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Leonardo Garbin
Editoração
Camila Kieling e Marta Castilhos (Editoras Associadas)
M775c
Monteiro, Silas Borges (org.).
Caderno de notas 2: rastros de escrileituras./ Org. por
Silas Borges Monteiro. Canela,RS: UFRGS, 2011.
Coleção Escrileituras
ISBN 978-85-61774-02-8
1.Filosofia. 2.Projeto Escrileituras. 3.Pensamento da
Diferença. I.Título.
CDU 101
Comitê Editorial
Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Emília Carvalho Leitão Biato
Polyana Cindia Olini
Caóides . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Sandra Mara Corazza
OpenBarthes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197
Wladimir Garcia
tão Biato
valho Lei
Emília Car i
ind Olin
ia
Polyana C
9
livro. Este Caderno 2 “Rastros de escrileitura” foi pensado a partir da inten-
ção de reunir parte das conferências, comunicações e artistagens do I Coló-
quio Nacional Pensamento da Diferença: Escrileituras em meio à vida, realizado
em novembro de 2011, na Universidade de Caxias do Sul, Núcleo Canela,
Rio Grande do Sul. Também por isso, este volume é abrangente; apresenta
o transito teórico de Escrileituras por todos os núcleos de estudo do projeto.
Os temas de pesquisa e reflexão variam significativamente, sinalizam as di-
versas possibilidades destes estilos transdisciplinares em filosofia-educação.
Procuramos dispor os artigos de forma que nos remetam ao Coló-
quio. Dessa forma, “Caóides” abre este volume. A autora – que chamamos
Sandra Corazza – estabelece diálogo sobre o cenário e o percurso dos es-
tudos e trabalhos desenvolvidos no Projeto Escrileituras e, sobretudo, dos
efeitos que tal relato provoca, emerge a poesia do que temos vivido. Em
seguida, é Eduardo Pellejero quem movimenta o nosso pensamento para
a criação de novas formas de individuação. Indica possibilidades e alter-
nativas advindas do devir-menor, enquanto movimento revolucionário
não representativo; isto é, livre dos padrões estabelecidos politicamente e
historicamente. Walter Omar Kohan retoma, em novas dimensões, o en-
frentamento político na Grécia Antiga, no diálogo com Fedro, na escrita
de Platão e no aprender por uma vida filosófica, de Sócrates. Argumenta a
impossibilidade da afirmação do pensamento unitário e o valor da diferen-
ça no ser, na política, no pensamento e na escrita.
Expositores das sessões temáticas simultâneas dão continuidade às
múltiplas frestas propostas aqui. Ester Maria Dreher Heuser recorre às di-
ferentes perspectivas de Descartes, Kant, Fichte, Hegel e Feuerbach, para vi-
sitar possíveis princípios em filosofia, com a intenção de refletir, a partir de
Deleuze, o que significa pensar, bem como a necessidade de pensar. Gabriel
Sausen Feil apresenta a noção de procedimento na obra de Gilles Deleuze,
em diálogo com Proust, Sade, Sacher-Masoch, Klossowski, Kafka e Bacon.
Aponta que todos têm, em comum, o fato de funcionarem eroticamente, já que
atuam sempre a partir da dissolução de uma Forma; e o erotismo surge como
reinvenção do que parece tão verdadeiro e imutável. Verdade verdadeira? A
minha ou a deles? Pergunta Fani Tesseler. A autora propõe-se a pensar o ato
de criação, com Deleuze, e destaca, ao lado de Foucault, a impossibilidade da
verdade posta da realidade. Enquanto, em seus questionamentos sobre su-
jeito, verdade e invenções associadas, Nilton Mullet Pereira e Samuel Lopez
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Bello trazem Michel Foucault como pensador da diferença, para nos enviar às
máscaras e modos provisórios de apresentação de si. Ainda, para o potencial
de não submeter a vida aos modos já existentes, através da invenção de modos
de ser ainda improváveis. Num movimento de não submissão e rompimento
com projetos daqueles que estabelecem a didática de forma moralizadora e
unificadora, o texto de Betina Schuler também ensaia outras formas de existir.
Retirando a Didática de um campo totalizador e universalizante, coloca-a no
terreno das possibilidades de criação, de um corpo novo. Em sequência, Dóris
Helena de Souza, em sua “Conversação”, indica, inicialmente que não trará a
falação de conceitos a serem compreendidos, já que os trata como ato de cria-
ção. Faz, então, provocações ao pensamento do leitor, no sentido do olhar para
a didática sem pretensões revolucionárias nem modelizações, mas tratando-a
como um modo que fala da vida. O enredo de Paola Zordan, também, traz uma
escritura sobre a vida e seu cotidiano, que prende nossa atenção, à medida em
que trata do aprendizado das sensações, em meio à educação dos corpos.
Ao tratar de criação, voltamos a Nietzsche e ao que este concebeu
como a “justificativa estética do mundo”, qual seja, a arte, sobretudo a mú-
sica, que atravessam os seus cinco prefácios e consubstancia-se como tema
e forma. Problematizando a arte musical, inserida nas questões comuns da
infância e da educação, Eduardo Pacheco propõe a (des)educação musical
como criação e invenção de si. Com remissões à filosofia da diferença, apre-
senta diversos aspectos que compõem essa invenção. Para encerrar o volu-
me, as dezessete notas de Wladimir Garcia estilhaçam qualquer compostura
apolínea dos textos científico-acadêmicos. São noções morfológicas, sintáti-
cas, semânticas, estruturais, sentimentais, escapamentos, constituindo uma
escritura dotada de diferentes possibilidades de criação e inspiração.
É certo que até mesmo nos espaçamentos deixados, quer sejam para
frente, para trás ou para os lados, cada um desses textos contém o seu au-
tor; e cada autor assina em seu nome próprio. Coloca-se, todavia, na lógica
da não-identidade; pois, nem mesmo o nome do autor representa um jogo
de significado. Os textos, desse Caderno de Notas, são sempre abertos e
passíveis de inserções artistadoras. A arte nos textos fundamenta a reali-
zação do Projeto Escrileituras, que privilegia o poético; provoca sensações,
na forma de perceptos e afectos; e assume a fabulação como o prumo da
produção de si. É disso que tratam os textos deste volume.
Ao leitor, ofertamos os espaços a serem ocupados.
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Caóides
a
ara Corazz
Sandra M
13
entre saberes, processos de pensamento, dinamismos espaços-temporais,
sensibilidade para as artes, formas de expressão e de conteúdo.
Com as Oficinas de Escrileitura (escrita-e-leitura), o projeto cria
posturas multivalentes de leitor, co-autoria, tradução de textos abertos,
reescrevíveis, produtivos. Que ganham força nesses mesmos movimentos.
Sua extensão é a alfabetização, enquanto prática e conceito, para
além da apropriação dos códigos escritos.
Escrileituras, que acontecem em diferentes suportes e de múltiplos
modos, com sentidos diferentes, em processos de individuação.
Criação de modos de existir e de pensar. Experimentação de afec-
tos. Enfrentamento do que não está atualizado, no campo do aprender.
O trabalho com as Oficinas implica o vivido, as sensações, as invenções.
Cada Oficina consiste num convite à escritura e à leitura, que se
desdobra em saberes matemáticos, biografemas, histórias, música, arte, li-
teratura, poética, teatro, fantasias, fruições.
Encontros produzidos na multiplicidade do leitor-escritor com o tex-
to: enquanto ato de sedução do pensamento, que só seduz porque deseja.
Encontros que excedem todas as procuras; ultrapassam a tagareli-
ce; e transbordam, em grandes ondas.
Na intersecção das Oficinas entre si, marcam-se a decomposição e
a desocupação dos territórios identitários, que se abrem à raridade e ao
inusitado.
As Oficinas põem problemas em cena, enquanto condição de pos-
sibilidade da aprendizagem. Convocam a violência e a vidência do pen-
samento. Investem em processos disparadores de criação textual e não-
-textual.
Suas experimentações ultrapassam a ilusão de etapa metodológica,
previsível e garantida, para o acesso ao conhecimento; deste, não compre-
endem a natureza empírica, passível de desvelamento; distanciam-se da
generalização e da comprovação de evidências.
Tratam a vida como artistagem: um desordenamento necessário à
criação; uma idéia de afectação vital; transgressão e abertura ao encontro
inesperado com outros textos.
As Oficinas põem na roda o que não se conhece, através de uma
infância do mundo. E, na extensão desse estranhamento, fazem falar, ler e
escrever, em línguas liberadoras de forças.
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Transdisciplinaridade. Imersão e aportagem de problematizações
acerca do cotidiano. Vivência de processos de singularização. Articulação
com a docência da investigação. Produção, no espaço de correlações entre
leitura, escritura e pensamento.
As Oficinas inserem a Escrileitura na dimensão imaginadora e imagi-
nária de todo texto. Lidam com as coisas do mundo, brechas experimentais,
espaçamentos impensados, a importância de outrem e de se viver junto.
Abrem universos de imagens, tessituras, conexões, interceptação
do Mesmo, esfacelamentos, linhas e fluxos, estriamentos atravessados por
cheiros, hormônios, gradientes sonoros e gravitacionais.
Todos territórios do aprender e do ensinar, feitos da massa disfor-
me da fantasia, dos quais brotam desertos, saqueadores, combates, festas.
Ao se voltarem para a repetição daquilo que é único, as Oficinas
funcionam como corpos sensíveis ao movimento; encostas de textos; luga-
res de abrigo; casas movediças.
Foi assim que, tomando a Escritura-e-a-Leitura como aventuras,
as Oficinas engendraram este I Colóquio Nacional Pensamento da Diferença:
Escrileituras em meio à vida: feito um exercício de vivaz e fascinante pen-
samentar.
Por isso, o Colóquio possui uma temporalidade própria ao período
da viagem das Oficinas, com paradas provisórias, velocidades que passam
da aceleração infinita às lentidões necessárias, esgotamentos, vôos aluci-
nados, desatinos, excessos, escassez de idéias, combates, inspiração, musi-
calidade, solidão e fome.
Colóquio, que solicita outro tempo, que não o cronológico; pede
passagem para existir ao seu modo, inscrever signos; e, logo, mudar de
posição.
Dessa maneira, é que nos posicionamos, junto a nossos conferen-
cistas convidados Eduardo Pellejero, de Natal, e Walter Kohan, do Rio
de Janeiro; e junto a todos vocês, pesquisadores, que, de várias partes do
Brasil, aceitaram a amizade do convite.
Para enfrentar o perigoso plano de um primeiro Colóquio: pisan-
do terras desconhecidas, em devir-estrangeiro, como arqueólogos num
trabalho-viagem.
Que as Caóides, as três filhas do Caos, a Filosofia, a Ciência e a Arte,
iluminem, protejam e amparem este nosso percurso.
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A estratégia da involução:
o devir-menor da filosofia política
lejero
Aníbal Pel
Eduardo
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Deleuze propõe, nesse sentido, uma filosofia política menor, que te-
ria como núcleo conceitual a ideia singular de um devir-revolucionário
sem futuro de revolução2. Isto é, a consideração do acontecimento político
por excelência (a revolução), não enquanto ideal ou meta a atingir, mas
enquanto devir: “uma bifurcação, um desvio em relação às leis, um esta-
do instável que abre um novo campo de possíveis (…) [e que] pode ser
contrariado, reprimido, recuperado, atraiçoado, mas que comporta sempre
qualquer coisa de insuperável”3.
É uma questão de vida, que passa no interior dos indivíduos como
na espessura da sociedade, criando novas relações com o corpo, o tempo,
a sexualidade, o meio, a cultura, o trabalho; mudanças que “não esperam
pela revolução, nem a prefiguram, ainda que sejam revolucionários por sua
conta: têm em si uma força de contestação própria da vida poética”4 – isto
é, deslocando o desejo ou reorganizando a vida, tornam inúteis os disposi-
tivos do saber e do poder que serviam para canalizá-los. Noutras palavras:
esses processos valem na medida em que, ao ter lugar, escapam ao mesmo
tempo dos saberes constituídos e dos poderes dominantes; mesmo se, mais
tarde, são prolongados por novos dispositivos de saber e de poder.
O devir-revolucionário ocupa no sistema deleuziano o lugar que
nas filosofias políticas historicistas era o lugar da revolução; mais precisa-
mente, extrai da revolução a parte do evento, do acontecimento, deixando
de lado (por um momento?) a parte do projeto, a parte de sua efetuação
na história. O devir-revolucionário aparece, nesse sentido, como o poder
de variação e reordenação dos objetos e dos sujeitos, dos signos e das sig-
nificações de um mundo prévio (e, nessa mesma medida, se assemelha à
função do trabalho do sonho).
De repente, o objeto da luta deixa de ser a defesa de um estado
de coisas e a realização de uma série de possibilidades para se perfilar
como divergência essencial e multiplicação de perspectivas. Trabalho de
destotalização da vida, o devir-revolucionário é um processo que coloca
em questão (que enfraquece) qualquer dialética historicista, que pretenda
sancionar de iure o que dificilmente consegue impor de facto através do uso
e abuso da violência.
18
Na obra de Deleuze e Guattari, o devir-revolucionário é uma va-
riação do conceito de devir-menor: processo de des-subjetivação, de in-
-determinação, de in-volução, no qual os termos envolvidos, passando por
uma série de transformações, desbordam aquilo que os determina ao nível
da representação; inclusive se não superam nenhum estádio anterior em
direção a uma figura mais alta.
O devir-menor é um curto-circuito da ordem lineal, cronológica e
historicista, um movimento de variações imprevisíveis, onde rompemos
com as representações que, de um ponto de vista maior, nos definem como
sujeitos. É uma ruptura com as funções que nos são assinaladas, enquan-
to sujeitos dos dispositivos históricos de poder e de saber nos quais nos
encontramos comprometidos: o que nossa sociedade espera de nós, o que
o mercado de trabalho espera de nós, o que a escola espera de nós, o que
nossas famílias esperam de nós, o que nós próprios esperamos de nós, etc.
Indeterminando esses horizontes de expectativa, essas estruturas de con-
trole ou de disciplina, o devir-menor nos abre ao (im)possível.
Essa ruptura com qualquer estrutura de expectativa é também uma
ruptura com qualquer forma de política maior. A política maior, com efeito,
confisca nossa potência de variação e de criação, de mudança e de pensa-
mento, em troca de uma representação e um lugar no status quo. O devir-
-menor, pelo contrário, liberta as singularidades subjacentes aos padrões de
representação histórica ou política, desviando-os da linha de progressão ou
evolução de uma maioria, e afirmando os elementos singulares subjacentes
como diferenciais de individuações, subjetivações e agenciamentos por vir.
De outro ponto de vista, é necessário assinalar que, para que essas
aberturas de possível sejam algo mais que um fenômeno de vidência, para
que as (novas) sensibilidades associadas a esses acontecimentos ou devires
possam se afirmar é imprescindível a criação dos agenciamentos necessá-
rios. Essa criação é, depois de tudo, a tarefa que dá consistência a esta sin-
gular filosofia política. Deleuze escreve: “Quando uma mutação social tem
lugar, não é suficiente deduzir as conseqüências ou os efeitos, seguindo
linhas de causalidade econômicas e políticas. A sociedade deve ser capaz de
formar os agenciamentos coletivos correspondentes à nova subjetividade,
de forma a que permitam amadurecer essa mutação”5.
19
Sem as transformações das relações de força desencadeadas pelos de-
vires, a política maior (tradicional) não conhece outro sentido, não possui
outra tarefa que a reprodução dos dispositivos de saber e de poder exis-
tentes. Mas sem a invenção e promoção de novas figuras de individuação,
não há saída política possível. A procura de agenciamentos que possam
estender os movimentos disparados pelos acontecimentos é a alternativa
construtiva às clivagens históricas e às segregações sociais dos padrões
majoritários6.
No registro de Guattari, podemos dizer que devir-menor é só uma
das caras desta filosofia política menor; sendo a outra a produção de ter-
ritórios existenciais (agenciamentos), a partir da parte não-representada,
que insiste em nós e fora de nós: parte que é revelada no trance de devir-
-menor e que acaso poderíamos interpretar na linha do que Rancière de-
nomina “a parte dos sem-parte”.
Brevemente: devir-menor é sempre uma relação com o não-históri-
co, com o não-representativo, com o inumano, com o fora; isto é, com tudo
aquilo que se encontra para além das determinações empíricas e trans-
cendentais dos sujeitos em questão. Porém, não é um salto no vazio, um
devaneio sem sentido, nem um simples grito de protesto, mera negativi-
dade. É uma forma radical de mudança que nos coloca numa zona de in-
determinação, abrindo “nossas” singularidades a articulações inesperadas,
desbordando o solo representativo da política maior, em virtude de uma
mais-valia não histórica: o fugaz lampejar de relações improváveis (im-
possíveis) entre nós e os outros, entre nós e o trabalho, entre nós e o sexo,
entre nós e o pensamento (relações que, certamente, deverão ser consoli-
dadas em agenciamentos apropriados).
Quero dizer que devir-menor não é a chave de uma nova forma de
dialética negativa. Deleuze e Guattari aspiram a algo mais do que ao desva-
necimento de qualquer subjetividade constituída (fim da alienação); mesmo
se esse desvanecimento também está em causa. Devir-menor implica neces-
sariamente uma contrapartida material construtiva: a invenção de espaços
políticos sui generis, o agenciamento criativo de territórios existenciais.
Noutras palavras, se for permitido o uso de uma fórmula polêmica,
devir-menor implica uma dialética menor ou menorizada, enquanto vetor
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de subversão dos padrões históricos de subjetivação. A política maior (mo-
derna) acredita ser capaz de superar as contradições sociais e econômicas,
através do esclarecimento dos sujeitos envolvidos, que se supõem capazes
de exceder os dispositivos de saber e de poder instituídos; logo, em con-
dições de conduzir a história além do seu estado factual (em direção à sua
realização ideal ou idealizada). A ruptura ou a abertura inerente a qual-
quer processo de devir-menor, pelo contrário, não implica uma elevação ao
próximo estágio do sistema, nem uma evolução dos sujeitos compreendi-
dos pelo mesmo, mas uma rarefação das condições dadas e uma involução
dos sujeitos em causa.
As afirmações programáticas de Deleuze apontam precisamente
nessa direção: o devir-menor implica a descoberta de que todo o mundo
tem seu sul e seu terceiro mundo, que todo o mundo está constituído por
pontos de não-cultura e de subdesenvolvimento, isto é, que todo o mundo
está atravessado por linhas onde as representações cedem, a linguagem
escoa, as maiorias se desvanecem.
Nessa medida, por certo, o devir-menor enquanto potência políti-
ca específica pode aparecer como uma espécie de regressão (pelo menos
de acordo com os parâmetros da representação majoritária e da política
maior). Contudo, como assinalamos, devir-menor é um processo de criação,
antes de constituir uma regressão a um estado prévio, quer seja animal,
humano ou mítico. Trata-se da criação de novas formas de individuação, a
partir da dissolução das figuras maiores da representação e da libertação
das singularidades materiais e expressivas recobertas pelas mesmas.
O exemplo da literatura menor mostra que o papel revolucioná-
rio da escrita de Kafka – com todas suas variações animais, maquínicas e
inorgânicas – vai de mãos dadas com o empobrecimento da linguagem e
a renúncia à sua inscrição na história da literatura alemã. Kafka, segundo
Deleuze e Guattari, abdica de um lugar na linha que, a partir de Goethe,
articula a grande literatura, a consolidação da língua e a identidade alemã.
Kafka propõe uma saída para a expressão através de pontos de subde-
senvolvimento, de inumanidade, de involução, de não-cultura; pontos, nos
quais, por exemplo, um animal se conecta com a escrita. Essa é a chave das
linhas de fuga propostas por Kafka, em relação aos becos sem saída mate-
riais e expressivos, nos quais ele e o povo (que falta) se encontram presos.
Ao mesmo tempo, essa é razão pela qual Kafka fica fora da história (literá-
21
ria, mas não só), isto é, fora de qualquer linha de progresso ou evolução de
uma identidade maior (cultural, mas não só). (Não devemos esquecer, em
todo o caso, que o lugar de um judeu tcheco na linha de progresso desse
momento histórico específico não era lugar nenhum.)
Ainda ao nível de uma política (cultural) menor, vale lembrar que
Guattari sugeria um exemplo ilustrativo muito concreto: é o caso das rá-
dios livres nos anos 80, agenciamento onde a evolução tecnológica (em
particular a miniaturização dos emissores e a possibilidade de serem mon-
tados por aficionados), “coincidiu” com uma aspiração coletiva por novos
meios de expressão, num processo micro-político que, involuindo criati-
vamente, isto é, levando a rádio fora dos horizontes maiores de comu-
nicação (a comunicação de maiorias para maiorias), abriu novos campos
de possíveis para a expressão, a partilha, a subjetivação, etc. Evidente-
mente, essa involução (afastamento dos padrões instituídos de qualidade
técnica, limitação da potência dos transmissores e do alcance dos sinais,
redução numérica do público alvo) seria também o princípio da fugaci-
dade de muitas rádios piratas e o seu calcanhar de Aquiles (as novas leis
de radio-difusão apelariam a essas deficiências, nomeadamente, à reduzida
potência dos transmissores, para eliminá-las do mapa). (Mas não devemos
esquecer, igualmente aqui, que só conseguiram aparecer eventualmente no
mapa – nos interstícios de um mapa que não previa espaços de liberdade
semelhante – pela instrumentalização criativa dessas fraquezas.)
Outro exemplo dessas mutações objetivas e subjetivas, desencade-
adas por processos de devir-menor, são as comunidades que aparecem um
pouco por todas as partes nas décadas de sessenta e setenta, em conso-
nância com os novos géneros musicais, do rock ao punk – com todas as
inovações técnicas que estes géneros pressupunham, dos amplificadores
e sintetizadores aos ácidos, assim como com as mudanças nas condições
objetivas e subjetivas: baby-boom, estado de bem-estar, etc. Comunidades
hippies, por exemplo, que se afastando dos padrões majoritários de nível
de vida, levantam seus acampamentos no deserto, ou circulam pelas estra-
das afora, numa singular forma de nomadismo que torna a vida, de novo,
possível. Agenciamentos da vida individual e coletiva que voltam as cos-
tas ao sonho americano, e que nessa mesma medida são inaceitáveis para
uma maioria que entende a busca pela felicidade (the pursuit of happiness),
apenas sob a forma do progresso (inadequação em virtude da qual seriam
22
colocadas em causa as formas desenvolvidas de educação das crianças, as
práticas de cuidado de si e dos outros, etc.).
Por fim, e já nas fronteiras da macropolítica, numa aberta confronta-
ção com as políticas maiores hegemônicas, a guerrilha surge seguramente
como um dos casos com mais implicações desta política menor – caso que
Deleuze tematiza no seu ensaio sobre T. E. Lawrence. A guerrilha é, do
ponto de vista da ação política, mas também do trabalho social, um exem-
plo rico (complexo) de devir-menor. Em condições que tornam impossível
lutar em (por) territórios maiores, a guerra do espaço do reconhecimen-
to (projetos maiores de liberdade, igualdade ou consenso), a guerrilha se
adentra no deserto, na selva, ou nos bairros periféricos, onde articula de
facto, em condições inaceitáveis para a maioria, aquilo que reclama de iure
como seu direito.
É nesse sentido que a luta pelo reconhecimento dos povos origi-
nários de México e as aspirações de certos grupos marxistas entraram
num devir-menor (revolucionário) em 1994, na selva de Lacandona, a sul
de Oaxaca. Estrategicamente (provisoriamente), renunciando à inscrição
na história maior de México – onde não tinham lugar, nem representação;
onde não existiam sequer signos de uma vontade política confiável de mu-
dar esse estado de coisas –, esses grupos levaram a luta para um campo
enrarecido, onde os dispositivos maiores de poder manifestavam uma pre-
sença atenuada. Desse modo, foram capazes de intensificar o movimento,
conquistando, entre outras coisas, a autodeterminação, a criação de formas
singulares de administração e, quiçá mais importante, a emergência de
uma nova forma de subjetividade, de um novo tipo de consciência, associa-
da a um “novo” povo: não este ou aquele grupo étnico, não este ou aquele
partido de esquerda, mas os Zapatistas, enquanto agenciamento coletivo
de enunciação da parte dos sem-parte. Fazendo isso, todas essas pessoas
levantaram suas vozes e se apoderaram de suas vidas, muitas vezes por
primeira vez, sem a mediação do reconhecimento (é necessário, nesse sen-
tido, considerar as máscaras e o passa-montanhas, que desterritorializam
o rosto – já que qualquer um pode estar atrás).
Como se pode entender, de um ponto de vista maior, do ponto de
vista da classe média mexicana, e inclusive do ponto de vista da classe bai-
xa, que sonha ascender à classe média, esse devir-menor é incompreensí-
vel, impensável, uma impossibilidade, uma fantasia irracional: é vista como
23
uma involução. E eu estou de acordo: era incompreensível, era impensá-
vel, era inclusive uma impossibilidade; mas não era uma fantasia, porque,
enquanto involução criativa, abria uma brecha (linha de fuga), num beco
sem saída político, econômico e social (uma série de impossibilidades), e
conduzia todas essas pessoas para além da marginalização, da aculturação,
da aniquilação.
Talvez o pensamento crítico clássico pudesse argumentar que essas
minorias étnicas – e correspondentemente as mulheres, os jovens, os de-
sempregados, etc. – não se encontram em condições de renunciar às suas
lutas específicas pelo reconhecimento, por uma representação adequada ao
nível dos direitos. E esse é um problema importante, no sentido em que co-
loca a questão sobre a articulação possível entre políticas maiores e meno-
res. Porém, se o devir-menor é proposto como o princípio de uma política
alternativa, o é precisamente na medida em que as lutas por direitos ao ní-
vel da representação majoritária parecem predestinadas ao fracasso, con-
denadas a ser sistematicamente ignoradas, quando não traídas em nome
de uma representação estabelecida. É uma questão de prioridade. Afirmar
a ideia de devir-menor, como princípio de uma praxis política alternativa,
não significa abrir mão das lutas pelo reconhecimento de nossos direitos;
significa, simplesmente, pospor estrategicamente essa luta, envolvendo-
-nos num movimento não-representativo de individuação, procurando
construir de fato aquilo que reclamamos de direito; ainda que isso só seja
possível em espaços menores ou em condições menores, condições que são
indesejáveis, inaceitáveis, intoleráveis para as maiorias.
Com signos políticos incomensuráveis e em circunstâncias mui-
to diversas, acredito que foi um pathos desse tipo que definiu os poucos
grupos minoritários que mostraram alguma vitalidade política nos últi-
mos cinquenta anos; permitindo-lhes articular um território, agenciar um
povo, ou, simplesmente disciplinar um corpo capaz de forçar algum tipo de
negociação ao nível da política maior.
Evidentemente, os devires, como as linhas de fuga, não são neces-
sariamente revolucionários em si; uma linha de migração (subsariana ou
cubana) pode terminar na morte (balseiros), ou nas malhas de dispositivos
muito mais duros que os que deixa para trás (trabalho escravo). E, evi-
dentemente, os devires não conduzem automaticamente a uma revolução
social capaz de dar à luz uma sociedade, uma economia e uma cultura,
24
liberadas dos dispositivos de saber-poder próprios do capitalismo. Por fim,
não cabe comparar, segundo uma escala progressista, quais regimes são
mais duros ou mais toleráveis (quero dizer, é possível fazê-lo retrospec-
tivamente, mas não na hora de adotar uma linha de ação): “A capacidade
de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle, se decidem no
curso de cada tentativa”7.
O que importa é que, de repente, já não nos sentimos os mesmos
condenados; e um problema do qual ninguém via a solução, um problema,
no qual estávamos todos presos, subitamente deixa de existir, e nos per-
guntamos de que era que falávamos. De repente, estamos noutro mundo,
como dizia Péguy: os mesmos problemas já não se colocam – se colocarão
muitos outros, claro.
Por outra parte, não dispomos, nem de fato nem de direito, de ne-
nhum meio seguro para libertar e, em seguida, para preservar as linhas
de fuga subjacentes aos dispositivos de saber e de poder nos quais nos
encontramos comprometidos: “O que nos condena a uma perpétua ‘inquie-
tude’ (...) não sabemos como pode mudar tal grupo, como pode recair no
histórico”8. O devir-menor, entendido como linha de fuga ou como máqui-
na de guerra, não estabelece as bases de um programa político revolucio-
nário. Pelo contrário, o devir-menor se desenvolve justamente na direção
oposta às lógicas organizativas arborescentes dos movimentos políticos
tradicionais. Nesse sentido, Guattari dizia-nos que a procura de uma uni-
ficação demasiado grande, por parte das forças de resistência, não contri-
buiria senão para facilitar o trabalho de semiotização do capital9; e Deleuze
insistia que não existe algo como um governo de esquerda (há governos
mais ou menos receptivos às reclamações da esquerda, mas a esquerda não
tem nenhuma relação com a forma do Estado e as lógicas de governo).
Só nos resta, portanto, a noção de um pensamento político que, sem
ceder às demandas do poder, mas, ao mesmo tempo, sem aspirar à conquis-
ta do poder, abraça – para além do governo e da oposição – a vocação da
resistência. Isto é, um pensamento político trágico e, com isso, um sentido
a-histórico da luta. O que não significa uma chamada à desmobilização. O
devir-menor é algo mais que um conceito da ética, e Deleuze, em nenhum
25
momento, pensa em abandonar o terreno político, fechando-se numa posi-
ção inviolável, mas apenas ética, como sugere Philippe Mengue. Passar da
política maior (historicista) para uma política menor (não totalizável, ir-
resolúvel, infinita), certamente, traz para o primeiro plano questões com-
plexas ao redor da ética da luta; na medida em que essas questões éticas
não são resolvidas pela história (nem sequer por definição); mas implicam
um desenvolvimento político, além de serem indiscerníveis da política, en-
quanto estratégia de luta generalizada. O devir-menor não é da ordem da
ética nem da política. É, simultaneamente, uma questão que atravessa a
ética e a política, em seus sentidos maiores, problematizando as distinções
históricas (como privado e público, individual e coletivo); apaga-as por um
momento; dá lugar para novas distribuições do sensível e novos campos
de possíveis.
Em resumo, a adoção de um ethos militante não pode ser desligado
da praxis política associada e dos agenciamentos coletivos, que dão consis-
tência e efetividade a uma autêntica ética da resistência. Logo, a questão
seria: de que modo funcionam todas essas formas de resistência desatadas
por fenômenos de devir-menor? E qual é seu valor, não absolutamente;
mas em cada caso, em relação às condições materiais de impossibilidade
nas quais têm lugar?
Provavelmente, mais do que provavelmente, nunca nos tornaremos
maiores. Mas a menoridade pode ser uma potência política valiosa, se so-
mos capazes de transvalorar nossos ideais em filosofia política.
Como vimos, para Deleuze não é questão de devir-maior, de atingir
a maturidade, mas de devir-menor, como uma tribo devém nômade no
deserto, como um peão devém guerrilheiro na selva. Consequentemente,
a dialética muda de signo e o pensamento político encontra um papel sin-
gular, cada vez que é confrontado com a miséria, a opressão ou a injustiça.
Deleuze escreve: “Artaud dizia: escrever para os analfabetos, falar para os
afásicos, pensar para os acéfalos. Mas que significa ‘para’? Não é ‘dirigido
a...’, nem sequer ‘em lugar de...’. É ‘ante’. Trata-se de uma questão de de-
vir. O pensador não é acéfalo, afásico ou analfabeto, mas o devém. Devém
índio, não acaba de devir, talvez ‘para que’ o índio que é índio devenha ele
mesmo algo mais e se liberte da sua agonia”10.
26
Involução criadora que pode nos abrir para linhas de fuga, em
situações de asfixia política; nas quais, antes de progredir ou inscrever-se
num projeto maior, é necessário agenciar um novo espaço ou uma nova
sensibilidade para a ação e para o pensamento. Na convicção de que é pos-
sível, é desejável, é necessário agenciar uma potência singular ou uma for-
ça específica, antes de reclamar uma representação adequada. Na convic-
ção, quero dizer, de que é politicamente prioritário agenciar de facto aquilo
ao que reclamamos ter direito; mesmo quando não seja senão em espaços
reduzidos ou em condições inaceitáveis para o padrão majoritário. Entrar
em Damasco antes dos ingleses, como dizia Lawrence.
Porque não há política para o fim do mundo. Devir-menor não é
uma utopia, mas a possibilidade de alcançar uma linha de transformação
em situações históricas que fazem parecer qualquer mudança como impos-
sível. Devir-menor não é uma verdade política universal, mas apenas uma
estratégia singular não totalizável. Não responde à necessidade de inte-
grar todas as culturas, todas as formas de subjetividade e todas as línguas
num devir comum, mas apenas à necessidade estratégica de salvar uma
cultura da alienação, para permitir o florescimento de uma subjetividade,
para arrancar do silêncio uma língua. Não é uma solução para tudo nem
para todos (e essa é sua fraqueza), mas pode ser o único para alguns (e essa
é sua força). Não a arte (técnica) do possível, mas a arte (transformação) do
impossível.
O colapso de qualquer movimento é muito mais perigoso que o fra-
casso ou a recaída dos movimentos políticos históricos. Da mesma forma,
tanto no pensamento como na ação, é necessário continuar lutando, pro-
longar o movimento, de modo a relançar a expressão, para além das suas
determinações históricas ou institucionais; e impedir que, em nós, e na
gente, degenere o labor necessariamente paciente que dá forma à impaci-
ência da liberdade.
Ao contrário da pergunta recorrente de Lênin “O que fazer”?, a
interrogação crítica levantada por Deleuze e Guattari ainda está viva para
nós, e continua dando um sentido efetivo ao pensamento político, inde-
pendentemente das respostas particulares que as condições materiais, as
circunstâncias históricas e as vontades individuais, tornam possíveis.
Que devires nos atravessam hoje?
27
Referências
DELEUZE, Gilles; BENE, Carmelo. Superpositions. Paris: Éditions de Minuit, 1979.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Qu’est-ce que la philosophie? Paris: Éditions de
Minuit, 1991.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. L’Abécédaire de Gilles Deleuze, em Metropolis.
Paris: Arte (Canal de TV), 1995.
DELEUZE, Gilles. Pourparlers 1972-1990. Paris: Éditions de Minuit, 1990.
_____ . Deux régimes de fous: Textes et entretiens 1975-1995. Paris: Minuit, 2003.
_____ . L’île déserte et autres textes: Textes et entretiens 1953-1974. Paris: Minuit, 2002.
GUATTARI, Félix; STIVALE, Charles. Discussion with Felix Guattari. Detroit: Wayne
State University, 1985. Disponível em: webpages.ursinus.edu/rrichter/stivale.html.
QUERRIEN, Anne, “Esquizoanálisis, capitalismo y libertad. La larga marcha de los
desafiliados”. In GUATTARI. Plan sobre el planeta. Capitalismo mundial integrado y
revoluciones moleculares. (Trad. Raúl Sánchez Cedillo). Madrid: Traficantes de Sue-
ños, 2004.
28
Sobre a escrita (o escrever)
e o aprender (pela filosofia)
m ar Kohan
Walter O
11 Embora não entremos na questão, o “aprender pela filosofia”, a diferença do “aprender fi-
losofia” sugere que a filosofia a qual nos referimos no presente texto não é uma conteúdo a
ser aprendido mas algo que acompanha a aprendizagem. Seria algo assim como “aprender
através da filosofia”, ou “por meio dela”.
29
tal como é entendida por Sócrates; na segunda parte, detalharemos a con-
denação de Platão à escrita no Fedro, levando em consideração apontes
críticos de Jacques Derrida e Gilles Deleuze sobre esse relato, para esta-
belecer o que está em jogo nessa condenação; finalmente, relacionaremos
a condenação de Platão à escrita a um contexto mais amplo; veremos seus
efeitos pedagógicos e políticos e como põe Platão numa posição surpre-
endente em relação ao seu próprio mestre. Afinal, o que está em disputa
são formas diferentes de entender o aprender não só em relação aos rivais
mas dentro da própria filosofia. O que interessa não são os nomes em jogo,
mas um problema que é o nosso: para que escrever e educar em nome da
filosofia?
A apresentação do filósofo
30
De uma forma próxima a como é retratado por outros e por si mes-
mo, Sócrates retrata Eros no Banquete (203 ss.): daímon, um ser intermédio
que passa a vida inteira filosofando (philosophôn dià pantòs toû bíou, 203d),
nem mortal (ser humano), nem imortal (deus), feiticeiro terrível, bruxo e
sofista, (deinòs góes kaì pharmakeús kaì sophistés, 203d-e). Parece, sem dúvi-
da, um autorretrato: em muitas passagens dos Diálogos, Sócrates recebe
essas características, inclusive de Agatão no próprio Banquete (194a).
No Teeteto, Sócrates diz ter a mesma arte da sua mãe, a parteira Fe-
nareta, e também afirma que as parteiras, por meio de drogas (pharmakía,
149c) e poções, são capazes de provocar ou aliviar dores de parto, de parir
ou abortar partos difíceis. As parteiras são mulheres que pariram – não
poderiam ajudar a realizar algo que nunca experimentaram –, mas já não
podem mais parir, tornaram-se estéreis. O mesmo vale, diz Sócrates, para
a sua arte de dar à luz: ele mesmo já é estéril, com a diferença de que faz
os homens, e não as mulheres, dar à luz, examinando as almas, mas não os
corpos que engendram conhecimentos (150b). O mais importante da arte
de Sócrates é a sua capacidade, potência, para ser, de qualquer forma, uma
pedra de toque (basanízein dynatòn eînai pantì trópoi, 150c). Embora a forma
em que Platão descreva esse trabalho sobre o pensamento do jovem seja
muito próxima àquela do Fedro (Sócrates ponderaria se o jovem dá à luz
uma imagem – ou simulacro – e uma mentira, ou algo fecundo e verdadei-
ro, eídolon kaì pseudos…gónimon te kaì alethés, 150c), ele o faz inspirado pela
familiaridade com o phármakon, vinda de sua mãe. A familiaridade com o
phármakon, herdada de sua mãe parteira, é a condição que permite a Sócra-
tes desenvolver essa capacidade.
Como Derrida assinalara12, não há unicidade do phármakon. Ao con-
trário, ele é contraditório; seu sentido é impossível de ser fixado em um
dos contrários sem a presença do outro. Enquanto substância, é a anti-
-substância: o veneno é sempre remédio; a droga, sempre medicina; a vida,
sempre morte... Platão o confirma apresentando, no mesmo Fedro, o re-
médio (a dialética) como veneno (escrita, graphé). De modo que a proximi-
dade de Sócrates com o phármakon está também afetada por esse caráter
contraditório do phármakon, que lhe outorga tanto a possibilidade quanto
a impossibilidade de ser o que é. Essa proximidade parece também contagiar
31
o próprio Sócrates, impossível de ser fixada numa identidade sem contra-
dições. Contudo, o phármakon exige um andar mais atento. Vamos mais
devagar.
Abrimos o Fedro desde o início. O que encontramos? Sócrates e,
com ele, um enigma infinito, o da filosofia; ou melhor, o enigma de qual-
quer professor de filosofia, de todo educador filosofante: o que fazer em
nome de uma vida filosófica? Como, por que e com quais sentidos convi-
dar outros a essa vida? Com que direito? Com quais sentidos? O enigma
se mostra também sob a forma de uma ausência: encontramos Sócrates e
não encontramos Platão. Platão escreve, mas não se escreve. A ausência
não é ocasional: como sabemos, Platão só menciona a si mesmo umas pou-
cas vezes, na Apologia, para contar-se como um dos que contribuiria para
pagar uma eventual multa a favor de Sócrates; e no Fédon, para dizer que
estava doente e, portanto, ausente, na despedida do mestre. Fora dessas
passagens, sequer aparece mencionado nos Diálogos que ele próprio escre-
veu. Essa ausência marcou decisivamente à filosofia. O mestre, o primeiro
a inscrever a filosofia, como exercício da palavra com outros na pólis, não
escreve. Um discípulo o escreve, escondendo-se, por escrito, na máscara
do mestre.
Essa ausência mostra também o insuportável não lugar de todo
aprendiz de filosofia. Como se aprende a pensar? Qual relação estabelecer
com o mestre? O que aprender dele? O mestre infinito fala sem escrever e
o discípulo desobediente escreve essa ausência. O mestre não escreve e é
escrito por um discípulo que condena a escrita; e, por escrito, escreve a sua
filosofia, a partir da filosofia do mestre. Repetição e diferença indecifráveis.
Assim é a filosofia, uma dupla insuportável.
Abrimos o Fedro então e, já no início, encontramos esse enigma
da filosofia, um pensamento a ser elaborado e reelaborado até o infinito,
um diálogo inverossímil, um mistério perene: o do próprio pensamento,
em diálogo consigo mesmo, ao mesmo tempo impossível de elucidar, mas
também de iludir. Encontramos uma virtualidade que exige ser sempre
desdobrada, atualizada, estendida nas mais diversas dimensões, inesgotá-
vel, irresolúvel, louca.
