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_____ a
antk .
comunista
c iv il iz a ç ã o BRASILEIRA
Em maior ou menor escala, desde que
ocorreu a Revolução Bolchevista, em 1917,
uma campanha sistemática contra o comu
nismo vem sendo praticada em tôdas as
potências capitalistas, bem como nos países
delas dependentes. Houve uma pausa du
rante a guerra contra o nazi-fascismo,
quando o chamado “mundo ocidental e
cristão” não teve constrangimento em aju
dar o arquiinimigo soviético e ser ajudado ,
por êle em alguns momentos decisivos. As
batalhas de Stalingrado e Leningrado, que
brando a coluna dorsal da Wehrrmcht,
foram passos decisivos para a vitória final,
comemorada universalmente com protestos
de fraternidade e respeito mútuo, malgra
do as diferenças ideológicas entre um
mundo e o outro.
No entanto, se não há mal que sem
pre dure, não há bem que não se acabe.
E aquêle clima de détente, de diálogo fru
tífero, logo cedeu lugar à chamada Guerra
Fria , às manobras de bastidores destina
das a impedir que a pureza ocidental e
cristã fôsse contaminada pela praga ver
melha, fôsse qual fôsse a máscara com que
ela se disfarçasse.
Nação líder do bloco ocidental, cen
tro de vasto império que subjuga direta ou
indiretamente satrapias nos cinco continen
tes, os Estados Unidos elevaram o impulso
anticomunista a proporções jamais vistas,
uma vez que sua prática, além das natu
rais origens ideológicas, serve também a
interesses táticos dc sua política interna e
a interesses estratégicos dc sua política
global.
Michael Parenti, cidadão norte-ame
ricano, doutor pela Yale University, pro
fessor universitário e jornalista especiali-
zado em análises e pesquisas de ciência
política, decidiu estudar a fundo a cruzada
anticomunista, êsse fenômeno que, a seu
ver, não é gratuito nem acidental. O re
sultado de suas investigações está contido
neste livro surpreendente, que ora temos
o prazer de editar, para informação obje
tiva e isenta do público leitor brasileiro.
A essa cruzacla com três cruzes ( a cruz
política, a cruz militar e a cruz econômico-
financeira — talvez a mais importante de
tôdas) podem ser atribuídas sem qualquer
receio de engano — e Michael Parenti o
demonstra com dados concretos — a inten
sificação do imperialismo norte-americano,
a edificação do complexo industrial-militar
e o envolvimento do povo americano em
duas guerras circunscritas e não-declara-
das (Coréia e Vietnã) que lhe custaram
mais em bens materiais do que tôda a
Segunda Guerra Mundial, sem contar os
bens morais do enorme desprestígio inter
nacional que hoje cobre o nome dos Esta
dos Unidos e do fato de que a própria
nação norte-americana se encontra dividi
da entre dois pólos, o dos falcões e o das
pombas, isto é, entre os que conduzem o
país para a “guerra santa” contra o comu
nismo e aqueles que, não sendo comunis
tas, não querem ver os Estados Unidos
transformados numa potência policial, que
utilize a repressão ideológica como forma
de interferir na vida de outros povos, em
defesa de interêsses nem sempre confes-
sáveis.
A C r u z a d a A n t ic o m u n is t a é uma de
núncia apaixonada, mas isenta. Seu autor
não é comunista, nem simpatizante da ideo
logia marxista. É um democrata, e por isso
resiste. É um democrata, e por isso lança
sua advertência — antes que seja tarde
demais.
E d it o r a C iv il iz a ç ã o B r a s il e ir a
A CRUZADA
ANTICOMUNISTA
Coleção
PERSPECTIVAS DO HOMEM
Volume 68
Série Política
D ir e ç ã o de M oacyr F e l ix
Michael Parenti
A CRUZADA
ANTICOMUNISTA
Tradução de
M arcelo G u im a r ã e s
civilização
brasileira
Título do original em inglês:
T h e A n t i - o o m m u n is t I m p u l s e
© by Michael Parenti, 1969, publicado nos
Estados Unidos pela Random House, Inc.
Desenho de capa:
D ounê
Diagramação:
L é a C a u l l ir a u x
1970
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Agradecimentos o
Introdução — X III
1 — Os comunistas em conflito — 1
2 — 0 demônio comunista — 20
3 — América, a virtuosa — 46
4 — 0 Anticomunismo como um modo de vida
americano — 66
5 — Ortodoxia liberal e conservadora — 83
6 — A virtude enfrenta o mundo — 95
7 - A santa cruzada: alguns mitos de origem — 116
8 — A doutrina sagrada e a profecia que se realiza
por si mesma — 138
9 — 0 demônio amarelo I — 162
10 — 0 demônio amarelo II — 177
11 — Vietnã: Quem? Por quê? — 193
12 — Revolução e contra-revolução — 218
13 — Lucro, prestígio e autopreservação — 245
14 — Imperialismo moral — 257
15 — 0 êxito trágico — 297
Apêndice 1 — 0 estado marcial — 313
Apêndice 2 — Defesa civil: mate um vizinho— 319
Apêndice 3 — 0 diabo se desloca paraoLeste - 324
Introdução
Herbebt M a rcu se
xiü
mos, então, forçados à conclusão infeliz de que a procura da
verdade política pouco mais é do que escolher entre uma va
riedade de configurações simbólicas igualmente ilusórias? Se
a realidade produz uma multiplicidade de estímulos apenas
compreensíveis quando reduzidos a imagens operáveis que ne-
cessàriamente introduzem unf elemento de distorsão, e se estas
imagens derivam do ambiente cultural-ideológico vigente, o
que poderia ser o "real”, e o» que o “falso”? Como sugeriu
David Hume, o problema de saber-se o que, cm nossas ima
gens, constitui a “realidade” jamais poderá ser resolvido, pois
nossas imagens apenas podem ser comparadas com outras ima
gens, nunca com a realidade.
Kenneth Boulding observou, contudo, que ainda que o pro
blema permaneça epistemològicamente não resolvido, o senso
comum e a°s necessidades da vida cotidiana nos obrigam a jul
gar e a agir como se nossas imagens fôssem verdadeiras. Fa
zendo-o, descobrimos que, pelo menos nos limites de certos
objetivos, os mecanismos racionais têm sua utilidade e que
existem processos para a detecção do êrro, de modo que, mes
mo que a “realidade nua” nos escape constantemente, podemos
atingir uma aproximação cada vez maior em relação à ver
dade1.
Se alguém brada: “Os comunistas estão tomando o poder
no Egito!”, ao invés de deplorar o caráter ilusório da realidade
e concluir que ninguém pode jamais saber realmente o que
está acontecendo no Egito ou, em casos semelhantes, em qual
quer outra parte do mundo, podemos pedir àquele que grita
que especifique quem êle tem em mente quando se refere aos
“comunistas” e quais as características observáveis que alguém
deve possuir de modo a ser qualificado com tal categoria. Po
demos exigir uma descrição operacional das condições políticas
representadas pela expressão “tomando o poder”. Se o orador
se mostra pouco desejoso de responder nesse nível e prefere
limitar-se à repetição de suas afirmações, podemos ainda forçá-
lo a explicar porque a “tomada do poder pelos comunistas no
xvii
nã ainda convencido de que a “agressão” devia ser batida.
Quanto mais estudava a questão, mais me descobria questio
nando não apenas nosso envolvimento naquele conflito, mas
todo o conjunto de atitudes e acontecimentos que nos levou a
êle. Finalmente, descobri que não mais poderia considerar-me
adepto do anticomunismo pregado e praticado pelos liberais
e pelos conservadores americanos. Para ser claro, estou ainda
convencido de que os dirigentes comunistas se mostraram tão
peritos quanto quaisquer outros, na arte de suprimir a di
vergência política, e no exercício do poder autocrático; basta
pensar nos julgamentos e expurgos dos anos 30, na Hungria
de 1956 e na Tchecoslováquia de 1968. E, acrescentemos de
vez, condenamos e deploramos os campos de concentração, a
censura à imprensa, a dominação oligárquica, o exercício de
qualquer poder violador da dignidade humana, encontra-se
êle na Espanha, em Portugal, no Paraguai, na Guatemala, na
Nicarágua, na Coréia do Sul, no Paquistão, na Jordânia, na
Arábia Saudita (para citar alguns dos países aos quais conce
demos ajuda), ou na África do Sul, iia Rodésia, na União
Soviética, na China, na Bulgária, no Mississípi ou cm Chicago.
Mas se realmente somos contrários a tais usos do poder que
violam o espírito humano, então não basta dizermos que so
mos contra o comunismo, é preciso dizer que somos contra
a injustiça, o privilégio explorador e o despotismo, onde quer
que possam ser encontrados.
É o nosso próprio comprometimento com a liberdade c a
dignidade humanas que nos deve levar a encarar com alarme
o anticomunismo americano. É surpreendente o número de
coisas que o anticomunismo faz em nome da “liberdade”. So
fremos, em nosso país, o vandalismo patriótico, a auto-ilusão
coletiva, a propagação da ortodoxia política, o encarceramen
to dos divergentes e a emergência de um sistema militar gi
gantesco que devora o tesouro nacional, e isso ciujuanto cres
cem nossas misérias domésticas. Fora de nossas fronteiras, o
anticomunismo nos trouxe a corrida armamentista, o terror nu
clear, o fortalecimento de autocracias opressoras, o reaciona
rismo contra-revolucionário, a morte e a mutilação de jovens
americanos, o trucidamento de povos distantes e inofensivos,
XViii
r
t:
xix
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I
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/
I
Os comunistas em conflito
Por toda a sua volta, Inocento ouvia os assim cha
mados cristãos lamcntarem-se porque Maomé derrotara o
Cristo, e pareceu a êste Papa que a própria Igreja estava
em perigo de dissolver-se. E ra de pouco consolo para
êle saber que o mundo muçulmano sofria igualmente de
um grau desesperador de desunião.
1
A MARÉ DO MUNDO COMUNISTA
2 Arleigh Burke, “Power and Peace”, in Peaca and Wair in the Mo
d em A g e : Premises, Myths, and Realities, R. Burnett, Mott, and Neff,
eds., Gardcn City, Now York, Deubleday, 1965, págs. 17-18, 29.
3 Extraído da declaração de Rusk de 24 de maio, 1966; ver New
York Times, 25 de maio de 1966. Ver ainda seu discurso relatado no
Washington Star, 8 de setembro de 1965.
3
ação para inspirar, coordenar e dirigir os protestos e de
monstrações em muitos países. Aqui, como por tôda par
te, a maioria dos manifestantes não era comunista. Os
comunistas jamais tiveram maioria em qualquer movi
mento. Na verdade, êles não a desejam. Êles não acre
ditam no governo da maioria4.
DO MONOLITISMO AO POLICENTRISMO
4
vimentos comunistas- no exterior. Assim que a URSS entrou
em relações diplomáticas e comerciais com as nações estran
geiras, tomou-se cada vez mais aparente a contradição entre
Moscou, como quartel-general de um movimento que visa der
rubar governos, e Moscou como a capital de um Estado russo
em busca de relações vantajosas com êsses mesmos governos5.
A contradição nunca foi embaraçosa para Stalin pois a
história repetidamente revela, sua disposição de lançar por
terra as esperanças e ambições dos partidos comunistas locais
para entrar em acôrdo com dirigentes burgueses e reacionários,
visando certos interesses soviéticos, imediatos ou de longo pra
zo. Sua aliança com Hitler — para consternação dos ideólogos
comunistas estrangeiros — sua reticência em relação a Mao,
e mesmo sua relutância em reconhecer o Partido Comunista
Chinês, ao» mesmo tempo em que procurava estabelecer rela
ções estáveis com Chiang Kai Chek depois da guerra0, e seu
empenho em conter os comunistas franceses, italianos, iugos
lavos e gregos a fim de tranqüilizar o Ocidente e garantir suas
próprias posições na Polônia podem ser citados em apoio àque
la afirmação. Em 1927 Stalin instruía os partidos irmãos: “Re
volucionário é aquêle que está pronto a defender e proteger
sem reservas a URSS, a fazê-lo aberta e honestamente, sem
qualificações. .. pois a URSS é o primeiro Estado do proleta
riado revolucionário em todo o mundo, um Estado que está
construindo o socialismo”7. As condições de admissão ao Co-
mintern rezam: “Cada partido desejoso de filiar-se à Inter
nacional Comunista se obrigará a prestar tôda assistência pos
sível às Repúblicas Soviéticas em sua luta contra tôdas as
fôrças contra-revolucionárias”8.
A liderança posterior a Stalin revelou propensão seme
lhante a colocar os interesses soviéticos acima do sacrifício re
5
volucionário internacional. A parte maior da ajuda externa
soviética foi destinada, não aos revolucionários comunistas, mas
a governos estabelecidos de vários países asiáticos e africanos.
Kruschev cortejou com tenacidade dirigentes nacionais, multi
plicou os presentes e créditos a longo prazo, freqüentemente
ignorando as oposições comunistas dos países em questão. Seus
sucessores, publicamente, aplaudiram e incensaram De Gaulle
em 1967, quando os comunistas franceses se encontravam em
penhados em campanha eleitoral contra o General. A União
Soviética, para citar o New York Times de 31 dc outubro de
1966, “considera seu interêsse nacional mais importante que
as velhas obrigações fraternais em relação ao proletariado
mundial”*.
A coesão internacional do comunismo dependia em larga
medida da debilidade dos partidos nãO-russos. Mas, assim que
outros líderes comunistas encontraram, à frente de movimentos
nacionais, o caminho do poder, começou o fracionamento da
unidade imposta por Moscou. No momento mesmo em que
Truman e Acheson descreviam o mundo 'com imagens bipola-
res apocalípticas, a dominação de Moscou era desafiada com
êxito por Tito. Anos mais tarde, a campanha de desestalini-
zação comandada por Kruschev e sua atitude de côrte quase
deferente em relação a Tito implicaram numa clara, embora
6
tardia, justificação do desafio lançado por êste a Stalin9. Para
os outros países da Europa Oriental, a lição não foi perdida.
De forma dramática, a Iugoslávia demonstrou que socialismo
e subserviência à URSS não são condições necessàriamente in
separáveis.
Carecendo de suficiente*' apoio de massa entre seus pró
prios povos, os demais dirigentes comunistas da Europa Orien
tal se voltaram para o poder soviético em busca de sustenta
ção para seus regimes. Esta sustentação, todavia, tinha seu
preço, que incluía tratados comerciais desvantajosos com a
URSS e a cópia do sistema político e econômico stalinista, em
detrimento de inúmeras necessidades internas e das suceptibi-
lidades nacionais. Esta submissão ao Kremlin, posteriormente,
restringiu a própria legitimidade política dos dirigentes da Eu
ropa Oriental e corroeu sua popularidade entre seus povos. Is
to, por sua vez, os tornava sempre mais dependentes de Mos
cou. Uma inversão do círculo deveria ser esperada.
O momento surgiu no outono de 1956, quando a liderança
comunista polonesa, fazendo face a um movimento que assu
mia as proporções de uma revolta popular, voltou-se para seu
próprio povo, desafiando o Kremlin, e unificou-se em tômo do
comuno-nacionalista Gomulka, o mesmo homem que Stalin um
dia tentara matar10. A liderança polonesa promulgou uma série
de reformas de grande alcance, expôs a desastrosa situação
econômica à qual a direção stalinista havia conduzido o país
e anunciou sua intenção de, a partir de então, manter estreitas
relações com a URSS, mas em pé de igualdade. Sem abando
nar o princípio da coletivização, o partido de Gomulka na
realidade pouco a tomou efetiva, de modo que, ainda hoje,
a maior parte da terra é, na Polônia, propriedade privada dos
camponeses. De forma implícita, o regime polonês aceita igual
' 7
mente “a profunda convicção católica das massas e os laços
da intelectualidade com a cultura ocidental”11.
A revolução na Hungria seguiu-se imediatamente ao con
fronto polonês-soviético. Na opinião do Kremlin, ela apresen
tou todos os sinais de uma tentativa ocidental no sentido de
expulsar o comunismo da Europa, Isto levou os russos a em
preender a mortífera ação repressiva que não ousaram tentar
na Polônia. Janos Kadar, contudo, agiu nos anos que se se
guiram de modo a conquistar apoio popular, instituindo algu
mas daquelas reformas por que tinha lutado a revolução. A
democracia política ocidental não foi alcançada na Hungria,
mas o terror policial desapareceu; há maior liberdade individual
nas artes; as condições materiais melhoraram; e a liderança
de Kadar é declaradamente anti-stalinista.
Ao tempo dos levantes húngaro e polonês, Palmiro Togliat-
ti, líder do poderoso Partido Comunista Italiano, proclamava
a necessidade da procura de um “caminho nacional para o
socialismo”. Em 1961, os comunistas italianos tornaram públi
ca uma resolução rejeitando a “direção centralizada” dos di
versos partidos comunistas, e apregoaram a necessidade de
“um contexto de plena independência de cada partido”. Pouco
depois, lançavam calorosos convites à igreja católica para que
se juntasse a êles na tarefa comum de inverter o “curso dos
acontecimentos internacionais contemporâneos”. '
O Kremlin se viu assim diante de um mundo modificado,
e reagiu em conformidade com tais mudanças. Já em 1956,
o XX Congresso do Partido soviético proclamou a doutrina dos
“diferentes caminhos para o socialismo”, e em 1961 Kruschev
afirmava: “Seria errôneo construir-se um modelo determinado
e fazer dêle um ponto de referência nas relações com os demais
países socialistas. Seria um êrro condenar-se como renegados
todos aquêles que não adotassem tal modêlo”. Em 1966, Leo-
nid Brejnev vai ainda mais longe: “O Partido Comunista So
viético se opõe a qualquer tendência à hegemonia no seio do
movimento comunista”.
8
Coube à Romênia empreender uma das mais dramáticas
arremetidas no sentido do policentrismo. Recusando-se a fa
zer uma opção face à ruptura sino-soviética, repelindo as pres
sões de Moscou no sentido de uma integração econômica mais
estreita e convidando, simultâneamente, os capitalistas ociden
tais a investir em seu país, e líder do Partido romeno, Ceau-
cescu, em declaração feita em maio de 1966, fêz um apêlo à
“defesa da unidade nacional e da independência e soberania
da pátria”12. Denunciou as “teses errôneas” resultantes da
“prática do Comintern de expedir diretivas que subestimavam
as condições concretas de nosso país e implicavam em orien
tação e instruções táticas não correspondentes às condições
sociais, econômicas, políticas e nacionais da Romênia”18.
Acrescentava que “a Romênia está desenvolvendo relações de
colaboração com todos os países, independentemente de seus
sistemas sociais”. Pedia a liquidação das bases estrangeiras e
a retirada de tropas dos territórios de outros Estados. A exis
tência de blocos militares, disse êle, representava “um dos
obstáculos no caminho da colaboração” e um “anarquismo in
compatível com . . . a independência e a soberania nacional . . .
e as relações normais entre os Estados”14.
Não era acidental que Ceaucescu falasse a mesma lingua
gem que De Gaulle. A ameaça recíproca representada pela
OTAN e pelo Pacto de Varsóvia tendia a manter as pequenas
nações na dependência, seja dos Estados Unidos, seja da URSS.
Assim como a França se, utilizou do pluralismo emergente na
Europa Oriental (exemplo: Romênia) como argumento contra
a OTAN e a hegemonia americana, a Romênia apontava para
o nôvo pluralismo ocidental (exemplo: França) como argu
mento contra o bloco de Varsóvia e a hegemonia soviética. As
políticas da França e da Romênia se tornaram imagens espe
culares uma da outra, cada uma reforçando o movimento da
outra no sentido da autonomia nos assuntos internacionais. As
' 9 -
expressões de mútua admiração trocadas pelos dirigentes ro
menos e De Gaulle não deveriam, portanto, surpreender.
A abertura para o Ocidente iniciada por poloneses e ro
menos foi seguida por outros países comunistas. Os dirigentes
búlgaros, logo em seguida, realizaram sua primeira visita a
uma capita] ocidental (Paris) e diversas nações da Europa
Oriental passaram a cogitar do reconhecimento diplomático
da Alemanha Ocidental e do estabelecimento de novas rela
ções comerciais com ela. Entrementes, a Alemanha Oriental,
por muito tempo considerada o mais servil dos satélites de
Moscou, começou a movimentar-se no sentido da autonomia
econômica e política, naquilo que Welles Hangen descreveu
como a “revolução em surdina”15.
A corrente no sentido da liberalização recebeu, contudo,
um duro golpe na Tchecoslováquia, em 1968. Quando a im
prensa tcheca começou a assumir uma tonalidade anti-russa
pronunciada e o govêmo a recompor e liberalizar sua liderança
e seus métodos, Moscou interpretou tal desenvolvimento como
os primeiros sinais de uma restauração “capitalista” e, mais
especificamente, como um sintoma de revanchismo alemão*.
Em agôsto de 1968, os soviéticos ocuparam a Tchecoslováquia,
ação que provocou os mais violentos protestos por parte de
líderes comunistas de todo o mundo, incluindo os chineses, que
classificaram a invasão de “ato vergonhoso”, semelhante às
conquistas hitleristas. Romenos e iugoslavos mobilizaram suas
tropas e fizeram conhecer sua disposição de combater qual’
quer intrusão em seu território.
A intervenção soviética na Tchecoslováquia foi provocada
pelo mesmo tipo de psicologia do cêreo e de suposições aprio*
rísticas que lançaram os Estados Unidos no Vietnã. Fazendo
lembrar os apologistas da política externa de Washington, os
editoriaüstas do Pravda argumentaram ser necessária a defesa
10
das fronteiras do mundo comunista contra um inimigo impla
cável; que a Tchecoslováquia, cercada de inimigos, se via amea
çada pelos imperialistas, pelo revanchismo alemão e por ele
mentos “subversivos” internos; que os tchecos “leais” solicita
ram a intervenção; e que muitos tchecos espressaram sua
“gratidão” pela ação soviética*. Coube ao senador George
McGovern ressaltar que a política externa americana “contri
buiu para o estabelecimento de uma situação em que as gran
des nações se atribuem o direito de intervir nas pequenas. . .
Não se pode justificar a intervenção no Vietnã com base em
que nossa segurança é ameaçada por um governo a dez mil
milhas de distância sem convidar os russos a intervir por sen
tir-se ameaçados por um govêmo situado em suas próprias fron
teiras”18.
Os russos, entrementes, sofrendo a reprovação da maior
parte do mundo Comunista e não-comunista, sentiram-se na
desagradável situação de ocupantes de um país que não po
diam governar. Um êxito militar total estava ameaçado de
transformar-se em algo semelhante a uma derrota política, na
medida em que os russos não conseguiram encontrar um go
vêmo marionete capaz de obter sequer uma aparência de apoio
popular. À sombra das armas soviéticas, os dirigentes tchecos
declararam que não haveria retôrno à “era do estado policial”
e que prosseguiriam as reformas democráticas, embora fôssem
proibidas as críticas aos demais países do Pacto de Varsóvia.
Ao tempo em que escrevíamos êste livro, informou-se que uma
profunda “meditação por parte dos dirigentes do Kremlin” con
vencera-os de que uma “atitude mais conciliatória se impu
nha”17. Contudo, não havia indicações de que as tropas so
11
viéticas seriam retiradas em futuro imediato e nenhuma
Í
çarantia de que a imprensa tcheca conseguiria preservar sua
iberdade.
DO POLICENTRISM O AO ANTAGONISMO
M ULTILATERAL
12
dade se apresente: procura outra grande nação D, que se
mantenha em antagonismo em relação tanto a B como a. C; no
caso, a China. É mais verossímil que os albaneses se tenham
deslocado no sentido da China, impulsionados pela busca de
oportunidades econômicas acompanhadas de apoio político e
psicológico face à reaproximação Moscou-Belgrado, do que su
por que o tenham feito em virtude de uma súbita dedicação
ideologica ao maoísmo. Como observa o New York Times de
31 de outubro de 1966:
13
curso independente da revolução cubana. Rotulando-os cómô
“calculistas”, “servis” e “domésticos”, e relembrando que êles
no passado consideraram sua guerra de guerrilhas contra Ba
tista como ações de “loucos aventureiros”, Castro passou a
acusar a velha guarda comunista de “ofender-se quando dize
mos que estamos fazendo nossa própria revolução, como se isto
fôsse um pecado ou um sacrilégio”19. Em termos similares, êle
revelou abertamente seu antagonismo em relação a diversos
partidos comunistas da América Latina.
Por esta época, o Partido Comunista Japonês proclamou
sua oposição a interferências de outros partidos comunistas em
seus assuntos internos e deu indicações de não mais se consi
derar alinhado a Pequim. Pouco depois, os dirigentes da Coréia
do Norte declararam sua própria autonomia em documento
intitulado Defendamos nossa Independência, onde se afirma
que “os comunistas devem sempre elaborar seu próprio pen
samento e agir com independência, mantendo sua própria
identidade. Não devem dançar a música de outros”. A decla
ração criticava os “lacaios” de potências estrangeiras que, re
tornando à Coréia depois de passarem o período da guerra
no exílio, na URSS ou na China, “veneravam incondicionalmen
te tudo o que se fazia nas grandes potências e se preocupavam
em imitar os outros em tudo”20.
Os seculares conflitos entre minorias nacionais e disputas
territoriais que atormentaram as nações através da história afli
gem igualmente os Estados comunistas, como ficou demons
trado pelo exemplo da deterioração das relações entre a Ro
mênia e a Hungria em virtude da questão da Transilvânia. A
questão macedônica, por sua vez, tornou tensa, durante mais
de meio século, as relações iugoslavo-búlgaras, sustentando os
búlgaros que o território sob contrôle de Tito é, na verdade,
uma parcela histórica da Bulgária. Esta foi tão longe a ponto
de enviar embaixadores oficiais (que foram seguidos pela po
lícia secreta iugoslava) à Macedônia iugoslava a fim de “estu
dar as condições para o estabelecimento de uma República
14
Socialista da Macedônía separada, sob orientação búlgara”21.
Ao mesmo tempo, informava-se a irrupção de uma controvérsia
entre Tito e Ceaucescu em tômo da questão das minorias ro
mena e iugoslava nos respectivos países22.
O antagonismo entre â União Soviética e a China se so
brepunha a tôdas as demais disputas. A prolongada presunção
da União Soviética a ser a .única nação-líder do comunismo,
sua recusa em favorecer o acesso da China às armas atômicas,
o tratado de proibição dos testes que assinou com Washington,
e que resultava efetivamente na tentativa de fechar perma
nentemente o acesso ao “clube atômico”, sua relutância em
tomar sèriamente em consideração as reivindicações territoriais
chinesas, sua neutralidade face ao conflito de fronteira entre
a China e a Índia (acompanhada do envio de armamento so
viético à Índia), sua tendência a conceder ajuda mais generosa
a pequenas nações não-comunistas do que aquela concedida
à China, sua má vontade em apoiar a campanha chinesa pela
recuperação de Taiwan (indo mesmo tão longe a ponto de su
gerir que Pequim deveria considerar a solução das duas Chi
nas) — tudo isto bastava para convencer os chineses de que
os russos estavam mais interessados em contrariá-los que em
apoiá-los. A tendência soviética consistia em considerar os
chineses "ingratos” diante da ajuda a êles fornecida, injusta
mente hostis, movidos por um excessivo orgulho nacional que
inexplicàvelmente parecia encontrar sua expressão no antago
nismo em relação à URSS. Sôbre o assunto já foi escrito o
bastante para que nos dispensemos de recordar as divergências
ideológicas, históricas, territoriais e nacionalistas que alimen
taram o conflito. Por momentos, os russos pareceram ver os
chineses com hostilidade maior do que a que votam aos ame
ricanos. George Feiffer, depois dc prolongada observação di
reta na URSS, observa: “Não há, em Moscou, abatimento em
virtude de colapso do eixo sino-soviético, nenhum sentimento
de perda relacionado com o dano causado ao intemacionalis-
mo proletário. Pelo contrário, os russos jamais se preocuparam
15
com o intemacionalismo proletário — pelo menos no que toca
aos chineses. . . Os russos não gostam da China. Sentem que
os chineses são mais inimigos naturais que amigos naturais.
Receberiam de bom grado o rompimento total, especialmente
se acompanhado de posterior reaproximação com o Ocidente”23.
Dizer que a animosidade entre as duas nações foi a ex
pressão de uma luta pela liderança no seio do campo comunista
implica em admitir (a ) que se pode falar de um “campo co
munista”, e (b ) que êste campo está à procura de uma tal
liderança. Contudo, um fato notável do cisma residiu na me
dida em que russos e chineses foram, ambos, mal sucedidos
no recrutamento de seguidores. Os chineses pareceram inca
pazes de contar com quem quer que seja — nem mesmo com
os partidos da Coréia do Norte e do Japão. A tentativa so
viética, no outono de 1966, de convocar uma conferência mun
dial dos partidos comunistas para discutir sôbre a China ter
minou em fiasco.
