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htm (14/12/2010)

Robert Kurz

ECONOMIA POLÍTICA DO ANTI-SEMITISMO


O pequeno-aburguesamento da Pós-Modernidade e o regresso da utopia do
dinheiro de Silvio Gesell

Desde o princípio, a relação entre trabalho e capital foi um dos objetos centrais de
discussão sobre economia política. O conceito abstrato trabalho, assim como a
mercadoria nua, desvinculada de qualquer relação não-mercantil, é um produto do
processo capitalista de modernização. Mas na superfície dessa relação fetichista
moderna, trabalho e mercadoria aparecem como usurpados pelo dinheiro (capitalista),
ainda que sejam somente um estágio transitório do próprio dinheiro como capital. Desse
ofuscamento superficial resulta o impulso de querer, de alguma maneira, ‘libertar’ o
trabalho e a mercadoria (fenômenos capitalistas) do dinheiro (o meio capitalista que é
um fim em si mesmo).

Quando, nos séculos XVIII e XIX, o dinheiro converteu-se gradualmente no capital


"produtivo’, isto é, na moderna racionalidade empresarial, as utopias do trabalho e da
mercadoria logo se insurgiram contra a conjuntura do dinheiro capitalizado. Foi o caso
dos intérpretes do economista clássico David Ricardo, um utopista do trabalho: as
mercadorias, como produtos do trabalho, deveriam "relacionar-se diretamente entre si"
(sem a mediação do dinheiro) ‘como produtos do trabalho social", na observação crítica
de Marx. Isso, no entanto, seria uma contradictio in adjecto ‘Os produtos devem ser
produzidos como mercadorias, mas não trocados como mercadorias’ (Marx). Sobre os
mesmos fundamentos ideológicos Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) inverteu essa
falsa utopia do trabalho numa igualmente falsa utopia da mercadoria: todas as
mercadorias deveriam, imediatamente, tornar-se "dinheiro", o que foi satirizado por
Marx como sendo a utopia do filisteu (Spiessbürger-Utopie), de que "todos os católicos
deveriam tomar-se papas". Abstrair o dinheiro como "mercadoria universal" é, de fato, o
pressuposto para que as mercadorias com diferenças qualitativas reduzam-se a um
denominador abstrato e, assim, compatibilizem-se entre si.

A proposta absurda de Proudhon de emancipar o trabalho "honesto e a mercadoria


honesta" da dominação do dinheiro, mediante uma troca "direta" de mercadorias à base
de "dinheiro-trabalho" recai efetivamente no paradoxo de querer suprimir as condições
da produção de mercadorias num ambiente de contínua produção mercantil. A tentativa
de retirar do dinheiro aquele atributo de "mercadoria universal" (rainha das
mercadorias) — atributo este que o torna, antes de mais nada, dinheiro é em si uma
contradição. O sujeito-mercadoria esquizofrênico quer refugiar-se no pretenso lado
"concreto" do trabalho e da mercadoria, e o seu alter ego, o sujeito-dinheiro abstrato,

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quer libertar-se de todo ou ao menos tomar as rédeas dessa cisão, sem atacar-lhe os
fundamentos sociais que são sua causa primeira. O sujeito burguês quer suprimir
(aufheben) a sociedade burguesa, mas sem suprimir a si mesmo como sujeito burguês.
A tentativa de Proudhon de dominar o poder abstrato do dinheiro por meio dos "bancos
do povo", com ajuda dos quais as mercadorias deveriam ser trocadas por ‘‘crédit
gratuit’’, acabaria também, inevitavelmente, num desastre prático.

A frágil utopia de que o dinheiro não seja mais dinheiro sempre deduz os males e
catástrofes do modo de produção capitalista não do fim tautológico do trabalho abstrato,
mas somente do fim tautológico do dinheiro, embora um seja inevitavelmente o reverso
do outro. Não é a racionalidade baseada na economia empresarial, com os seus
potenciais destrutivos, que se toma objeto de crítica, mas somente a suposta deficiência
da justiça distributiva e da justiça da troca, nos planos da distribuição e da circulação.
Com a continua produção capitalista e a racionalidade econômico-empresarial, seriam
abolidos os modos capitalistas da distribuição e da circulação. Dessa forma, não é o
capital real ou o capital produtivo da indústria, do agrobusiness e dos serviços que se
manifesta como "capitalismo", mas única e exclusivamente o capital especulativo
(zinstragendes Kapital) da superestrutura financeira, concentrado no sistema bancário.

Para Proudhon, a famosa "mais-valia" não é procedente da racionalidade econômico-


empresarial da produção, mas da posição privilegiada do dinheiro (e portanto do seu
possuidor) na troca. No inicio do século XX, tal pensamento foi retomado e
desenvolvido pelo comerciante e teórico do dinheiro teuto-argentino Silvio Gesell
(1862-1930), em sua chamada Teoria da Economia Livre (Freiwirtschaftstheorie).
Quase as mesmas concepções são encontradas no mistagogo e antropósofo Rudolf
Steiner (1861-1925), em sua propaganda de uma pretensa ordem econômica "natural".
Menos conhecido, embora nos anos 20 não menos influente, foi o economista alemão
Gottfried Feder, que, de modo análogo, também defendeu essa concepção em seus
aspectos essenciais. Para Proudhon, bem como posteriormente para seus seguidores, nas
palavras de um geselliano atual, a pedra de toque é a desvantagem de quem oferece
trabalho e mercadorias (e demanda dinheiro) em relação aos privilegiados, que
oferecem dinheiro (e demandam trabalho e mercadorias)" (Dieter Suhr, Geld ohne
Mehrwert, Frankfurt/M..1983. p. 14).

Em que consiste, então, o "privilégio" do dinheiro, com que antipatizam os inimigos do


capital especulativo? Proudhon já o enxergava no simples poder do detentor de
dinheiro, que podia procurar o momento mais favorável para a troca, enquanto os
oferentes de mercadorias e trabalho dependiam da transação imediata, a fim de, por sua
vez, possuir os "equivalentes universais" (dinheiro) e obter poder de compra. Por meio
dessa vantagem, o proprietário de dinheiro poderia "fechar uma barreira" no processo de
mercado e, para abri-la, ele seria ressarcido com algo especial - exatamente os juros,
que os agentes econômicos "produtivos", os reais mediadores do mercado, teriam de
pagar. Para Proudhon é inconcebível que esse poder peculiar do dinheiro, a sua posição-
chave no mercado, não seja uma "falha" ou uma "usurpação" (e muito menos que não

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provenha da subjetividade do proprietário do dinheiro), mas, antes, decorra da
necessidade que um sistema produtor de mercadorias tem de ser representado e mediado
por um equivalente geral.

