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Os mediadores do patrimônio imaterial

LUCIENI DE MENEZES SIMÃO*

Resumo: Este artigo propõe uma reflexão quanto aos limites dos atuais instrumentos de
salvaguarda e preservação do patrimônio imaterial. Orientados pelas reflexões da
antropologia, levantamos questões relativas aos direitos autorais coletivos e ao retorno
dos benefícios obtidos pelo registro do patrimônio imaterial. A devolução dos resultados
também implica uma questão discursiva. Portanto, vamos comparar duas experiências
institucionais: a primeira, proposta pelo Museu do Índio, sobre o registro da pintura
corporal dos índios W ajäpi do Amapá. A segunda, sobre o projeto Celebrações e Saberes
da Cultura Popular, do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. Seguem-se daí as
indagações sobre as maneiras de se aperfeiçoar os mecanismos de registro e demais políticas
públicas de salvaguarda.
Palavras-chave: patrimônio imaterial, inventário e registro, antropologia.

Introdução ríamos chamar de densidade etnográfica. 1


Ademais, não se pode mais separar os termos
Na 24a Reunião Brasileira de Antropologia, “patrimônio” e “antropologia”, pois o alcance
realizada em junho de 2004, em sua conferência das políticas públicas na área da cultura foi
sobre antropologia e política de cultura, o potencializado a partir dessa equação.
presidente do Iphan, o antropólogo Antônio Hoje, os agentes do patrimônio vêm
Augusto Arantes, provocou o interesse da negociando com os grupos historicamente
platéia ao falar sobre os procedimentos de marginalizados ações de salvaguarda e de
registro dos bens culturais de natureza imaterial. preservação dessas memórias periféricas. São
Além da conferência, fóruns de pesquisa e práticas sociais não valorizadas, não reconhe-
simpósios trataram o tema “patrimônio” nas mais cidas como significativas e que, recentemente,
diversas perspectivas. Isto sinaliza para o fato passaram a ser incorporadas como repertórios
de que a política de “patrimônio” adquire uma representativos de determinados segmentos da
nova dimensão. Calcada na noção antropológica sociedade e que merecem a chancela do Estado
de cultura, desloca-se da aceitação de um brasileiro. Nessa relação, entre o olhar do
produto único, de valor “excepcional”, e passa pesquisador e daquele que está participando
a ser pensada como um processo, um ressigni- diretamente da manifestação e para o qual ela
ficar-se, um fazer-se a cada modalidade de é referência, surge a proposta de registro do
interação, a cada configuração de posições e a Patrimônio Cultural Brasileiro. Os desafios para
cada contexto histórico. Nessa perspectiva, a a posição dos antropólogos nos processos de
categoria patrimônio adquire aquilo que pode-
1. Segundo José Reginaldo Gonçalves, o uso analítico do
* Mestre em História da Cultura pela PUC-Rio. Doutoranda termo patrimônio, como categoria de pensamento, permi-
em Antropologia pelo PPGA/Universidade Federal te que se possa explorá-lo do ponto de vista etnográfico –
Fluminense. E-mail: lusimao@ibest.com.br. 24 a RBA/2004.

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SIMÃO, LUCIENI DE MENEZES. Os mediadores do patrimônio imaterial.

identificação e de registro do patrimônio, bem de intelectuais que disputam a legitimidade de


como as ferramentas utilizadas para proble- seu próprio discurso, formulando conceitos,
matizar o campo, ainda estão sendo configu- criando políticas, aperfeiçoando instrumentos
rados. As reflexões aqui apresentadas foram para proteção e salvaguarda, as narrativas
discutidas no fórum de pesquisa intitulado A construídas por mais de seis décadas de política
Pesquisa Antropológica e o Futuro das preservacionista são constantemente marcadas
Populações Com Quem se Trabalha: Uma por discursos predominantemente ideológicos e
Reflexão Crítica.2 Nesse fórum, tratou-se das políticos, que enfatizam a iminência da “perda”
questões relacionadas ao patrimônio numa e da “descaracterização” para justificar a
perspectiva etnográfica, que situa, na ética do intervenção do Estado.
trabalho de campo, os desafios de produzir Podemos identificar dois grandes momen-
conhecimento sobre o “outro” – e para esse tos nas narrativas do patrimônio. O primeiro, na
outro –, na medida em que as demandas devem gestão de Rodrigo Melo Franco, com ênfase no
ser processadas pelos grupos detentores do debate sobre o nacionalismo e os marcos
saber. A minha comunicação focaliza a fundadores da nação; o segundo, na gestão de
experiência de registro da pintura corporal e arte Aluízio Magalhães, que procurou enfatizar a
gráfica do grupo Wajäpi do Amapá. Procurei noção antropológica de cultura, centrada na
identificar os principais interlocutores, os noção de diversidade cultural. Essa concepção
mediadores e os processos de configuração em procura integrar o patrimônio histórico edificado
rede que possibilitavam ações afirmativas para à pluralidade das manifestações da cultura
o grupo. Meu objetivo é retomar as questões popular.3
apresentadas anteriormente, incorporando ao Se na fase dita “áurea” do Sphan, o discurso
debate novas categorias de análise e novas que predominava era o monumentalista
experiências de registro. (Malhano, 2002), na fase seguinte, a instituição
A política de patrimônio foi oficialmente reviu algumas posições e incorporou a sua
instituída pelo Decreto-lei n. 25, de 30 de política processos sociais até então invisíveis.4
novembro de 1937, que cria o Serviço de Foram os projetos experienciados pelo Centro
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
Nacional de Referências Culturais (CNRC), e
(Sphan), órgão executivo da administração
direcionados ao artesanato da cerâmica e da
pública federal, com características muito
tecelagem; ao artesanato de transformação e
peculiares, pois elabora a política, cria o instru-
reciclagem; ao museu ao ar livre de Orleans
mento do tombamento e executa a fiscalização
(SC); à produção de banana-passa na região
dos bens salvaguardados. A fundação do Sphan,
fluminense; e tantos outros, que procuravam
cuja direção foi entregue ao jornalista e
romper com a idéia de identidade hegemônica
advogado mineiro Rodrigo Melo Franco de
(Fonseca, 1997, p. 165-166). Os resultados desse
Andrade, esteve vinculada à ação militante de
entendimento de contextos específicos foram
alguns intelectuais, sobretudo mineiros e paulis-
consolidados na Constituição de 1988, cujo texto
tas, entre os quais destacava-se Mário de Andra-
caracteriza-se por sua pluralidade e seu multicul-
de, um dos mais atuantes do grupo, e que havia
turalismo.
elaborado, já em 1936, um anteprojeto de lei
voltado para a preservação do patrimônio
3. A esse respeito ver em GONÇALVES, José Reginaldo. A retó-
cultural e histórico nacional. rica da perda. Os discursos do patrimônio cultural no Bra-
Não obstante o patrimônio ser um campo sil. Rio de Janeiro: UFRJ; Iphan, 1996.
de estudo atravessado por tensões entre grupos 4. Alguns autores já trataram desse processo de ressigni-
ficação porque passou o Iphan, a partir de meados da década
de 1970. São análises importantes para situar o debate e as
2. Comunicação apresentada na XXIV Reunião Brasileira distensões do campo. Ver FONSECA, M. C. L. O patrimônio
de Antropologia (ABA), em junho de 2004. Agradeço à em processo: trajetória da política federal de preservação
professora Telma Camargo da Silva e ao professor Hugo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ: Iphan, 1997; G ON-
Benavides, da Fordhan University, e aos colegas participan- ÇALVES, J. R. S. A retórica da perda. Os discursos do patrimônio
tes do grupo de trabalho, pelas questões levantadas e suges- cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ: Iphan,
tões dadas e incorporadas ao tema. 1996.