Lendo o Fedro, nos dispomos a iniciar mais uma dobra desse movi-
mento, da infinita abertura do pensamento inaugurado por Sócrates e Pla-
tão, essa dupla inseparável. Repetimos o gesto de tantos. Não sabemos a
32
intensidade de nossa marca, antes de escrevê-la. No momento atual desse
movimento, o phármakon da escrita está dentro da própria filosofia.
Mais uma vez, é preciso atenuar a velocidade. Voltamos a olhar para
o Fedro. O que encontramos? Sócrates encontra Fedro, que está vindo da
casa de Lísias, o mais hábil em escrever discursos entre os atenienses. Fe-
dro leva consigo um phármakon, discursos en papiro sob o manto e, com
ele, como um ímã, arrasta Sócrates até os confins da pólis. Fedro e Sócrates
andam, caminham, estão em pé, em movimento. Já o afirmamos: a filosofia
é uma conversa infinita. Buscam, conversando, um lugar mais propício
para sentir o discurso de Lísias. Sócrates está perdido. Descoberto o phár-
makon, faria qualquer coisa para ouvi-lo. O que encontramos no início, en-
tão, é o desejo do filósofo de escutar de alguém o que um terceiro, afamado
conhecedor, manifesta saber sobre certo saber.
Lísias tem discursado, diante de Fedro e outros, acerca do amor
(erotikòs), de uma forma que o próprio Fedro não sabe muito bem como
explicar. O tema não é pouco significativo: as coisas do amor são uma das
poucas, se não a única coisa de que Sócrates reconhece saber nos Diálo-
gos (“nada diferente afirmo saber que as coisas do amor” – oudén phemi
állo epístàsthai è tà erotiká, Banquete 177d). Também diz de quem aprendeu
aquilo que sabe do amor, nesse mesmo Diálogo: de uma mulher, sacerdo-
tisa, estrangeira, Diotima de Mantinéia (ibid., 201d). O filósofo só sabe o
que sabe de uma dupla forma de exterioridade; e sabe um saber de relação,
de afeto, de paixão.
De modo que o mais valioso dos escritores proferiu um discurso
sobre o único saber que o filósofo admite saber, o saber que lhe é mais pró-
prio, um saber que o leva à loucura. Está aí a força do phármakon. Próximo
a ele, Sócrates perde-se a si mesmo: não pode não querer ouvi-lo. Está tão
fora de si, que seria capaz de fazer qualquer coisa, se Fedro não aceitasse
contar-lhe o que ouviu de Lísias. Assim, começa então a filósofo: buscando,
com outros, um lugar, para ouvir o que outros dizem saber sobre o saber
que lhe é mais próprio, sobre esse saber sem o qual ninguém, que vive se-
gundo a filosofia, poderia viver: o amor, um saber de relação, de sensação,
de paixão, de encontro com outros corpos e outras almas. Começa assim a
busca de um filósofo: com um desejo, um saber e um caminho a ser percor-
rido com outro, sobre o que lhe é mais vital e, ao mesmo tempo, que coloca
a sua vida em questão.
33
O filósofo não conversa com qualquer um. O interlocutor não é um
desconhecido. Ao contrário, Sócrates manifesta conhecer Fedro de uma
forma tão íntima, que não conhecê-lo significaria também esquecer-se de
si mesmo (Fedro 228a). Não é um detalhe para quem, como Sócrates, se
mostra sempre obsessivamente preocupado em conhecer-se a si mesmo. A
relação entre conhecimento e esquecimento de si também aparece, forte-
mente, num momento crucial, no início da Apologia de Sócrates (17a); quan-
do, estando sua vida em jogo, e depois de ter ouvido a apresentação das
acusações contra ele, Sócrates manifesta que elas foram tão convincentes
que, mesmo afastados da verdade, quase conseguiram que ele se esquecera
de si mesmo. O “quase” marca o risco de uma morte, talvez mais vital para
o filósofo que aquela que está sendo processada. Nos dois casos, o risco de
se esquecer de si próprio aparece perante o poder da palavra proferida pelo
outro da filosofia, o retórico. Contudo, no início do Fedro, se conhecer a si
próprio supõe conhecer o outro amigo da filosofia com quem se conversa
e ambos supõem conhecimentos, nada mais são do que a condição para
ouvir o discurso perigoso do outro da filosofia. Não é apenas Sócrates que
conhece Fedro. Também Fedro conhece Sócrates, tanto que ele vai dizer
palavras muito semelhantes (236c) a Sócrates logo depois de ler o discurso
de Lísias; quando aquele ameaça não querer dizer o que pensa ao respeito.
A filosofia é uma conversa entre amigos.
Ainda estamos no início do Fedro e não estão dadas todas as condi-
ções para começar a filosofar. Não são poucas. É preciso considerar muitas
outras coisas: a temperatura externa e a do corpo, o ar que se respira, a
tranquilidade do ambiente que permita não ser interrompido, um som de
ambiente agradável, música para os ouvidos. E também, e sobretudo, é
necessário tempo. Há que se dispor de tempo para filosofar. Tempo livre,
daquele que não pode ser medido pelos cronômetros ou pelos relógios,
tempo de inícios sem fim, sem pressas, sem condições, a não ser aquelas
emanadas da própria conversa. Tempo para conversar, sobre o que não é
urgente e produtivo, tempo compartilhado, comum, tempo de amizade,
tempo de verdade. Fedro e Sócrates dispõem desse tempo e encontram
também um lugar apropriado para conversar.
Uma vez estabelecidas as condições da conversa, o filosofar começa
com uma relação a si. Antes de ocupar-se do saber do outro, é preciso ex-
plicitar um saber sobre si. Sócrates afirma outra vez seu lugar paradoxal.
34
Manifesta-se incapaz de se conhecer a si próprio, algumas linhas depois,
apenas, de ter afirmado que não conhecer Fedro significaria se esquecer de
si próprio. Porém, como é possível que se esqueça do que não se conhece?
Só resulta possível para alguém tão próximo do phármakon como Sócrates.
Ele parece enfrentar exigências opostas: por um lado, se reconhecesse se
conhecer a si mesmo, então já não poderia dedicar sua vida a se investigar
a si próprio, como afirma no Fedro e em tantos outros lugares, pois, para
que iria investigar o que já conhece? Por outro, se não se conhece, também
não poderia se dedicar a essa vida, pois é esse conhecimento que justifica
e outorga sentido a uma vida de busca de si. De maneira que Sócrates pa-
rece embaraçado: conhecer-se e desconhecer-se são ambos impossíveis e
necessários. Como o phármakon, como a filosofia na pólis, como a única vida
que faz sentido de ser vivida por Sócrates, a que o leva à morte... Talvez
por isso Fedro descreve Sócrates como o mais extraordinário, sem lugar
e estranho (atopótatós, 230c) de todos os atenienses; alguém que, embora
nunca extrapole os limites da cidade parece mais um estrangeiro sendo
guiado (xenagouménoi, 230c), do que alguém natural de Atenas. Sócrates
complementa esta apresentação: reivindica-se como alguém amante de
aprender, mais interessado em aprender dos homens da cidade do que das
árvores e dos campos.
A condenação à escrita
35
não corresponde do que a quem ama, trata-se de deliberar primeiramente
sobre a essência do amor, sobre o que é o amor.
Segue-se um relato, do qual, depois, o próprio Sócrates se desculpa e
emenda a cara descoberta com outro relato muito mais poético, que acaba
com um exultante elogio a Éros. Assim, a filosofia se mostra como uma sa-
ber de e sobre o amor. Em seguida, Lísias é criticado; mas a questão não é
apenas Lísias, senão todos os autores de discursos escritos, os logógrafos.
Sócrates o diz claramente: não é vergonhoso escrever, mas sim escrever
mal e sem beleza (258d). É preciso então examinar o que significa escrever
bem. Antes, Sócrates contará o mito das cigarras, discutirá a relação entre
retórica e verdade e analisará em detalhe o discurso de Lísias, através de
outros relatos. Também falará outra vez de si: apresenta-se como amante
das divisões e das reuniões, que lhe permitem falar e pensar. Chama-se
indiretamente de “dialético, capaz de olhar para o uno e o múltiplo” (266b).
No final do diálogo, quando já considerou suficientemente a arte e
a falta de arte nos discursos, Sócrates propõe a Fedro considerar se é con-
veniente ou não conveniente escrever (274b). Narra então um relato que
diz ter ouvido dos antigos e deixa a eles saber sobre sua verdade. O relato
conta que uma divindade egípcia, Theuth, inventor de coisas, tais como
os números, a aritmética, a geometria e a astronomia, o jogo do gamão e
os dados, apresentou ao Rei Thamuz os caracteres da escrita (grámmata,
274d), enquanto um aprendizado que tornaria os egípcios mais sábios e
com mais memória; e, por isso, deveria ser repassado a todos eles. Ele afir-
ma ter descoberto uma droga (phármakon, 274e) para a memória e o saber.
Contudo, o rei questiona a descoberta da divindade. Ele afirma que
a escrita teria o efeito contrário, provocando o esquecimento nas almas
dos que a aprendem; pois, por confiarem em caracteres externos, descuida-
riam sua memória. Segundo Thamuz, Theuth teria descoberto uma droga
(phármakon, 275a) para a rememoração (hupomnéseos) e não para a memória
(mnéme). O que a escrita oferece aos que a aprendem é aparência de saber
e não o verdadeiro saber.
Eis a tremenda invenção platônica, seu mito primordial, a divisão
do ser em ser em si e ser derivado, em modelo e simulacro, original e có-
pia. Uma série de duplicações acompanha o movimento inicial no saber,
na moral, na política… Em todas elas, a inferioridade do segundo termo
diante do primeiro é categórica, fundadora, radical. As consequências são
36
impressionantes: há que conhecer, proteger, admirar as primeiras tanto
quanto desapreciar, controlar e combater as segundas.
Contudo, o filósofo, querendo ou não, deixa uma deixa para a escri-
ta, por escrito. Com efeito, Platão apresenta uma brecha, mesmo quando
sinaliza sua aparente negatividade da escrita. Por um lado, faz notar várias
fraquezas, além daquela já apontada. Dentre elas, sua dependência: quan-
do é ofendida, a escrita precisa da ajuda de seu pai, pois ela é incapaz de
defender-se a si mesma e por si mesma (275e). Alem disso, ela se oferece
indiscriminadamente aos seus leitores sem diferenciar entre os que são
capazes de entendê-la e os que não o são. Finalmente, a escrita parece viva,
mas, quando é interrogada, permanece em silêncio (275d), dizendo sempre
uma e a mesma coisa.
Assim, curiosamente, o questionado phármakon não é pura imper-
feição. Platão afirma que ele é sempre um e o mesmo; uma das notas mais
destacadas das realidades supremas, em si e por si mesma, uma marca de
superioridade e perfeição, pois não mudam a diferença das coisas que se
geram e se corrompem. Deixa entrever, dessa forma, sua natureza ambi-
valente, incontrolável, o caráter titânico e provavelmente infrutuoso que
terá a luta por extirpá-lo do ser.
Mais ainda, o problema é de família e a dialética não terá um traba-
lho fácil com sua meia irmã ilegítima (276a). Efetivamente, a escrita não é
apenas exterioridade. Pelo menos como metáfora, sua irmã legítima rece-
be dela seu nome, ela é também chamada de escrita. Vingança da escrita,
contragolpe do phármakon. Platão parece ter caído em sua própria loucura:
a dialética é chamada de escrita da alma: o modelo, original, toma o seu
nome emprestado da cópia, do simulacro (eídolon, 276a)! Não é isso, pelo
menos, não só: a cópia está encarnada no original, em seu nome. Como
assinala Deleuze13, a duplicação está seguida de um julgamento moral: as
imagens dividem-se em bem fundadas e bastardas, e os pretendentes, em
legítimos e ilegítimos. Há que se diferenciar moralmente o mundo surgido
da diferença. Em qualquer caso, com esse gesto, a batalha parece perdida
antes de começar e, justamente, perdida nas mãos do inferior; pois, desse
modo, confirma-se a antecedência da diferença em relação à unidade. O ser
é diferença, mesmo que isso pese a Platão.
37
Platão sonharia, afirma Derrida, com uma memória sem suporte,
sem signo, sem suplemento (ibid., p.56), absolutamente dona de suas recor-
dações e da sua atividade de recordar. Na perspectiva platônica, a escrita,
o suplemento, o apoio à memória, introduz uma fissura no ser; a de um ser
híbrido, uma cópia, que não pode ser pensado segundo a lógica binária do
ser ou não-ser, pois ela é e não é ao mesmo tempo. A escrita introduz uma
rachadura na inteligibilidade do que é, um desdobramento desnecessário
e perigoso da voz, um sintoma externo e debilitado da vitalidade da alma,
uma droga (phármakon) sedutora, que debilita a fortaleza e a integridade da
memória e os significados que nela habitam. O lógos, como ser vivo, sofre a
invasão externa de um parasita, de um meio-irmão órfão, de uma sobra, de
um acréscimo que não faz outra coisa senão corroê-lo. É preciso expulsar
esse suplemento indesejável, devolvê-lo ao seu lugar, extirpar o parasita, o
filho ilegítimo, para limpar a família. A dialética é o caminho platônico da
cura. Discurso vivo e animado, que se escreve na alma de quem aprende,
é capaz de defender-se a si mesma e sabe falar ou calar quando necessário.
Frente à dialética, a escrita é tal como uma criança órfã: sofre os efeitos do
abandono quando seu pai-escritor não está próximo.
Por que Platão critica tão ferozmente a escrita por escrito? Derrida
tem a sua hipótese: a escrita deve servir para expurgar-se a si mesma; o
lógos deve ser curado do parasita da escrita... por escrito. Esta é a ousadia
e o risco de Platão; ousadia filosófica, pedagógica e epistemológica, pois
não há ciência, epistéme do phármakon; sua essência é não ter uma essência
estável, mas é “o movimento, o lugar e o jogo (a produção) da diferença”.14
O phármakon é, por um lado, uma reserva inescrutável – “fundo sem fun-
do” – da diferença, que “produz” todas as diferenças, o diferir da diferença.
Assim, Platão bebe do seu próprio veneno: as oposições do platonis-
mo são derivadas de uma escrita – phármakon anterior, primeira (“arqui-
-escrita”). A escrita é o “jogo do outro no ser”15. Platão escreve, porque
o ser não pode ser uno, porque o ser não é presença plena e absoluta.
Escreve, porque o ser só pode ser desdobrando-se, repetindo-se no que
não é, no simulacro, inscrevendo-se na estrutura da repetição suplementar
de uma unidade impossível. Só há ser – e verdade – porque há diferença e
repetição.
14 DERRIDA, 1991, p.74.
15 Idem, 1991, p.118.
38
A escrita e o aprender (pela filosofia)
39
de saber qual caminho tomar (euporôn). A contraposição ocorre entre duas
eventuais posições de Sócrates, dadas respectivamente pelos prefixos eu
(bem, bom) e a (ausência, carência, negatividade), perante a mesma forma
póros, que indica movimento, caminho, deslocamento. Sócrates afirma que
aturde os outros só porque ele está mais aturdido que ninguém, porque o
seu saber nada vale, assim como nada valem os saberes dos outros.
Lembremos a pergunta inicial: é possível ensinar a virtude ou exce-
lência? Eis o que o educador Sócrates pensa: ensinar a virtude ou excelência
é ensinar que não se sabe o que ela é; não há virtude ou excelência a ensinar,
a não ser uma relação inquieta em relação ao saber; uma perturbação com
o que se sabe, uma mania erótica por buscar saber, sem nunca de fato saber
nada a não ser esse não saber. Só a partir de estar problematizado, um educa-
dor pode ajudar os outros a se problematizar. Só um virtuoso pode provocar
a virtude. Virtuoso é aquele que não sabe e não se ilude quanto a seu não
saber, alguém que não sabe o bom caminho; mas que está sempre à busca
do bom caminho, sem jamais possuí-lo. Assim, na perspectiva socrática, só
é possível aprender a virtude pelo filosofar. Só alguém muito aturdido pelo
perguntar filosofante, o que examine e coloque em questão por que vivemos
a vida que vivemos, pode provocar, nos outros, esse aturdimento. Por isso
Sócrates nada escreveu, por que não tinha para ensinar nada fixo que pudes-
se ser escrito. Como escrever uma paixão, uma relação ao saber, um estar
sempre incerto em relação ao caminho a andar, uma forma de se examinar a
se mesmo, como modo de viver a própria vida?
Porém, pôr em questão o que se pensa pode imobilizar o pensamen-
to. Isso acontece com o paradoxo do aprender, compartilhado por Sócrates
e seus rivais. Aprender parece impossível, pois não se poderia aprender,
se já se sabe, mas, também, se não se sabe. Ninguém aprenderia o que já
sabe, pois se já o sabe, não há nada a aprender; mas também não poderia
aprender o que não sabe, pois, como reconhecê-lo, se não o sabe? Mênon
quer saber como sair da aporia. Sócrates o ajuda, mas não o ajuda como um
leitor da Apologia esperaria, com seu saber de não saber. Nesse caso, Pla-
tão coloca na boca de Sócrates uma teoria tomada de Píndaro e de outros
poetas e homens religiosos, segundo a qual a alma é imortal, e investigar e
aprender são totalmente uma reminiscência (Mênon, 81d).
Mênon pede a Sócrates que lhe ensine como é essa teoria. Platão se
diverte e faz Sócrates responder: “Agora, tu me perguntas se eu te posso
40
ensinar, a mim que afirmo que o ensino não é senão reminiscência” (82a).
Sócrates pede a Mênon que traga um servente (um escravo não adquiri-
do, mas criado na própria casa desde o seu nascimento), que fale grego,
para mostrar como de fato ele nada ensina. No transcorrer da conversa,
o escravo passa de uma condição de estar certo de um falso saber a uma
perplexidade, que o leva a querer aprender aquilo que reconheceu como
problema; em resultado, aprende um conteúdo novo, matemático, um saber
diferente que, na hipótese de Sócrates, ele já sabia, mas não recordava. A
conclusão de Sócrates é: “Assim, pois, sem que ninguém lhe tenha ensina-
do, mas porque lhe perguntaram o que ele sabe, ele mesmo, por si mesmo,
recobrou o saber” (Mênon, 85d).
Poderíamos questionar se a conclusão é legítima ou não; se de fato
ninguém lhe ensinou e se o servidor aprende o que ele sabe ou aquilo que
Sócrates sabe. Também poderíamos questionar que outras coisas além do
saber matemático em questão ele aprende no diálogo com Sócrates. Porém,
deixamos isso para outra oportunidade e ficamos por enquanto com a his-
tória platônica. O que nos interessa é mostrar que, para Platão, aprender
significa lembrar; e ensinar significa fazer lembrar. Em outras palavras,
Platão faz Sócrates resolver a aporia, do lado do saber, com a ajuda da me-
mória: só se pode aprender o que já se sabe, porque esse saber está esque-
cido. Só se pode ensinar o saber que o outro já sabe, fazendo-o lembrar do
que já sabe. Eis a saída platônica do paradoxo: aprender é reencontrar-se
através de um mestre com um saber que, esquecido, já se possuía. Assim,
no estado deteriorado das coisas da pólis, para Platão, aprender se torna
não apenas possível, mas necessário, imprescindível, para encontrar o sa-
ber perdido que ajuda o que é a se tornar o que deve ser.
No exercício com Mênon, Sócrates não escreve, mas desenha uma
figura no chão, da qual pede ao servidor uma proporção. É interessante
que ele, que não escreve e critica à escrita, precise de uma imagem sen-
sível, inscrita na terra, para ajudar o outro a lembrar seu saber. Talvez
esteja sinalizando um limite, uma condição, um risco. Em qualquer caso,
se é verdade que a escrita debilita a memória, então, com ela, o aprender
está em risco. Sem memória não há aprendizagem. Sem aprendizagem não
há possibilidade de sair do que se é e encontrar o que se deve ser, o que
verdadeiramente se é, de transformar o modo em que se vive para viver
uma vida justa, bela, boa. A escrita compromete a memória e, com ela, a
41
aprendizagem necessária para as aspirações platônicas de formar os jovens
para uma pólis mais justa, bela e verdadeira.
A desqualificação da escrita no Fedro ganha novas dimensões. O em-
bate é vital. A crítica à escrita pressupõe um campo de batalha pedagógico
e político na formação dos jovens atenienses. Curiosamente, o adversário
de Platão é também o seu mestre; o qual, vimos, ocupa uma posição que
contém não só a diferença, mas também a tensão, o paradoxo, a contradi-
ção. Percebemos isso na primeira seção do trabalho, na apresentação que
Sócrates faz de si mesmo em diversos diálogos. Assim, o embate de Platão
contra a escrita não é apenas um embate contra aqueles que afirmam saber
o que é virtude e como ensiná-la; mas, contra o próprio mestre que afirma
não saber o que é a virtude e não poder ensiná-la.
Derrida16sugere algo interessante nesse sentido: é verdade que Pla-
tão, condenando a escrita, estaria condenando os que acusaram Sócrates
por escrito. Porém, estaria também condenando a própria posição de Só-
crates, um modo de exercer uma vida filosófica em relação com a vida
política, uma relação passiva e estéril na pólis, como a que ele mesmo relata
na citado passagem do Teeteto e que outros personagens também criticam
nos Diálogos, como Calicles no Górgias (484c) e Adimanto na República
(VI 487c-d). A condenação à escrita teria o duplo sentido de condenar os
acusadores de seu mestre, mas também a posição dele como filósofo, como
alguém que educou em nome da filosofia, sem ensinar; mas provocando
aprendizagens de consequências políticas desaprovadas pelo discípulo que
o escreveu.
Afinal, essa disputa seria sobre o valor político de um aprender pela
filosofia, de uma vida filosófica. Há duas filosofias enfrentadas: a filoso-
fia como uma forma de aprender a colocar em questão os saberes; contra
outra filosofia, como forma de saber afirmativo imprescindível para viver
uma vida bela, justa e verdadeira. A filosofia como questionamento da po-
lítica instituída frente à filosofia como afirmação do saber normativo para
a pólis. A posição estrangeira e atópica do filósofo descrita no início do
Fedro seria impotente, na visão platônica, para encontrar a positividade
política que transforme o estado de coisas. Platão parece não estar dispos-
to a aceitar essa posição e por isso a escrita (?!) dos Diálogos, a fundação da
42
Academia, as viagens à Sicilia. Considera preciso afirmar uma política para
a filosofia muito diferente daquela aprendida com o mestre.
Contudo, a batalha também ali está perdida antes de ser começa-
da. A filosofia, como phármakon, resiste a toda captura. Não há forma de
capturar o pensamento na unidade. A pretensão política de afirmar um
pensamento unitário fracassa uma e outra vez. A diferença não é apenas
primeira no ser, mas também na política e no próprio pensamento. Existe
um Sócrates escondido em cada educador platônico. Como um estrangei-
ro, sorri perante as pretensões formativas da instituição pedagógica da
filosofia. Oferece o phármakon da pergunta, do phílos, da diferença. Não
sabe o que significam aprender, ensinar, escrever. Não ensina, mas provoca
aprenderes. Não escreve, mas gera escritas. Não sabe outra coisa, a não ser
o valor do não-saber, da diferença, para uma vida que mereça a pena ser
vivida. Para isso educa. Para que diferença possa ser aprendida. E escrita.
Referências
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tions de Minuit, 1995. [DELEUZE, Gilles. “Platão e o simulacro“. In_____. Lógica do
sentido. (Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes). São Paulo: Perspectiva, 2000.]
DERRIDA, Jacques. “La pharmacie de Platon”. In: PLATON, Phèdre (Trad. L. Bris-
son). Paris: GF- Flammarion, 1968/2000, p.255-403. [DERRIDA, Jacques. A Farmá-
cia de Platão. (Trad. Rogério Costa). São Paulo: Iluminuras, 1991].
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Calmann-Lévy, 1997. [DERRIDA, Jacques. Da Hospitalidade: Anne Dufourmantelle
convida Jacques Derrida. (Trad. Antonio Romane). São Paulo: Escuta, 2003.]
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LIDDELL, Henry, SCOTT, Robert. A Greek English Lexicon. Oxford: Clarendon Press,
1966.
PLATÃO, Diálogos. (Trad. Carlos Alberto Nunes). Belém: Editora da UFPA, 2003.
43
Estudos em torno da busca de um começo
para pensar: do poderoso Eu ao “impoder”
essencial do pensamento
euser
ria Dreher H
Ester Ma
45
Em busca de um começo absoluto:
as tentativas de Descartes, Kant, Fichte, Hegel e Feuerbach
18 DESCARTES, 1979.
19 DELEUZE, 1988, p.218.
20 Ibidem.
21 DELEUZE, 1978, p.34. Ao apresentar as aproximações e distanciamentos entre as filosofias
de Descartes e Kant, Deleuze afirmará que, na medida em que, para Descartes, não havia mais
problemas que exigiam novas criações conceituais, era hora de um novo filósofo aparecer,
pois, “quando um filósofo não tem problemas está por chegar o filósofo seguinte” (Idem, p.43).
46
pensa; no entanto, Kant22 aparece e “corrige” Descartes, adiciona outro
componente no conceito de “eu penso”: a forma do tempo, enquanto forma
de interioridade (com três componentes: sucessão, simultaneidade e perma-
nência), pois é somente no tempo que minha existência indeterminada se
torna determinável23. Assim, o que Kant faz é substituir o eu substancial
cartesiano pelo eu profundamente rachado pela linha do tempo, isto é, por
um eu que só se determina empiricamente24. Para alcançar tal operação,
Kant agiu como um grande explorador ao “descobrir” o domínio transcen-
dental, um subterrâneo deste mundo, que condicionaria toda a experiência
possível, uma vez que determinaria o que é de direito (quid juris) e o que
é de fato (quid facti), que efetivaria a repartição entre o puro ou transcen-
dental, e o empírico. Nessa repartição, determinou o a priori e o a posteriori:
separando, assim, o que independe da experiência e que é, por isso, neces-
sário e universal, posto que aquilo que aparece, o a posteriori, é dado na ex-
periência, é fenômeno particular e contingente. Tal separação, entretanto
não é absoluta, uma vez que o a priori é condição do a posteriori, ainda que
aquele seja independente da experiência ele fundamenta os objetos desta,
ou seja, o universal e necessário – que, para Kant, são as categorias que
funcionam como predicados universais condicionadores de toda experiên-
cia possível25 – se dizem das condições dos objetos da experiência. Nessa
22 KANT, 1985, B152 a B158.
23 Nas palavras de Kant (1985, B157 e B158): “Ora, como para o conhecimento de nós próprios,
além do ato do pensamento que leva à unidade da apercepção o diverso de toda intuição pos-
sível, se requer uma espécie determinada de intuição, pela qual é dado esse diverso, a minha
própria existência não é, sem dúvida um fenômeno (e muito menos simples aparência), mas a
determinação da minha existência só pode fazer-se, de acordo com a forma do sentido interno
[o tempo], pela maneira peculiar em que é dado, na intuição interna, o diverso que eu ligo;
sendo assim, não tenho conhecimento de mim tal como sou, mas apenas tal como apareço a mim
mesmo”.
24 Cf. DELEUZE, 1988, p.226.
25 Há, disponíveis na internet, algumas aulas de Deleuze (1978) acerca da filosofia de Kant,
especificamente sobre “síntese e tempo”. Na primeira delas, Deleuze faz a distinção entre o a
priori e o a posteriori, e apresenta, detalhadamente a tábua das categorias. Na segunda aula, o
conceito de tempo inaugurado por Kant é tematizado a partir de vários ângulos, com exem-
plos trazidos da literatura e da poesia, os mesmos que serão utilizados no texto Sobre quatro
fórmulas poéticas que poderiam resumir a Filosofia Kantiana (In. DELEUZE, 1997). Na terceira
aula Deleuze explicita as relações entre Descartes e Kant, no empreendimento comum de
determinar o começo em Filosofia e retorna à introdução do tempo no “eu penso” operada
por Kant. Interessante notar ainda ao longo dessas aulas, além do conteúdo constituinte da
Filosofia de Kant apresentado pelo professor Deleuze, os procedimentos utilizados por ele
para mostrar como funciona a “espécie de máquina de pensar” que é Kant, encorajando os
estudantes a resistirem a “atmosfera excessiva” dessa máquina, dando importância não ex-
clusivamente para a compreensão dos seus conceitos, mas também para “tomar o ritmo desse
47
exploração, e no esforço de repartição entre as condições e os fenômenos,
Kant cria a noção de “sujeito transcendental”, assegurando uma promoção
do sujeito e, ao mesmo tempo, uma duplicação dele: → promoção porque
em Kant o sujeito constitui as próprias condições de possibilidade da apa-
rição, ou seja, ele não é unicamente responsável pelas limitações e ilusões
da aparência; → duplicação porque distinguirá dois sentidos de “eu”: há, de
um lado, um sujeito que está subordinado às aparências e que cai nas ilu-
sões sensíveis, o “sujeito empírico”, o eu fenomenal, o único que podemos
conhecer; de outro, há um sujeito que não se reduz a empiria, que é, por
sua vez, a unidade de todas as condições sob as quais uma coisa aparece a
cada um dos sujeitos empíricos, daí este ser denominado “sujeito transcen-
dental”. Eis, de modo sumaríssimo, o começo kantiano: tudo o que aparece
a um sujeito ou a um eu empírico, se dá sob as condições do espaço e do
tempo (as formas puras da intuição que são, por sua vez, as formas de re-
cepção do que aparece) e das categorias (formas de representação do que
aparece26); ambas as condições – uma irredutível à outra – são as formas
de toda experiência possível, as dimensões do sujeito transcendental. De-
leuze compreende que, a fim de determinar as estruturas transcendentais
do pensamento puro, entretanto, Kant decalcou-as sobre atos empíricos de
uma consciência psicológica, isto porque ele partiu do empírico para che-
gar ao puro, fazendo deste o efeito daquele – como num passe de mágica,
operou pelo método do decalque –, não conseguindo, portanto, manter-se
no nível de sua própria exigência: conduzir a determinação do pensamento
puro no plano de direito (quid juris)27.
homem, desse escritor, desse filósofo”. Procedimentos marcados por questões e exemplos
corriqueiros que ilustram o seu esforço em mostrar o quanto a Filosofia é concreta, uma
vez que ela é problema e criação de conceitos e que cabe ao professor de Filosofia ser mais
claro do que o próprio filósofo ao evidenciar os problemas e explicar seus conceitos – usando
exemplos que não estão no filósofo –, uma vez que o próprio filósofo tem que fazer outra
coisa: criar conceitos para responder os seus problemas – concepção defendida por ele no
Abecedário, em H de História da Filosofia e em P de Professor (2001). Nessas aulas, é possível
perceber o sentido da afirmação deleuziana (em P, do Abecedário) de que para dar uma aula é
preciso tornar o assunto que se fala fascinante, eis o que ele faz com Kant.
26 Kant cria uma tábua de doze categorias, composta por quatro classes de conceitos do entendi-
mento, sempre divididas em grupos de três categorias, sendo que a terceira delas, em todas as
classes, é resultado da ligação da segunda com a primeira da sua classe. As categorias são as
seguintes: da quantidade – unidade, pluralidade e totalidade; da qualidade – realidade, nega-
ção e limitação; da relação – substância, causa e reciprocidade; da modalidade – possibilidade/
impossibilidade, existência/não-existência e necessidade/contingência (1985, “Analítica dos
conceitos”, §10).
27 DELEUZE (1988, p.224; p.236) percebe esse método do decalque operado por Kant na pri-
48
meira edição da Crítica da razão pura (1985, A p.99 ss.) em “Dos princípios a priori da pos-
sibilidade da experiência” – sessão suprimida na segunda edição. A fim de tornar-se com-
preensível tal operação, parece pertinente apresentar as partes do texto kantiano, por mais
extensas que sejam, em que o decalcamento das estruturas transcendentais se efetiva sobre
atos empíricos da consciência psicológica, até porque, na edição brasileira traduzida por Vale-
rio Rohden, as variantes da primeira edição não foram incluídas. O desconhecimento dessa
passagem, eliminada pelo próprio Kant, torna obscura a interpretação deleuziana acerca dos
procedimentos de decalque kantianos. Os grifos da citação que segue são nossos, destacam,
exatamente, a operação de decalque das estruturas transcendentais sobre os atos empíricos
de uma consciência psicológica: “Da síntese da apreensão na intuição: Venham as nossas
representações de onde vierem, sejam produzidas pela influência de coisas externas ou pro-
venientes de causas internas, possam formar-se a priori ou empiricamente, como fenômenos,
pertencem, contudo, como modificações do espírito, ao sentido interno e, como tais, todos
os nossos conhecimentos estão, em última análise, submetidos à condição formal do sentido
interno, a saber, ao tempo, no qual devem ser conjuntamente ordenados, ligados e postos
em relação. É esta uma observação geral que se deve pôr absolutamente, como fundamento,
em tudo o que vai seguir-se [é esse um dos momentos da Crítica em que podemos ver o “Eu
profundamente rachado pela forma pura do tempo”, a qual Deleuze sempre enfatiza ao tratar
de Kant]. Toda a intuição contém em si um diverso que, porém, não teria sido representado
como tal, se o espírito não distinguisse o tempo na série das impressões sucessivas, pois,
como encerrada num momento, nunca pode cada representação ser algo diferente da unidade
absoluta. Ora, para que deste diverso surja a unidade da intuição (como, por exemplo, na
representação do espaço), é necessário, primeiramente, percorrer esses elementos diversos
e depois compreendê-los num todo. Operação a que chamo síntese da apreensão, porque está
diretamente orientada para a intuição, que, sem dúvida, fornece um diverso. Mas este, como
tal, e como contido numa representação, nunca pode ser produzido sem a intervenção de uma
síntese. Esta síntese da apreensão deve também ser praticada a priori, isto é, relativamente às
representações que não são empíricas. Pois sem ela não poderíamos ter a priori nem as repre-
sentações do espaço, nem as do tempo, porque estas apenas podem ser produzidas pela síntese
do diverso que a sensibilidade fornece na sua receptividade originária. Temos, pois, uma
síntese pura da apreensão”. A segunda síntese, “Da síntese da reprodução na imaginação”
(Idem, A p.100; A p.102), parte explicitamente do empírico para alcançar o transcendental:
“É, na verdade, uma lei simplesmente empírica, aquela, segundo a qual, representações que
frequentemente se têm sucedido ou acompanhado, acabam, finalmente, por se associar entre
si, estabelecendo assim uma ligação tal que, mesmo sem a presença do objeto, uma dessas
representações faz passar o espírito à outra representação, segundo uma regra constante.
Esta lei da reprodução pressupõe, contudo, que os próprios fenômenos estejam realmente
submetidos a uma tal regra e que no diverso das suas representações tenha lugar acompan-
hamento ou sucessão, segundo certas regras; a não ser assim, a nossa imaginação empírica
não teria nunca nada a fazer que fosse conforme à sua faculdade, permanecendo oculta no
íntimo do espírito como uma faculdade morta e desconhecida para nós próprios (...) se uma
certa palavra fosse atribuída ora a esta, ora àquela coisa, ou se precisamente a mesma coisa
fosse designada ora de uma maneira, ora de outra, sem que nisso houvesse uma certa regra,
a que os fenômenos estivessem por si mesmos submetidos, não podia ter lugar nenhuma
síntese empírica da reprodução. Deve portanto haver qualquer coisa que torne possível esta
reprodução dos fenômenos, servindo de princípio a priori a uma unidade sintética e necessária
dos fenômenos (...). Se pois podemos mostrar, que mesmo as nossas intuições a priori mais pu-
ras não originam conhecimento [sensível] a não ser que contenham uma ligação do diverso,
que uma síntese completa da reprodução torna possível, esta síntese da imaginação também
está fundada, previamente a toda a experiência, sobre princípios a priori e é preciso admitir
uma síntese transcendental pura desta imaginação, servindo de fundamento à possibilidade
de toda a experiência [os itálicos são do autor].
49
Não satisfeito com a solução transcendental empregada por Kant,
na qual persistiram dualidades, tais como coisa em si e aparência, conteúdo
e forma, razão prática e razão pura, sujeito e objeto, Fichte28 intensificou a
busca por um começo absoluto em Filosofia, o qual também deveria ser o
princípio de todas as coisas, isto é, o princípio que determinaria tudo aqui-
lo que dele se segue. Tal princípio deveria satisfazer os requisitos de uni-
dade, imanência e capacidade de gerar um sistema, bem como permanecer
em si, mesmo quando sai de si. Dele dependeria todo o sistema filosófico
fichtiano, também sua forma, possibilidade e credibilidade. O começo para
Fichte era o mais difícil de tudo. Embora não tenha esclarecido em que
consistia tal dificuldade, afirmou que, para começar, para encontrar o prin-
cípio, é preciso coragem, esforço e até mesmo violência, a fim de mover o
pensar em direção ao absoluto começo. Trata-se, pois, de uma tarefa dolo-
rosa, tal como é concebida a preparação do filósofo em Platão, quando um
dos prisioneiros da caverna é obrigado imediatamente a levantar-se, virar
o pescoço, andar e olhar na direção da luz; forçado, à custa de perguntas, a
designar o nome dos objetos que desfilavam por detrás do muro, os quais,
até poucos instantes, davam a impressão de ser o verdadeiro mundo; ar-
rastado à força para fora da caverna e, ainda que com a vista ofuscada, fora
coagido a olhar não só para as sombras, imagens e objetos, mas também
para o sol com todo o seu fulgor. Para encontrar o começo, na perspectiva
de Fichte, trata-se, entretanto, de um processo inabitual, que não está re-
lacionado em nada com a sensibilidade e com os objetos; pelo contrário, é
necessário o puro pensar que procede inteiramente a partir de si mesmo.
Este puro pensar é descrito por Fichte como um gerar e produzir, o qual
alcança, depois de tanto esforço e sofrimento do aprendiz, o terreno pré-
vio, anterior a toda relação dual entre sujeito e objeto, coisa em si e aparên-
cia, razão prática e razão pura – o que Kant não teria conseguido, apesar
de ter lhe indicado o caminho29. O ponto atingido pelo puro pensar é, final-
mente, algo um tanto paradoxal: o mais claro de tudo e, simultaneamente,
o mais oculto, onde não há claridade e que Fichte nomeou “eu puro”. Esse
princípio é inteiramente “a partir de si, em si, por si”, portanto, apreendido
numa vida absoluta, da qual não pode jamais sair, trata-se, pois, em última
28 FICHTE, 1980.
29 Cf. Rubens Rodrigues Filho, na introdução do volume dedicado a Fichte da Coleção Os Pen-
sadores (1980).
50
instância, de um eu encerrado em si que é, ainda assim, a fonte de toda
a realidade, sem, contudo, ser, ele próprio real nem ideal. Esse eu puro
não é a consciência individual do próprio Fichte, ou um sujeito empírico
qualquer, ao contrário, o filósofo quer apresentar o começo do seu sistema
filosófico como uma estrutura universal, uma consciência transcendental,
unidade absoluta que é imutável, idêntica a si e verdadeira30.
Hegel, por sua vez, iniciou a Ciência da lógica justamente com a
questão “Qual deve ser o começo da ciência?”31 e levou em consideração as
respostas apresentadas por seus antecessores, a fim de erigir o “seu” pró-
prio começo. Menciona o “original” começo pelo Eu que “se fez célebre nos
últimos tempos”, uma vez que atende as características consideradas im-
prescindíveis por ele: ser um absoluto (ou um abstrato, o que quer dizer o
mesmo),32 uma primeira verdade da qual tudo provém, isto é, de onde tudo
é deduzido, ser algo conhecido e uma certeza imediata33. O Eu seria um
começo plausível uma vez que é o mais concreto, o imediatamente certo e
o pura e simplesmente conhecido; entretanto, para Hegel, a plausibilidade
é apenas aparente. Começar pelo Eu é um equívoco, pois o imediatamente
conhecido é o eu empírico, o eu subjetivo de cada homem, o qual até pode
ser o mais conhecido para cada um, mas é inteiramente desconhecido para
os outros. Sendo assim, o Eu não preenche as condições exigidas para
começo da Filosofia; para tanto, seria “preciso sua separação do concreto,
quer dizer, o ato absoluto por meio do qual o eu se purifica de si mesmo e
penetra em sua consciência como eu abstrato. Mas este eu puro não é mais
um imediato nem conhecido; não é o eu ordinário da nossa consciência,
ao qual imediatamente e para cada um se devia reportar a ciência”34. Na
medida em que Hegel caracteriza o começo como o puramente imediato, o
indeterminado e o simples, exige que ele nada pressuponha. Eis, portanto,
a “essência” do começo em Hegel: nada pressupor, pois “o começo, como
começo do pensar, deve ser totalmente abstrato, universal, forma pura sem
nenhum conteúdo, (...) nada mais que a representação de um simples co-
meço como tal (...) [que] não é nada, [mas, ainda assim, dele] tem que
51
surgir algo”35. Começo que Hegel chamou “puro ser”, o qual contém o ser
e o nada, os contrários ser e não-ser.