Os descendentes programáticos de Proudhon não ousaram mais patinar no gelo fino dos
conceitos da economia política, no sentido estrito do termo. Eles preferiram, fiéis a sua
mentalidade de construtores da pátria e engenheiros sociais, fundamentar apenas
"tecnicamente", de maneira pseudofísica, o poder peculiar do dinheiro em oposição ao
trabalho e à mercadoria. Na argumentação de Silvio Gesell, o dinheiro, ao contrário das
mercadorias não se deteriora nem consome tanto como os gastos com a subsistência da
força de trabalho; ele não acarreta, portanto, nenhum "custo de manutenção" ou de
estocagem. (Silvio Gesell, Die natürliche Wirtschaftsordnung,, 6ª. ed., Berlim. 1924. p.
317 ss.). O neogeselliano Helmut Creutz, indicado como candidato a um "Prêmio Nobel
alternativo", também vê nisto o problema fundamental: "Imaginemos que as portas de
um cofre com dez mil marcos fique fechado por 14 dias, depois que as portas de um
mercado, com mercadorias no valor de dez mil marcos, e as portas de uma sala, onde
cinco pessoas cuja renda é normalmente de dez mil marcos em 14 dias, também fiquem
fechadas. Após 14 dias, abrimos as portas: é bem provável que as cinco pessoas que
ocupavam a sala estejam mortas, que as mercadorias do mercado estejam em grande
parte estragadas, mas as cédulas do cofre estarão tão novas quanto antes (Helmut
Creutz, Das Geld-Syndrom, Frankfurt/M. e Berlim, 1994, p. 32).

Essa qualidade do dinheiro de não produzir custos de manutenção é aproveitada pelos


proprietários de dinheiro, que exigem dos agentes produtivos do mercado um "tributo",
na forma de juros, para receberem uma injustificada "renda sem trabalho" e erguerem
obstáculos no caminho da produção e da troca. Enquanto o "capitalismo do proprietário
do dinheiro" reinar sob a forma de capital especulativo, o fluxo de trabalho e de
dinheiro, diante da crescente paralisação do trânsito de mercadorias, só poderia ser
mobilizado pelo recurso "artificial" e nocivo da inflação, às expensas daqueles que têm
renda produtiva e de sua poupança, enquanto a quebra do capital financeiro se
compensaria sem danos por meio do aumento de seu "tributo-guia".

Rudolf Steiner e, sobretudo, Silvio Gesell - sendo este último quem mais amplamente
desenvolveu todo esse princípio -, propõem como remédio uma típica panacéia, que
Marx, ao tratar de Proudhon e dos ricardianos de esquerda, utopistas do trabalho, já
designara, de maneira bem direta, como "trabalho sujo do dinheiro". Steiner e Gesell, no
entanto, não queriam mais queimar os dedos nos "bancos de troca" de Proudhon, mas
iludir a lógica do dinheiro por meio de um truque administrativo, à maneira de Daniel
Düsentrieb. O dinheiro até agora utilizado deveria ser substituído por um ‘dinheiro
alternativo" (Steiner) ou "notas bancárias enferrujáveis" (Gesell). O que seria e como se
pode distinguir esse dinheiro da inflação habitual?

Gesell propõe que todas as cédulas em circulação (e os saldos bancários líquidos)


sofram uma desvalorização automática de cerca de cinco por cento ao ano ("redução

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monetária"). Elas só guardariam seu valor nominal quando nelas se apusesse,
periodicamente, um selo de valor respectivo ou fossem carimbadas contra o pagamento
de uma taxa. Por meio dessas medidas, o dinheiro deveria, no futuro, sujeitar-se a
determinados "custos de manutenção", fazendo com que o proprietário do dinheiro
perdesse suas vantagens diante dos proprietários de mercadorias e da força de trabalho.
Em contrapartida, todo dinheiro depositado a longo prazo como poupança no sistema
bancário, e que servisse de base para créditos lucrativos, deveria ser automaticamente
poupado dessa "ferrugem" ou dessa "redução" do meio circulante. Assim sendo, Gesell
acredita derrubar três coelhos de uma só cajadada. Primeiro, a economia seria
fomentada, porque não haveria mais estímulo para reter dinheiro ou para que este
rendesse juros: cada um se empenharia em gastar na economia real, para evitar as taxas
dos "custos de manutenção" administrativos. Segundo, embora os juros desapareçam
sem deixar substituto, haveria um estimulo real à poupança, uma vez que o dinheiro
depositado seria excluído da "redução" administrativa das notas em circulação e dos
saldos líquidos. E, terceiro, finalmente, a economia poderia preservar sua completa
estabilidade, pois a medida de preço para a força de trabalho e para o crédito tornar-se-
ia invariável. O mal do capital especulativo desapareceria, o dinheiro perderia a sua
vantagem em relação às outras mercadorias e poderia, apesar disso, preencher suas
funções necessárias. Estariam, assim, lançados os fundamentos para a prosperidade e a
estabilidade.

[...]

A "economia política do anti-semitismo" refere-se à existência de uma relação estrutural


e histórica entre essa crítica redutora do capital especulativo e o anti-semitismo. Não se
trata aqui, absolutamente, de tachar Silvio Gesell de partidário de Hitler e nacional-
socialista, ou cada geselliano e neogeselliano de anti-semita enrustido. O problema está
em outro plano. Ideologicamente, trata-se das duas faces da mesma moeda, na qual o
anti-semitismo explícito compõe, por assim dizer, "o lado da cara". Mas isto não
significa que cada economista cuja crítica limita-se à troca e à distribuição, ou que cada
crítico dos juros, deve ser sempre um aberto anti-semita, mas precisamente o contrário,
que cada anti-semita sempre utiliza a redutora crítica ideológica do capital especulativo
como modelo "econômico" de legitimação. O ódio ao capital especulativo, que passa a
vicejar, de modo abstrato e irrefletido, na crise monetária junto à massa dos perdedores,
constitui não somente o solo fértil, mas, de forma imediata a "base econômica" do anti-
semitismo e dos pogroms anti-semitas.