Os comunistas britânicos já defenderam a completa liber
dade religiosa, de expressão artística e. de pesquisa científica,
sustentaram a tese de que uma nação tem necessidade de dis
por de diversos partidos democráticos “incluindo aquêles que
não aceitam ou se opõem ao avanço do socialismo”. No mesmo
espírito, Hagberg, dirigente comunista sueco, anunciou que seu
partido avançava com a perspectiva de um dia fundir-se com
o Partido Social-Democrata governante por ser êste um “par
tido puro da classe operária”24. Antes, Togliatti declarara que
o Partido Comunista Italiano não estava interessado na propa
gação de dogmas, nem na vitória do comunismo como tal, e
sim na criação de um nôvo tipo de sociedade nacional e inter
nacional construída com a ajuda dos “homens de boa vontade,
onde quer que êstes se encontrem”. Começou a tomar-se cres
centemente difícil, em muitos países da Europa Ocidental, dis
tinguir os comunistas dos demais partidos socialistas parlamen
tares.
16
PLURALISMO A PARTIR DE DENTRO
17
r . *
!
S
]
i.
27 David Binder, “Tito and the 1 1/2-P arty System” New York
Times, 29 de maio de 1966.
28 New York Times, 10 de janeiro de 1966.
18
afirmam que os comunistas "cm rivalidade” são tão perigosos
quanto os antigos “conspiradores”. Muitos demônios repre
sentam tanto um mal quanto um só, desde que todos estejam
motivados essencialmente pela mesma perversa intenção. Em
nossa imaginação, o comunismo se torna uma espécie de “fôrça”
contaminadora reificada que se infunde em diversas e dispara
tadas formas políticas. Comunista pode ser um dirigente ro
meno que ataca abertamente- a política soviética, um cubano
que ataca Pequim, um russo ou chinês que se açoitam mútua-
mente; quer se trate de um bem alimentado burocrata de Var
sóvia ou de um esfomeado rapazola lutando contra o invasor
estrangeiro na floresta do Vietnã, de um estudante dominicano
defendendo com armas na mão o regime constitucional ou de
um intelectual francês às voltas com uma dolorosa reavaliação,
de um guerrilheiro huk lutando pela reforma agrária, de um
mineiro boliviano, de um operário fabril em Turim, de um
jornalista no Chile, ou de um mestre-escola de Minneapolis —
tais comunistas, uma vez assim rotulados, representam o mesmo
perigo sob vários disfarces. Como ocorre com todos os este
reótipos, a palavra “comunista” impõe uma uniformidade ca
tegórica falsa a tôda uma gama de sêres humanos que fre
qüentemente pouco têm em comum e que, na infinita variedade
de suas experiências sociais, históricas, nacionais e pessoais,
estão muitas vêzes em conflito ou indiferentes uns aos outros.
As organizações e nações comunistas freqüentemente agem
como uma curiosa “fôrça satânica” que trabalha tenazmente
contra si mesma. Exaltadas disputas territoriais ao velho estilo,
reclamações contra tratados e têrmos de comércio injustos,
concorrência comercial; diferenças de experiência histórica, for
mação cultural e nível de desenvolvimento; reminiscências de
rivalidades nacionais passadas, animosidades étnicas e raciais
seculares; suspeitas de lôgro ou discriminação — em suma, todos
os conflitos substantivos e psíquicos que atormentaram as na
ções ao longo da história se manifestam entre os países e par
tidos comunistas.
»
jy
2
O demônio comunista
Aqueles que empreendem uma cruzada, não por um
Deus dêles mesmos, mas contra o demônio nos outros ja
mais conseguirão tornar o mundo melhor, mas o deixarão
como êle era, ou algumas vêzes nitidamente pior do que
era, antes que começasse a cruzada. Concebendo o mal de
modo primário, tendemos, por melhores que sejam nossas
intenções, a criar as ocasiões para que o mal se manifeste.
A ldous H u xley
20
com papéis complementares. É por esta razão que o magis
trado, no O Balcão * de Jean Genet, pede ao criminoso que não
se corrija para que êle próprio possa continuar a existir como
magistrado1; do mesmo modo, o médico precisa do doente, o
professor do estudante, o anti-semita do judeu, o soldado do
inimigo; e o anticomunista, por sua vez, precisa do comunista.
A antitético aparente é freqüentemente simbiótico. Para muitos
de nós, a virtude perderia seu -sentido caso o pccado fôsse abo
lido; assim, o bem é freqüentemente descoberto através dc um
processo de definição e negação do mal, como no “Não come-
terás. . . E ser contra uma certa espécie de pecado é muitas
vêzes tomado como fundamento suficiente para a proclamação
de um certo tipo dc virtude.
Muito mais do que ousam admitir, os virtuosos são intri
gados pelo. mal, estão acostumados com êle; êles o acham es
timulante, excitante. Sob pretexto de vigilância, o pecado se
torna sua preocupação. Não é acidental que os mais veemen
tes a proclamar as virtudes do Americanismo, ou seja, os adep
tos da John Birch Society, recaiam obsessivamente nos pecados
do comunismo, a ponto mesmo de apropriarem-se de métodos
considerados comunistas (conspiração, obediência incondicio
nal ao chcfe, infiltração, utilização de organizações de fachadas,
etc.). Caso o comunismo desaparecesse da face da terra, os
homens da John Birch teriam dc criar novas manifestações dèle
em sua imaginação - como de fato o fazem com freqüência -
para não serem forçados , a enfrentar uma vida esvaziada de
seu mais significativo imperativo.
Se o impulso vital de alguém se alimenta dos derivativos
da fobia, esta, então, ao invés de ser fàcilmente eliminada, se
manterá a qualquer custo, Argumentos e provas tendentes a
demonstrar a ausência de fundamento ou o caráter exagerado
de tal temor não são recebidos favoràvelmente, pelo contrário,
são tomados como negação de importantes válvulas de escape
psíquicas, como intrusões a exigir o drástico deslocamento
do impulso vital. Nossos temores e ódios podem tomar-se pre
21
ciosos e, ao ihvés de procurar libertar-nos dêles, freqüente
mente nos agarramos aos argumentos que os justificam e am
pliam. Surge aí, para usar a expressão de Gordon Allport, uma
espécie de “autonomia funcional”; a própria quantidade enorme
de energia psíquica dispendida torna extremamente difícil ven
cer a fobia. O temor cria seu próprio momentum e se trans
forma, eventualmente, em sua própria motivação.
A maioria dos americanos parece compartilhar dêsse temor
ao comunismo, e logo que se desfaça uma das representações
da ameaça (os russos) as manifestações da fobia se concentra
rão em outra ( os chineses). O mêdo se tornou demasiadamente
condicionado em nós, demasiadamente investido de significado,
demasiada e terrivelmente importante para que possa, de um
golpe, ser privado de sua expressão.
O CONTEXTO IDEOLÓGICO
22
deram, identificados como comunistas, e não é essa identidade
uma função de sua dedicação comum à doutrina do marxismo-
leninismo?
A argumentação contida no capítulo precedente deve le
var-nos a colocar a questão *de saber sc a profissão em comum
de axiomas doutrinários pode ser identificada com um pacto
conspirativo, e se a própria doutrina não se torna freqüente
mente fonte de conflitos c também coesão. Profissões de
comunidade ideológica não asseguram uma compreensão co
mum dos textos do marxismo-leninísmo. A natureza da ideo
logia política reside em que ela pode ser freqüentemente ig
norada; e, quando não é ignorada, é discutível e suscetível
de interpretações variadas. Pode ser revista para melhor servir
aos interêsses de certos líderes comunistas em conflito com as
predileções de outros*. Muitas vêzes, a doutrina é utilizada
pelos líderes comunistas para ‘
e para legitimar determinadas
riòdicamente reinterpretado em consonância com tais objetivos.
Ainda que devêssemos sustentar a tese duvidosa de que
a ideologia orienta tôdas as ações e objetivos dos comunistas,
restaria determinar como e por que meios a ideologia é im
plementada; ou seja, teríamos ainda de qualificar as orientações
políticas específicas. Descobriríamos então êsse fato corriqueiro
de que, apesar do rótulo marxista-leninista, os diferentes líderes
comunistas, confrontados ,com sistemas divergentes de priori
dades, se vçem conduzidos a orientações políticas conflitantes
23
e se mostram pouco propensos a sacrificar seus interêsses ime
diatos ao objetivo escatológico formulado em certas passagens
dos textos sagrados.
A história de cristianismo demonstra que a ideologia ra
ramente é garantia de coesão sem atritos ou de unidade de
ação quando está envolvida uma vasta pluralidade de interêsses,
lealdades e animosidades. Mesmo durante o grandioso empre
endimento militar internacional da Idade Média, as Cruzadas,
“houve quase tanta luta entre os cristãos que delas participaram
quanto houve combates entre cristãos e infiéis”2. As guerras
religiosas que se seguiram à Reforma demonstraram a propen
são dos homens a se trucidarem uns aos outros em nome do
Príncipe da Paz e do Deus Único e Verdadeiro do Amor. O
herético é sempre mais odiado que o infiel. Algo similar pode
ser dito em relação aos diversos comunistas. Stalin excoi.iungou
Tito, qualificando-o apóstata do mundo; União Soviética e
Albânia proclamaram a danação recíproca por crime de traição
à classe operária; os romenos santificaram sua forma nacional
de comunismo considerando-a expressão do espírito diretor do
proletariado do país e, por isso mesmo, representação sagrada
do internacionalismo marxista; Moscou e Pequim acusaram-se
mutuamente de violação herética da doutrina revolucionária,
etc. Tudo isto não significa que a doutrina seja mera roupa
gem. A legitimidade do mando é a mais séria questão para
qualquer grupo dirigente, e na medida em que a doutrina dá
sustentação à legitimidade ela é tratada com seriedade. A
ideologia pode tão certamente gerar conflito quanto prometer
unidade.
Há outros paralelos tentadores entre cristianismo e comu
nismo. O cristianismo foi igualmente uma ideologia que atra
vessou as fronteiras nacionais e que, como o comunismo, sofreu
suas piores cisões e seu declínio sob a ação das exigências
divergentes do estado-nação. A fide'idade à nação tomou-se
muito mais mobilizadora que a lealdade à Roma. Hoje é o
comunista romeno Ceaucescu quem manifesta desprêzo peios
teóricos partidários “que tentaram dar crédito à idéia de que
24
as nações são uma categoria social superada”. Os primeiros
cismas nacionais (o titoísmo e o maoísmo) abriram caminho
para o pluralismo ulterior; o prometido mundo sem conflitos
parece hoje tão remoto quanto nos dias anteriores ao bolche-
vismo.
'25
que outros objetivos, como o prestígio nacional, a paz interna
cional, a prosperidade interna e a segurança pessoal, têm para
êsse alguém, menor significado. Com muita perspicácia, ob
serva Robert Daniols:
4 Idem.
26
que e cm que sentido. Mais precisamente: a expressão
que empreguei foi distorcida, e o foi deliberadamente,
pois ela se referia não ao enterro físico dc qualquer povo,
mas à questão da tendência histórica do desenvolvimen
t o . ..
Houve um tempo no mundo cm que o mais difundido
sistema social era o feudalismo. O capitalismo tomou,
então, seu lugar. E por que assim foi? Porque o capita
lismo era um tipo de sistema mais progressista que o
feudalismo.. . Acreditamos que Karl Marx, Engels e
Lênin deram provas científicas do fato de que o sistema
social do socialismo tomará o lugar do capitalismo.
Nós cremos nisso.. . e é por isso que eu disse, con
siderando a questão do ponto de vista histórico, que o
socialismo, o comunismo, tomarão o lugar do capitalismo
e que, portanto, o capitalismo seria — digamos assim —
enterrado. . .
Pessoalmente, estou convencido de que o comunismo
será vitorioso, como sistema social que proporciona me
lhores possibilidades para o desenvolvimento das fôrças
produtivas de um país; que habilita cada pessoa a desen
volver melhor suas capacidades; e que assegura a plena
liberdade da pessoa na sociedade. Muitos de vocês não
concordarão com isso, o que significa que tampouco eu
posso concordar com vocês.
Que se deve fa.zer? Que cada um de nós viva sob o
sistema quo preferir; vocês sob o capitalismo, e nós con
tinuaremos a construir o comunismo.
Tudo o que não é progressista morrerá algum dia;
se o capitalismo, a sociedade capitalista, é uma forma dc
sociedade melhor e oferece melhores possibilidades ao
desenvolvimento das fôrças produtivas de um país, en
tão êle certamente vencerá. . . ( Seguem referências às
realizações relativas à produção na União Soviética, apre
sentadas por Kruschev como demonstração da viabilida
de e dos êxitos do sistema socialista ) n.
27
Temos aqui uma previsão do curso da história e não uma
declaração de intenção agressiva *. Mas, por que deveríamos
dar crédito a Kruschev quando êle nega intenções beligerantes?
Não se destinam as palavras dos comunistas a retirar-nos de
uma atitude vigilante induzindo-nos a uma falsa sensação de
segurança? E já não confessaram os comunistas de todo o
mundo seus planos expansionistas, naquilo que Dean Rusk des
creveu como as “intenções abertamente proclamadas do agres
sor”? Em que acreditar: as palavras dos comunistas nada sig
nificam ou significam tudo? As afirmações dos comunistas
estão carregadas de duplicidade e subterfúgios, ou confessam
abertamente seus nefandos intentos? Muitos teóricos da guerra-
fria responderiam afirmativamente em ambos os casos: não
dariam crédito às palavras de Kruschev quando êste expõe de
tidamente seu pensamento para definir o sentido exato de sua
afirmação original, mas dariam pleno crédito às afirmações sus
ceptíveis de serem retiradas do contexto e enriquecidas com
implicações catastróficas, como o slogan “nós vos enterraremos”.
Assim, as pessoas que nos alertam sôbre os perigos de se dar
crédito às palavras dos comunistas constróem freqüentemente
seu próprio manual anticomunista com base em palavras, supe
radas ou fora do contexto, de Lênin, Kruschev ou Lin Piau. E
certos anticomunistas parecem saber exatamente, utilizando mé
todos dificilmente identificáveis, quando um comunista está
falando com total falsidade e quando fala com candura infantil.
28
PALAVRAS E AÇÕES: UTILIZAÇÃO ELÁSTICA
30
ser objeto de negociação, os observadores americanos, como
o sovietólogo Frcderick Barghoom, interpretaram, então, êsse
gesto como uma tentativa dos soviéticos de “posarem” como
os campeões da paz, acrescentando ter sido com êsse fim que
os soviéticos teriam “claramente derrubado as mesas da pro
paganda”. Os apelos soviéticos à negociação, ao comércio e
ao desarmamento pouco.mais representavam que “jogadas”,
“lances astutos”, “manobras” 0. Em 1960, quando Fidel acu
sou amargamente os Estados Unidos de planejarem a invasão
de Cuba, vimos nisso uma manifestação de sua difamadora
hostilidade (embora, pouco depois, a absoluta pertinência
desta acusação ficasse evidenciada pela invasão da Baía dos
Porcos). Três anos mais tardo, quando Castro propôs repeti
damente o estabelecimento de relações pacíficas e normais
com os Estados Unidos, rejeitamos todos os seus oferecimen
tos, ou por constituírem apenas “gestos” cuja intenção fôsse
afrouxar nossa vigilância, ou por sc tratarem dc tentativas
dc Fidel dc “desvencilhar-se dos ‘ganchos’ ”. Mas, se justifi
camos nossa hostilidade cm relação a Cuba com base no fato
de que Cuba nos ó hostil, qual é então essa justificativa quan
do Cuba procura a roaproximação?
A justificativa é fornecida por aquêle elástico processo
dc valorização que permito ao demonologista anticomunista
apreender todos os acontecimentos e situações como manifes
tações do modo dc agir do demônio. Outras ilustrações dêsse
apriorismo podem sor fornecidas, Quando a economia sovié
tica oscila, isto é tomado como prova de incapacidade ine
rente c do fracasso em construir uma vida feliz. Quando a
economia avança cèleremente, isto é tomado como demons
tração do caráter terrificante do poder comunista. Quando
os soviéticos fecharam suas fronteiras aos visitantes ocidentais
(movidos pela suspeição e pelo temor dc espionagem e sub
versão), isto foi considerado prova de sevi antagonismo; e du
rante cerca de vinte anos a “Cortina dc ferro” serviu de sím
bolo adequado para a Ameaça Vermelha. Quando os russos
abriram suas fronteiras aos visitantes ocidentais, no período pós-
stalinista, e procuraram ampliar seu intercâmbio, isto foi toma
32
ordinárias. O diabo, afinal de contas, não é estúpido nem
fraco; pelo contrário, é dotado de recursos infinitos, pèrsua-
sivo, sabe o que quer. Êle é o diabo, como observou certa
vez o Bispo Emrich, porque, oom tôdas estas virtudes, se mo
vimenta na direção erracía: “O diabo”, diz o pensamento cris
tão tradicional, com profundo discernimento, “é um anjo caí
do”.7 Através da história,” sob o disfarce de um jacobino, de
um judeu ou de um bolchevique, o diabo viu-se sempre do
tado de excepcional astúcia, ousadia e poder * . Advertem-
nos que os comunistas “não são como as outras pessoas”, que
êles emprestam pouco valor à vida (inclusive a própria), que se
guiam por regras e rituais que lhes são particulares, que adqui
riram o domínio de sinistras “invocações” e “fôrças”, contra as
quais devemos ser alertados e armados.
Os virtuosos, malgrado sua arrogância, sentem-se com fre
qüência inferiorizados diante da astúcia dos ímpios. Em
sua inquietação puritana e secreta insegurança, não podem
libertar-se da suspeita de que, num mundo mau, o gênio dia
bólico possui os métodos mais eficazes para alcançar êxito.
Nós, americanos, alimentamos um inveterado receio de estar
mos inferiorizados em qualquer confronto com os comunistas
em virtude da inibição que nos é imposta por nossa bondade
inata. Acreditando que carecemos dos poderes secretos do
fanatismo diabólico, e invejosos de tais podêres, procuramos
compensação para essa suposta desvantagem. Assim, confron
tados com a evidência de que os chamamentos dos comu
nistas são muito mais eficazes para ganhar dedicação e apoio
em certos vilarejos vietnamitas que nossos melhores esforços
de guerra psicológica, observou-se que procuramos restabele
cer nossa posição bombardeando os vilarejos disputados até
eliminá-los 00.
33
A profusão de recursos demoníacos dos comunistas pa
rece desafiar as leis ordinárias da ação política. A acreditar
mos em Hubert Humphrey, os comunistas não necessitam
nem estão interessados nas vantagens do apoio da maioria,
Confrontado com o fato de que nossa intervenção em São
Domingos tentou impedir a tomada do poder pelos comunis
tas num país onde êstes últimos não tinham presença sig
nificativa, Eric Sevareid pintou esta imagem de super-homem:
34
Ferry, de “um que seja sinistro, conspirador, terrorista, ateu,
sequioso de poder, monolítico, anti-humano c desumano”. Ci
temos o senador Fulbright:
35
tão diferentes assim de nós mesmos, impelidos mais ou menos
pelas mesmas necessidades vitais, desejos e sentimentos.
É prática corrente entre os teóricos da guerra-fria subli
nhar que as nações comunistas são forjadas com a mesma
ganga totalitária da Alemanha nazista; assim, os vários co-
munismos são todos reduzidos a uma imagem monolítica e
nefasta e, o que é ainda mais significativo, União Soviética e
Alemanha nazista são tratados como arquétipos equivalentes*.
Referências a certas similitudes, como o sistema unipartidário,
a política secreta, o oontrôle sôbre a imprensa e uma ideolo
gia “totalitária”, tornam-se razão suficiente para imputar aos
vários sistemas comunistas, embora com. pequenas ressalvas
de qualidade, todos os pecados, males e terrores do sistema
nazista.
O demonologista toma, dêsse modo, sua tarefa mais fácil,
pois quem desafiaria tal cruzada se de fato o comunismo não
fôsse outra variante do nazismo? Quem se oporia a Lyndon
Johnson e a Dean Rusk quando identificam as guerras de
libertação no Sudeste asiático com a agressão nazista na Eu
ropa, ao argumentar que qualquer “recuo” no Vietnã seria
um nôvo Munique, um nôvo prelúdio à guerra mundial? De
vemos, contudo, questionar a validade de suas singulares ex
trapolações históricas, e considerar a possibilidade de que,
do ponto de vista do bem-estar internacional, as diferenças
entre a Alemanha nazista e a União Soviética ou a China su
perem em muito as semelhanças. Afinal de contas, não nos
é indeferente que Brejnev e seus tecnocratas, ao invés de
Hitler e seus lunáticos, sejam os que controlam os mísseis
nucleares do Kremlin; não é questão de pequena monta que
as metas dos soviéticos pareçam residir no estabelecimento de
relações estáveis no exterior e da prosperidade em sua casa,
ao invés dos glorificados objetivos nazistas: guerra, conquista,
barbarismo da raça superior. Mais do que meras aparências
separam a fé dos soviéticos na ciência, na educação e no
36
aperfeiçoamento social coletivo, da fé dos nazistas no misti
cismo do Volk ,* no sadismo psicótico e no genocídio. A afir
mação de Kruschev de que o socialismo é “o balé e o borsch * ”
não pode ser comparada à obsessão dos nazistas por sangue
e projéteis. Enquanto o Terceiro Reich lutou pela autarquia
como condição econômica .necessária diante da guerra que se
aproximava, a URSS procurou sem cessar o estabelecimento
de relações culturais, econômicas e políticas mais amplas e
mais estreitas com as dema*is nações. Pode alguém com se
riedade identificar a cautela da política externa soviética —
pondo de lado tudo o mais que se possa dizer a respeito —
com a violência apocalíptica que impelia e cativava Hitler?
Mais especificamente, pode alguém imaginar os nazistas
oferecendo um presente de duzentas mil toneladas de trigo
à Índia -assolada pela fome, como fizeram os soviéticos em
1966? Aos que retorquirem que justamente tais presentes ten
tadores tomam os comunistas mais perigosos que os nazistas,
a contestação já terá sido apresentada nas páginas preceden
tes: nosso entendimento e avaliação de um país deve derivar,
em boa medida, do modo como êste se comporta. Assim, se
os soviéticos ajudam a Índia, eis aí uma razão bastante forte
para concluirmos que não estão concentrando todos os es
forços na subversão e na derrubada do governo indiano e que,
pelo contrário, estão se comportando de modo simpático e
prestímoso em relação a uma nação não-comunista. No mes
mo plano, a ação mediadora da URSS quando da guerra da
Cachemira, no outono de 1965, que possibilitou o acordo de
cessar-fogo assinado em Tashkent, parece demonstrar o de
sejo soviético de assegurar relações estáveis e pacíficas ao
longo de suas fronteiras meridionais. Se os soviéticos jogassem
suas esperanças no caos, na ruína e fraqueza dos demais po
vos, como repetem os teóricos da guerra-fria, estariam, então,
com tôda segurança, trabalhando contra seus próprios obje
tivos ao levar o Paquistão e a Índia para a mesa de nego
ciação. É sòmente ignorando ações dêsse tipo que o demo-
. 37
nólogo pode identificar a Rússia Soviética com a Alemanha
nazista, igilalando remessas de cereais, missões de ajuda téc
nica e mediações de paz com a guerra hitlcrista.
Tratando das qualidades sub-humanas do comunista, dá-
se comumente atenção especial aos abusos e crimes perpetra
dos no interior das nações comunistas. Não há como negar
que Stalin mandou milhares e milhares de pessoas para os
campos de trabalho e que centenas de dirigentes partidários,
militares, artistas e cientistas foram executados sob suspeita
de desvio político. Tampouco pode ser negado que a hete-
rodoxia e a liberdade de contestação da legitimidade do po
der do Partido, em competições políticas abertas, são ainda
alheios ao sistema soviético. O que devemos questionar é
a imagem de uma nação totalmente aterrorizada, escravizada;
aç evidências de que dispomos indicam que o terror stalinista
foi particularmente sentido nos escalões dirigentes; quanto
mais alto alguém subia nos postos de decisão, mais real e
imediato era o perigo. Entre as massas, contudo, Stalin go
zava de um apoio quase religioso, que seria inexplicável caso
se tratasse de uma população hostiliza4a e aterrorizada. Sua
morte não provocou bailes de alegria nas ruas; pelo contrário,
segundo o poeta anti-stalinista Eugene Evtuschenco: “Uma
espécie de paralisia geral tomou conta do país. Acostumadas
à crença de que dependiam tôdas dos cuidados de Stalin, as
pessoas se sentiam perdidas e perplexas sem êle. Tôda a
Rússia chorou”10. E êste mesmo povo, como a própria im
prensa americana observou, recebeu com ceticismo e incre
dulidade o relatório de Kruschev sôbre os crimes dc Stalin.
» Durante vários anos os escritores anticomunistas repetiram
a acusação de que abomináveis campos de trabalho forçado
abrigavam permanentemente entre quinze e vinte e cinco mi
lhões de cidadãos soviéticos; novos e novos milhões substi
tuíam os milhões que iam perecendo ao longo dos anos11.
Segundo tais estatísticas, o total de pessoas encarceradas nos
3a
campos de trabalho, para um período de vinte e cineo anos,
representaria uma estarrecedora proporção da população so
viética. O aprovisionamento e administração dos campos de
trabalho teriam assim constituído, por si sós, a maior e quase
única emprêsa da Rússia*. Que a URSS possa ter mantido,
em tempos normais, tai proporção dc população carcerária;
que mais ainda, o tenha podido durante um período de rápida
industrialização, guerra total o re-industrialização; e que Stalin
tivesse podido manter tal "apoio popular de massas ao mesmo
tempo cm que as dizimava, eis aí, para dizer o mínimo, pro
posições altamente questionáveis.
Quando não era defendida, por um punhado de comunis
tas americanos, como se se tratara do paraíso na terra, era
pintada pelos anticomunistas como um país de terror e misé
rias sem limites. Assim, ó todo um período de visão deformada
da URSS que torna ainda difícil alcançar-se um juízo equilibra
do da sociedade soviética. Sem pretender que as instituições ci
vis e as condições materiais da URSS se igualem às que encon
tramos em certas regiões mais prósperas e liberais das demo
cracias ocidentais, devemos constatar o desenvolvimento sa
lutar do período pós-Stalin, de que são exemplos a melhoria
marcante nas condições de trabalho, pequena mas visível re
dução das mais gritantes desigualdades de salário e renda,
novos o substanciais investimentos cm habilitação, lazer e bens
de consumo, a abolição dc qualquer taxa escolar e universitá
ria, e o prosseguimento de uma política relativamente generosa
do aposentadoria e pensão, assim como dc vigorosos progra
mas de assistÊncia médica e sanitária, que já eram uma carac
terística do período de Stalin12.
Reformas nas leis soviéticas incluíram a eliminação de
certas categorias dc crimes (como o abôrto, o absenteísmo no
' 39
trabalho e as restrições à mudança de emprego)*; o direito à
assistência jurídica antes do julgamento foi ampliado, ao mes
mo tempo em que se estabeleceram procedimentos mais rigo
rosos na avaliação das provas e confissões13. Reformas ainda
mais importantes foram empreendidas na área dos crimes po
líticos: a polícia secreta foi degradada e privada do poder de
investigação criminal a partir de seus próprios regulamentos
e sem supervisão da Procuradoria; foram revogadas as leis que
permitiam julgamentos secretos e na ausência de defensor ju
rídico; a doutrina de Vischinski, segundo a qual, nos casos de
crime de contra-revolução, cabia ao acusado provar sua ino
cência, foi substituída por um nôvo código soviético que atri
bui ao promotor o encargo da prova; não mais constitui crime
a associação inocente com quem planejou ato ilegal; a lei
sôbre os “crimes de contra-revolução” tomou-se menos nebu
losa; o crime de “atos terroristas” ficou restrito ao assassinato
ou injúria grave contra personalidade oficial com a intenção
de derrubar ou enfraquecer a autoridade dos Sovietes; 1957
assistiu à conclusão da total revisão dos casos dos indivíduos
condenados como contra-revolucionários, e à libertação e com
pleta reabilitação de sua esmagadora maioria14. O Prof. Ha-
rold J. Berman, da Escola de Direito de Harvard, emitiu a
seguinte conclusão: “O cidadão soviético está agora protegido
contra o terror policial, as imputações falsas e os julgamentos
forjados numa medida incomparàvelmente maior que em qual
quer época anterior da história russa”15.
Substituições na liderança são hoje possíveis sem expurgos
sangrentos e execuções, como atesta a deposição pacífica de
Kruschev. Intensificam-se os contatos com viajantes e idéias
ocidentais. Em geral, é visível hoje, na sociedade soviética,
40
uma atmosfera nova de bem-estar material, de tranqüilidade
e autoconfiança; ao mesmo tempo, vozes críticas fazem-se ou
vir nos meios governamentais, artísticos e intelectuais. En
tretanto, é incontestável que o autoritarismo burocrático mina
ainda muitos aspectos cruciais da vida oficial e intelectual.
Persiste a vigilância do Partido contra as “ideologias estranhas”
que “caluniam” o sistema soviético, como testemunha a con
denação oficial dc Evtuschenco, o julgamento de Daniel e
Siniavski e a condenação, em 1968, de quatro jovens escritores*.