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Em 4 de agosto de 2000, o então presidente antropológico nos processos de registro do


da República, Fernando Henrique Cardoso, patrimônio imaterial.
assinou o Decreto 3.551, que instituiu o Registro Portanto, e para que se possa refletir sobre
de Bens Culturais de Natureza Imaterial. O os instrumentos de registro elaborados por
mesmo decreto criou o Programa Nacional de agentes e agências, faz-se necessário percorrer
Patrimônio Imaterial. O programa prevê o uma dupla trajetória: primeiro, deve-se proble-
inventário das manifestações de caráter tradi- matizar, à luz da teoria antropológica contem-
cional e popular por todo o território brasileiro. porânea, a relação sujeito/objeto do conheci-
Esse novo instrumento é denominado Inventário mento, que vai refletir no posicionamento do
Nacional de Referências Culturais (INRC), que antropólogo em campo, na sua postura reflexiva
representa extensos formulários aplicados pelos diante dos dados coletados, ao questionar as
inventariantes, quando julgam estar diante de continuidades, os poderes e interesses envol-
uma “referência cultural”. Essa noção é funda- vidos no campo e seus reflexos na escrita
mental no discurso contemporâneo do patrimônio etnográfica. Num segundo momento, devem-se
cultural, e suas origens estão ancoradas na investigar os vínculos institucionais e as
experiência do CNRF. interlocuções entre antropólogos, agentes e
As perguntas que os agentes envolvidos agências, que vão estabelecer os “elos, os
vêm fazendo, quanto à maneira de se registrar recursos e os aliados disponíveis” (Latour, 2000,
um bem de natureza imaterial – seja um ritual, p. 104) para a flexibilização das fronteiras do
uma performance, um saber, uma expressão, patrimônio.
ou um lugar, são: que instrumento é capaz de
salvaguardar bens de natureza não-tangível, de O estado das artes da teoria antropológica
caráter dinâmico, e intimamente associados a
práticas e representações culturais de grupos? A crítica aos princípios colonialistas signi-
O registro de um bem em livros especiais do ficou uma ruptura entre o cânone moderno e o
Iphan é o suficiente para salvaguardá-lo, ou seja, pós-moderno. A figura do antropólogo, muitas
dar a ele condição de florescimento? Ou o vezes associada à administração e aos interesses
registro é apenas uma forma de identificação? colonialistas, foi duramente criticada, a partir do
Quais seriam os mecanismos capazes de fazer processo de descolonização. Acusados de pro-
surgir uma atitude articulada entre “instituições duzir conhecimento a favor do status quo,
públicas e diferentes instâncias das comunidades contribuindo pouco ou quase nada para mudan-
para o processo de reconhecimento, registro, ças significativas das realidades estudadas, a
fomento e preservação dos bens culturais em comunidade antropológica precisou se separar
questão?” (Fonseca, 2004, p. 17). dos sistemas classificatórios evolucionistas e
É de se supor que, pela natureza dos bens reinventar seus instrumentais teórico-metodo-
inventariados pelas agências de preservação do lógicos. Não obstante os avanços na teoria
patrimônio, os procedimentos de registro devem antropológica, fica ainda o dissabor de produzir
seguir conceitos e metodologias das ciências um conhecimento sobre e para o outro. Essa
sociais. Nesse sentido, a descrição etnográfica assimetria de posições, encontrada desde a
é um gênero privilegiado para a apresentação institucionalização da disciplina, e que correu
das interpretações culturais. O tema que me paralelamente aos processos coloniais, lança um
proponho a tratar, apesar de seus muitos vieses, desafio ético para o pesquisador.
apresenta-se como um exercício de reflexão Ao ter claro que o produto da investigação
para o fazer etnográfico. Circunscrevo, portanto, é um texto, e que este é conseqüência de um
minhas preocupações na autoridade do inventa- processo de interação, no qual a síntese, a
riante (antropólogo ou não-antropólogo) e na sua organização e a interpretação são dadas pelo
capacidade auto-reflexiva ao aplicar os extensos agente da investigação, pede-se um rigor formal
formulários do INRC. Tais questionamentos na apresentação dos resultados da pesquisa.
parecem-nos bastante oportunos, sobretudo num Geertz representou um corte epistemológico na
momento em que há uma demanda pelo saber teoria antropológica moderna, pois abandonou

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SIMÃO, LUCIENI DE MENEZES. Os mediadores do patrimônio imaterial.