Esse contexto, que conduz a reações de reflexo involuntário nos sujeitos-mercadoria


acuados pelo medo possui raízes históricas profundas e remonta à Alta Idade Média. A
ruptura irrefletida entre o aspecto supostamente concreto e sombriamente abstrato da
produção mercantil, a afirmação do "trabalho" e da mercadoria, de um lado, e a crítica
do dinheiro ou a condenação dos juros, de outro, produziram bem cedo uma cisão da
consciência do sujeito-mercadoria (isto é, na medida em que as pessoas em geral eram
embrionariamente sujeitosmercadoria). A economia política do anti-semitismo é um

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produto lógico e histórico desse ofuscamento. Nesse ambiente surgiu o vinculo entre
"judeu" e "dinheiro", por intermédio de uma perfídia específica da Idade Média cristã,
que solucionou a contradição entre a condenação dos juros e a necessidade de crédito
das relações monetárias atribuindo aos judeus a função de usurários.

Que justamente os judeus tenham sido onerados com essa função deve-se sobretudo a
motivos externos - históricos e religiosos. Mas, estruturalmente, trata-se da lógica
interna da função de bode expiatório, que deriva da cisão do sujeito-mercadoria. Dessa
esquizofrenia estrutural resulta a pressão para projetar para fora, em um "ser estranho",
aspectos "ruins", sinistros, abstratos da relação mercadoria-dinheiro. A auto-alienação
interna do sujeito-mercadoria aparece, ela própria, como imagem do inimigo externo,
podendo assim, mesmo em sua forma embrionária, manifestar-se no seio da alma-
mercadoria cindida. Tal mecanismo clássico de projeção impregnou-se profundamente,
no curso de mais de mil anos, na sociedade ocidental e em sua consciência.

Enquanto predominaram no Ocidente as formas fetichistas pré-modernas, o aspecto


religioso ocupou o primeiro plano na definição dos judeus como os "estranhos" ou os
"outros". Em uma das primeiras perseguições aos judeus no Ocidente, aos "marramos",
na Espanha e em Portugal do século XV, ainda se falava, sob o signo da Inquisição, dos
"assassinos de Jesus" e dos "heréticos", que, apesar do batismo compulsório, insistiam
em sua própria religião. Quanto mais se expandiam as relações dinheiro-mercadoria e o
modo de produção solidificava a nova forma-fetiche da modernidade, originária do
Ocidente, mais "o judeu" foi definido pura e simplesmente como o "outro", não tanto no
sentido religioso, mas como o estranho "ser do dinheiro e dos juros". E, de fato, desde
que a cristandade européia contornara a proibição dos juros, empurrando o problema
para os usurários judaicos, sempre foi uma minoria de judeus que desempenhou funções
financeiras. Em uma projeção social coletiva, entretanto, não interessam as relações
sociais efetivas nem as qualidades reais do objeto dessa projeção. O caráter
fantasmagórico de todo o processo permite que o mecanismo de projeção se fortaleça
mesmo quando os fatos externos, tomados como motivo ou pretexto, não encontram
apoio na realidade.

Neste ponto, como foi frequentemente observado, é até mesmo possível haver um "anti-
semitismo sem judeus" (Cf. Jürgen Elsässer, Antisemitismus-- das alte Gesicht des
neuen Deutschland, Berlim, 1992, p. 55 ss.). Como se trata de um antagonismo nascido
no próprio interior do sujeito-mercadoria - antagonismo este que se projeta para fora -,
sua verdadeira essência permanece intocada. "Judeu" torna-se uma cifra fantástica e
homicida para o ódio que sentem por si mesmas as pessoas "que ganham dinheiro", as
quais querem se "libertar" de sua própria esquizofrenia estrutural, sem porém tocar ou
suprimir o modo de produção capitalista ou a si próprios como sujeitos-mercadoria. Na
medida que o termo "judeu" é usado conto sinônimo do lado abstrato, negativo, do
sistema produtor de mercadorias e essa projeção da vulgaridade econômica é
identificada com o capital especulativo, não é necessário, em princípio, que existam
judeus verdadeiros para desencadear o reflexo anti-semita. O fantasma dessa psicose

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coletiva é onipresente, e no pogrom ele se "materializa" nas comunidades judaicas como
vítimas e bodes expiatórios; entretanto, grupos de esquerda, políticos liberais, escritores
críticos da sociedade, artistas modernos, estrangeiros, outras minorias religiosas etc.
podem também, caso necessário, ser definidos como "judeus" pela consciência psicótica
daqueles que insuflam pogroms.

Na economia política do anti-semitismo, vale dizer na afinidade entre a crítica redutora


do capital especulativo e a tendência anti-semita, não se trata, de maneira alguma, de
uma ligação meramente acidental. Essa correlação tanto funcional quanto
fantasmagórica está profundamente arraigada na consciência histórica e assenta-se nas
contradições polares e reais das categorias da lógica mercantil. Os economistas vulgares
(como o geselliano, por exemplo) repartem a lógica interna do modo de produção
capitalista no lado "bom" do "trabalho" ou da mercadoria e no lado "ruim" do dinheiro e
do capital especulativo. A produção total de mercadorias não deve ser suprimida, mas
libertada de seu lado negativo. O anti-semita declarado traduz tal concepção
"economicamente pura" em uma imagem fantasmagórica do inimigo: o lado bom,
"concreto", "próprio" da modernidade deve ser libertado de seu lado ruim, abstrato,
"estranho" (ou "estrangeiro"); e o estranho, o outro, é o "judeu".

Existe, portanto, um necessário nexo estrutural e histórico entre o anti-semitismo e a


crítica rasteira, redutora, do capital especulativo. Por isso, em todos os conceitos
econômicos correspondentes, estamos as voltas com uma economia política do anti-
semitismo, independentemente de como esse nexo se expressa subjetivamente. É claro,
porém, que o nexo subjetivo-ideológico não poderia faltar nesse fundamento. Os
economistas vulgares que fazem a crítica dos juros não são, nesse caso, vítimas
inocentes, meramente instrumentalizadas pelo anti-semitismo. O citado Gottfried Feder
não foi somente aclamado como companheiro de luta por Hitler em Mein Kampf e
festejado como o seu mentor econômico; ele teve também a "honra" de poder redigir o
programa econômico do partido nacional-socialista. Mas no próprio Rudolf Steiner, que
estava longe de ser um expoente ideológico do nacional-socialismo, encontram-se
diversas cartas com brutais invectivas anti-semitas.