Feuerbach foi um dos filósofos que mais longe foram no problema
do começo. De acordo com Deleuze, ele denunciou os pressupostos implí-
citos da Filosofia em geral e na Filosofia de Hegel em particular36. Em seu
projeto de uma reforma da Filosofia com vistas a uma Filosofia do futuro,
Feuerbach almejou “reconduzir a Filosofia do reino das ‘almas penadas’
para o reino das almas encarnadas, das almas vivas”37. Projeto que o levou
a fazer uma crítica geral à Filosofia moderna, de Descartes a Hegel, uma
vez que ela não passa de metamorfose da teologia: a essência abstrata e
transcendente de Deus se realizou e foi suprimida de um modo abstrato e
transcendente na própria razão – uma razão necessariamente separada e
distinta da sensibilidade, do mundo e do homem. Quando Descartes retirou
dos sentidos a possibilidade de fornecerem realidade verdadeira, essência e
certeza, porque buscava algo de imediatamente certo e, para tanto, afirmou
a cisão entre sentidos e entendimento atribuindo a este a exclusividade de
proporcionar a verdade, não operou mais do que por derivação da teologia:
no lugar de Deus, do ser puramente pensado – sem determinações de fora,
sem sensibilidade e matéria –, pôs o ser pensante, o eu. Fundou, assim,
a Filosofia na autoconsciência que passou a ser o próprio espírito puro,
atividade realizada puramente como ato de pensar – o Ser absoluto como
pensamento absoluto38. Nas palavras de Feuerbach: “assim como outrora a
abstração de todo o sensível e material foi a condição necessária da teologia,
ela foi também a condição necessária da Filosofia especulativa”39. No seu
35 Idem, p.95.
36 Cf. DELEUZE, 1988, p.220n.
37 FEUERBACH, 2008, p.5n.
38 “A definição que Descartes propõe de si como espírito — a minha essência consiste uni-
camente no pensamento — é a definição que de si fornece a Filosofia moderna” e que se
prolonga no idealismo kantiano, fichtiano e hegeliano (Idem, §18 [os itálicos são do autor]).
A abstração dos sentidos também é condição necessária para que o ensino de Filosofia se
efetive, na carta Acerca de la exposición de la filosofía en los Gimnasios endereçada ao Con-
selheiro escolar superior do Reino da Baviera, Inmanuel Niethammer, Hegel recomenda: “é
preciso que se subtraia da juventude primeiramente a visão e a audição, é preciso que se lhe
desvie do representar concreto, que se retire a noite interior da alma, que aprenda a ver sobre
esta base, a manter firmes e a diferenciar as determinações” (Hegel, 1991, p.142).
39 Idem, §10. O começo da Filosofia especulativa é marcado pelo começo da Filosofia cartesiana
a qual realizou a abstração da sensibilidade e da matéria e determinou a identidade do ser e
do pensar; ela começou, também, a Filosofia da identidade, que “nada mais é do que uma con-
sequência e um desenvolvimento necessários do conceito de Deus, enquanto ser cujo conceito
ou essência implica a existência” (Idem, §24).
52
próprio empreendimento em determinar o verdadeiro começo da Filosofia
e, portanto, do pensamento, coerente com sua crítica à abstração efetivada
pela Filosofia e pela teologia, Feuerbach40 retomou justamente o que a Fi-
losofia especulativa havia eliminado do Absoluto e rejeitado para o âmbito
do finito, do empírico: o sensível. Determinou, portanto, que o princípio
da Filosofia, e do pensamento, é um elemento distinto do pensar; aquilo
que não filosofa no homem que, pelo contrário, é contra a Filosofia, que se
opõe ao pensamento abstrato41. A Filosofia, para Feuerbach, deve começar
pela não-Filosofia, sua essência é a-filosófica, trata-se do princípio do sen-
sualismo: “afecção precede o pensamento”. A “nova Filosofia” considera e
aborda o ser tal qual ele é para nós, pensante e existente; ela começa, pois,
com a proposição: “sou um ser real, um ser sensível; sim, o corpo na sua
totalidade é o meu eu, a minha própria essência”42. Em suma, o homem, com
seu coração e cabeça, sem parte nenhuma abstraída, portanto, é o começo
da Filosofia para Feuerbach, o que lhe dá unidade, pois: “toda a especulação
sobre o direito, a vontade, a liberdade, a personalidade sem o homem, fora
ou acima do homem, é uma especulação sem unidade, sem necessidade, sem
substância, sem fundamento, sem realidade”43.
Deleuze está de acordo com Feuerbach, quando este compreende
que o homem em sua inteireza, já era o solo e o fundamento do Cogito
cartesiano, do sujeito transcendental kantiano, do eu puro de Fichte e tam-
bém do puro ser hegeliano, apesar de todo o esforço empregado pelos filó-
sofos para atingir a abstração e, finalmente, alcançar a pureza. Para ele, o
que resulta desse esforço é o sufocamento da vida (em uma subjetividade),
o que se produz são “enormes dualismos estéreis”. Em sua perspectiva, “os
filósofos se deixam enganar de bom grado, e discutem em torno do
que deve ser primeiro princípio (o Ser, o Eu, o Sensível?...)”, consi-
dera que não vale a pena nem mesmo invocar a riqueza concreta do
sensível, “se for para fazer dele um princípio abstrato”44.
40 Idem, §31.
41 “Para tomar realmente a sério a realidade do pensamento ou da Ideia é preciso acrescentar-
lhe algo de diferente dela, ou: o pensamento realizado deve ser algo diverso do pensamento não
realizado, do simples pensamento — objeto não só do pensar, mas também do não-pensar”
(Ibidem).
42 Idem, §36.
43 FEUERBACH, 2011, p.19.
44 DELEUZE, 1998, p.68.
53
Em busca de um começo do pensar no pensamento:
para aquém do Eu e da verdade
54
nada mais que o reconhecível e o reconhecido e inspira conformidades48.
Com tais pressupostos, contudo, as verdades que a Filosofia alcançará per-
manecerão arbitrárias e abstratas; ela explicitará apenas o convencional e
determinará nada mais que significações explícitas e comunicáveis, enfim,
não conseguirá realizar o seu projeto de romper com a doxa.
Deleuze compreende que outras sendas precisam ser abertas para
libertar a Filosofia e o pensamento das potências que os impedem de criar.
O começo da Filosofia e do pensar no pensamento é explorado por ele em
outros territórios, aquém do Eu e da verdade e distante da pacífica boa
vontade do pensador que deseja naturalmente conhecer o verdadeiro. O
filósofo concebe que a relação do pensamento com o verdadeiro nunca foi
um negócio simples, considera que “é vão invocar tal relação para definir
a Filosofia”49. O pensamento enquanto faculdade ou força é, para Deleuze,
uma simples possibilidade de pensar50; não há, no pensamento, um pensa-
dor pressuposto capaz de pensar nem de dizer Eu, conforme sua vontade
autoconsciente. Inerente ao pensamento é a dificuldade de chegar a pen-
sar alguma coisa; unicamente, o que lhe é de direito (quid juris), é o “seu
próprio ‘impoder’ natural” de pensar. Foi na experiência de escrita/pensa-
mento de Antonin Artaud que Deleuze encontrou a “terrível revelação de
um pensamento sem imagem e a conquista de um novo direito que não se
deixa representar”51; talvez tenha sido ele quem expressou de modo mais
intenso aquilo que Deleuze também considera ser o começo do pensar e,
portanto, da Filosofia: “pensar é criar, não há outra criação, mas criar é,
antes de tudo, engendrar, ‘pensar’ no pensamento”52.
48 DELEUZE, 1998, p.223.
49 DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.73.
50 Ao afirmar isso, Deleuze (Cf. 1988, p.238; _____; GUATTARI, 1992, p.73) tem como uma de
suas referências o “célebre” texto de Heidegger Que significa pensar? (2005, p.125): “Aporta-
mos ao que significa pensar quando nós mesmos pensamos. Para que semelhante tentativa
tenha êxito devemos estar dispostos a aprender o pensar. Assim que nos envolvemos nesse
aprender também já concedemos que ainda não somos capazes do pensar. Mas o homem
denomina-se aquele que pode pensar – e isso com razão pois ele é o ser vivo racional. A razão,
a ratio, desdobra-se no pensar. Como ser vivo racional o homem deve poder pensar, desde que
queira, entretanto talvez o homem queira pensar e, mesmo assim, não pode (...) O homem
pode pensar à medida que tem a possibilidade para tanto. Esse possível, porém, ainda não
nos garante que somos capazes disso, pois apenas somos capazes do que desejamos”. Mas,
diferentemente de Heidegger, Deleuze não conserva o desejo de pensar, nem a homologia que
há entre o pensamento e o que está para ser pensado.
51 DELEUZE, 1998, p.242.
52 Idem, p.243. Também em 1985, quando Deleuze relaciona o pensamento e o cinema, Artaud
está presente: por um momento breve, o poeta acredita no cinema, pois é “arte nova, pensam-
55
Como engendrar o pensar no pensamento? Como chegar a pensar?
Foi esse o problema disparador de uma série de cartas trocadas entre um
jovem poeta – que, posteriormente, seria conhecido pelo mundo como um
artista “maldito” genial53 – e o diretor da revista Nouvelle Revue Française,
Jacques Rivière. Após um polido “não!” à intenção de publicar seus “poe-
mas defeituosos” advindo do diretor, Artaud responde à negativa com uma
extensa correspondência na qual o poeta se põe a pensar o próprio fazer
poético. Um pensamento que ultrapassa o problema de dar acabamento à
expressão daquilo que ele pensa e alcança o ponto de pôr em questão como
chegar a pensar alguma coisa. Ao contrário dos poemas, as cartas causam
forte impacto sobre o editor que se propõe a publicá-las. Proposta aceita
por Artaud sob a condição de “não falsear a realidade”54. A série de cor-
respondências trocadas entre eles terá imensa importância na própria obra
de Artaud, ela ocupa seu lugar fundador, é uma autorização para escrever.
Paradoxalmente, “ao poeta coube primeiro a edição de suas cartas e não de
sua poesia!”55. Mas, que realidade é essa que não pode ser falseada? A própria
realidade do pensamento: → a grave erosão que lhe é inseparável; → a perda
central, a impossibilidade de pensar, seu essencial “impoder” – “Não consigo
pensar. Vocês entendem esse oco, esse intenso e durável nada?”, escreve Ar-
taud56; → a fragilidade do espírito em nada parecida com o poderoso sujeito
autoconsciente e senhor de si que a Filosofia, desde Descartes, acreditou
existir como começo do pensamento: “o que é primeiro não é a plenitude
ento novo (...) Diz que o cinema é coisa de vibrações neurofisiológicas, e que a imagem deve
produzir um choque, uma onda nervosa que faça nascer o pensamento, ‘pois o pensamento
é uma matrona que nem sempre existiu’. O pensamento não tem outro funcionamento que
seu próprio nascer, sempre a repetição de seu próprio nascimento, oculto e profundo” (2005,
p.199ss).
53 Cf. LINS, 1999, p.44: “Na sua polissemia infinita, Artaud fascina, exaspera biógrafos, pes-
quisadores, críticos, admiradores e ‘discípulos’. Sua obra divulgada, sobretudo pela presti-
giada Gallimard ocupa 25 volumes! (...) a obra de Artaud teve grande repercussão, a partir de
1970, quando os maiores homens das letras, da Filosofia, das artes plásticas e da psicanálise,
assim como o espaço acadêmico, com dezenas de teses elaboradas sobre Artaud, inclusive no
Japão, vão apresenta-lo ao mundo inteiro como um artista ‘maldito’ genial”.
54 BLANCHOT, 2005, p.47. Blanchot é autor de comentários importantes sobre essas corre-
spondências, em 1959, – aos quais Deleuze remete em nota no seu Diferença e repetição (1988,
p.243), bem como em O que a Filosofia? (1992, p.73) –, neles é evidenciada a impossibilidade
de pensar que é primeira no pensamento, bem como a necessidade de um combate infinito
contra o Eu e os pensamentos corretos já formados que habitam o pensamento, combate
necessário para que se comece a pensar, isto é, a criar.
55 KIFFER, 2008, p.1.
56 ARTAUD Apud BLANCHOT, 2005, p.54.
56
do ser, é a fenda e a fissura, a erosão e o dilaceramento, a intermitência e a
privação corrosiva”57. Atormentado por não poder se isentar de seu pensa-
mento poético, ainda que impotente em sua essência, Artaud escreve:
“Há algo que destrói meu pensamento; algo que me impede de ser
o que eu poderia ser, mas que me deixa, poder-se-ia dizer, sob suspensão;
(...) No momento em que a alma se dispõe a organizar sua riqueza, suas
descobertas, essa revelação, no minuto inconsciente em que a coisa está
prestes a emanar, uma vontade superior e malévola ataca a alma como um
ácido, ataca a massa palavra-imagem, ataca a massa do sentimento, e me
deixa ofegante como na própria porta da vida”58.
Esse “ácido” que lhe provoca a experiência da dor da impotência
de pensar, nunca é, porém, completamente corrosivo, a impotência não é
impotente o bastante para fazê-lo desistir de pensar, de manter-se vivo e
ativo no infindável combate contra aquilo que não o deixa pensar: “o com-
bate é também aquele que Artaud quer continuar, pois nessa luta ele não
renuncia ao que chama de ‘vida’ (...) cuja perda não pode tolerar, que quer
unir a seu pensamento e que (...) se recusa a distinguir do pensamento”59.
Nesse combate, Deleuze vê Artaud vivendo um processo de pensar “que
não pode abrigar-se sob uma imagem dogmática tranquilizadora, mas se
confunde, ao contrário, com a destruição completa da imagem”60. A des-
truição dessa imagem constituída pela tradição europeia dualista, centrada
no Eu puro – a expressão do espírito absoluto – que abomina o corpo,
implica, portanto, interrogar tudo aquilo que aprendemos como sendo
próprio ao pensar e, consequentemente, também pôr em questão o que
compreendemos por ensinar a pensar. Trata-se, pois, de colocar em xeque
o Eu, ainda que transcendental, com suas faculdades harmoniosamente
57 BLANCHOT, 2005, p.53. O tema da fissura orienta as leituras que Deleuze faz da literatura
moderna de Zola, Fitzgerald e Malcom Lowry, sempre numa relação privilegiada com o
alcoolismo, “como se a fissura não atravessasse e não alienasse o pensamento senão por ser
também a possibilidade do pensamento, aquilo a partir do qual o pensamento se desenvolve e
se recobre. Ela é o obstáculo ao pensamento, mas também a morada e a potência do pensam-
ento, o lugar e o agente” (2003b, p.342).
58 ARTAUD apud KIFFER, 2008 [“Il y a donc un quelque chose qui détruit ma pensée; un
quelque chose qui ne m’empêche pas d’être ce que je pourrais être, mais qui me laisse, si je
puis dire, en suspens (...) et qu’au moment où l’âme s’apprête à organizer sa richesse, ses dé-
couvertes, (...), à cette inconsciente minute où la chose est sur le point d’émaner, une volonté
supérieur et méchante attaque l’âme comme un vitriol, attaque la masse mot-etimage, attaque
la masse du sentiment, et me laisse, moi, pantelant comme à la porte même de la vie”.]
59 BLANCHOT, 2005, p.55.
60 DELEUZE, 1988, p.242.
57
concordantes, para constituir um pensamento sem sujeito e sem modelo;
pensamento desenraizado, perpetuamente engendrado frente à impotên-
cia que lhe é de direito.
Desenraizamento que não se dá sem um sofrimento avassalador,
pois sofrer e pensar estão secretamente ligados. Já não era isso que Platão
supunha quando descreveu toda a crueldade necessária para arrancar o
prisioneiro da caverna e força-lo a contemplar a verdade? E Fichte – ainda
que recusasse a importância da sensibilidade – quando afirmou que o mais
difícil de tudo é o começo porque se trata de uma tarefa dolorosa que supõe
uma violência inabitual? Parece que mesmo a tradição filosófica orientada
pela imagem dogmática do pensamento está assentada sobre este segredo:
não há criação de pensar no pensamento senão com dor e sofrimentos
causados por uma violência. O genealogista Nietzsche conhecia o segredo
e mostrou o quanto o filósofo pode estar alheio a ele na medida em que crê
na boa vontade do pensador:
“A nós nos chega à consciência apenas as últimas cenas de conci-
liação e ajuste de contas desse longo processo, e por isso achamos que
intelligere [compreender] é algo conciliatório, justo, bom, essencialmente
contrário aos impulsos; enquanto é apenas uma certa relação dos impulsos
entre si. Por longo período o pensamento consciente foi tido como o pen-
samento em absoluto: apenas agora começa a raiar para nós a verdade de
que a atividade de nosso espírito ocorre, em sua maior parte, de maneira
mais inconsciente e sentida por nós, mas eu penso que tais impulsos que
lutam entre si sabem muito bem fazer-se sentidos e fazer mal uns aos ou-
tros: – a violenta e súbita exaustão que atinge todos os pensadores talvez
tenha aí a sua origem (é a exaustão de um campo de batalha). Sim, pode
haver no nosso interior em luta muito heroísmo oculto, mas certamente
nada de divino, nada repousando eternamente em si, como queria Spinoza.
O pensar consciente, em particular o do filósofo, é a espécie menos vigoro-
sa de pensamento e, por isso, também aquela relativamente mais suave e
tranquila: daí que justamente o filósofo pode se enganar mais facilmente
sobre a natureza do conhecer”61.
Também o filósofo, no entanto, quando têm seus pensamentos mais
vigorosos, os têm neste campo de batalha. Campo incontornável mesmo
58
para aquele que, por quase toda a vida, filosofou como um juiz de paz. Foi
justamente na Filosofia de Kant que Deleuze percebeu um dos maiores
e mais conflituosos campos de batalha da História da Filosofia. Em sua
furiosa obra de velhice, a Crítica da faculdade do juízo, Deleuze flagra Kant
engendrando a gênese do pensar no pensamento, ponto em que a concordia
facultatum e nenhum dos outros pressupostos constituidores da imagem
dogmática do pensamento podem funcionar. Capítulo decisivo da História
da Filosofia para a busca deleuziana por um começo do pensar62: trata-se
da abordagem do exercício da faculdade da imaginação na última Crítica,
quando ela assume uma função produtiva e original e exerce-se livremen-
te, uma vez que não está submetida a nenhum conceito e, assim, encontra-
-se liberada da tutela do entendimento e da razão – o que não acontecia
nas duas Críticas anteriores, nas quais as faculdades ainda que difiram por
natureza entram em um acordo harmonioso para atender o interesse da
razão, sempre determinado por uma das faculdades63. Deleuze percebe que
a faculdade da imaginação, na terceira Crítica, sinaliza para um livre exer-
cício das faculdades, de tal modo que cada uma deve se tornar capaz de
funcionar por conta própria.
Esse exercício livre da imaginação é apresentado por Kant na “Ana-
lítica do sublime”, quando ela está relacionada ao sentimento do sublime,
um prazer negativo – desprazer, portanto –, produzido pelo sentimento
de uma momentânea inibição das forças vitais, chegando a produzir um
contínuo maravilhamento e estima, admiração ou respeito. Kant considera
o sublime apenas em relação a objetos da natureza bruta que, sem racio-
cínio, produzem no espírito uma comoção, uma violência à faculdade da
imaginação. Ele ressalta, entretanto, que o sublime não está em nenhuma
forma sensível, mas no homem e diz respeito apenas a Ideias da razão,
não podendo ser representado. Assim, o sublime não está nos objetos da
59
natureza, estes apenas podem ser aptos a uma sublimidade possível de ser
encontrada e evocada no ânimo, na gemüt, que é inteiramente vida. Apenas
o caos, as mais selvagens e desregradas desordem e devastação suscitam
as ideias do sublime quando somente poder e grandeza podem ser vis-
tos64. Tais fenômenos são sublimes porque eles nos fazem descobrir que
ao provocarem a elevação da fortaleza da alma acima de seu nível médio,
permitem descobrir em nós uma faculdade de resistência a qual possibilita
que nos julguemos independentes e superiores à natureza; faculdade sobre
a qual está fundada a autoconservação da espécie, dado que leva em si as
Ideias da razão, de totalidade absoluta, capazes de superar o que, à primei-
ra vista, parecia ultrapassar o próprio homem.
É neste pensamento vigoroso kantiano que Deleuze vê se expressar
uma harmonia paradoxal entre razão e imaginação quando ambas se impli-
cam no esforço de apreender a selvageria da natureza: ambas só entram em
acordo “no seio de uma tensão, de uma contradição, de uma dilaceração do-
lorosa. Há acordo, mas acordo discordante, harmonia na dor”65. Por sua im-
portância na instauração do começo deleuziano do pensar no pensamento, é
imprescindível que este estudo se detenha no processo desse acordo discor-
dante que é engendrado do seguinte modo: frente a um espetáculo selvagem
da natureza, o sentimento do sublime exerce uma afronta sobre a faculdade
de imaginação, uma vez que ela é retirada da forma do senso comum, isto
é, do acordo harmonioso entre as faculdades, e, por si, avança até o infinito,
em um jogo livre, sem qualquer impeditivo, excedendo todo padrão de me-
dida da sensibilidade. Toda a forma de reconhecimento foi quebrada. Todo
o ritmo e ordem do senso comum foi rompido. O infinito circunscreveu a
totalidade do espaço, só há o caos. O sublime coage a imaginação a enfrentar
64 KANT, 1993, §23-28. Grandeza e poder são as formas das duas espécies de sublime: a ma-
temática e a dinâmica. A espécie matemática de sublime é extensiva, dada pelo absolutamente
grande, pelo grande acima de qualquer comparação, cujo padrão de medida não pode ser
outro senão ele mesmo e compreendido pela imaginação, única faculdade capaz de avançar
por si mesma até o infinito. Exemplos do sublime matemático são o espetáculo do mar em
plena calmaria, assim como a abóbada celeste estrelada, que inspiram um sentimento de
respeito. A espécie dinâmica, por sua vez, é dada pelo infinitamente potente da natureza, o
qual nos causa medo e impotência física, como exemplo da espécie dinâmica de sublime, Kant
refere fenômenos da natureza que “tornam nossa capacidade de resistência de uma peque-
nez insignificante em comparação com o seu poder” (Idem, p.107). Tratam-se de espetáculos
naturais atraentes quanto mais terríveis forem, desde que, no entanto, seus observadores
encontrem-se em segurança, tsunami, terremotos, enchentes podem servir de exemplo.
65 DELEUZE, 2006, p.86.
60
o seu máximo, o inimaginável na natureza, e ela não pode mais refletir a for-
ma de um objeto. O excessivo66 se transforma em abismo, no qual a imagi-
nação teme se perder e, por isso, transmite sua coerção à faculdade da razão,
que é forçada a pensar o suprassensível como fundamento da natureza e da
própria faculdade de pensar67. O constrangimento da imaginação, contudo,
ao se reportar à natureza sensível, não é, realmente, efeito exercido pelo
sublime, mas provocado pelas Ideias da razão, a nossa faculdade de pensar,
pois “somente a razão nos obriga a reunir em um todo o infinito do mundo
sensível; nada mais força a imaginação a enfrentar seu limite”68.
Do desacordo entre imaginação e razão nasce um acordo, eis a gê-
nese do pensamento sendo engendrada na estética kantiana: a razão for-
ça a imaginação a atingir o seu máximo, coloca-a em presença do limite
do seu poder no sensível69; e a imaginação, por sua vez, desperta a razão
como faculdade que pensa um substrato suprassensível para a infinidade
do mundo sensível. Tendo como objeto seus próprios limites – o inimagi-
nável para a imaginação e o impensável para o pensamento na forma do
senso comum –, as faculdades elevam-se a um exercício transcendente,
ultrapassando suas limitações pela violência que uma provoca à outra en-
trando em um acordo discordante e engendrado na dor.
É no exercício transcendente das faculdades, que aquilo que era o
“impoder” natural de cada uma, no nível do senso comum, é transformado
em sua mais elevada potência, sua diferença radical, aquilo que só ela é
capaz de exercer sobre a alma. Apenas mediante a perspectiva do funcio-
namento das faculdades em um acordo discordante que uma parte enig-
mática da Filosofia deleuziana ganha sentido. Enigmática e incontornável
para quem quer encontrar o começo do pensar no pensamento inerente à
66 Kant ilustra este excessivo, diante do qual a imaginação fica estupefata como “o pavor, o
horror e o estremecimento sagrado que apanha o observador à vista de cordilheiras que se
elevam aos céus, de gargantas profundas e águas que irrompem nelas, de solidões cobertas
por sombras profundas que convidam à meditação melancólica” (KANT, 1993, “Observação
geral sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos”, p.115-116).
67 DELEUZE, 1988, p.237.
68 DELEUZE, 2006, p.86.
69 A lição da “Analítica do sublime”, salienta Deleuze (Ibidem), é que “mesmo a imaginação tem
uma destinação suprassensível”, o que o entendimento ocultava quando o interesse da razão
era especulativo e complementa mais adiante que este é o destino de nossas faculdades em
geral, a unidade de todas elas, o que Kant chama de Alma. É o suprassensível, o princípio que
anima qualquer uma das faculdades, pois é por meio dele que cada uma engendra o seu livre
exercício em um livre acordo com as demais.
61
Filosofia de Deleuze: ao contrário de Kant, que só pensa o desacordo das
faculdades frente ao sentimento do sublime, Deleuze considera que outras
faculdades, além da imaginação também têm seus dados, seu estilo e seus
atos particulares investindo o dado, cada uma a sua maneira. Isto é, cada
faculdade tem um poder exclusivo, alcançado quando uma força a outra a
atingir o seu máximo potencial – o que só se efetiva mediante o rompimen-
to da concordia facultatum e a necessária quebra do modelo da recognição,
quando o pensamento nada cria, apenas reconhece, como no caso de Des-
cartes com o pedaço de cera que é sempre o mesmo que é visto, tocado,
imaginado ainda que receba modificações de forma e odor70.
Os poderes próprios de cada faculdade são assim apresentados por
Deleuze 71: → o poder da sensibilidade é o “ser do sensível”, o sentiendum,
aquilo que é, ao mesmo tempo, insensível no nível do senso comum, mas
que só pode ser sentido no uso transcendente da faculdade da sensibilida-
de; → o poder transcendente da memória aparece quando ela fica diante do
seu próprio limite, frente à forma pura do tempo, a qual força a memória
a transcender a si própria e a recordar-se do memorandum, daquilo que só
pode ser lembrado; → a imaginação é forçada a imaginar o imaginandum,
o limite, o impossível de imaginar, como Kant expõe na “Analítica do su-
blime”; → por fim, o pensamento é forçado a apreender aquilo que só pode
ser pensado, o cogitandum, o ser do inteligível, o pensamento puro ou a
Essência. Uma impelida pela outra, como em uma cadeia de força, cada
faculdade sai dos eixos, da forma do senso comum e, ao invés de entrarem
em um regime de convergência e de contribuição para o reconhecimento
de um objeto, “cada uma é colocada em presença do seu ‘próprio’, daquilo
que a concerne essencialmente”72.
Um problema, ao menos, ainda permanece: o que dispara essa cadeia
de força sobre a faculdade da sensibilidade? O que força o desencadeamento
70 DESCARTES, 1979, 2ª Meditação, §11-13. Esse é o exemplo emblemático para Deleuze
(1988, p.222) determinar o modelo da recognição que se define pelo exercício concordante de
todas as faculdades sobre um objeto suposto como sendo o mesmo. O objeto é reconhecido
“quando uma faculdade o visa como idêntico ao de uma outra ou, antes, quando todas as
faculdades em conjunto referem seu dado e referem a si mesmas a uma forma de identidade
do objeto”. Além da identidade do objeto, o modelo da recognição tem seu fundamento na
unidade do “Eu penso”, orientado pelo princípio de colaboração das faculdades no sujeito
para “todo mundo”, ou seja, o senso comum como concordia facultatum que tem seu ápice na
afirmação cartesiana “ninguém pode negar”.
71 DELEUZE, 1998, p.231ss.
72 Idem, p.233.
62
do exercício transcendente das faculdades? O que provoca o engendra-
mento, o nascimento do pensar no pensamento? Como começar a pensar
se não há um Eu para acionar o pavio de pólvora do pensamento? Deleuze
inscreve sua singularidade no clássico problema do começo em Filosofia,
criando uma nova estética transcendental como teoria da sensibilidade, o
que se pode chamar de uma aesthesiologia, uma vez que para ele “no cami-
nho que leva ao que existe para ser pensado, tudo parte da sensibilidade”73.
O pensamento só poderá pensar, atingir o cogitandum, se houver o encon-
tro com a intensidade de um signo que faça nascer a sensibilidade no senti-
do, o sentiendum, o qual forçará as demais faculdades a apreenderem aquilo
que lhes é próprio. A gênese desse começo na Filosofia de Deleuze aparece,
com toda sua força, muito antes de Diferença e repetição, no genuíno olhar
que ele apresenta da literatura de Proust, quando na conslusão da primeira
edição afirma: “sem algo que force a pensar, sem algo que violente o pen-
samento, este nada significa. Mais importante do que o pensamento é o
que ‘dá que pensar’; mais importante do que o filósofo é o poeta (...) [pois
ele] aprende que o essencial está fora do pensamento, naquilo que força a
pensar”74. Olhando retrospectivamente o conjunto da obra que constitui
a Filosofia de Deleuze, pode-se afirmar que ela toda – nos encontros com
filósofos, artistas, escritores, cineastas – é a busca desse começo que faz
nascer o pensar no pensamento, começo que precisa ser sempre, a cada
vez, recomeçado. É nesse ponto que Deleuze está mais próximo de Artaud,
pois o problema de ambos é o mesmo: fazer com que nasça aquilo que ain-
da não existe → o pensar no pensamento.
Uma vez que só o imprevisível, o impensável no nível do senso
comum das faculdades, é o que provoca o pensar; que só pensamos quando
forçados por um signo que determinará a necessidade absoluta de pensar;
nessa perspectiva, o professor de Filosofia, para que consiga instaurar, em
instantes de suas aulas, momentos de experiência de pensamento, precisa
passar a ser um ensignador, um emissor de signos dolorosos capazes de ele-
var as faculdades de cada estudante com a emissão de uma multiplicidade
de signos, a seu exercício transcendente, instalar a necessidade absoluta
de um ato de pensar e promover uma paixão de aprender. Um ensignador
que amorosamente prepara e promove encontros com signos de todo tipo:
73 Idem, p.239.
74 DELEUZE, 2003a, p.89.
63
mundanos, amorosos, sensíveis, artísticos, mortais; advindos de variadas
expressões do pensamento que recebeu de herança: da História da Filo-
sofia, da música, da literatura, da poesia, da pintura, do teatro, do cinema,
das ciências, enfim, do livro-mundo. Um ensignador que, além de lançar
signos – ciente de que nem todos eles interessarão a todos os estudantes
–, garante a participação dos estudantes na constituição dos problemas,
pois eles, assim como o ensignador, só serão livres quando dispuserem de
seus próprios problemas. Um ensignador que, a cada aula, experimente es-
tabelecer oportunidades para que o começo do pensar no pensamento, o
seu nascimento, aconteça –, ainda que as experiências fracassadas sejam
em maior número.
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Procedimentos, em Gilles Deleuze:
Proust, Sade, Sacher-Masoch, Klossowski,
Kafka e Bacon
ausen Feil
Gabriel S
75 Essas aparições não se referem a todas as vezes que Deleuze usa a expressão “procedimento”.
Mas se trata de vezes em que faz dessa expressão um conceito, mencionando-o ou, simples-
mente, operando-o. O crucial está no fato de estar lidando (de maneira concentrada e dedi-
cada) com o modo de fazer de um escritor e/ou de um artista.
76 DELEUZE, 2003a, p.108.
77 DELEUZE, 1983.
78 Idem, 3003b.
79 Por “Forma”, entendemos tudo aquilo que já tem existência. São os objetos já estabelecidos,
já conhecidos; objetos identificáveis. Vale tanto para os objetos físicos como para os objetos
mentais: uma ideia é uma Forma também. O critério, para ser Forma, é: já existe? Acontece
que o mundo já Formado, jamais deixa de povoar os fluxos das matérias não Formadas (eis
aí a positividade dessa perspectiva). Uma Forma é sempre passageira, momentânea, embora,
muitas, impõem-se como se fossem fixas.
67
Juntamente com Félix Guattari80, usa o conceito de procedimento
em Kafka: por uma literatura menor, afirmando que “somente a expressão
nos dá o procedimento”. => Isso mostra que o procedimento está no âm-
bito do modo de fazer, do modo de mostrar, e não no âmbito daquilo que
está sendo mostrado. Ênfase, desde já, na postura e não no conteúdo.
Em Francis Bacon: lógica da sensação, Deleuze81 afirma: “o impor-
tante é que eles [os procedimentos] não forcem a Figura a se imobilizar;
pelo contrário, devem tornar sensível uma espécie de itinerário, de ex-
ploração da Figura no lugar, ou em si mesma. É um campo operatório”.
=> Trata-se dos procedimentos agindo em função da mobilidade; em
função do fazer com que algo (no caso a Figura) não seja apreendida
pela ilustração ou pela narrativa. Além disso, coloca o procedimento no
campo operatório.
Em Crítica e Clínica, Deleuze82 mostra, num texto intitulado “Louis
Wolfson, ou o procedimento”, como o autor em questão procede para fazer
a sua língua mãe variar83.
Diante dessas seis aparições, temos os seguintes indicativos (não in-
dicativos lógicos, silogísticos; de qualquer maneira, funcionam nos dando
dicas): 1) o procedimento age sobre as coisas já estabelecidas, de modo a
testemunhar as suas derrocadas; 2) o procedimento atua de modo a alterar
o ritmo normalizado e previamente esperado; 3) o procedimento é, so-
bretudo, da ordem da expressão; e 4) o procedimento, ao contrário de um
manual, de uma cartilha ou de uma receita, empreende variações.
68
diante de uma Forma consagrada (os valores morais no caso de Sade; os
valores paternais no caso de Sacher-Masoch).
Parece-nos que, na entrevista intitulada “Mística e masoquismo”
(em A ilha deserta), Deleuze85 defende que o que torna o masoquismo e o
sadismo interessantes é, justamente, o fato de ambos se constituírem em
procedimentos. Deleuze não se interessa pelo masoquista e pelo sádico
num sentido clínico (tal como a psicanálise, por exemplo), mas se interessa
pelo modo singular que cada um deles procede; pelo modo singular que
cada um deles faz para agir contra aquilo que os afligem: os valores religio-
sos e vitorianos afligindo Sade; a sociedade patriarcal afligindo Sacher-
-Masoch. Deleuze, enfim, está preocupado com as estratégias que esses
escritores criam para ultrapassar as suas aflições. Então: o que a literatura
de Sade faz para ultrapassar os valores vitorianos? O que a literatura de
Sacher-Masoch faz para suspender a sociedade patriarcal? Em outras pa-
lavras: como essas literaturas procedem? Como elas se apropriam de tais
aflições e as transformam em matéria de escrita?
Quando referimo-nos, anteriormente, à expressão “Forma consa-
grada”, nossa intenção era a de nos referir, usando a terminologia deleu-
ziana, aos estratos; porém, especificamente aqueles estratos que insistem
em perpetuar-se. Deleuze e Guattari, em Mil Platôs,86 afirmam que todo
estrato está em processo ininterrupto de desestratificação. Ou seja, segun-
do eles, não existe estrato estático, sendo por isso que as Formas consa-
gradas são problemáticas: elas contrariam o seu processo, digamos assim,
natural de desestratificação. O procedimento, portanto, é justamente a
criação de um modo de extrair dessas tais Formas consagradas algo de
novo, sob a condição de não simplesmente negá-las.
Se esses escritores são os escolhidos de Deleuze, é justamente por-
que eles não negam as suas aflições; pelo contrário, positivam-nas, de tal
modo que impulsionam as suas escritas.
69
desorganizando as Formas; pelo contrário, funciona instituindo uma or-
dem. O procedimento, aliás, é uma instituição, no sentido de colocar ordem
nas indeterminações que nos impulsionam. A questão, a grande questão,
é criar uma ordem aos impulsos de tal maneira que esses impulsos não
sejam negados, mas afirmados. O procedimento é, primeiramente, uma
maneira de ocupar o vazio provocado pelas Formas doentes; depois, é uma
maneira de recuperar o vazio. Em suma, o procedimento é uma maneira de
preencher o vazio sem se desfazer dele.
Dos libertinos
Um exemplo de procedimento que institui uma ordem é o Procedi-
mento Libertino: o libertino é um decorador, um diretor de teatro87. A sua
questão não está tanto no o que ele diz, mas no modo em que dirige a sua
vida cotidiana e a dos demais envolvidos. De modo que, para identificar um
libertino, basta identificar quem é que detém a direção da cena. Como um
diretor, o libertino cumpre todo um protocolo, tomando o cuidado de fazer
acontecer o prazer ordenado. Um libertino é valorizado por sua engenhosi-
dade e por sua intelectualidade, e jamais por deixar tudo acontecer. Então, se
ele é um criador de procedimento não é, simplesmente, porque perverte os
manuais de conduta, mas é porque não faz isso sem instituir um novo modo
de proceder. Ou seja, o libertino recebe esse nome não porque é adepto da
liberdade ou da bagunça, mas porque é adepto da liberdade de criar novas
ordenações. Nesse sentido, o procedimento nada tem contra as ordens, mas
apenas contra aquelas não foram criadas precisamente por aquele que as
cumprem.
Os libertinos têm um código. Por exemplo, as classes que distin-
guem a função dos libertinos da função das vítimas, em Os 120 dias de
Sodoma88, nada são senão um código. Entretanto, esse código não tem re-
ferência às classes morais ou sociais, mas às classes que se definem no
interior da Sociedade Libertina. (Essas classes valem apenas no âmbito de
sua própria escritura!)
70
Do inesperado no procedimento
O procedimento, entretanto, não alcança o seu clímax devido ao seu
empreendimento racional: somente o inesperado pode fazê-lo. Podemos
criar as condições para que o procedimento efetue-se, porém, jamais po-
demos controlar o inesperado. É que o procedimento não funciona como
uma teoria, mas como um problema de vida; e como tal, corre todos os
riscos: possibilidade de sofrimento, de crises etc.
Da imitação do procedimento
Retomemos o seguinte fragmento: “somente a expressão nos dá
o procedimento”89. Afirmamos que um procedimento pode ser sempre
imitado sem correr qualquer risco de ser reproduzido, copiado. Podemos
imitar os procedimentos de Deleuze sem corrermos o risco de fazermos
como ele, igual a ele. Pois, conforme Deleuze e Guattari90, a expressão puxa
o conteúdo; de tal maneira que não existe a possibilidade de mudarmos
a expressão sem transformarmos, ao mesmo tempo, o conteúdo. Temos,
portanto, duas maneiras de trair91 um procedimento: imitando o seu con-
teúdo, expressando-o de outro modo; e (se acreditarmos que o conteúdo
também possa puxar a expressão) imitando a sua expressão, apropriando-
-se de outro conteúdo. A fim de exemplificação: o conteúdo de um proce-
dimento pode não cessar de tomar partido contra Sade, mas a expressão
desse procedimento pode jamais fazer isso: embora o conteúdo libertino
de Sade possa estar sendo questionado, o tom da escrita pode ser, ainda as-
sim, libertino. Ou seja, suspende-se no conteúdo enquanto se imita na ex-
pressão, num possível efeito dissimulador (exemplo da segunda maneira).
Por outro lado, o conteúdo de um procedimento pode imitar o conteúdo
libertino de Sade, enquanto que a forma de escrita, em vez de ser sadeana,
pode ser acadêmica, por exemplo. E aí temos a forma de expressão sade-
ana sendo suspensa, enquanto que o conteúdo do escritor sendo imitado
(exemplo da primeira maneira).
71
II – RELAÇÕES ENTRE PROCEDIMENTO E DESMONTA-
GEM E TRANSGRESSÃO
Da desmontagem
Tratando-se do conceito de procedimento, em Deleuze, não é ne-
cessário dizer: “procedimento de desmontagem”, pois o conceito de pro-
cedimento envolve, necessariamente, a desmontagem. O procedimento
dizendo respeito sempre a um processo de desmontagem de uma Forma
(das significações em Proust, dos valores morais e religiosos em Sade, da
função paterna em Sacher-Masoch, da identidade pessoal em Klossowski,
dos processos econômicos e sociais em Kafka, da língua mãe em Wolfson,
das ilustrações e figurações em Bacon).