as explicações calcadas em grandes contextos invisibilizar o narrador ou enunciador, e lançam


de causa e efeito para optar por analisar os dúvidas sobre a representação objetiva. Nota-
fenômenos sociais com base nas representações se uma tensão permanente entre um saber
e nos sistemas de significações (Geertz, 1997, produzido “objetivamente” e uma crítica à visão
p. 13). Críticos mais contemporâneos da teoria naturalizada da representação: o gênero da
reconhecem que a “antropologia interpretativa descrição etnográfica deixa de ser “objetivo”
foi a primeira a ver as culturas como um conjunto para transformar-se em “arte” (Clifford, 1986,
de textos, focando a inventiva poética que foge p. 4). Mais ainda, questiona-se a pretensão
a repertórios engessados, num fluir de represen- utópica de dar conta do universo pesquisado.
tações coletivas” (James, 2002, p. 42). Na concepção desses autores, toda descrição é
A década de 80 do século XX foi marcada parcial, o que supõe que não se pode capturar a
pelo fim das certezas epistemológicas. Em 1986, totalidade a partir de fragmentos experienciados:
James Clifford & George Marcus publicam a realidade surge com o observador; logo, haverá
Writing culture. The poetics and politics of tantas realidades quanto determinados fenô-
ethnography. Esse livro é uma coleção de nove menos forem observados. A intertextualidade é
ensaios, cujo foco recai sobre a construção dos outro ponto levantado e diz respeito aos modos
textos etnográficos no contexto de produção da de produção e recepção dos textos que sempre
antropologia cultural norte-americana. Virtual- remetem a outros textos, construindo escritos
mente, quase todos os ensaios analisam criti- híbridos e imersos na fragmentação.
camente a prática da escrita etnográfica. Essa A despeito de uma pulsão fundada na
visão crítica surge da constatação de que todas certeza do jogo das interpretações, essa nova
as representações são, na verdade, construções corrente posiciona-se a favor de uma perspectiva
sociais altamente ideologizadas. Desse modo, fragmentária, híbrida e construcionista da
os “outros” que aparecem nas etnografias mo- realidade social. A maneira pós-moderna de
dernas, mais do que “outros” em seus próprios olhar o mundo fundamenta-se diferentemente
termos, são “outros” nos termos próprios do do modo em que se baseavam os modernos de
etnógrafo (Clifford & Marcus, 1986). Se Geertz outrora, não obstante o fato de que há quem
discute sobre as estratégias textuais e os jogos afirme que “jamais fomos modernos”.
retóricos da linguagem que buscam persuadir o Como escapar de tantas incertezas e trilhar
leitor de que o antropólogo “esteve ali” e foi um caminho menos melancólico? Ou, seria
capaz de traduzir o universo cultural do “nativo”, melhor dizer, como criar novos paradigmas e
o grupo que se constitui a partir da publicação não se deixar envolver com ilusões constru-
do Writing Culture visava questionar os tivistas ou realistas? Para superar as ambiva-
“efeitos” sobre as representações da realidade. lências e dicotomias e quebrar com o paradigma
Em O antropólogo como autor (2002, p. da fragmentação, Latour dá-nos outras pistas.
11-40), Geertz questiona a transparência do texto Segundo esse autor, “as mesmas questões sobre
científico e lança a idéia do relato etnográfico causas, efeitos, elos e porta-vozes podem ser
como ficção. Porém, a capacidade de dar sen- levantadas em todos os lugares, abrindo assim
tido às representações dos agentes é garantida um campo ilimitado de estudo para a antropo-
pela experiência de campo. Ao recusar a idéia logia” (Latour, 2000, p. 335). Assim, o que
de que o texto etnográfico é capaz de repor a parece estar em jogo não são as formas pré-
realidade vivida no trabalho de campo, os pós- lógicas ou lógicas que promovem a grande
modernos garantem que a tarefa do antropólogo divisão entre “nós” e “eles”, “a principal
é tão somente dar voz ao “nativo” e construir o dificuldade ao se mapear o sistema de associa-
texto dentro de uma perspectiva dialogal ou ções heterogêneas está em não fazer nenhuma
polifônica. suposição adicional sobre sua realidade”
O primeiro fundamento metodológico dos (Latour, 2000, p. 336).
pós-modernos é o da subordinação do texto Quais seriam as implicações de pensar os
etnográfico aos limites estruturais da linguagem. aparatos conceituais em rede ou mundo contínuo,
Ademais, criticam a retórica construída para abandonando as visões sobre a alteridade, a

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construção ou o real? As redes expandem-se e pelo academismo, e que constrói iconografias


