p. 233.
capítulo 5 • 173
deixaria intocada a diferença entre a realidade e a ilusão. Ou seja, a dissimulação91
assume conscientemente a condição artificial da ficção, não pretendendo mais
representar ou simular uma verdade anterior como sendo uma verdade universal.
Esta dissimulação seria: o não-clássico. Assim, o que Eisenman está propondo é
uma arquitetura como dissimulação, como não clássico, em que se mantém os
simulacros aparentes entre realidade e ilusão, sem mitigá-los. Os signos, então,
seriam autorreferentes e a arquitetura tal como ela é.
A arquitetura não clássica, neste sentido, não deve ser confundida como sen-
do o oposto da arquitetura clássica; ela seria simplesmente diferente, de outra
natureza, uma ficção autoconsciente que representa a si mesma, seus valores e
experiência interna.92
A ideia de ficção de uma arquitetura não clássica, de uma arquitetura ficcional,
nos remete a uma noção de artificialidade, a qual Eisenman vai chamar de enxerto.
A esse respeito Jacques Derrida diz:
“[...] deveria explorar sistematicamente não apenas o que parece ser uma sim-
ples coincidência etimológica unindo o enxerto (graft) e a grafia (graph) (ambas do
grego graphion: instrumento para escrever, estilete), mas também a analogia entre
as formas de enxertia textual [...] não seria suficiente compor um catálogo enci-
clopédico de enxertos [enxerto de aproximação, [...] enxertos de emenda, enxertos
em sela, enxertos em fenda, [...] enxerto em ponte, enxerto de arco, enxerto de
reparo [...] etc.; deve-se elaborar um sistemático tratado sobre o enxerto textual.”
(La dissémination,1972,p.230-202)93
O termo faz referência às enxertias textuais derridianas94 que partem da con-
cepção de suplemento de Jean Jacques Rousseau.95 Podemos dizer de forma sucinta
que em Rousseau, a escritura serve apenas de suplemento à fala. Na desconstrução
literária de Derrida, a ideia de suplemento destrói a presença – a presença enten-
dida como fala; neste caso, o suplemento seria a substituição da fala pela escrita.
O suplemento, em Rousseau, lida com enxertos de descrição tanto logocêntrica
como antilogocêntrica; isto é, trata-se de uma teoria sistemática dos atos de fala
que vai buscar na sua multiplicidade de enxertos aqueles que são inteligíveis, que
progredirão dentro de uma razão lógica e disseminarão. Por sua vez, às enxertias
91 Ibid., p. 241.
92 Ibid.
93 Jaques Derrida citado em: CULLER, Jonathan. On descontruction. (tradução Patrícia Burrowes)
94 Ver: DERRIDA, Jacques. La Dissémination. Paris: Seuil, 1972; ou, La Double Séance. Paris: Telquel, 1971.
95 No livro Gramatologia de Derrida, há um capítulo com dois tópicos que fazem referência a questão do
suplemento: [1] Este perigoso suplemento; [2] Gênese e escritura do Essaisurl’origine dês langues. Ensaios sobre as
origens da língua é o texto no qual Rousseau concebe a ideia de suplemento.
capítulo 5 • 174
textuais de Derrida demandam um tratado sistemático que leve em conta justa-
mente esta condição heterogênea do suplemento. Neste contexto, a desconstrução
trabalha na identificação e análise de enxertos nos textos – pontos de conexões e
tensões – a fim de revelar seu caráter heterogêneo.96
Em Eisenman, o enxerto é proposto e introduzido como estratégia projetual,
como um artifício criado pelo arquiteto. O enxerto é como um lugar inventado
que possui mais características de um processo do que de um objeto. Podemos
entender melhor a proposta do arquiteto através do ele chamou de twoness (dupli-
cidade) e de betweeness (condição de estar entre).97 Da mesma forma que Derrida
identifica uma duplicidade do suplemento (logocentrismo e antilogocentrismo)
a ser desconstruído, Eisenman procura gerar uma estrutura de equivalências –
twoness – como forma de quebrar o endereçamento hierárquico encontrado nas
relações binárias do projeto arquitetônico, entre forma e função; forma e sentido.
Assim, a hierarquia é substituída por incerteza, criando um espaço de indecidibi-
lidade e de excesso. O excesso seria a culminação da presença imediata, que em
sua multiplicidade desmotiva o direcionamento do signo a uma única origem ou
a uma razão semântica determinante. O espaço “entre” seria a condição betweeness
do enxerto, na qual se dá o excesso. O enxerto, dessa forma, seria apenas um local
contingente da ação – o lugar onde se inicia um processo.
O processo, por outro lado, está ligado à ideia da arquitetura como uma es-
crita – ou texto. Sendo assim, ao considerar a arquitetura como escrita, devemos
fazer a distinção de que ela não é um objeto arquitetônico em si, sua massa e
volume; mas sim, o ato de dar forma, dando um corpo metafórico ao fazer arqui-
tetônico. Isso demanda outro sistema de signos para leitura da arquitetura.
O sistema adotado por Eisenman tem base na concepção de traço (trace)98
de Derrida.99 Em Derrida, o traço é visto como algo distinto que surge daquela
condição de excesso, multiplicidade e da imediatez da presença. A imediatez é
derivada daquilo que começa de um estágio intermediário, por isso não pode ser
96 CULLER. Jonathan. On descontruction: Theory and Criticism after Structuralism. New York: Cornell University
Press, 1982, p. 134.
97 EISENMAN. Peter. En Terrror Firma: In Trails of Grotextes. In: Deconstruction, Omnibus Volume. Editado por
Andrea Papadakis, Catherine Cooke e Andrew Benjamin. Londres, AcademyEditions, 1989, p.152-153.