O procedimento entendido como uma estratégia de guerra, que age
a partir da desmontagem de uma Forma consagrada. Entretanto, não se
trata de uma tarefa crítica (no sentido dialético do termo), mas de uma
tarefa que implica a invenção de modos consistentes de fazer os objetos va-
riarem. Em última instância, trata-se de um mecanismo que faz funcionar
algo que já não funcionava mais, que se encontrava estacionado: os valores
morais, por exemplo, já não funcionavam para escrita de Sade; era preci-
so atacá-los, dissimulá-los, para que se tornassem potentes em termos de
matéria de escrita.
O procedimento, portanto, não funciona como um protocolo; pelo
contrário, é a via alternativa em relação ao manual de conduta ou ao ma-
nual de comportamento. O procedimento tem aversão a tudo aquilo que
dá a entender que as coisas (incluindo os humanos) são sempre iguais.
Nesse sentido, se o procedimento teima, por exemplo, com as religiões,
é precisamente porque elas nos penalizam se por acaso desejarmos não
permanecer os mesmos.
Da positivação do ponto
Quando Deleuze e Guattari92, no platô “Três Novelas ou ‘O que se
passou?’” (em Mil Platôs, volume 3), falam do conceito de ponto, pode pa-
recer que eles o situam em oposição a tudo o que eles desejam: a invenção,
o novo, a fuga etc. Afinal, o ponto é aquilo que já é Formado, aquilo que
72
pode ser facilmente localizado e identificado (o ponto pode, inclusive, ser
concebido como sinônimo daquilo que viemos chamando de Forma; po-
rém, fazendo parte de outro desenho: o da teoria das linhas). De qualquer
maneira, a noção de procedimento, ligada à desmontagem, acaba por mos-
trar que Deleuze e Guattari nada têm contra o ponto. Pois o procedimento
somente inicia com um ponto sendo colocado em tona: uma vez em tona,
inicia-se o procedimento, que é justamente a desmontagem desse ponto.
Eis a importância da transgressão!
Da transgressão
O procedimento não acontece se não houver uma Forma (quanto
mais consagrada melhor); e é por isso que a transgressão é uma condição
do procedimento. Ora, a Forma pela Forma segue invicta. O procedimento
surge, exatamente, para fazer com que essa seja transgredida. Entretanto,
a transgressão diz respeito a um processo de insistência, nunca de abando-
no, de modo que ninguém transgride saindo fora. O transgressor, definiti-
vamente, não é o rebelde sem causa. Para transgredir, é necessário insistir
com as Formas que nos aborrecem, na expectativa de que essas Formas
sejam desmontadas. Kafka se aborrecia com toda aquela situação. Negou-
-a? Ignorou-a? Pelo contrário, usou-a como matéria de escrita.
Das definições
Conceitos operados nos procedimentos que se seguirão:
=> Denegação: é uma negação positiva. Na ansiedade por conquis-
tar o novo, o negador sai logo destruindo o velho. Mesmo dando um passo
à frente em relação aquele que simplesmente aceita o velho, permanece na
tarefa crítica (aquela que somente afirma se antes negar). A denegação se
torna positiva porque ao invés de destruir o velho, suspende-o.
=> Dissimulação: é um fazer testemunhal da não coincidência e da
incoerência entre os termos envolvidos. Trata-se de não exigir, por exem-
plo, que corpo e linguagem concordem entre si.
=> Pantomima: é justamente a testemunha de que o corpo (intui-
tivo) não concorda com a linguagem (racional). Ou: a pantomima é um
exemplo de dissimulação.
=> Perversão: acontece quando as Formas deixam de ser aquilo
que eram.
73
=> Suspensão: é tudo aquilo que antecede e que é posterior a uma
Forma. É uma promessa de Forma ou, na maioria dos casos, um informe
eterno. Ou: quando não estamos no âmbito do Ser.
=> Hesitação: é o que fica acontecendo no estado suspenso: as ma-
térias ficam hesitando em Ser ou não.
III – PROCEDIMENTOS93
93 Não temos a pretensão de defender esses procedimentos como sendo os únicos apresentados
por Deleuze. Aliás, poderíamos explorar o fato de Deleuze não apenas apresentar procedi-
mentos de seus escritores e artistas preferidos, como também ele próprio elaborar os seus.
Poderíamos mencionar, por exemplo, os procedimentos de traição e de roubo.
94 PROUST, 1967.
95 DELEUZE, 2003a, p.4.
74
verdade, nem a afinidade de interesses e muito menos a boa vontade con-
templativa. O signo nos trai por violência involuntária.
=> Daí a ideia de que a infância, de Em busca do tempo perdido96,
nada tem a ver com acerto de contas com o passado. A grande graça está
no fazer da infância uma estratégia de coação do pensamento (no sentido
de instigação do pensamento à criação). A obra de Proust, especialmente
essa, testemunha isto: a questão nunca foi a de narrar a infância, mas sem-
pre foi a de, com a infância, descobrir o que não se sabia antes dos encon-
tros proporcionados.
=> “É preciso sentir o efeito violento de um signo, e que o pen-
samento seja como que forçado a procurar o sentido do signo”97. O pen-
samento, nesse sentido, deixa de ser uma dádiva do interior, uma dádiva
introspectiva: somente funciona se for forçada a funcionar.
=> Para Deleuze98, não se aprende, portanto, “pela assimilação de
conteúdos objetivos”. Não se trata de ter acesso a certo objeto e, uma vez
tendo esse acesso, passar a dominá-lo a parir de pontos de referências
elencados pela inteligência. Nunca se aprende um objeto, mas sempre se
aprende com o objeto, esse funcionando como signo de uma aprendizagem.
Um pesquisador, que escreve aquilo que Kant diz, não está estabelecendo
uma relação de semelhança com esse autor, mas está fazendo de Kant um
signo do seu próprio aprendizado, como Proust faz da sua infância um
signo de sua própria escrita. Nesse sentido, a aprendizagem implica um
servir-se dos seres: “aprendemos a nos servir dos seres: frívolos ou cruéis,
eles ‘posaram diante de nós’, eles nada mais são do que a encarnação de
temas que os ultrapassam, ou pedaços de uma divindade que nada mais
pode contra nós”99.
=> A principal contribuição de Proust e os signos100, para o conceito
de procedimento, está no argumento de que a grande graça não está no
pensamento, na entidade, mas está naquilo que dá o que pensar, está no
signo de pensamento. Está, em outras palavras, naquilo que faz a Forma
dissolver-se, transmutar-se. É preciso aprender que o essencial está fora
do pensamento; o essencial está naquilo que força a pensar, que desmonta
96 PROUST, 1967.
97 DELEUZE, 2003a, p.22.
98 Idem, p.21.
99 DELEUZE, 2003a, p.22.
100 Idem, p.89.
75
o pensamento. Esse, paradoxalmente, funciona a partir da sua desarticu-
lação. É por isso que o pensar, em Deleuze, não é para qualquer um; é por
isso que ele não é da ordem do ordinário e do representativo. Aprendemos
com um objeto quando ele força o nosso olhar, o nosso ouvir, o nosso in-
terpretar.
76
=> Uma vez apropriando-se, como procede? (1) Concebe as fun-
ções familiares, sobretudo, a função paterna e a conjugalidade, como sendo
criações do homem, incluindo a função da mulher; (2) Escolhe uma mulher
para casar-se; convence-a a assinar um contrato que a obriga a fazê-lo seu
escravo; (3) Passa a educá-la; convence-a a agir, para com ele, com frieza
e crueldade; (4) Faz de tudo para que ela cumpra o contrato assinado; (5)
Faz dessa uma mulher livre de sua função estabelecida pela sociedade pa-
triarcal (afinal, a função dita normal da mulher não implica o fato de ela
ter que espancar o seu marido); (6) Transforma essa mulher numa mulher
Ideal, de modo que se apaixona por ela; (7) Aproveita-se do fato, de ela ter
sido educada para ser fria a cruel, para não ter a menor chance de ter o
acesso que, tradicionalmente, o marido tem em relação à sua mulher; (8)
Passa a sofrer (o contrato inclui uma cláusula que deixa claro que se trata
de um dever da mulher-carrasco se dar a outros homens); (9) Empreende
“a arte do suspense”103, pois a dor do sofrimento é apenas uma condição
para que o prazer seja retardado ao máximo; (10) Apesar do sofrimento,
passa a ver a possibilidade de também transformar a sua função; (11) Uma
vez livre da lógica da função patriarcal, renasce.
=> A mulher Ideal precisa ser fria para preservar a sua sentimen-
talidade supra-sensual, entendida como o estado de uma sensualidade
transmutada (sensual sem ser codificada sexualmente). É por isso que a
mulher-carrasco de Sacher-Masoch é envolvida de gelo e protegida pelas
peles: é no frio que a sua sentimentalidade supra-sensual é conservada.
=> Entretanto, esse estado de gelo é apenas um tipo Ideal. A car-
rasca flutua entre, pelo menos, outros dois tipos. O primeiro é o da mulher
pagã, a qual reclama para si a independência da mulher e a brevidade das
relações amorosas; denuncia o casamento, a moral e as instituições como
sendo invenções do homem a serem destruídas. No outro extremo, o ter-
ceiro tipo é o da mulher edipiana: casada, age compelida por um homem.
Ambas não satisfazem Sacher-Masoch. A Ideal se movimenta e se suspen-
de entre os dois: ora ela se torna edipiana, ora sádica e por vezes Ideal: “é
ela... Vênus, mas sem as peles... Não desta vez é a viúva... E, no entanto, é
Vênus... Oh! que mulher”104. Ora sente prazer no jogo, ora sente-se enver-
gonhada por participar dele: variação, efeitos da educação.
103 Idem, p.38.
104 SACHER-MASOCH, 1983, p.165.
77
=> Percebemos que no procedimento masoquista, a exemplo do
sádico, há duas naturezas distintas. A mulher Ideal se encontra suspensa
na natureza primeira, neutra em relação a sentimentos tais como o amor
(sentimentos banais, codificados pela função paterna, pertencentes à se-
gunda natureza, a grosseira). Somente fazendo com que a sua educanda
aja com tal frieza, é que o masoquista pode transcender essa natureza se-
gunda, a qual, em Sacher-Masoch, é a natureza da sentimentalidade sen-
sual, criada pelos homens. A mulher Ideal, glacial, recobre esse mundo,
mostrando que o homem só tem mesmo uma natureza grosseira, e que ela,
a mulher, torna-se fria diante dessa grosseria. O gelo (a frieza) da mulher
Ideal, então, conserva a sentimentalidade supra-sensual, fazendo dessa
sentimentalidade o objeto do renascimento do homem, e da crueldade o
castigo merecido pela grosseria masculina. Nessa fria aliança – “Vênus
tem que se esconder numa boa pele se não quiser se resfriar”105 –, a sen-
timentalidade e a crueldade feminina fazem o homem se tornar um novo
homem, constituindo-se no Ideal masoquista, o qual não permite que o
masoquista se entregue à relação com amor, sentimento quente, mas exige
que se conserve frio, supra-sensual.
=> Deleuze, em Apresentação de Sacher-Masoch, apresenta uma série
de vantagens desse procedimento sobre o de Sade: (1) Professor X Educa-
dor: apesar de Sade, por vezes, usar a atmosfera professoral, o verdadeiro
educador, para Deleuze, é Sacher-Masoch. Conforme Corazza106, é o maso-
quista que “deve atuar, levando a educanda [a mulher escolhida] a engajar-
-se em seu papel que ela não sabe”. Segue o raciocínio: “a sua tarefa consis-
te em ‘formar’ a natureza da educanda, em ‘educá-la, persuadi-la’, de acor-
do com um projeto determinado”. Apesar do teor do contrato, o masoquis-
ta, portanto, é escravo somente em aparência, visto que é ele quem conven-
ce a mulher a se tornar uma carrasca. Em princípio, Wanda, em A Vênus das
peles107, não quer aceitar o convite, dizendo: “o senhor está se tornando cada
vez mais inconveniente!”108; “acha-me capaz de maltratar um homem que
me ama e a quem também eu amo?”109. A carrasca somente se torna uma
carrasca por ser persuadida a assinar o contrato, “de modo a parecer que é
105 Idem, p.155
106 CORAZZA, 2006, p.37.
107 SACHER-MASOCH, 1983.
108 Idem, p.176.
109 Idem, p.183.
78
ela quem educa o educador, embora seja este quem a forma”110. Mais tarde,
Wanda começa a suspeitar do estranho projeto de Severino, dizendo: “em
minha opinião, você é um grande corruptor de mulheres”111. O masoquista,
portanto, encontra-se preso somente pelo contrato, contrato elaborado por
ele mesmo. E se Wanda começa a ter prazer nisso tudo, é por força da edu-
cação do masoquista. O sucesso do projeto, portanto, depende da capacida-
de do masoquista de fazer da mulher uma carrasca fria e severa: fria o su-
ficiente para não se deixar condicionar pelos sentimentos do homem; seve-
ra o suficiente para fazer o contrato cumprir-se; (2) Possessão X Pacto: se a
possessão é a peculiaridade própria do sadismo, a aliança, o pacto, é a do
masoquismo. Nesse, não há submissão que não esteja pressuposta proposi-
tadamente no pacto, não sendo correto dizer que se no sadismo há a sub-
missão do aluno, no masoquismo há a do educador. Se Sacher-Masoch é
essencialmente educador, é porque faz parte de seu projeto formar a sua
educanda, correndo, inclusive, “os riscos inerentes à tarefa pedagógica”112;
ou seja, correndo o risco de fracassar. Fracasso que se torna inevitável se a
educanda não for suficientemente educada para funcionar cruelmente. No
caso de êxito, ambos os envolvidos no projeto são heróis, não havendo lu-
gar para vítimas. No projeto sádico, diferentemente, o aluno se mostra
submisso, e somente alcança o objetivo colocado pelo professor se for obe-
diente, visto que o objetivo é alcançado se o aluno for capaz de fazer como
o mestre. Saint-Ange, em A Filosofia na alcova, diz de um aluno de liberti-
nagem: “acreditais que há seis meses tento educar esse porcalhão e não
consigo?”113. Diz isso despreocupadamente, pois o fracasso, no sadismo,
não implica em nada ao professor; (3) Instituição x Reflexão: tanto as cenas
descritas por Sade quanto às descritas por Sacher-Masoch, desdobram-se
em um ou em vários espelhos. Entretanto, em Sade, o espelho funciona
multiplicando os atos, a fim de melhor demonstrá-los, exibi-los. Em Sa-
cher-Masoch, a função do espelho é mais complexa: o que o espelho reflete
já é outra coisa, e aquilo que ali estava antes de ser refletido não é negado,
mas é suspenso. Essa diferença se justifica pela diferença de estratégia de
ultrapassagem à primeira natureza. A estratégia de Sade é fazer instituir, a
79
de Sacher-Masoch é fazer refletir. A primeira se faz pela exibição, pela de-
monstração, pela multiplicação das dores (o libertino não é envolvido num
renascimento); a segunda se faz pelo desdobramento daquilo que se é, em
função de um novo nascimento; (4) Negação x Denegação: na ultrapassagem
de uma natureza para a outra, Sade deixa um rastro negativo: a segunda
natureza não é ultrapassada sem antes ser negada, via demonstração do
quanto os atos perversos são superiores, via exibicionismo do libertino, via
linguagem obscena como forma de gozar da ingenuidade daqueles que vi-
vem regidos pela natureza falsa. O prazer do sádico, em suma, encontra-se
na negação dos valores morais, na destruição da segunda natureza114. O
sádico peca por excesso de velocidade, por precipitação exagerada: ao per-
verter os valores, institui a sociedade de libertinos que ele mesmo já havia
instituído antes mesmo da perversão. No processo de ultrapassagem, Sa-
cher-Masoch, ao invés de negar a natureza grosseira, denega-a, suspende-
-a. E é nessa denegação que ele atinge o prazer. Ou seja, apesar de também
haver, em Sacher-Masoch, a distinção de duas naturezas, uma não nega a
outra, mas apenas diferenciam-se: enquanto uma se encontra Formada, a
outra se encontra suspensa. Conforme já dissemos, o prazer não se encon-
tra na dor, como muito se pensa, mas na denegação: “o masoquista é moro-
so”, diz Deleuze115, de modo que retarda o prazer. Sofre (sente-se revoltado,
envergonhado, aniquilado), primeiramente, com o fato de estar sendo do-
minado por uma mulher (não podemos esquecer do detalhe de que, en-
quanto não acontece o novo nascimento, o masoquista ainda é um homem
grosseiro e preconceituoso), depois com a possibilidade de ser traído por
ela (cláusula contratual: “ela pode, se quiser”), vivendo essa espera como
forma de retardar, ao máximo, o seu prazer. Uma espera, diz Corazza, “que
se desdobra em dois fluxos simultâneos – um que tarda essencialmente, o
do prazer; e o outro, enquanto condição que possibilita aquele, que se espe-
ra e supõe, isto é, o da dor”116. A espera masoquista não acontece tranqui-
lamente, pelo contrário, somente acontece porque há uma ameaça: a chegada
114 O fato de o procedimento de Sade não ultrapassar a segunda natureza sem antes negar a
primeira, não pode ser confundido com a característica que amarra todos os procedimentos
apresentados neste texto, que diz respeito ao lidar com as Formas em vez de ignorá-las.
Sade não ignora a segunda natureza, o que ele faz é lidar com ela de uma maneira, segundo
Deleuze (1983), negativa.
115 DELEUZE, 1983, p.77.
116 CORAZZA, 2006, p.38.
80
do terceiro, chamado de o Grego por Sacher-Masoch. “É ele quem auxilia
o educador a recuar o primeiro fluxo [o do prazer], que deve tardar, pelo
tempo necessário, para que o segundo fluxo esperado e suposto [o da dor]
o torne permitido”117. De que tipo é esse prazer? De que tipo é essa dor?
Prazer de se tornar um novo homem; dor pelo sofrimento causado pela
cláusula que pressupõe a traição, a chegada do Grego. Sem a dor e o sofri-
mento não há a denegação daquilo que se é; sem a chegada efetiva do Gre-
go não há o prazer em ser pervertido. Ainda que o prazer do sádico tam-
bém se encontre numa superação daquilo que se é na sociedade dita normal,
o sádico se mostra excessivamente rápido, instituindo uma sociedade que
se baseia na negação da pretensiosa normalidade; o masoquista, por sua
vez, abre-se para um mundo desconhecido, onde os julgamentos de antes
já não fazem sentido; (5) Impiedade X Frieza: a frieza sádica se exerce es-
sencialmente contra os sentimentos, os quais são denunciados como pro-
vocadores de dispersão de energia impessoal demonstrativa, e condenados
por nos limitarem à natureza segunda. A frieza sádica, portanto, diz res-
peito à impiedade diante dos fracos. Já a frieza do Ideal masoquista trata de
sentimentos suspensos, fora dos sentimentos ordinários reconhecidos por
Sade. Esta é a função da frieza masoquista: fazer suspender a sentimentali-
dade no gelo, onde os sentimentos deixam de existir como sentimentos. O
que subsiste no frio? Somente a sentimentalidade supra-sensual, envolvida
de gelo e protegida pelas peles. O frio “protege a sentimentalidade supra-
-sensual como via interior, e a exprime como ordem exterior, como Cólera
e Severidade”118. O ódio da mulher Ideal é contra o sentimento comum que
a afronta, de modo que, frente a ele, mantém-se fria, indiferente; (6) Pai X
Mãe: mesmo que nos romances de Sade as heroínas também exerçam im-
portantes papéis, o fundo masculino é dominante, mesmo porque as heroí-
nas agem sempre junto aos homens, inclusive tendo que imitá-los, e seus
atos são a eles dedicados. Ao contrário do que acontece nos romances de
Sacher-Masoch, a mãe é identificada com a segunda natureza, e o pai teste-
munha a primeira, acima das leis, dissolvendo a família. A mãe, então, fun-
ciona como defensora dos valores morais e da imagem edipiana, enquanto
a filha é promovida à cúmplice incestuosa: em parceria com o pai, contra a
mãe, contra a segunda natureza. Eugénie, em A filosofia na alcova, chega a
117 Ibidem.
118 DELEUZE, 1983, p.57.
81
desejar a morte de sua mãe, devido à função castradora exercida por essa119.
Os pais são libertinos enquanto as mães são ciumentas e, por isso, são elas
que ameaçam o suposto livre agir dos homens. O sadismo, portanto, apre-
senta uma negação da mãe, e uma super valorização do pai120. O inverso é
o que acontece no procedimento masoquista, no qual o pai é o excluído,
anulado, visto que, uma vez refletido na mulher Ideal, perde o seu papel. A
mãe, apesar de não funcionar, exatamente, como um termo de identificação
com a natureza primeira, funciona como condição através da qual o maso-
quista exprime-se. Quando o masoquista faz com que o espanquem, o que
ele está surrando, humilhando e ridicularizando, é a imagem do pai (pa-
triarca), de modo que se torna livre através de um novo nascimento em que
o pai já não tem nenhum papel. E se o masoquista chama o Terceiro, o
Grego, não é, certamente, para gerar uma volta da função patriarca (mes-
mo correndo esse risco), pois essa, por princípio, não implica dois homens
(a presença de um segundo homem dissolve, no mesmo instante, a função
exercida por um homem numa relação dita normal); além disso, o Grego,
por contrato, é um incentivador do ato, o qual deve resultar no surgimento
de um novo homem. Esse segundo nascimento independe não apenas do
pai, mas da mãe uterina também, já que essa se dissolve com a supressão da
função patriarca. A mãe uterina é a mãe edipiana, já integrada a um sistema
patriarcal, seja como vítima, seja como cúmplice. O homem do novo nasci-
mento somente existe renascendo da carrasca, desdobrado por essa. Se
Severino fosse um simples marido, ou seja, se ele não conseguisse conven-
cer Wanda de sua posição de escravo, não se desdobraria, e assumiria a
reconhecida condição de homem sexual.
=> Observação: nas obras de Sacher-Masoch há, certamente, he-
róis masculinos; porém, os dois grandes personagens se apresentam sob o
signo de Caim e de Cristo. Caim, o preferido da mãe, comete o crime para,
justamente, romper a aliança com o pai: ele mata Abel, o preferido do pai,
o responsável por difundir a ordem patriarcal. Se o crime de Caim, então,
pertence inteiramente ao mundo masoquista, é porque o seu projeto se
inspira na opção pela mãe em detrimento ao pai.
=> Outra observação: o projeto de Caim permanece insuficiente,
pois o pai retorna e pune Caim. É necessário um segundo episódio: Cristo.
119 SADE, 1999.
120 DELEUZE, 1983, p.64; p.65.
82
Novamente é a mãe que põe o filho na cruz; porém, nesse segundo episó-
dio, ela assegura ao filho uma ressurreição como segundo nascimento li-
vre da tradição patriarcal. Dois episódios, dois movimentos: sofrimento de
Caim (condição que se espera e se supõe), renascimento de Cristo (prazer
que se tarda). Caim faz o que faz pressupondo o seu sofrimento, esperando
pela dor. Não há dúvida de que romper com aquilo que se é é doloroso, mas
Cristo ressuscita como um novo homem, agora suspenso no gelo.
=> Nota: para o pensamento deleuziano, o encontro entre um sá-
dico e um masoquista é impossível: não haveria prazer no sádico se seus
crimes não causassem lágrimas, e não haveria prazer no masoquista se o
seu projeto não envolvesse uma carrasca Ideal, educada por ele mesmo.
=> O escândalo provocado pelo masoquismo está no fato do maso-
quista destruir a si mesmo. Em outros termos, a Forma a ser pervertida
está no próprio criador do procedimento: o masoquista. Trata-se de pla-
nejar a perversão de si mesmo. Os críticos, segundo Deleuze121, em Apre-
sentação de Sacher-Masoch, não encontram sentidos porque somente são
capazes de enxergar um aspecto negativo na perversão, não sendo capazes
de imaginar, sob um aspecto positivo, que essa possa produzir algo novo.
83
um modo muito triste, visto que quando se tem apenas um, esse tende a
ter que suprir determinadas expectativas; (6) Joga Roberte para a indeter-
minação, visto que já não pode reconhecê-la.
=> Octave sabe que somente se possui bem aquilo que já é possuído
pelos espíritos (entendidos como as entidades desprovidas de Formas),
aquilo que já não tem determinação, aquilo que é expropriado, posto fora
de si, desdobrado. Uma vez Roberte posta para fora de si, Octave encontra,
enfim, uma esposa totalmente desvinculada daquela referida Forma triste.
=> O projeto implica, mas não projeta a infidelidade da esposa;
o que ele projeta é a dissimulação da identidade pessoal. Toda a obra de
Klossowski tende para a dissolução das determinações, sobretudo da iden-
tidade pessoal, a mais pretensiosa das Formas. Dissolução não somente da
identidade de quem é desdobrada, no caso Roberte, mas também daquele
que a concebe, no caso Octave: ambos se põem para fora de si mesmos,
visto que agora há mil Robertes para refletir Octaves. Isso porque a função
desse não se limita a de planejar o projeto, mas se estende a de voyeur; ou
seja, além de oferecer a sua própria esposa aos hóspedes, Octave ainda se
posiciona num lugar neutro para ver, sem ser visto, a sua mulher em ação.
=> A dissolução do Eu, em Klossowski, deixa de ser uma negativi-
dade, uma perda, para ser a mais alta afirmação de uma potência positiva.
=> Há, nesse autor, uma teologia: a teologia entendida como a ciên-
cia das entidades não existentes. Nesse sentido, a multiplicação de Roberte
é teológica porque essa é ofertada aos espíritos. Esse é um aspecto, mas
ainda há outro. Além de teológicos, os projetos de Klossowski são também
pornográficos, o que faz da sua teologia uma teologia peculiar, comple-
tamente desvirtuada da tradicional. Segundo Deleuze,123 a construção de
personalidades pertence à ordem de Deus, a qual é inimiga da ordem dos
espíritos, pois Deus quer conservar as personalidades, sobrepô-las a eles.
A ordem de Deus é a ordem das identidades, dos Eus e de tudo aquilo que
concentra forças ao ponto de enfraquecê-las para torná-las reconhecíveis.
Deus abocanha os outros deuses, mais conhecidos como demônios (ou es-
píritos indeterminados), para julgá-los ao seu gosto. Deleuze124 faz a seguinte
84
leitura de Baphomet125: a ordem de Deus faz a triagem dos sopros126, sele-
ciona-os e, por fim, impede os selecionados de se misturarem com os não
estriados, com os sopros estranhos, os quais passam a ser evitados: sopros
considerados maus, não desejáveis. Acontece que os espíritos têm má von-
tade em relação a essa tarefa desagradável. Essa má vontade é óbvia, visto
que os sopros se misturam naturalmente. Então é também óbvio que, por
vezes, apareça um espírito que, embora tenha sido selecionado, rebele-se e
se revolte contra essa ordem absurda. O rebelde não deixa esquecer que os
selecionados continuam sendo sopros, e isso faz implodir a ordem de Deus.
A ordem da perversidade implode a de Deus, e isso não é tão difícil de acon-
tecer, visto que esta é somente uma derivada daquela. A diferença entre as
ordens, portanto, não é a de um bom Deus de um lado e de espíritos maus
de outro, um alto e um baixo mundo, pois só o que há são espíritos maus, e
no alto mundo o que há são espíritos ainda maus, porém, catalogados. Espí-
ritos maus que violentam, entram vários no mesmo corpo ou um só possui
vários: orgia (não sabemos onde começa um corpo e termina outro). Teolo-
gia, portanto, porque o que interessa são os espíritos, entidades irredutíveis
às determinações; pornografia porque, diante das eventuais determinações,
somente o que pode acontecer é o rompimento dessa ordem. E se há uma
ordem anti, essa é a de Deus; e se há um primado, esse é dos sopros.
=> Há dois termos complementares nesse raciocínio: a disjunção
e os puros sopros. O primeiro termo diz respeito ao desdobramento de
Roberte, em que há uma disjunção entre aquilo que ela era e reconhecia-
-se, e aquilo que ela torna-se. O segundo termo diz respeito à nova ordem
em que Roberte é lançada, cuja principal peculiaridade é a de fazer diluir
todas as Formas. Um termo sem o outro permanece na negatividade, e por
isso precisam estar em pressuposição. O primeiro, funcionando sozinho,
funciona como uma disjunção negativa, visto que aquilo que não ganha
realidade acaba excluído. Ou seja, aquelas virtualidades de esposas que
não são vistas por Octaves, são excluídas, como se Octave fosse um Deus
capaz de delegar existências. Porém, com o segundo termo pressuposto,
a disjunção se torna positiva, pois, ao invés de a disjunção indicar que
125 Trata-se do título de uma obra de Klossowski. Não tivemos acesso a ela.
126 Podemos (numa tentativa que implica perdas e ganhos conotativos) dizer que os sopros, nesta
perspectiva, têm a ver com movimentos instintivos e caóticos, desprovidos de codificações,
significações e subjetivações.
85
algumas forças são excluídas em virtude de algo a formar-se, indica que
cada força se abre ao infinito, com a condição de perder a sua identidade ou
a sua Forma. A disjunção continua sendo uma disjunção, mesmo quando
algo Forma-se, e a divergência se torna a condição para as Formações, e
não uma derivada dessas. Como condição, a disjunção alcança um nível
superior: o dos puros sopros.
=> Conforme Deleuze127, portanto, não foi apenas Sade que havia
permanecido na negatividade, mas também Klossowski, até chegar aos pu-
ros sopros, ao segundo termo.
=> O principal objetivo de Klossowski, com a invenção de seus per-
sonagens Roberte e Octave128, ou Roberte e Théodore129, é justamente a
conservação da suspensão: o marido faz o que faz com Roberte com o
intuito de mantê-la sempre suspensa, para que ela possa vir a se tornar
qualquer coisa, independentemente de uma personalidade. Ora, nada há
de perverso em negar aquilo que nos parece Formado. Caso contrário,
poderíamos permanecer no leão, sem nunca experimentarmos a criança
(para usarmos a imagem nietzschiana); é por isso que, no procedimento
de Klossowski, a questão é, em vez de negar, retardar as determinações:
quanto mais hesitarmos para determinar Formas, tanto melhor. (Nesse
ponto, Klossowski se aproxima mais de Sacher-Masoch do que de Sade.)
86
=> Como Sacher-Masoch, Kafka deseja outra coisa que não a esfera
criada e representada pelo pai.
=> Eis positividade do procedimento kafkaniano: ao invés de, sim-
plesmente, fugir do mundo que o desagrada, Kafka permanece nele, mas
não sem o fazer transgredir. Além do aspecto positivo, encontramos aí o
caráter masoquista do procedimento; afinal, Kafka se reinventa perma-
necendo junto à sociedade que o aflige; mesmo o sofrimento sendo um
pressuposto.
=> O pacto é diabólico na medida em que ele faz dissolver o contrato
conjugal. (Quando Deleuze e Guattari131 usam o adjetivo “diabólico” para
se referirem a esse pacto, devem estar na mesma perspectiva do Deleuze132
de “Klossowski ou os corpos-linguagens”. Perspectiva essa que considera a
ordem de Deus como sendo aquela que Forma, e a ordem demoníaca como
sendo aquela que deforma, espalha, esquarteja, desintegra etc.)
=> O que aflige Kafka? Os papéis determinados, os segmentos du-
ros, as leis.
=> Qual é a sua postura diante da sua aflição? Apropria-se dela.
=> Uma vez apropriando-se, como procede? (1) Cria as persona-
gens jovens; (2) Faz com que essas funcionem encontrando as saídas, as
brechas que todo segmento social deixa; (3) Elas indicam essas brechas
aos personagens principais, os quais se apresentam vivendo no limite dos
segmentos; (4) Tudo muda quando eles se deparam com as jovens, as quais
os fazem perceber que todo campo social, apesar de segmentado, é um
fluxo contínuo, bastando achar os conectores; (5) Uma vez redimensio-
nado o segmento, os personagens principais também se redimensionam;
conectam-se com segmentos inimagináveis até então, ficando perdidos,
agoniados e, momentaneamente, despersonalizados.
=> Esse segundo procedimento kafkaniano é operado, segundo De-
leuze e Guattari133, nos romances.
=> Embora coadjuvantes, são as personagens jovens que operam a
transgressão.
=> Por vezes, os conectores são indicados pelas jovens; por outras,
os conectores são as próprias jovens.
87
=> Para Kafka, o campo social é um fluxo ininterrupto, mas que o
homem, limitado a certos segmentos, não percebe isso, percebe, ao contrá-
rio, o campo social como um campo estável. São necessárias, então, funções
conectoras, para mostrar as brechas, e essas funções são exercidas, justa-
mente, pelas jovens: “é quase sempre uma jovem que encontra a porta de
serviço, isto é, que revela a contiguidade do que se acreditava distante, e
restaura ou instaura a potência do contínuo”134.
=> O procedimento de despersonalização envolve o que chama-
mos de orgia, já que as personagens se compõem como misturas de vá-
rias funções entrelaçadas, e uma vez juntas, tornam-se indiscerníveis.
As mulheres kafkanianas, dizem Deleuze e Guattari, “são em parte ir-
mãs, em parte empregadas, em parte prostitutas”135. Irmãs, empregadas e
prostitutas: juntas numa só personagem, fazendo os segmentos vazarem.
As irmãs, pertencendo às famílias, são as mais habilidosas para fazer ou
deixar a família fugir; as domésticas, pertencendo aos investimentos so-
ciais, sempre conhecem as portas de saídas; as prostitutas estão nos cru-
zamentos desses investimentos sociais ou, ainda, são as próprias brechas.
A prostituta funciona como a falha do sistema familiar; porém, devemos
entender a brecha ou a falha sob uma perspectiva positiva, afinal, a pros-
tituta testemunha o fluxo contínuo, e a família, ao contrário, testemunha
o segmento como se ele pudesse permanecer em repouso. Ou seja, se há
uma função negativa aí, essa função é a da família. O interessante é que
nenhuma dessas três funções vale por si mesma, de modo que é preciso
que elas estejam juntas numa só personagem, sendo por isso que a irmã
não funciona como uma simples irmã engajada no projeto familiar; a or-
gia em que a irmã participa com a empregada e com a prostituta dissolve
a irmã que dizemos conhecer. Além disso, a prostituta, justamente por
estar misturada com as outras duas, jamais aparece como uma mulher
que cobra por serviços sexuais (pelo menos não explicitamente), mas
aparece sempre como uma insinuação. São ares de prostituta e não papel
de prostituta.
88
Do procedimento de deformação (Bacon)
=> Conforme Roberto Machado136, a questão presente em todas as
páginas de Francis Bacon: lógica da sensação137 é: “como escapar da repre-
sentação na pintura?”. O desafio de Bacon é, nessa perspectiva, pintar sem
lançar mão da representação; pintar sem contar histórias; expressar “uma
figura não figurativa, desfigurada, deformada”.
=> Figura X Figuração: quando Bacon consegue pintar o grito
mais do que o horror, faz Figura; quando acaba pintando o horror, faz
figuração. Pois enquanto o grito é apenas um grito, o horror é um grito
significado, ilustrado.
=> O que aflige Bacon? As ilustrações e as figurações.
=> Qual é a sua postura diante da sua aflição? Apropria-se dela.
=> Uma vez apropriando-se, como procede? (1) “Distingue na sua
pintura três elementos fundamentais: a estrutura material, a área redonda-
-contorno e a imagem”138; (2) Expressa o primeiro elemento com grandes
superfícies planas, as quais não funcionam como paisagens: não as coloca
embaixo da Figura, mas no mesmo nível do que essas; (3) Faz do segun-
do o limite comum entre os outros dois elementos; isola a imagem de tal
modo que ela não seja forçada a imobilizar-se; (4) Expressa o terceiro de
um modo que a imagem se faça Figura e não figuração.
=> Sobre o primeiro elemento: Deleuze diz que, em Bacon, “nem
a sombra nem mesmo o preto são sombrios”139. Isso significa que as som-
bras e o preto não funcionam como um fundo feito para destacar a ima-
gem; pelo contrário, as superfícies planas são tão importantes quanto as
Figuras, a tal ponto que o efeito é o de um único plano. Diz Bacon, sobre o
seu próprio procedimento: “tentei tornar as sombras tão presentes quanto
a Figura”140. Além disso, a estrutura material não funciona como paisa-
gem, visto que não está ali para estabelecer um contexto ilustrativo.
=> Sobre o segundo elemento: por que isolar? “Bacon diz com fre-
quência: para conjurar o caráter figurativo, ilustrativo, narrativo que a Figu-
ra necessariamente teria se não estivesse isolada. A pintura não tem nem
136 Esses dois fragmentos de Roberto Machado se encontram na orelha do livro Francis Bacon:
lógica da sensação (DELEUZE, 2007).
137 DELEUZE, 2007.
138 Idem, p.15.
139 Ibidem.
140 BACON apud DELEUZE, 2007, p.15.
89
modelo a representar, nem história a contar”141 [grifo do autor]. É preciso,
então, duas providências: (1) Isolar a imagem da sua relação com o objeto
que insistiria em ilustrá-la (para que o sorriso, por exemplo, não permaneça
vinculado à alegria; nem o coração preso ao amor etc.); (2) Isolar a imagem
de outras imagens; afinal, como diz Deleuze, “a narrativa é o correlato da
ilustração. Entre duas Figuras, há sempre uma história que se insinua ou
tende a se insinuar para animar o conjunto ilustrado”142. Essa segunda
providência age, portanto, possibilitando que imagens possam aparecer
lado a lado sem com que isso implique um raciocínio constituído de início,
meio e fim, ou um caráter de complementação ilustrativa ou explicativa
(no sentido de uma imagem ilustrar ou explicar a outra).
=> Sobre o terceiro elemento: o segundo elemento (a área redon-
da) possibilita uma proximidade absoluta da grande superfície plana com
a imagem: ambas são percebidas no mesmo plano de visão. Assim, temos
um sistema fechado, no qual a imagem passa a se constituir como Figura:
“é esse sistema, essa coexistência de dois setores um ao lado do outro, que
fecha o espaço, que constitui um espaço absolutamente fechado e girató-
rio, muito mais do que se procedêssemos com o sombrio, o obscuro ou o
indistinto”143. A partir do momento em que a imagem se constitui como
Figura, passa a se sustentar por si mesma, no sentido de que é capaz de
produzir perceptos e afetos (elementos não conceituais, próprios da arte)
que absolutamente independem de metáforas e/ou de conhecimentos re-
presentacionais previamente estabelecidos.
=> Aparentemente, um paradoxo: ao mesmo tempo em que temos
um único plano, um único sistema, temos, ainda assim, o isolamento do
terceiro elemento (a imagem). Isso se explica na medida em que tal iso-
lamento é apenas um passo do procedimento, que diz respeito ao livrar a
imagem de sua figuração.
=> Sem dúvida, em nenhuma outra obra Deleuze usa tanto a ex-
pressão “procedimento” quanto em Francis Bacon: lógica da sensação. Além
disso, podemos dizer que esse livro é, efetivamente, a apresentação de um
procedimento: inúmeros pequenos procedimentos constituindo o grande
procedimento de Bacon. Diante desse grande, detemo-nos naquilo que
90
vem caracterizando todos os procedimentos aqui apresentados: chamemos
essa característica de “guerrear na casa do inimigo”. Todos estabelecem
as suas batalhas justamente nos territórios de seus inimigos: na casa das
significações/inteligências (Proust); na casa dos valores morais (Sade);
na casa da sociedade patriarcal (Sacher-Masoch); na casa das identidades
(Klossowski); na casa das conjugalidades e das pessoalidades (Kafka); e na
casa das ilustrações e das figurações (Bacon). Tal característica pode ser
encontrada em diversas passagens dessa obra, dentre as quais seleciona-
mos esta: “eis por que há flou em Bacon, até mesmo dois tipos de flou. (...)
No primeiro caso, o flou é obtido não por indistinção, mas, ao contrário, pela
operação que ‘consiste em destruir a nitidez pela própria nitidez’”144. O flou,
tradicionalmente, é o efeito obtido através da estratégia de se embaçar a
imagem, de deixá-la nublada, turva ou tremida. Tradicionalmente, portanto,
destrói-se a imagem a partir da negação de sua Forma (a partir do simples
efeito abstrato, por exemplo). Porém, o que torna Bacon um inventor de
procedimento são detalhes como este: apropria-se da imagem com toda a
sua carga conotativa Formalizada, iniciando o empreendimento a partir daí.
Trata-se de “extrair a Figura do figurativo”145. Em vez de subtrair clareza a
partir da indistinção, luta com a nitidez no terreno da própria nitidez.
144 Ibidem.
145 DELEUZE, 2007, p.17.
146 DELEUZE, 2003b; 1983.
91
O erotismo diz respeito, então, a um processo de desintegração de uma
Forma e, nesse sentido, podemos concebê-lo como um procedimento de
reinvenção daquilo que parece tão estacionado, tão verdadeiro, tão imutá-
vel; mas que efetua tal reinvenção a partir de uma dissimulação, a partir
de uma atitude que toma a Forma de uma maneira, no mínimo, inusitada.