contraem-se, no tempo e no espaço, conforme alegóricas que nada correspondem às práticas
a posição e a legitimidade dos atores. sociais daqueles grupos (Bourdieu, 1990, p. 199).
Esta parece-nos uma perspectiva operativa Nessa perspectiva, as redes construídas
bastante importante para pensar sobre a figura pelo patrimônio pressupõem um crescente
do porta-voz que, inserido em sua rede de número de mediadores, associações, instituições,
relações, sustenta uma posição representativa. recursos e aliados disponíveis na tessitura de
Geralmente representa o consenso, fruto de seus fios. Quando se busca reconhecer todos
intensa disputa, no interior das redes (Latour, os atores, impressiona a sutileza com que
2000, p. 121). Contudo, a controvérsia é consti- tramam suas malhas.
tutiva do papel social que ocupa. Segue-se, daí,
tornar-se um bom mediador para amenizar os A flexibilização das fronteiras do
conflitos. O termo mediação associada ao patrimônio
patrimônio adquire, portanto, um significado
específico, adjetivado. Em termos analíticos, a noção de patrimônio
Sua posição vai depender de seu poder de cultural vem sendo debatida com base nos
argumentação. Quanto mais sua retórica perma- dispositivos legais que ordenam os discursos e
nece forte, maior é o seu poder de conven- as ações governamentais. Em geral, adotam-se
cimento para agregar valores, recursos, equipa- as categorias consagradas internacionalmente.
mentos, pessoas e financiamentos (Latour, 2000, As concepções elaboradas pela Unesco sobre
p. 33). Quem não foi pego em sua malha, deve patrimônio cultural e natural foram firmadas na
abrir as caixas-pretas do conhecimento para que Convenção de 1972.
“os leigos possam dar uma olhada” (Latour, Adota-se, nessa convenção, a seguinte
2000, p. 34). definição de patrimônio cultural:
Na perspectiva de Bourdieu, a crítica que
se faz ao porta-voz é de que ele representa Artigo 1
facções, fragmentos de um campo de disputa. Para fins da presente Convenção serão
Deve-se lembrar que, em sua noção de campo, considerados como patrimônio cultural:
Bourdieu entende-o como um “universo – os monumentos: obras arquitetônicas, de
autônomo, um espaço de jogo, onde se joga um escultura ou de pintura monumentais, elemen-
jogo que possui regras próprias; e as pessoas tos ou estruturas de natureza arqueológica,
envolvidas nesse jogo possuem, por esse motivo, inscrições, cavernas e grupos de elementos,
interesses específicos, interesses que são defi- que tenham um valor universal excepcional do
nidos pela lógica do jogo e não pelos mandantes” ponto de vista da história, da arte ou da ciência;
(Bourdieu, 1990, p. 200). – os conjuntos: grupos de construções isoladas
Os efeitos simbólicos da linguagem fazem ou reunidas que, em virtude de sua arquitetura,
do porta-voz um representante autorizado, posto unidade ou integração na paisagem, tenham
que o “ato de simbolização” representa a um valor universal excepcional do ponto de
possibilidade de o significante identificar-se à vista da história, da arte ou da ciência;
coisa significada (Bourdieu, 1990, p. 192). Esse – os lugares notáveis: obras do homem ou obras
jogo de espelhos, que pode representar a incapa- conjugadas do homem e da natureza, bem como
cidade de se inserir em determinadas redes e as zonas, inclusive lugares arqueológicos, que
de ser o seu porta-voz, reflete no “conjunto de tenham valor universal excepcional do ponto
situações em que alguém fala em nome de de vista histórico, estético, etnológico ou
alguma coisa a que esse alguém dá existência antropológico.5
por meio de seu próprio discurso” (Bourdieu, 5. A Conferência Geral da Organização das Nações Unidas
1990, p.197), e escamoteia relações de poder. para a Educação, a Ciência e a Cultura, reunida em Paris,
Como exemplo típico de usurpação do sujeito, adota em 16 de novembro de 1972 a Convenção relativa à
Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (apud.
Bourdieu cita o debate paradigmático da cultura LOPES, Ana e SANTOS, Aline (Orgs.) Cidadania cultural:
popular, que é transpassado pelo formalismo e legislação. São Luís: Estação Produções, 2003, p. 13-14).

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SIMÃO, LUCIENI DE MENEZES. Os mediadores do patrimônio imaterial.

Quanto à citação, podemos fazer algumas bens de natureza arqueológica. Trata-se de


observações pertinentes. Primeiro, a noção de testemunhos de grupos que ocuparam deter-
patrimônio cultural ainda se encontra bastante minado território em determinado período pré-
naturalizada. A noção de sítio arqueológico, por histórico. Portanto, todos os sítios têm a mesma
exemplo, apesar do entendimento de que é um importância, porque se opera numa perspectiva
bem construído pelo homem, ainda se integra à de contexto de ocupação que deixa um registro
paisagem natural. Outro problema é o valor de pictórico ou um artefato humano.
natureza “excepcional”, associado aos bens A legislação de 1961 é totalmente focada
culturais. A categoria de “excepcionalidade” do na pré-história e surge em virtude de uma
bem vem sendo amplamente criticada e há quem demanda muito específica: a destruição em
proponha “a adoção do critério de represen- massa dos sambaquis, que são os sítios arqueo-
tatividade (e não de excepcionalidade, como na lógicos pré-históricos e que correspondem aos
Convenção de 1972) na inscrição de bens na acúmulos artificiais de conchas. É curioso notar
Lista criada pela Convenção” (Londres, 2004, que esse movimento preservacionista dos
p.12). sambaquis não parte do órgão de preservação,
A concepção arqueológica de bem opera mas sim de instituições de ensino e pesquisa do
com duas categorias-chave: a de artefato e de país.6
vestígio. Tais categorias adjetivam o bem mate- Na verdade, o Decreto-Lei no 25, de 1937,
rial, circunscrevendo-o no tempo e caracteri- já previa a arqueologia dentro da perspectiva
zando-o como um documento/monumento. A de preservação. No entanto, o instrumento que
produção de conhecimento arqueológico, o Sphan dispunha para proteção e acautela-
portanto, não está descolada de uma perspectiva mento do bem arqueológico era o tombamento.
histórica mais ampla. Porém, seus sistemas Ademais, a perspectiva de tombamento de sítio
classificatórios tendem a se distanciar de uma impede justamente a produção de conhecimento.
perspectiva antropológica mais crítica. Na Se a perspectiva de tombar pressupõe imobilizar
verdade, e no que tange à produção do e não poder mexer mais, porque subentende
conhecimento antropológico, há toda uma cristalizar num dado momento, como produzir
preocupação, desde finais de século XIX, de dados e conhecimento sobre determinado sítio
separar a noção de etnologia da noção de arqueológico? O instrumento tombamento é
arqueologia. Essa distinção, nascida dentro dos indicado para os bens chamados de “pedra e
museus, fez com que houvesse uma descon- cal”, mas os sítios são espaços que precisam
tinuidade de perspectiva teórico-metodológica ser destruídos para produzir conhecimento sobre
no domínio dessas disciplinas. eles. Surge, então, um impasse.
No Brasil, a primeira notícia de flexibi- A lei de arqueologia foi feita para garantir
lização das fronteiras do patrimônio vem através a produção do conhecimento, tanto que prevê a
da Lei 3.924, de 26 de junho de 1961, que dispõe identificação e o registro dos sítios. Também
sobre os monumentos arqueológicos e pré- prevê, como método de escavação, a manu-
históricos. A legislação de arqueologia de 1961, tenção do “bloco testemunho”, que significa
no que se refere aos desafios e problemas deixar intacta uma parte do sítio para que outras
encontrados pelos agentes e agências que equipes, no futuro, com outras técnicas, outras
atuavam no campo do patrimônio, significou um perspectivas e outras questões, possam produzir
avanço de concepção teórica e de instrumentais novos conhecimentos. Por exemplo, num sam-
técnicos para lidar com esse novo tipo de bem. baqui, pode-se estudar seu padrão de assenta-
Com que interesse e como poderia ser feito o mento, ou seu padrão de enterramento, ou, ainda,
reconhecimento do bem a ser preservado, era querer saber sobre os vestígios da cultura
assunto na pauta de discussão dos agentes e material. Tudo isso vai depender do olhar e das
das agências de preservação. perguntas da equipe de pesquisadores.
A questão da excepcionalidade na arqueo-
6. O Museu Nacional do Rio de Janeiro e o Museu de Etnologia
logia é muito complicada, porque a mesma da USP foram os articuladores, em conjunto com o Sphan,
legislação garante importância e valor iguais aos na elaboração da legislação.