Tendo constatado tais fenômenos autocráticos numa socie
dade comunista — fenômenos que fazem jus à definição de
“má” — não será por isso que seremos forçados a concluir
serem os homens que governam o sistema incapazes de agir
como os outros mortais e, por conseguinte, insusceptíveis de
serem tratados como tal. A dificuldade que apresenta a po
sição demonológica reside em estar cia baseada numa falsa
concepção do mal; ela não admite que o mesmo dirigente que
executou os sangrentos expurgos dos anos 30 tenha também
instituído os mais avançados programas de assistência médica
e sanitária dos países industrializados, que os mesmos homens
que reprimiram pela fôrça uma revolução popular na Hungria
e ocuparam a Tchecoslováquia tenham também instituído re
formas humanizadoras nos processos jurídico-policiais e pro
movido substancial melhoria nas condições de vida de seu
povo.
41
*
ca . . . sem sequer um simulacro de julgamento regular,
tenha ao mesmo tempo estabelecido um sistema de leis
e um processo judicial justos e aptos a operar com obje
tividade nos casos não-políticos? Não é somente possí
vel: trata-se de um fato. Mas, por que razão tal coisa
nos parece estranha?10
16 Harold J. Berman, “The Devil and Soviet Russia”, op. cit., pág. 7.
* Berman observa: “Cromwell, o grande restaurador das liberda
des na Inglaterra, não tratou os irlandeses com bárbara crueldade? Os
americanos, que lutaram pelos direitos inalienáveis de ‘todos os homens’,
não compraram e venderam escravos?”
17 Bertram D. Wolfe, “Facts and Politics”, in Samuel Hendel, op. cit.,
págs. 565-568.
42
que a URSS, proporcionalmente, dispende mais em saúde, edu
cação e bem-estar do que os países altamente industrializados
do Ocidente, êles qualificam tal fato como um expediente de
poder18. Antes, os soviéticos usavam o poder em detrimento
do bem-estar; agora parece que usam o bem-estar para man
ter o poder.
O sistema comunista é mau porque não se preocupa com
o bem-estar de seus cidadãos ou porque sc preocupa com êle
apenas na medida em que isto sirva a um objetivo que se
considera um mal. Não existe, assim, qualquer sistema de
condições observáveis que possam submeter as proposições
anticomunistas a um teste empírico. E com efeito, não tra
tamos nesse caso com proposições empíricas. Perdura o fato
de que o jgovêrno soviético optou por conceder uma prioridade
razoavelmente elevada ao bem-estar social, e êsse dado não
pode ser negado quando se admite que a maneira de julgar
comportamento consiste em observar o comportamento real
e que a maneira de julgar a política e as prioridades de um
sistema consiste cm examinar sua política e suas prioridades
reais.
A NÂO-CORRESPONDÊNCIA
43
sobrevivência, e não existe uma relação direta simples entre
as ações internacionais e as domésticas.
Mas a questão é exatamente esta. Se não podemos de
duzir a virtude da política externa soviética da simples cons
tatação das reformas na vida interna russa, não podemos,
igualmente, deduzir a iniqüidade da política externa soviética
das considerações sôbre os aspectos autocráticos do sistema
soviético. Freqüentemente, os anticomunistas se referem a
males reais ou imaginários na vida das nações comunistas como
elemento de justificação de sua hostilidade em relação a essas
nações, apresentando os crimes de Stalin como provas prima
fa d e de agressão soviética no exterior (pretendendo, ao mesmo
tempo, que os que vêem na política soviética uma rèação de
defesa face à nossa própria cruzada de guerra-fria estão auto-
màticamente obrigados a serem apologistas de todos os as
pectos da sociedade soviética).
A Inglaterra representa, talvez, a melhor aproximação de
uma democracia política no século XX e em grande parte do
XIX, mas isto diz pouco sôbre a impiedosa exploração e opres
são de seu domínio sôbre a Irlanda, a Índia e a África. O
govêmo de Franco, na Espanha, cometeu, em sua ação polí
tica, econômica e social, os piores abusos já verificados numa
nação ocidental; contudo, as relações da Espanha com os de
mais Estados soberanos têm sido inofensivas e, pode mesmo
dizer-se, respeitáveis*. Nem a histórica e criminosa indiferença
em relação às minorias raciais, nem a atenção tardia e meio
a contragosto recentemente atribuída a essa questão conde
nam ou justificam a política americana em relação à União
Soviética a partir do final da última guerra mundial**.
44
A maior parte da discussão a respeito das nações comu
nistas gira em tôrao desta não-correspondência. O fato de
constatarmos que uma nação apresenta certas virtudes internas
ao lado de seus vícios, ou vícios ao lado de suas virtudes, não
nos diz necessàriamente a maneira de nos relacionarmos com
ela no terreno da política externa, pois suas ações externas
podem ou não ser perigosas para nossa segurança, podem ser
conciliadoras e moderadas ou hestis e antagônicas, independen
temente da medida em que sua vida social corresponde aos
nossos gostos.
Se a razão de nossa oposição aos governos comunistas
reside em serem êles despóticos, então por que não mantemos
uma política de hostilidade em relação às muitas autocracias
não-comunistas? O teórico da guerra-fria pode, aqui, contes
tar que as "ditaduras não-comunistas, independentemente do
que pensemos a respeito dc suas instituições sociais, nao amea
çam nossa própria paz e segurança. A questão, então, é a
seguinte: as nações comunistas ameaçam nossa paz e segu
rança? São elas antidemocráticas em suas instituições intemas?
Voltamos assim às considerações sôbre conspiração interna
cional, ideologia, intenção e ação que ocuparam nossa atenção
nos capítulos precedentes. Algumas respostas já foram suge
ridas, mas conduziremos nossa investigação no sentido de apro
fundá-la com o exame de novos fatos e ficções relativas à
“ameaça comunista”. Antes disso, devemos deter-nos na con
sideração do contexto histórico, cultural e político em que se
desenvolveu o anticomunismo.
45
3
América, a Virtuosa
É uma verdade — que cada homem pode ver, com a
única condição de que o queira — que todos os canais de
comunicação, públicos ou privados, desde a sala de aula,
o púlpito, até a imprensa, estão absorvidos por essa única
idéia, que tôdas aquelas fôrças se conjugam para dissemi
nar: a idéia de que o povo americano é o mais independen
te, inteligente, moral e feliz na face da terra.
Editorial do
T he United States Journal, 1 8 /1 0 /1 8 4 5 .
46
às nossas crenças mais caras como a “mitos” nacionais não
entendemos com isto que elas sejam destituídas de fundamen
tos históricos, nem que sejam traços culturais frívolos. “O
mito”, como observou o antropólogo Bronislav Malinovski, “na
realidade não é uma rapsódia gratuita, não é o produto da
vã imaginação destituída de objetivos, e sim uma fôrça cul
tural extremamente importante”1. Se definimos o mito como
uma história sagrada que ajuda a sustentar e codificar uma
crença, outorgando santidade às origens e ao destino de um
povo, o americano moderno será, então, não mais liberto da
mitologia do que o primitivo trobriander.
47
mílton. As verda*des que capitaneiam as fôrças de indepen
dência são “evidentes por si mesmas”, “as leis da natureza e
o Deus na natureza”, escreveu Jefferson em sua Declaração.
“Ainda existe uma opção aberta para os Estados Unidos”,
acreditava Washington. “É preciso que muitas centenas de
anos passem”, disse John Adams, “antes que sejamos corrom
pidos. Nossa república federativa pura, virtuosa e orientada
pelo espírito público existirá eternamente, governará o globo
e introduzirá a perfeição do homem”2. Contudo, os Founding
Fathers eram suficientemente realistas para reconhecer que
anjos não governam homens e mesmo os virtuosos têm seus
vícios. Se a mão de Deus ofereceu a opção, era a mão do
homem que devia moldar a concretização cuidando da “ne
cessidade de precauções auxiliares”. O futuro dependia de
arranjos institucionais — a Constituição, as leis, a qualidade
da política e da liderança — que impediriam e dissipariam os
impulsos humanos corruptores.
Documento prudente, elaborado por homens que estavam
conscientes das imperfeições individuais e institucionais, a Cons
tituição deveria, não obstante, tomar-se objeto de devoção na
cional por parte do espírito popular. O país, o povo e o
sistema constitucional passaram a fazer parte de algo mais
amplo chamado o modo de vida americano, algo nunca defi
nido explicitamente porque sua existência foi amplamente su
posta como evidente por si mesma*3.
48
A CULTURA CAPITALISTA E O SONHO AMERICANO
49
Um sistema de crenças e os interêsses institucionais que
o suportam e são suportados por êle tendem a identificar-se
com outras instituições e símbolos sacrossantos. “O Sistema
da Livre Emprêsa” tomou-se inseparàvelmente associado aos
símbolos Nação, Democracia, Família, Igreja e Ordem. Houve
um tempo, no fim do século XIX, em que um magnata podia
lamentar-se da hostilidade revelada pela “massa do povo dêste
país” em relação às corporações4. E Theodore Roosevelt podia
ganhar apoio popular com uma agitação em tôrno da economia
dos trustes; no Comitê Nye, que investigava, em 1934, a in
dústria de armamentos, os congressistas podiam denunciar os
“aproveitadores da guerra” e Franklin Roosevelt manifestar
desprêzo pelos “plutocratas”. Mas, independentemente do flu
xo e refluxo do sentimento público, a cultura empresarial ja
mais foi sèriamente contestada por um ethos americano hostil.
Após a Segunda Guerra Mundial, embora as referências a uma
“economia mista” e a um “estado do bem-estar” se fôssem tor
nando mais respeitáveis, a economia d&s corporações passou
a gozar de popularidade tão grande como nunca antes em nos
sa história. Hoje, ataques contra a “livre emprêsa” são com
freqüência identificados pela opinião pública com o antiame-
ricanismo. O capitalismo é encarado como uma condição ne
cessária — às vêzes mesmo como causa suficiente — da liber
dade política, contraposta a uma única alternativa, a da “tirania
comunista”. A Associação Nacional dos Industriais publicou
um estudo em dois volumes sôbre a emprêsa privada, onde se
diz: “Duas . . . coisas foram de importância excepcional e
dominante em nosso desenvolvimento: nosso sistema de demo
cracia representativa e nosso sistema de emprêsa individual.
. . . Inevitàvelmente e irrevogàvelmente, estas duas coisas estão
sempre uma ao lado da outra”6.
50
Contrapondo o capitalismo democrático e o socialismo
despótico como alternativas únicas, a ideologia americana ne
gligencia os exemplos de socialismo democrático (Israel e
Suécia, por exemplo) e de capitalismo despótico (Espanha,
Portugal, África do Sul & a maior parte da América Latina).
O capitalismo não é causa suficiente nem condição necessária
da democracia. O capitalismo prosperou sob sistemas políticos
democráticos e ditatoriais, foi favorecido pelo apoio incondi
cional de ambos, reconhecendo em sua prática, quando não em
sua retórica, não existir uma relação direta inevitável entre
sistema político e sistema econômico.
Ao mesmo tempo em que se apresenta como uma expres
são da tendência natural e universal ao lucro, o capitalismo
americano também pretende ser algo de único no mundo. Êle
credita a si mesmo ter forjado “o arsenal da democracia”, a
máquina industrial-militar que guarda nossas fronteiras na
luta contra o comunismo e se considera como parte essencial
daquilo que deve ser defendido. Como um democrata liberal
de New York afirmou: “A menos que se compreenda que a
guerra no Vietnã é apenas outro episódio na série de confron
tações que já dura vinte anos entre as maiores potências da
Terra — o capitalismo democrático e o comunismo oligárquico
— não se compreenderá o que está ocorrendo em qualquer
parte do mundo moderno e, muito menos, no Vietnã”0.
O sistema da emprêsa privada, afirma-se, cria igualdade
de oportunidade, gratifica aquêles que mostram capacidade e
iniciativa, relega com justiça os parasitas e indolentes para o
ponto mais baixo da hierarquia, possibilita a prosperidade na
cional que provoca inveja nas demais nações, salvaguarda (por
meios não especificados) as liberdades civis individuais e a
liberdade política, promete progresso contínuo na proliferação
infinita de bens e serviços e transformou a América na grande,
feliz e bela nação que é. A medida em que o americano co
mum assimilou tal credo é demonstrada pelos Lynd que, em
seu estudo sôbre Middletown constataram a tendência entre
os operários a assumir, durante a depressão, uma responsabi
51
lidade pessoal por sua situação de desemprego. Embora re
conhecessem que os “tempos eram ruins”, os trabalhadores en
tendiam ser o sistema menos culpado do que os indivíduos que
mostravam suas capacidades no mercado7.
Em seu estudo sôbre New Haven, Robert Lane descreve
os operários que entrevistou em 1957 como sêres torturados
por ansiedades financeiras, engajados numa permanente ba
talha por maiores rendas e maior nível de consumo. Contudo,
o igualitarismo econômico, tal como supostamente ofereciam
o socialismo e o comunismo, não tinha lugar em sua concepção
de vida. A igualdade de rendas, descobriu Lane, ameaçava
privá-los daqueles objetivos que davam sentido a sua vida
( “subir na vida”, “melhorar”), suprimindo os padrões de classe
e status através dos quais êies próprios se situavam na socie
dade e onde viam a ordem e a segurança do mundo. Conven
cidos de que cada pessoa, rica ou pobre, recebia muito mais
do que fazia por merecer, consideravam o sistema vigente como
o melhor de todos os mundos8.
A atitude desses operários em relação à propriedade e à
economia das corporações era, em muitos aspectos, semelhante
à que se podia esperar da elite gerencial. E o mesmo se veri
fica em relação ao movimento trabalhista americano que, ao
longo das décadas, opôs-se aos programas radicais, dando de
cidido apoio ao sistema de empresas privadas e concentrando
suas atividades em reivindicações exclusivamente materiais e
primárias, almejando atingir os níveis de consumo da classe
média. Como os dirigentes do mundo dos negócios, da polí
tica, da vida militar e da educação, o trabalho organizado está
sob o império da ortodoxia anticomunista americana*.
52
Na América, existe de fato uma sociedade “sem classes”
— no sentido de que, pràticamente, todos os americanos são
adeptos do credo empresarial e estão dedicados ao individua
lismo aquisitivo do mercado competidor e à corrida por um
melhor lugar na escala do consumo. Aos problemas sociais
são dadas soluções indivfduais, e o progresso nacional é ava
liado em termos de acúmulo de bens, serviços e rendas. A
América é o lugar onde o Sonho está sempre se tomando rea
lidade. A opção, segundo anúncio publicitário de uma em
prêsa, é bastante clara:
O PIEDOSO E O ÍMPIO
53
diálogo e o íespeito mútuo parecem desenvolver-se entre mar
xistas e cristãos. Mesmo nas nações da Europa Oriental os
governos desejam alcançar uma espécie de acomodação com
a Igreja, e o líder soviético Gromyko pode usufruir de uma
amigável audiência com o Papa. No Vietnã do Norte, segundo
diversos observadores europeus e americanos, católicos e bu
distas cooperam amistosa e abertamente. Apesar de todos êstes
indícios, citações de Marx ou Lênin são com freqüência con
sideradas suficientes para fundamentar o argumento de que
os comunistas são inimigos implacáveis da religião. Os ame
ricanos, pelo contrário, são os sustentáculos confessos da re
ligião*. Sejam ou não devotos praticantes, há entre êles am
pla concordância no sentido de ser a religião uma coisa boa
e necessária.
Não existe, nos Estados Unidos, uma Igreja oficial, mas,
como observa Will Herberg, a religião per se, representada
pelas crenças mais importantes, está a tal ponto identificada
com o patriotismo que se transformou numa espécie de esta
blishment não oficial10. Como o capitalismo, a religião ligou-se
a símbolos poderosos e que ultrapassam' a sua esfera própria.
“A religião e a democracia caminham de mãos dadas”, afirmou
o Vice-Presidente Barkley. “Em minha opinião, a fé religiosa
continua a ser nossa maior riqueza nacional”, afirmou Adiai
Stevenson, que foi mais longe ao descrever os americanos cQ m o
os “guardiões ordenados” de uma crença que remonta aos
profetas do Velho Testamento11. A confissão particular de cada
um carece de maior importância, já que o casamento Igreja-
Estado é do tipo não-sectário, fazendo confluir tôdas as cren
ças ao mesmo Deus e ao mesmo Americanismo.
* Stouffer (op. cit.) revela que apenas trinta e sete por cento
de nossos cidadãos estão dispostos a permitir que alguém manifeste pít-
blicamente criticas à religião e às igrejas; Milton Yinger observa que
aproximadamente sessenta e cinco por cento da população freqüenta
igrejas, embora noventa e sete por cento acreditem em Deus. Ver: So-
ciology Looks at Religion (N ew York, Macmillan, 1961).
10 W ill Herberg, Trotestant-Catholic-Jew, Garden City, New York,
1960-11 „
Sôbre as declarações de Barkley e Stevenson, ver New York
Times, 15 de agôsto e 15 de setembro de 1952.
54
O que temos na América é a religião do nacionalismo e
a nacionalização da religião. Cêrca de um século atrás, escrevia
o profético Tocqueville:
O ESPÍRITO VIGILANTE
56
se referia à maior parte de seus contemporâneos quando con
siderou a América “a pátria dos oprimidos” descrevendo ao
mesmo tempo os recém-chegados como uma “turba heterogê
nea, incoerente, desorientada”, pronta tanto a apoiar governan
tes despóticos quanto a “assimilar princípios de extrema li-
cenciosidade”17. »
Ao bem-nascido da era federalista, o jacobinismo surgia
como a pior das conspirações do Velho Mundo, pregando “ma
quinações traidoras e secretas contra o govêrno” e envolvendo
“aquêles que corrompem nossa opinião. . . o mais perigoso de
todos os inimigos”. Durante a maior parte do século XIX,
os nativistas consideraram o fluxo de camponeses irlandeses
pobres e analfabetos como uma “conspiração papal”, um “com-
plô do Papa”, para destruir a República. A histeria das cru
zadas contra os católicos e contra os imigrantes era, às vêzes,
superada por um alarma mais geral contra o “radicalismo es
trangeiro”. O Immigration Act de 1903 constituiu-se na pri
meira de uma série dc medidas governamentais contra os es
trangeiros de nascimento, que permanecem até hoje em vigor
e que incluem coisas como as chamadas “batidas” de Palmer,
a vigilância policial sôbre os indivíduos, detenções sem man
dato judicial e sem interrogatório, interrogatórios sem assistên
cia jurídica, julgamentos sem rigor processual, inexistência de
garantias contra êrro judiciário, oontra a presunção e a depor
tação sumária. Do ponto de vista “positivo”, proliferaram os
programas “educacionais” chauvinistas, de iniciativa federal,
estadual e local, difundindo entre os núcleos de estrangeiros
o chamado “americanismo cem por cento”.
O imigrante tradicionalmente conservador, temeroso da
autoridade, confinado aos limites de sua comunidade étnica e
possuído por secular aspiração à segurança e a ganho modesto,
constituía material pouco adequado à subversão e à revolução.
Não obstante, das leis sôbre estrangeiros e subversão de 1798
( Alien Act e Sedition Act ) à legislação McCarren-Walter de
1954, quase sempre aceitamos a existência de uma afinidade
intrínseca entre o estrangeiro e o radical. Se nem todo estran-
’ 57
geíro era necessàriamente um radical, todo radical era de certo
modo, um estrangeiro, ou seja, um não-americano, ainda que
proviesse dos mais antigos originários do país, como era fre
qüentemente o caso.
É portanto evidente que a atitude anticomunista não emer
giu subitamente nos anos que se seguiram à Segunda Guerra
Mundial como reação de defesa face à “ameaça soviética”; há
muitas décadas ela está presente entre nós. Em 1919, o emer
gente espectro bolchevique provocou tremores em todo o mun
do burguês. Tendo poucos investimentos na Rússia, os capita
listas americanos sofreram desapropriações irrisórias por par
te dos bolcheviques, mas isto não os impediu de ver na
revolução soviética a representação de uma ordem sócio-política
que desafiava, de modo essencial, o seu próprio sistema. Por
essa razão, a comunidade dos negócios pôde apoiar a participa
ção americana na intervenção armada contra os revolucioná
rios bolcheviques enquanto, mais tarde, daria mostras de uma
indiferença benigna à eclosão de insanidade na Alemanha
nazista. Contràriamente aos sovietes, Hitler não surgiu como
alguém que estivesse atacando as instituições do lucro e da
propriedade.
Em 1919 e nos anos que se seguiram, a plutocracia, a im
prensa, o púlpito, a Universidade, o Presidente, o Congresso e
outras organizações institucionais da sociedade se empenharam
em alertar a população contra a ameaça que despontava. Co
missões de investigação do Senado ouviram testemunhas que fi
zeram terríveis relatos sôbre as condições reinantes na Rússia;
Robert Murray oferece uma boa descrição de tais audiências:
58
Testemunhos antibolcheviques inundaram as colunas
dos jornais do país e, uma vez mais, o público foi bom
bardeado em escandalosas histórias de amor livre, na
cionalização de mulheres, massacres sangrentos e atro
cidades brutais. Circularam histórias segundo as quais
as vítimas do bolcheVismo eram assadas até a morte em
fornalhas, escaldadas no vapor, despedaçadas lentamente
ou a machadadas. Qs redatores dos jornais jamais se
cansavam de referir-se aos comunistas russos como “as
sassinos e loucos”, “escória humana”, “bestas". A Rússia,
diziam alguns, era um lugar onde maníacos vagavam
em desvario pelas ruas, e a plebe disputava com os cães
cadáveres em putrefação. ...O s jornais cobriam êstes
relatos sensacionalistas com títulos gigantescos: “P e r ig o
V e r m e l h o e n t r e n ó s ”, “P l a n e j a m a R e v o l u ç ã o S a n
g r e n t a ”, e “Q u e r e m D e r r u b a r o G o v e r n o d e W a s h in g
t o n ”18.
59
Os inquéritos legislativos ad hoc dos anos 20 e 30 levaram
à formação, em 1938, da Comissão de Atividades Antiamerica-
nas. Depois da Segunda Guerra Mundial, as atividades anti
comunistas atingiram novas proporções. Funcionários do go
vêmo e cidadãos privados — desde físicos até lutadores de boxe
— tiveram sua vida particular e suas opiniões cuidadosamente
examinadas por comissões legislativas, orgãos de segurança do
govêmo, pelo F B I e, algumas vêzes, pela polícia local. Milhões
viram-se diante da exigência de assinarem declarações de leal
dade. Processos nos têrmos do Smith Act, julgamentos por
subversão e indiciamentos durante os anos 50, seguidos de pro
cessos contra advogados de defesa na década dos 60 deram à
América um número crescente de prisioneiros políticos. Um
Congresso dominado pelos democratas aprovou, em 1950, por
esmagadora maioria, o McCarran Internai Security Act que, en
tre outras coisas, autorizava a construção de campos de con
centração para internar, sem processo e sem julgamento, todos
os suspeitos de “subversão” nas situações de “emergência na
cional”, declaradas pelo Presidente ou pelo Congresso. Dentre
os seis campos construídos em 1952 diversos foram mantidos
em prontidão para uso imediato; outros locais de detenção fi
cavam disponíveis para imediata “ativação”*.
Na década dos 60, algumas das expressões mais histéricas
do “vigilantismo” escassearam sensivelmente, mas o anticomu
nismo não revelou tendência ao desaparecimento como fôrça
política de repressão. A Lei Medicare, aprovada pelo 89.° Con
gresso como parte do Great Society Program, continha uma cláu
sula (mais tarde revogada) negando ajuda hospitalar às pes
soas registradas nos têrmos do McCarran Act. O mesmo Pro
curador-Geral liberal, Katzenbach, que sugerira anteriormente
a rejeição pelo Congresso dos critérios de registro do McCar
ran Act, deu início a um processo formal que tinha como obje
60
tivo forçar o DuBois Club a registrar-se como organização co
munista®. Pouco depois, uma sede do DuBois Club em São
Francisco sofreu um atentado à bomba, e outra, no Brooklin,
foi atacada por baderneiros da vizinhança, que espancaram os
membros do clube; êstes tiltimos foram detidos pela polícia,
enquanto os assaltantes se dispersavam sem serem tocados pe
los representantes da lei. Em numerosas manifestações pela
paz, em todo o país, seus participantes eram atacados e agre
didos: a polícia pouca proteção oferecia e não efetuava prisões.
Quando a direção da escola de Des Moines suspendeu cinco
estudantes secundaristas porque freqüentavam as aulas por
tando uma braçadeira negra em sinal de luto pelos mortos
no Vietnã e em apoio à trégua natalina, informou-se que as
autoridades escolares
61
que deveriam ter sido suspensos... “Fomos alvos de
uma tentativa de intimidação pela ameaça de violência
e oferecemos aos rufiões a oportunidade de revelarem
sua influência na determinação da política educacional”21.
62
tatou-se numerosos casos de vigilância secreta, exercida por
alunos, sôbre os professores durante as aulas; de solicitações
do F B I pedindo informação sôbre alunos; da recusa de muitas
faculdades em fornecer consultores a grupos políticos estudan
tis impopulares no meio; a relutância dos professores em ex
primir opiniões consideradas impopulares e sua tendência a
aconselhar os estudantes a guardarem tais opiniões para si mes
mos22. *
No campus de muitas faculdades, o temeroso silêncio dos
anos 50 foi substituído, na década seguinte, por manifestações
abertas contra a guerra do Vietnã. Mas, pràticamcnte tôdas as
faculdades colaboravam ainda com os agentes do F B I à pro
cura de informação sôbre estudantes. Na Universidade de Du
ke, um estudante confessou espionar seus colegas pacifistas, a
serviço”do FBI. Na Universidade Estadual de New York, em
Brockport, membros da congregação revelaram ter o F B I pro
curado recrutá-los para fornecer informações sôbre seus colegas
que tomassem parte em manifestações contra a guerra; acres
centaram que cinco professôres universitários aceitaram o job.
O presidente da Brigham Young University admitiu ter a uni
versidade recrutado, em 1966, certo número de estudantes para
espionarem professôres liberais, dos quais seis foram forçados
a pedir demissão. Em instituições de todo o país, da Univer
sidade de Connecticut à da Flórida, contratos eram recusados
a professôres em virtude de suas atividades políticas. Na Uni
versidade dc Temple, um grupo de manifestantes pró-paz foi
dominado por quatrocentos colegas que, cantando Matem, o viet,
lançava tomates e ovos, rasgava cartazes e espancava os ma
nifestantes. Na Universidade do Nôvo México, estudantes e
moradores da cidade apedrejaram e atacaram um pequeno
grupo de manifestantes pró-paz da SDS (Estudantes por uma
Sociedade Democrática)* . Em 1965, na Universidade de
Comell, quatro estudantes foram punidos por distribuírem li
teratura favorável à FLN (Frente de Libertação Nacional, do
64
golpe comunista no próprio país e no exterior, quando a sua
pequena Noruega, vizinha da União Soviética e contando com
um Partido Comunista substancialmente maior que o PC ame
ricano, não dava o menor sinal de semelhante fobia. Pode
mos, aqui, sugerir uma conjetura: como qualquer povo, os
noruegueses devem ter uma boa opinião dc si mesmos; mas
êles não estão, como os americanos, sob o pêso da convicção
de serem uma dádiva única dc Deus à humanidade, os guar
diões da Liberdade, uma nação dotada do “Mais Perfeito Sis
tema”, etc. Desprovidos de qualquer ilusão muito particular
de virtude, os noruegueses vivem sem o temor de tornar-se
vítima de algum mal muito particular. Convencidos de que
nosso país ocupa posição única c invejável num mundo de
necessidades e degradação, os americanos, confrontados com o
fermento revolucionário contemporâneo, tendem a encará-lo
não com objetividade, mas partindo da convicção de que tais
sublevações representam arremetidas, reais ou potenciais, de
um inimigo global contra o Modo Americano de Vida.
Americanos mais refletidos começam a reconhecer o que
existe de sábio na observação do senador Fulbright: “. . . Não
somos os escolhidos por Deus para salvar a humanidade; somos
apenas uma parcela mais bem sucedida c afortunada da hu
manidade, dotados por nosso Criador de igual capacidade para
o bem e para o mal, nem mais nem menos do que o resto da
humanidade”24. Mas um número demasiado grande de nossos
compatriotas, de posição, importante ou humilde, permanece
surdo a essa modesta advertencia.
66
Beard tenham deixado as novas gerações “espiritualmente des
preparadas para a guerra em que tinham de combater”. No
mesmo sentido, um estudioso da história diplomática america
na, Samuel F. Bemis, afirmou a seus colegas que, quando a
América sofre o constante ataque do exterior, não devem os
homens de ciência contribuir para a obra do inimigo da nação1.
Todavia, um exame do que ocorre na maioria das escolas
americanas deveria tranqüilizar os professôres Read, Morison
e Bemis. Freddie Maynard, professor, após a leitura dc dois
mil ensaios redigidos por estudantes do último grau do secun
dário por ocasião do exame final de inglês, em 1967, concluiu:
67
Os comunistas não se preocupam com a p a z .. . Os
comunistas esperam que o homem da rua pense ser im
possível que êles, comunistas, estejam preparando a
guerra enquanto falam tanto e tão lindamente sôbre a
paz. . .
As pessoas que crêem em uma coisa e dizem outra
são chamadas hipócritas. Os comunistas estão entre os
maiores hipócritas da história...
. . . Os anos que precederam a Segunda Guerra
Mundial deram provas mais do que suficientes da deter
minação dos sovietes de destruir os Estados Unidos e
tudo aquilo que defendemos. . .