O erotismo, afirmamos, é um procedimento, e o procedimento, por
sua vez, é sempre um caso de erotismo. Não se trata de um procedimento
sobre o erotismo, mas o próprio erotismo se constituindo num procedimen-
to, e o próprio procedimento sendo um caso de erotismo.
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93
(Des)truísmos de velhas estruturas para poder
construir novas? Ato de criação e a ocupação de
um certo espaço e tempo
rbuh Tesseler
Fani Ave
“Como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva”.
Clarice Lispector começa assim um pequeno conto chamado nada menos
do que “Tentação”149. A cidade tropical, cheia de luz excluía. Perigo sair ao
sol do verão. Praia cheia e ninguém na rua. Paciência. Que fazer de uma
menina ruiva? “Numa terra de morenos, ser ruiva era uma revolta invo-
luntária”. Até mesmo o irmão que dobrou a esquina, fixando-lhe o olhar a
despertar sua esperança de companhia, por ali passou – um Basset ruivo.
Foi com sua dona, enfim. A menina fascinada pedia pelo cachorro que a
fixava tão surpreendido, encabulado e cheio de urgência quanto ela. Diz a
autora150: ‘Mas ambos eram comprometidos”. Na infância ruiva impossível
e na natureza aprisionada do cão. Ela, a inocência que só se abriria quando
fosse uma mulher.
Na adolescência, passou a conhecer e conviver com pessoas diferen-
tes daquelas de sua própria comunidade familiar étnica, saindo do casu-
lo família, escola, amigos, bairro. Custou, mas acabou percebendo que os
costumes, signos, atividades, lugares e papéis de cada um eram diferentes
para seus novos amigos na escola pública. Ainda mais estranho e banal é
que para cada grupo seus próprios valores e costumes eram considerados
os únicos corretos, naturais, óbvios e essenciais. No primeiro ano, curso
clássico, início dos anos 70, nem sequer conseguia estranhar as diferenças,
pois estava imersa na sua origem e também a considerava natural, a única
forma possível. As dificuldades e diferenças foram ficando claras no decor-
rer daquele ano, até que percebesse e começasse a observar, ouvir e engo-
lir, deglutir e aproveitar a cultura do outro. Outro? No início era só (con)
95
viver, só ver. Depois foi crescendo em idade, carne e pedra. Empedrando
e emparedando-se, como o gato negro de Poe151, enterrado na parede por
descuido ou magia – só quem convive com gatos sabe como isso se dá,
eles se metem por tudo e nem se vê. Mas, aquela de antes, aquela outra, lá
dentro miando, gritando e silenciando cada vez mais, gradativamente ia se
esquecendo e curtindo ser do mundo. Se negando e aderindo ao transfor-
mar-se. Verdade possível ou ilusão? A estrada continuava branca de sol se
estendendo sobre o horizonte verde, azul, amarelo, vermelho...
Proponho-me a pensar o ato de criação, com Deleuze152, a partir do
que ele coloca quando diz que é o espaço-tempo que se constitui como o
limite comum a todas as séries de invenções. “Se todas as disciplinas se co-
municam entre si, isso se dá no plano daquilo que nunca se destaca por si
mesmo, mas que está como que entranhado em toda a disciplina criadora,
a saber, a constituição dos espaços-tempos”153.
Lembro então da História, já que são o tempo e o espaço, em suas
várias formas de ocupação, duração e utilização, seus dois conceitos de
base. Pensar a história ou a verdade em História como ciência se configura
em seu avesso, na prática escolar. Esta é um lugar focal, onde se desenvol-
ve certa discursividade, com legitimidade para se colocar entre sujeitos
e contextos, entre espaço e tempo na escola. O sentido e finalidade do
discurso histórico desde o século XIX, quando do surgimento do estado
nação e dos primeiros sistemas escolares, esteve relacionado a construções
discursivas, comprometidas com processos de criação identitários, que
buscam marcar-se como leais a diferentes discursos de pertencimentos à
própria nação em formação, territórios de fronteiras, onde se dá sua pro-
dução, distribuição e consumo.
Disputas de pertencimento, de memórias coletivas e individuais; de
produção de alteridades no tempo e no espaço, passíveis de deslocamen-
to, de afirmação da diferença que problematiza tanto a identidade fixada,
monolítica e essencializada154, enquanto, adianta-se sobre práticas pedagó-
gicas que se limitam a aproximar alunos e conteúdos pelas similaridades
e identificações, partindo da realidade que é o sujeito aluno. Justo, porém
96
não exclusivo. Viver diferenças ensina outros possíveis. Compõe-se a prá-
tica, alternativamente, com a apresentação e aproximação do outro, da
alteridade, destacando a diferença, a diversidade, a existência de formas as
mais diversas de viver, ensina-se a tolerância, a possibilidade minoritária
do devir155. Processo lento e trabalhoso para meninas ruivas em terras
ensolaradas, entre outros.
Quanto à ciência histórica tomada como verdade, que se utiliza do
registro escrito, a narrativa ou a escrita da História, que nunca foram fei-
tas de uma só forma, apesar do conforto em se acreditar nisso, em assegu-
rarmo-nos156 da existência de uma única verdade. Como se fosse possível a
existência de uma identidade mesmo que imaginada, que cresceu evoluin-
do até nós, desde a pré-história157, trazendo-nos o consolo de nossa própria
imagem. Buscar formas de legibilidade da História, através do tempo inin-
terrupto, que sempre se desenvolve em, um certo, mesmo sentido, é partir
do pressuposto da verdadeira existência de uma linha contínua e evolutiva
que neste caso, seria a existência de uma verdade única, primordial e ir-
revogavelmente envolta pela questão do tempo e de sua linearidade, mas
criada por nós mesmos. Recorre Foucault 158 à crítica deste pretenso sen-
tido universal de toda uma tradição na História (teleológica ou raciona-
lista), que pré-vê em cada acontecimento singular, uma continuidade ideal
ou encadeamento natural. Lamentamos todos nós, no fundo, que as coisas
não sejam bem assim. Se a realidade e suas transformações históricas não
são tão simples, lineares ou inexoráveis, ficamos a mercê do acaso. Quem?
Mesmo que haja quem assim afirme, as forças que se encontram em
jogo na História jamais estiveram obedecendo a uma determinada destina-
ção, muito menos a um pré-plano ou esquema mecânico. São forças que se
vão construindo a si mesmas no acaso da luta. “É preciso ainda compreen-
der este acaso não como um simples sorteio, mas como o risco sempre re-
novado da vontade de potência que a todo surgimento do acaso opõe, para
controlá-lo, o risco de um acaso ainda maior”159. A verdade, especialmente
em História, não é e não narra a realidade nua, dos fatos verdadeiros, a que
97
o pesquisador pode chegar pela intensa coleção de dados documentais que
consegue juntar, não é buscar a totalidade como categoria fundamental e
possível, nem tentar alcançar alguma essência profunda. Essa História que
busca uma revelação, como um tirar do véu do passado, único e absoluto
inscreve-se em um tempo artificial, por sua vez criado por alguns, embo-
ra pensado como natural e querendo garantir aquilo que é da ordem da
natureza humana e do desvendar da verdade. Principalmente, não existe
nenhuma certeza de que ela esteja lá em algum lugar do passado, pronta
para ser revelada, descoberta por um cientista, que como tal deve ser isen-
to. Isento?
Quando trabalha sobre o ato de criação, Deleuze afirma que nin-
guém cria sem uma necessidade verdadeira. Aquele que é um criador não
inventa por prazer, “só faz aquilo de que tem absoluta necessidade. Essa
necessidade – que é uma coisa bastante complexa, caso ela exista – faz com
que um filósofo se proponha a inventar, a criar conceitos, e não a ocupar-se
em refletir”160.
De maneira complementar, a construção da idéia de tempo contí-
nuo, de linha evolutiva, ao se projetar na História, retroativamente, lança
conceitos modernos para um passado idealizado, contribui para a noção
de um imanente ou inerente humano que está lá, dado, em um certo mo-
mento, e que vai a partir daí até hoje, continuamente para o futuro. Uma
essência, uma linha ou característica dominante, que faz dos que a tem
os melhores dentre os demais. Essa maneira de entender a História não
considera a presença do sujeito e sua própria linguagem no contexto. Os
fatos são coisas postas num espaço vazio e não textos, interpretações ou
práticas discursivas para serem trabalhadas. Foucault 161 nos avisa que “É
preciso despedaçar o que permitia o jogo consolador dos reconhecimentos.
Saber, mesmo na ordem histórica, não significa ‘reencontrar’ e sobretudo
não significa ‘reencontrarmo-nos’”. A Historia será ‘efetiva’ na medida em
que ela reintroduzir o descontinuo em nosso próprio ser”. Nesse arranjo, o
historiador (ou outro cientista) no dever de relatar e contar a verdade pre-
cisaria, para fazer ciência, ocultar sua identidade, no afã de se distanciar da
verdade dos fatos, com um olhar neutro, observador sem posição no jogo,
um ser exterior à sociedade.
160 DELEUZE, 1987, p.3.
161 FOUCAULT, 1989, p.27.
98
Mais uma vez, aparece aqui, o historiador que se limita a desvelar
o que está dado, e que invariavelmente só pode ser revelado por quem tem
o domínio do saber necessário para isto. Em outras palavras, o ponto de
vista é o de quem já sabe o significado da História a partir de si próprio, de
sua própria cultura e posição no mundo. Já sabe como se desenrola a His-
tória, já que esta teria apenas uma linha num contínuo, um tempo único
para todos, um universal. Parece que só assim, este sujeito/cientista/his-
toriador poderia saber o que realmente aconteceu no passado, encontrar a
verdade histórica e conseqüentemente o futuro.
Mas, quais são as imagens do passado verdadeiras e reais com as
quais a História trabalha? Qual é o real, real? A verdade verdadeira? A
minha ou a deles? Existe um universal verdadeiro e matéria prima do his-
toriador? Há um movimento de procura do saber, não para dissolvermo-
-nos a nós mesmos em um movimento natural, ou para colocar a História,
o acontecimento e sua verdade em uma continuidade ideal, mas para fazer
com que o acontecimento ressurja em sua singularidade e intensidade.
Historicizando as práticas que herdamos, contatamos com outras formas
culturais, outras maneiras de viver e isso é que nos permite pensar a pos-
sibilidade de mudança. Pois se nem sempre foi como está, poderá vir a ser
diferente. Já que não há uma temporalidade única, é possível uma atitude
que nos faça tentar encontrar e entender o outro, o diferente de nós mes-
mos, aceitando outras formas de percepção histórica, mais complexas ou
não, como reais e verdadeiras diacronicamente, ou ainda, partir do contato
com modos diferenciados de vida.
São possíveis, assim, novas relações de forças, entre saberes, entre
aqueles que os manipulam, classificam, utilizam. Estas relações se (re)for-
çam, se (re)equilibram, se (re)instituem como um possível. A singularida-
de do evento entra em cena para, em sua complexidade, ser um texto em
si mesmo, pois a multitemporalidade de que se constitui, onde o tempo, o
espaço e o sujeito que escreve, que narra, tomam parte na ação, fazem par-
te do (des)equilíbrio das forças em jogo. Múltiplos são os elementos que
se dispõem para a construção das possibilidades para a (des)construção de
um saber histórico, dado como legítimo.
99
A esse respeito acrescento a posição de Foucault162, ao denunciar
a desqualificação da tecnologia de verdade, existente ao longo de vários
séculos e que aos poucos foi sendo desviada e expulsa pelo dogma da ci-
ência e pelo discurso filosófico. Este autor conclui: “Afinal não há uma
verdade dada na realidade esperando para ser revelada pelo pesquisador/
cientista, mas uma razão, uma determinada lógica na narrativa histórica,
ocupando uma posição estratégica no jogo de poder e instituída, então,
como verdade.
Referências
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do),1987. Disponível em: http://www.dossie_deleuze.blogger.com.br/
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PEREIRA, Nilton Mullet, ALMEIDA, Cybele Crossetti e TEIXEIRA, Igor Salomão.
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POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. (Trad. Pietro Nasetti.) São Paulo: Martin
Claret. 2000.
100
Pensando as artes de si
e a produção da diferença em Michel Foucault
ra
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u el E d mundo L
Sam
Sujeito e Verdade
101
seus efeitos. Amainar o perigo de uma vida sem referência, sem essência,
sem alvo. O sujeito transcendental promete um abrigo seguro dos males
de uma vida na superfície. Ele está no início de cada proposição, justifica
cada argumento e apaga toda a diferença que desorganiza o cosmos. Ele é
senhor de toda a verdade, que nele encontra seu abrigo seguro contra as
peripécias de uma vida. Se há verdade é porque ela nele está encarnada,
à espera de aparecer triunfante para dar brilho à opacidade da superfície.
Trata-se de um sujeito pensado como intrinsecamente capaz de
verdade, que ignora a vida, mas, sobretudo, que descola a verdade da espi-
ritualidade, descola a verdade da potência e dos efeitos de suas ações. Se o
sujeito transcendental é o lado escondido de nós mesmos, como multipli-
cidades, ele nos oferece a verdade independente da nossa atitude ética163.
Todos e cada um pensamos o que somos, porque em algum momento se-
remos capazes de dizer a verdade, de produzir conhecimento verdadeiro,
essa é a nossa essência e a fonte da nossa movimentação. Essa produção de
verdade do sujeito transcendental é descolada das nossas sensações, uma
vez que a verdade não é um valor que se transvalora, ela não modifica a
subjetividade, não torna aquele que a detém ou a produz em um outro em
relação ao que era antes. A verdade passou a ser, desde Descartes, através
do cogito, uma atividade que está situada em outra esfera que não a vida.
Esse sujeito capaz de verdade não é capaz de transfiguração em razão da
verdade que enuncia.
Na analítica da finitude o homem aparece como o lugar a partir
de onde se pode fundar todo o conhecimento que temos. Como objeto de
estudo da filosofia, o homem se torna o sujeito transcendental que funda
o conhecimento que temos. Assim, ele deixa de ser mero objeto empírico e
passa a ser o sujeito fundante que escapa das malhas da história.
A outra parte da resposta, então, é o próprio homem, face e o mesmo
que o sujeito transcendental, elemento natural que funda o conhecimento
que temos. Faz-se único, se insinua e se afasta, mas, uma vez transcendental
é também empírico, senhor de toda a obra, enunciado pelas ciências empí-
ricas, mergulhado nas malhas do saber da modernidade, ele nos conduz
sempre para aquele jogo de azar, se aproximando como aquele que trabalha,
que vive e que fala, se distanciando, como aquele que funda sua própria
102
existência corpórea e empírica. Sujeito de e do conhecimento, o que ele é na
vida, no trabalho e na linguagem, está sempre uma vez deslocado do que
ele é em essência, na transcendência. Um ser que rasteja, ao mesmo tempo,
contempla o zênite; um ser que nasce desviado da sua origem, sempre re-
cuada, sempre prometida como alvo e nunca reencontrada. Duas respostas
ao problema da finitude, duas respostas que a analítica da finitude oferece a
fim de exorcizar o caráter móvel das máscaras que trilham pela superfície.
O que é o sujeito? Como pensá-lo como efeito de qualquer outra
coisa? Como supor que ele pode ser elaborado no solo da superfície? Mi-
chel Foucault promoveu uma longa pesquisa para tratar do sujeito. Não
o homem, não o sujeito transcendental, não o homem em seu estado ori-
ginal, nem o homem como manifestação empírica da sua origem recuada.
Mas, uma pesquisa sobre o sujeito e a verdade. Uma pesquisa sobre como
a verdade de tempos em tempos nos torna sujeitos, nos (dá) forma. Um
estudo sobre a superfície, na crença de que o mundo é apenas superfície –
solo onde vemos estados de acontecimentos e onde pulsam virtualidades.
O projeto foucaultiano foi de pensar o sujeito na superfície da história. E
isso implicou abandonar o barco da analítica da finitude; significou perder
o medo do caos, da vida e do fato de nada haver além dos bancos de areia
nos quais as relações produzem a vida.
“Que é o sujeito?” passa a ser uma pergunta para dissolver o sujeito
e arremessá-lo no solo irrepetível da história. Para Foucault, o sujeito não
é uma substância. É uma forma, e essa forma não é idêntica a si mesma.
Nunca há consigo próprio uma mesma relação quando se constitui o sujei-
to político que vota numa assembleia ou toma a palavra num ato público;
ou mesmo quando se busca atender ou realizar um desejo. Há, sem dúvida,
relações de interferência entre essas diferentes formas, porém, não esta-
mos na presença do mesmo tipo de sujeito. Em cada caso se estabelecem
consigo formas e relações diferentes, formas históricas constituídas por
jogos de verdade de uma época164.
Trata-se de negar a possibilidade de uma história que recolha na
consciência humana, ou na atividade sintética de um sujeito, ou no repou-
so sobre uma verdade escondida, o rosto, a superfície, o que acontece aos
homens de fato, suas práticas e os seus discursos.
103
Trata-se de negar essa mesma história que pensa o homem como
lugar transcendental e de onde ela mesma se produz e se julga. A busca
da origem, que se opõe a emergência e a proveniência, disposta no pensa-
mento moderno situa o homem desencontrado de si mesmo. Na medida
em que o homem se acha deslocado dele mesmo, o pensamento moderno
constitui-se em uma forma de perseguir ad infinitum aquilo que lhe esca-
pou: sua própria origem, sua identidade primeira, seu modo a-histórico de
ser. O homem nasce, na leitura foucaultiana, de um paradoxo do saber mo-
derno: ele somente pode ser contemplado através dos saberes empíricos da
Biologia, da Filologia e da Economia Política, que ele mesmo produz e que
o abordam como uma finitude que vive, fala e trabalha.
O sujeito deixa de ser o ser transcendental, ao mesmo tempo, pró-
ximo e distante da vida, e passa a ser uma composição, uma historicidade,
produto de um jogo, nem de sorte, nem de azar, mas um jogo de forças.
Decorre que pensar o sujeito para Foucault implicou pensar as relações e os
jogos de verdade do e com o sujeito. De certo modo, tanto o projeto de uma
arqueologia, quando de uma genealogia ou de uma estética da existência, o
problema é o sujeito e suas relações com os jogos teóricos, os jogos políticos,
os jogos morais e éticos. Eis sua história no pensamento de Michel Foucault
A arqueologia pensa o sujeito. Mas, pensa o sujeito criado no inte-
rior de uma rede discursiva, o objeto paciente do historiador que, critican-
do a história das idéias, conta uma história dos saberes, estejam eles no li-
miar de uma ciência ou ainda num estado pré-científico. O sujeito pensado
na arqueologia é aquele das posições ocupadas pelos indivíduos no interior
de discursos165. É função, é lugar de onde se fala. O sujeito que não está
posto desde o início do discurso, mas que é seu resultado; sujeito que não
habita um espaço de pureza de onde olha o mundo e escolhe ao bel prazer
do que fala, do que come, do que ama. Sujeito preso na armadilha dos sa-
beres, construído como lugar para se falar, comer, amar. Sujeitos e objetos,
todos eles construídos no interior das palavras. Essas que já não se opõem
mais às coisas, que não estão mais no lado de cá, como aquilo que se fala
sobre uma coisa. Porque falar é exercer uma violência sobre o mundo, é
cortar o caos e construir um domínio de objetos novos. Sujeito função, não
origem do discurso, ponto psicológico onde se sustenta a enunciação.
104
A arqueologia pensou o homem. Contou seu aparecimento, como
o sujeito universal fundamento de todo o saber, o homem iluminista, o
homem duplo, empírico-transcendental. Tamanha ambigüidade, descre-
veu Foucault: um ser enredado na empiricidade do mundo, dos saberes
empíricos, um homem que vive, trabalha e fala, conhecido justo pelo lugar
finito e empírico que ocupa; ao mesmo tempo, um ser recuado a uma ori-
gem intemporal, sujeito unidade e síntese de toda a empiricidade. Homem
que não é contemporâneo de si mesmo, recuado que está, fora do tempo a
conjurar sua estranha finitude.
Eis que o tema da identidade se põe ao conhecimento histórico – o
tema de uma cara escondida por baixo dos movimentos espontâneos e ca-
suais dos acontecimentos, uma forma primeira que já está suposta em toda
a pesquisa, que o que o historiador precisa é fazê-la aparecer no que tem
de contínuo e de universal. O tema da identidade escondida é correlata de
uma história que esconde as originalidades, que as considera mero torpor,
erros, máscaras. Máscaras que escondem o absoluto. Para Foucault o que
há na história, projeto de uma história nova, não são senão as máscaras, os
modos provisórios de apresentação de cada um, instalado em cada prática,
em cada dito.
Não há sujeito, nem psicológico, nem transcendental que possa es-
tar fora do jogo das forças, que possa subsistir ao tempo, que possa fugir ao
ralo comum da história, da historicidade. O sujeito psicológico e seu jogo
de intenções é estranho à história, já que o que acontece na história é pro-
duto de uma inversão das relações das forças, o que acontece é uma nova
configuração do jogo, nunca produto da vontade de um indivíduo. Mas, o
que acontece não é resultado de uma busca da origem, de um movimento
que se projeta para fora da história, a buscar uma identidade ou um sujeito
transcendental. O que ocorre é o fato no vazio, no vazio onde atuam as
forças, de onde novas configurações aparecem e se tornam objetos para
o nosso gozo e prazer, para o nosso fazer história. A história é a história
dos discursos. A sua escrita é a descrição das regras que fizeram aparecer
determinados discursos e não outros em seu lugar.
Michel Foucault pensou fazer uma genealogia. Uma história dos
começos. Não uma história da origem, mas do começo rasteiro e das rela-
ções de poder que se dispõem no começo de cada nova irrupção de acon-
tecimentos. O sujeito? Idem, agora um sujeito construído no interior de
105
uma cartografia de poder. O sujeito assujeitado pelas relações de poder. O
sujeito resultado de técnicas normalizadoras de poder. Disciplina, saber,
poder-saber, jogo que dá visibilidade a normais e anormais.
Temos agora uma história efetiva. Que recusa terminantemente a
origem, e que se serve da emergência e da proveniência. Uma história das
avaliações. Porque pensa que a história é a história dos modos como os ho-
mens criaram valores, avaliaram, de modo que cada avaliação só pode ser
avaliada a partir dos próprios fundamentos que lhes deram origem. Nada
do “aquilo mesmo”, da essência escondida da coisa”, de uma “identidade
primeira”. Afinal, atrás das coisas esconde-se um segredo, o “segredo de
que elas não têm segredo” ou que sua “essência foi construída peça por
peça a partir de figuras que lhes eram estranhas” (Foucault, 1988). Antes
de encontrar a origem, o que encontramos é o disparate, a discórdia. Ve-
mos aqui um Foucault muito mais demolidor, como que a usar um martelo
a fim de desconstituir os últimos bastiões de uma história dos homens,
para colocar em seu lugar uma história das relações de poder, uma história
de como essa relações estratégicas construíram e assujeitaram, silencia-
ram e tornaram visível. Uma história do corpo. De um corpo crivado de
história. “O corpo, e de tudo que diz respeito a ele, a alimentação, o clima,
o solo – é o lugar da proveniência; sobre o corpo se encontra o estigma
dos acontecimentos passados do mesmo modo que dele nascem os desejos,
os desfalecimentos e os erros; nele também eles se atuam e de repente se
exprimem, mas nele também eles se desatam, entram em luta, se apagam
uns aos outros e continuam seu insuperável conflito”166. O corpo, volume
em perpétua pulverização.
Aqui, com este verdadeiro culto ao corpo, vemos uma recusa sis-
temática da história supra-história, esta que recolhe sob a guarda de uma
totalidade todos os fragmentos. Eis ai uma história efetiva, que não se
sustenta em nada suficientemente fixo. O homem não pode basear-se nele
para contar a história de outros homens e se reconhecer neles.
Mas, Foucault também pensou uma história de nós mesmos, do si
e da sua relação com a verdade. Do modo como estabelecemos conosco
uma relação de cuidado. Do modo como, na cultura ocidental, criamos
uma prática de cuidado conosco mesmos. Nem um sujeito produzido pelos
106
sistemas de saber, nem o sujeito assujeitado pelas técnicas de poder. Uma
subjetividade construída numa relação de si consigo mesmo. Foi um projeto
de contar uma história, no ocidente, das relações entre o sujeito e a verdade.
107
por um deslocamento de entendimento em relação ao poder e de método
em relação a sua forma de investigação na produção de sujeitos. O último
Foucault é, pois, a revitalização da problematização do sujeito, não mais no
âmbito das técnicas de dominação (Poder) ou técnicas discursivas (saber),
antes de mais nada, da autoconstituição através do que ele denominou de
técnicas de si.
No dizer do filósofo:
108
dos prazeres numa vida de casamento em que nenhuma regra ou costume
impede os homens em terem relações sexuais extraconjugais, em relações
com os rapazes que pelo menos, em certos limites, são admitidas, correntes
ou até mesmo valorizadas. Trata-se, por exemplo, da instituição para si de
práticas de fidelidade não com um sentido universal, mas como uma mo-
ralidade pela qual organizamos e pensamos formas de nos conduzirmos.
Trata-se de pensar formas e modos de viver essa fidelidade de um modo
singular. Eis que aqui reside o entendimento das possíveis transfigurações
em Foucault. Trata-se, afinal, de uma preparação para tomar a verdade
como princípio de ação.
109
verdade precisa modificar a si mesmo, de certo que o preço a pagar para
acessar a verdade é a transformação do sujeito. A ascese é uma prática que
leva o sujeito, uma vez que cuida de si e exerce sobre si uma certa quan-
tidade de movimentos, se torna capaz de ter acesso à verdade. Então, é o
trabalho sobre si mesmo que leva o sujeito a se mostrar como tendo direito
à verdade. Nada de transcendental, mas de histórico, uma vez que é no
trabalho diário sobre si que o indivíduo se torna um sujeito que conhece a
verdade. Se para o pensamento moderno a verdade não passa de um efeito
do trabalho do conhecimento, na cultura greco-romana, a verdade é o que
“ilumina” o sujeito. Assim, a verdade, a qual o sujeito se deu ao direito em
função da ascese, tem como efeito a transfiguração desse mesmo sujeito.
Ela lança-se sobre ele, se volta a ele e o aperfeiçoa.
Desde Platão até os estóicos, não havia separação entre espiritua-
lidade e verdade. De certo que a prática filosófica era, ao mesmo tempo,
uma busca pela verdade e um exercício de transfiguração de si. Buscar a
verdade implicava uma atitude ética e estética. Para os antigos não estava
colocada a questão do saber como resultado de um método seguro de aces-
so a verdade, o que implicaria um acúmulo de saber para decifrar o mundo
e o sujeito. Mas, tratava-se de ver no saber um valor espiritual que propõe
a salvação do sujeito, a transfiguração do sujeito, um envergamento sobre
si que se lhe remete a uma conduta singular diante do mundo e de si mes-
mo. Saber sobre o mundo, não quer dizer acúmulo de certezas, mas acú-
mulo de ferramentas para enfrentar as surpresas da vida. Assim, conhecer
é agir; agir sobre si mesmo, na medida em que conhecer a verdade, é dizer
a verdade, é exercer a verdade para constituir a si mesmo, não como uma
sujeição a uma lei exterior que submete a um comportamento, mas como
um saber espiritual que leva à prática ascética, no sentido da produção de
uma quantidade de equipamentos necessários para transfiguração de si.
Ao abordar o tema das práticas de si, Foucault passou a tratar da
auto-formação do sujeito, nem o sujeito enredado na gramática do discur-
so, nem o sujeito efeito de práticas coercitivas, mas um sujeito fruto de
práticas e técnicas de si e para si mesmo.
Por essas práticas, Foucault172 entende o conjunto de “procedimen-
tos que sem dúvida existem em toda civilização, propostos ou prescritos
110
aos indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la em
função de determinados fins, e isto graças a relações de domínio de si so-
bre si ou de conhecimento de si por si”.
Nesse caso, Foucault trata de práticas de liberação, de formas de
relações nas quais o sujeito se volta para si mesmo, num movimento que
significa envergar a força para constituir uma subjetividade.
No caso das asceses antigas, o platonismo difere-se dos estóicos e dos
filósofos dos primeiros séculos do Império. No platonismo trata-se de buscar
algo fora de si, ou seja, o trabalho ascético se voltava ao reconhecimento de
uma ignorância e uma busca de algo que estava fora do sujeito, numa atitude
de descoberta da verdade. Uma verdade que o sujeito não sabe por ser igno-
rante, uma verdade escondida. No estoicismo trata-se de voltar a si mesmo,
retornar a um mesmo lugar, onde nenhuma verdade reside escondida, mas
significa construir um conjunto de procedimentos para enfrentar o mundo.
Parece ser esta, a ascese dos estóicos, o que mais encanta Foucault.
Nem a renuncia cristã, nem o vôo para o alto socrático-platônico, mas o
voltar-se para si proposto pelos estóicos. Isso de início quer dizer pen-
sar diferentemente do que se estabelece com Descartes, um apartamento
entre espiritualidade e verdade; para o empreendimento de um processo
estético de construção de si mesmo. Eis no que reside o interesse de Fou-
cault pela antiguidade, particularmente, pelo estoicismo. Desde as práticas
cristãs medievais, temos perdido a ideia de uma ascese que é prática de
liberdade, que é constituição de um estilo para si mesmo, que é um modo
artístico de se constituir.
Na antiguidade a busca pela constituição de uma ética era um “es-
forço para afirmar a própria liberdade e dar a sua própria vida uma certa
forma na qual podia se reconhecer e ser reconhecido por outros e onde a
posteridade mesma poderia encontrar como exemplo”173. Por outro lado,
com o advento da moral cristã essa prática de si como prática de liberdade
e de produção de singularidade, dá lugar a uma prática que obedece a um
código de regras exterior ao sujeito, uma vez que o cristianismo como “re-
ligião de texto” e de obediência a Deus, constitui uma moral a partir de um
código exterior ao sujeito e universal de conduta. Assim, a ascese antiga se
discerne da ascese cristã. Enquanto aquela realiza exercícios para atingir a
111
si mesmo, para voltar a si, esta realiza o exercício como submissão ao texto e
com o objetivo de uma renuncia de si. Abandonar a si para acessar um plano
exterior ao sujeito. Na ascese antiga a volta sobre si mesmo tem o objetivo
de constituir uma subjetividade através de um processo artístico. As práticas
ascéticas antigas não se pautavam pelo labor religioso, não tratavam de per-
guntar pelos Deuses, quem são os deuses ou como intervém na nossa vida,
preocupavam-se em pautar sua própria conduta moral. Preocupavam-se os
gregos em constituir uma ética que “fosse uma estética da existência”174. A
moral cristã supunha abnegação, busca de uma pureza em relação à vida, de
uma purificação da própria vida, contra a vida, tendo como referência uma
lei externa, superior, baseada no livro sagrado e na palavra divina.
Mas, inelutavelmente, os tempos atuais tem visto o abandono pro-
gressivo do modelo moral cristão. Um diagnóstico da nossa atualidade
mostra que tanto a crença em um Deus universal, quanto num código de
conduta moral único, tem perdido espaço. A estratégia de Foucault não é
retomar as práticas ascéticas antigas, mas reconhecer na experiência dos
antigos a potencialidade para pensar a atualidade. Na leitura dele a idéia
de uma moral como obediência a um código de regras está em processo,
presentemente, de desaparecimento; já desapareceu. E a essa ausência de
moral, deve responder, “uma busca de uma estética da existência”.
Emerge nas últimas entrevistas de Michel Foucault a ideia de uma
estética da existência que está relacionada a uma tentativa de retomar uma
“carta” do baralho do mundo antigo, a prática ascética como prática de
liberdade, como prática de constituição de uma singularidade. A forma-
-sujeito da antiguidade é, pois, uma composição de verdades. Mas a com-
posição também é o inventado (não copiado, nem imitado ou traduzido),
o próprio; não proveniente de outrem. O não usual; extraordinário, esqui-
sito. O singular. Porém, tudo proveniente de um jogo regrado de signos,
finalidades, afetos, efeitos. Uma composição de si torna-se assim uma com-
binação estilística possível de diferentes jogos de verdade.
Para quem pensou o sujeito como enredado nas malhas do discurso
ou como efeito de uma cartografia de poder, agora o que resta é pensar
a novidade e a diferença. É no sentido de uma estética da existência que
Michel Foucault procurou pensar a diferença.
112
Michel Foucault – um pensador da diferença e das virtualidades.
113
modos de ser ainda improváveis. Pensar em uma estética da existência não
é abordar a experiência vivida, mas a fonte virtual que reside no interstício
das relações – relações possíveis, ainda por inventar, a espera da expe-
riência. Trata-se, pois, de uma dimensão estético-existencial que implica
fazer-se diante da virtualidade que toda a prática vê flutuar em torno de
si. Produzir-se é absorver a energia vital do imprevisível.
É a partir dessa ética existencial, vinda da sexualidade, que Fou-
cault176 pensa a amizade, dentre outras possíveis, como uma estratégia
criadora dessa multiplicidade de relações possíveis, dessa virtualidade,
dessa potência. Ao tratar da questão da Homossexualidade, por exemplo,
o nosso filósofo é muito enfático ao dizer: “o que torna ‘perturbadora’ a
homossexualidade é o modo de vida homossexual mais do que o ato sexual
mesmo”177[grifo do autor].
Para Foucault, esta noção de modo de vida é importante, pois per-
mite pensar em diversificações possíveis que não aquelas provenientes e já
existentes de classes sociais, profissões, níveis culturais.
114
Estão um em frente ao outro sem armas, sem palavras con-
vencionais, sem nada que os tranquilize sobre o sentido do
movimento que os leva um para o outro. Terão que inventar
de A a Z uma relação ainda sem forma que é a amizade: isto
é, a soma de todas as coisas por meio das quais um e outro
podem se dar prazer”.
Referências
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_______. Ditos & Escritos V: ética, politica e sexualidade. (Trad. Elisa Monteiro; Inês
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_______. História da sexualidade II: O uso dos prazeres. (Trad. Maria Thereza da Cos-
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116
Uma didática menor:
questão de entradas e saídas
huler
Betina Sc
117
com a barriga. Ao modo macaco, aqui é experimentada a vida e o pensamen-
to, tentando rasgar práticas discursivas no presente, captadoras de homens,
macacos e caixotes. E é justamente nessa compressão e sufocamento que
surge a necessidade das fendas. De braços, mãos e barrigas contorcidas em
movimentos dançantes, afirmando suas escolhas pela vida. E nisso se rom-
pem os papinhos, as bobagens professorais daqueles que sempre sabem o
que dizer, julgar, moralizar, prometer, educar para que se produzam algu-
mas possibilidades de metamorfose na didática, para além das metáforas.
As barrigas roncam as didáticas tecnicistas e sua busca incansável
por eficiência, neutralidade, linearidade, memorização e repetição, fixação,
adaptação, medição, padronização, transmissão de conhecimentos. Uma
luta incansável pelo controle da animalidade, em nome da ordem, civili-
dade, moralidade. Burocratização do humano, em que pilhas de verdades,
poeira e identidades amontoam-se sem fim180.
A didática é aqui pensada em sua relação de imanência com a mo-
dernidade. Tanto foi produzida por uma nova forma de pensar quanto
foi produtora dessa mesma racionalidade, estando assim, fortemente im-
plicada na produção de um determinado sujeito para uma determinada
sociedade, realizando fortemente o nexo entre saber e poder. Com esse
nascimento disciplinar da didática, além de arranjar um lugar específico
para cada um, organiza os critérios de esquadrinhamento que irão permi-
tir localizar cada indivíduo, agrupar a partir de uma determinada lógica,
desarranjar e hierarquizar tais categorias. Uma didática, pois, fincada nos
processos de normalização, por meio de técnicas que tornem os indivíduos
conhecíveis e governáveis.
Ela nasce ocupando-se dos métodos e técnicas de ensino, buscando
aplicar as diretrizes das teorias pedagógicas, estudando os processos de
ensino e aprendizagem. Uma procura por dar cientificidade à pedagogia e,
portanto, torná-la mais verdadeira e eficaz. Assim, opera com uma pers-
pectiva (tomada nessa lógica como “a” perspectiva) de que as palavras são
as coisas e, portanto, ensina-se um sentido para o mundo e se oculta seu
processo de construção, fazendo-o parecer da ordem do transcendente.
A linguagem, nesse nexo, transcreve o real e o currículo é toma-
do como um mundo objetivo de fatos, um repertório morto de elementos
118
da realidade que foram descobertos, os quais necessitam ser transmitidos
com exatidão e memorizados. O conhecimento é tomado pela necessidade
de explicação, ligado a esquemas mentais de raciocínio e localizado na
adultez. Uma marcha de objetivos, avaliações, grades curriculares, planos
de unidade, disciplinas, objetivos, técnicas de ensino, recursos, resultados,
utilitarismos. Uma marcha de alunos estancados em divisões binárias e
cobrados desse lugar.
A barriga ronca a falta de vida e sente fome de outras coisas. E por
isso talvez, faça jejum. Por isso a artistagem da fome181. Não porque não
se quer comer. Sim, se tem fome, muita fome. Mas de outros alimentos!
Para além desse humano médio, morno e tão satisfeito consigo mesmo e
seu ressentimento, a barriga segue roncando e tentando cuspir. Mas lem-
bremos que somente o inseto gigante parou para ouvir o violino e viver ali
sensibilidade e beleza. A música o prendia. Seria ele um animal182?
Mas há ainda a denúncia de tudo isso. E desponta a didática crítica.
A barriga segue roncando as cidadanias, as libertações (lembrando que o
macaco imitador preferiu a invenção de saídas à liberdade do humano),
conscientizações, as ideologias, representações, a militância, os currículos
ocultos, as identidades, a inclusão, a diferença relativa em que a diferença
ainda está subordinada ao idêntico. O animal da toca183 já tinha cantado
essa lição: a inclusão que a tudo engole e mesmifica, galerias devoradoras.
Tocas burocráticas, tocas tribunais, tocas paranóicas com medo do estra-
nho, furungação constante em busca de certeza. A segurança que tudo ten-
ta calcular e domesticar. Os encontros já previstos e nomeados. Os assen-
tos morais ocupados. A identidade unificadora e a normalidade184 grotesca
parecem brotar do chão, mas não metafísicas e por isso a possibilidade de
pensar de outros modos. De pensar com a barriga, com uma barriga.
Professor Kafka e Professor Nietzsche gostam dos estômagos leves,
que ruminam e digerem a potência, vomitando o ressentimento e a culpa.
Riem da invenção de modelos e cópias e dançam a vida como uma arte. E a
didática não está fora disso. É colocada também para dançar. Ela não resolve
ficar, porque está ocupada demais pensando na próxima saída. Os escapes,
119
sempre os escapes. Desconfia que as palavras não são as coisas, assume uma
linguagem menor, uma linguagem que é dessa vida e desse mundo, que de-
sinventa o verbo e fabula a vida, interrompe para ouvir os silêncios e respeita
a artistagem da fome, que pinta os sons de violino.
Para isso, é tomado o procedimento da minoração185 para pensar a
didática, no sentido de desmanchar os conectores de poder, sustentados
pelos discursos científicos, tecnicistas ou críticos, nos quais a didática se
constitui com força de verdade no campo da educação. Minoração no atra-
vessamento de outros aportes, tais como a literatura de Kafka.
O macaco relatoriador entende que essa problematização da ciência
coloca-se como uma crítica da verdade, como um valor que esqueceu que o
é. Por isso a potência da genealogia186 para pensar essa questão para além
da verificação da oposição de verdade e erro, sendo a ciência o princípio de
julgamento e tendo em seus procedimentos a garantia da verdade187. Por
isso, tomar a didática genealogicamente, atravessando-a com a literatura
de Kafka, pode ser entendido como um procedimento de minoração, pois o
que vai interessar são as condições de existência e não de validade, assim
como as possibilidades de criação. Trata-se de tirar a língua de um lugar
dado e acostumado e fazer outros usos dela. Trata-se de operar nesse cam-
po como uma micropolítica, como um outro modo de exercício político,
no qual sintomas julgados a priori como individuais, são tomados como
questões de ordem política na dissolução do sujeito.
Essa furungação didática não significa ser contra o que é ficção e,
então, a favor do que é “realmente real”. Não existem valores fora do mun-
do, fora da cultura, fora da linguagem, fora das relações de força. Por isso
a pergunta não é pela origem da verdade, mas por essa vontade de verda-
de. A vida é maior do que o que temos por lógica, verdadeiro, falso. Não
se trata de uma busca por desvendar uma verdade transcendental de um
sentido, mas mostrar as estratégias de produção dos efeitos de verdade,
entendendo o discurso como um espaço onde poder e saber se articulam188.
Crença na verdade como um bastão contemporâneo no guiamento
das condutas, porque louvado como valor superior. Uma estreita ligação
120
entre ciência e moral, uma vez que é esta moral platônica-cristã dos ideiais
que dá valor à ciência. Mas o macaco ri de cabeça inclinada, entendendo
que os valores morais não têm uma existência em si; são produções nos-
sas, humanas, e que o critério de avaliação poderia ser deslocado para o
aumento ou não da vida.