Silvio Gesell, por sua vez, aparentemente não proclamou um aberto anti-semitismo,
embora também afirmasse que "os judeus ocupavam-se com gosto das transações
financeiras" (Silvio Gesell, apud Klaus Schmitt, "Geldanarchie und
Anarchofeminismus", in: Silvio Gesell. "Marx" der Anarchist?, Berlim, 1989, p. 197).
Todavia, quando ele se volta contra a "difamação dos judeus" como uma "injustiça
colossal", ele o faz a partir do argumento puramente econômico de que a identidade
entre o "cobrador de juros" e o "judeu" é simplesmente acidental. Esse recurso ao plano
da lógica econômica (redutora) desconsidera tanto a correlação histórica como o
problema estrutural de uma projeção do antagonismo interno do sujeito-mercadoria, que
se realiza sobre um "estrangeiro" externo, justamente porque o próprio Gesell afirma em
seus princípios o sujeito-mercadoria. Assim, ele é e continua sendo, por força da
matéria, um "economista político do anti-semitismo", ainda quando confessa, de modo

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subjetivo, que os judeus têm o direito de desfrutar dos "privilégios de proprietários do
dinheiro", enquanto este não for neutralizado pela panacéia geselliana.

Em conformidade a isso, surgiu entre os seguidores de Gesell toda uma série de


tendências populares e anti-semitas que decorrem necessariamente da lógica econômica
e da falsa utopia do dinheiro. Soma-se a isto, tanto em Gesell como em Steiner e outros
mais, a aberta ideologia sociodarwinista, biologista e favorável à "higiene racial". Gesell
arremata a propaganda sociodarwinista da economia competitiva com um programa
biológico da "raça humana’’ como luta competitiva. A maneira típica das seitas na
virada do século, Gesell critica com rispidez o "matrimônio com alcoólatras", que
levaria à "degeneração racial", e recomenda às mulheres só se relacionarem com
"parceiros sadios e fortes": ele fala até de uma "degenerescência racial milenar" (apud
Günther Bartsch, "Silvio Gesell, die Physiokraten und die Anarchisten". in: Klaus
Schmitt, op. cit., p. 15). Pouco admira que as mulheres apareçam, nessa absurda
concepção biologista, sobretudo como um tipo de "animal maternal", que deve decidir-
se "livremente" pelo melhor "macho reprodutor".

Os neogesellianos atuais passam por cima dessa ideologia absurda da "higiene racial" de
seu mestre de maneira envergonhada, como se se tratasse apenas de uma questão
externa da concepção econômica, ou então vão a ponto de querer recuperar para a
ideologia da raça biológica seus aspectos positivos nos dias de hoje. Günther Bartsch e
Klaus Schmitt, por exemplo, atrevem-se a vender as considerações de seu mestre a
respeito da raça humana como o todo especialíssimo "feminismo fisiocrata". É certo que
aspectos biologistas também se encontram, ocasionalmente, no feminismo atual, mas aí
eles não se prendem à idéia de "seleção" biológica como no neogeselliano Bartsch, que
gostaria também de exumar esse tema de horror: "Uma eugenia fisiocrata, fundada na
livre escolha amorosa e na livre competição, deixará [...] de lado as causas da
degeneração (!). [...] Gesell queria abrir caminho para a seleção natural(!). Não no
plano físico, mas como um estímulo a conquistas (!) cada vez melhores e maiores, que
elevem os capazes (!) e favoreçam sua reprodução mais vigorosa (!) [...]" (Bartsch, op.
cit., p. 16).

O fato de um recurso tão indiscutível a um biologismo sociodarwinista poder ser


publicado, no inicio dos anos 90, na afamada editora anarquista Karin Kramer (Berlim),
indica, pelo menos, que as correntes anarquistas também são suscetíveis a esse tipo de
absurdo homicida e que, por isso, depois do colapso do socialismo de Estado e da
obsolescência das ideologias do movimento operário marxista, o anarquismo tornou-se
uma pretensa alternativa tão pouco plausível quanto os outros princípios de crítica
social do passado. Fica cada vez mais claro que todas as correntes intelectuais e
políticas da história da ascensão capitalista, inclusive as dos opositores radicais, estão
contaminadas pelas idéias biologistas, de "higiene racial", da "seleção" racial humana,
que encontram no nacional-socialismo, sem dúvida, sua expressão mais brutal e
rematada, porém não a única.

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Isto também vale, infelizmente, para o marxismo e os partidos operários. O fato de,
neles, as referências serem menos numerosas do que em Silvio Gesell ou nos
antropósofos (como nos escritos de Karl Kautsky, na consciência de massas do antigo
movimento operário ou no contexto ideológico do stalinismo) não é tomado por
neogesellianos do calibre de Schmitt e Bartsch como uma oportunidade de fazer uma
crítica de época tão radical quanto abrangente, que não pouparia nem sequer seus
"próprios" precursores teóricos, mas exatamente como justificativa não só para
desculpar tais idéias bárbaras da "teoria social" geselliana, mas também para retomá-las
descaradamente e propagá-las no final do século XX.

Mais importante que a correlação das idéias históricas é a pergunta sobre qual valor
ainda podem ter as idéias biologistas sobre raça humana e "seleção" na economia
política do anti-semitismo. A imaginação desvairada das pessoas "que ganham
dinheiro" no mercado reproduz essas ideologias meio esquecidas da primeira metade do
século na nova situação de crise desse final de século e tenta reformulá-las no mais alto
nível de abstração possível. Num mundo mais "individualizado" do que nunca na
história da modernização, no qual vivem milhões de singles e onde cada uma dessas
mônadas monetárias está exposta à concorrência total e globalizada, não surge apenas
uma mistura explosiva entre o antigo egoísmo exacerbado e anárquico do individualista
Max Stirner (1806-1856), a quem os gesellianos fazem referência, e todas as ideologias
modernas de concorrência e da exclusão: nada mais lógico, também, que esse
pensamento procure armar-se novamente com argumentos pseudobiologistas.