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O conceito de patrimônio cultural e natural, Mário de Andrade, na década de 30 do século


na Convenção de 1972, já previa a discussão XX, e Aloísio Magalhães, em meados da década
sobre bens arqueológicos. Essa preocupação, de 70, com a experiência do Centro Nacional
na verdade, já havia sido contemplada na Carta de Referências Culturais (CNRC).
de Nova Delhi de 1956, quando se debateram Foram as suas novas configurações, nas
sobre questões específicas do patrimônio décadas de 1970 e 1980, que flexibilizaram as
arqueológico. Há uma continuidade histórica e rígidas fronteiras do patrimônio, adquirindo uma
de evolução conceitual que autoriza a inclusão perspectiva inclusiva de grupos, tanto que o
de novos elementos nas políticas de preser- nosso sistema jurídico tende a reconhecer a
vação. Ampliam-se, portanto, os debates, os pluralidade da composição da sociedade
mediadores, as instituições que lidam com essa brasileira. A Constituição de 1988, em seus
categoria. Na seção seguinte, debateremos artigos 215 e 216, reconhece os direitos culturais
sobre as novas construções do patrimônio. como constitutivos da cidadania e os bens de
natureza material e imaterial como patrimônio
A construção de uma noção: o patrimônio cultural brasileiro. Nesse sentido, a assinatura
imaterial do Decreto no 3.551, que “institui o Registro dos
Bens Culturais de natureza imaterial que
Desde então, as convenções, recomen- constituem Patrimônio Cultural brasileiro”,
dações e resoluções internacionais relativas aos regulamenta os artigos “Da Cultura” da
bens culturais foram incorporando novos Constituição.
elementos. Em sua 25a Conferência Geral, Todos os indivíduos/grupos interessados em
realizada em 15 de novembro de 1989, em Paris, registrar determinado saber, ou manifestação,
a Unesco aprovou a Recomendação sobre a ou técnica e habilidade, ou formas de expressão
Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular. devem encaminhar suas propostas de registro,
Finalmente, na sua 32a Conferência Geral, “acompanhadas da documentação técnica,... ao
adotou a Convenção para a Salvaguarda do Presidente do Iphan, que as submeterá ao
Patrimônio Cultural Intangível, contendo a Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural”
seguinte definição de “Patrimônio Imaterial”: (artigo 3o). Para tal, o Iphan vem desenvolvendo
uma metodologia específica, o INRC, que está
[...] práticas, representações, expressões, sendo aplicado e testado.
conhecimentos e habilidades – assim como os Etimologicamente, a palavra inventário
instrumentos, objetos, artefatos e espaços deriva do latim jurídico inventarium e pode
culturais associados a isso – que comunidades, significar levantamento individuado e completo
grupos e, em alguns casos, indivíduos reco- de bens e valores. Por definição, significa rol
nhecem como parte de seu patrimônio cultural. completo, e a sua primeira característica é a
Este patrimônio cultural intangível, transmitido
exaustividade (INRC, Manual de Aplicação, p.
de geração a geração, é constantemente
recriado por comunidades e grupos em resposta
27-28). O inventário permite aos pesquisadores
ao seu meio ambiente, sua interação com a identificar aquilo que é referência para o grupo.
natureza e sua história, e fornece-lhes um senso Sua função é produzir conhecimento e ser um
de identidade e continuidade, assim promo- instrumento de sensibilização, para que possa
vendo respeito pela diversidade cultural e pela indicar os interesses por determinadas referên-
criatividade humana. (2003) cias culturais e sustentar uma política consistente
de salvaguarda.
O Brasil destaca-se no cenário internacional
não só por sua diversidade cultural, mas também Os instrumentos inventário e registro e
por ter desenvolvido os instrumentos legais para seus desafios
mobilizar o Estado a reconhecer e registrar as
manifestações culturais de caráter tradicional e O inventário é peça fundamental para que
popular. Importante observar que tais questões se possa instruir o registro do bem de natureza
já haviam sido formuladas por pensadores como imaterial, caso se siga a metodologia proposta

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SIMÃO, LUCIENI DE MENEZES. Os mediadores do patrimônio imaterial.