Daí a importância de examinar o funcionamento dos discursos di-
dáticos que se instituem como práticas discursivas, produzindo os obje-
tos de que falam, em conexão com os eixos de poder, saber e formas de
subjetivação. Não temos uma essência, uma natureza, uma realidade pré-
-existente, uma vez que nos constituímos em práticas que obedecem a
determinadas racionalidades, produzindo o que temos por verdade. Não
há conhecimento verdadeiro sobre o homem, uma vez que ele mesmo não
passa de uma ficção189. Aqui o homem kantiano tomado como medida de si
mesmo dissolve-se em frestas.
Por isso esse relatório se coloca em uma perspectiva extra-moral.
Não é contra a moral, mas para além dela, buscando problematizar essas
forças didáticas tecnicistas e críticas, ambas imanentes à modernidade e
funcionando na crença inabalável no ser do pensamento racional, o qual é
capaz de não apenas conhecer, mas também ser corrigido e corrigir. Para
isso entram os currículos e suas organizações disciplinares de corpos e sa-
beres. As avaliações e seus critérios binários e classificatórios de inteligência
e não-inteligência. As distribuições de tempos e espaços no esquadrinha-
mento para a produção do corpo útil na maquinaria capitalística. As escritas
resumidas a resenhas, perguntas, respostas, redações, títulos, reprodução e
classes gramaticais. Os encaminhamentos à experts da alma humana para a
melhoria daqueles que não cabem. A didática funcionando em seu poder de
normalização, em nome do bem-estar e da produção de cidadãos.
A partir disso, é colocada a necessidade de perguntar: como alunos
e professores são tomados como objetos de conhecimento em relação a
essas categorias e, ao mesmo tempo, subjetivados como um determina-
do tipo de sujeito a partir de tecnologias disciplinares, biopolíticas e de
controle que funcionam no campo da didática190? Vivemos um panóptico
generalizado, no qual os rastelos191 são cada vez mais múltiplos. Assim,
121
poderíamos perguntar: como o indivíduo pode ser tomado como objeto de
conhecimento em relação à aprendizagem, ao currículo, avaliação, plane-
jamento, inclusão? Quais são as relações de poder que estão circulando e
quais os efeitos que estão sendo produzidos? Como estão operando os me-
canismos de obtenção da verdade? Apoiados por quais critérios e técnicas
de verdade? Sustentados por quais hábitos e rotinas? De que modos os in-
divíduos estão aprendendo a se relacionar consigo mesmo nestes contex-
tos? Por meios de quais verdades problematizam a si próprios quando se
enxergam como aprendizes, crianças, adolescentes, aprovados, reprovados,
inteligentes, não-inteligentes, comportados, não comportados, civilizados,
não-civilizados, normal e anormal, saudável e patológico nessa maquina-
ria binária? Por meio de quais conceitos estamos problematizando a nós
mesmos e quais os modos de subjetivação estão sendo fabricados? A partir
dessas questões que buscam fugir das facilidades das explicações metafísi-
cas a didática é colocada para dançar para além da denúncia.
Perguntar como estamos nos constituindo em relação ao saber, ao
poder e ao si, buscando as forças e as relações de poder ligadas às práticas
discursivas nos incita a exercermos uma relação ética, como uma prática
estética de existência. Um modo de atuar sobre si mesmo para além da
moral prescritiva, arranjando fendas nos tipos de individualização ligados
ao estado, ao didatez, à língua maior. Nesse sentido, quando pensamos a
didática, rompemos com a lógica que toma a identidade fixada e fixadora
como um ponto de partida, para entender que nos constituímos na exte-
rioridade do acidente, do acaso das batalhas, para além dos manuais do
humano. Trata-se de implicações de estilos de vida, aqui encaradas sempre
como questões políticas192.
Uma dança de saídas. Uma saída na necessidade de cuspir. Talvez
seja desse tipo de dignidade que Nietzsche193 falava em relação ao pensa-
mento. A primeira precaução: a lentidão na ruminação. A segunda: não
abdicar de si mesmo, não se sacrificar em nome de uma moral superior,
mas construir a própria vida como uma arte de viver que, paradoxalmen-
te, passa por um permanente afastar-se de si. E uma terceira precaução:
tentemos! Tentemos!!!
122
Capítulo Terceiro: lição de saídas
123
Trata-se de um uso menor dessa língua. Por isso tomar de Kafka sua me-
cânica para pensar a didática, para inventar outras dobradiças, conceitos
e personagens por meio disso, ao invés de ficarmos confirmando o que já
sabemos, constitui-se como um escape dessa noção de liberdade moderna,
para pensarmos as saídas.
O macaco sabe que se trata de forças, de relações de forças, de es-
tratégias e não do poder como propriedade. Sabe que buscam gerir sua
conduta e que somos seu principal efeito. E nessa capilaridade sem centro
irradiador, vê o poder em sua amarração com a produção de saberes. Isto
é óbvio. Escreveu um relatório à Academia. Entendeu facilmente que nos-
so regime político de verdade está atravessado pelo discurso científico.
O mesmo discurso que se apropria da didática em sua constituição, para
fazê-la funcionar com valor de verdade. Nós esquecemos dessa invenção
e esquecemos que esquecemos e, assim, a ciência produz na educação e no
mundo esses efeitos de verdade. O macaco em suas aulas entendeu que se
trata de relações de forças com os outros e consigo mesmo e que uma série
de técnicas são postas em funcionamento para ensiná-lo a assumir um de-
terminado lugar, se assumir como um determinado tipo de sujeito. Mas o
macaco entendeu muito mais. Daí a minoração199 para a criação de outras
possibilidades éticas, estéticas e políticas na didática.
A partir disso, o conhecimento passa a ser vistos de outros modos,
já que, nessa perspectiva, é entendido não como fruto da interioridade do
sujeito, mas resultado de batalhas pela imposição de sentidos. Conhecer
não estaria, assim, na ordem da explicação, mas de interpretações infinitas.
Os conceitos com os quais aprendemos a nomear o mundo são históricos,
tiveram certas condições de possibilidade para existirem. Não há um mun-
do lá fora a ser representado pela linguagem e um sujeito, tal como uma
interioridade, que o representaria pela linguagem. Somos nós que inven-
tamos e colocamos sentido no mundo, não há um sentido nele mesmo. Não
há sujeito, identidade, interioridade; o que temos são efeitos de subjetiva-
ção, uma posição no discurso, ficções.
E as saídas são mais algumas invenções no alargamento dos modos
de existência. E como diz de relações espalhadas por toda a teia social, as
lutas não podem vir de fora, pois será sempre resistência e invenção dentro
124
das próprias relações de forças. Fala-se de pontos móveis, produzidos na
imanência e contingência da vida, para podermos pensar de outros modos.
O macaco está confuso, pois isso significa que os universais deixam de ser
os explicadores do mundo e entende-se que são eles que precisam ser ex-
plicados, em sua formulação e funcionamento. Não se trataria mais de uma
correspondência entre aparência e essência, mas trazer para a visibilidade
as condições de invenção.
A identidade é picotada, o rebanho é posto de frente com o seu
esgotamento. Um cansaço desse homem moderno, burguês, calculado, es-
quadrinhado, burocratizado, regulado, binarizado, normalizado. Por isso a
necessidade de invenção de saídas. Uma saída na didática. Uma minoração
da didática. Uma fresta na toca, que toma como matéria a própria vida.
Um colocar para dançar as coisas já pensadas e os textos já lidos, os po-
deres instituídos. Corpos vivos nessa didática menor que escorrem nessa
maquinação normalizadora.
As didáticas chamadas “oficiais” não são apenas compostas de infor-
mações. Há toda uma organização do conhecimento, o modo de se traba-
lhar com ele e o tipo de racionalidade que o está regulando, o que implica
na produção de determinados modos de ser, agir, ver, sentir, pesquisar,
perguntar. Práticas discursivas e não-discursivas200 na produção do que
temos por realidade, por verdade e por nós mesmos.
A didática é retirada do campo do universal e do total e jogada para
o terreno da imanência, da possibilidade de criação. Não se trata da supe-
ração do velho pelo novo, de denúncia ou de um novo projeto de salvação.
Versa, justamente, sobre algo bem mais modesto, até porque a escola mo-
derna nasce no cruzamento de um poder pastoral e de uma razão governa-
mental201 com a preocupação da condução das condutas. Uma instituição
que nasce como instituição de confinamento, atravessada por exercícios
do poder disciplinar e biopolítico e que se faz nessa relação de imanência.
Portanto, o que se busca não parte de um entendimento que nega toda
essa constituição da escola e sua didática, mas traçar pequenos esburaca-
mentos, arquitetar provisórias saídas, fazer escapes, alguns rasgos para
podermos pensar e viver outras coisas. Apenas a invenção de saídas para
um respiro de ar fresco, quando o mofo pedagógico já entope a garganta e
200 FOUCAULT, 2002b.
201 FOUCAULT, 2008. Ó, 2003.
125
seca a língua. Queremos outras línguas que, colocadas na ponta dos dedos,
escrevam exercícios éticos, estéticos e micropolíticos, em que a diferença
não esteja submetida ao jogo da identidade.
Por isso, mais do que metodologias e técnicas de ensino, essa mino-
ração constituidora de saídas pensa em procedimentos, tais como táticas
e estratégias que inventam novas conexões entre os acontecimentos vivi-
dos, experimentando outras possibilidades de existir. Para além do coro da
verdade ou erro; a criação, a vida. As inscrições se dão no corpo, é do corpo
que se trata a didática. E não do seu avesso, mas de sua multiplicidade. Um
modo de resistência contra a barbárie da subestimação da inteligência de
alunos e professores, contra o abandono intelectual, contra uma relação
de embrutecimento que assumem consigo mesmos, da imobilização que
proíbe o inédito de cada vida e acontecimento.
Tornar a didática uma máquina: uma máquina literária, filosófica,
científica. Uma filoescritura que desmanche os dados da língua maior, que
diagnostica o presente para buscar entender como estamos nos constituin-
do no que somos, no que estamos deixando de ser, o modo como falamos e
escrevemos isso, na criação de brechas para outros modos de pensamento
e existência. Língua essa dos tribunais pedagógicos que, por meio de seus
experts, operam na melhoria do humano, em nome de um ideal. Que to-
mam a ovelha de rebanho como medida de todas as coisas e a escola como
tendo a função de realizar tal função. Portas202 feitas à medida de cada um.
Relatórios diários que examinam a normalidade a anormalidade do huma-
no didatizado. A didática? Ela se coloca a esse serviço. Do disciplinamento,
à biopolítica, ao controle.
Mas não uma didática menor. Por que não existe “a” didática. Exis-
tem didáticas e alianças provisórias. Uma didática do Fora? Fora daquilo
que constitui a materialidade do nosso pensamento e de nossos modos de
existência? Talvez. Kafka falando da partida203, já anunciava sua meta: o
fora. Kafka204 e seus pés trepadores de degraus que pisoteiam essa perspec-
tiva que quer apresentar o mundo como explicado e explicável.
Tomar a didática via o processo de minoração traz a importante
questão de que todas as questões individuais estejam ligadas à política.
126
Nesse sentido, uma didática sem autores e mestres. E como extrair da
própria didática uma didática menor, que seja capaz de pensar a linguagem
e operar com ela como uma linha revolucionária? Talvez como Deleuze
e Guattari205 trouxeram a partir de Kafka, há uma certa disjunção entre
comer e falar e entre comer e escrever. Logo, pensemos no estômago leve
de Nietzsche e da ruminação. Talvez a dica por começarmos pelo jejum.
Desse modo, esse relatório de didática não se coloca como uma me-
táfora, que ainda conserva um sentido primeiro em seu funcionamento,
mas com metamorfose, que multiplica as palavras. A linguagem, pois, dei-
xa de querer representar o tempo todo para alargar os limites. Não se
versaria mais de mera explicação. Há uma fartura de opinião, informação,
comunicação, palavras de ordem. Didática na sociedade de controle!
Fazer outras coisas nesse campo nos exige um exame fino e delica-
do de sintomas quanto à linguagem como transmissão de ordens, exercício
do poder ou resistência a isso. A linguagem não apenas transcreve uma
realidade dada a priori. Ela faz muito mais do que isso. Ela produz o mun-
do. Por isso não pode ser pensada fora das relações de força. Por isso pode
ser tomada em sua força ativa, revolucionária, de fronteira. E daí o grande
desafio de desmancharmos essa relação que assumimos conosco mesmo,
desaprender os lugares que aprendemos a ocupar na docência, descons-
truir as metanarrativas de uma razão pura e identidade. Não temos como
saber o resultado desses outros movimentos, pois se opera com o processo.
Não temos como prever e regular os efeitos. Temos como disparar forças
junto a outras forças.
Uma didática do estranhamento e resistência. De sintomatologizar
o nosso presente e analisar quais são as forças que estão se apropriando
da didática nas escolas, quais valores estão sendo valorados, valorados por
quem, porque esses valores e não outros em seu lugar. E dessa sintomato-
logização com precisão cirúrgica, tirar detalhes da vida, do cotidiano ainda
não esquadrinhados pelas didáticas da representação, para fazer outras
coisas com isso206. Multiplicação de sentidos, disparar outras leituras e
escritas, outras produções que desmanchem com essa divisão entre ficção
e realidade, essa modelização sufocante, quando se toma com Nietzsche
a idéia de que tudo o que temos são interpretações, isto é, invenções de
205 DELEUZE; GUATTARI, 2002.
206 CORAZZA, 2010; 2011.
127
sentidos. Daí a didática preocupada com ritmo, em colocar para dançar, em
fazer a aula funcionar e o que importa será a criação que está implicada,
que desconcerte esse corpo já todo codificado.
Mas o pensamento não pensa sozinho. Já nos cochichava Foucault
que ele precisa ser forçado a pensar, uma vez que rompe com a noção mo-
derna de Razão e vai negar que o pensar seja o exercício de uma faculdade
inata ou algo adquirido, argumentando que o pensar se dá em uma intro-
missão do de-fora, nessa desarticulação com o que está dado. Sendo assim,
o pensar envolveria experimentação e problematização, sendo que o poder,
o saber e a constituição de si seriam a raiz tripla de uma problematização
do pensamento, o que vai desafiar a criação de novas formas de subjetivi-
dades e de pensar207.
O conhecimento não existe fora das relações de forças que o produ-
zem e o tornam possível, pois conhecer é sempre atribuir sentido. É sem-
pre da ordem da imposição, da valoração, da ficção. E não há um “eu” por
trás dessa produção, um sujeito centrado, autônomo, racional que produ-
ziria esse conhecimento. Novamente Professor Nietzsche nos ensina com
sua genealogia que o que temos é somente a ação.
Com que postura nos colocamos diante disso? Como entrar nessa
relação escapando de aulas já dadas, de textos já lidos, de condutas marca-
das? Talvez um jejuar de tantos padrões, metodologias certeiras, cálculos
e médias, identidades e verdades para buscar as condições de invenção
dessas valorações. Um jejuar dessas unidades que validam a si mesmas
em protocolos que esqueceram que são uma invenção e assumem cará-
ter sacro nas escolas. Um jejuar desses conhecimentos que se apresentam
como universais e totais, porque científicos. Um jejuar de uma moral de
rebanho para entender que a moral é da ordem da imanência, pois os va-
lores são desse mundo. Uma artistagem da fome na escavação de saídas,
que justamente pergunta quais as condições de possibilidade para esses
valores em seus efeitos de poder, em suas produções de subjetivações. Por
que a subjetivação não é um fato e muito menos um ponto de partida. É da
ordem da produção.
Jejuar a tudo isso não significa um vale-tudo. Muito menos um
nada. Trazer para a visibilidade a arquitetura dessas galerias didáticas
128
significa expô-las como artefatos que são e que, portanto, podem ser dife-
rentes. E esse movimento não é isento de relações de forças, uma vez que
se trata também da invenção de outros sentidos. E, para isso, precisamos
de outros procedimentos. Mas não em nome de uma nova prescrição, de
uma nova grande revolução, de uma outra salvação. Por isso esse currículo
menor não pergunta se esse conhecimento é verdadeiro ou falso, mas per-
gunta pela sua afirmação de vida. Um conhecimento que não serve para
conhecer, mas para cortar, na experimentação de infinitas combinações e
arranjos. Por isso essa avaliação não se pretende calculadora ou salvadora,
mas funciona no jogo do poder e saber. Por isso essa didática menor não
tem um ser humano ideal a cumprir, porque não é da ordem metafísica. São
ângulos, perspectivas, linhas, em que nenhum ponto tem privilégio sobre o
outro. Carnaval de máscaras.
Invenção de um encontro com a didática, na criação de um outro
funcionamento para esse corpo. E para isso, Professor Kafka nos deixa
alguns procedimentos para pegarmos a didática pelo rabo na problemati-
zação do que estamos nos tornando no presente e dos valores que estamos
valorando. Combina-se ao Professor Nietzsche, que nos pede antenas em
pé no exame das forças ativas e reativas e um estômago leve para digerir
tudo isso e vomitar o necessário. Daí a potência da ruminação. Da arte de
ruminar. Tomar a didática na lentidão necessária e mastigá-la na consti-
tuição de outras possibilidades. Uma mastigação por repetida vezes, uti-
lizando-se de diversas línguas que cortam os sentidos ao invés de operar
em uma lógica explicativa que antecipa o pensamento. É com mandíbula
forte que a mesmidade vira resto. Um abdômen-casca que estranha os uni-
versais e tem congestão dos micro-fascismos que vivemos todos os dias
em nós. Uma ruminação literária para tomar a didática em suas forças de
criação, estabelecendo novas amarrações entre os eventos experimentados
e os documentos que entramos em contato. Farejando com nariz de abu-
tre208 os sintomas no presente, para pensarmos outras afetações para além
do esgotamento que vivemos.
E nessa deformação do corpo da didática, podemos pensar em um
alargamento ético, estético e político. Não se trata de opor a teoria como
abstração à vida como prática; hierarquizar os saberes em científicos e
129
não-científicos e entre o que é sério e o que não é; não há uma perspectiva
privilegiada da verdade, de entrada na obra, mas multiplicidades. Não há
uma consciência transcendental que almeja ser alcançada ou um tempo
ideal que busca ser ressuscitado. Essa ruminação enjoa com as generaliza-
ções e pede a experimentação, sussurrando as impossibilidades kafkianas
que aqui são roubadas para pensar a didática: a impossibilidade de não
escrever, a impossibilidade de escrever sobre tudo, a impossibilidade de
não escrever em uma língua menor como modo de saída. Contra o que
apequena a vida e esgota o corpo: a função K na didática. Por isso esse
relatório não pretendeu escrever sobre a verdade da didática, muito menos
fazer completamente outra coisa com a escola, realizar uma nova grande
revolução, defender uma nova promessa de emancipação, mas justamente
multiplicar os sentidos e as possibilidades de existência nesse campo na
invenção de algumas fissuras.
130
outras possibilidades de criação com ela, tal como um procedimento de trans-
valoração. Talvez deslocamentos necessários que mexam com nosso modo de
pensar a escola e suas práticas, em uma aposta nas forças ativas.
A didática vem de uma longa trajetória positivista, iluminista, tecni-
cista, passa pelo crivo das teorias críticas e hoje é cavocada pelo pensamento
da diferença. Mas isso não significa uma substituição ou uma hierarquiza-
ção. Mas a escolha de operar com a função K na didática, na impossibilidade
de uma lógica explicativa. Uma engenharia de saídas ao invés das liberdades
inventadas pelas disciplinas210, das fugas ou denúncias militantes. Não se
quer tornar livre da didática, mas produzir outras linhas. Trata-se da im-
possibilidade de não criar na didática, a fim de não se morrer de fome ou su-
focado. Este modo não opera em nome de uma grande bandeira, mas de um
modo micropolítico no desenho de outros autores, personagens, cenários,
línguas. Uma condição de resistência à didática maior, à didática do Estado,
à didática com letra maiúscula, às didáticas das paredes que correm cada vez
mais rápido para a finalização do canto. Um arrancar essa linguagem didáti-
ca do sentido. Metamorfoses didáticas. Metamorfose nessa utilização outra
da língua, na intervenção rigorosa em sua materialidade.
Tomar a didática como parte de uma estética da existência. Profes-
sores que ao modo de macaco ensinaram a dissolução do sujeito e desloca-
ram a discussão do sujeito para os modos de subjetivação. Que deslocaram
as teorias do poder para o exercício microfísico e produtivo do mesmo.
Que mostraram a verdade como mais um valor em suas tecnologias de
veridição e efeitos de poder. Que transvaloraram os valores. O macaco
ensina uma lição modesta para a didática. Não há uma natureza didática.
Portanto há invenção e a possibilidade de nomearmos nossas práticas, aos
outros e a nós mesmos para além do registro da moral. Daí a importân-
cia de mostrarmos a arquitetura dessa muralha, assim como seus buracos
cariados. Por que o saber tende a esquecer de onde veio e se naturaliza,
normaliza e domestica os sentidos e as palavras. E a vida mofa. Por isso
a precaução metodológica de Foucault211: perguntar pelo campo atual das
experiências possíveis. E inventar outras possibilidades.
Lição de macaco: não ser escravo dos outros e nem de si mesmo.
Kafka lecionou saídas. Por que não gostava de palavras acostumadas. Por
210 FOUCAULT, 2002a.
211 FOUCAULT, 2010.
131
isso criou um sotaque de fervilha. Prendeu a fome de bobagens. E inventou
o violino encantador de insetos gigantes, com ouvidos sensíveis. Kafka
deforma a didática. O gato fabulador nos diz para mudarmos a direção. E
nos come212. Força-nos a pensar na criação de problemas específicos nesse
campo. E a didática pegou deformação. Por que abre um olhar grande para
o mundo e, ao mesmo tempo, um olhar que não é oura coisa, senão o pró-
prio mundo. (Des)praticando a norma e fazendo selvagem a linguagem,
coça a idéia de pensar uma didática que não seja a da palavra de ordem,
que queira significar o tempo todo a vida para os outros, que queira falar
pelos outros. Uma prática de fissuras micropolíticas. E, ao modo de maca-
co saidor, a experimentação de procedimentos na didática, no pensamento,
na escrita, na vida. Por isso o macaco nietzschiano tentou. E esta escrita
é isto: apenas um relatório. Que fala de um ponto específico. Que não quis
negar o passado, nem projetar o futuro. Tão somente buscou problemati-
zar o presente na possibilidade de invenção de um outro corpo para a di-
dática. Nessa urgência, há uma inclinação de cabeça, um ronco de barriga
e uma casca arrebatadora. O macaco introduziu-se na didática e empurrou
o pensamento. Um simples alargamento!
132
Arrancado o vestido de tribunal
espartilhos que teimam em começar com letra maiúscula
que espremem o sentido
explode um abdômen-casca que alarga o léxico
o xico
e o que raspa disso.
Corte da defesa
Metamorfose
função K na delicadeza
de procedimentos mastigadores da razão explicativa
na congestão desse parasitismo
procedimento de abdômen-casca.
133
chamadas
notas
gramáticas
cálculos do humano.
134
São a boca e o estômago que entendem
Que agora tinha outras fomes
alimento delicado de vertigem
mordiscado ao estranhamento
outros modos à mesa
penso como abdômen-casca!
Referências
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Tania Mara Galli; COSTA, Luciano Bendin da (Orgs.). Vidas do fora: habitantes do
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Ermantina Galvão.) São Paulo: Martins Fontes, 2002c.
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_____. História da sexualidade, 2: O Uso dos Prazeres. (Trad. Maria Thereza da Costa
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_____. Segurança, território e população: curso dado no Collège de France (1977-1978).
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_____. O governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982-1983). (Trad.
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KAFKA, Franz. Na colônia penal. (Trad. Modesto Carone.) São Paulo: Editora Brasi-
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135
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Estrofes e Versos, 2009a.
_____. “Diante da lei”. In: _____. O abutre e outras histórias. (Trad. Noémia Ramos.)
Lisboa: Estrofes e Versos, 2009b.
_____. “Advogados”. In: _____. O abutre e outras histórias. (Trad. Noémia Ramos.) Lis-
boa: Estrofes e Versos, 2009c.
_____. A toca. (Trad. Franscisco Agarez.) Lisboa: LXL, 2009d.
_____. A metamorfose. (Trad. Gabriela Fragoso.) Lisboa: Editorial Presença, 2009e.
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136
Conversação: um convite ao pensamento
ouza
lena de S
Dóris He
Um prólogo
137
sentido que aparecem e somem nessa escrita e “não pode ser diferente, já
que cada conceito opera um novo corte, assume novos contornos, deve ser
reativado ou recortado”214.
Portanto, trata-se de uma escrita para ser lida, conversada e logo
depois, quem sabe, abandonada, atirada, jogada, pois talvez já tenha cum-
prido seu propósito.
Outra questão importante a destacar nesse prólogo é a assunção,
desde o início, que se trata de uma escrita que usa fragmentos de escri-
tas de outros autores como Kafka, Nietzsche, Deleuze, Guattari, Corazza,
assim como composições de artistas como Ivan Lins, Gilberto Gil, Ação
Direta, Caetano Veloso, Cazuza, Titãs e Fausto Bardalo Dias. Destaco isso
para que os possíveis leitores façam suas próprias relações, pois certamen-
te para alguns isso será tomado como um modo de ilustrar essa escrita,
para outros talvez como uma possibilidade de fabulação, transcriação, en-
fim, meu desejo é que cada um seja afetado de modo singular, criando seus
próprios conceitos. Filosofando!!!!
A última questão, mas não menos importante a destacar refere-se
à opção pela invenção de algumas cenas fictícias que surgem ao longo
da escrita, no sentido de cutucar os possíveis leitores, provocá-los mesmo
ao pensamento. Não há nenhuma pretensão de denunciar nem prescrever,
muito menos julgar, condenar e absolver, pois se trata simplesmente de
selecionar ferramentas capazes de acionar forças no sentido de afirmar
a vida. Devires. Transmutações, aquelas que nos fala Nietzsche nas três
metamorfoses em que “o camelo, espírito da suportação”, ajoelha e carre-
ga em si os fardos da vida. Afinal todos somos camelos! Mas, queremos
saídas, não liberdade! E, vem a segunda metamorfose em que o camelo se
transforma em leão para (...) “conquistar, como presa a sua liberdade e ser
senhor em seu próprio deserto, é a liberdade de novas criações, é o respeito
para além da suportação”. É a busca permanente por saídas, outras en-
tradas talvez! Não liberdade! Assim, acontece uma terceira metamorfose
e o leão se transmuta em criança, “inocência, esquecimento, (...) um novo
começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um movimento inicial,
um sagrado dizer ‘sim’. (...) o espírito agora quer a sua vontade, pois aquele
que está perdido para o mundo conquista o seu mundo”215.
214 DELEUZE e GUATTARI, 1992, p.29; p.30.
215 NIETZSCHE, 2003, p.51; p.52; p.53.
138
No caso específico dessa escrita trata-se de devires, de transmuta-
ções! Devires e transmutações animais!
Portanto, caros possíveis leitores, tenham presente esse prólogo e
não procurem referências, nem muitos nomes, citações e reproduções do
já produzido, do já escrito. Decididamente não foi esse o propósito desta
que vos convida à leitura.
139
Uma possibilidade de fuga, de desapego ao espaço que nos espreme
entre grades e caixotes. Uma saída! Não liberdade!
Quero saber: “De onde vem tudo isso que existe e para que serve?”
Quero pesquisar: “Aquilo que tenho vontade! Quero biblioteca! Quero informática!”
Quero pedir: Não me mandem calar a boca, nem ficar quieta! Eu quero falar!”
Quero perguntar: “Quando vou poder falar? Como vão escutar? Quem vai responder?”
Quero falar: “Gosto de estar na escola! Às vezes a vontade é de fazer outras coisas!
Aqui é muito bom!”
Quero descansar: “Não quero fazer nada!”
Quero explicação: “Para tudo aquilo que não posso fazer!”
Quero afirmar: “A vida! Os encontros! Os amigos! As pessoas! As escolhas!”
140
Expliquem!
Desta vez são outras provocações. Provocações que fazem pensar,
que desafiam ordens instituídas: pela escola, pelos professores, pelos pais,
pelos próprios alunos. E, lá estão os devires, animais, espremidos entre
grades, paredes e caixotes. Saídas e entradas. Não liberdade!
Não me iludo
tudo permanecerá
do jeito que tem sido
transcorrendo, transformando
tempo e espaço navegando
todos os sentidos
pães de açúcar, corcovados
fustigados pela chuva e
pelo eterno vento
água mole, pedra dura
tanto bate que não restará
nem pensamento
transformai as
velhas formas do viver
ensinai-me, ó, pai,
o que eu ainda não sei
não se iludam,não me iludo
tudo agora mesmo
pode estar por um segundo
(Gilberto Gil, “Tempo Rei”)
Não! Liberdade eles não querem! Querem apenas saídas! Quem sabe
outras entradas! Querem esticar pernas e braços, ruminar pensamentos,
vomitar excessos. Querem inventar outros e novos modos de viver tempos
e espaços da e na escola. Querem duvidar, questionar, discordar, escutar,
falar, provocar e, ao estilo de Kafka, querem poder gritar: “Ó derrisão da
sagrada natureza! Nenhuma construção ficaria em pé diante da gargalha-
da dos macacos à vista disso”217.
141
Enfim, querem tombar grades e quebrar caixotes; gargalhar e coçar
despretensiosamente suas barrigas
142
Ele não quer conversar com ninguém.
Ele está feliz.
Ele fez tudo.
Ele terminou a tarefa.
Ah! Todos estão à espera.
As desculpas: ‘Eu peço desculpas’.
As promessas: ‘Eu prometo não fazer mais nada errado! Eu prometo fazer tudo
certinho! Eu prometo me comportar bem! Eu prometo’!
143
hoje, amanhã e sempre !!!
eu tenho urgência, e um compromisso
contracultura, eu tenho metas
e um desafio, seguir em frente !!!
Intensidade, proposta, proliferação
intensidade, arte, revolução
(Ação Direta, “Intensidade”)
Um processo de transmutação
Cena 1: Detenção
Era uma vez um gatinho que queria muito ser cordeiro. Estava in-
feliz porque estava fazendo o que não queria fazer. Ele queria fazer algo
diferente daquilo que era obrigado a fazer. Ele queria criar um projeto.
Todos os dias ele contava aos seus amigos, reclamava, resmungava. A todo
o momento e em todo lugar ele repetia incessantemente sua infelicidade.
Ele queria ir embora! Fugir! Escapar! Respirar!
Só havia um detalhe: um dia, muito antes, ele quis muito ser um
gatinho ensinador. Queria entrar numa escola a qualquer custo, a qualquer
preço. E, foi aí que teve uma idéia! Fez um concurso para ser um gatinho
ensinador! Ele queria muito entrar! Ele estudou. E, estudou bastante. E,
passou. E, aprovou. E, ele, finalmente entrou! Mas, logo percebeu que es-
tava muito triste! Não queria mais ser gatinho ensinador! Queria muito se
transmutar! De gatinho a cordeiro!
144
“Tenho um animal singular, metade gatinho, metade
cordeiro. Herdei-o com uma das propriedades de meu pai.
Contudo, apenas se desenvolveu ao meu tempo, pois ante-
riormente possuía mais de cordeiro que de gatinho. Agora
participa das duas naturezas igualmente. Do gato, a cabeça
e as unhas; do cordeiro, o tamanho e a figura; de ambos, os
olhos, selvagens e acesos; o pêlo, suave e bem assentado; os
movimentos, já saltitantes, já lânguidos”219.
219 “Um cruzamento” (conto de Franz Kafka), traduzido por Regiane Affonso Sales e Denise
Rodrigues, discentes do curso de Alemão da faculdade de Letras da UFRJ. Apostila do curso:
Poética e Metafísica, ministrado por Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio de Castro
(PPGCL-UFRJ, 2004) e retirado do site http://www.blocosonline.com.br/literatura/prosa/
ct/ct05/ctp050101.htm p. 16.
145
Eles dançam,
eles dançam,
eles dançam
Todos eles, dançam
Dança-moenda,
dança-desenho,
dança-trapézio,
dança-oração
Moenda, redenção
(Caetano Veloso, “Os meninos dançam”)
Eis que ela, a criança em seu devir animal escapa das grades. Salta
em movimentos dançantes e lânguidos e eles, camelos, leões, ratos, gatos,
cordeiros, mais uma vez, aguardam outros devires. Outras transmutações
e acontecimentos. E, de repente, uma dúvida: – “Que queres tu saber ain-
da? (…) És insaciável. (…) Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar,
porque só para ti era feita esta porta. Agora vou me embora e fecho-a”220.
E, ele, o gatinho/cordeiro escapa, respira e saltita! Ele se vai!
Cena 2: Inquirição
Certo dia, batem à porta da escola da bicharada dois ratinhos que
se identificam e fazem:
146
essas longas paredes convergem tão depressa uma para a ou-
tra, que já estou no ultimo quarto e lá no canto fica a ratoeira
para a qual eu corro”. – “Você só precisa mudar de direção”,
disse o gato, e devorou-o”221.
147
na direção contrária, sem pódio de chegada ou
beijo de namorada, eu sou mais um cara
Mas se você achar, que eu tô derrotado
Saiba que ainda, estão rolando os dados
Porque o tempo, o tempo não para
Dias sim, dias não, eu vou sobrevivendo
sem um arranhão, da caridade de quem me detesta
A tua piscina, tá cheia de ratos, tuas ideias, não correspondem aos fatos
O tempo não para, não pára, não, não pára
(Cazuza, “O tempo não pára”)
148
Está apegado à família que o criou. Isto não pode ser con-
siderado, por certo, como uma demonstração de fidelidade extraor-
dinária, porém como o reto instinto de um animal que na terra tem
inumeráveis parentes políticos, mas talvez nem um só consanguí-
neo, e para o qual, por isso, lhe parece sagrada a proteção que en-
controu entre nós. Às vezes me faz rir quando me fareja, desliza-se
por entre minhas pernas, e não há modo de afastá-lo de mim. Não
satisfeito em ser gato e cordeiro, quer ser quase cachorro.
149
uma libertação para este animal, mas como o recebi em herança
devo evitar isso. Por isso terá de esperar que o alento lhe falte por
si, apesar de que, às vezes, me olhe com olhos humanamente com-
preensivos que incitam a agir compreensivamente.
150
tranquilamente com olhos animais e consideraram, sem dúvida, re-
ciprocamente, sua existência como uma obra divina. Sobre os meus
joelhos, este animal não conhece nem o medo nem desejos de perse-
guir ninguém. Acocorado contra mim é como se sente melhor.
151
Pensamento da dobra e dobra do pensamento:
saídas que entram e entradas que saem
152
quero, toda sua louca liberdade
quero, toda essa vontade de passar
dos seus limites, e ir além,e ir além
(Ivan Lins, “Vitoriosa”)
153
coça, coça a barriga, vitaminas
coça, coça a barriga, nicotinas (...)
ao chegar à beira mundo,
abrir então os meus braços
p´ra me lançar no espaço,
vou-me rir muito, vou gozar mais (...)
Eu sou o “Coça Barriga”,
bate forte meu coração
salta minha fera encurralada,
já ninguém ouve o teu pregão
darei largas à minha loucura,
e já ninguém me segura
(...) o pé de vento que se vai levantar,
comigo a rodopiar
Coça, coça a barriga, pantominas,
Coça, coça a barriga, Patavinas
(Fausto Bardalo Dias, “Coça Barriga”)
154
Referências
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vatório de Educação. Escrileitura: um modo de ler-escrever em meio à vida. Universi-
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e Alberto Alonso Muñoz.) Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
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_____. “Um relatório para a academia”. In: _____. Essencial. (Trad. Modesto Carone.)
São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011a.
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GIL, Gilberto. Tempo Rei. In: _____. Raça Humana. Warner Music, 1984.
AÇÃO DIRETA. Intensidade. In: _____. Massacre humano. Voice Music, 2006.
VELOSO, Caetano. Os meninos dançam. In: _____. Cinema transcendental. Universal,
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CAZUZA. O tempo não pára. In: _____. O tempo não pára. PolyGram; Universal Mu-
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DIAS, Fausto Bordalo. O coça barriga. In: _____. Melhor dos melhores. Independente,
1996.
155
micrometria e catástrofe: aprender a sensação
rdan
Paola Zo
Diva, como já tinha pedido que não fizesse, enfia sua cara no escri-
tório, mas pela hora rasteira da tarde achei que viesse para avisar que já ia
embora e não para incomodar perguntando o que devia fazer para o almo-
ço. “Doutora, preciso falar com a senhora.” Céus, aí vem bomba, foram as
palavras que acudiram em minha mente quando tive que deixar de lado o
pensamento e encarar a Diva. Anos me ensinaram que esse tipo de senten-
ça da parte de quem eu pago para aliviar a minha vida em família na pior
posição de todas, a de mãe, vem sempre com alguma exigência, chanta-
gem, terror ao qual preciso me submeter para não estar fadada a ser negli-
gente com meu próprio serviço. Não tinha cabimento Diva querer renego-
ciar o salário, recém havia terminado o período de experiência e estava
recebendo bem acima de um mínimo por poucas horas diárias de serviços
domésticos em minha casa. Não podia imaginar que chegando às nove e
saindo antes das três uma pessoa poderia reclamar. Principalmente porque
eu não reclamava do pó acumulado nas estantes, das roupas morando no
quartinho semanas sem passar, do feijão de segunda-feira servido na quin-
ta, das almofadas erradas em cima da minha cama, de meias alienígenas na
minha gaveta e de muitas outras monstruosidades que Diva produzia em
minha casa. Não que eu seja passiva. Grito muito e esbravejo perto de quem
me ama as fúrias que todas empregadas, e Diva não seria uma exceção, tra-
zem. Mas como sei serem as Fúrias monstros que agem de acordo com uma
estranha justiça, reclamava mesmo para os deuses. Enraivecida com as
marcas de mãos sujas nos bastidores das portas, eu só via os defeitos e as
omissões de Diva quando ela não estava por perto, pois, uma vez em casa, o
fato de existir uma Diva me fazia flutuar e trabalhar a fundo, sem ter que
pensar em alimentar os corpos, servir as fomes, tratar da apresentação da
157
roupagem e outras coisas. Manter as superfícies limpas a ponto de nin-
guém obstruir o nariz com pó: prova de fogo de toda empregada e alento
para uma mãe, que pode dormir toda a noite sem interrupções por tosses,
narizes entupidos e outras atrocidades que a falta de limpeza causa em
crianças. Além dessa mínima exigência, o serviço é básico. Tirar o lixo,
estender cobertas, aspirar estofamentos e tapetes. De resto, só reclamo de
três coisas: dos filmes locados que desaparecem nas prateleiras, de quando
misturam lixo seco no comum e se mexem em minha mesa. Três descuidos
que significam caos. Com o dono da locadora de filmes, para o planeta e
nas minhas responsabilidades institucionais. Caos total e insuportável.
Diva tinha entendido bem, vinha mesmo com o diferencial de ter o legíti-
mo costume de separar o lixo. Como Diva não era daquelas que vem con-
tar problemas, pedir conselhos, contar os sonhos, mendigar consultas, ver
se eu conseguia algum remédio, e nem mesmo costumava solicitar adian-
tamentos, não podia imaginar por que Diva, com quem estava achando que
me daria bem exatamente por isso, vinha me interromper no meio da úni-
ca tarde que fico em casa para poder escrever, preparar as aulas da semana
e tudo mais que preciso, por falta de máquinas decentes e espaço público,
fazer em casa. Ela havia faltado uns dias de serviço, dado desculpas fracas
nas quais, para não ter que selecionar ninguém de novo, eu fingi acreditar.
Não reclamei das duas faltas, das saídas apressadas depois do almoço, do
sábado que se negou a vir em função das mesmas desculpas, de tudo o que
estava me desgostando na comida, na limpeza, na roupa. Mas para quem
vive de textos como eu e ainda tem que fazer os textos valerem os pontos
que a instituição que me emprega cobra, a empregada ideal é que me deixa
em paz. Principalmente porque cada empregada envolve no mínimo duas
semanas de treinamento a fim de que não precise ser constantemente co-
brada futuramente. Era um tempo que eu dispunha em troca de um pro-
missor descanso do chão, das pias, da roupa, das panelas. Diva tinha expe-
riência, era treinada e só precisou entender o básico da casa: a divisão das
maquinadas, os botões de cada eletrodoméstico, o lugar dos produtos, os
armários dos copos, das xícaras, dos pratos, a divisão das gavetas, os locais
proibidos de mexer, como ligar o forno, a posição das toalhas, o que vai na
mesa, onde deixar a roupa passada, que um não come pimentão, que a pe-
quena não pode ver pedaços de cebola, a outra não come abobrinha, um
não pode sentir cheiro de alho, eu detesto guisado e o molho vermelho tem
158
que ser servido sempre separado, senão a maior não come nada do prato.