O indivíduo abstrato, agora totalmente amadurecido, desvinculado de todas as relações


não-mercantis, sente-se como o umbigo do mundo e como um ser nuclear auto-referente
e auto-suficiente, ao passo que "os outros" aparecem como verdadeiros "circunstantes",
perturbadores e inimigos. Não é de admirar que a pretensão exagerada desse ‘‘eu’’
abstrato se influi sobremaneira na crise de sua própria estrutura. Como os gatos que, ao
se sentirem ameaçados, eriçam os pêlos e ficam com o rabo espesso, para parecerem
maiores e intimidadores, e como as pessoas com pretensão autoritária que "batem no
peito" e assumem ares de importância, assim também o sujeito universalmente
ameaçado procura uma legitimação mais inatacável possível para afirmar com fúria a
sua vontade própria. E o que seria mais inatacável, afinal, do que a prova da
"superioridade natural", biológica ou genética? A alucinação de um "super-homem" tem
suas raízes nesse sentimento básico da modernidade produtora de mercadoria tanto
quanto a propaganda de que estes ou aqueles conceitos, idéias, programas etc.
corresponderiam a uma pretensa ordem "natural". Se fantasias desse tipo ainda se
restringiam, no passado, à esfera artística ou filosófica que hipoteticamente se
antecipava, hoje elas se sedimentaram na consciência de massas. E se antes, a pretensão
exagerada do sujeito-mercadoria na concorrência relacionava-se diretamente com
noções coletivas como classe, nação ou "raça", hoje o mesmo naturalismo social é
filtrado pela estrutura do indivíduo isolado, já totalmente desenvolvida, o qual se agarra
a uma absurda legitimação de si mesmo como o último vislumbre de esperança.
Qualquer pobre-diabo do sistema produtor de mercadorias se envaidece imaginando ser

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um feixe de músculos do tipo Rambo ou um "super-homem", um profissional cool ou
um mamífero geneticamente super-dotado em comparação com o "sub-homem
degenerado". O deplorável pega-pra-capar na disputa pela comida escassa na
manjedoura da "ocupação" e da renda monetária é estilizada em batalha divina dos
nobres contra os não-nobres.

Com base nisso, porém, a síndrome ideológica cinde-se mais uma vez de forma
polarizada. Com efeito, a imagem fantasiosa dos "improdutivos" e dos biologicamente
"impuros" é também duplicada como reflexo da cisão própria, sendo experimentada
como oposição polar: ora como "sub-homem", ora como "super-homem negativo" (cf.
sobre isso, baseado na teoria de Moishe Postone, Joachim Bruhn, "Unmensch und
Übermensch, über Rassismus und Antisemitismus", in: Kritik und Krise no. 4/5.
Freiburg, 1991). Tanto os pensionistas do Estado social, fracos concorrentes, como os
poderes do capital especulativo, fortes concorrentes, são economicamente improdutivos
no mercado. Ao traduzir a concorrência econômica e social na língua da concorrência
pseudobiológica, essa diferença aparece novamente como aquela entre o geneticamente
"inferior", de um lado, e o geneticamente "superior", de outro. A essa concepção
corresponde também a diferença entre racismo e anti-semitismo: o racismo qualifica
como "inferiores" os negros, os europeus do leste ou os asiáticos, mas também os
árabes, os europeus mediterrâneos (romanos, "Welsche"1) e até mesmo grupos
populacionais dentro do próprio país. O anti-semitismo, ao contrário, imagina "os
judeus" como o fantasma do poderoso capital financeiro, como uma "conspiração
mundial" de dissimuladas super-inteligências estrangeiras etc. O sujeito-mercadoria,
que compreende a si mesmo como "produtivo", natural da pátria, idêntico a si próprio,
"racialmente puro" e "hereditariamente sadio", perfila-se imaginariamente entre essas
duas formas fantasmagóricas do "outro", a inferior e a superior, ambas igualmente
simples projeções externas de suas próprias contradições internas.

A cisão esquizofrênica e a polaridade entre falsa identidade e projeção, em vários planos


sobrepostos, formam a base da estrutura ideológica que pode ser descrita conto
economia política do anti-semitismo. O nacional-socialismo pôs em prática essa
concepção paradigmaticamente. Não desempenhou nenhum papel prático, quanto a isso,
o fato de o anti-semita Gottfried Feder inspirar-se em Silvio Gesell para criar uma
"moeda Feder", semelhante ao princípio da "redução monetária", como se queixam os
neogesellianos (cf. Gerhard Senft, Weder Kapita!ismus noch Kommunismus, Berlim,
1990, p. 196). A "moeda Feder", por assim dizer, não viu a luz do dia em proporções
sociais relevantes, a exemplo da utopia monetária de Gesell. Efetivamente, a política
monetária do nacional-socialismo incorreu no extremo oposto, ao criar, com ajuda da
chamada "cédula Mefo", um gigantesco programa de crédito protokeynesiano, que
possivelmente conduziria ao colapso monetário e à hiperinflação, mesmo com uma
vitória militar do regime nazista. Em essência, a economia do nacional-socialismo (à
semelhança do contemporâneo planejamento estatal da União Soviética e do New Deal
norte-americano, de Roosevelt) era comandada pelo Estado, enquanto a utopia
monetária pseudogeselliana de Feder servia, quando muito, para guarnecer uma

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ideologia anti-semita. A marca geral da época era a ilusão da "primazia da política", que
também foi apropriada pelo regime nacional-socialista (cf. Christina Kruse, Die
Vokswirtschaftslehre im Nationalsozialismus, Freihurg, 1988).

Porém a utopia monetária da economia vulgar só podia ser, mesmo assim, um pretexto e
um disfarce para o desvario da projeção, que integra a lógica da mercadoria. O nacional-
socialismo fez o possível para preservar essa projeção, atuando de ambos os lados de
seu mecanismo. Tanto os grupos definidos, de maneira racial e sociodarwinista, como
"inferiores" (eslavos, homossexuais, ciganos, deficientes físicos etc.) assim como os
judeus, definidos de maneira anti-semita como negativamente ‘‘superiores", foram
levados para os campos de extermínio: "O sujeito de valor pleno tem de enfrentar-se
com os inferiores e os superiores" (Joahim Bruhn, op. cii., p. 19). O filisteu de uniforme
preto, que se imaginava como sujeito-trabalho ou como sujeito-mercadoria
geneticamente "saudável", queria eliminar os dois lados do "estrangeiro" em seu próprio
ser, enviando "o outro" para a câmara de gás.

O caráter singular do nacional-socialismo consiste justamente no fato de ele, em uma


situação histórica especifica, ter realizado, por assar dizer, todas as conseqüências dessa
economia política do anti-semitismo. Do mesmo modo que se apegaram à lenda positiva
de Wörgl, os neogesellianos quiseram, assim também, apegar-se à lenda negativa de que
o regime nazista havia tão-somente ‘‘roubado" a panacéia de sua utopia monetária , sem
jamais procurar realizá-la. Essa utopia do dinheiro "honesto", contudo, é impossível de
ser realizada em qualquer versão, e, diante das necessidades atuais de cientificização,
ela é menos provável cio que nunca. O que se pode realizar, porém, e isso mostraram os
nazistas, é a lógica da projeção oculta na utopia monetária burguesa, que acaba em
extermínio. O sujeito-trabalho ou o sujeito-mercadoria não escapam ilesos, mas, em
princípio, em seu desvario estrutural, são capazes do Holocausto.