Deve ser reconhecido, evidentemente, que a grande
ameaça comunista nos Estados Unidos não vem daqueles
que pertencem abertamente ao partido. Pelo contrário,
os mais perigosos comunistas são aqueles que há muito
tempo se mantêm à margem do partido ou talvez nunca
constaram de seu fichário. Êstes (e provàvelmente ou
tros enviados para êste país pela' URSS) aguardam o
dia em que receberão a ordem para destruir as reprêsas,
pontes, fábricas e instalações militares dos Estados Uni
dos. Até lá, tentarão viver o mais quietamente possível.
Não querem atrair atenção sôbre sua pessoa, o que cer
tamente aconteceria caso aderissem ao partido. . .
Os comunistas chineses. . . estão desejosos de cor
rer o risco da guerra atômica porque a China é um país
atrasado com cêrca de setecentos milhões de habitan
t e s ... Naturalmente, dezenas de milhões de chineses
morreriam nessa guerra, mas isto não preocupa parti
cularmente os dirigentes comunistas chineses8.
68
te dos filmes em série da televisão sôbre os diabólicos cons
piradores e espiões comunistas; e ainda lerá os editoriais e as
reportagens de seus jornal diário, que confirmarão sua noção
anticomunista preconcebida do mundo. Se êle tiver a rara
oportunidade de um confronto direto com o objeto de suas
ansiedades, ela se revelará bastante edificante. Durante a
primeira década da guerra-fria, as viagens à União Soviética
foram com freqüência a dcasião de consideráveis surpresas.
Conta Harold Berman que, das dezenas de turistas americanos
que encontrou em Moscou, de 1955 a 1957 (quando tais via
gens eram relativamente inoomuns), e que incluíam jornalis
tas, professôres, especialistas em assuntos soviéticos e parla
mentares, todos consideravam as condições bem melhores do
que haviam esperado. “Muitos disseram, entre embaraçados
e irônicos: ‘O que é que eu vou dizer quando voltar para os
Estados Unidos?’ ” As restrições soviéticas ao turismo e sua
atitude de suspeita em relação aos estrangeiros contribuíram,
é certo, para a formação destas falsas noções no Ocidente; mas
não há dúvida de que as distorções do jornalismo americano
carregam parte importante da responsabilidade. Observe-se
êste incidente narrado por Berman:
»
69
parecido felizes mas na realidade não o poderiam estar
em virtude dos males do sistema sob o qual vivem4.
70
cinza de pensar e, assim, redatores e repórteres têm de
escrever nessa direção.
(Sr. Doyon, da França): Há neste país, grande re
ceio moral de trair o código americano. Com exceção
de umas poucas revistas semanais, ninguém na imprensa
tentaria assumir uma posição pública diferente da po
sição dos principais proprietários de jornais c dos polí
ticos. Isto seria considerado antiamcricano, comunista,
impatriótico. Qual o pequeno proprietário de jornal das
pequenas cidades — o qual, além do mais, é comumente
mal informado — que tentaria assumir uma atitude con
siderada impopular? Êle não pode fazê-lo. É um pri
sioneiro do sistema5.
71
cativa, sobrevinda após a morte de Stalin. Durante muitos
anos, anos decisivos, a maioria dêles recusou-se a ver na cisão
sino-soviética mais do que uma “querela de família”. Muitos
ainda hoje, relutam em reconhecer ou dar importância às tran
sições liberalizantes no seio da sociedade soviética. Antes de
visitar Moscou em 1967, o escritor Stanley Kunitz procurou
ouvir o conselho dêsses especialistas:
72
nossa: nada podem aprender de significativo em nossos
livros sôbre a política soviética e, a julgar por êsses, os
de vocês não são muito melhores. Esta obsessão com a
verhuchka, (a clique dominante), com a conspiração e a
intriga. E esta ênfase anti-soviótica por tôda parte. Os
seus escritores odeiam de tal modo nosso ‘regime’, em
nosso nome, que por estarem obcecados com as árvores
não vêem a floresta”7.
73
de uma nação que enfrentava as emergências potenciais de
guerras quentes e frias. À base das necessidades da guerra-
fria, educadores liberais defenderam maior número de progra
mas de estudo sôbre o comunismo e a Rússia; especialistas em
lingüística e em regiões reinvindicaram um treinamento mais
extenso em línguas; altos funcionários governamentais exigiram
a formação de um número maior de cientistas; os defensores
do livre comércio pressionaram no sentido de relações econô
micas mais estreitas com outras nações ocidentais; os jorna
listas reivindicaram a liberdade de viajar a países que estavam
sob proibição do Departamento de 'Estado; emprêsas marítimas
e aéreas solicitaram e receberam importantes subsídios; espe
cialistas em educação física reclamaram programas de "apti
dão física” para os jovens americanos. Os defensores dos di
reitos civis argumentaram que uma nação em concorrência
com o comunismo pela lealdade dos dois terços de côr da
humanidade não pode permitir-se praticar o racismo em casa
(argumento que reduz a ética da fraternidade a um expedien
te anticomunista).
De modo mais geral, proelamou-^e que a construção de
uma “América melhor”, em tôda as esferas, significava cons
truir uma “América mais forte”, significava o fortalecimento
do arsenal material e espiritual do mundo livre. ( No primeiro
debate Kennedy-Nixon de 1960, ambos os candidatos racioci
naram sôbre a importância do bem-estar interno exatamente
nesses têrmos de guerra-fria). “ .. .A existência da Rússia como
nosso Grande Rival parece ter-se tornado a principal razão, na
América, para pensar em qualquer coisa”, queixou-se David
Bazelon e, para demonstrar isto, prosseguiu insistindo em que
se pensasse sèriamente sôbre a economia americana “ou, do
contrário, seguramente trairemos a promessa do futuro e, tam
bém, fracassaremos na guerra-fria”10. Restou a Averell Har-
riman, ex-embaixador na URSS, sugerir que o dinamismo
americano de fato deve ser grato à “ameaça comunista”. Mais
de uma vez êle observou que nós, americanos, ao invés de
74
lamentar deveríamos agradecer a existência da União Soviética,
pois ela nos impeliu a novas conquistas e nos impediu de tor-
narmo-nos complacentes e ociosos. Assim, nossos temores se
transformaram em nossas virtudes. .
O APÊLO ÀS ARMAS*
75
govêmo, por meio de impostos, e em seguida canalizadas para
as maiores corporações (as dez maiores empresas recebendo
cêrca de dois quintos do total dos contratos de fornecimento
bélico), centralizando ainda mais a riqueza.
“Um imenso império industrial se desenvolveu”, observa
Cochran, “tendo como único cliente o govêmo e operando sem
riscos”12. O govêrno usa o dinheiro do contribuinte para assu
mir ou subsidiar o capital de risco, em favor de empresas pri
vadas, nos ramos da tecnologia militar, da energia atômica, da
astronáutica, da eletrônica e de computadores. “Os cofres do
impôsto público absorvem, assim, aquêles riscos que nossa mi
tologia, de modo mais fantasioso, atribui ao empresário par
ticular. . . Socialismo para os ricos, a expensas dos pobres:
eis a versão americana de Marx”13. Em 1968, os lucros das
corporações provenientes dos contratos de fornecimento bélico
atingiam cêrca de quatro e meio bilhões de dólares anuais14.
A influência de nosso poder militar em lugar algum é
tão pesadamente sentida como na comunidade acadêmica. Seria
difícil encontrar na América uma instituição de ensino supe
rior de importância que não destine espaço, fundos de cons
trução e verbas para pessoal a programas financiados pelo Pen
tágono ou por outras agências da guerra-fria e que, em contra
partida, não extraiam mais de oitenta por cento do seu orça
mento dessas mesmas fontes governamentais. “Estas univer
sidades devem manter seus projetos governamentais de pesquisa
ou enfrentar a bancarrota”, é a conclusão de Edward Greer15.
Pelo menos noventa universidades e colleges estão pesquisan
do ativamente problemas como armamento contra-insurrecional,
comunicações em combate, disposição de tropas, sistemas de
comando-contrôle, técnicas de desmatamento, fatôres topográ
ficos e climáticos importantes nas operações contra-insurrecio-
nais, estratégias de segurança intema e de ação contra mani
76
festações de levante popular, métodos de controle e redistri-
buição da população, sistemas de detecção sísmica e magnéti
ca. Pelo menos cinqüenta e seis delas estão empenhadas em
pesquisas sôbre a guerra química e biológica10. “Os cientistas
acadêmicos”, observa Cathy "McAffee, “se vêem diante de cres
cente dificuldade para prosseguir sua carreira sem contribuir
para os trabalhos (de defesa). Não apenas dependem material
mente dos contratos governamentais, como são freqüentemente
forçados a se envolverem nos projetos de defesa simplesmente
para conseguirem acesso às informações e aos equipamentos
de que necessitam para pesquisar”17.
Um número crescente de cientistas sociais participa de
programas financiados pelos órgãos federais da guerra-fria,
programas° que incluem estudos psicológicos, sociológicos, eco
nômicos e políticos sôbre as técnicas da contra-revolução e de
manipulação da opinião pública americana e estrangeira. Em
centenas de conferências e milhares de livros, brochuras e ar
tigos escritos por membros da comunidade intelectual direta
ou indiretamente pagos pelo govêmo, a propaganda da guer
ra-fria recebe uma auréola de objetividade acadêmica, com
pletada com ornamentos estatísticos e sociológicos. Projetando
uma sombra em sua própria integridade de cientistas e pro-
fessôres, êsses intelectuais transmitem a um público inadver
tido a visão oficial da realidade e o senso do Pentágono de
sua própria indispensabilidade e de sua dedicação à perpétua
luta anticomunista*.
77
Testemunhando diante da Subcomissão Rooney, do Con
gresso, o funcionário Reed Harris, da USIA ( United States
Information Agency), descreveu o programa de seu departa
mento de publicações como um programa “sob o qual podemos
ter livros escritos segundo nossas próprias especificações, livros
que de outro modo não surgiriam, especialmente aqueles com
forte conteúdo anticomunista; podemos ainda cobrir outros
temas, particularmente úteis para os nossos objetivos. Com
o programa de publicações, controlamos a coisa desde a pró
pria idéia até a edição do manuscrito”18. Nenhuma menção
íública é feita, contudo, sôbre as ligações da agência com o
Í ivro. Outro funcionário da USIA afirmou que a agência ten
tava recrutar escritores “de fora” de renome e que não fôssem
estreitamente ligados ao govêmo: “Com isto se obtém maior
credibilidade”. Existem sérias provas de que uma parte do
dinheiro destinado pela USIA e por outros órgãos a pagar es
critores e jornalistas tenha, na realidade, saído dos cofres da
CIA ( Central InteUigence Agency). Praeger admitiu publica
mente ter escrito “quinze ou dezesseis livros” encomendados
pela CIA19.
A proliferação de corporações “independentes” financia
das pelo Pentágono, tais como a Rand e o Hudson Institute,
os “tanques de pensamento” que resolvem os problemas mili
tares técnicos e legísticos contra pagamento em dinheiro, são
testemunhas do crescente papel representado pelos não-milita-
res. Os serviços das fôrças armadas, progressivamente inca
pazes de fornecer a totalidade da capacidade intelectual de
78
que necessitam, simplesmente compram tais recursos humanos
nas universidades, corporações e instituições de planejamento.
“O significado disto”, observa Jules Henry, “está, não em que
os militares estejam sendo afastados da guerra, e sim em que
os civis estão sendo atraídos para e la .. . ”20 É uma realidade
estarrecedora a de que cêrca de dois quintos de tôda a pes
quisa técnica, na América, vem sendo consumida pelos mili
tares. *
Milhões de outros americanos que vivem, direta ou indi
retamente, dos bilhões do Pentágono comprometeram a si mes
mos na corrida armamentista. “Cada distrito e cada Estado,
cada união sindical e cada proprietário de loja recebe uma
parcela dos gastos atuais realizados em nome da ‘defesa’ ”, se
gundo o parlamentar J. L. Witten, da Subcomissão do Orça
mento cie Defesa. Os protestos dos congressistas — submeti
dos a uma constante e violenta pressão por parte dos eleitores
— reclamando o fechamento, em 1965, de grande número de
bases militares obsoletas e de dois estaleiros da Marinha, eram
uma reação à crescente dependência econômica civil em re
lação aos fundos do Pentágono. Os gastos com a defesa foram
duas vêzes mais importantes que os investimentos privados
destinados à expansão da economia americana desde 194821.
Levando em conta o efeito multiplicador de cada dólar dis-
pendido e a rêde de serviços subsidiários que se alimentam
indiretamente do dólar gasto com a defesa, aproximadamente
um quinto de tôda a atividade econômica americana tem de
pendido dos gastos bélicos22.
Entre três quartos e quatro quintos de todos os orçamen
tos federais consistem de dotações militares, e isto não inclui
os vinte bilhões de dólares anuais destinados a cobrir despe
sas relativas às guerras passadas, ou seja, os juros da dívida
nacional, pensões de veteranos, etc. O Pentágono dispõe de
mais pessoal e dinheiro que todos os outros departamentos,
79
agências e serviços governamentais reunidos. Apesar da muito
propalada reorganização do Departamento da Defesa, em
preendida pelo ex-secretário McNamara, durante os primeiros
cinco anos de sua administração, o orçamento militar cresceu
trinta e três por cento e, no curso de seu sexto ano, os gastos
oom a guerra do Vietnã (cêrca de trinta bilhões) por si sós
dobravam pràticamente o orçamento. Nas duas décadas que
se seguiram à Doutrina Truman, perto de novecentos bilhões
de dólares foram gastos com as guerras passadas, presentes e
futuras.
Já em 1960, o Pentágono possuía mais de trinta e dois
milhões de acres de terra nos Estados Unidos e 2,6 milhões
em países estrangeiros — área superior à dos estados de De-
laware, Connecticut, Rhode Island, New Jersey, Massachusetts,
Maryland, Vermont e New Hampshire reunidos. Os Estados
Unidos construíram um império militar ultramarinho que su
pera em muito todos os impérios anteriores; são a única nação,
em tôda a história, a ter implantado bases militares em todos
os continentes habitados e a manter umá frota em cada mar
aberto; seus bombardeiros, armados com bombas nucleares, so
brevoam milhares de milhas, desde os céus americanos até o
espaço aéreo de países freqüentemente vizinhos dos comunis
tas; os Estados Unidos treinam, aprovisionam e financiam. as
fôrças militares de muitos outros países. “Armas e equipamen
to militar”, nota a revista Forbes, “constituem um dos mais
importantes itens das exportações dos Estados Unidos. Sem
isto, poucas emprêsas de material bélico ganhariam todo o di
nheiro que atualmente ganham”. De 19K3 a 1967, os Estados
Unidos venderam ou deram a outras nações cêrca de trinta e
cinco bilhões de dólares, a título de assistência militar; com
isto, êles se constituíram no maior produtor e fornecedor de
instrumentos de violência.
Se definirmos “estado militar” como uma comunidade que
destina a maior parte de seus recursos públicos a objetivos de
guerra, a América é, então, um estado militar, a mais poderosa
potência militar da história da humanidade. Nossos dirigen
tes proclamam orgulhosamente êste fato. Dada a base tecno
lógica mais limitada de que dispõem, nenhum dos Estados co
munistas pode fazer tal proclamação. Ao contrário do que
80
usualmente se pensa, uma democracia é tão capaz de tornar-se
um poder militarista como uma ditadura. O sistema político
de uma nação tem menor importância na determinação de
sua capacidade para a violência de que têm o nível de sua in
dústria e de sua riqueza e* a intensidade de seus temores em
relação aos inimigos internos e externos.
81
Tocqueville de que a paciência e a tolerância dos homens
diante dos obstáculos não diminui com a consciência de sua
própria fôrça. As fôrças armadas reclamam para si priorida
des nacionais, recurso c lealdades, insuspeitáveis nos primór-
dios dêste século.
A própria imensidão da presença militar tende a cònven-
cer-nos de sua necessidade e importância. Está na natureza
do comum dos mortais, e os americanos o são, ver a evidência
crescente do perigo nas precauções tomadas contra êle. Este
é um dos efeitos do poder. A presença imponente do esta-
blishment militar parece confirmar nossos piores temores em
relação ao demônio comunista. O mesmo é verdade para tôdas
as ações e declarações anticomunistas. A “subversão comu
nista” nunca parece tão ameaçadora como quando os homens
se preocupam com juramentos de lealdade e com inquisições.
Um ataque atômico nunca parece tão iminente como quando
milhões de pessoas são mobilizadas na charada grotesca da
defesa civil0. Russos e chineses pareçem muito mais ameaça
dores quando nossos dirigentes pedem ainda mais armas de
defesa e mais intervenções armadas. Quanto maiores as
precauções, mais evidente parece o perigo e mais distante a
questão de saber se a ameaça é proporcional ao tipo de res
posta que lhe é dado. Uma nação armada até os dentes para
enfrentar um assalto apocalíptico passa a conceber-se num mun
do de opções apocalípticas (exemplo: “antes morto que verme
lho”) 00. O futuro está constrito e as alternativas limitadas
por aquêles mesmos instrumentos com que se pretendia am
pliar ao máximo nossa capacidade de manobra. O poder é
comprado por um preço, e um grande poder custa caro.
83
questão em tômo da qual todos estavam de acôrdo. Ao que
parece, quando determinada ortodoxia começa a monopolizar
o universo do discurso, interditando tôdas as crenças alterna
tivas, aquêles que disputam o poder se vêem forçados a pro
ceder dêsse modo, mantendo-se dentro das fronteiras de tal
ortodoxia. É da natureza do competidor procurar diferenciar-
se de seus rivais de forma a que isso lhe traga vantagens.
Quando, porém, os rivais também assumem postura ortodoxa, o
melhor que êle pode fazer é insistir em que sua expressão par
ticular da ortodoxia é, por alguma razão, mais autêntica, mais
pura e, na verdade, mais ortodoxa que a de seus oponentes.
Esta reiteração incessante de uma crença já aceita por
todos os competidores alimenta os aspectos obsessivos dessa
crença. À medida em que a ortodoxia se sublima em mono-
mania, crescem, ao invés de diminuírem, as inquietudes em
relação à heterodoxia. A atmosfera se torna densa, carregada
de acusações e contra-acusações no sentido de que tal ou qual
líder seria insuficientemente dedicado à causa ou, mesmo, um
“traidor em potencial”. O ortodoxia obsessiva gera um padrão
indefinido e inatingível, que ninguém pode pretender repre
sentar com perfeição, o que faz com que até mesmo o inqui
sidor possa ser arrastado aos tribunais para prestar conta da
sinceridade de suas convicções. Apenas com o risco da pró
pria vida política e, mesmo, biológica, alguém pode ignorar a
acusação de impureza heterodoxa; o único recurso que se tem
é o de demonstrar que o seu próprio caminho não é uma he
resia sim, na verdade, uma defesa da ortodoxia mais efetiva
do que a proporcionada pelos demais caminhos; com isso,
ajuda-se a colocar a ortodoxia acima de qualquer contestação.
Durante pelo menos vinte anos, liberais e conservadores,
democratas e republicanos excederam-se uns aos outros na
exaltação da ortodoxia anticomunista, cada um apresentando
sua versão do anticomunismo como o caminho mais efetivo
para combater o demônio. Assim, os liberais argumentaram
ininterruptamente que, numa época em que os americanos de
veriam ter-se mostrado atentos à ameaça real do imperialismo
soviético, o macartismo paralisou moralmente aquêles mesmos
funcionários necessários à execução das tarefas diplomáticas,
militares e de propaganda da guerra-fria. O fato de que o
84
Pravda tenha repetidamente atacado o senador de Wisconsin,
taxando-o de “fascista” e “louco”, representou, para os liberais,
uma prova a mais de que Joseph McCarthy levava água ao
moinho da propaganda comunista, fazendo exatamente o jôgo
dos sovietes que, supostamente, estariam muito satisfeitos com
os estragos que êle causaVa, tanto nos Estados Unidos quanto
entre nossos aliados no exterior. Os liberais não consideraram
com seriedade a possibilidade de que os soviéticos, como os
próprios liberais, estivessem intimidados pelo espectro de um
poder anticomunista extremista na América. Como McCarthy
prejudicava a América, diziam os liberais, os soviéticos deve
riam estar realmente eufóricos, por mais que dessem demons
trações de estarem apreensivos*.
O ataque de McCarthy contra a Voz da América foi cri
ticado pelos liberais não por representar a expressão extrema
de um anticomunismo irracional, e sim porque êle supostamen
te causava dano à eficiência dos esforços americanos na guer-
ra-fria. “O resultado claro”, afirmou o Comitê Americano pela
Liberdade Cultural, em cautelosa crítica ao senador, “. . . foi
a frustração da própria possibilidade de os Estados Unidos se
engajarem num programa de guerra psicológica contra o mun
do comunista”2. Partindo da mesma premissa anticomunista,
os liberais criticaram o programa de lealdade-segurança, afir
mando (com detalhes) que tal programa não conseguiu de
senterrar um único membro do Partido Comunista trabalhando
para o govêmo, embora minasse a moral dos funcionários go
vernamentais, causando com isto mais dano aos Estados Unidos
’ 85
que os próprios comunistas3. Não obstante, foram os liberais,
sob a liderança de Harry Truman, que iniciaram o primeiro
programa de inquirição de lealdade, abrangendo dois e meio
milhões de funcionários governamentais, ocasião em que, se
gundo consta, Truman teria dito: “Bem, isto deverá fazer com
que os comunistas fiquem enojados com o Partido Demo
crata”4.
Argumentavam os liberais que os autos-de-fé e juramen
tos de lealdade eram uma indignidade a que se submetia os
"americanos leais”, enquanto que os comunistas, sendo de na
tureza inescrupulosos, assinariam qualquer declaração e jura
riam qualquer mentira, aparentemente sem temer posteriores:
investigações e acusações de perjúrio. (Na verdade, o Parti
do Comunista foi tão veementemente contrário aos juramentos
como quaisquer outros.) Liberais como Adiai Stevenson ar
gumentaram, em 1952, que a caça aos comunistas infiltrados
no govêmo era tarefa para “uma agência de espionagem apo-
lítica e altamente especializada”; especificamente, para o FBI;
tal observação parece aceitar como verdadeira a acusação de
McCarthy sôbre a infiltração de subversivos no govêmo. En
quanto Eisenhower acusava os democratas de serem indiferen
tes em relação ao problema da subversão comunista, Stevenson
— para não ficar para trás — acusava os republicanos de subes
timarem a ameaça comunista, salientando ser a luta contra
o comunismo, na América, uma “batalha infinitamente mais
prolongada e dura do que a maioria dos líderes republicanos
jamais admitira e, mesmo, compreendera”5.
Já em 1919, o senador Albert Beveridge argumentava que
medidas repressivas contra radicais eram um êrro porque “ten
tativas de esmagar o pensamento por meio da fôrça apenas
86
contribuem para criar novos adeptos para as mesmas doutri
nas que se pensava destruir”8. Quatro décadas mais tarde,
muitos liberais sustentavam opinião semelhante: a repressão
apenas atrai maior número de pessoas para a causa proibida;
a melhor fórma de derrotarão comunismo é o confronto no livre
mercado de idélasY. Em outros momentos, argumentou-se que
a repressão apenas forçaria o partido a enterrar-se profunda
mente na clandestinidade, tornando-se, com isso, mais difícil
dc scr controlado — e, portanto, mais perigoso. Dever-se-ia
respeitar a liberdade do comunista, pois sòmente assim êle po
deria ser desmascarado e derrotado. Durante a década dos
50, poucos liberais sustentavam que o comunista deveria gozar
da plena proteção da Primeira Emenda, como parte de seu
direito inerente de ser humano e de americano. A maioria
dos liberais defendia a liberdade acadêmica apenas para os
não-comunistas. Alguns liberais como Leslie Fiedler, Diana
TrilUng, Sidney Hook e outros sucumbiram de bom grado à
onda anticomunista e passaram boa parte de seu tempo eha»
mando os companheiros liberais de “otários” por serem insu-.
ficientemente conscientes da Ameaça Vermelha. Alguns, eomq
Hubert Humphrey (desde sua primeira cruzada anticomunis
ta na ADA, até sua defesa posterior do Communist Control Act,
e seu apoio, mais recente, à política externa de Johnson), cons
truíram suas carreiras em tômo da “luta contra o comunismo
no país e no exterior”, uma imitação de políticos menos li
berais. •
Por convicção ou por mêdo, os liberais adotaram a retó
rica básica do anticomunismo. O inquisidor macartista e sua
vítima tinham uma coisa em comum (para grande desvanta
gem do último): ambos fundamentavam sua argumentação
na ortodoxia anticomunista. Quando liberais como James
Wcchsler c Owen Lattimer foram levados à comissão Mc
Carthy, com tôda razão se defenderam como americanos livres
87
exercendo seus direitos constitucionais. Mas, não contentes
em fundamentar suas defesas neste ponto, deram-se ao tra
balho de demonstrar sua ortodoxia, apresentando citações de
seus escritos anticomunistas anteriores e citando ocasiões em
que os comunistas os atacaram. Wechsler se referiu a seus
editoriais anticomunistas na imprensa e a sua luta anterior
contra os comunistas na Associação de Jornais. O Ordeal by
Slander, de Lattimer, um relato de seu confronto com McCar-
thy, está cheio de advertências anticomunistas e de guerra-fria.
Comparecendo perante a Comissão McCarthy, êle se sentiu
obrigado a citar “críticas aos meus livros em publicações
russas e americanas (comunistas) “como prova de seu antico
munismo. Outro especialista em assuntos chineses, John K.
Fairbank, defendendo-se da caça às bruxas macartistas, obser
vou: “Em Washington, fui ‘identificado’ . .. como parte de um
‘núcleo interno sólido’ de uma suposta conspiração pró-comu-
nista. Em Pequim eu havia sido citado como um ‘espião im
perialista’ e ‘agente secreto cultural número um do imperia
lismo americano’, e assim por diante”8.
Dever-se-ia ter pena do jornalista •ou estudioso que nun
ca tivesse sido atacado pelos comunistas ou, o que é pior,
tivesse recebido uma palavra favorável da imprensa comunista.
Ao procurar conformar-se com os padrões anticomunistas co
locados pelo inquisidor, as vítimas liberais inadvertidamente
contribuíram para o fortalecimento daquela mesma auréola de
ortodoxia inatacável que fazia a fôrça de McCarthy.
Com o passar dos anos, os liberais também sucumbiram
ao hábito de utilizar suas concepções anticomunistas de polí
tica externa como demonstração de anticomunismo doméstico.
Assim, Lattimor, ao defender-se perante McCarthy, afirmou
ter sempre tentado “tão enfàticamente como pude, advertir o
povo desta nação de que a ameaça comunista na China e em
outros países do Extremo Oriente é muito real”9. E Harry
Truman, referindo-se às suas atitudes em relação à Grécia e à
88
Turquia, observou: “Em todo o mundo fizeram ouvir-se vozes
de apoio, enquanto os comunistas e seus companheiros de
viagem me atacaram ferozmente”10. Parece que nunca ocor
reu aos liberais que sua ênfase constante na “ameaça muito
maior” da URSS e sua defesa de um esfôrço global de guerra-
fria no exterior exacerbavam» a própria inquietação pública que
alimentava a caça às bruxas no país.
Mesmo hoje, muitos liberais não fazem qualquer indaga
ção relativa às presunções e metas anticomunistas, mas con
centram sua crítica na tática anticomunista. Em 1967, Dwight
McDonald criticou a caça às bruxas da década dos 50 e a
guerra do Vietnã da década dos 60 com base em que tais po
líticas beneficiavam os comunistas. “O principal resultado
(dos ataques do senador Joseph McCarthy) foi dar publicida
de ao moribundo PC dos Estados Unidos. . . e, pelo absurdo
e injustiça de suas acusações, ganhar simpatias para o comu
nismo”. A argumentação de McDonald se toma bem mais in
teressante quando aplicada ao Vietnã: a política de Johnson
é condenável principalmente porque “a cruzada de genocídio
de nosso Presidente no Vietnã, faz com que o inimigo apareça
como sendo bom, comparativamente”. Espíritos menos sutis
se opõem à cruzada de genocídio por tratar-se de genocídio,
mas McDonald está fundamentalmente interessado em demons
trar a eficácia superior de seu próprio anticomunismo: “Como
um velho batalhador do anticomunismo, considero Johnson
da mesma forma que, acredito, os velhos combatentes de índios
consideravam o Gen. Cüster: impetuoso, cabeça quente, vai
doso e perigosamente ignorante da natureza do inimigo”11.
Se, na frente interna, os liberais estavam na defensiva,
buscando seus argumentos e acertando sua retórica de acor
do com o ataque conservador, na política extema — sendo de
natureza intervencionista mais ativa e estando com o contrôle
da Casa Branca — êles geralmente mantinham a iniciativa. Da
mesma forma que os conservadores advertiam os liberais sôbre
a “ameaça intema”, pode dizer-se que os liberais advertiam
’ 89
os conservadores sôbre a “ameaça externa”, opondo ao comu
nismo extemo um envolvimento com as nações européias, bi
lhões de dólares em armamento e ajuda, crescente orçamento
federal, gastos deficitários e uma administração em grande
escala, — pontos, todos êles, hostis ao gôsto conservador. “Mi
nha própria sensação” comentou o senador Robert Taft em
relação aos compromissos de Truman no exterior, “é a de que
esta po lítica... a menos que seja obstaculada, só pode levar
ao govêmo arbitrário e totalitário no país, na medida que os
assuntos externos passem a dominar cada vez mais nossas ati
vidades domésticas. . . ” Taft se opôs à participação dos Esta
dos Unidos na OTAN porque tal envolvimento era “mais capaz
de levar a Rússia à guerra do que impedi-la de recorrer a
ela”, foi contra a intervenção de Truman na Coréia porque não
tínhamos qualquer interêsse vital naquele país12.