pelo Iphan. Não há obrigatoriedade em segui- Tomando-o como termo de comparação


la, tanto que o registro da arte Kusiwa seguiu o com outros inventários e pedidos de registro,
formulário da Unesco. Mas, por enquanto, o procurou-se responder a seguinte questão: por
Kusiwa foi uma exceção e as experiências com que registrar a arte Kusiwa? Todo o nosso
a metodologia do INRC são as mais freqüentes. esforço foi no sentido de compreender o con-
Nessa perspectiva, o que constitui o Regis- texto de produção desse registro. Desse lugar,
tro do Patrimônio Cultural Brasileiro? O que portanto, surgiram novos questionamentos: quais
diferencia inventário de registro? Quando se dá foram as forças políticas que viabilizaram a
essa passagem? Quais são os equilíbrios de candidatura da expressão gráfica Kusiwa a
forças que permitem essa passagem? Como fica Patrimônio Cultural Brasileiro e a Patrimônio
o bem registrado daqui a dez anos? Estas e Oral e Imaterial da Humanidade? Por que utilizar
outras questões estão sendo formuladas e postas uma outra metodologia de registro?
à prova por uma perspectiva inclusiva de grupos. Começando pela última questão, sabe-se
Minha hipótese é que inventário e registro são que as duas candidaturas foram encaminhadas
instrumentos poderosíssimos de pressão política na mesma época. Havia todo um esforço por
e que todo o esforço de compreensão está em parte do governo brasileiro em formalizar o
reconhecer os principais agentes da ação polí- instrumento do registro, previsto na legislação
tica. de 2000, e que ainda não havia saído do papel.
Vamos comparar duas experiências institu- Portanto, o encaminhamento para registro das
cionais: a primeira, proposta pelo Museu do Índio pinturas corporais Wajäpi deve ser compreendido
sobre o registro da pintura corporal Wajäpi, dentro de um contexto mais amplo.
primeiro patrimônio cultural brasileiro cuja Além disso, havia uma conjunção de fatores
metodologia seguiu o dossiê de candidatura à que conspirava a favor da candidatura: um
Segunda Proclamação das Obras-Primas do trabalho de pesquisa de décadas com o respaldo
Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade – de instituição universitária; o envolvimento da
Unesco. A segunda, sobre o projeto Celebração comunidade Wajäpi; o apoio dos governos
e Saberes da Cultura Popular, do Centro estadual e federal em programas para formação
Nacional de Folclore e Cultura Popular, cuja de educadores índios e projetos de auto-
metodologia procurou adequar os projetos de sustentabilidade.
pesquisa desenvolvidos pelo centro às extensas Por fim, o Museu do Índio acabava de
fichas que compõem o inventário e aplicá-lo de inaugurar a exposição sobre os Wajäpi e de
maneira crítica. Seguem-se daí as indagações editar o catálogo Kusiwa: pintura corporal e
sobre as maneiras de aperfeiçoar os meca- arte gráfica Wajäpi, com parte do repertório
nismos de registro e demais políticas de de desenhos.7
salvaguarda do patrimônio tradicional e popular.
O processo de registro da arte Kusiwa foi 7. Agradeço a entrevista concedida pelo diretor do Museu
apreciado e aprovado na 38a reunião do Conselho do Índio, o antropólogo José Carlos Levinho, da qual trans-
crevo abaixo o seguinte trecho: “Sobre a trajetória do Mu-
Consultivo do Patrimônio Cultural, em 11 de seu do Índio [...] nós desenvolvemos um trabalho bastante
dezembro de 2002. Para efeito de análise, fomos consistente na área de identificação do acervo do museu.
buscar o agregado de informações e docu- Então, nós construímos uma massa de dados e desenvolve-
mos uma política que é extremamente complexa, difícil e
mentos sobre o processo no Museu do Índio/ lenta de realizar. O inventário do acervo do Museu do Índio
Funai. As questões que procuramos responder é complexo pelo instrumento [...] Nós temos um acervo
muito bem organizado em todos os níveis, e com uma estru-
referem-se às políticas públicas voltadas para a tura de informação sobre ele muito grande. Então, em ter-
cultura, bem como focar nas trajetórias institu- mos de inventário, o museu deu conta de praticamente todo
cionais e nas parcerias que configuram proces- o acervo. Dentro disso, existe uma infinidade de problemas.
Há toda uma dinâmica aí complexíssima sobre todos os
sos de construção em rede. São as mediações aspectos do que é construir, sistematizar informações sobre
e parcerias entre agentes e agências, nacionais um acervo e disponibilizá-las na Internet. O banco de dados
e internacionais, entre agências e universidades, é uma conseqüência da organização desse acervo [...]. O
museu iniciou uma estreita relação com o Ministério da
entre Estado e sociedade civil que configuram Cultura e passou a desenvolver trabalhos em parceria. Foi
as novas redes do patrimônio. dentro desse contexto que eu fui chamado para participar

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SOCIEDADE E CULTURA, V. 6, N. 1, JAN./JUN. 2003, P. 59-70

Quanto ao dossiê de candidatura, e fazendo parceiras, tanto no que se refere à gestão, quanto
uma análise de seu conteúdo, toda a primeira às ações.
parte pretende ser descritiva da expressão A outra experiência de inventário segue a
cultural. A descrição etnográfica do bem focou metodologia elaborada pelo Iphan. Em 2000, o
no significado simbólico, na descrição técnica Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular
do repertório codificado e nos padrões da arte (CNFCP) elaborou o Projeto Celebrações e
Kusiwa. Seguem-se daí os argumentos para a Saberes da Cultura Popular, com o objetivo de
candidatura, que se pauta no discurso da testar a aplicabilidade do INRC. Dividido em
diversidade e do respeito às diferenças e no da três etapas, o projeto já inventariou alguns tipos
inexorável perda, caso os poderes públicos e a de bens: as violas de cocho de Mato Grosso e
sociedade civil (organizada em associações) não Mato Grosso do Sul; o jongo da Região Sudeste;
se responsabilizem por constituir políticas de a cerâmica tradicional de Candeal, em Minas
salvaguarda, de valorização e de preservação Gerais, e de Rio Real, na Bahia; o complexo do
das culturas humanas (Gallois, 2002). boi em São Luís; o acarajé em Salvador e as
Porém, é a partir da segunda parte que as farinhas no Pará.8
configurações em rede são acionadas. Observa- Em cinqüenta anos de atuação e formu-
se que são propostos mecanismos institucionais lação de políticas públicas no campo das culturas
para a gestão e implementação de uma política populares, o CNFCP constitui-se como herdeiro
de proteção ao patrimônio oral e imaterial dos direto do Instituto Nacional de Folclore. Esse
Wajäpi, assim como os principais elementos de campo foi estruturado na década de 40 do século
um plano de ação a ser desenvolvido por essa XX, com a institucionalização da Campanha de
comunidade, através de associação indígena por Defesa do Folclore Brasileiro. Em 1947, vivia-
ela criada – o Conselho das Aldeias Wajäpi/ se um espírito de pós-guerra, e as organizações
Apina, em colaboração com as instituições internacionais de cultura respondiam às deman-
parceiras: o Museu do Índio/Funai, o Núcleo de das de salvaguarda das culturas, com toda a sua
História Indígena e do Indigenismo/NHII-USP riqueza e diversidade, informando que este era
e o Núcleo de Educação Indígena do Estado do o nosso “bem” maior da humanidade. O Brasil
Amapá/NEI (Gallois, 2002). respondeu a essa demanda com a criação da
Identificados os interlocutores, parte-se Comissão Nacional de Folclore, vinculada ao
para as principais linhas de ação propostas no Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e
dossiê: primeiramente, busca-se implementar Cultura (IBECC).9
uma campanha de difusão e revitalização Essa rede espraiou-se em Comissões
dirigidas aos múltiplos agentes que atuam junto Regionais, cuja capilaridade e atuação política
à comunidade. Um segundo componente é a local ficou enfraquecida e marginalizada nos
formação de educadores e pesquisadores indí- anos 1970 e 1980, quando foram criados o
genas para que possam realizar levantamentos Centro Nacional de Referência Cultural e o
sistemáticos – a elaboração de um inventário Instituto Nacional de Folclore. Essa mudança
participativo – e garantir que o sistema referen- assinalou uma ruptura entre o conhecimento
cial esteja em acordo com as demandas do
grupo. Por fim, propõe-se a implantação de um 8. O Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular elabo-
centro de referência da cultura dos Wajäpi rou um documento, relatando a experiência com o inventá-
rio. Ver LONDRES, Cecília et. al. Celebrações e saberes da
do Amapá, que serviria de guardião dos produtos cultura popular: pesquisa, inventário, crítica, perspectiva.
do inventário e do registro participativo. Todas In: Série Encontros e Estudos n. 5. Rio de Janeiro: Funarte,
Iphan, CNFCP, 2004, 96 p.
essas medidas, no entanto, pressupõem um
9. O Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura está
acompanhamento sistemático das instituições ligado ao Itamaraty. A comissão congregava uma camada
de intelectuais, que se dizia comprometida com os segmen-
do grupo de trabalho de regulamentação do Decreto 3.551. tos sociais identificados como das classes populares. A atu-
Não havia muita discussão sobre índios, inclusive, a questão ação política restringia-se a registrar e, portanto, não dei-
no decreto de línguas indígenas não está presente, o que é xar “morrer” essa cultura “autêntica”. O Instituto Nacio-
um absurdo. Uma política de patrimônio imaterial que não nal de Folclore (INF), na década de 1980, rompe com as
contempla a diversidade lingüística no Brasil [...]”. proposições folcloristas.