98 Trace é o termo original em francês usado por Derrida em Gramatologie. Na tradução para o inglês do
Gramatology o termo permanece trace, tal qual é usado por Eisenman. No Brasil, no Gramatologia, trace foi
traduzido como rastro. Entretanto, na tradução brasileira do texto de Eisenman O fim do clássico: o fim do começo,
o fim do fim; trace, foi traduzido como traço. Adotamos aqui traço como o termo referente à concepção de trace tanto
em Derrida como Eisenman.
99 EISENMAN, Peter. O fim do clássico: o fim do começo, o fim do fim. In: NESBITT, Kate. Uma nova agenda para
a arquitetura. São Paulo: Cosacnaif, 2006, p. 246.
capítulo 5 • 175
concebida pela razão. A presença per se implica uma marca originária no tempo;
entretanto, seu contexto múltiplo e de excesso, no qual o traço aparece (se origi-
na), não permite nenhuma associação válida ou verdadeira auma determinação
lógica. “[...] se tudo começa pelo rastro (trace) acima de tudo, não há rastro origi-
nário”.100 O que está em jogo – tanto em Derrida quanto em Eisenman – é a im-
possibilidade de um objeto ou realidade ser representado. Isso torna a arquitetura
um sistema de diferenças, não podendo mais ser vista como um objeto ou uma
imagem de presença isolada.
Isto é, a presença a agora estará sempre em relação à outra presença, e na coe-
xistência de ambas, aquilo que pode ser aproveitado como passível de representa-
ção são traços da presença de cada um – o que esta em jogo é que nessa condição
nunca uma presença se impõe de modo absoluto.
Segundo Eisenman, “o traço é a manifestação visual desse sistema de diferen-
ças, um registro do movimento (sem direção) que nos induz a ler o objeto presente
como um sistema de relações, com outros movimentos prévios ou subsequen-
tes”.101 Assim, podemos descrever traço como sendo parcial, fragmentário, uma
ação em processo, uma dissimulação de sua antiga realidade. O traço ainda, em
uma estratégia projetual, implicaria a quebra da hierarquia entre presente, passado
e futuro, no movimento-registro de uma ação em processo contínuo – o registro
da motivação – em que um objeto jamais seria temporal pré ou pós determinado.
Estas concepções de enxerto e traço serviram de base teórica para os primeiros
projetos de sobreposição (desconstrutivista) de Eisenman.
Um exemplo deste processo é projeto para o Wexner Center – centro de artes
visuais da Ohio State University. O resultado deste projeto é a sobreposição, no
site do campus da universidade, de outros sites históricos da cidade de Columbus.
Robert Somol102 diz que o Wexner Center já não pode ser visto como objetos ou
formas nem mesmo como estruturas. Somol faz uma associação com o texto em
Terrror Firma: In Trails of Grotextes, de Eisenman, ao dizer que o projeto se parece
com things (coisas), referindo ao aspecto informal do grotesco; para ele, tais coisas
frustrariam as análises formais e marcariam a transição do estruturalismo para a
teoria do excesso de George Bataille.
100 DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 75. (tradução Miriam Chnaiderman e
Renato Janine Ribeiro – observação nossa)
101 EISENMAN, Peter. O fim do clássico: o fim do começo, o fim do fim. In: NESBITT, Kate. Uma nova agenda
para a arquitetura. São Paulo: Cosacnaif, 2006, p. 251. (tradução Vera Pereira)
102 SOMOL, Robert E. Dummy text, or The Diagrammatic Basis of Contemporary Architecture. In: EISENMAN,
Peter. Diagram Diaries. New York: Universe Publishing, 1999, p. 18-19.
capítulo 5 • 176
Figura 5.9 – Wexner Center: maquete; vista da implantação. 1989 (Peter Eisenman).
Disponível em: <http://www.archdaily.com/557986/ad-classics-wexner-center-for-the
-arts-peter-eisenman>
Figura 5.10 – Wexner Center: fachada (fragmento da chaminé e do arco como traços).
Disponível em: <http://www.archdaily.com/557986/ad-classics-wexner-center-for-the
-arts-peter-eisenman>
capítulo 5 • 177
Figura 5.11 – Wexner Center: traço da forma anterior. Disponível em: <http://www.
archdaily.com/557986/ad-classics-wexner-center-for-the-arts-peter-eisenman>.
capítulo 5 • 178
ficcionais, pois considera ser esta a única forma de romper com a ideia progressiva
do tempo, fazendo do topos o lugar da invenção.
Derrida afirma que a única condição para que um texto não produza um
único sentido é por meio do que ele chama de excesso, que é a capacidade de um
“trabalho produzir muitos significados simultaneamente, incluindo os contraditó-
rios, não intencionais e os indesejáveis”.103 Neste sentido, o trabalho de Eisenman
produz uma condição de excesso fazendo com que o discurso arquitetônico seja
afetado por processos estranhos à sua linguagem convencional. Ele utiliza, portan-
to, de princípios deslocados da natureza tradicional da disciplina para que estes, a
partir do seu estado entre, contaminem, aduzam e distorçam o processo de con-
formação arquitetônica. É importante dizer que Eisenman, ao falar de referenciais
deslocados, não pretende uma simples incorporação de elementos externos à sua
obra, e sim, discutir a possibilidade ou a impossibilidade de se afirmar a existência
de padrões ou valores legítimos à prática arquitetônica.
Sua busca não é mais nos fatos urbanos existentes e visíveis, mas nas ausências,
ficções ou lembranças artificiais da lógica de estruturação do espaço. Ela aponta
para uma arquitetura que esteja livre da nostalgia por sistemas que tiveram um
sentido no passado. Com isso, propõe que se aceite a ausência de sujeito, história,
lugar e de significado, da ideia de verdade a priori.
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