Conservadores como os senadores George Malone e Harry
Byrd sustentaram — não sem razão — que grandes gastos em
ajuda externa geralmente eram desperdiçados pela incompe
tência e corrupção dos que a recebiam, raramente atingindo
as camadas mais necessitadas de ajuda e geralmente provo
cando muito mais ressentimento do que popularidade para nos
so país no exterior. A melhor maneira de combater o comu
nismo era conservar a América auto-suficiente e forte. Alguns
ultraconservadores iam mais longe: derramar os bons dólares
americanos na “toca dos ratos” pelo mundo afora era exata
mente o que os comunistas queriam; sabendo que, com nosso
anticomunismo instintivo, defenderíamos qualquer coisa que
êles combatessem, os comunistas, de acôrdo com essa teoria,
desfechavam um ataque astuto contra a ajuda extema para
encorajar-nos a dissipar nosso tesouro*18. Os conservadores
poderiam aproveitar inquietações ocasionais a propósito da
90
inflação, da insolvência, do gigantismo governamental, do pa-
rasitismo dos estrangeiros, etc., mas os liberais sempre conta
vam com Joseph Stalin e nos debates do Congresso e conser
vadorismo fiscal não conseguia fôrça suficiente para enfrentar
as fôrças liberais intervencionistas, defensoras de grandes dis-
pêndios, incrementadas pelo espectro terrível de uma vitória
stalinista mundial.
Dêsse modo, aconteceu que cada lado sucumbiu à retórica
mais ativista e mais terrivelmente anticomunista do oponente.
Da mesma maneira que os políticos liberais aprenderam a acei
tar e, posteriormente, a utilizar os juramentos de lealdade, as
leis de segurança intema e as investigações do Departamento
de Justiça, os conservadores tomaram-se defensores dos pactos
de segurapça externa, da intervenção armada e dos imensos
orçamentos militares. Em política externa, os conservadores
finalmente se tomaram ativistas mais militantes do que os li
berais, acusando êstes últimos de praticarem uma política dó
cil e que não levava à vitória.
Ocasionalmente, os liberais americanos combateram pela
boa causa. Muitos dêles se opuseram à tendência de Dulles
a encarar Mao como o diabo e Chiang como o arcanjo, e de
fenderam o reconhecimento de Pequim e a filiação da China
à ONU. Muitos elevaram sua voz contra a poluição nuclear
da atmosfera e a charada macabra da defesa civil. Alguns
chegaram mesmo a pensar que éramos excessivamente rígidos
em nossas conversações com os soviéticos. (Certos conserva
dores moderados também podem ser notados, especialmente
o presidente Eisenhower que, com seu imenso prestígio pessoal,
com sua boa vontade, convenceu os americanos de que as ne
gociações pacíficas com os soviéticos não eqüivaliam à conci
liação.) Mas, a despeito dos clarões de sanidade que projeta
ram a política externa dos Estados Unidos, é preciso que se
lembre aos liberais em que medida êles próprios propagaram
o anticomunismo militarista e alienado do período de pós-guerra.
Tendo aceitado sem debate o axioma segundo o qual o co
munismo era uma fôrça conspirativa incansável e diabólica de
dicada à nossa destruição, êles se encontraram prisioneiros de
sua própria premissa e apoiaram, como necessárias, políticas
errôneas, que violentaram seus melhores instintos liberais. Foi
91
assim que presidentes liberais estiveram entre os mais ativos
propositores de pesados gastos militares e que parlamentares
liberais apoiaram com grande decisão as crescentes dotações
para armamentos, propiciando a formação, no Congresso, de
maiorias muito próximas da unanimidade. “Quando alguém ten
ta emendar os orçamentos da defesa e do1 programa espacial”
observou tristemente o senador Fulbright, “a discussão não é
mais do que um exercício acadêmico”.
Muito foi escrito sôbre a situação dos intelectuais de es
querda, na 'Europa e na América, que prosseguiram apoiando a
linha soviética a um preço tão elevado como o de sua própria
integridade e de seus princípios humanistas. Mas muito pouco
foi dito a respeito dos compromissos e engodos que os liberais
americanos engoliram, violando seus próprios valores. Sidney
Lens, com muita propriedade, faz um balanço da situação dos
liberais:
92
ou de eleições fraudulentas. . . Onde o comunismo entra
em linha de conta, as regras são suspensas. Estamos nu
ma guerra permanente14.
94
6
A virtude enfrenta o mundo
Terá algum poder o presente a dar-nos,
de ver-nos a nós mesmos como os outros nos vêem.
R o be r t B ubn»
P
X a jr a compreender nôssa política em relação aOs comu
nistas e aos revolucionários, e em relação ao mundo em geral,
precisamos considerar a imagem messiânica que temos de nós
mesmos e a medida em que concebemos o comportamento in
ternacional americano como uma sucessão de atos justos. O
que disto resulta não é uma história da política externa ame
ricana, nem tampouco uma descoberta de fatos históricos no
vos, mas uma tentativa de mostrar que a imagem que os ame
ricanos têm de seu próprio comportamento internacional é
95
colorida por uma presunção de virtude raramente justificada
pelas realidades históricas; e que esta presunção, quando posta
em funcionamento, conduz a efeitos grandemente diversos das
intenções proclamadas. Esta imagem autocomplascente da
virtude nacional, conquanto profundamente destacada em nos
sa história, não é própria da América, exclusivamente; mas a
América é única na magnitude de seus poderes, e nossas ilu
sões nacionais — contrariamente ao que sucede com as nações
menores — representa uma fôrça de importância decisiva para
o bem-estar e a sobrevivência de tôda a humanidade.
A história dos Estados Unidos foi uma história de expan
são territorial, comercial e militar. Esta afirmação certamente
provocará discordância em muitos leitores americanos; contu
do, de que outra maneira pode uma nação emergir de obscura
emprêsa colonizadora de treze enclaves costeiros até à con
dição de maior potência mundial, senão por meio do expan-
•sionismo? Estamos, aqui, diante de uma success story ameri
cana que pede explicação: num mundo implacável e hediondo,
que artes emprega a virtude para atingir o êxito? Ou, colo
cando de outro modo a questão, que artes emprega o êxito
para permanecer virtuoso?
Responderiam nossos manuais de história que a expansão
foi realizada por meio de um processo de crescimento natural:
colonização do oeste, compra de terras, guerras defensivas,
aquisição relutante de esferas de influência, ações em defesa
de povos mais fracos, proteção de propriedades e pessoas na
cionais no estrangeiro, obrigações contraídas em acôrdos —
tais foram os empreendimentos inocentes, quase acidentais mas
progressivamente agigantados, por meio dos quais, suposta
mente, o virtuoso se tomou poderoso, ao mesmo tempo em que
mantinha intata sua virtude. Diferentemente de qualquer ou
tra nação da história, os Estados Unidos pelo visto desenvol
veram portentoso império sem manchar-se jamais com práticas
imperialistas. E quando o imperialismo é admitido, com maior
freqüência êle é descrito como um lapso momentâneo tendo
ocorrido em algum tempo entre a guerra hispano-americana
e o período da política do big stick de Theodore Roosevelt.
Em verdade, desde o início mesmo de sua história, a na
ção sofreu, de modo bastante visível, da angústia do expansio-
96
nismo. Já em 1787, John Adams concluía estar a jovem repú
blica “destinada” a estender seu domínio sôbre tôda a parte
norte do hemisfério, e antecipava tal expansão como “um
grande ponto ganho em favor da humanidade”. Em 1801,
Jefferson, tendo constatado que “o povo americano era um
povo eleito. . . agraciado com sabedoria e fôrça superiores”,
e entendendo que “Deus guiou nossos antepassados, como o
fizera antes com Israel”, sonhou com um Estados Unidos que
abrangeria todo o hemisfério ocidental1. Convencidos de que
“Deus e o destino decidiram” que o Canadá fizesse parte dos
Estados Unidos, os americanos durante meio século cobiçaram
as Províncias Britânicas do Norte. E foi sòmente depois que
uma invasão armada resultou em fragoroso fiasco que final
mente nos reconciliamos com a idéia de uma fronteira ao norte.
Ao Slil, “arredondamos” nossas fronteiras, forçando a Es
panha a ceder-nos as Flóridas. Contudo, ainda hoje “repete-se
ad nauseum nos manuais escolares que os Estados Unidos
‘compraram’ as Flóridas pela soma de cinco milhões de dó
lares2; um estudo mais detalhado da história revelaria, entre
tanto, que depois de uma série de insurreições e incursões ter
ritoriais, os Estados Unidos adquiriram de facto o contrôle das
Flóridas e, no tratado de 1819, prometeram dar satisfação às
reivindicações dos cidadãos espanhóis até o limite de cinco
milhões de dólares, caso tais reivindicações fôssem considera
das válidas por uma comissão americana. Não houve compra
e o dinheiro não mudou de mãos. Foi assim que a América
tomou realidade a afirmação anterior do governador Morris
de que a Flórida “se junta a nós pela mão do Todo-poderoso”3.
Por êsse tempo, nossos crimes contra os povos índios ga
nhavam ímpeto. Algumas das mais pungentes e negligenciadas
passagens da Democracy in America, de Tocqueville, oferecem
um relato contemporâneo do doloroso massacre dos índios
americanos. Em 1832, os americanos descobriam o que sempre
98
ções referentes à data de 8 de maio, um dia antes da
tíhegada das notícias, que o Presidente já havia decidido
ir à guerra. Com ares de inocência ofendida e com apa
rente sinceridade, Polk escreve sôbre seu “dever” de
“agir com rapidez* e energia”; mas êle e seu gabinete
estavam ainda cômicamente ansiosos para que os mexi
canos abrissem as hostilidades. Quando chegaram final
mente as boas novas, uma hora foi o bastante para que
reunisse todo o seu gabinete e, com a bênção dêste, sen
tir-se enfim apto a afirmar ao Congresso que o México
“atravessou a fronteira dos Estados Unidos, invadiu nos
so território e derramou sangue americano sôbre o solo
americano. . . a guerra existe e, malgrado nossos esforços
para cvitá-la, existe por obra do Mexico”5.
99
tabelecimento da autoridade mexicana”. O expansionismo, co
mo foi criticamente descrito por Carl Schurzs, se baseava na
crença de que “esta república, tendo recebido a missão de levar
a bandeira da liberdade a todo o mundo civilizado, poderia
transformar qualquer nação, habitada por qualquer espécie de
população, em algo semelhante a ela mesma, simplesmente
estendendo sôbre tais nações o encanto mágico de suas insti
tuições”7.
A guerra hispano-americana é outro exemplo monumental
desta alquimia que transforma egoísmo nacional em altruísmo
internacional, chauvinismo em mandato divino. Impelido por
flibusteiros e mercadores de armas, e por uma população cho
cada pelos relatos da imprensa sôbre atrocidades espanholas
em Cuba, o governo americano caminhou decididamente no
sentido da intervenção. A justificativa específica, apresentada
nos manuais, para o desencadeamento das hostilidades foi o
misterioso afundamento do Maine na baía de Havana. Na
verdade, jamais houve qualquer prova que permitisse implicar
os espanhóis no caso. As autoridades espanholas nos haviam
solicitado não enviar o navio para Havana, por temerem que
isto pudesse provocar algum incidente grave. “O govêmo es
panhol”, observa Kennan, “fêz tudo o que estava em seu poder
para reduzir os efeitos da catástrofe, favoreceu as investigações
e, finalmente, propôs que a questão da responsabilidade fôsse
submetida à arbitragem internacional — oferecimento que ja
mais aceitamos”8. Pouco depois, a Coroa espanhola deu clara
indicação de seu desejo de satisfazer nossas exigências, incluin
do um armistício em Cuba e a pronta implementação de um
sistema de autonomia. Todávia, tais oferecimentos foram re
pelidos pela imprensa americana como “procrastinação”. A
essa altura, já o Congresso clamava pela guerra. Um jornalis
ta assim descreveu a cena na Câmara: “ . . . Os parlamentares
corriam como loucos por entre as fileiras de poltronas, troca
vam expressões pesadas, brandiam punhos cerrados e rangiam
os dentes; a excitação atingia temperatura febril. Há muitos
100
anos não ocorria semelhante cena”®. O Congresso aprovou
resolução, equivalente a uma declaração de guerra, reclamando
a imediata retirada de tôdas as autoridades espanholas do ter
ritório cubano e ordenando ao Presidente o uso da fôrça a fim
de assegurar a consecução dêsse objetivo. Começou assim
aquilo que Theodore Roosevelt descreveu como a “mais abso
lutamente justa das guerras” do século. Estigmatizou de “im
pertinente" qualquer dirigente europeu, “ainda que Papa,
Kaiser, Csar ou Presidente”, que proferisse avaliação menos
elogiosa da ação americana — e muitos dirigentes europeus o
fizeram.
A crer nas intenções proclamadas, a América estava lu
tando para libertar Cuba, e não as Filipinas. Não obstante,
as fôrças americanas cèleremente arrebataram as Filipinas à
Coroa espanhola. Colocou-se imediatamente a questão de sa
ber o que deveria ser feito dessas ilhas. O Alm. Dewey des
crevera seus nativos como mais capazes do que os cubanos
de exercerem o autogovêmo, mas à medida que o valor eco
nômico e estratégico de seu território se foi tomando aparente,
falou-se menos dessa capacidade dos nativos10. McKinley nar
rou como, em mais de uma noite de insônia, ponderou a ques
tão e como, finalmente, caiu de joelhos e implorou “ao Deus
Todo-poderoso que o iluminasse e guiasse”, ocasião em que
foi agraciado com a revelação de que
101
Infelizmente, essa revelação divina não teve o poder de
manter tranqüilos os filipinos e sua reação à decisão de Mc-
Kinley fornece uma lição particularmente importante em nossos
dias. Os guerrilheiros, filipinos, dirigidos por Aguinaldo, obri
gados a enfrentar prolongada guerra de libertação nacional
contra a dominação colbnial espanhola, encaravam a resistên
cia à ocupação ameriçána como uma continuação da mesma
luta. Comandando uin poder militar esmagador, os generais
americanos eram otimistas em relação à destruição das fôrças
sublevadas. Mas, mesmo quando asseguravam à administra
ção de McKinley que estavam vencendo, exigiam mais homens
e armas. Depois de alguma hesitação, as exigências foram sa-
tisfêitas porque, como o Presidente afirmou, êles estavam lu
tando pela “melhor civilização do mundo”. Uma guerra que
começou como um divertimento sem importância, logo trans
formou-se numa intervenção de proporções consideráveis. Con
tando com vinte mil homens sob seu comando, o Gen. Otis
assegurou a McKinley que trinta mil realizariam a tarefa.
Quando os críticos antibelicistas nos Estados Unidos começa
ram a exigir a retirada das ilhas, McKinlcy os denunciou como
“profetas do mal”. O Gen. Otis pediu quarenta mil homens.
As fôrças americanas verificavam que seu equipamento
superior era ineficaz contra a plebe hostil. Por maior que
fôsse o número de guerrilheiros mortos, Aguinaldo sempre en
contrava substitutos. Nós os expulsávamos das aldeias, mas
êles voltavam imediatamente após nossa saída. O Gen. Otis
pediu cinqüenta mil homens. Êle considerava que a maioria
dos filipinos sabia que éramos “libertadores”. Aceitava que
muitos dêles tinham sido “intoxicados pelo grito de indepen
dência e autogovêmo”, mas acreditava que o terrorismo dos
guerrilheiros de Aguinaldo os havia desiludido. Mais tarde,
Otis pediu sessenta mil soldados. Agora estava convencido de
que, uma vez destruída a fôrça fundamental dos filipinos e
assegurados os principais centros de população, o resto seria
uma simples questão de destruir bandos armados isolados. A
fôrça principal de fato se dissolveu, mas tomou-se um proble
ma ainda pior ao operar sob a forma de unidades amplamente
dispersas. Êste foi o comêço da fase mais sangrenta da guerra.
O Gen. Lawton, comandante de Otis, pediu cem mil homens.
102
McKinley denunciou os críticos da guerra como “desorienta
dos”. •
Finalmente, as fôrças militares americanas, agora dirigi
das pelo Gen. Arthur MacArthur (pai de Douglas MacArthur),
adotaram nova estratégia baseada no pressuposto de que nosso
inimigo era o povo, divulgado uma proclamação em que re
nunciavam à “observância rigorosa das leis da guerra”. Entre
outras coisas, MacArthur permitiu que seus homens torturas
sem prisioneiros, inclusive civis. Aldeias hostis eram queima
das e os habitantes sobreviventes encerrados em campos de
concentração. Apenas alguns anos antes, quando o general es
panhol Valeriano Weiler fazia o mesmo em Cuba, os america
nos o chamavam de “Carniceiro Weiler”. Mas MacArthur foi
consagrado como herói por ter conseguido esmagar a rebelião12.
Os americanos perderam muito mais homens do que na guerra
contra a Espanha. A lista das vítimas filipinas, incluindo os
civis, foi tragicamente elevada. Durante tôda a sangrenta
guerra, patriotas militantes americanos que, alguns anos antes,
jamais ouviram falar das Filipinas*, insistiam enfàticamente
em que a manutenção da presença americana nas ilhas era
essencial à defesa de nossa honra e prestígio internacionais,
à segurança futura de nosso país; que ela era indispensável
para impedir que as Filipinas caíssem sob o domínío de al
guma potência estrangeira, proclamadamente a Alemanha, o
Japão ou a Inglaterra, para levar as bênçãos da civilização e
da liberdade a povos menos afortunados. Woodrow Wilson,
mais tarde, afirmou que a guerra hispano-americana “nos des
pertou para nossas relações reais com o resto da humanidade”,
isto é, nosso dever específico” de ensinar aos povos coloniais
“ordem e autocontrôle” e “incutir-lhes, se possível... o pêso
e o hábito da lei e da obediência que, há muito, recebemos
d a .. . história inglesa”13.
103
O império americano que surgiu no Pacífico com a ane
xação de Samoa, Havaí e Filipinas, a partir dêsse momento
dependia menos da aquisição territorial direta do que do con-
trôle e expansão comerciais. Os interesses econômicos, até
então algo indiferente às oportunidades no Extremo Oriente,
agora exigiam sua parte nos novos mercados. Evitando quais
quer referências à “Providência” e “ao nosso dever perante a
humanidade”, Mark Hanna afirmava com emocionante candu
ra: “Se é comercialismo desejar a posse de um ponto estraté
gico que proporcione ao povo americano uma cabeça de ponte
para os mercados daquele grande país oriental (China), por
Deus!, salve o comercialismo”14. A Política de Portas Abertas,
proclamada em 1899, pode ser vista como a encarnação diplo
mática dêsse nôvo interêsse; suas cláusulas de “igualdade de
oportunidade comercial” representavam a cunha por meio da
qual os interêsses americanos, surgidos tardiamente, poderiam
entrar nas “esferas de influência” estabelecidas pelos países
europeus*.
A Política de Portas Abertas era essencialmente motivada
por considerações materiais as mais grosseiras: causou pouca
impressão nas demais potências e logo foi abandonada pelos
próprios Estados Unidos, quando condições discriminatórias
ae comércio foram promulgadas em relação às Filipinas e a
Pôrto Rico. Contudo, foi recebida na América como brilhante
vitória de nossa diplomacia e derrota da avareza européia.
O secretário Hay foi saudado como um grande estadista e,
como Kennan observa, “foi estabelecido um mito que estava
destinado a florescer no' pensamento americano durante pelo
menos meio século”; ou seja, que, diante do imperialismo eu
ropeu, os Estados Unidos restabeleceram altruisticamente a
“integridade da China”. Se medirmos os efeitos reais de nossa
política chinesa, toma-se claro que o mito tem muito pouca
base nos fatos e que os chineses tem muito pouco motivo para
regozijar-sé pelo interêsse americano por seu destino.
104
Para a maioria dos americanos, os novos mercados, a ex
pansão do poder e glória nacionais e as tentativas não-solicita-
das de “elevar os povos atrasados” eram parte da mesma tarefa
divina. O impetuoso senador Beveridge reuniu com proprie
dade os temas predominantes de Deus, Ouro e Glória:
106
A intervenção pela fôrça na América Latina teve início
já em 1854, quando um navio de guerra americano bombar
deou um pôrto da Nicarágua; três anos mais tarde, repetia-se
a operação, e mãrines desembarcavam no país ( como represália
por ter a Nicarágua deixado de pagar pesadas indenizações
exigidas em virtude de ferimentos recebidos por um cidadão
americano). No ano seguinte, a Nicarágua viu-se forçada a
assinar um tratado, garantindo aos Estados Unidos livre trân
sito e direito de intervenção, e isto quando e como bem enten
dêssemos. Seguiu-se, em 1860, a intervenção em Honduras e,
em 1871, a ocupação da Baía de Samana, em São Domingos.
As décadas que se seguiram assistiram ao crescente domínio
dos interêsses comerciais americanos em tôda a América Latina,
ao lado do uso crescente da intervenção militar e política. A
aquisição forçada do Canal de Panamá, por Theodore Roose
velt ( “Eu tomei o canal e deixei o Congresso discutir”), foi
apenas uma entre aproximadamente sessenta intervenções rea
lizadas pelos Estados Unidos nas três primeiras décadas dêste
século. Eis um resumo que, esclareçamos, está longe de es
gotar a relação: tropas dos Estados Unidos em Cuba, 1898
1902; transformação de Cuba num quase-protetorado pela
Emenda Platt, 1901*, tropas em Cuba, 1906-09, 1917-22; con
trole americano sôbre o serviço aduaneiro da República Do
minicana, em 1905, para proteger investimentos e assegurar o
pagamento de dívidas, supervisão fiscal que durou até 1941,
e intervenção militar novamente em 1913 e 1926-24; ocupação
militar para “restaurar a ordem” no Haiti, de 1914 a 1941, com
os fuzileiros navais matando mais de dois mil haitianos que
resistiram à “pacificação”, ocupação militar da Nicarágua em
1909-10 e 1912-25, supervisaR financeira de 1911 a 1924, ope
rações militares em grande escala em 1927 (a “guerra priva
da” de Coolidge) e ocupação até 1933; bombardeio e tomada
de Vera Cruz, com numerosas perdas de vidas mexicanas em
19 Bayley, op. cit., passim; também Gerassi, op. cit., Capítulo 17,
passim.
20 Citado em E. Stillman e W. Pfaff, Pow er an d Im potence, New
York, 1966, pág. 27.
21 Citado em Weinberg, op. cit,
22 Gerassi, op. cit., pág. 231,
108
tas europeus, desagravo a insultos à bandeira, restauração da
ordem, salvaguarda ou difusão da democracia, etc.), cada uma
das aventuras se baseava no pressuposto de que os Estados
Unidos tinham o direito moral de policiar uma região tão vasta
como o hemisfério. Em quase todos os casos, a intervenção
se sobrepunha aos protestos incansáveis dos governos locais
e ia muito além daquilo que- os juristas internacionais consi
deravam como os limites da simples intervenção mediadora.
Mas a América tinha atribuído a si mesma — sem qualquer
pedido por parte dos outros países do hemisfério — o papel
de uma “fôrça internacional de polícia” (para usar a expres
são de Theodore Roosevelt); enquanto a intervenção pratica
da originalmente por Monroe se destinava não a impedir a
desordem revolucionária, mas a impedir que outros intervies-
sem; agora os Estados Unidos se transformavam no guardião
auto-indicado contra as sublevações populares23.
Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, os Estados Uni
dos eram a fôrça predominante no hemisfério ocidental e ti
nham uma presença considerável no Pacífico. A América, além
de ser dona do Caribe, constituía uma espécie de fiel da balan
ça do poder mundial. Neste ponto da história a direção foi
assumida por um homem que encarnava a tradição messiânica
americana. A América sempre procurava interpretar suas ações
como um reflexo dos impulsos mais nobres da pessoa humana,
mas coube a Woodrow Wilson entrar no cenário mundial para
proclamar a missão americana a tôda a humanidade.
Para Wilson, como para a maioria dos americanos, a Pri
meira Guerra Mundial, em seus primeiros anos, era algo a ser
evitado. “A América”, disse êle, ?de início não percebeu o pleno
significado da guerra. Ela parecia ser uma conseqüência na
tural dos ciúmes e rivalidades jj^ernos da complexa política eu
ropéia”24. Nossa política consistia em uma defesa insistente
daquilo que considerávamos nossos direitos de neutralidade,
interrompida por apelos no sentido de que as potências euro
péias pusessem fim ao derramamento de sangue sem propósito.
109
Poucos americanos sabem que nossa neutralidade na realidade
era algo não muito puro. A assistência americana em larga
escala aos Aliados, somada à colaboração no bloqueio feito pe
los ingleses, levou os alemães a adotarem a medida desesperada
do recurso à guerra submarina ilimitada. Numa guerra em que
o suprimento de materiais era da maior importância, as desvan
tagens que quaisquer dos lados tivessem de enfrentar, caso hon
rassem as restrições impostas por Wilson, pareciam maiores do
que o risco da intervenção americana. No que se refere ao
confisco de propriedades americanas, os Aliados foram mais
persistentes do que os alemães, mas eram os alemães que ceifa
vam vidas americanas no mar. Enquanto os inglêses contavam
com o recurso do bloqueio, o Kaiser tinha no submarino sua
única arma de resposta25.
As razões de nossa entrada na guerra são ainda discutidas,
mas é significativo que, uma vez decidida a entrar nela, a Amé
rica mudou sua definição da própria guerra. A mesma virtude
que nos conservara em nossa magnificente neutralidade agora
exigia de nós, segundo uma dramática frase histórica, “garantir
o mundo para a democracia”; uma vitória total sôbre o “milita
rismo prussiano” representava a primeira tarefa dèsse nobre em
penho. A visão wilsoniana de transformação da Europa em vá
rias imagens reflexas do constitucionalismo americano exigia
uma nova ordem mundial livre de tratados secretos, indeniza
ções punitivas e opressão de minorias, policiada por uma Liga
das Nações. O fervor transcendente de Wilson em relação a
suas convicções parecia libertá-lo de qualquer consideração sô
bre como estas medidas poderiam ser concretizadas diante da
enorme complexidade e do caos da situação européia*. Em
Versalhes, de acôrdo com John Maynard Keynes, então funcio
nário inglês, Wilson apenas forneceu noções vagas e mal infor
madas sôbre como deveria ser construída a nova ordem
28 Ver Bayley, op. cü., págs. 641-6 e Kennan, op. cit., págs. 64-5.
* Assim, parece que nunca ocorreu a Wilson que a independên
cia de certos grupos nacionais — Tchecoslováquia, Polônia e Iugoslávia
— significava a criação de nações que envolviam outras minorias nacio
nais, por exemplo, os alemães dos Sudetos.
110
européia28. A história de sua derrota e desilusão posteriores
não precisa ser novamente narrada, mas existe um aspecto desta
questão que não deve ser desprezado. É muito comum carac
terizar-se Woodrow Wilson como um profeta que acabou sem
qualquer prestígio em seu próprio país, como uma figura trá-
gico-heróica possuída de uma visão que concernia a todos mas
que muito pouco levavam a sério. De fato, as ilusões de W il
son eram mais do que algo simplesmente pessoal. Sua crença
de que a América era, em suas origens, instituições, história e
conduta internacional, a nação eleita de Deus era aigo de que
poucos americanos duvidavam. O fato de que seu povo prefe
ria a normalidade e o isolamento à Liga das Nações não signifi
ca que êles tenham rejeitado a imagem wilsoniana de uma
América que tivesse a exclusividade da virtude, e sim que êles
escolheram uma expressão desta virtude diferente da apresen
tada por Wilson; da mesma forma que êste antes modificara
a imagem da nação, da neutralidade virtuosa para a intervenção
justa, os americanos agora retomavam ao não-envolvimento. A
suposta superioridade moral da América poderia ser expressa
tanto como um desejo de abandonar os demais países às suas
loucuras, quanto como um desejo de salvá-los. Os americanos
comuns escolheram o primeiro caminho, os intervencionistas
wilsonianos o segundo27. Ambos contudo operavam com o
mesmo pressuposto de que as aspirações e exigências apre
sentadas por outros países e que conflitavam com a imagem
americana do mundo na realidade não mereciam uma tolerância
paciente e um reconhecimento respeitoso.
Tal era a natureza do encontro da América com o mundo.
Intervenção militar por tôda parte, em Manila ou em Chateau-
Thierry, num dia, e o isolamento esplêndido no dia seguinte;
repugnância pelas “disputas insignificantes” de outros países,
seguida por uma ejetada sagrada contra o Huno sedento de
sangue, seguida ainaa por um retômo à normalidade; da neu
tralidade absoluta à guerra absoluta e à retirada absoluta. Mas,
111
qualquer que fôra o caminho escolhido, era sempre a estrada
dos justos.