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SIMÃO, LUCIENI DE MENEZES. Os mediadores do patrimônio imaterial.

antropológico e o folclorista e apontou para 2001/2002 – Inventários). No entanto, o INRC


deslocamentos na esfera institucional, que não é tão-somente um instrumento de identifi-
envolvia perda de poder e de controle adminis- cação, pois seu uso deverá provocar efeitos
trativo por parte dos folcloristas das instituições políticos.
criadas pelo Movimento Folclorista, vivência de Em palestra realizada no Laboratório de
uma situação periférica nas instituições de ensino Educação Patrimonial (Laboep/UFF), em 30 de
e de pesquisa. Surgiram também profundos abril de 2004, a coordenadora do Projeto
questionamentos de caráter epistemológico Celebrações e Saberes da Cultura Popular do
sobre os métodos e conceitos empregados pelos CNFCP, a antropóloga Letícia Vianna, fez
folcloristas. A teoria antropológica e o método algumas declarações que acreditamos ser
etnográfico constituíram-se, assim, como os mais importante para o debate.
autorizados para o estudo do campo das culturas
populares, ou do folclore e das culturas popu- Mas no caso de um boi, um jongo, uma viola
lares. de cocho, que muda o jeito de fazer cada [...]
Essa trajetória institucional referendou a canto é um canto, o jongo aqui é uma coisa, o
jongo ali é outra coisa. Cada bem é um bem.
participação do Centro Nacional de Folclore e
Então ele [o inventário] tem que ser mexido. Em
Cultura Popular em todas as etapas de formu-
cada inventário desse, a gente operou de uma
lação da política do patrimônio imaterial. Desde maneira. E de uma maneira bastante livre.
1998, em diálogo direto com o Iphan, esteve Tinham lugares que existiam perguntas que não
presente, junto com o Museu do Índio, na formu- cabiam, tinham outras perguntas que tinham
lação do Programa Nacional de Patrimônio que ser feitas e não eram pressupostas aqui.
Imaterial, também previsto no Decreto de 2000. Aí a gente inventou uns quadrinhos e fez um
Até o momento, o centro possui o maior roteirinho, um controle da experiência [...].
número de “bens” de natureza “imaterial”
inventariados e, por ter uma amplitude nacional, Os inventariantes do centro, ao se familia-
buscou elementos “referenciais” tradicional- rizarem com o instrumento “inventário”, procu-
mente associados às camadas das culturas ravam descrever os “bens culturais em seus
populares. O barro, o boi, o feijão, as violas e os contextos correntes e em relação aos sistemas
batuques e as farinhas foram inventariados em simbólico em que estão inseridos, conforme as
contextos e processos socioculturais singulares. referências indicadas pelos informantes”
As experiências de inventário feitas pelo (Vianna, 2004, p. 17). Portanto, operar com as
CNFCP foram significativas para se avançar categorias nativas, como referências culturais
em algumas questões, uma vez testadas pelo locais, significa respeitar os processos internos
instrumental teórico-metodológico da antropo- do grupo, suas tensões, suas noções de tempo e
logia, numa perspectiva inclusiva da diversidade espaço, que em muito se diferenciam das
cultural. No entanto, a tensão que se observa representações de quem registra. Além disso,
está no escopo da análise. Por ser necessária a categorias naturalizadas como sítio e localidade,
criação de um banco de dados, “os inventários presentes no formulário do inventário, são
de identificação têm-se constituído no instru- relativizadas, porque seu significado pode variar
mental técnico, possibilitando a seleção e o em escala e natureza (Carvalho et al., 2004,
registro de novos valores para preservação, p. 29).
assim como a reflexão sobre novas alternativas O processo de inventário e registro deve
para o cumprimento das competências e deveres ser o mais elástico possível para abarcar a
da instituição” (Motta & Silva 1998, p.12). diversidade e a pluralidade culturais. Isso implica
O Inventário Nacional de Referências envolver todos os agentes que atribuem valor a
Culturais relativo às celebrações, formas de determinado bem. Para tal, faz-se necessário
expressão, ofícios e modos de fazer, edificações restituir a rede de relações da qual fazem parte.
e lugares tem como objetivo a identificação de Um dos pontos centrais é a tentativa dos órgãos
bens que sirvam de referência à memória e à de preservação em consolidar uma metodologia
identidade de grupos sociais (Relatório do Iphan, de inventário com base na noção de ‘referência