Nem o nacional-socialismo nem o Holocausto irão se repetir do mesmo modo. Mas a


estrutura básica do sujeito-mercadoria existe como antes e hoje se mostra com clareza
tanto maior em sua forma desenvolvida. Na grande crise do atual sistema produtor de
mercadorias - que, em comparação a crise mundial de 1929-53, manifesta-se num grau,
por assim dizer, mais elevado, como crise financeira e de crédito -, é inevitavelmente
evocado o antigo mecanisrno de projeção, ainda que numa forma certamente
transformada.

Mas é justamente para isso que se prestaria, de uma forma todo especial, o
neogesellianismo, servindo a uma nova formação ideológica correspondente. Em muitos
aspectos, a concepção geselliana mostra-se talhada para focalizar de novo, no fim do
século XX, a antiga ideologia homicida e exclusivista. De fato, essa concepção contém
todos os elementos essenciais da economia política do anti-semitismo, mas em outras
dosagens e em outras constelações que não as da ideologia nacional-socialista. É
exatamente isso, porém, que faz com que o neogesellianismo possa ser, potencialmente,

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um promotor de um novo surto esquizofrênico no sujeito-mercadoria, já incapaz de
suportar a sua normalidade estúpida.

Justamente porque Silvio Gesell e sua tendência liberal em economia não foram, no
passado, absorvidos na organização do nacional-socialismo, os seus seguidores
ideológicos hoje podem voltar a falar, sem preocupações, de idéias análogas. E
justamente pelo fato de limitarem essa ideologia à sua manifestação econômica, isto é, à
crítica econômica vulgar do capital especulativo, eles são capazes de agir como abre-
alas para a economia política do anti-semitismo, sob uma forma histórica renovada. O
anti-semitismo aberto não se fará esperar, e, no frigir dos ovos, é indiferente se o
pogrom anti-semita é perpetrado na crise monetária pelos próprios neogesellianos ou
por bandos vinculados à respectiva ideologia econômica ,sem mais negar, com pudor, a
conseqüência anti-semita.

Ao gesellianismo caberia também uma espécie de função moderrmizadora no revival do


darwinismo social e das tendências sociobiológicas. Nesse ponto, a peculiaridade de
Silvio Geseil é que ele não adora a definição dos pretensos inferiores, no sentido racista
usual, mas sim no modo ocidental e universalista, isto é, de modo plenamente adequado
à forma-mercadoria de todo globalizada e desenvolvida. O desvario biologista também
pode esconder-se na roupagem de uma propaganda da igualdade. Nesse caso, não se
trata mais de um racismo particular contra deteminadas concepções de "povo" e grupos
humanos, mas de uma idéia igualmente paranóica de uma "raça superior" dos "capazes";
de modo inverso, os "inferiores" devem ser desqualificados e, quando possível,
eliminados, independentemente da cor de sua pele ou de pertencerem a certo "povo" etc.
Essa perversa "higiene racial" geselliana é mais coerente e mais universalista do que
aquela dos nazistas, adequando-se a um darwinismo social modemizado no plano das
relações universais do mercado mundial, darwinismo este que rende homenagem mais
ao desvario produtivo e funcionalista do que a preconceitos específicos a uma raça ou a
um povo. A ideologia do "survival of the fittest" mostra-se aqui em sua forma
universalista, depurada de toda escória do antigo particularismo racial.

Se o neogeselianismo é capaz, portanto, de modernizar os dois lados da mecânica da


projeção no contexto de uma economia política do anti-semitismo, o mesmo vale para a
determinação do sujeito possivelmente encarregado de pôr em prática tal concepção
absurda. Se a ideologia nazista estava comprometida com os meta-sujeitos coletivos do
Estado e da nação e podia, por conseguinte, formular a condenação do capital
especulativo apenas sob o signo do estatismo e com a afirmação de um "primado da
política’, bem ao gosto da época , o anti-estatismo individualista de Silvio Gesell, num
tempo de neoliberalismo radical, está muito melhor talhado para representar o sujeito-
mercadoria pós-moderno em seu desvario competitivo.

[...]

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Após o período das grandes catástrofes da primeira metade do século, cujos presságios
intelectuais foram as idéias paranóicas de salvação, os modos de vida extravagantes e as
seitas da crise, o curto verão siberiano do "milagre econômico" fordista aparentemente
extinguira, nas poucas décadas posteriores às guerras, o fantasma do anti-semitismo ou
mesmo a lembrança de sua gênese ideológica. Entretanto, a estrutura ideológica da
economia política desse anti-semitismo oculta-se na própria forma-mercadoria social e,
como resultado, no "inconsciente coletivo", no qual ela pode surgir em configurações
modificadas.

A breve época histórica da prosperidade produziu, de uma forma por assim dizer
vergonhosamente mecânica, até mesmo na crítica social marxista, a ilusão monstruosa
de que o sistema produtor de mercadorias passara pelo pior, restando agora apenas
eliminar gradual mente, pelo trabalho de organização e desenvolvimento, os vestígios
dos tempos de catástrofe. Absurdamente, essa cômoda noção democrática persiste até
hoje (inclusive reforçada pelo colapso do socialismo de Estado), apesar de a
prosperidade econômica do mercado terse há muito desvanecido. Cegas aos surtos reais
de crise, a absurda palavra de ordem das pessoas, no âmbito da esquadrilha reformista
habermasiana, é, com maior razão, "civilizar o capitalismo até desfigurá-lo" (Helmut
Dubiel). O que aconteceu, na verdade, foi o inverso: a própria crítica radical da
sociedade há muito foi desfigurada e emporcalhou-se democraticamente, em vez de
renovar-se à força de "superar" a si mesma (durch "Aufhebung").

É preciso levar em conta que, desde 1968, a oposição radical da Nova Esquerda (Neue
linke), bem como o ulterior movimento alternativo dos verdes experimentaram sua
socialização política ainda nos desdobramentos da época de prosperidade e sempre
desfrutaram, tacitamente, da posição privilegiada do mercado ocidental, especialmente
na Alemanha Ocidental, Seus conceitos, suas idéias, soluções e exigências sempre
tiveram, de certa maneira, uma "economia de mercado bem-sucedida" como seu surdo
pano de fundo, mesmo quando se ocupavam com teorias da crise. Desde o início,
entretanto, não era de bom-tom, em todas as facções, falar em "teoria do colapso", que
passou a ser vista como um tabu, embora esse objeto de horror existisse quase só em
forma quimérica e nunca tivesse sido sistematicamente elaborado, Nesse recalque da
possibilidade de o sistema produtor de mercadorias submeter-se a uma catastrófica e
absoluta finitude histórica talvez estivesse decidido, de antemão, que a Nova Esquerda
não atravessaria o rubicão da crítica radical, da mesma forma que ocorrera com a velha
esquerda.