Depois de tudo o que já vi, desde a que não sabia operar um aspirador de
pó, a que fez arroz boiando na banha, a que enxugava lágrimas nos panos
de prato, a que cantava desafinado gritando, a que via televisão ao invés de
limpar a sala, a que usava todos meus perfumes e cremes, até aquela que
secou os licores, Diva era uma deusa. E estava quase indo para meu Olim-
po porque nos últimos meses eu estava conseguindo o que há mais de um
ano vinha sendo impossível: escrever fluidicamente, preparar uma aula
cheia de entusiasmo, dar cabo em tarefas sem drásticas interrupções. Por
isso, ao contrário do que não acontecia com Heleci, muito menos com a
tagarela da Regina, nem a com aquela insegura da Inair que a cada minuto
ia lá dizer “Dotora, eu vou lá para seu banheiro/ dotora tô indo aspirar o
corredor” (só para eu dizer que no corredor não precisava aspirar, era só
passar pano úmido), “to pegando a cozinha para terminar de vez”, e depois
da vigéssima entrada no escritório “dotora, tudo limpinho pronto para eu
ir embora”. Tudo, menos minha paciência e a roupa, que sempre ficava
secando... Mas, ao menos que se obrigue a pessoa a nos preparar um chá e
ter mais uma cozinha para limpar, a roupa fica pendente sempre, pois ne-
nhuma consegue esperar secar a roupa e recolher no mesmo dia que esten-
deu, por mais quente e seco que esteja. Somente eu tenho o dom de tirar as
manchas, lavar, estender e recolher no mesmo dia, isso se o vento e o sol,
senhores de todas as roupas, permitirem. E as roupas e suas pilhas e suas
cores que se estragam e suas superfícies que degradam podem virar mons-
tros invencíveis para quem tem obrigação de escrever textos, atender es-
colas, orientandos, bolsistas, alunos, gente que sai pelo ladrão e precisa
“aprender” e se formar. Num embate insano entre as frases dos filósofos, a
alegria e dor de autores amados e as demandas de mil corpos institucio-
nalmente a mim ligados, Diva, querendo falar comigo como nunca antes
em seus quatro meses em minha casa. Aquilo veio pior que uma bomba,
aquilo foi um estouro hecatômbico dentro do abismo de todos os conceitos
que se desenrolavam parágrafo após parágrafo. Um grito surdo, uma lá-
grima para dentro, um desespero que nenhuma palavra pode apaziguar
que mal se traduz numa impressão sem contornos no fundo de meu medo,
no meu pior e eterno abandono, na completa falta de apoio, confiança, se-
renidade e adeus a tudo que ia tão tranqüilo e que em uma frase que ali
naquela hora eu não consegui formular em meu cérebro e que se resumiria
159
no aceno que trazia o avesso de todo meu desejo mais que explícito de não
ter que padecer de tanto serviço. Como sempre acontecia, deixei tudo isso
nos mares não trafegáveis de minha dionisíaca alma quase sem tempo para
festejar e beber, salvei o que estava fazendo e respirei fundo. Minha cara
para falar com empregadas não conheço, nunca conversei com nenhuma
que estivesse de costas para um espelho. Mas as incontáveis caras desde-
nhosas das pessoas quando peço alguma coisa para elas conheço décor.
Assim como as caras “tudo de bom” quando pedem coisas para mim. Em-
pregadas raramente pedem, na maior parte das vezes comunicam: vão ao
médico e não poderão vir, não gostam de cheiro disso ou daquilo, só usam
o tal sabão em pó, furaram uma camisa, quebraram uma jarra fina, não
fazem tal bolo, acham ruim aquele tipo de serviço, não tem jeito de sair
aquela mancha, se eu não tiver ninguém para dar e “já que chegou um
novo” querem aquele sofá velho. Um vislumbre de esperança talvez tenha
feito minha cara melhor quando lembrei de um videocassete há muito tem-
po parado lá no quartinho, era isso, tudo poderia ser muito simples, Diva,
como toda e qualquer empregada, ia pedir um entulho que tinha mesmo
que sair da minha casa. Só que não foi assim, um pedido, uma solicitação,
um comunicado de praxe ao qual eu consigo me adaptar. Bastou eu virar
minha cadeira para ver o que, após dezesseis empregadas, certamente mais
de vinte faxineiras, oito tipos de babás e alguns zeladores a me servir, eu
nunca tinha visto: alguém testemunhando.
160
prepara fora de casa, com seus amigos selvagens que roem ossos. Vi ela
abrindo o compartimento e contemplar o bicho morto; ao que tive que
explicar: “isso o doutor ganha todos os anos do mesmo fazendeiro, mas
não dá para preparar aqui em casa”. O “doutor” para ela era doutor mesmo,
eu, desde o dia que expliquei que não era nem médica, nem advogada, nem
engenheira, nem dentista, mas doutora professora, devo ter ficado no grau
das aberrações. Diva manifestou, ali, ainda de avental e touca, as tais “figu-
ras paisagens” que eu vinha trabalhando num seminário com um livro de
Deleuze224. Sim, Gilles Deleuze, o filósofo francês do molecular, do imper-
ceptível, do impessoal, do indiscernível, do carrapato. O que se atirou pela
janela por não conseguir respirar. Tinha tempo de fumar, o desgraçado.
Melhor dizer, desgraçada sou eu que nasci mulher, tenho que alimentar os
outros e beber comedidamente para conseguir levantar no horário da es-
cola todos os dias. Devir-mulher no homem... se Deleuze tivesse que de-
sencardir os panos duvido que fizesse das mulheres essas Rose Sélavy por
baixo do chapéu cheias de testosterona. Sem rompantes misantrópicos,
amaldiçoando minha educação marxista que dá poder demais às minhas
empregadas, esqueci o burguês parisiense que nunca teve que escutar uma
Diva. Devo ter dito “o que foi” – sempre coloco o nome da empregada em
questão como modo dela saber que é mesmo com ela que estou falando.
Isso porque já aconteceu de empregadas que falavam tanto e entravam
tanto em meu escritório que eu tinha que começar a falar alto o que eu
estava lendo ou escrevendo para não perder o fio da meada e de mim de
vez. Devo ter dito “o que foi, Diva”, ao mesmo tempo em que salvava li-
nhas, largava um texto filosófico, saia de dentro de três livros e sentia
aquele medo atávico de ficar sozinha com roupas e roupas e bocas pedindo
comida e narizes entupidos de sujeira e pés pretos e irritações e tinha uma
menção redentora para liberar tudo isso no despacho de um não muito
velho vídeo cassete. Atletismo, caríssimo a Deleuze que por instantes
odeio por nunca ter padecido das demandas de uma Diva. A testemunha.
“Sabe o que é...” e essas reticências acumularam todas minhas angústias e
como atropelo as pessoas que hesitam em falar e sem querer já fui dando
corpo para matar de vez com aquilo que eu temia saí dizendo “está pensan-
do em ir embora” e no mesmo instante estava arrependida, pois a cara de
161
Diva era de quem nem sequer tinha começado. “É...” E para não chorar
porque o último ano tinha sido especialmente difícil para mim que tive
problemas físicos e nenhuma chance de tratar, crises de vários níveis, co-
branças enormes no trabalho, boletim de desempenho, relatórios de pro-
dução, cadastros a serem preenchidos todas as semanas, palestras em vá-
rios lugares, projetos em rede, nenhum final de semana livre, três turnos
incansáveis sem conseguir terminar nada, pilhas de mensagens a serem
respondidas, quis saber, de uma vez por todas, porque minha vida não tem
sido uma vida e seria melhor, se isso não lesasse profundamente os que de
mim dependem, morrer. E rio, porque se não fosse tantos a depender de
mim, eu não estaria morta, só vivendo com meus autores e meus textos e
não sofrendo por nada. Para não chorar pergunto, olhando bem para a
paisagem daquela pessoa, encostada na porta do meu escritório, qual o
motivo. Não que me interessem os motivos das empregadas que sempre
tem um marido querendo que fiquem em casa, uma pessoa doente para
cuidar ou falta de vontade mesmo de trabalhar e o que ganharam comigo,
incluindo roupas, móveis e o que eu tiver sobrando “já garantiu algum”,
como me disse uma que nunca tinha ficado mais de um ano na mesma casa.
Mas ali, naquele momento, a quinta empregada em um ano, tudo de pior
em meu corpo dolorido, eu quis saber e talvez, porque eu vi que ela teste-
munhava, eu sabia que ela saberia me dizer porque eu não conseguia ajuda
e estava fadada a provar dos piores desgostos. “É, a senhora é boa, muito
boa”, e eu pensava nos sábados que eu não havia lhe chamado, na vista
grossa para o serviço mal feito, no salário acima do mercado, na estabili-
dade da carteira assinada, no INSS pago, nos jantares que varamos madru-
gada lavando louça para não precisar que ela viesse fora do horário. Devo
ter emendado com o provável, embora não constatável para mim que faço
tudo nos vários períodos que fico sem ninguém, “peso do serviço”. Como
não era das mais fracas, já tinha trabalhado em casa com mais gente e sen-
do obrigada a cumprir horários fechados, talvez com alguém mais exigen-
te do que eu, ela também não achava grande o serviço, mas enfim, “serviço
sempre é serviço e casa sempre dá trabalho” e tal e tinha “o almoço e a
roupa”, mas isso não era nada. O salário, claro que poderia ser melhor, mas
como tinha sido combinado, conforme a produtividade aumentaria e aí
relembrei que eu estava sendo cobrada também e conforme eu progredis-
se, enfatizando que isso só acontece de dois em dois anos, o salário também
162
poderia progredir. O que era, e isso não foi dito assim facilmente, embora
para mim fosse sabido, talvez eu tivesse mesmo que ter levado dezesseis
empregadas para aprender: “sabe o que é, bom, a senhora sabe ó que é, eu
quero ir embora, bom, eu gosto da senhora, gosto da gurizada...” e aí per-
guntei o que já tinha perguntado antes, se era a casa que é difícil, sabendo
que as pouco afeitas a tirar o pó tendem a reclamar do excesso de quadros,
obras, plantas, livros. Não, a casa tinha muita coisa só que de um jeito ou
de outro as casas tem muitas coisas e “se não são umas coisinhas são ou-
tras”, mas, aí veio o que eu sempre soube em relação a todas as emprega-
das, faxineiras, consertadores de coisas e gente do gênero “como vou di-
zer... as suas coisas não são normais”. Era para rir, era para chorar, era
para revisar a fundo todos os conceitos de arte, de entulho, de pintura.
Diva, são obras de arte, algumas complicadas de se entender, pois são
idéias que estão em algumas coisas, tipo aquelas coisinhas naquela prate-
leira que é cansativa de limpar, é uma obra de recepção, são pedaços de
obras, obras que cada artista dá um pedacinho para a pessoa, aqui são
muitos artistas, esse adesivo “gentileza gera gentileza”225 é uma dessas
partilhas. “Não são essas coisinhas que me incomodam”. E aí pesou um
silêncio. O que viria, talvez eu não pudesse saber. “O que te incomoda,
Diva?” perguntei quase num suspiro, sendo toda minha vida um enorme
incômodo como os elefantinhos de uma das obras na prateleira que só foi
problema para uma visita alheia ao mundo das artes que, sem dizer nada,
sei pela cara que achou aquilo brega. Era outra coisa. “A senhora tem li-
vros estranhos”. Muitos livros, “enfeiando a sala” conforme disse quem
não gostou da minha obra de recepção. Como eu já tinha dito outras vezes,
para uma ou outra empregada que tinha se detido na prateleira cabalística,
com história medieval, Malleus Malleficaram e alguns títulos com “demô-
nio”, “inferno”, “mal”, “morte”, aquilo era meu trabalho. “Cruz credo”, uma
que nem lembro quem era disse. Mas Diva não estava falando desses títu-
los de minhas pesquisa de outros tempos, que embora visíveis estão meio
fora de circulação. Não foi preciso mais que cinco minutos de conversa
para saber que Diva estava falando dos livros de arte que se espalhavam
pela casa e estavam abertos por todo o escritório e passaram uns dias na
mesa de centro da sala. Alguns eu levava para cama e eram como tijolos a
225 Partilhas de Adriana Daccache, Jorge Menna Barreto, Ana Carolina Becker, Júlia Berenstein,
Roger Kichalowsky, entre outros artistas que promovem ações em rede.
163
serem carregados por ela do chão à cabeceira cheia de outros livros, toda
manhã. Tentando parecer uma normalidade que eu não tinha, disse para
ela que era meu trabalho, que meu regime é de dedicação exclusiva, que
durmo lendo meus livros e leio também no café da manhã. Só que não
eram só os livros. Dessas letrinhas pequenininhas ela não entendia mes-
mo, mas daquilo que ela via sim. E ela via minhas gravuras, sim, ela cha-
mava toda imagem reproduzida em livro, em quadro e mesmo as gravuras
em metal e as pinturas em tela, Diva dizia, meio que enchendo a boca e
subindo anormalmente no “u”, “gravuuuras”, sendo essas, afinal, o motivo
detectável, observável e analisável da Diva, que em alguns momentos sig-
nificou a salvação da minha vida, querer ir embora.
crucificações
164
ver nesse meu corpo puro templo devotado a escritores mortos, achei que
tinha entendido sua vontade de ir embora e eu já dizer que se ela quisesse
ficar eu até tomava um passe, mas só de pensar o tempo que ia perder
fiquei completamente quieta. Não eram as minhas anormalidades, eu ti-
nha mesmo estudado muito e saber de tanta coisa não era bem normal,
ainda que fosse “normal ter gente sabida como eu”. Assim, “chegada em
letrinhas e letrinhas complicadas de entender”. O problema, pela primeira
vez Diva ganhou um pouco de eloqüência, o problema ninguém conseguia
entender, pois “esprito não está em figura”, mas ela tinha certeza que sim,
mas todo mundo, pastor, médiuns experientes, o pai dela que tinha vivido
muito, o marido do primeiro casamento com quem tinha dois filhos cria-
dos, o marido que era e não era bem e que tinha um filho para alimentar e
por sorte deus provinha com tudo o que precisava, diziam que não, mas ela
via que sim. O “pobrema era que aquelas gravuuuras com gente se desman-
chando e aparecendo o osso que a senhora”, sim a senhora, eu, que para
ser chamada sou doutora e professora e sora, dona, por favor Diva, diga
qual é o problema que tem nas minhas gravuras. “Os matinho grande na
parede não incomodavam”, nem o barquinho da água podre com esqueleto
de peixe na praia226, não, nem o super-herói mal focado227, nem aquelas
mulheres com cara de vida fácil, não, o problema eram “as gravuras que
estavam naqueles livros”. Exatamente os quais eu vinha usando, aqueles,
que ela, sem eu saber que estava atenta, disse que eu tinha “no computa-
dor”. Num instante compreendi e quase não acreditei. Coisas estranhas
de uma pessoa que sabe muito e que por saber muito e trabalhar com
determinadas coisas, faz com que essas coisas sejam importantes. De toda
a conversa, uma frase dita por Diva jamais foi apagada: “as pessoas se des-
mancham”. Algumas semanas antes eu tinha mesmo trabalhado a relação
da carne com peças destroçadas num açougue. E as pinturas que passei e
repassei em minha tela tem figuras que se desmancham tipo bicho num
matador. O que incomodava Diva, entre todas as anormalidades de meu
mundo, eram as reproduções das pinturas de Francis Bacon, fossem nos
livros pesados, nos catálogos menores, na tela do meu computador, senta-
da bem onde ela teve certeza de que viu eu começando a me desmanchar,
rompendo a pele, sangrando por baixo, entortando a posição dos ossos. No
226 Gustavo Rigon, acrílico sobre tela, 70 cm x49cm, 2007.
227 Alexandre Cappelari, Hulk,fotografia, 59cm x 59cm, 1996.
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horror dessa descrição, que jamais imaginei que alguém pudesse em mim
reparar, apelei. Por eu estar me acabando de tanto trabalho é que eu pre-
ciso de quem me ajude e não de quem falte o serviço ainda em experiência
e me deixa na mão. E falei a ela que talvez seja mesmo preciso de reforço
extra na parte da limpeza, que se estivesse como está eu teria que ver mais
uma pessoa. Mas, para mim acrescentei sem falar, alguém que não tenha
medo de pinturas de corpos humanos distorcidos. Resolvi, então, limpar a
barra explicando que aquelas figuras eram efeitos, assim como nos filmes.
“Monstros de filme”, disse para Diva que era, pela décima sexta vez, a per-
sonificação de um monstro bem real. “Inimigo pago”, como a mãe de um
parceiro falava. Só que nenhuma palavra, por mais convincente que fosse,
absolvia aquelas pinturas. Fez-se um longo discurso de minha parte, não
fosse tão senso comum e clichê até podia parecer uma aula. Aproveitando
que agora sabia no que precisava melhorar, o intuito de minha fala bastan-
te longa era fazer com que Diva resolvesse ficar. Mas para isso teria que
passar por uma aprendizagem e saber, a fim de superar suas limitações e
poder ser empregada de uma pessoa como eu ela só precisava aprender que
arte é melhor quando perturba e não nos consegue deixar indiferentes, que
as perturbações mostradas na arte nos fazem pensar e aprender muitas
coisas e que os quadros, as coleções, os livros, todas essas coisas que as
pessoas inventaram e estão nas casas, não são do bem e nem do mal. Assim
como um corpo, as coisas na natureza se desmancham, nada pode ficar
inteiro por toda a vida.
mitigação da carne
166
própria, espaço ocioso, prazer em se fazer o que foi escolhido estavam em
traçados que nem eu, nem Diva, nem Eva, nem Lilith, nem a Vênus, nem
Gilnei que trabalhava no edifício, podemos manejar. Mesmo os atos delibe-
rados envolvem gestos que dão para a vida e para o corpo que nela figura
aspectos completamente alheios ao esperado. Os desenhos do acaso são
terrivelmente aleatórios. E o que Diva ia fazer com meu discurso, pouco
me cabia. Sem bem, sem mal, ela não havia se acertado. Devo ter pergun-
tado com o que ela não tinha acertado, pois não fez nenhum doce, nenhum
prato novo, nem me ajudou em horário noturno a servir algum jantar
de bateria completa, daqueles que vão do aperitivo ao cafezinho, com no
mínimo cinco tipos de copos para cada convidado. Compreendeu que não
tinha mais nem certo e nem errado com tudo o que nos falamos. Mas uma
coisa era certa: em minha casa se comia muito pouca carne e que ela ia
embora porque não gostava mesmo de cozinhar sem sal e daquele tipo de
pão chato e duro que se comia na casa nem das coisas que eu inventava de
trazer, ou seja, aquilo que ela jamais deve ter visto e não teve humildade
para dizer que não conhecia: berinjela, aipo, alho poró, grão de bico, talvez
a linhaça que deixo num cantinho. Diva, ó Diva, se come pouca carne por-
que se equilibra a alimentação e o alimento é o corpo e o corpo é sagrado, é
divino e deus, ela percebeu que meu deus é corpo e que por não existir deus
que esteja fora dos corpos se apavora com aquilo que, por analogia, mostra
que os corpos sempre acabam abatidos. Diva não pode suportar que deus
morra como toda carne que ela passa no mercado para comprar. Digo que
não tenho tempo de passar todos os dias no mercado que nem ela, e canto
esse que nem para que ela veja o quanto tem de vantagens sobre mim, Fica,
num átimo de segundo segurando as cordas de meu fracassado coração a
se perder em embates com alguém predestinada a eu perder, a lembrança
de meu tempo com tempo quando não haviam filhos e carros e cargos e
coordenações. Num tempo em que eu podia sair do trabalho e comprar a
castanha do dia no mercado central. Tempos irrecuperáveis, uma vez que
os postos, e parece que todas essas exigências crescendo cancerosamen-
te no tempo encarcerado no trabalho, são irreversíveis. Impressões que
não cabem nas palavras que escolho para justificar a ausência de carne na
mesa. A carne que atrai as feras e cuja ausência manda empregadas embo-
ra. E por um instante achei que o problema fosse mesmo as “gravuuuras”.
E ali, meio que atirado para ser levado para emolduração, um cartaz de
167
evento da minha linha de pesquisa reproduzindo uma carcaça de Soutine.
O olho de Diva foi parar ali, embaixo da mesa. Oficina de escrileitura. “É ...a
senhora não é mesmo uma pessoa normal”. Se eu tivesse guampas, juro
que elas saltariam. Mas a maior anormalidade que pude mostrar era meu
corpo ainda sentado na cadeira giratória, vestido aos trapos para ficar bem
a vontade em casa, amassada pela poltrona de onde tinha passado a manhã
a ler uma tese, a qual foi drasticamente cortada ao meio no momento que
fui até a cozinha explicar que a metade daquele cordeiro não ia ser prepa-
rada em casa. Não adiantava lamentar para Diva que anormal era eu ter
que trabalhar tanto e ainda ter que todo dia pensar no que ela tinha que
fazer. E fiz um gesto indicando as prateleiras cheias de livros e “isso é tra-
balho, trabalho, pesquisa, estudo dos tempos contemporâneos. Sem estudo
estaríamos iguais a Idade Média, quando só se comia carne se ganhasse
um pouco da caça do Senhor, pois, Diva, pobre só passou a comer carne por
conta quando teve dinheiro para comprar no mercado, nos tempos antigos
só os ricos sabiam caçar. Os pobres viviam da caridade dos ricos, dos que
defendiam as terras, dos que tinham armas para matar os bichos”. Quando
percebo as besteiras que estou falando tento mudar o enfoque. Socialismo
uma ova, falava em mim o sangue conquistador ressentido por não con-
seguir escravizar mais ninguém. Passo a língua nos caninos suavizados,
mas ainda sinto as pontas e todo seu potencial de rasgo... Sofrendo por
nunca ter caçado, matado um boi ou participado dos rituais dionisíacos de
dilaceração de um bode e me achando a mais completa babaca da terra per-
dendo o único tempo na odisséia da semana para escrever argumentando
merda para Diva, tento mudar a linha de raciocínio. Vou para o sacrifício
semanal chamado supermercado: “escolher os alimentos, a distribuição
nas horas, as refeições dos próximos cinco dias... tento explicar para Diva
que há uma diferença imensa em pegar o que vai se comer e preparar no
dia e o que precisa ser planejado em longo prazo, dentro de um modelo de
refeições nutritivas com ingredientes razoavelmente flexíveis, variando o
que der e aproveitando ao máximo os recursos oferecidos pelo alimento,
fibras, sementes, talos, folhas... E a carne é o que, nesse elenco de escolhas
de preparo e reciclagem da comida ao longo da semana, é o que acaba
ficando em segundo plano, pois precisa ser congelada. E pode estragar
até ser preparada de forma a não parecer um cadáver”. E entre o gosto
de um cadáver e a menção redentora do vinha d´alho que nunca consegui
168
ensinar a Diva, pois sempre o faço a noite, ficou o cadáver. O corpo que
não pode ser visto, a carne ruim, o presunto a ser desovado, como quase
toda a carne descongelada por Diva, que ninguém consegue bem comer e
sobra e vem e vai da geladeira para o microondas e mesmo que eu mande
que ela leve embora, fica. E a melhor coisa de Diva é que ela não vem me
perguntar o que fazer com os restos. Só que ali, naquela conversa, o que
restou foi a palavra cadáver saindo impensada de minha boca, justo minha
boquinha alinhada por tantos aparelhos ortodônticos que evita por chur-
rasco sangrento para dentro. Cadáver é mesmo uma palavra que pouco se
diz. E ao dizer, infortunadamente para D. Diva que acreditei ser, até que
enfim, a minha empregada de fato que já não vai ficar, não posso dizer o
quanto tenho o gosto espúrio de alguns cadáveres em minha boca. Se foi a
palavra cadáver, se foi a conversa sobre os nobres caçadores, se foi a carne
que mesmo pouca para ela sobrava, se foi o boi esquartejado de Soutine,
as reproduções de Bacon, não sei mesmo, Diva se avilta. E assim que falo
cadáver, vira as costas dizendo enquanto segue para cozinha “faz como a
senhora quiser, se não quiser me demitir eu fico sem as minhas contas”.
extrema solidão
“Vai dar comida para teus cavalos”, foi o que o coleguinha babaca
disse para minha filha ultra sensível que chorou todo trajeto da escola até
em casa porque essa foi a frase que a impediu de brincar durante todo aque-
le recreio e mais outro e mais outro e mais um em que ela queria estar
junto com sua turma inteira e aquele menino não deixava. Na hora, bem
naquela hora, essa frase de tantos anos atrás, repetida para professora, para
a diretora da escola, para a psicóloga indicada pela escola para tratar da
menina que diziam não conseguir se integrar, era exatamente o que eu
queria dizer para Diva. E a frase veio e o cavalo era eu troteando até a área
de serviço e vendo o balde com panos de prato e pia de molho e o outro
balde com os panos de chão e eu gritando para Diva dentro do quartinho
fechado que viesse “amanhã depois das seis acertar as contas e que se fosse
mesmo embora, afinal, tirando as figuras que ela não gostava e reestrutu-
rando a maneira de se comer carne, parecia que estava tudo bem, mas se ela
fosse mesmo embora que no mínimo esfregasse aqueles panos e os colocasse
169
para secar que eu recolho”. O meu “recolho” fechou seu “o” no umbigo da
minha pior amargura, já que aquilo era mesmo minha condenação, que
pelo menos ela me poupasse daqueles baldes. Mas Diva saiu do quartinho
vestida de madame, como sempre saia, mais penteada do que eu, com seu
perfume ruim infestando a área, a cozinha e se ficasse mais um pouco o
resto da casa. De aviltada passou a desaforada e, mesmo que não tenha dito
nada, sua cara fazia eu me afogar nos meus baldes com panos sujos bem
como eu tinha mandado, sem nada, nadinha de água sanitária. Essa era
uma ameaça, pois os rastros dessa maldição se fazem valer em tudo: eu não
compro esse horror que fura panos, estraga a cor das toalhas, resseca as
peles e faz poás indesejados nas camisas. Essa era uma das reclamações de
Diva. Queria encher os banheiros de clorofina e não escovar os azulejos.
Encher os panos de clorofina para não precisar esfregar. Detestava não ter
esfregão de aço, embora fosse a primeira que entendia que não existe de-
tergente realmente biodegradável e que é melhor para mãos lavar a louça
com sabão em barra. Ao lado do tanque, em cima da máquina de lavar,
Diva esticou o braço de modo a não encostar em meu corpo e deixou as
chaves de casa. E se foi sem dizer nada, batendo a porta nem fraco nem
forte, sem nem ao menos eu ter chance de dizer que dependendo como as
coisas iam eu sempre acabo me rendendo a toda a kiboa e bombril que a
empregada pede. E fiquei ali, do lado do meu tanque, reparando na crosta
cinzenta e gordurosa na borda inferior. Eu e o ralo cheio de cabelos de meu
tanque. Eu e minha vontade de entrar ralo adentro e sumir. Eu e minha
raiva por ter nascido e ter panos, e roupas enchendo a tulha, e louça que,
dali a pouco chegando o pessoal em casa, ia crescer e crescer por toda a
noite na pia da cozinha. E eu tinha que escrever um texto, um capítulo de
livro para uma publicação muito especial, prazo só mais dois dias, sem
negociações de data em função de verbas das agências de fomento. E nisso
toca o telefone e corro para ver que me ligaram, sim, estou mesmo traba-
lhando em casa e eu já dou a notícia de que preciso arranjar uma emprega-
da e que estou meio desconcentrada e que seria pior se eu estivesse traba-
lhando por lá e tal e o horário da reunião que eu não posso faltar e nem
chegar atrasada amanhã. E ao mesmo tempo o zelador no porteiro eletrô-
nico perguntando se pode trocar a lâmpada do corredor que queimou por
aquela do canto da garagem até eu trazer uma nova. Resolvo isso depois,
por agora troque. Tento recuperar a minha linha, meu fio, o texto deixado
170
até eu me esquecer dele lá tela do computador. Entro e saio do escritório,
confiro mensagens, respondo a três pessoas querendo saber de aulas e re-
ferências bibliográficas e uma combinação de estágio docente e anoto que
preciso ligar para a escola, marco compromissos, passo a limpo todos os
pontos elencados na tese para elaboração de um parecer. Trabalho com no
máximo três janelas, caso contrário não presta. Sou das últimas criaturas
da era analógica, virei o lado de milhares de long plays, ainda prefiro livros
de papel do que e-books. Sinto enjôo, vou buscar alguma coisa na cozinha.
E vejo os baldes e sei que dentro deles há panos sujos que são fatalmente
meus. A tarde está escura, ligo o interruptor da área de serviço. A porta, o
interruptor, minha vida confinada em casa, minhas paredes coloridas, os
interiores das pinturas de Bacon. Minha ânsia de vômito, o escoamento de
tudo numa carne inconformada com seu fado, querendo “passar por um
buraco de rato”. Talvez fosse isso o que Deleuze pensasse como banalizar
a abominação de si. A aceitação do Destino, as lutas de superação, a indivi-
duação. Por mais que Diva tenha me visto se derretendo ao lado desse
tanque, Gilnei, enquanto varria a calçada, me disse outro dia: “a senhora se
vira”. Não sei bem o que ele quis dizer com isso, se falava do meu trabalho,
das lâmpadas do condomínio ou da minha recorrente troca de empregadas
ou nada dessas coisas porque se virar pode ser a coisa mais ilógica do mun-
do e quer dizer para a pessoa que basta estar vivendo. Derreter, entrar
pelo cano, sair tipo um composto, barro, do outro lado. E o telefone toca
novamente e mais uma vez é um assunto que me tira completamente da
minha pessoa, da minha vida, da arte. Depois que coloco o fone no gancho
sem dar comida para cavalo nenhum, cachorro algum cabendo no meu
esquema, sem pensar nos passos largos até a área atiro o balde para longe,
num arremesso de braço inédito nesses vinte anos de dona de casa, em
direção à porta da cozinha. O jato de água deu aos meus olhos fascinados
uma instantânea cascata. E uma poça imensa onde três panos que mere-
ciam ser minha mortalha fingiam ser seres a anunciar o que, no meio de
um corrido semestre e viagens marcadas não poderia ser pior: ficar sem
empregada. A água atirada precede as águas que correm dos meus olhos.
Devo estar para menstruar. Mal consigo elaborar meu ímpeto destrutivo
toca novamente o telefone e ao correr para atender resvalo na água sobre
o piso deslizante da cozinha e caio com a cara no chão. Um dos panos pa-
rece uma pedra a magoar o meu quadril. Sinto meu pé torcido e não sei se
171
a água em meu corpo exaspera minha dor, a carne inchando e um osso da
têmpora que sinto como se estivesse fraturado, tudo isso muito pouco per-
to da dor a que todo corpo entregue aos outros está condenado. O que é
esse corpo caído machucado na água de sua própria fúria só interessa a
mim que abdico dele a cada instante que está intacto. O telefone parou de
tocar e ouço a gravação atrás de mim que não fui achada na Universidade.
Esse corpo precisa se levantar, pegar panos secos, torcer toda água para
dentro do balde antes que o desastre seja maior e aquele que odeia água no
chão encha meu corpo de palavras violentas que não cabem mais no deses-
pero de estar só com todo o serviço que há de vir. Eu não entrei em sim-
biose com uma barata228. Antes da Diva chegar eu mesma limpei o quarti-
nho, minha casa é um urbano deserto onde apenas minúsculas aranhas se
atrevem existir. Eu arremessei um balde e talvez penasse para sempre as
conseqüências de meu inócuo atrevimento. Antes eu tivesse provado a ba-
rata. Mexo a perna que torceu. Na verdade, doído mesmo está o tornozelo,
mas nada que impeça de que me apoiando no outro pé, lentamente após
sair da posição de quatro que me deixa intermediária entre um banquinho
amigo e o chão, eu fique meio erguida. Abraçada no banquinho, meu salva-
dor nessa hora trágica, consigo me erguer nas pernas e ir mancando para
o quartinho buscar os panos secos. A pior parte foi levantar o balde. Aco-
modar o tornozelo de modo que ao ficar de joelhos a coisa não impedisse
meus movimentos até foi bem possível. Depois de o balde estar quase um
quarto cheio, com uma água muito mais cinza do que aquela translúcida de
sabão em pó que atirei, sinto uma espécie de alívio por Diva ter querido ir
embora. O chão da cozinha estava péssimo e embaixo dos armários estava
um nojo. Como todas as outras, Diva jamais tinha se ajoelhado para limpar
a minha casa. Com certa dificuldade e com certeza de que um pé estava
maior que o outro vou levando o balde com água encardida e panos exces-
sivamente encharcados para o tanque. Nisso a porta da rua se abre e a
adolescente entra cozinha adentro distraída, pisando na água e anuncian-
do que está morrendo de fome. Seus pés na umidade do piso fazem barro.
Grito e esbravejo pela sujeira que piora e ao tirar os tênis em minha dire-
ção consegue molhar as meias. Mais um grito meu, um grito imenso que
não ajuda nada, mas me dá a reles certeza de que estou viva e não posso
172
aceitar sem bradar contra essa estúpida situação. Bosta, só vai comer de-
pois que eu terminar de limpar a cozinha, não vê que tem água derramada,
a Diva foi embora, estou cheia de trabalho, podia ajudar... Ela sai sorratei-
ra da cozinha, fugindo dos problemas e acidentes que em suas prioridades
blogueiras, twitteiras e fashions não lhe concernem. Como tampouco lhe
concerne o corpo encostado no tanque, a colocar panos de molho e se
apoiando nas paredes para continuar secando a água que derramou. Pare-
ce fácil, falo gritando para que ela me ouça lá do quarto, para quem passa
deitada no sofá ou na cama a vida é mesmo muito fácil. Só me olham para
pedir comida. Ou reclamar de uma roupa que não acham. E então grito
mais, com a boca mais aberta do que um Inocêncio X colado na lâmina de
uma das muitas aulas preparadas no domingo. Um grito que parece quebrar
os ossos da cara, já lesados pela queda, que se dane essa cara que eu odeio,
essa cara feia que estampa uma vida da qual sequer posso pensar em escapar.
Grito tanto que nem vejo quando os outros chegam e só dou por mim quan-
do a mais criança das crianças me olha assustada e diz para o resto da casa,
meio que andando de gatinhas, que “a mãe parece um zumbi”.
retrogradação
173
consigo. Descansa, é tua palavra de ordem, garantindo que hoje o jantar é
tua responsabilidade. Tu não tens como entender meu sofrimento, isso que
tranca meu quadril e desestabiliza meus passos sem permitir que eu pare
de trabalhar. Repito que preciso terminar o texto, tenho prazos e amanhã
aquela reunião e dois orientandos atrás de mim que hoje nem retornei.
Então perguntas se eu sei como está meu rosto e na minha manifesta ig-
norância trazes um espelho para eu poder ver minha cara partida ao meio,
meu olho gigante imenso rosa forte que nem duas formas de cubos de gelo
podem abaixar fazendo do outro olho um risco que pode ser qualquer coi-
sa, mas é meu olho que ainda te vê. Interrupção. O tempo inteiro os corpos
solicitam alguma coisa e mil vezes isso implica deixar de atender nosso
próprio corpo. E o corpo que canta, o corpo que se banha, o corpo que
exige um toque, vem atrás do corpo matriz que catastroficamente jaz sob
o colchão. Cabelos molhados, camisola pingada de chocolate ao leite, o
pedido por uma calcinha seca e que “não deixem as toalhas molhadas em
cima da cama” que hoje não tenho como averiguar. Todo meu avanço é que
agora esses corpos se banham sozinhos. Existem por si mesmos. Ainda
que eu, corpo modular de onde tais vidas derivam, seja eternamente exigi-
da por eles. Não é a matriz orgânica. O fato é de que os alimento. Crio. Ser
o útero que gerou esses organismos não basta. É preciso fazer crescer, é
preciso ensinar, é preciso educar. O que se educa são os corpos, jamais os
organismos. Os órgãos são rebeldes, os sistemas cheios de falhas. Corações
param, pulmões entopem, estômagos expelem fel, intestinos se revoltam,
caralhos estão impedidos de fecundar. Os músculos tencionam, os ossos
quebram, o sistema nervoso vem cheio de defeitos, muitas vezes em função
de pouco ou muito funcionamento das glândulas. Tratando de organismos
a derrocada é rápida e se generaliza. “Mãe é urgente”, ela solicita com a
melodia que lhe é peculiar na voz: “fiquei menstruada e não acho uma cal-
cinha para colocar.” Tudo urge e a mãe deitada está quase morta e o pai do
lado se contorce e penso que vai chorar quando coloca a cabeça entre as
mãos, sentado na borda do estofadinho do quarto. Indico todos os lugares
da casa aonde se guardam calcinhas do tamanho apropriado. Estirada ho-
rizontalmente sinto a verticalidade das paredes a enquadrar os pontos em
que a pele inflamada parece caminhar até o teto. No entanto, em contraste,
tudo o que estás a olhar é o chão. Nosso tapete bege, uns poucos fios de
cabelo sobre ele esparramados. E sei que temes passar novamente por
174
aqueles dias em que adoeci e tivestes que ser eu e tu. Que sem o meu corpo
fazendo funcionar a casa sentiste completamente o terror de fazer tudo o
que eu fazia. E Elisângela, aquela empregada que nunca saía do telefone e
justo naquele período preparava a festa dos quinze anos da filha, foi muitas
vezes embora sem avisar e conferir se eu tinha água na mesa de cabeceira.
Aquelas tardes sem poder me mexer em que passei sozinha e sem água
devastaram qualquer símbolo de amor, comunhão ou redenção, qualquer
crença na humanidade. Paralisada, mas para minha felicidade com alguns
livros, que eu lia no desconforto da sede e caso houvesse a saciedade dela,
na vontade de urinar. Na aridez do meu quarto naqueles dias quentes e
ensolarados de verão, em que eu podia ouvir os gritos das pessoas na rua,
o barulho da água dos corpos que se atiravam lá embaixo nas piscinas, o
rodar dos carros com som alto, uma alegria solar da qual eu não podia
participar e que era por isso que ninguém vinha para acudir meu corpo
sedento nas sombras comprometedoras de meu quarto. Sem água, uma
vez sem a mínima esperança de que houvesse amor. Somente as palavras
certas dos escritores que escolhi para companhia. Dos que de algum modo
amo. Sem combustível para lágrimas, apenas a palavra seca dos que vive-
ram e imprimiram suas sensações em páginas. Dando a mim pensamentos
que eu não teria para que eu pudesse esquecer a minha sede e essa intragá-
vel e eterna solidão. Estamos juntos, mas não mencionamos o fato, mesmo
passado está o tempo inteiro em nosso desespero de que se repita. Espre-
mes o rosto porque teu calvário tem todos os elementos para ser recome-
çado. Desta vez em nível de dificuldade máxima, pois não teremos quem
sirva o almoço. Pela boca que entortas e pelas rugas em torno dos olhos sei
que pensas que trabalhamos tanto para nada e dizes mais uma vez que eu
só tenho a ti no mundo e que te encho de vergonha porque ouvem os meus
gritos e que Dalva, Diva você quis dizer, tanto faz, todas se acham estrelas,
pois bem, Dalva ficou lá na portaria falando para todos que eu era louca. E
o que eu posso dizer além de tudo o que eu já sei que vais dizer e isso não
vai diminuir o lixo que se acumula nos cestos. Alguém tem que trocar os
sacos e garantir outro destino. São nossos despojos, cada vez mais prolife-
rantes, é como uma doença, todas as casas tem. E sem falar nada fica na luz
elétrica que nos encima aquele verão quente comigo costurada e inchada
na cama sem água e sem ninguém para chamar no meio de toda aquela
sede no corpo paralisado e aquele desespero de meu corpo secando e tu,
175
somente tu para me ajudar ir até o vaso sanitário e meu corpo esperando
horas e horas para chegares do trabalho e me levar até o banheiro e tudo
aquilo impresso na miséria de nossa carne presa entre paredes me obri-
gando a urrar mais mil vezes e querer morrer visto sepultada eu há muito
já estar. Na cadeira giratória, na poltrona de ler quilômetros de textos dos
outros com uma caneta vermelha na mão. Dalva via tudo isso e ouviu atrás
da porta eu socando de ódio minha própria cabeça. Diva, não Dalva. A
Divinha, como o marido a chamava. Adivinha? Ela esperava o marido na
portaria quando a cidade inteira escutou meus gritos. Qual marido; quero
saber. Como assim, qual marido, tu me dizes, sem saber que Diva mais ou
menos tinha dois. O que buscava ela de carro. Assim ficou amiga do Gilnei,
da vizinha que tem tempo para conversar lá embaixo, enfim, toda essa
gente que acha loucura quem passa os finais de semana escrevendo e quan-
do tira férias tem que aproveitar para dar cabo no trabalho acumulado e
confina os filhos dentro de casa e só grita e chora porque não dorme para
não perder os prazos que estão sempre engolindo a vida de quem deles
depende. Contraído no estofamento pareces teres mais dores do que todas
as provocadas por minha queda. “Eu não sei o que fazer”, me dizes, olhan-
do minha perna inchada, talvez as crianças possam ficar um pouco sozi-
nhas, talvez o melhor seja fechar bem todas as janelas e abrir o gás. Só uma
tonturinha, um pouco de náusea e pimba. Num suspiro fundo vais procu-
rar a calcinha daquela que não pode sair do vaso sem manchar de sangue
o chão. Antes meus antepassados tivessem sucumbido ao holocausto. Mas
não, vieram parar aqui, nesse absurdo chamado Brasil, num lugar sem ca-
bimento e tacanho, onde um pintor inclassificável tem que ser professor
para poder comer. E não me vem com Iberê Camargo, assassino. Estava
pensando em Bacon, o putão irlandês que viveu em Londres, aqui ele esta-
ria dando de comer aos cavalos até ficar velho. Uma pintura desse tipo, sem
escola ou tendência, só consegue se fazer valer criminosamente. Pintar é um
crime, como um atentado, um escândalo que pouco se nota, mas que jamais
se conseguirá facilmente esquecer. Porque aquele corpo pintado, assim, o
corpo que todo quadro emoldura, as figuras que são quase tudo de um qua-
dro, essa figura mata o corpo que tem como modelo, mote ou inspiração. Por
exemplo, os retratos de Rembrandt, qualquer retrato, naturezas-mortas e
paisagens que nunca, nunquinha, são aquilo que pintam. Falei, como sem-
pre, sabendo que ninguém estava me escutando. Percebo as movimentações
176
do corredor, os passos no quarto ao lado, o chuveiro com banho de outro,
a descarga de tudo o que escorreu de menstruação e sabe-se lá o que mais,
os pulinhos do sofá ao chão e os passinhos saltitantes de criança e tu ra-
lhando de intolerância e a resistência do corpo que pula e vai e vem cor-
rendo me espiar, colocando só metade do corpo para dentro do bastidor da
minha porta. E tenho a certeza de que entre eu a maçaneta que meu braço
não alcança há uma linha que une meu corpo ao seu corpinho inquieto,
difícil de ser fotografado, que faz borrões na foto se não estiver dormindo
ou advertidamente fingindo de estátua. E pelo calor, tremor do piso e ba-
rulho de passos sinto que tu voltas, dando um xingão e mandando o corpi-
nho tomar uma atitude. Olhas, do mesmo lugar rente ao bastidor da porta,
minhas deformações, distorções de meu contorno, da textura da pele, algo
capaz de alterar o aspecto das tuas mandíbulas, espremendo a boca num
canto e engrossando o pescoço. Pareces que vais dizer alguma coisa, mas
antes que eu comesse a falar volteias para o corredor. Tu também foges,
testemunhando esse corpo quase sem saída que faz parte do teu.
voracidade
177
positalmente, um vidro. Super complicado fazer uma fotografia disso. Em-
bora tua fotografia fosse muito interessante, pois era um corredor e tivestes
que pegar a imagem em ângulo, o que deixou o quadro um quadrilátero
irregular com tangentes levemente paralelas. E dava para ver teu reflexo
no vidro, pois o quadro era bem escuro. Ele colocava um vidro inteiro para
proteger a tinta, não quebrado e fazendo desenhos como o Grande Vidro,
mas um vidro concebido por Bacon como parte da obra. Estás nervoso.