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cultural’. Apesar de atentos ao perigo das tipifi- of the W ajäpi Indians of Amapá (Brazil). The second,
cações e atomizações, a questão que se impõe about the Project Celebrations and Knowledge of Popular
Cultural of National Center of Folklore and Popular
é de quem atribui valor a quê. A ampliação das Culture. From these points emerge the questions about
fronteiras do patrimônio pressupõe traçar the manner of improving the registration mechanisms and
trajetórias, reconfigurar o campo, estabelecer other public policies of safeguard.
determinada noção de situação. Deve-se Key-words: immaterial heritage, inventory and register,
compreendê-la na relação. Para além das anthropology.
configurações políticas, pressupõe sentidos os
mais variados, que devem ser aclarados e postos
em diálogo. Referências
ABREU, R.; CHAGAS. M. Memória e patrimônio –
Se não houver motivação, se as pessoas não ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Editora
absorverem, não entenderem e transmitirem DP&A, Faperj, 2003.
aquilo, viverem aquilo dia-a-dia como um
BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Editora
patrimônio, aí que a noção de referência é
Brasiliense, 1990.
importantíssima só é possível se manter um
patrimônio imaterial enquanto ele for referência CARVALHO, Luciana, Reflexões sobre a experiência
vivida, cotidianamente. Esse é nosso enten- de aplicação dos instrumentos do Inventário
dimento, e por isso que a gente pensa enquanto Nacional de Referências Culturais. In: FONSECA,
política de Estado não basta o registro, pois M. C. L. et al. Celebrações e saberes da cultura
registro você reificou e está lá. Um dia aquilo popular: pesquisa, inventário, critica, perspectiva.
foi reconhecido como patrimônio. O que é inte- Rio de Janeiro: Funarte, Iphan, CNFCP, 2004.
resse de política publica, no nosso entender, é CLIFFORD, James; MARCUS, George (Orgs.).
a ação afirmativa ali na comunidade.10 Writing culture. The poetics and politics of
ethnography.Berkeley: University of California
Implicada no registro do Patrimônio Ima- Press, 1986.
terial está a garantia dos direitos de autor, que, CLIFFORD, James. A experiência etnográfica.
no caso dos Wajäpi, foi reconhecido como Antropologia e literatura no século XX. Rio de
expressão de um grupo, e caso for utilizado, Janeiro: Editora UFRJ, 2002.
terão de ser revertidos os benefícios daquele CSORDAS, T. J. Body meaning healing. New York:
uso à comunidade. Também devem-se criar Palgrave Macmillan, 2002.
condições para que sua transmissão seja facili- FARIA, Luís de Castro. Antropologia. Espetáculo e
tada por políticas afirmativas. Nesse contexto, excelência. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ Tempo
e como bem sinaliza Carvalho (2004, p. 85-94), Brasileiro, 1993.
é necessário restituir a dignidade e o respeito _____. Nacionalismo, nacionalismos – dualidade e
de transmitir o seu legado às gerações futuras. polimorfia. In: CHUVA, Márcia (Org.). A invenção
do patrimônio. Rio de Janeiro: Iphan, 1985.
FONSECA, M. C. L. O patrimônio em processo:
trajetória da política federal de preservação no Brasil.
Abstract: This communication intends to be reflexive Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Iphan, 1997.
about the boundaries of the recent instruments for the FONSECA, M. C. L. et. al. Celebrações e saberes da
protection and the preservation of the immaterial heritage. cultura popular: pesquisa, inventário, crítica,
From the presentation of the problem – about the perspectiva. Rio de Janeiro: Funarte, Iphan, CNFCP,
anthropological’ method – we are going to compare two 2004. [Série Encontros e Estudos, n. 5].
institutional experiences. The first one, proposed by the
Indian Museum, about the registration of body painting GALLOIS, Dominique Tilkin. Boletim do Museu do
Índio. Documentação n. 9. Rio de Janeiro: Museu
do Índio, outubro de 2002.
10. Palestra ministrada pela antropóloga Letícia Viana, co-
ordenadora do Programa Celebrações e Saberes da Cultura GEERTZ, Clifford. Obras e vidas. O antropólogo
Popular, do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/ como autor. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.
Iphan, na Universidade Federal Fluminense, na Faculdade
de Educação, dentro das atividades programadas pelo Labo-
_____. O saber local: novos ensaios em antropo-
ratório de Educação Patrimonial (Laboep), em 30 de abril logia interpretativa. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes,
de 2004. 1997.

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SIMÃO, LUCIENI DE MENEZES. Os mediadores do patrimônio imaterial.

GOMES, Ângela de Castro e Neder, Gizlene. LONDRES, Cecília. Os inventários nas políticas de
Antropologia no Brasil: trajetória intelectual do prof. patrimônio imaterial. In: LONDRES, Cecília et al.
Luís de Castro Faria (entrevista com o professor Luís Celebrações e saberes da cultura popular:
de Castro Faria). Tempo, Rio de Janeiro, UFF, v. 2, n. pesquisa, inventário, crítica, perspectiva. Rio de
4, dez. de 1997. Janeiro: Funarte; Iphan; CNFCP, 2004, p. 12.
GONÇALVES, J. R. S. A retórica da perda. Os MALHANO, M. E. S. M. Da materialização à
discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de legitimação do passado: a monumentalidade como
Janeiro: Editora UFRJ; Iphan, 1996. metáfora do Estado – 1920-1945. Rio de Janeiro:
INGOLD, T. The perception of the environment: Editora Lucerna; Faperj, 2002.
essays in livelihood, dwelling and skill. London: VIANNA, Letícia. Patrimônio imaterial: legislação e
Routledge, 2000. inventários culturais. In: FONSECA, M. C. L. et al.
LATOUR, Bruno. Ciência em ação. Como seguir Celebrações e saberes da cultura popular:
cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: pesquisa, inventário, crítica, perspectiva. Rio de
Editora Unesp, 2000. Janeiro: Funarte; Iphan; CNFCP, 2004.
LOPES, Ana; SANTOS, Aline (Org.). Cidadania
cultural: legislação. São Luís: Estação Produções, RECEBIDO EM AGOSTO DE 2004
2003, p. 13-14. APROVADO EM NOVEMBRO DE 2004

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