Há algo que não foi dito em relação à luta isolacionista-
intervencionista. Se, depois da Primeira Guerra Mundial, a
atitude popular favorecia fortemente o afastamento da política
internacional, pode o mesmo ser dito em relação à liderança
política e industrial da América, inclusive em relação àqueles
que derrotaram a Liga de Wilson? Se o isolacionaismo fôr
definido como oposição a qualquer envolvimento nos acon
tecimentos internacionais, os Estados Unidos jamais foram
realmente isolacionistas. Os antiwilsonianos se opunham ao
sistema de segurança coletivo da Liga por verem nêle um ar
ranjo que impunha limitações e obrigações internacionais à
ação soberana da América. A tarefa desta última, segundo
Lodge, Hugues e Hoover, era a de ampliar seu próprio império
econômico a todo o mundo, e a Liga não era necessárip. nem
desejável para êste propósito*. “É preciso que determinemos
como nossa política”, aconselhava Lodge, “que o que devemos
fazer e quando devemos fazê-lo deve sêr decidido por nós”28.
Em momento algum os ‘isolacionistas” aconselharam realmente
um alheamento total em relação ao mundo, nem eram êles
mais indiferentes do que Wilson no que se refere às suble-
vações revolucionárias que pudessem ameaçar nossa expansão.
Se as facções de Lodge e Wilson estavam divididas quanto
aos métodos, (isto é, a Liga) êles estavam de acôrdo quanto
ao diagnóstico: o mundo capitalista liberal estava diante de
um amplo desafio revolucionário que tinha de ser enfrentado.
Desde o início, Wilson e a maioria de seus opositores partilha
vam a mesma fobia em relação ao bolchevismo. Os longínquos
revolucionários de Petrogrado e Moscou não representavam
qualquer ameaça direta a investimentos americanos no estran
112
geiro, porém isto era menos importante do que o fato de que
êles desafiavam a “ordem natural” das coisas. “Os bolchevi-
ques”, disse o secretário Lansing a Wilson, “carecem de virtude
internacional”. Êles procuram “fazer com que a massa igno
rante e incapaz da humanidade domine a terra” e “derrubar
todos os governos existentes e estabelecer sôbre suas ruínas o
despotismo do proletariado em todos os países”. Êles apelavam
a “uma classe que não tem propriedade mas que espera obter
uma participação pelo processo de govêmo c não pela iniciativa
individual. Isto evidentemente é uma ameaça direta à ordem
social existentse em todos os países”. O perigo residia em que
êste apêlo “poderia ser bastante atraente para o homem médio
que não perceberá os erros fundamentais”. O objetivo residia
em fazer com que “a ordem social e a estabilidade governa
mental sèjam. . . mantidas”20.
Os líderes bolcheviques, apertados entre os invasores ale
mães a oeste e o Japão expansionista a leste, fizeram freqüentes
aberturas no sentido de relações amistosas com os Estados
Unidos, mas Wilson permaneceu firme em sua ideologia e
em sua atitude. “Não creio que se deva temer quaisquer con
seqüências de nossas negociações com os bolcheviques”, es
creveu êle a um senador americano em 1918, “porque não
pretendemos negociar com êles”30. As fantásticas elucubra-
ções sôbre aquilo que os bolcheviques poderiam algum dia
fazer com o mundo foram logo tratadas com descrições da
quilo que estariam realmente fazendo, fomecendo-se assim a
justificativa para a intervenção militar americana e aliada na
União Soviética — uma intervenção que, segundo Williams
observa, prolongou e aguçou a guerra civil, causou sérios danos
à economia russa e provocou uma perda em recursos humanos
e materiais maior do que a causada pela revolução.
Esquecendo sua dedicação ao princípio de autodetermi
nação, Wilson declarou aos dirigentes inglêses que defendia
a intervppfeo mesmo “contra a vontade do povo russo, sabendo
113
que ela era feita, em última instância, para seu b e m ...”31
Assim, êle inaugurou a estratégia da contra-revolução perma
nente e contribuiu para a elaboração dos fundamentos ideo
lógicos e políticos da guerra-fria que viria no futuro.
Enquanto em pequeno número de americanos influentes
se opunha à intervenção, acreditando que os bolcheviques
estavam dispostos a fazer negócios com os Estados Unidos e
em condições de manter-se no poder em seu país, a grande
maioria de nossos políticos cerrava fileiras em tômo de Wilson.
“A Rússia comunista”, disse Herbert Hoover, falando inclusive
para o Presidente, “era um espectro que aparecia quase dia
riamente na Conferência de Paz de Versalhes”. Diante da
revolução comunista na Hungria, Wilson e Hoover — apesar
de suas divergências sôbre a Liga - puderam trabalhar efi
cazmente em comum, manipulando abastecimentos de gêneros
alimentícios e enviando ajuda militar aos contra-revolucioná-
rios.
O que foi dito a respeito do Papa Pio X II, isto é, que êle
ofereceu apenas uma oposição tênue ao nazismo em virtude
de sua preocupação com o bolchevismo, considerando mesmo
os alemães como uma arma potencial contra a União Soviética,
seguramente pode ser repetido em relação a muitos políticos
ocidentais no período da Primeira Guerra Mundial e posterior
mente. Foi o secretário Lansing que observou que o abso-
lutismo e o bolchevismo constituíam as duas grandes ameaças
do mundo moderno, mas o bolchevismo era “o maior dos males,
pois destruía a lei e a ordem”32. As habilidades das políticas
inglêsa e francesa durante a guerra civil espanhola, as vacila-
ções ocidentais em relação as exigências expansionistas de
Hitler antes da guerra, a relutância dos líderes em aliar-se aos
soviéticos em qualquer pacto antinazista e a recusa dos Es
tados Unidos a assinar um pacto de não-agressão com a URSS
e a China contra os militaristas japoneses — tudo isto sugere
que os dirigentes capitalistas ocidentais, em última instância,
estavam mais preocupados com o espectro bolchevique do que
114
com a ameaça fascista. O advento de Mussolini ao poder foi
saudado na imprensa americana, na década dos 20, como um
antídoto salutar e estabilizador para os problemas da Itália83,
e a ascensão de Hitler não foi considerada como representando
um perigo significativo para a paz mundial. A preocupação
americana era com a conspiração comunista internacional*.
A reação americana à agressão contra o Eixo foi equívoca.
Alguns dos círculos ligados a Roosevelt encaravam o Japão e
a Alemanha como perigos potenciais para as rotas comerciais,
mercados ultramarinos e regiões fornecedoras de matérias-pri
mas para os Estados Unidos. Em 1940, da mesma forma que
em 1914, largos setores da população americana definiam o
conflito como “não sendo da nossa conta”. Alguns dirigentes
de corporações e políticos, temendo as sublevações revolucio
nárias que surgiram em conseqüência da guerra, acreditavam
que a América devia concentrar-se na construção de um im
pério econômico impermeável no hemisfério ocidental, dei
xando que os beligerantes se esgotassem uns aos outros34. “O
papel desta grande república”, afirmou o senador Harry Tru
man em 1939, “é o de salvar a civilização; devemos permanecer
fora da guerra”. Contudo, quando Pearl Harbor decidiu a
questão, nos comprometemos com um conceito de vitória que
significava uma solução total dos problemas da guerra e da
paz. Os Estados Unidos saíram da Segunda Guerra Mundial
determinados a não cometer novamente “os mesmos erros”,
dedicados a uma idéia não prèviamente testada de segurança
coletiva e intervencionismo global, e convencidos de que “6
destino confiou a uma nação relutante” o encargo da liderança
mundial. A ameaça desta vez era, supostamente, o comunismo
soviético e o que estava em jôgo eram a nação e a própria
civilização. Se o globalismo wiísoniano perdeu a batalha da
Liga, êle venceu a guerra pela conquista dos espíritos ame
ricanos da geração posterior a Munique.
«
33 Fred Israel, “Mussolini’s First Year in Offioe as Reflected in the
New York Press”, Tese de mestrado, Universidade de Colúmbia, 1955.
0 Especialmente a Ameaça Vermelha de 1919-20, as razzias de
Palmer e o aparecimento da vigilância anticomunista popular e parla
mentar. Ver Capítulo quatro.
34 Williams, T h e Tragedy o f American D ibplom acy, pág. ^44.
115
7
A Santa Cruzada:
Alguns mitos de origem
Para o americano, uma guerra não é uma guerra a
menos que seja uma cruzada.
S a m u e l P. H u n t i n g t o n
116
ses, etc., estará pronto a admitir da mesma forma que, mais
recentemente, fomos hipócritas, injustos e agressivos em nossas
relações com os russos, cubanos e chineses? Em nenhum ponto
a propensão da América a ver apenas a virtude em suas ações
é mais evidente do que no tipo de pensamento que nos levou
à guerra-fria. Examinemos a mentalidade de guerra-fria, tese
por tese.
118
secretário de Estado James Bymes disse a um cientista que
a bomba era necessária para “tomar a Rússia mais controlável
na Europa”6. Durante o processo Oppenheimer de 1954, o
chefe do Projeto Manhattan, Gen. Grove, testemunhou:
" . . . Nunca houve, a partir de duas semanas depois que assumi
a direção do Projeto, qualquer ilusão de minha parte: a Rússia
era o inimigo e o Projeto devia ser conduzido com base nis
s o . . . Evidentemente isi;o foi comunicado ao Presidente”7.
Como observa Bert Cochran, tais são as contingências da po
lítica internacional, que uma bomba monstruosa, desenvolvida
por refugiados europeus para derrotar Hitler, foi, ao invés
disto, lançada em duas cidades japonêsas e, mesmo antes de
testada, já era sèriamente considerada como arma a ser uti
lizada contra nosso aliado russo.
Muito antes que a aliança de guerra começasse a desin
tegrar-se, os círculos em tômo de Truman estavam convencidos
de que negociações amistosas com a União Soviética após a
guerra não eram possíveis nem desejáveis e de que o compro
misso — que é a essência da diplomacia — era equivalente à
derrota ou à traição. O senador Vandenberg, considerado um
dos arquitetos de nossa política bipartidária de guerra-fria,
regozijou-se com o impacto provocado pelo Presidente Truman:
“Esta é a melhor notícia que tivemos em muitos meses. A
condescendência rooseveltiana com a Rússia terminou”. Êle
e Harriman freqüentemente acentuaram a necessidade de evi
tar-se qualquer compromisso com os soviéticos. O próprio
Truman, ainda em 1945, escreveu: “Não creio que devamos
jogar com compromissos por mais tempo”8.
Tornou-se claro, tão claro como o fôra em 1945-46, que o
único meio de as duas nações poderem chegar à solução das
’ 119
questões em jôgo consistia em capitularem os soviéticos diante
de cada exigência americana relativa às esferas de influência:
Polônia, indenizações alemãs, etc. Qualquer outra solução de
mandaria um certo tipo de compromisso, e os compromissos
eram agora repudiados como política errônea. Foi êste tipo de
mentalidade que levou Walter Lippmann a observar: “A histó
ria da diplomacia é a história das relações entre potências ri
vais que não apresentam intimidade política e não respondem
ao apêlo de objetivos comuns. Não obstante, acordos têm sido
atingidos. . . Pensar que potências rivais e que nutrem hostili
dade recíproca não podem alcançar um acôrdo é esquecer o
que é próprio da diplomacia”9.
Truman e seus conselheiros se orgulhavam de passarem
por hostis à União Soviética bem antes daqueles acontecimen
tos do pós-guerra que, supostamente, precipitariam a guerra-
fria. Aqui, o ideólogo da guerra-fria pode argumentar: se,
de fato, a administração Truman previu e preparou-se para
um conflito com a URSS muito antes da ruptura efetiva da
aliança estabelecida durante a guerra, esta administração deve,
então, ser congratulada por sua amplitude de visão, pois na
verdade tal conflito acabou ocorrendo. Esta opinião vê nas
atitudes e ações de Truman uma mera antecipação das rea
lidades que estavam destinadas a surgir; ela considera que à
diplomacia americana não coube qualquer participação na
gestação destas mesmas realidades. Ignora-se, aqui, a possi
bilidade de que a atitude beligerante e avêssa ao compromisso
de Truman tenha sido justamente um fator decisivo na gera
ção do conflito e na eliminação de uma modalidade de acomo
dação entre a União Soviética e os Estados Unidos, aquela,
justamente, que começa a delinear-se hoje*.
9 Walter Lippmann, The C old W ar, New York, 1947; ver também
Martin F. Herz, Beginnings o f the C old W ar, Bloomington, Indiana
University Press, 1967.
* Herz em Begnnings o f th e C old W ar, reproduz o texto das con
versações de 1945, entre Hopkings e Stalin, nas quais Stalin observa
que o advento de Truman ao poder e a nova beligerância da política
americana causaram “um certo alarma” no Kremlin,
120
“NÓS NOS PREPARAMOS PARA A PAZ,
ÊLES PARA A GUERRA”
121
cance cercavam a periferia do território soviético.) Frotas
aeronavais americanas controlavam os céus e os mares, enquan
to os soviéticos dispunham de uma marinha realmente débil
e não tinham fôrça aérea estratégica de longo alcance. Foi
esta situação que levou Henry Wallace a observar, em 1946:
122
trangulado, prêsa fácil e impotente diante de qualquer anão
armado de um canivete de bolso”13. •
Pode argumentar-se que a América, potência essencial
mente aeronaval, em contraste com o poder terrestre soviéti
co, tinha de manter fôrças de combate preparadas, como meio
preventivo contra uma invasão relâmpago da Europa Ociden
tal pela Rússia. (Êste argumento, pelo menos, desfaz o mito
do “desarmamento total” da América no pós-guerra). Falta,
contudo, qualquer prova de que Stalin tenha alimentado tais
planos ou de que os soviéticos desejassem e fôssem capazes
de lançar-se uma vez mais numa guerra em larga escala. Se
gundo estimativas moderadas, os Russos perderam entre quin
ze e vinte milhões de cidadãos na Segunda Guerra Mundial;
quinze grandes cidades foram total ou substancialmente des
truídas; seis milhões de prédios foram arrasados, deixando de
sabrigadas vinte e cinco milhões de pessoas; foram destruídos
sessenta e cinco mil quilômetros de ferrovias, trinta e uma
mil oitocentos e cinqüenta emprêsas industriais, cinqüenta e
seis milhas de rodovias de primeira classe, noventa mil pon
tes, dez mil centrais elétricas, três mil depósitos de combus
tíveis e cento e vinte e sete mil colégios, faculdades e biblio
tecas; noventa e oito mil fazendas coletivas foram saqueadas,
e abatidas centenas de milhões de cabeças de gado. E a re
lação poderia ser prolongada14. Contrastando com isso, os
Estados Unidos tinham, dentro de suas fronteiras, três quar
tos do capital investido no mundo e dois terços da capacidade
industrial. Deveria parecer altamente duvidoso, mesmo para
os não-especialistas, que a União Soviética exausta, mutilada
e quase mortalmente ferida de 1946-47, com uma fôrça mi
litar que sofrerá uma redução da ordem de setenta e cinco
por cento e uma população que, depois de sofrer mortes e
destruições indescritíveis, aspirava apaixonadamente pela paz,
estivesse propensa a lançar-se numa guerra de agressão con
tra a Europa.
123
“OS *RUSSOS SÃO INTRATÁVEIS, ENGANADORES,
PÉRFIDOS, E T C . . . ”
124
Polônia, e sim o que conseguiriam os dois países persuadir a
União Soviética a aceitar”16 ■
A imagem que apresenta Stalin como um revolucionário
pérfido e avêsso aos compromissos que, em Ialta e Teerã, urdia
sua trama para dominar *o mundo parece menos plausível do
que a de um outro Stalin, cauteloso dirigente nacionalista,
consciente da extensão — „mas também das limitações — de
seu próprio poder; às vêzes capaz de pressionar para obter
vantagens mas pronto a fazer concessões; freqüentemente des
confiado das intenções dos ocidentais* mas esperançoso
sempre de cooperação ativa; ambíguo às vêzes mas quase sem
pre mantendo sua palavra. Sua meta residia em garantir-se
com acôrdos que protegessem os interesses imediatos da URSS.
Seu método era, não o do desafio ideológico, mas o da diplo
macia tradicional.
De qualquer forma, seus êxitos diplomáticos tampouco re
presentaram algo de extraordinário. Fracassou na tentativa de
obter direitos sôbre o petróleo do nordeste do Irã, ao passo
que as companhias americanas retomavam cèleremente àquele
país. Por insistência das potências ocidentais, aceitou com
relutância a inclusão da França na Comissão de Contrôle para
a Alemanha. Ainda por insistência delas, concordou finalmen
te, em Ialta, com a entrada da URSS na guerra contra o Japão
no prazo de três meses — o que realmente fêz, rigorosamente
ao cabo dos três meses — ao mesmo tempo em que barganha
va direitos econômicos e estratégicos temporários sôbre a Man-
chúria, contra a hegemonia americana no Japão e na China.
E, com efeito, os russos abandonaram voluntàriamente a Man-
chúria, em estrita obediência aos acôrdos estabelecidos, não
sem antes, é verdade, retirar daquele país as fábricas. Teria
125
sido imposáível a qualquer potência desalojá-los da Manchú-
ria e, o que é mais, êles na verdade poderiam fàcilmente apre
sentar, para a sua não retirada, a desculpa de que isto trans
formaria a região num campo de batalha da guerra civil chi
nesa, perturbando o sistema ferroviário russo, como de fato
sucedeu.
Consciente de que a URSS ficaria em minoria nas Nações
Unidas e recordando-se da maneira como a Liga das Nações
colocara aquêle país no pelourinho por ocasião da guerra russo-
filandesa ae 1939 ( “a mesma Liga que jamais levantou um
dedo contra Hitler e nunca fêz qualquer coisa contra qualquer
ato de agressão”), Stalin exigiu que se estabelecesse um rígi
do sistema de veto e, com uma certa rudeza, reivindicou de
zesseis votos na ONU (um para cada república soviética)17.
Ao invés de dezesseis, concordou com três*, e então, em am
biente de confusão, assentiu em anular o que obtivera ao apoiar
a concessão de três votos também aos Estados Unidos, direito
do qual nosso país jamais se valeu**.
A imagem, que recebeu ampla divulgação na imprensa
americana, de uma delegação soviética intratável, sem desejo
de cooperar e inclinada a fazer soçobrarem as conferências do
pós-guerra, não é uma representação justa do comportamento
soviético nos primeiros dias de negociações. Na sessão inau
gural das Nações Unidas, em São Francisco, a atmosfera’ era
bastante amistosa, até que se deu um sério atrito entre os
Estados Unidos e a URSS em tômo da admissão da Argenti
na. Em Ialta, Roosevelt por duas vêzes prometera a Stalin
que os Estados Unidos não apoiariam a admissão da Argentina,
refúgio do movimento fascista no hemisfério ocidental. Em
São Francisco, contudo, outra era a opinião dos conselheiros
políticos de Truman e Vandenberg. Armados com um núme
126
ro de votos latino-americanos suficiente para derrotar a pro
posta de Molotov de adiar o debate da questão . .por al-
f uns dias, para um reexam e.. . É apenas isto o que requér a
elegação soviética”), os Estados Unidos conseguiram forçar
a admissão da Argentina*, Contudo, apesar das discordân-
cias em São Francisco, James Reston escreveu, naquela época:
“O balanço da Conferência revela, observa o delegado, dez
concessões feitas pela Rússia que muito contribuíram para li
beralizar as proposta de Dumbarton Oaks”. E o conservador
Arthur Crock pôde dizer que a URSS se conduziu “como uma
grande potência em geral disposta a cooperar no que se refere
à tarefa em questão”18.
A intransigência e hostilidade russas, como se argumen
tou freqüentemente, derrotaram todos os esforços no sentido
do oontrôle da energia atômica em tempos de paz. O famoso
Plano Baruch, proposto pelos Estados Unidos em 1946, era
supostamente um esforço dêsse tipo. Êle foi saudado pelos
americanos como uma solução destinada a impedir a prolife
ração das armas atômicas, colocando tôda a indústria atômica
a serviço da humanidade. Sidney Hooke o descreve como
uma “oferta por parte dos Estados Unidos no sentido de re
nunciar a seu monopólio atômico em benefício de uma autori
dade internacional.. .”19
Um exame mais minucioso das propostas de Baruch nos
revela quadro bastante diverso: uma comissão atômica inter
nacional (com os Estados Unidos exercendo o controle majo
ritário na votação) deveria ter a propriedade exclusiva de tôda
a pesquisa atômica, matérias-primas e indústriais atômicas em
todo o mundo. Isto exigiria um contrôle ilimitado sôbre o
território e a indústria russas e a renúncia ao contrôle sobera-
127
no de todo o desenvolvimento atômico soviético, em benefício
da autoridade internacional. Enquanto isto, os Estados Uni
dos continuariam produzindo bombas atômicas até que esti
vessem convencidos, em data não especificada, de que o con
trôle total fôra estabelecido e de que todos os outros riscos
imagináveis à sua segurança foram eliminados; então, conver-
tiríamos o nosso estoque de armas para uso pacífico “sujeito,
é claro, aos nossos processos constitucionais”, e permutaría-
mos a informação e a tecnologia dos Estados Unidos com a
autoridade internacional. Tratava-se simplesmente de dar aos
americanos tôdas as garantias, e aos russos todos os riscos.
Entretanto, havia um perigo: que ocorreria se Moscou, num
gesto masoquista, aceitasse a proposta? Previa-se abertamente
que, neste caso, o Senado se recusaria a ratificar o acôrdo;
nem o Congresso nem os militares estavam interessados em
controles internacionais, por mais falhos e unilaterais que
fôssem*20.
128
na, estabelecer uma zona de nações amigas da Europa Orien
tal e manter inofensiva a Alemanha. Cuidando de não hos
tilizar seus aliados, insistiu junto ao Partido Comunista Italiano
para que êste fizesse a paz com a Casa de Savoia e, em 1944,
foi tão longe a ponto de reconhecer o govêmo italiano do
Mal. Badoglio, para desalento da esquerda italiana. Persuadiu
os partidos comunistas da França e da Itália, as mais podero
sas organizações políticas e"m seus respectivos países, a desar
marem seus partisans c quadros operários, a dar apoio inte
gral e aceitar posições minoritárias nos governos burgueses do
após-guerra®, posições “a partir das quais êles não podiam es
perar a conquista do poder, nem agora nem mais tarde, e das
quais deveriam finalmente ser alijados pelos demais partidos,
quase sem dificuldades”21.
Por tôda parte, as ações de Stalin revelaram o mesmo con
servadorismo. Sustentando sua barganha com Churchill no
sentido de fazer da Iugoslávia uma esfera de influência anglo-
soviética, na base do fifty-fifty, pediu insistentemente a Tito
que apoiasse a monarquia iugoslava e ordenou-lhe que trou
xesse para Belgrado o govêrno exilado do rei Pedro. Tito
recusou-se a obedecer. De modo similar, Stalin insistiu junto
a Mao Tsé-tung para que aceitasse uma posição subordinada
no govêmo de Chiang Kai Chek. Em Potsdam, foi ao ponto
de desacreditar os comunistas chineses, afirmando que o
Kuomintang era a única fôrça política capaz de governar a
China. Mas, diferentemente dos comunistas franceses e italia
nos e à semelhança de Tito, Mao recusou-se redondamente a
aceitá-lo, declarando que terminaria por conquistar tôda a
China22. Esses fatos não fornecem qualquer apoio à afirma-
129
ção de que Stalin precipitou a guerra-fria movendo-se “ine-
xoràvelmente no caminho previsto”, num desafio revolucioná
rio direto ao Ocidente.
130
É significativa a que não foi o “desafio soviético” à po
sição ocidental e sim o desafio ocidental à posição soviética na
Europa que levou aos primeiros conflitos sérios. O fato de
que a União Soviética simplesmente não aceitou os têrmos
americanos na questão *dos Bálcãs, recusando-se a aceitar a
política defendida por Truman, foi tomado como demonstra
ção da hostilidade russa. ° A decisão de Truman de intervir e
pôr em jôgo o prestígio americano na Europa Oriental não
conseguiu reduzir a hegemonia soviética e ampliar a influên
cia americana naquela região. O único efeito que pode ter
tido foi o de endurecer a política soviética. Pois não é nada
certo que, em 1945-46, Stalin pretendesse estabelecer um con
trole comunista absoluto sôbre as nações orientais. Como
Deutscher observa:
131
tralidade foi criado para todo o país*. Na Tchecoslováquia,
o Exército Vermelho retirou-se em fins de 1945, sendo ins
tituído um govêmo democrático aceitável tanto para a Rússia
quanto para os Estados Unidos.
Se os russos estivessem traçando planos para um controle
comunista férreo da Europa Oriental, certamente estavam tor
nando as coisas difíceis para êles mesmos ao organizar elei
ções livres, aceitar governos de coalizão e não-comunistas e
retirar as fôrças militares russas. Na realidade, parece que
os soviéticos estavam preparados para aceitar regimes demo
cráticos, e mesmo não-socialistas, em suas fronteiras, na medi
da em que êsses governos não se opusessem ao Kremlin em
questões de política externa e segurança. A Finlândia repre
sentava um modêlo para êsses países fronteiriços, da mesma
forma que a Tchecoslováquia, antes do golpe de 1948**.
Shulman resume a questão da seguinte maneira:
132
A questão que mais irritou os americanos e que deveria
tomar-se o foco de slogans anticomunistas sôbre a “traição so
viética” foi aquelas das “eleições livres” e da “não-interferên-
cia” na Polônia. Stalin negou-se a aceitar o grupo de exilados
poloneses anti-russos de Londres apoiado pelo Ocidente, des
crito por Deutscher como “uma coalizão dúbia de camponeses
semiconservadores, socialistas moderados e outras pessoas que
não poderiam ser consideradas, qualquer que fôsse o critério
adotado, ‘oriental’ ou ‘ocidental’, como democratas”27. Con
vencido de que a Polônia, que por duas vêzes foi o corredor
para a invasão alemã da Rússia, deveria ter um govêmo pró-
soviético, e de que o Ocidente havia concordado com sua li
berdade de ação naquela área, Stalin instalou seu próprio
grupo de Lublin0, medida que foi finalmente seguida pela
supressão da oposição e por eleições fraudulentas em 1947.
Qualquer que seja a legitimidade dos interêsses soviéticos
na Polônia, não existe justificativa moral para as prisões,
execuções e outras medidas de tirania política adotadas na
quele país. Mas a insistência ocidental no sentido de que
Stalin introduzisse na Polônia a democracia segundo o modêlo
ocidental, embora louvável em si mesma, não foi acompanha
da de qualquer tendência a praticar o mesmo em suas pró
prias esferas de influência. Ao contrário, os 'Estados Unidos
e a Inglaterra apoiaram ditaduras na Grécia, Turquia, Iraque,
Egito e na China do Kuomintang. Na Grécia, tropas inglê-
sas restabeleceram o regime parafascista cometendo mais atos
intervencionistas de violência, assassinato e repressão política do
que os comunistas julgaram necessário cometer na Polônia**.
133
I
134
A União Soviética, logo depois do término da guerra, era
um país bastante preocupado com sua própria reconstrução
industrial, determinado a ser reconhecido e tratado como gran
de potência e ainda confiante na possibilidade de ajuda eco
nômica, comércio e relações estáveis com seus antigos aliados.
Em 1945, o Izvéstia acentuava a necessidade de resolver os
problemas existentes por meio de negociações e de assegurar
a cooperação econômica com o Ocidente29. Stalin tinha uma
visão decididamente otimista do futuro: garantida a possibili
dade de desenvolvimento pacífico à Rússia, o comunismo se
tomaria cada vez mais atraente a um número crescente de
países em todo o mundo, especialmente nas regiões subdesen
volvidas. Mesmo em 1952, num trabalho de evidente con
teúdo político, Problemas Econômicos do Socialismo, Stalin
atacou aquêles que, dentro de seu partido, previam a guerra
com o Ocidente. Embora estivesse convencido, àquela época,
de que as potências capitalistas representavam grande perigo
para a segurança soviética, acreditava que, na medida em que
Moscou pudesse manter seu poderio, o Ocidente não se sen
tiria encorajado a atacar. Mais ainda, previa que os países
capitalistas, incapazes de superar a imensa irracionalidade de
seu sistema sódo-econômico, defrontando a superprodução
crônica, o desemprêgo e a concorrência de mercados — torna
da ainda mais intensa pela perda das possessões coloniais —
terminariam por entrar em conflito agudo uns com os outros.
Com aparente seriedade, Stalin previa que a próxima guerra
de vulto envolveria países capitalistas numa clássica competi
ção de mercados. A tarefa do Kremlin, nesse caso, consistiria
em assegurar sua fronteira ocidental, continuar a construir sua
economia e sua defesa, evitar aventuras políticas externas e
deixar que a história marxista-leninista seguisse seu curso.
Esta prudência e êste conservadorismo, alimentados por
uma visão do mundo ideològicamente otimista, não represen
tavam um fato nôvo na diplomacia soviética. Desde sua cria
ção, a URSS tinha aprendido a necessidade de contenção na
política externa. Isto não quer dizer, entretanto, que os russos
136
soviéticos “aprendessem” a cooperar e, em seguida, definiam
a “cooperação” como capitulação em relação aos princípios
americanos.