A crise, convertida em processo socioeconômico e ecológico, desafiava, não obstante,


as reações. Em comparação à virada do século passado, trata-se, ao término do século
XX, de uma ruptura estrutural de ordem superior: há indícios de que não estamos mais
às voltas com a transição para um novo surto de desenvolvimento do sistema produtor
de mercadorias (como freqüentemente ainda se aceita com esperança), porém com um
processo efetivo de colapso da coerência mercantil entre "trabalho" e dinheiro, no qual o
sistema amadurecido destrói irreversivelmente seus próprios fundamentos. Os "Realos"

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do Partido Verde, bem como o restante do antigo radicalismo de esquerda, buscam
refúgio nos mesmos critérios equivocados da razão e da revolução burguesas (uns, com
base na atual democracia de mercado; outros, por meio de uma infusão diluída da
variante das lutas de classes do antigo marxismo, dentro das mesmas formas mercantis
do pensamento iluminista); por outro lado, a oposição a esse tipo de recalque da crise
recai num crescente irracionalismo, que não é a superação da racionalidade burguesa,
mas somente seu reverso, como ela se mostrou desde o princípio, revelando sempre (a
começar com Johann Georg Hamann, no século XVIII) as falhas da razão mercantil e
conduzindo, ao mesmo tempo, nas crises de ruptura, a modelos bárbaros de pensamento
e ação. Essa alternativa errada e funesta ressurge hoje na nova grande crise do sistema
produtor de mercadorias.

Os anos 80 não foram apenas a era do capitalismo-cassino e do chamado desvario


consumista dos hedonistas vulgares alimentados pelo comércio, mas também um novo
apogeu do sectarismo político, socioeconômico, cultural e religioso. Os seus promotores
foram a Nova Esquerda e o próprio movimento alternativo dos verdes que se seguiu, e
isso tanto em termos de idéias quanto de pessoas. Os próprios princípios emancipatórios
do movimento psicanalítico, da "politização da esfera privada" ou mesmo da crítica das
relações entre os sexos resvalaram num boom de irracionalismo nos anos 70, já que
nunca se deixavam intermediar por uma crítica da forma-fetiche moderna. Assim,
alguns intrépidos revolucionários mundiais dos anos 70 já caminhavam no início dos
anos 80 em vestimentas laranjas dos discípulos de Krishna. E, no princípio dos anos 80,
já floresciam nos verdes alternativos a mística da natureza e o romantismo do chá de
camomila. As extravagâncias das formas de vida reformistas da virada do século
experimentaram apenas um revival fracamente modernizado.

Desse meio desenvolveu-se, com crescente nitidez das restrições sociais, uma
"atmosfera" que vinha ao encontro das ideologias irracionais de crise, nas quais a crise
real da socialização sob a forma-mercadoria era reelaborada numa forma
fantasmagoricamente distorcida. Em vez de uma análise, de uma crítica ou de uma
superação do sistema produtor de mercadorias, surgiu a tentativa de afirmar-se por
meios irracionais e fantásticos no interior da própria concorrência. As técnicas
mediadoras, as formas de comportamento, as "regras de vida" etc., manifestam-se,
então, como atributos individuais; como processo ideológico coletivo, ao contrário,
surgem a discriminação que brota de órgãos sectários ou até mesmo o extermínio "dos
outros’. O ponto de partida para isso é, uma vez mais, a crescente "naturalização" do
social, da forma como ela se evidenciou, nesse meio tempo, como ampla corrente
ideológica. A propaganda de uma "ordem natural" já se ocultava nos primeiros esboços
de um conceito abstrato da natureza, que nos anos 80 começou a herdar o conceito
sociológico das relações sociais. Era sintomático, por exemplo, que a editora Fischer
desse inicio à série "Teoria e história do movimento trabalhista" e, paralelamente à
"alternativa Fischer’, fosse lançada uma grande série "Antroposofia", mesclada a títulos
significativos como "Guia do dinheiro" e "Guia da especulação" — uma clara reação à
mudança das necessidades do público. O fim do marxismo do antigo movimento

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operário e os seus revivals na Nova Esquerda certamente estavam na ordem do dia,
porém não produziram uma superação crítica; em vez disso, somente exumou-se um
outro cadáver ideológico da história de ascensão do sistema produtor de mercadorias, o
do irracionalismo e do conceito abstrato de natureza, enquanto se recorria, ao mesmo
tempo, às "benesses do mercado" oferecidas. O sociologismo redutor e subjetivista do
batido paradigma da "luta de classes", coerente à forma-rnercadoria, não foi substituído
por um nível mais elevado de reflexão, mas por um retrocesso aquém do sociologismo.

A substituição do conceito crítico de sociedade pelo conceito de natureza não está muito
longe da naturalização do social, da "ordem econômica natural". Ao revival da
antroposofia seguiu-se o revival de Silvio Gesell e a ramificação desse patrimônio
ideológico nas correntes autônomas e de esquerda. E nesse estranho "retomo à esfera
económica", cada princípio radical e emancipatório é extirpado; torna-se clara a careta
sociodarwinista e anti-semita de uma crítica social perdida, distorcida. A própria Nova
Esquerda, que se mostrou incapaz de transformar o marxismo, converteu-se em duas
décadas num catalisador para a nova economia política do anti-semitismo, que começa a
tornar-se socialmente autônoma como as velhas "inovações" da esquerda e de seus
diversos "meios".

A situação, de fato, é constrangedora: até a "base econômica" direta, no sentido mais


habitual, desta mutação ideológica construiu-se sobre um processo de "pequeno-
aburguesamento" biográfico dos ex-esquerdistas. Não se trata, em absoluto, de
denunciar os destinos de vida e as existências como tais; a questão está em saber se e
como, à maneira de um manual grotesco, o "ser" econômico transforma-se numa
"consciência" ideológica. O núcleo da questão é formado, em primeiro plano, por
projetos que restaram da antiga logística do movimento: livrarias, editoras, pequenas
tipografias, jornais locais (além de outros meios de comunicação), bares de reunião etc.,
que, por falta de clientela e de perspectiva de uma crítica social, foram obrigados a
tornar-se pequenos empreendimentos, na mais estrita normalidade, a fim de sobreviver.
Some-se a isso os projetos de "vida alternativa" posteriores: além de bares, também
padarias, marcenarias, oficinas mecânicas, empreendimentos agrícolas, auditórios,
empresas de terapia etc.