Elogio tua foto, tuas viagens das quais não há como eu fazer parte, o cuida-
do para me trazer uma lembrança daquilo que eu merecia ter junto aos
meus olhos. Pinturas de onde meus antepassados jamais deveriam ter saído.
Ansioso, te voltas num aceno com o celular e a tal foto no visor. Compensa-
ção que não justifica a tua ida para o escritório, pois como todas as noites
em que estás em casa precisas te confinar para pagar contas, cuidar da con-
tabilidade e ver tuas mensagens e fazer laudos. Hoje, como todos os dias em
que me machuco, não seria diferente. Não queres ficar longe de mim e eu te
lembro das providencias para um jantar que já passou do horário de praxe.
Tudo te distancia das tuas incumbências, do teu estar de costas, do nosso
ganha-pão. O que te tirou a calma na cozinha, o que ficou aos pedaços no
chão, a demanda de corpúsculos insignificantes cuja presença intolerável se
combate: massa crua, pão pisado e outras melecas sobre todas as manchas
indeléveis dos anos vividos naquele piso. Chão que todo e qualquer corpo
tende a sujar. Porque os corpos deixam pedacinhos por todos os lugares por
onde passam. Moléculas, células mortas, partículas de pele e pelo. E tem
mais, coisas mais líquidas, mais sólidas, grudentas, que podem impregnar
superfícies, sendo impossível retirar alguns desses vestígios, como os ra-
nhos que os adolescentes tendem a colar nas paredes. Não que se ame uma
casa a ponto de fazer dela uma escravidão, mas por ser a casa uma escrava
de nossos caprichos e necessidade de conforto que acabamos nos rendendo
as suas exigências. Ainda existe amor, por mais loucura que pareça, naquilo
que bastante se esfrega. Para que nesse lugar possam ser os livres os espas-
mos. Sem que os pequenos cadáveres, esses mínimos pedacinhos despojadas
por cada um enquanto todo dia se vive, não incomode o outro. Amar, no
nosso anômalo entrelaçamento, é arcar com uma enorme quantidade de
vômito e excremento. Catarros, pruridos nasais, berros desesperados. Fo-
ram noites e noites apaziguando corpos. E mesmo assim nunca paramos de
trabalhar. Fácil ser Nietzsche, fácil ser homem celibatário, mas aqui o caso
178
é de dois homens, de duas mães, numa relação sem gênero de duas pessoas
que dão duro, cuidam de filhos, alimentam “cavalos” e mantêm juntas uma
casa em pé. Por isso cada vez que um viaja o outro entra em colapso. Não
há mais ninguém. Havia Diva, mas agora ela se foi. Há Gilnei, hoje certo
que estou louca, cuidando do prédio de nossa porta para fora. Lembra da
lâmpada que ele pediu. Há um canto da garagem que está escuro e o vizinho
de cima já reclamou. Enchemos a casa de espelhos, tentando um truque
para aumentar o espaço. E no desalento de todos os dias esses espelhos não
configuram uma superfície onde possamos nos refletir. Apenas testemu-
nham as pessoas que entram e não conseguem nos suportar. Por sorte hoje
é a noite que estás em casa. Qualquer outro dia a vida despencaria comigo.
Atirada num balde. Os espelhos apavoram. Tento levantar para pelo menos
tentar que alguém ajude. Mas não há ninguém além da fome das crianças e
do medo que minha cara mete. Diva me aspirou com o pó de cujo acúmulo
em zonas específicas reclamei. Pratos batem na cozinha. A luta continua e
a única ressonância é o tiritar da louça se acumulando na pia. Sinto a têm-
pora dilatando. Não posso apoiar o pé no chão. Sigo claudicante pelo corre-
dor na meia luz que vem do quarto. Chego na cozinha cheia de migalhas
pelo chão e consigo encher a chaleira de água, acender o fogo e pedir que a
adolescente varra o chão. Nenhuma pedagogia me deu pistas para ensinar
alguém a deixar de ser vassoura mole. Mas como educo, mesmo dizendo
que não está bem, deixo fazer. Recolher a sujeira com a pá também se dá na
moleza de quem não tem o menor interesse por chão limpo. A água ferve e
na impossibilidade de me abaixar sem danos tenho que gritar para que al-
guém venha me alcançar uma panela. O macarrão vai amolecendo aos pou-
cos e o vapor irrita minha pele. Tenho sono, talvez sejam os comprimidos
que me deste. Ainda não morri porque desejo pelo menos terminar o texto.
Não deixar os outros a míngua, os alunos na mão, gente sem resposta, tudo
o que eu vivo e não quero que outros passem. Embora existam passagens
inevitáveis, nem todas dão em arte. E tudo o que passa é fato. Passando
pelas figuras que nenhum espelho pode mostrar. Coar a massa mostra que
os braços também estão danificados. Escoando na água turva todos os de-
sesperos se vão. Não é a primeira vez. E lá estão os pratos, os copos e como
é de costume, chamo e ninguém vem. Acho que o fato de servir e ninguém
sentar foi uma das coisas que acho que me fez perder Miriam, uma empregada
que parecia boa e que depois de duas semanas desapareceu sem explicações.
179
Mas não cozinhar dá em sacos de macarrão furados, potes de geléia comi-
dos de colher e devastação completa de pãos, copos de requeijão e frios. Alto
dano econômico e nada para o café da manhã. Como sozinha. Mastigar é
dolorido, talvez eu tenha quebrado um dente, sinto um incisivo mole. Com
custos para todo meu corpo abro a geladeira para pegar queijo e suco e pi-
menta e qualquer coisa que faça um macarrão ter mais sentido. Aparece um,
aparece outro, aos poucos a panela vai esvaziando, mas antes volto para o
escritório e para minha cadeira giratória de onde só deveria ter saído para
receber os filhos no final da tarde que por sorte não era a minha de buscar.
Teu corpo curvado não vê que estou ali e quando por um surdo gemido me
percebes explicas que já tinhas comido fora de casa e que aquele laudo não
podia ser deixado para amanhã. Meu corpo se esparrama no encosto da
cadeira de um modo nunca antes experimentado. Não me quebrei, tens
certeza, estou apenas machucada, isso é normal num tombo daqueles, se
houve alguma coisa não há mesmo o que fazer. Já aconteceu tantas vezes
antes, meu corpo lesionado faz parte da vida, não adianta se preocupar. Há
corpos piores, todos os dias vês coisas muito piores. E eu não devia ter atira-
do o balde, meu corpo é o resultado de uma cena histérica cuja única solução
é laço. “Uma tunda de laço”. Se surra adiantasse todos que apanham esta-
riam bem. E a louça do jantar não estaria espalhada pela cozinha. Mal sento
recebo os pedidos de todas as noites e há lições de casa, tesouras a serem
encontradas, recortes de revistas, continhas de armar e fome de sobremesa
que só macarrão não adianta e eu preciso fazer aquele mingau. Passar a noi-
te em claro terminando o texto vai ser difícil... enquanto mexo o mingau
com a colher cuidando para não grudar no fundo atendo o telefonema que
combina, item por item, todos os passos da reunião que não posso faltar.
acoplamento
180
desaparecer cabeças em travesseiros, cujo ideal é nunca estarem com pio-
lhos. Os filhos por trás, as enrabadas que nos fazem humanos, o cavalo que
é meu corpo, o feno dos cabelos, os combates. “Esses caras só podem ser
gay”, comento sobre os lutadores musculosos se agarrando no vale-tudo.
Impulso, incitamento, energia vital , domínio, poder, causa de impacto,
eficácia, influência, apogeu, motivo, grande quantidade, densidade, teor,
expressão de machos musculosos que me enfias pelos olhos por seres o
dono do controle que me obriga a determinadas programações. Aceitar
o que a casa impõe é tolerar o que seu homem escolhe. Isso é a vida que
o mundo espera de uma mulher. Ficar em casa, amar o que a engendrou
exilada numa terra para onde a miséria dos povos foi arrastada, nunca
conseguir ir para a Europa. Nocauteada. O pouco que se pode saber da
vida são nos beijos com enroscamento de língua, no repouso conjunto, nas
marcas deixadas nos leitos cujos lençóis todas as manhãs caberiam a uma
Diva, figura que some, estender. O que fica da vida são sensações diversas,
mais fortes entre dois corpos que fazem mais corpos e que dão comida a
seus cavalos e criam casos não muito fáceis de resolver. Uma vez por se-
mana partes antes de amanhecer para discutir os casos desses corpos sem-
pre piores do que o meu. Apelo que fiques. Achatado na cama, meu corpo
abraçado em teu corpo faz na cama uma figura que vale por duas. A carne
testemunha as forças. O artista as detecta. A criação as libera. Pelas frestas
da persiana percebo que amanhece e que apoiando tua perna no vaso sa-
nitário, escovas os dentes. Tento me mover, mas pontadas lancinantes em
três pontos diferentes, no quadril, no teu pé arqueado sobre a porcelana
e no meu olho, pregam meu corpo na extensão da cama. A língua parece
grossa e as bochechas imobilizadas estancam tudo o que poderia a vir ser
uma fala. “Estou podre”, dizes antes de começar a se vestir. A casa se mo-
vimenta, os corpos vão e vem e atiram roupas e deixam cobertas caindo e
mais louça na pia. Ainda com o café na cabeceira, abres um guarda-chuva,
imenso pássaro preto contra a parede. Quando eu era criança diziam que
aquilo dava azar, mas tu apenas o testas para que não aconteça como outro
dia que chegaste molhado no trabalho e te resfriaste muito. O modo como
dormimos, um acoplado ao outro, de lado, talvez seja o que tanto lesiona
meus movimentos. Vestido de sobretudo, a gravata com nó que num aper-
to estrangularia, vens estalando os lábios no rosto naquele beijo rápido
de todas as manhãs. Como um toureiro, um tropeiro que toca a manada
181
porta afora me deixando só tendo uma reunião daqui a duas horas com
todas as camas desfeitas, os panos sujos nos baldes, a tulha de roupa cheia,
a cozinha com a louça do café, do jantar e das beliscadas intermediárias. E
um texto para terminar. Se meu corpo ficar atirado vivendo no pulsar dos
hematomas e na dor das torções o caos se instalará além da minha casa a
partir de hoje mais uma vez sem quem dela se ocupe, nas aulas dos estagi-
ários que hoje atendo, na pesquisa dos orientandos que ontem deixei sem
resposta, nas tratativas da reunião sobre o projeto institucional que logo
começa, na aula que ao invés de ensinar alguma coisa vai acabar sendo
aquela enrolação que ninguém merece.
Sphynx
182
Acima da gola de pelos macios, sua pele era impecável e a coloração, vi-
sivelmente natural, era mais agradável do que toda face primorosamente
maquiada. Nunca imaginei que fosse tão linda. E antes que ela me dissesse
as palavras que selariam meu destino, eu sentindo que viriam no abrir de
sua rosada boca de lábios grossos e tenros entre os quais eu começava a
entrever suas agudas presas, eu sussurrei em seu ouvido de cheiro almis-
carado irresistível: devora-me de uma vez, que se for para morrer que
seja triturada entre os teus dentes. Ela esticou as patas dianteiras e tocou
meu ventre com as almofadas dos dedos macias porque as garras estavam
recolhidas. Olhei bem fundo no abismo verde de sua pupila hiperbólica e
ela soube que não sou afeita a decifrações. Prefiro dar cabo aos fatos, amar
meu trágico destino, cair no abismo, dilacerar meu corpo, sentar no tro-
no de Hades, pegar no bastão do Anticristo. O horror não é ser rasgada
por tuas unhas e encarniçada em sua boca, não é verter sangue para dar
o que lamber a seus miraculosos filhotes, não é virar pasta de carne com
ossos expostos e gorduras reviradas. Eletrocutada numa cadeira elétrica.
Esquecida dentro de uma jaula. Horror é nunca poder cuspir em tua face
nua que vive para esconder as pedras de teu cérebro. Presa e condenada
cuspo meu desprazer em sua cara nada interpretando e nenhum enigma
aceitando. Mas a esfinge, fora do tempo, não tem pressa e só existe para
que a desvendem. Sua fome espera mil anos e suas querelas assistem parti-
das com vitórias e derrotas de todos os homens. Mas esqueceu que eu sou
mulher e talvez mais bicho do que ela. E como odeio as idades do homem e
meu corpo mais que o corpo do tempo tem dores que não cabem nos anos
quero ferir sua charada besta e massacrar de vez suas interrogações inú-
teis. E lhe digo que amarei ser comida por ela, que prefiro morrer assim a
da maneira como morreram as minhas mães, todas elas indecifradas. Que
não quero ir apodrecendo lentamente as vísceras como acabou aquela que
foi meu útero, que não vou perder lentamente a força até me acocorar no
banheiro para ver a vida se esvaindo leve depois de viver quase cem anos
como se deu com aquela que garantiu os proventos e gerou e sustentou
minha mãe, que não quero sufocar nos líquidos fabricados em meu próprio
corpo dentro de meus pulmões como morreu minha avó mais minha mãe
do que a mãe que me gerou em útero, e que também não quero entupir as
veias e definhar lentinho como foi o fim da empregada que me criou e nem
ter o fim da babá que me cuidou até nascerem peitinhos, que morreu em
183
segundos num ataque de coração. Que fosse incomodar filósofos franceses,
psicanalistas, teóricos que gostam de questões. Que esquecesse a órfã de
várias mães que não consegue uma empregada para aliviar um fardo que
nem Sísifo agüentaria. Senti sua raiva num entreabrir de lábios e no olho
ficando mais claro, quase amarelo, apesar do timing da luz do corredor ter
enegrecido tudo, deixando apenas o rastro de luminosidade cinza que vi-
nha da porta, ainda aberta, da minha casa. Decifra, Esfinge, a dor absurda
de meu fado. “Sphinx”, ela me corrige e quando começa a falar criando algo
para que eu adivinhe uma resposta que ela exige como certa, percebo o
acento intemporal num português que ela usa exclusivamente para mim.
“Não há o que decifrar, não há o que interpretar”, eu berro, sem saber se a
esfinge sabia que eu repetia palavras lidas em livros230 que troçavam dela.
E como já sou louca para todos os vizinhos e tenho ganas de apertá-la
no pescoço e sentir o gosto lúbrico de suas entranhas, grito para todos
ouvirem que a amo mesmo não querendo adivinha alguma. Sem Divas.
Sem Dalvas, estrelas, brilho qualquer. E grito: “Monstro, você veio ter
como uma professora e não tem idéia do que uma professora assim como
eu enfrenta. Você não sabe nada sobre dedicar sua vida aos outros e não
tem idéia do quantos teus enigmas são tolos. E tudo o que você pretende
como impasse ao pensamento de nada nos serve. Volte para Édipo e seus
complexos que não resolvem a infiltração que tira o reboco da sala de aula
para qual estou indo”. E chamo, em vão, o elevador desaparecido. A esfinge
soluça, chorando sem lágrimas como um gato trancado em casa em noite
de cio solto. As portas do elevador se abrem, mas não há cabine, apenas o
abismo negro e profundo do fosso. Se a água do balde tivesse ido parar lá
no fundo, mesmo que gotejasse na luminária da cabine, eu não precisaria
limpar e sem limpar eu estaria intacta. Sinto o peso do pé torcido, inchado
dentro da bota; apoio o corpo no guarda-chuva, escuto a síncope de choro,
tão minha quanto dela, que numa reviravolta desesperada abre as garras
em forma de lua crescente, lança sobre meu pescoço suas presas, numa
força que arde e irrita e machuca, mas depois de tudo sorri na alegria de
não mais precisar ir trabalhar. Num gesto sem desespero, é fácil atirar seu
véu para baixo, ficando seu crânio descoberto e nu, fácil de ser perfurado
por meus muitos ferros.
184
a peça
185
Referências
DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: a lógica da sensação. (Trad. Roberto Machado.) Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia.
(Trad. Joana Moraes Varela e Manuel Maria Carvalho.) Lisboa: Assírio e Alvim, 1996.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v.1.
(Trad. Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa.) São Paulo: Ed.34, 1995.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
RUSSELL, Jonh. Francis Bacon. London: Thames e Hudson, 2001.
SYLVESTER, David. Entrevistas com Francis Bacon: a brutalidade dos fatos. (Trad. Ma-
ria Teresa Resende Costa). São Paulo: Cosac Naify, 1995.
186
“Uma” (des)educação musical
acheco
Guedes P
Eduardo
187
Ainda cabe ressaltar que esta busca pelas forças que encontram na
criação o motivo de colocar a educação no foco principal da elaboração des-
te trabalho encontra na Infância um lugar no qual estas forças podem ser
exploradas. Para tanto é de minha opção, ao conjugar música e educação,
tratar da infância para além das concepções que compreendem o potencial
destes seres como algo a ser colocado em reserva, matéria maleável do
homem por vir231. Minha opção é buscar alternativas para que a infância
também possa ser entendida como tempo de devir, onde a possibilidade de
invenção de músicas possa, também, contaminar as possibilidades de cria-
ção de si mesmo das crianças que ocupam os espaços escolares. E que suas
potências estejam voltadas para as suas vidas no presente, abandonando
as concepções que tratam destas meninos e meninas como sujeitos que
devem deixar de ser o que são para se tornarem adultos aptos a exercitar
sua adultez afastadas da sua condição de infância.
Muitos são os compositores e pensadores que criam conceitos sobre
música. Gosto muito de um elaborado por uma das minhas professoras,
Dulci Marta Lemos. Ela nos diz “música é um movimento da vida, não
podendo ser pensada fora dessa instância, uma espécie de território, algo
que invade o lugar do brincar, de fabular, de namorar, de morar”. “A música
não se cala, ela carrega uma resistência que não pode ser interrompida.
Transborda. Ressoa. Assimetria inevitável e necessária que interliga e co-
munga ludicidade para afirmar que o princípio é a existência de sons”232.
Faço de suas palavras o ponto de partida para as minhas problematizações.
Esse território sonoro, que invade, transborda a vida é também um lugar
de invenções, um lugar de fugas. José Miguel Wisnik, ao tratar da história
da música nos eu livro o Som e o Sentido: uma outra história das músi-
cas233, nos propõe que a música nasce como a própria desterritorialização
do ruído. O ruído deixa de ser algo que incomoda para ser territorializado.
Uma tentativa de buscar ordem para o caos. Assim, para esse pensador, a
música é a busca de um novo sentido para as freqüências sonoras. Nos diz
que as organizações das sociedades estão diretamente vinculadas a busca
de sentidos para os ruídos que compunham a vida. Assim, se a música é
um território também é força de desterritorialização, possibilidade de fuga
188
dos sentidos pré-estabelecidos. Essas ideias encontram ressonância na fi-
losofia de Deleuze e Guattari234, quando afirmam que uma das formas de
buscar ordem para o caos é através da arte. Para esses autores, arte é uma
forma de pensar. Toda via, esse ato acontece através da criação de sensa-
ções, por afectos e percptos. Nas palavras dos filósofos: “o objetivo da arte
é arrancar o percepto das percepções do objeto e dos estados de um sujeito
percipiente, arrancar os afectos das afecções, como passagem de um estado
a um outro. Extrair um bloco de sensações, um puro ser de sensações”235. A
sensação ocorre quando passamos de um domínio a outro. (desterritoria-
lização de um domínio e reterritorialização de outro). Quando por exem-
plo, saímos do domínio visual de um quadro que retrata pescadores numa
manhã ensolarada e passamos para o olfativo e experimentamos o calor do
sol e sentimos o frio da água. Neste momento vamos além dos sentimentos
e percepções. Neste momento salta uma sensação, isto é, cria-se um bloco
de afectos e perceptos. Nas minhas palavras, quando o domínio sonoro
proposto pela escuta de uma obra musical é trocado pela sensação de calor
de uma melodia, ou como diz Silvio Ferraz, pelo frio que experimentamos
ao ouvirmos Vivaldi. Penso que aqui podemos traçar umas das linhas que
compõem a (des)educação musical. Criar sensações. Compor sensações. “A
arte é linguagem das sensações, que faz entrar nas palavras, nas cores, nos
sons ou nas pedras”236. Portanto, propor nos espaços educacionais uma
relação artística com a música. Fazer da música uma possibilidade de in-
venção de sensações. Qual o alimento para essa empreitada? Vida! Nada
se joga fora. O que muda é o tipo de relação proposta pela (des)educação
musical.
Se por sua vez não busco uma crítica pautada pela denúncia, busco
por um movimento revolucionário. Uma revolução minoritária. Deleuze e
Guattari237 forjam o conceito de “menor” para tratar de uma literatura não
como a que tem um valor diminuído, mas como uma língua de uma mino-
ria diante de uma língua maior, sendo que uma de suas características é
um forte componente de desterritorialização. Menor não por ser pequena,
menos importante, menor por que cria desvios das grandes ordens. Busco
189
que a (des)educação musical seja tomada por movimentos de minoração,
ou seja, torne visível, potente aquilo que é jogado fora, que não tem valor,
que é desprezado pelas normas vigentes e que burle as regras das grandes
artes, das grandes educações. Penso aqui a educação como esse território,
cheio de regras e sentidos pré-estabelecidos e palavras de ordem. Trato
da música como disciplina, com conteúdos dispostos de forma que seja
possível organizar uma avaliação determinando se alguém apreendeu os
conhecimentos apresentados. Ou melhor, é essa relação com a música que
desejo não tratar. Quero tomar o cotidiano recheado de clichês e proble-
matizá-lo. Clichês, que tem força, são potentes, nos arrastam. Não preci-
samos realizar esforços muito intensos para encontramos nos cotidianos
das práticas educacionais musicais palavras que pelo seu uso tem perdido
toda a sua liquides, e por não possuírem mais a qualidade de serem vazadas
necessitam muito mais que um sopro para que possam ser colocadas fora
de rota.238 Entre estas palavras destaco: a musicalização através da flauta
doce, o coral infantil, a doutrina Swanick (apreciação, composição e perfor-
mance), técnica vocal, estágios de desenvolvimento musical, lúdico, reper-
tório, práticas educativas, percussão corporal, escrita musical, construção
de instrumentos musicais com materiais alternativos, objetivos (geral e
específico), planos de aula, grade curricular, ementas, conteúdos, didática.
Assim, com estas palavras também realizo um desenho no qual indico qual
é o lugar que desejo realizar os movimentos (des)educacionais.
Tomando a possibilidade de inventar uma (des)educação musical,
também, como um movimento de minoração, escolho os meus intensivos
para essa realização. Deleuze e Guattari239 chamam intensivos aqueles tra-
ços que são desconsiderados pela língua maior. Por exemplo, os erros de
conjugação, as faltas de pontuação ou mesmo as suas trocas. Aquilo que
é entendido pela língua maior como o que não contempla as regras e a
excelência das doutrinas de uma língua culta. Elejo dois intensivos para
compor a (des)educação musical, o ritmo e a percussão. Começo pelo se-
gundo. Nas escolhas feitas pelos compositores que representam a música
tradicional européia, ao ritmo é delegada uma posição subalterna no que
se refere à importância nos elementos de uma composição musical. A his-
tória da música nos mostra que a partir e século VI, podemos perceber
238 COSTA, 2008.
239 DELEUZE; GUATTARI, 1977.
190
uma vontade que explora, até o final do século XIX, as possibilidades da
melodia e sua relação com o suporte harmônico. Essa opção trata do ritmo
como um suporte para essa melodia. Até então, esse traço da música não
possuía status ao ponto, por exemplo, de ser entendido com relevante para
ser a principal característica de uma composição. Assim, o ritmo carrega
consigo uma minoridade, uma subalternidade nas composições européias.
Essa relação do ritmo com a melodia invade o nosso cotidiano. Em quase
sua totalidade as músicas que ouvimos no nosso dia a dia tratam o ritmo
como um suporte para a melodia. Diante deste argumento podemos ouvir
vozes discordantes que nos lembram que o Brasil a fora tem grupos como
Olodum, Timbalada que tem a percussão à frente. Peço licença para dis-
cordar, pois nesses grupos a melodia é o principal traço. O fato de existir
muitos percussionistas tocando não produz o movimento de minoração
em relação aos traços que compõe o fazer musical. Ali ainda, apesar da
aparência, o ritmo é um suporte para melodia. Tomando como referência
essa escolha, a feita pela música européia tradicional, a percussão, enquan-
to naipe de instrumentos, e tratada como menos importante, com menor
relevância no contexto das composições, dos grupos musicais e na relação
entre os músicos. Ainda podemos lembrar que percussão é a opção feita
pelos africanos. Não foi a melodia a energia escolhida por esses povos para
ser explorada. Para essa gente, a polirritmia ocupa o espaço de invenção.
Não preciso dissertar sobre a relação do ocidente com as pessoas de pele
escura, muito menos com a sua música. Assim, é a partir desses intensi-
vos, por mim eleitos, que busco criar uma (des)educação musical. No platô
que trata do ritornelo Deleuze e Guattari240 nos dizem que a criança bus-
ca estabilidade, ordem através do canto. Valendo-me das palavras desses
pensadores, proponho essa tentativa através do ritmo. Mas para tanto os
convido para pensarmos sobre o ritmo. Como já tinha afirmado anterior-
mente, as educações e as músicas que integram essas educações estão re-
cheadas de clichês, e que a (des)educação é uma vontade de problematizar
essas pré-determinações, as quais têm força para nos arrastar para lugares
comuns e esvaziados de potência criativa. Como afirmam nossos interces-
sores, não podemos confundir ritmo com ritmado. Não se trata de uma
regularidade de tempos, de durações que encontram lugares determinados
191
e repetidos (repetições do mesmo). Não se trata da marcha dos soldados.
Ritmo, para eles possui outro sentido, ou melhor, criam outro sentido. Nas
suas palavras, “a repetição compasso é uma divisão regular do tempo, um
retorno isócrono de elementos idênticos. Mas sua duração só existe deter-
minada pro um acento tônico, comandada por intensidades. Dizer que os
acentos se reproduzem em intervalos iguais seria um engano quanto a sua
função. Os valores tônicos e intensivos agem, ao contrário, criando desi-
gualdades, incomensurabilidades, em durações ou espaços metricamente
iguais. Eles criam pontos notáveis, instantes privilegiados que marcam
sempre uma polirritmia. Ainda é desigual é o mais positivo. O compasso
é apenas o envoltório de um ritmo, de uma relação de ritmos”241. Penso
que essa possibilidade de compreensão sobre o ritmo nos leva, também ao
conceito de ritornelo, onde a volta, o retorno promove a diferença. A volta
para casa é sempre a volta do diferente. O ritmo, como retorno ao tempo
inicial, ao inicio do compasso é sempre a volta de um som diferente. Uma
repetição da diferença expressa pelas durações e pelas freqüências sonoras
que não se repetem enquanto repetição do mesmo, mas sim como produ-
toras de diferença. Realizar uma (des)educação musical, é tomar essa ener-
gia como alimento para a criação em música, compor com ritmos. Criar
ritmos, inventar ritmologias242. Outro traço que ajuda compor minha ten-
tativa encontra na introdução do livro Diferença e Repetição243 outro inter-
cessor importante. Aqui estou tratando, também, como intercessores não
só autores, compositores, mas suas problematizações. Ao apresentar, logo
no prólogo, suas inquietações sobre Filosofia enquanto possibilidade de
criação e produção de pensamento, Deleuze o diz, “A História da Filosofia
é a reprodução da própria Filosofia. Seria preciso que a resenha em His-
tória da Filosofia atuasse como um verdadeiro duplo e que comportasse
a modificação máxima própria do duplo. (Imagina-se um Hegel filosofica-
mente barbudo, um Marx filosoficamente imberbe, do mesmo modo que uma
Gioconda bigoduda). Tomo emprestado essa proposta. Por alegria, por
admiração que faço. E também por curiosidade. Emprestar para essa (des)
educação essa possibilidade. Como seria imaginar um Mozart musicalmente
tomado pela sede daqueles que vivem a falta de água do sertão brasileiro?
192
Imaginar bigodes em Jobins, Beethovens, Caetanos... Em sonatas, sinfo-
nias, concertos. Imaginar bigodes nas escolas, nos professores, nos planos
de aula, nas avaliações. E tomar desse movimento a força necessária para
criar novas músicas, e quem sabe novos conceitos. (Des)educar a música.
Entre os aspectos que buscam compor uma (des)educação musical
está a elaboração de um Manifesto244, que tem por intenção traçar algumas
dos traços que ajudam a compor esse relação com a música no contexto
educacional.
1 – Ao modo de Roland Barthes:
Preparação da obra musical: o fazer musical se refere à captura das sono-
ridades que compõem o texto da vida; portanto, abandone aquela velha história
que flauta doce é um ótimo instrumento para musicalizar crianças.
2 - Ao modo de Paul Valéry:
É preciso ser leve como pássaro (não como uma pluma); portanto, quando
sua professora de música quiser didatizar os seus encontros voe da sala de aula.
3 – Ao modo de Sandra Corazza:
Música é o desregramento do pensamento, do escapamento da morada, do
embrutecimento, do delírio, da loucura e do combate contra o que está aí.
4 – Ao modo de Hermeto Pascoal:
Música é o aprofundamento das possibilidades melódicas e rítmicas, ten-
do a criatividade como elemento propulsor de combinações entre notas, texturas,
timbres, ritmos, estilos e formas; entre esses, todos os conhecidos e reconhecidos
pela humanidade como patrimônios culturais, além de invenções que estão por
acontecer. No caso de achar tudo isso muito complicado, coloque água dentro de
uma chaleira e sopre pelo bico da mesma.
5 – Ao modo de José Miguel Wisnik:
Música é som percebido como produção de sentidos, é ruído deslocado e
descolado de sua natureza, é ordenação e regramento. É quase como colocar as
crianças em fila para a hora do lanche.
6 – Ao modo de Seu Chico:
Preste atenção: imaginou passar a vida sendo um sol maior?
7 – Ao modo de John Cage:
Não se engane, o silêncio não é a sinfonia da ausência; mas sim concertos
das presenças.
244 Retirado do livro Fantasias de escritura: filosofia, educação e literatura (CORAZZA, 2010).
193
8 - Ao modo de Gilles Deleuze:
Mais vale um bom pequeno ritornelo do que voltas e voltas ao redor do
mundo.
9 – Ao modo de Nietzsche:
Diante de toda a verborragia corrente, de todo o bláblálblá cotidiano é
preferível que se fique onde estamos tocando um piano mudo.
194
ou como compositor. Quando uso essa designação o faço lembrando-me de
John Cage. Como bem sabes, o nosso grupo tem como intenção problema-
tizar as relações existentes nos contextos sociais dos quais participamos.
Muitos chamam isso de inclusão social. Para tanto, temos na música a
nossa forma de problematização. Cage nos alerta que não basta que nossos
discursos evoquem mudanças sociais, movimentos de liberdade, de dimi-
nuição das distâncias hierárquicas entre as pessoas. É preciso que a arte
dos donos desse discurso provoque tal transformação. Assim, aquela arte
que tem no compositor, maestro, professor, as figurais centrais do fazer
musical, ou ainda, na supremacia de melodias sobre o ritmo, na valorização
de uma nota da escala sobre as outras suas principais características não
exprime na sua arte o desejo de tais transformações. Não basta clamar por
transformação social se a arte que fazemos não tem essa vontade no seu
próprio fazer. Nossa pedagogia é aquela que desfaz o compositor, dilui sua
força entre todos aqueles que participam da criação musical, desfazendo
as distâncias hierárquicas. Pedagogia que tira do professor o poder, as es-
colhas, as decisões para estabelecer outros tipos de relação entre os que
aprendem música e os que ensinam música. Uma pedagogia que tira do
ritmo o lugar de subalternidade nas obras de arte. Não é mais a melodia
que decide para onde o ritmo vai se movimentar. O ritmo não é mais a re-
petição do mesmo, não é mais conteúdo fixo dos compassos. Ritmo é com-
posição, criação, força que produz uma passagem entre o musical e o não
musical, força que permite ao não musical ser tocado pelas forças sonoras
da criação em música. Ritmo é o entre meio que liga o que éramos antes de
compor e tocar o que somos depois disso. Pedagogia do ritmo, ou melhor,
das ritmologias que nossos tambores desejam inventar. Pedagogia que não
vincula a transcendência do espírito ao que é fora da vida, mas a transcen-
dência da obra de arte, que faz da nota musical mais do que relações físicas
entre pulsos vibratórios e sim na mais valia dos sentidos a ela atribuídos.
Essa é a nossa pedagogia. Essa opção, é com convicção que lhe digo isso,
não é a de educar, é a de criar músicas com os meninos e meninas do nosso
grupo. A essa pedagogia chamamos de (des)educação Musical. Fico feliz
pelo teu interesse. Aguardo ansioso nosso encontro.
Felicidades, meu amigo.
195
Referências
COSTA, Luciano Bedin da. A vida em escritura: biografemas e o problema de uma bio-
grafia. Proposta de Tese (Doutorado). Porto Alegre: Programa de Pós Graduação em
Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. (Trad. Luiz Orlandi; Roberto Machado.) Rio
de Janeiro: Graal, 2006.
DELEUZE, Gilles; FELIX, Guattari. O que é a filosofia? (Trad. Bento Prado Jr e Al-
berto Alonso Munoz.) São Paulo: Ed. 34, 1992.
_____. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. (Trad. Suely Rolnik.) Rio de
Janeiro: Editora 34, 1997.
_____.Kafka – Por uma literatura menor. (Trad. Júlio Castañon Guimarães.) Rio de
Janeiro: Imago, 1977.
FERRAZ, Silvio. O livro das sonoridades [notas dispersas sobre composição] – um livro de
música para não-músicos para músicos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005.
LINO, Dulcimarta Lemos. Barulhar: uma escuta sensível da música nas culturas da infância.
Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Fed-
eral do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2008.
PACHECO, Eduardo Guedes. Fragmentos de uma (des)educação musical. Proposta de
Tese (Doutorado). Porto Alegre: Programa de Pós Graduação em Educação, Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010.
_____. “Ensaio da (des)educação musical”. In: CORAZZA, Sandra Mara (Org.). Fanta-
sias de Escritura: filosofia, educação e literatura. Porto Alegre: Sulina, 2010.
SCHÉRER, René. Infantis: Charles Fourier e a infância para além das crianças. (Trad.
Guilherme João de Freitas Teixeira.) Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido – uma outra história das músicas. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
196
OpenBarthes
e direção)
eiro
Garcia (rot eira;
Wladimir ira; Eduardo Silv ação)
a Fer re provis
Renat formance e
im
rt h u r G rimm (per
A
197
Acionar uma máquina de escrita: toda a potência, nenhum poder. Amor
ao ritmo, paixão pela palavra: sem isto não se goza a escritura. Como o
grande gozador, o logoteca, o criador de língua. Sem isto não há escritura,
já que isto fala. Interessa, portanto, a repetição do corpo, seus rituais e
emanações.
6. Di-ferir: o mesmo não é senão uma relação lógica entre sua afir-
mação e sua negação a-si, relação de positividade sobre sua posição-a-si
(lógica, física, espaço-temporal etc.) que se repete sobre si mesma, ou de
negatividade na não-repetição dessa posição, o que sempre será logica-
mente uma diferença (de grau, de natureza etc.) de posição-a-si. Fazer um
in-vento: ventar para dentro, fazer do fora a mais íntima interioridade, um
intimus...Eu me desloco, ou, antes, eu me descolo, me transporto, como os
amantes, para um outro lugar, eu des-realizo o real.
198
11. 2=1 ou 1=2? Farsa dialética: o um é feito de dois, o dois é uma
unidade. O um é tomado como punição. O dois é suspense de um (o um é
prenhe de dois). O um faz explodir o desejo de dois.
17. (“A escrita como vida nova: a descoberta de uma nova prática de
escrita. Excetuando o Novo, é apenas isto: que a prática da escrita rompa
com as práticas de escritas antecedentes; que a escrita se destaque da ges-
tão do movimento de gerir a si mesma... este nhenhenhém”. “A imagem de
decisão de Blanchot: a imagem suplementar que corre o risco de romper
199
o equilíbrio. Onde encontrar um lugar para ela?”). A escrita invoca um sa-
ber: ao lançar os dados, produz um acesso controlado, mas o saber advém
de um descontrole, de uma desorganização, de uma catástrofe: pela escrita,
até que enfim, ensinamos o que não sabemos. Ou, quem sabe, falar como
quem escreve (o transe excríptico), realizando um tipo de transmissão que
protagoniza o outro como possibilidade de escuta. Estamos frágeis e per-
didos e felizes nesta respiração profunda.
200
Ceci n’est pas un épilogue
iro
ges Monte
Silas Bor
201
Esses nomes que aparecem neste Caderno têm isso em comum: Es-
crileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida. E saibam: aquela que cha-
mamos de Sandra Corazza não coordena nada disso!
Viram? Isto não é um posfácio.
202
a d o s autores
Ace r c
Betina Schuler – Professora da Universidade de Caxias do Sul e professora colabora-
dora no Programa de Pós-Graduação em Educação da UCS. Professora da Rede Mu-
nicipal de Ensino de Porto Alegre. Atua com os temas: filosofia da educação, currículo
escolar; educação e estudos foucaultianos, teorias pós-críticas em educação. Pesquisa-
dora no Projeto de Pesquisa “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida”
(CAPES-INEP); betinaschuler@hotmail.com.
205
Nilton Mullet Pereira – Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, da área de Ensino de História. Investigador Visitante na Universidade de Alca-
lá. Pesquisa o papel do uso de fontes no ensino da História, através do projeto “Vestí-
gios do Passado: as fontes no ensino de História”; nilton.mulleti@ufrgs.br.
Silas Borges Monteiro – Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Pro-
fessor do Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação e da Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso. Coordenador do Núcleo Mato
Grosso do projeto “Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida”; silas@
terra.com.br.
206