Anos mais tarde, alguns teóricos da guerra-fria deviam
argumentar que nossa política “dura” na Europa provocou um
"abrandamento” do comportamento soviético: confrontados com
o poderio militar dos Estados Unidos, que os impedia de de
vorar tôda a Europa, os sçviéticos desistiram de seus planos
de invasão, reconciliaram-se com a realidade e finalmente tor
naram-se mais moderados em sua atitude para com o Ociden
te. Esta teoria pressupõe exatamente aquilo que deve ser
questionado com todo rigor: será que os soviéticos tinham a
intenção de conquistar a Europa Ocidental? Poderíamos di
zer, como o fêz Fred Warner Neal, que nos armamos contra
aquilo que imaginávamos ser uma invasão soviética iminente
e, quando esta invasão não veio, consideramos isto como uma
consagração daquilo que fizemos para impedi-la30. A tese
pressupõe também outras questões de que trataremos no pró
ximo capítulo: será que a dureza de um lado provoca o abran
damento do outro? a militância soviética do fim da década
dos 40 e dos 50 é causa ou efeito da beligerância americana,
ou uma coisa e outra ao mesmo tempo?
138
dos Unidos partiram para uma política de “contenção” do
poder soviético1. A política de forçar o “retrocesso” baseara-
se na suposição de que os russos pretendiam estabelecer-se
definitivamente na Europa Oriental; agora, a “contenção” re
lacionava-se com a idéia de que pretendiam estender sua es
fera de influência a tôda a Europa, ao Oriente Médio, à Ásia,
etc. A política americana era definida em têrmos abertamen
te mais defensivos apenas na pedida em que a política sovié
tica era considerada como sendo mais ofensiva. Trocando a
queixa de que “os russos não querem sair da Polônia” pela
acusação de que “os russos querem tomar o poder em todo o
mundo”, os dirigentes americanos podiam definir qualquer in
surreição política fora da esfera soviética como uma projeção
do poder de Moscou e, com isso, justificar qualquer interven
ção americana como uma tentativa no sentido de contê-la.
Assim, quanto mais defensivos nos tomávamos, tanto mais agía
mos de forma agressivamente intervencionista.
A “DOUTRINA”
139
e anunciando a “Doutrina Truman”. Para obter a aprovação
da medida foi necessário, segundo palavras do senador Van-
denberg, “amedrontar como o diabo o país inteiro”, e Truman,
vendo suas inclinações ideológicas reforçadas pela necessidade
política, fêz exatamente isto. Afirmou que tôda a nação esta
va diante de uma opção entre dois modos de vida:
140
número importante de diplomatas e observadores dos países
não-comunistas, opuseram-se publicamente tanto ao tom quan
to às proposições específicas de nôvo credo. Uma pesquisa
da Gallup revelou que cinqüenta e cinco por cento dos ame
ricanos reprovaram o fato cie que Truman ter passado por cima
das Nações Unidas4. Com o tempo, a Doutrina veio a gozar
de uma auréola de consagração que lembra a Doutrina Mon
roe e a Política de Portas Abertas, sofrendo em grande parte
da mesma autojustificação simplista.
Os ideólogos da guerra-fria podem argumentar: “Ainda
que a retórica que inspira a doutrina dos ‘dois modos de vida’
não coincida com a realidade, os Estados Unidos não podiam
dar-se o luxo de escolher seus aliados. O intuito real da Dou
trina Truman residia em conter a expansão soviética e isto
exigia que se apoiasse mesmo aquêles regimes reacionários
que não viviam sob os padrões democráticos usuais”. Mas, era
a guerra civil na Grécia uma manifestação do expansionismo
soviético? Na medida em que as reações pessoais de Stalin
representam algo, pareceria que o Kremlin não estava envol
vido. Em suas Conversações com Stalin, Milovan Djilas, outro-
ra lioutenant de Tito, cita o dirigente russo insistindo junto
aos iuguslavos, em 1947 e novamente em 1948, para que cor
tassem a ajuda à insurreição grega e, mesmo, para que puses
sem fim ao levante “o mais depressa possível”. E fêz pero-
rações semelhantes aos. búlgaros5. Enquanto Truman estava
convencido de estar combatendo o Kremlin na Grécia por
procuração, Stalin, na verdade, era contrário à aventura.
As conseqüências do "êxito” americano na Grécia não
devem passar desapercebidas. A repressão militar prosseguiu
em larga escala depois que os inglêses foram substituídos pelos
americanos. O exército direitista grego empregado no esma-
gamento da revolução social era mais numeroso do que aquêle
de que tinham necessitado os alemães para conquistar todo o
país. Cêrca de cem mil cidadãos partiram para o exílio na
Bulgária, Iugoslávia e Europa Oriental. Muitos outros milha
141
res foram mortos, e milhares internados em campos e prisões.
Apesar dos bilhões de dólares da ajuda americana, concedida
nos vinte anos subseqüentes, a Grécia permaneceu tão longe
como antes de qualquer tipo de melhoria econômica substan
cial. Quatrocentas famílias possuíam a maior parte da riqueza
e da terra, enquanto a grande massa dos gregos, especialmen
te os das áreas rurais, continuava a viver em abjeta pobreza.
O Doutrina Truman não foi mera resposta à situação gre
ga; foi a expressão de um antagonismo anticomunista messiâ
nico de longa data, que vinha procurando sua oportunidade.
Já na Conferência de Londres dos Ministros do Exterior, em
setembro de 1945, Truman decidira proclamar uma cruzada
ideológica contra a Rússia e uma divisão da humanidade em
Mundo Livre e Mundo Escravizado. “Êle tomou então a de"
cisão de que, assim que surgisse a oportunidade adequada e
que o Congresso e o povo a reconhecessem como tal, procla
maria a nova doutrina”, escreveu Arthur Krock no New York
Times. “Em diversas ocasiões, êle pensou que a ocasião che
gara, mas alguns de seus mais importantes conselheiros con
venceram-no a não fazê-lo”. A retirada britânica da Grécia
forneceu o pretexto para seu “objetivo longamente entretido”6.
DA “DUREZA” À LOUCURA
142
impíementaçâo do Plano Marshall, que seria logo seguido por
arranhaduras unilaterais dos ocidentais nos acôrdos de Pots-
dam e pela unificação de suas zonas numa Alemanha de orien
tação ocidental. Os russos já então estavam convencidos de
que os Estados Unidos se preparavam para construir um bloco
anti-soviético na Europa Ocidental e, o que é pior, um bloco
que incorporaria uma Alemanha militarmente renascida, temor
obsessivo dos soviéticos. Vichinsky revelou a opinião soviética:
143
da, os* não-comunistas foram afastados dos governos da Euro
pa Oriental. Mesmo facções políticas apenas remotamente
hostis aos interêsses soviéticos foram liquidadas e a democra
cia disposta à colaboração instalada na Tchecoslováquia foi
suprimida por um golpe de estado sem derramamento de san
gue, aumentando com isto o pesadelo ocidental da subversão
comunista. O efeito da Doutrina Truman e da OTAN foi
precisamente o de apressar a stalinização da 'Europa Oriental.
Em Moscou, a “linha dura” entrava claramente na ordem do
dia. O braço direito de Stalin, Jdanov, conclamava à unida
de no campo oriental e a um reagrupamento de todos os par
tidos comunistas no seio do Cominform para fazer frente à
“ameaça ocidental”.
Em 1948, Dean Achesen tomou-se secretário de Estado
e, desde o início, não mostrou esperança de chegar a qual
quer acomodação com a União Soviética. Sua opinião, inteira
mente de acôrdo com a de Truman, era a de que os russos
só compreendiam e respeitavam “posições de fôrça”. O fato
de que Acheson tenha sido atacado à época de McCarthy
pelos republicanos de direita, como sendo “mole em relação
ao comunismo”, levou muitos liberais a atribuir-lhe uma fle
xibilidade e moderação políticas que jamais possuiu. Uma aná
lise da mentalidade do secretário revela interessante antologia
de imagens apocalípticas. Falando da “ameaça comunista”,
êle disse:
144
da te rra ... E esta doutrina dc liberdade será convin
cente porque vem não só do govêmo mas do coração e
espírito do povo americano. Porque é a autêntica voz
da América, a liberdade ecoará por todo o m undo...
(Uma) ameaça real e presente de agressão se co
loca no caminho de qualquer tentativa de entendimen
to com a União Soviética. Já se disse com muita sabe
doria que não pode haver maior desentendimento do que
aquêle que existe quando alguém pretende eliminar com
pletamente a existência do outro8.
145
A espiral continuava a subir. Em 1954, o secretário de
Estado de Eisenhower, John Foster Dulles, elaborou a sensa
cional doutrina da “retaliação maciça”. Sempre que confron
tados por qualquer tormenta revolucionária local que conside
rássemos representar uma agressão comunista, ao invés de em-
penharmo-nos em dispendiosas guerras territorais, podèríamos
decidir golpear o foco original da agressão, supostamente
Moscou, com todos os meios à nossa disposição. Dulles não
estava só em suas elucubrações termonucleares; outras vozes
no Congresso e no país estavam pedindo uma “demonstração
decisiva de fôrça” diante de Moscou. Um ano antes, o sena
dor Lyndon Johnson afirmara:
146
Quando foi adotada e proclamada por Duíles, a tese da
“retaliação maciça” provocou uma onda de apreensão em todo
o mundo e um impacto de críticas dentro do próprio país.
Contudo, para a maioria dos americanos, como observa Coch
ran, “esta estratégia de tu8o ou nada. . . alimentava nossa ne
cessidade autoprovocada de desempenhar o papel de árbitro
mundial. E prometia também economizar dinheiro. Um gol
pe bem dado! Quem poderia resistir?” Não os russos, certa
mente. Em 1953, êstcs explodiram um engenho termonuclear
altamente desenvolvido e, um ano e meio depois da proclama
ção de Dulles, revelaram a existência de seus primeiros bom
bardeiros a jato de médio e longo alcances. A ‘retaliação ma
ciça” tomou-se uma faca de dois gumes.
Em -outubro de 1953, começaram a chegar à Europa as
primeiras armas atômicas táticas para fazer parte do poder
destruidor da OTAN, em meio a prognósticos dos comandan
tes militares americanos de que, em qualquer confronto com
o Exército Vermelho, essas armas seriam utilizadas com um
efeito devastador. A reação não tardou a vir: o Exército Ver
melho, que havia caído muito abaixo das fôrças americanas
quanto à qualidade do equipamento, iniciou uma moderniza
ção global que incluía a introdução de novas armas atômicas
táticas. A “dissuasão tática”, da mesma forma que a “retalia
ção maciça”, não era mais monopólio de ninguém.
A escalada militar era acompanhada passo a passo pelo
endurecimento diplomático. Em 1956, quarenta e dois países
estavam alinhados em pactos de defesa mútua com os Estados
Unidos. Um país que havia travado guerras para defender
seu direito de ser neutro tinha agora como secretário de Es
tado aquêle que anunciava que “o princípio de neutralidade. . .
tomou-se cada vez mais uma concepção obsoleta e, a não ser
em circunstâncias excepcionais, é uma concepção imoral e de
visão curta”10. O senador Lyndon Johnson eliminava a pos
sibilidade de um meio-têrmo negociável: . . Há uma con
clusão que todos nós podemos tirar. Só existem duas alterna
tivas para a vitória na guerra-fria — a guerra quente ou a es
147
cravidão”11. Na década dos 50, a maioria de nossos aliados
ocidentais, inclusive um dos primeiros arquitetos da guerra-
fria, Winston Churchill, colocavam em questão esta rígida po
sição americana. “Sou de opinião”, disse Churchill, “de que
devemos fazer uma tentativa no sentido da coexistência pa
cífica, uma tentativa realmente séria. . . Estou inclinado a
pensar... que êles (os soviéticos) não desperdiçariam tal opor
tunidade”12. Enquanto o Presidente Eisenhower reintroduzia
a palavra “paz” na política americana, definindo-a como um
objetivo valioso que não implicava necessàriamente em “trai
ção”, seu secretário de Estado continuava a mostrar desprêzo
em relação a qualquer abertura no sentido de negociações.
Assim, Dulles rejeitou a proposta de Churchill em 1953 para
uma conferência de cúpula, afirmando que tal reunião repre
sentaria reconhecimento de fato do status quo na Europa; ao
invés disto, falou da libertação da Europa Oriental pela “re
tirada forçada” dos comunistas. A América, em sua opinião,
não deveria negociar com assassinos, mas basear-se em “po
sições de fôrça”; especificamente, numa Alemanha rearmada
e numa capacidade de ataque termonuclear superior13.
Mas, â medida que aumentava nosso armamento, aumen-
mentavam também nossos temores de um ataque soviético. À
medida que nossas armas se tornavam mais ameaçadoras, nos
sentíamos mais ameaçados*. Na maioria dos casos, nosso temor
decorria de uma compreensão muito mais imaginária do que
real da situação militar. Já em 1947, porta-vozes militares
como os Gens. Spaatz e Groves prestaram um testemunho ve
emente sôbre os horrores e a iminência de um ataque nuclear
russo; isto ocorria dois anos antes que os soviéticos tivessem
sequer experimentado sua bomba atômica e muitos anos antes
que tivessem desenvolvido qualquer coisa que se assemelhasse
a uma fôrça aérea estratégica de longo alcance. De modo
semelhante, em 1956, dirigentes militares, agentes dos lobbies
monopolísticos, publicistas e seus aliados no Congresso aler
148
tavam o povo americano para a perigosa “defasagem dos bom
bardeiros”. Sòmente depois que dotações maciças foram des
tinadas à Fôrça Aérea, tornou-se público que essa defasagem
jamais existiria e que os soviéticos não tinham mais do que
quinze a duzentos bombardeiros de longa escala, contra nosso
poderio de seiscentos e oitenta B-52 e B-58 (não incluindo as
fôrças aéreas da Inglaterra e da OTAN).
A “defasagem de mí&eis” e o temor que ela provocou
tiveram exatamente o mesmo curso vergonhoso. Dois anos
depois que os soviéticos testaram um míssil de longo alcance,
os especialistas, assessorados pelo lobby industrial-militar e
pelos discursos do candidato presidencial democrata às eleições
de 1960, John F. Kennedy, previam uma vulnerabilidade desas
trosa em nossa defesa. O senador democrata-liberal Henry Ja-
ckson a"nunciava que nós e nossos associados do mundo livre
poderíamos em breve enfrentar a ameaça da chantagem balísti
ca”. Sòmente depois que o orçamento militar foi inflado até
dirigir cinqüenta bilhões de dólares em tempos de paz é que
se revelou que havíamos exagerado a ameaça balística russa
em trinta vêzes. Ao invés de uma superioridade de quatro para
um, prevista em 1962, a URSS havia construído apenas cin
qüenta ICBM, aproximadamente tanto quanto já possuíamos —
ou um pouco menos14. O New York Times resumia a situação
da seguinte maneira:
149
se apenas uma invenção, os Estados Unidos se engajaram num
programa maciço destinado a equiparar-nos com mil setecentos
e setenta Atlas, Titã, Minuteman e Polares que se somavam às
esquadrilhas de bombardeiros B-52 e B-58.
Em 1955, a União Soviética assinou um tratado de paz
com a Áustria e retirou seu exército dêsse país. Os teóricos
da guerra-fria jamais explicaram satisfatòriamente- êste fato
a não ser pela argumentação de que os russos, nada fazendo
movidos apenas pela generosidade, concordaram com o tratado
por não terem qualquer interêsse vital em manter uma pre
sença militar na Áustria. Mas, se a política soviética se desti
nava à ampliação contínua do poder comunista na Europa, a
disposição de Moscou de abandonar a Áustria, deixando êsse
país em liberdade para adotar um sistema democrático à moda
ocidental, pareceria ter derrotado os objetivos expansionistas
do próprio Kremlin, Se, contudo, aceitamos a possibilidade
de que o interêsse primordial da Rússia era não a expansão
e sim a segurança de suas fronteiras ocidentais, então o de-
sengajamento de tropas ocidentais e russas e a criação de uma
Áustria unida, porém neutra e desarmada, era um objetivo com
preensível e mesmo desejável da política soviética.
Logo após o tratado com a Áustria, os soviéticos reduzi
ram suas fôrças armadas. Em 1960, Kruschev anunciou nova
redução de um tèrço do pessoal militar, acompanhada.de redu
ções substanciais no orçamento militar. Durante a década dos
60, entretanto, a OTAN prosseguiu sua consolidação, aumen
tando em quarenta e cinco por cento o número de divisões
prontas para o combate e triplicando suas unidades dotadas
de mísseis. O poder de choque da OTAN e sua capacidade
nuclear eram superiores ao dos exércitos do pacto de Varsóvia,
mas isto não tranqüilizou os americanos, da mesma forma que
não o conseguiu a superioridade americana em estoque de
armas nucleares, em bombardeiros e em IGBM *. Funcionários
150
americanos continuavam a dar ênfase â necessidade de reforçar
o “escudo da OTAN” contra um possível ataque soviético.
A explosão de bombas de hidrogênio americanas foi se
guida da detonação de uma “bomba-monstro” soviética; o de
senvolvimento de uma esquadra submarina nuclear americana
dotada de aparelhagem para lançamento de foguetes do fundo
do mar, foi finalmente seguida de realizações soviéticas seme
lhantes, inclusive um míssel do tipo Polaris. O programa de
defesa civil americano foi seguido — mas sòmente depois de
alguns anos — por um programa de defesa civil soviético menos
desenvolvido. ( Os russos, talvez por sua experiência na última
guerra, estavam mais convencidos do que nós de que popula
ções civis não podem ser preservadas num conflito com armas
de hidrogênio.) Ao assumir a Presidência, John Kennedy ime
diatamente acrescentou seis e meio bilhões de dólares ao último
orçamento militar de Eisenhower. No ano fiscal seguinte, seu
próprio orçamento militar e espacial mostrava um aumento de
cinqüenta por cento em relação ao de Eisenhower. Em 1965,
os Estados Unidos podiam lançar uma carga de vinte e três
mil megatons sôbre os russos e êstes poderiam descarregar dez
mil megatons sôbre a América; cada lado calculava agora
quantas vêzes era capaz de “sobrematar” o outro.
A assinatura, em 1963, do tratado de proibição dos testes
nucleares e a posterior “détente” sóviético-americana levaram
muita gente a supor que a corrida armamentista tivesse sido
interrompida. Seria mais verossímel dizer-se que passou a ser
conduzida com menor estardalhaço. Que Moscou e Washing
ton não mais se permitissem oferecer o espetáculo de uma be-
licosidade que os levava a brandir permanentemente os sabres
— como era característico dos primeiros tempos de seu anta
gonismo — não significava que a pesquisa, produção e proli
feração bélica tivesse diminuído. Dois anos depois da proibição
dos testes, os Estados Unidos, e em seguida a União Soviética,
valeram-se das omissões do tratado para explodir poderosas
bombas subterrâneas. Na primeira metade de 1966, os Estados
Unidos aumentaram o número de suas ogivas nucleares na
Europa Ocidental — principalmente na Alemanha Ocidental —
em vinte por cento, de cinco a seis mil, fazendo com que um
escritor observasse que “a confrontação de guerra-fria na Eu
151
ropa, de fato, parece ter adquirido uma mecânica própria, ali
mentada por computadores”18. A guerra do Vietnã provocou
esforços ainda maiores no que se refere à logística militar e
ao desenvolvimento de novas armas.
Numa repetição da “defasagem de bombardeiros” e da
“defasagem de mísseis” dos anos anteriores, vozes conhecidas
começaram a advertir, em 1967, sôbre o advento de “defasagem
de mísseis antimísseis”. Afirmava-se que os russos estavam
construindo um sistema antimíssel em tôrno de Moscou e que
deveríamos empenharmo-nos na construção de um sistema que
custaria trinta bilhões de dólares. Os Estados Unidos já haviam
iniciado um programa multibilionário para dotar nossos mís
seis de ogivas múltiplas e outros artifícios destinados a pe
netrar em quaisquer defesas antimísseis dos russos. No ano
seguinte, dizia-se que os russos estavam tomando medidas
semelhantes para confrontar a decisão dos Estados Unidos de
construir um sistema antimíssil e esperava-se que êles tives
sem ogivas múltiplas sofisticadas por volta de 1972. A maioria
dos peritos em defesa, inclusive o' secretário McNamara, ad
mitia que um sistema antimíssil absolutamente seguro era
impossível; não obstante, o govêmo formulou planos para um
“débil” sistema antimíssil de cinco bilhões de dólares que,
embora inútil diante de um ataque russo, supostamente im
pediria um ataque chinês. Nossa capacidade retaliatória do
“segundo golpe” continuava sendo fator de dissuasão mais do
que satisfatório contra qualquer primeiro ataque por parte da
União Soviética, mas é curioso que não fôsse considerado de
fesa suficiente contra a China, evidentemente mais fraca. Pa
recia mais do que claro que o sistema de cinco bilhões de
dólares representava um subômo do complexo industrial-mi-
litar e uma espécie de seguro contra a acusação — sempre feita
pelo partido político na oposição — de que o partido no poder
estava “negligenciando nossas necessidades de defesa”17.
152
A détente entre o Ocidente e o Oriente não trouxe qual
quer aproximação considerável em relação a outras questões
militares importantes. A proposta soviética de 1966 no sentido
de reduzir suas fôrças na Europa Oriental, caso o Ocidente
tomasse medida idêntica, «ão foi considerada como passível
de negociações pelos Estados Unidos. A proposta do premier
Kossiguin, em fevereiro de 1966, no sentido de um compro
misso comum de não usar armas nucleares contra países não-
nucleares, ou que não tivessem armas nucleares em seus ter
ritórios, recebeu uma resposta fria por parte dos Estados
Unidos. Os Estados Unidos também rejeitaram imediatamente
um compromisso mútuo em que os signatários se empenhavam
em não serem os primeiros a recorrerem a armas atômicas.
Podemos neste ponto resumir a confrontação militar entre
o Oriente e o Ocidente com as seguintes afirmações:
A própria tentativa dos Estados Unidos no sentido de obter
vantagem militar por meio de investimentos gigantescos em
novas armas parece ter induzido os soviéticos a aumentar seus
próprios esforços militares, pelo menos o bastante para pro
porcionar uma “capacidade de dissuasão” que, ainda que não
tão poderosa como a nossa, pudesse causar um grau de des
truição tal que nos levasse a renunciar a qualquer ataque.
Em resumo, cada nôvo “ganho” em matéria de novas armas
tende a levar o lado adversário a maiores esforços que, final
mente, eliminam a vantagem prevista do investimento original.
Num esforço para Construir defesas contra o lado oposto,
Washington e Moscou realizaram uma revolução militar es
tratégica em virtude da qual as armas ofensivas adquiriram
vantagem alarmante sôbre as defensivas. Com efeito, mesmo
se aquêle que se defende puder deter noventa a noventa e cinco
por cento dos mísseis daquele que ataca, os foguetes nuclea
res restantes causariam dezenas de milhões de mortos de cada
lado. Qualquer um dos lados pode destruir os principais cen
tros industriais e populacionais do outro, não importando
quem ataca primeiro.
A conseqüência de tudo isto é que “o poder militar não
mais é uma medida rigorosa da segurança nacional”18. Tanto
153
os Estados Unidos como a União Soviética se tomam cada vez
mais poderosos e menos seguros com o desenvolvimento de
cada nova arma. A própria busca de segurança maximizou
a insegurança; a insegurança crescente apenas estimula cada
um dos lados a uma busca mais intensa do meio supremo de
dissuasão.
154
toque nuclear e do poder de choque americanos superiores e
sempre crescentes, que os Estados Unidos estavam preparan
do-se para uma guerra preventiva. Realmente, alguns dirigen
tes militares soviéticos tinham essa opinião.) Em resumo,
postulamos a existência de uma agressão soviética que deve
ser contida por um poderio militar americano crescente e, em
seguida, indicamos a capacidade militar soviética crescente co
mo prova da agressão soviética.
Assim, os teóricos da guerra-fria argumentaram que o mi
litarismo russo é uma das principais causas do conflito entre
o Oriente e o Ocidente ao passo que o militarismo americano
é simplesmente uma das conseqüências principais dêste con
flito. As ações americanas são encaradas como puramente de
fensivas, opinião que só pode ser sustentada caso não se leve
em conta a seqüência real dos acontecimentos na corrida ar-
mamentista e se suponha que os Estados Unidos atuem no
cenário mundial principalmente como uma variável dependente
e em resposta às ações de outras potências. Mesmo que acre
ditemos que isto ocorra, devemos lembrar que outras potências
também reagem dêsse modo às ações do poderio e da política
americana, ou em antecipação a elas. As ações americanas ja
mais são apenas um efeito, são também causa. Pelo simples
pêso de sua presença, os Estados Unidos geram respostas, fre
qüentemente de caráter negativo, por parte de outros países.
Parece que não nos ocorreu que o próprio adversário possa
estar reagindo defensivamente em relação a nós, mesmo quando
estamos reagindo defensivamente em relação a êle. Êle encara
nosso poderio e nossas ações não como medidas justificadas de
defesa, e sim como manifestação de intenções agressivas. Com
cada um dos lados fazendo as mesmas suposições sôbre o outro,
chegamos àquilo que os psicólogos Ralph K. White e Charles
E. Osgood chamaram de “reflexo no espelho" das relações
americano-soviéticas19. Cada um dos lados opera de acôrdo
com as seguintes suposições:
155
a) recusa a acreditar que o outro lado seja motivado pelo
temor a nós ( “O que êles poderiam temer em nós?”), posição
que só pode ser mantida porque:
b ) há uma crença mútua de que o outro lado tem ima
gem idêntica à que temos de nós mesmos ( “Não sòmente nós
sabemos que não queremos a guerra, mas êles sabem que não
queremos a guerra. Êles sabem que somos amantes da paz,
dignos de confiança, destituídos de intenções agressivas, etc.”)
Sua própria recusa a concordar com essa opinião é tomada
como prova de duplicidade vergonhosa.
c) há uma crença mútua de que o outro lado tem de si
mesmo a mesma imagem que temos dêle. ( “Não sòmente êles
sabem que nós somos virtuosos, como sabem que êles são pér
fidos, agressivos, mal-intencionados, maus, etc. É claro que
êles não admitem isto, mas mostre-me um diabo que não sabe
que êle é um diabo”).
d) diante das suposições acima, o antagonismo revelado
pelo outro lado é considerado como motivado por intenções
agressivas e não por temor defensivo. E a agressão só pode
ser impedida inspirando ao agressor respeito por nosso próprio
poderio. Assim, cada um dos lados se sente obrigado a recor
dar ao outro sua própria capacidade militar e beligerância
potencial, ao mesmo tempo que proclame sua devoção à paz,
incongruência que se apresenta como simples hipocrisia aos
olhos do oponente.
Quaisquer concessões, passamos a acreditar, serão tomadas
pelo adversário como sinal de fraqueza, “falta de firmeza”,
convite a que êle se aproveite de nossa debilidade. Ao mesmo
tempo, nossa recusa a fazer concessões aumenta sua intransi
gência, permitindo-nos denunciar sua. relutância a cooperar na
construção da paz. Tôda a política é, com isso, reduzida a
uma atitude beligerante e pobre: “incrementemos as fôrças da
liberdade”.
A partir de um certo momento da disputa, talvez mesmo
logo de início, torna-se difícil dizer qual dos lados está agindo
e qual dêles está apenas reagindo. O que temos diante de nós
é um dos fenômenos mais comuns e perturbadores nas relações
humanas: a profecia que se realiza por si mesma. Convenci
156
dos de que nos defrontamos com um inimigo mortal, come
çamos a tratá-lo como se assim fôsse e êle logo se torná mal.
Uma definição falsa ou parcialmente falsa da situação provoca
um comportamento que tende a tomar verdadeira a concepção
originalmente falsa. Tô8a ação hostil gera uma resposta do
adversário, resposta que parece justificar a ação inicial e exigir
um “endurecimento” ulteriar. A “validade suposta da profecia
que se cumpre por si mesma”, observa Robert Merton, “eter
niza o reino do êrro”20.
Segundo os políticos de Washington, muitos dos quais ja
mais foram claros e coerentes a êsse respeito, os comunistas
podem ser divididos entre os que acreditam na revolução por
meio de uma transição gradual e pacífica e o que defendem
sublevações violentas. Êstes últimos são supostamente mais
ameaçadores e piores do que os primeiros. Se pretendemos
reforçar os moderados, prossegue a argumentação, devemos ser
duros e inconciliáveis em nossas aventuras militares, demons
trando, com isto, aos comunistas militantes e de linha dura
que sua política de ativismo violento não terá êxito. Em resu
mo, para encorajar os comunistas a seguir um caminho pacífico,
moderado e insuspeito, devemos utilizar a violência e a dureza
no Vietnã e alhures. Se nos tomássemos “brandos”, como ra
ciocina o funcionário do Departamento de Estado William
Bundy, isto seria “um encorajamento aos partidários da linha
dura de Pequim”21.