A maioria atravessou o Jordão, mas os sobreviventes financeiros tiveram de se


"profissionalizar". Muitos dependem de créditos bancários; na Alemanha e Suíça,
fundaram-se até bancos alternativos. Na onda da "profissionalização" desses épiciers,
adotou-se (o que é inteiramente compreensível) a ideologia da "auto-exploração’. Sob
as dadas condições, no entanto, pôde-se desenvolver facilmente a típica ideologia do
filisteu sobre o "trabalho honesto" e o "salário justo por uma jornada de trabalho justa",
entremesclada, paradoxalmente, com "atitudes", teorias e mídia pós-modernas. Mas em
que medida essa síndrome é compatível com o gesellianismo e com a economia política
do anti-semitismo? E a que recorrem as pessoas na mais grave crise pessoal, quando cai
por terra a superestrutura financeira, igualmente pessoal, dos épiciers alternativos?

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Hoje, nesses círculos, ainda se vota no Partido Socialista Alemão (PDS), o que
tampouco deixa de ser ambíguo, nessa mistura de ambiente de cervejaria, ideologia do
trabalho, geografia pátria e ódio ao "vilão" Capital, cujo aspecto não dispensa o nariz
adunco. Quanto ainda falta para sucumbir à paranóia? E o micélio da economia política
do anti-semitismo tem um chão fértil para crescer ainda mais. Uma parte considerável
do cenário cultural alternativo depende das injeções de créditos estatais, a exemplo dos
"espaços alternativos" comunais, e esses fundos são cortados até mesmo pelos
parlamentares da facção "Realos" do Partido Verde. A reação a isso não é
necessariamente emancipatória, e pode descambar no gesellianismo e em suas
conseqüências sociodarwinistas.

Essa possibilidade também não está descartada para os ex-esquerdistas e "jobbers" e


"freeriders" autônomos do ambiente pós-moderno (cena musical, jornalismo,
propaganda etc.). Nestes círculos tampouco se chegou a uma crítica dialética nem a
princípios práticos de uma emancipação da forma-mercadoria social; em vez disso, a
ordem pseudocrítica foi "nadar a favor da corrente" do capitalismo-cassino. O restante
de um pensamento marxista diluído e redutor, enriquecido com os teoremas pós-
modernos (Foucault etc.) e equipado mais com as teorias da cultura e da mídia do que
com as críticas da economia, pôde contrair alianças profanas, de forma mais ou menos
secreta, com a consciência comercial dos anos 80. Mas e na hora em que a alternância
entre o emprego e o turismo nas férias, ou a alegre vida pós-moderna, for subitamente
estrangulada pela conta bancária no vermelho — para onde, então, seguirá a viagem?

Sem dúvida, esses reduzidos meios sociais têm pouca importância, ainda que as suas
mutações ideológicas surtam efeito social. A reprodução no âmbito dos movimentos de
esquerda, cuja dinâmica é classicamente pequeno-burguesa e restrita a profissionais
liberais (mas que não exclui, também, os "biscates" ou "bicos"), compõe na área social,
porém, o espectro infinitamente maior da nova classe média dos setores de serviços do
Estado (professores, assistentes sociais etc.), que sofrem uma brutal redução com a crise
do crédito estatal, a exemplo dos projetos alternativos; como resultado, aumenta
também a possibilidade de ingresso no âmbito da economia política do anti-semitismo.

Naturalmente, a essa mentalidade pequeno-burguesa de aspectos sociais, psíquicos e


ideológicos, que promete ser aterradora, não se opõe mais o velho "ponto de vista da
classe proletária". Salta à vista, com toda a imanência, que os próprios setores clássicos
da "ideologia operária e camponesa" (agricultura, mineração, siderurgia, indústria
naval), longe de serem a base da reprodução do sistema produtor de mercadorias
dessubstancializado, há muito dependem das injeções de crédito estatal (ou seja, do
"capital fictício") e, por conseguinte, em uma grande crise monetária, poderiam
igualmente sensibilizar-se pela economia política do anti-semitismo, talvez até numa
versão que unisse keynesianismo e nacionalismo estatal.

Sobre todas as estruturas sociais que merecem análise, no entanto, paira a


individualização abstrata como uma superestmtura do processo de pequeno-

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aburguesamento de toda a sociedade - processo este pós-moderno, não mais preso à
pequena propriedade, mas à estrutura nuclear do sujeito-mercadoria -, que caminha para
o seu ponto de culminância histórico e para a crise da forma-mercadoria totalizada.
Tanto o interesse particular pela catástrofe de segmentos sociais isolados quanto o
processo como um todo de atomização social podem servir de gancho para uma variante
modernizada da economia política do anti-semitismo. E é bom contar com isso. Já se
tornou patente que não existe forma de ocupação absurda o bastante a que os acuados
sujeitos-mercadoria não se possam entregar desenfreadamente.

No entanto, não é forçoso que a ideologia irracional da crise se imponha socialmente.


Como não há uma determinação mecânica da consciência a partir do ser social, o
instinto primitivo do interesse obstinado, imanente à forma-mercadoria, pode como
mais razão (e também em massa) romper as fronteiras históricas do sistema produtor de
mercadorias. Porém o pressuposto para tanto é, em primeiro lugar, que os opinion
leaders no que restou do movimento de esquerda e alternativo, nos empreendimentos e
meios alternativos, nos cenários hedonistas pós-modernos, nos projetos culturais e nas
instituições sociais etc. enfrentem resolutamente quaisquer manifestações da economia
política do anti-semitismo, que eles tomem consciência do problema e refutem toda
tentativa de fraternização. Em segundo lugar, e diante da ameaça, não se pode mais
reprimir que um novo discurso de crítica radical do sistema de produção de mercadorias
volte à ordem do dia, o qual transformará o marxismo obsoleto do movimento operário
e o superará criticamente, em vez de apenas prolongá-lo ou abandoná-lo às traças.

Original Politische Ökonomie des Antisemitismus em www.exit-online.org. Publicado


na Revista Krisis nº 16/17, 1995. Publicado parcialmente como posfácio de Clemesha,
Arlene. Marxismo e Judaísmo – História de uma relação difícil Boitempo & Xamã,
1998, pp. 177-197. Traduzido para o português por Ana Cavalcanti, texto final de José
Marcos Macedo.

http://www.exit-online.org/

http://obeco.planetaclix.pt/

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