Seria mais fácil o sensato raciocinar de modo oposto: uma
vez que são os comunistas moderados que, nos respectivos go
vernos, defendem o ponto de vista de que os Estados Unidos
são, bàsicamente, um país razoável e não-agressivo com o qual
a coexistência pacífica é possível, e que são as facções “stali-
nistas” de linha dura que insistem em que somos imperialistas
violentos, militaristas e incapazes de compromissos, que só acei
tamos o domínio ou a destruição, pareceria que nossa dureza
assassina no Vietnã e nossa obstinação em desempenhar o pa
pel de gendarme do mundo em intermináveis intervenções glo
157
bais comprovam a opinião dos comunistas de linha dura sôbre
nós e enfraquece a posição dos moderados. Os falcões de um
país sempre reforçam a posição dos falcões do país oposto, ao
empreenderem ações que atualizam e, aparentemente, justifi
cam imagens agressivas. Os generais soviéticos, em sua luta por
maiores créditos militares, jamais tiveram, melhor aliado do que
o Pentágono. Se os neo-stalinistas de linha dura ou os mode
rados mais conciliadores serão os vencedores em Moscou, isto
será determinado “mais fàcilmente em Washington do que em
Moscou”, segundo o ex-correspondente do New York Times em
Moscou, Harrison Salisbury. “Oficiais soviéticos sensatos não
faziam segrêdo de suas preocupações porque o aumento da
tensão internacional, decorrente da guerra do Vietnã, estava
produzindo resultados reacionários no seio do establishment so
viético”22.
A suposição de que o outro lado tornar-se-á mais dócil se
formos mais beligerantes é caracterizada ironicamente por
Isaac Deutscher:
158
externas com gentilezas ou com uma indiferença destemida.
A beligerância provoca beligerância, a intransigência convida
à intransigência, ameaças levam contra-ameaças, e os antago
nistas encontram-se à beira de um abismo.
Tem sido costume dos dirigentes americanos insistir em
que “estamos prontos a qualquer tempo” para a conciliação,
tão logo o outro lado se comporte de forma a tranqüilizar-nos;
quando tivermos provas de que estão agindo de boa fé, res
ponderemos da mesma forma. Contudo, é difícil determinar
o que representa aqui a “prova”, pois houve numerosas oca
siões significativas, no passado, em que aberturas amistosas
feitas pelos comunistas não foram reconhecidas como tais por
parte de Washington, sendo consideradas simples artimanhas.
Mais ainda, não fica claro porque supomos que o outro lado
deva ter a exclusividade no sentido de iniciar uma reaproxi-
mação. Aparentemente não podemos tomar qualquer medida
no sentido da paz a não ser que recebamos garantias de con
cessões substanciais da parte dêles, ao passo que êles esta-
riam aptos a oferecer confiança e amizade à vista de nossas
armas e sem qualquer iniciativa encorajadora de nossa parte.
À base desta lógica se encontra o pressuposto notório de que
êles devem fazer todo o possível para demonstrar que não
são maus, enquanto nada precisamos fazer para confirmar a
realidade de nossa virtude, evidente por si mesma.
Temos defendido.quase como um artigo de fé a idéia de
que a política de pós-guerra dos Estados Unidos foi uma res
posta ao “desafio soviético”. Nestas páginas, tenho tentado
demonstrar que o comportamento soviético, com a mesma fa
cilidade, pode ser entendido como uma reação ao “desafio
americano”. Se é verdade que não estamos reagindo ao que
outros fazem e que nossa política tem profundo efeito sôbre
os países comunistas, podemos considerar a possibilidade de
que a moderação irá encorajar a moderação, a cautela levará
à cautela e a aberturas conciliatórias, a não-intervenção e o
desarmamento gradual provocarão respostas análogas do ou
tro lado. Da mesma forma que os falcões de um país criam
situações que se reproduzem por si mesmas e que reforçam
a posição dos falcões do país oposto, isto também deve ocor
rer com as pombas. O círculo da guerra-fria pode ser gra
dualmente rompido na medida em que os que apoiaih a rea-
159
proximação e a desescalada num país reforcem a política dos
partidários da linha branda do outro lado, oferecendo garantias
de cooperação em palavras e em fatos.
Argumentar que tal política é quimérica porque os co
munistas, em suas hostilidade inesgotável, jamais responderão
de forma análoga, é esquecer que uma acomodação gradual
por meio de um processo de “exemplo recíproco” já estava
sendo posta em prática entre os Estados Unidos e a União So
viética, por volta de 1963. Não sòmente os soviéticos res
ponderam favoràvelmente à oportunidade de melhorar as re
lações, como foram os responsáveis pela maioria das abertu
ras. E a resposta positiva do Presidente John Kennedy, embora
tardia, às repetidas ofertas de Kruschev no sentido de uma
distensão nas relações Este-Oeste não foi aproveitada pelos
soviéticos para cometer atos de traição ou endurecimento. A
política mais branda e mais sadia dos Estados Unidos sòmente
contribuiu para fortalecer a facção moderada de Moscou. A
subseqüente intervenção americana nò sudeste da Ásia desviou
o curso dêsse processo de reaproximação. Nossa proclamada
“firmeza” no Vietnã, ao invés de silenciar os falcões do Krem
lin, agiu no sentido de fornecer nôvo elemento de convicção
em favor daquilo que apregoava a militante facção anti-USA*.
Em 1968, os russos estavam enviando uma ajuda militar subs
tancial ao Vietnã do Norte, atacando repetidamente a política
dos Estados Unidos no Vietnã, mostrando uma relutância maior
160
em estabelecer relações mais estreitas com Washington e in
tervindo por meio da fôrça na Tchecoslováquia. Enquanto
isso, os Estados Unidos se preocupavam agora com novos de
mônios comunistas supostamente mais terríveis, no Extremo
Oriente e depositando mais uma vez sua confiança na dureza,
rigidez e violência.
161
9
O Demônio Amarelo i
A mudança de adversários não nos persuadiu a re
examinar a te o ria .. .
R on ald Steel
162
sim exatamente aquêles que a temiam; a agressão, fre
qüentemente, estava voltada contra a própria China. O
artifício mental que consiste em descrever a vítima de
um ataque como.um assaltante feroz e perigoso é um
mecanismo conhecido de redução do sentimento de cul
pa. Na realidade, os chineses tinham muito mais motivos
para enxergar um Perigo Branco; e ainda os têm. Foram
os povos da Europa que forçaram passagem no Extremo
Oriente, impuseram bases militares, obtiveram conces
sões pela fôrça, invadiram a China e, no fim do século,
propuseram estabelecer esferas de influência claramen
te concebidas como antecipações de uma futura conquis
ta colonial1.
163
Um cientista político que faz pesquisa estratégica
para o govêmo me disse recentemente, com a mais abso
luta calma, que seu instituto havia decidido, não há muito
tempo, terem estado inteiramente equivocados no que se
refere à premissa básica de boa parte da política ame
ricana do pós-guerra — a premissa de que a Rússia con
tava conquistar a Europa Ocidental pela fôrça. Contudo,
agora, sem a menor margem de dúvida... a teoria das
hordas invasoras é transferida para a China3.
MARIONETE DE MOSCOU
164
1950, o subsecretário de Estado Dean Rusk, tido como espe
cialista em questões asiáticas, não dava a menor importância
à China comunista, que êle considerava como “um governo
colonial russo — um rruinãchukuo eslavo em grande escala.
Não é um govêmo da China. Não resiste ao primeiro teste.
Não é chinês”4. No ano seguinte, George Marshall disse que
a Rússia tinha, de fato, feito a “conquista” da China5*. No
momento em que estávamos combatendo os chineses na Coréia,
o senador Lyndon Johnson ameaçava a Rússia com um ataque
nuclear, advertindo-a de que “estamos cansados de combater
agressões. Não mais sacrificaremos nossos jovens no altar de
vossas conspirações”6. Ainda em 1954, falando especialmente
para a opinião liberal bem informada da América, Kennan de
clarou: “A associação política (da China) com a União Soviética
trouxe moitas vantagens ao Kremlin. A utilização dos chineses
como fôrças-marionetes na península da Coréia foi apenas a
mais evidente destas vantagens”7. Anos mais tarde, quando
166
os complexos hidrelétricos do Yalu que forneciam energia ao
centro industrial chinês. A ação chinesa foi precedida de re
petidas advertências a Washington no sentido de que ações
militares ao norte do paralelo 38 obrigariam a China a intervir
e, depois das garantias feitas por Acheson de que não avança
ríamos em direção à fronteira da Manchúria. A intervenção
chinesa foi, segundo os próprios chineses, uma ação defensiva
contra fôrças americanas quç estavam ocupando um país co
munista vizinho e aproximando-se a algumas milhas de suas
próprias fronteiras.
’ 167
As afirmações de Rusk são sujeitas a várias questões: por
que a China adotou a premissa de que “os Estados Unidos
são o seu principal inimigo?” e, de fato, foi a China que fêz
“a demonstração inicial de intensa hostilidade?”
Em setembro de 1944, depois de tôda uma história de
desapontamento em relação a Moscou, e depois de uma dis
cussão na alta direção partidária, os comunistas chineses con
cluíram, como Williams observa, “que preferiam trabalhar com
os Estados Unidos do que com a Rússia no desenvolvimento
futuro da China”11. Em dezembro de 1945, dirigentes do
PCC participaram da conferência de Chungking, com Chiang
e o embaixador George Marshall, dos Estados Unidos, e uma
vez mais “enfatizaram seu desejo de relações cordiais com os
Estados Unidos”12. Os esforços de Marshal de fato produzi
ram uma trégua; os comunistas chegaram mesmo a concordar
em fundir seu exército e seu partido no seio de um govêmo
de coalizão, sob a direção de Chiang. Mas, depois de anos
de guerra civil, nenhum dos lados estava pronto para uma
coalizão pacífica. Fortalecido pelo fluxo permanente de armas
americanas, Chiang não se dispunha a dividir seu poder com
o PCC. No sentido de obter um acôrdo pacífico, os Estados
Unidos teriam de exercer pressão sôbre os nacionalistas pela
realização de reformas econômicas e democráticas profundas.
Como deveríamos descobrir repetidas vêzes, é impossível mu
dar politicamente um regime enquanto se o ajuda militarmente.
Os nacionalistas não poderiam ver qualquer motivo para entrar
em acôrdo com os comunistas na medida em que os Estados
Unidos os abarrotavam com sua ajuda. “Chiang e seus gene
rais . . . preferiam fazer as coisas a seu modo. Confiavam em
suas novas armas”13. Washington viu na vitória final de Mao
um desastre para o mundo livre e algo como uma derrota pes
soal da América. Não é surpreendente que, a essa época, os
comunistas chineses já tivessem uma consciência crescente da
inimizade de Washington.
168
A imagem apresentada por Rusk de uma América paciente
buscando, “ano após ano”, algum sinal amistoso vindo da China
é uma distorsão dos fatos. Depois que Mao assumiu o poder,
os Estados Unidos lideraram a luta contra a admissão de Pe
quim na ONU, recusaram-se ao reconhecimento diplomático e
procuraram organizar o bloqueio econômico da China por meio
de um embargo multilateral — aventura que obteve a coope
ração de poucos países*. A hostilidade americana aumentou
durante a guerra da Coréia. O senador democrata-Iiberal Estes
Kefauver, na época, afirmava: “Devemos classificar os comu
nistas chineses como fora-da-lei e não fazer negócios com
êles”14 — o que já era nossa política. Outras vozes defendiam
no Congresso uma invasão em grande escala da China conti
nental e°o senador liberal Paul Douglas reclamava uma guerra
nuclear preventiva contra a China**. Washington derramava
armas e dinheiro sôbre a ditadura nacionalista de Taiwan, pu
nha a Sétima Esquadra de sentinela nas águas do Pacífico
ocidental e ajudava a fortificar as ilhas da costa ocupadas pelos
nacionalistas. Para o secretário Dulles, cujo objetivo político
na Ásia, da mesma forma que na Europa, era a expulsão dos
comunistas e não a contenção, o govêmo de Pequim não devia
ser considerado como um fato consumado. Em 1955, o Se
cretário de Estado Assistente, Walter Robertson, declarava:
“Nossa esperança consiste em resolver o problema da C h in a...
por meio de ações que provocarão a desintegração de dentro
para fora”15. Na década dos 60, não mais prevíamos o colapso
interno da China, mas nosso objetivo continuava sendo, nas
palavras do sovietólogo e conselheiro do Departamento de Es
169
tado Brzezinsky, “o isolamento e condenação da China”18. Ou,
como dizia um correspondente do New York Times em
Washington, em 1965: “(Nosso) objetivo é conter e perturbar
o govêmo de Pequim, limitando o mais possível seus contatos
diplomáticos e econômicos com o resto do mundo”17.
Na diplomacia, as palavras e as ações freqüentemente se
misturam. As declarações são sempre tomadas como certo tipo
de ação, ao passo que as ações são concebidas para transmitir
sinais e mensagens — função normal das palavras. A acusação
de que as palavras e ações diplomáticas da China foram parti
cularmente hostis e intransigentes não resiste à análise. Foram
os chineses que apresentaram uma proposta, em 1955, em Ban-
dung, para a realização de encontros em nível máximo com
os Estados Unidos, para negociar a “eliminação das tensões”
entre os dois países, com uma referência específica a Taiwan.
“Em contraposição, Washington não se mostrava, àquela época,
ansioso em tratar com um regime que êle se recusava a reco
nhecer e desejava isolar” escreve unj observador18. Recusan
do-se a um encontro em nível ministerial, os Estados Unidos
concordaram, como anteriormente se mencionou, com a reali
zação de conversações entre embaixadores, que começaram em
1955 em Genebra e prosseguem até hoje em Varsóvia.
Durante os três primeiros anos das conversações de Varsó
via, a tendência de Pequim era a de procurar acôrdo em tôrno
das questões “relativamente fáceis de resolver”, sem pressionar
no sentido de um acôrdo prévio sôbre o estatuto de Taiwan.
A posição dos Estados Unidos consistia em desencorajar a ne
gociação sôbre tais assuntos até que os chineses concordassem
em renunciar ao uso da fôrça em relação a Taiwan. A partir
de 1958, como às vêzes sucede na diplomacia Este-Oeste, os
lados inverteram suas posições. No auge da crise de setembro
em Taiwan (na iminência de uma tentativa de Chiang no
sentido da “libertação”), Pequim insistiu junto aos Estados Uni
170
dos para que aceitassem o princípio da retirada americana da
ilha antes que outras questões pudessem ser objeto de nego
ciação e, no ano seguinte, Washington inverteu a ordem de
suas prioridades e buscou o acôrdo em tôrno de questões de
menor importância (por exemplo, intercâmbio de jornalistas e
turistas), sem nenhum compromisso prévio sôbre Taiwan19.
PODER E AÇÃO
19 Idem .
20 Dean Rusk, depoimento, 16 de abril de 1966.
* O exército da China consistia de cento e cinqüenta divisões de
infantaria ligeira e mais umas poucas divisões de cavalaria e de blinda
dos. Sua marinha proclamava o grande total de quatro destróieres leves,
anteriores à Segunda Guerra Mundial, um número reduzido de submari
nos e cêrca de setecentos barcos patrulheiros. A fôrça aérea compreen
dia cêrca de mil e seiscentos caças a jato, remanescentes da guerra da
Coréia e cêrca de trezentos bombardeiros soviéticos obsoletos. Fôrça
essencialmente defensiva, o exército chinês não modificou sua disposi-
171
A capacidade chinesa para empreender uma guerra con
vencional permanece sèriamente limitada. Sua capacidade
para uma guerra nuclear está mais circunscrita ainda pelas
realidades da correlação de fôrças. Ao tempo em que escre
víamos êste livro, os chineses já tinham construído bombas nu
cleares e, com mais alguns anos, deveriam dispor de um sis
tema de mísseis de alcance médio e, mais ainda, de um siste
ma de ICBM. Contudo, mesmo com êstes mísseis, a China,
como a França e a Inglaterra, permanece uma potência de
segundo nível. “Com efeito, é bastante duvidoso que a dis
paridade entre o poder militar chinês e o de seus adversários
potenciais seja hoje menor do que o era em 1900”, opina Fitz-
gerald21. Alistair Buschan, diretor do Instituto de Estudos
Estratégicos de Londres, observa: “As bases industrais dos
Estados Unidos e da Rússia são tão formidàvelmente mais
avançadas do que as da China que aquêles podem — separa
damente e, com mais razão, em conjunto — superar o poderio
chinês quase infinitamente”22. Pràticamente todos os países,
nucleares ou não, dispõem de uma capacidade industrial mui
to mais ampla e mais fàcilmente conversível para a produção
bélica do que a China.
Por ocasião da crise cubana, divulgou-se amplamente que
Pequim repudiou o recuo de Kruschev como uma “capitula
ção”. O que comumente se esquece é a crítica iguálmente
severa que Pequim, para comêço de conversa, faz ao “aven-
tureirismo” dos soviéticos por terem êstes enviado os mísseis
para Cuba. Os dirigentes chineses repetidamente rejeitaram
a opinião segundo a qual as armas nucleares deveriam ser
usadas com objetivo ofensivo: “Um país socialista”, afirmou
Mao, “não deve, absolutamente, ser o primeiro a usar armas
nucleares, nem deve, em qualquer circunstância, brincar com
172
elas ou engajar-se na chantagem ou no jôgo nuclear”* 23. De
pois de sua primeira explosão atômica, em 1964, a China de
clarou que “jamais e sob quaisquer circunstâncias seria a pri
meiras a usar armas atômicas”. Um ano mais tarde, Pequim
propôs que os Estados Utiidos se associassem àquela declara
ção, transformando-a num compromisso comum; proposta que
Washington rejeitou**. Aa invés disso, em 1967, Washington
empreendeu um sistema multibilionário de mísseis antimíseis,
supostamente destinado a proteger as cidades americanas con
tra um ataque nuclear chinês. Segundo uma estimativa, nossa
capacidade de dissuasão, anterior a 1967, era tão impressio
nante que teríamos um número suficiente de mísseis, mesmo
depois de um ataque soviético, para demolir os principais cen
tros industriais e populacionais da China24. Será que a China
algum dia atacaria os Estados Unidos? “Seria insano e repre
sentaria mesmo um suicídio para ela se o fizesse”, admitiu
o secretário McNamara, “mas é possível conceber situações
em que a China poderia calcular mal. Desejamos reduzir tais
possibilidades a um mínimo”25. (O próprio McNamara não
nos diz explicitamente quais são as condições imagináveis nas
quais a China cometeria suicídio.) Um observador, escreven
do em Foreign Affairs, afirmou:
173
O ataque ou a ameaça de ataque chinês às cidades
americanas diante de nossa superioridade estratégica se
ria o mais imprudente dos atos por parte de um povo
que sempre primou por sua prudência e conservadoris
mo no uso do poder militar. Ê altamente surpreenden
te que os Estados Unidos, que parecem satisfeitos com
a eficácia de seus meios de dissuassão contra a União
Soviética devessem preocupar-se com sua ineficácia dian
te de uma potência cujos recursos são minúsculos, cujas
possibilidades de ganhos significativos através de uma
guerra limitada são bem menores do que as da União
Soviética e que, mais ainda, não demonstrou qualquer
sinal de pretender lançar-se em tais aventuras26.
174
é pródiga em èxpressões de ódio aos Estados Unidos, que ela
liquidou a oposição do Tibete e lutou por uma faixa de terri
tório na fronteira com a Índia. Mas consideremos brevemen
te a Índia: liquidou uma sublevação em Hiderabad, ocupou
o Estado de Kerala, tomou a iniciativa de ataques na fron
teira chinesa, tomou Goa pela fôrça e é extremamente rígida
em sua insistência em relação ao Cachemira. Contudo, não
a acusamos de pretender à dominação mundial”27.
Os chineses foram bastante longe no sentido de evitar con
fronto direto com os Estados Unidos. Não intervieram no
Vietnã; não atacaram Taiwan ou as ilhas do litoral, chegando
mesmo a permitir que navios americanos transportassem tro
pas de Chiang a Quemoi, ao alcance de seus canhões. Ao
contrário dos americanos, os chineses demonstraram grande
relutância a lutar no território de outros povos e não possuem
soldados em solo estrangeiro. (A China retirou tôdas as suas
tropas da Coréia e convidou os Estados Unidos a fazer o mes
mo, mas sem resultado). Ao contrário dos russos, os chine
ses não têm como incinerar cidades americanas. Ao contrá
rio tanto dos americanos como dos russos, os chineses carecem
de base tecnológica e industrial de uma superpotência.
Ao contrário de ambos os seus rivais, como indicam os
acontecimentos do verão de 1966, a China sofre de uma enor
me instabilidade política interna. Uma “revolução cultural”,
que seria melhor descrita como uma guerra civil, eclodiu en
tre facções maoístas e antimaoístas (e freqüentemente entre
grupos maoístas rivais) envolvendo todos os níveis do apare
lho do Partido Comunista, assim como milhões de estudantes,
operários e camponeses. O quadros jovens de masga (a “Guar
da Vermelha”) promoveram manifestações por tôda a China,
freqüentemente com violência. Em algumas regiões, quadros
armados, dirigidos por líderes locais rivais, combatiam-se mu
tuamente. Unidades do exército abriam fogo umas contra as
outras e se chocavam com manifestantes. Em províncias im-
175
portantes, militares e funcionários do Partido ("reacionários”
e “revisionistas capitalistas”) mantinham-se na direção, num
desafio aberto a Mao. Registraram-se inúmeras greves de ope
rários industriais, em Changai e em outras cidades, contra a
revolução cultural de Mao. Nanquim foi abalada por numero
sos choques graves envolvendo centenas de milhares de pes
soas. Em Cantão, a lei e a ordem foram liquidadas pela vio
lência das ruas e os cidadãos começaram a organizar patru
lhas armadas para sua própria defesa28. O Diário do Povo
de Pequim admitiu que a situação se aproximava do “caos
completo”.
A revolução cultural pode ter sido um autêntico movi
mento popular de revitalização que levou a excessos não pre
vistos e nocivos. Pode ter sido pouco mais de que uma co
bertura ideológica para uma luta aberta pelo poder. Ou uma
combinação dêstes e de outros elementos. Qualquer avalia
ção de seu significado e de seus motivos é tarefa dos histo
riadores futuros. Uma conclusão pode ser tirada: a imagem
da China como algo monolítico, como “megamáquina” huma
na, como formigueiro, agindo como se fôra um só espírito sob
o comando de um centro totalitário, é uma imagem fabricada.
O conflito, e não a unidade, parece ser a dominante na vida
política chinesa. A China, da mesma forma que o “movimen
to comunista mundial”, é uma cacofonia de grupos, ideologias,
ambições e personalidades políticas rivais.
Resta-nos, portanto, a pergunta não respondida: como po
demos continuar a afirmar que Pequim organiza a revolução
mundial e comanda ou conduz a guerra no Vietnã, quando
tem dificuldade para manter o domínio político interno? Se
a capacidade da China é limitada, suas ações moderadas e
prudentes e seu domínio doméstico abalado por conflitos in
ternos, como é que ela pode ser qualificada de demônio glo
bal que ameaça a paz mundial e a segurança americana? De
vemos continuar a examinar esta questão no próximo capítulo.
176
IO
O Demônio Amarelo n
Polonius: Que ledes, senhor?
Hamlet: Palavras, palavras, palavras.
H a m l e t , Segundo Ato, segunda cena.
>
177
PALAVRAS “VERSUS” PALAVRAS
178
à acusação de Kruschev de que a China seguia um caminho
belicista. Êle afirmou: a) os chineses de modo algum se opu
nham à coexistência pacífica, na verdade a praticavam; b )
êles apoiavam, ao invés de se oporem, os esforços no sentido
da reaproximação, inclusive as conferências de cúpula e a vi
sita de Kruschev aos Estados Unidos; c) êles não podiam, con
tudo, concordar com a opinião russa de que os imperialistas
não iniciariam uma nova guerra. Os americanos não estavam
armando o Japão e a Alemanha apenas para participar das co
memorações do Primeiro de Maio. No que se refere à ques
tão da paz e da guerra, sustentou Peng, os chineses sempre
apoiaram a luta pela paz. Mas, sòmente defendendo com
firmeza a si mesmos da agressão americana, quando ela se
manifestar, poderia a China esperar frustrar o apetite dos im
perialistas e, assim, evitar a guerra1.
Os estatutos do PCC, adotados em 1956, estipulam: “O
Partido Comunista da China defende uma política externa di
rigida à salvaguarda da jpaz mundial e à conquista da coexis
tência pacífica entre países de diferentes sistemas”. Em de
zembro de 1963, Chu En-lai, afirmando que o risco de guerra
perdurava em virtude da política americana de “guerra e agres
são”, acrescentou que a China buscava uma solução pacífica
para suas divergências com os Estados Unidos2. Em 1966, o
Ministro do Exterior, Chen Yi, expressou o desejo de Pequim
de resolver as divergências com os Estados Unidos por meio
de negociações pacíficas, mas “os Estados Unidos não corres
ponderam à atitude chinesa”. Ao invés disso, afirmou, pro
curam “asfixiar” a China por meio do cêrco militar e econô
mico, destruindo assim tôdas as oportunidades para um acôr
do a curto prazo3.
179
tados Unidos. . . A solução das questões por meio de
negociações é a política básica da China. Se isto não
fôsse verdade, há muito que as conversações de Varsóvia
teriam sido suspensas. . .
Acreditamos no socialismo, mas os outros países de
cidirão, segundo sua própria vontade, entre socialismo,
capitalismo ou revisionismo. Não gostamos que nos im-
ponham idéias. E também não gostamos de impor nossas
idéias aos outros4.
180
do mundo a libertar-se do imperialismo ocidental5. Identifi
cando o mundo subdesenvolvido como as "aldeias” e a Europa
e a América do Norte industriais como as “cidades”, Lin pro
fetizou que a vitória final viria para os povos oprimidos quan
do a aldeia revolucionárisf cercasse as cidades. Sua tese era a
renovação das proclamações sôbre “as guerras de libertação
nacional”, que remontam, pelo menos, a 1949. Mas, com a
China elevada agora ao papel de conspirador mundial, os di
rigentes políticos de Washington se apoderaram da declara
ção de 1965 como se se tratasse de um Mein Kampf, uma an
tevisão da "estratégia de violência de Pequim para alcançar a
dominação comunista do mundo” (Rusk), e um "programa
global de conquista” (McNamara).
Num mundo de privilégio, opressão e sentimentos nacio
nalistas, Lin Piao oferecia uma visão de longo alcance: elimi
nar o explorador, o proprietário da terra e o plutocrata estran
geiro e alcançar a independência, a igualdade, a prosperidade
e a paz. Mas a doutrina nada mais era do que isso. Ou
seja, uma palavra destinada a outros e não um programa para
si mesmo. Enquanto a China era acusada de “fomentar” e
mesmo “conduzir” guerras de libertação, na realidade Lin ex
plicitamente afastou seu país de qualquer envolvimento em
tais aventuras. “A revolução ou a guerra popular em qual
quer país”, disse êle, “é um assunto que pertence às massas
dêsse país e deve ser conduzida principalmente por seus pró
prios esforços; não existe outro caminho”6. Ao descrever a
vitória de Mao na China, êle repetidamente acentuou a ne
cessidade de “autoconfiança” em “lutas prolongadas e comple
xas”, enfatizando que os movimentos nacionais não podem es
perar ajuda externa de importância. Não se pode ver aqui uma
posição nova por parte de Pequim. Cinco anos antes, o órgão
oficial Peking Revieio tratou explicitamente da questão:
5 Lin Piao, Long Live the Victory of the People’s W ar, mimeogra-
fado, Pequim, NCNA, International Service, 2 de setembro de 1965.
6 Idem , pág. 17. ,
181
Os países socialistas jamais se permitirão enviar tro
pas além de suas fronteiras a menos que sejam vítimas
de agressão por parte de um inimigo estrangeiro. . .
Aquêles que acreditam que a revolução pode ser pro
vocada em um país estrangeiro por encomenda de outro
ou por acôrdo, são loucos ou provocadores. Sabemos
que as revoluções não podem ser feitas por encomenda
ou por acôrdo. Elas eclodem quando dezenas de milhões
de pessoas chegam à conclusão de que é impossível con
tinuar vivendo da forma anterior07.
182
neses lhe darão apoio e ajuda. Se esta ação levar à
agressão dos Estados Unidos contra a China, nos levan
taremos para a resistência e lutaremos até o fim9.
A “DOMINAÇÃO” D E PEQUIM
183
minação. Nada existe nos escritos ou pronunciamentos de
Mao, Lin ou Chu que indique que os chineses pretendam
controlar os movimentos de libertação nacional ou de que es
perem que os dirigentes desses movimentos ajam sob o co
mando de Pequim. Ao acentuar o caráter doméstico da re
volução, os chineses parecem exatamente negar a possibilida
de de uma direção revolucionária internacional.
No campo conflituoso do “comunismo mundial”, Pequim
tem sido um dos defensores da independência nacional. Já
em 1956, os chineses assinalavam a obrigação dos países so
cialistas mais importantes “de evitar o ‘chauvinismo de gran
de potência’” e criticavam os países que “mesmo no caso de
serem comunistas. . . desenvolvem um complexo de superiori
dade e gostariam sempre de colocar seus próprios interêsses
acima dos de outros países.. . Jamais lhes ocorre tratar outros
países como iguais”11.
As pretensões chinesas à hegemonia ideológica entre os
países comunistas tiveram ainda menor êxito do que os esfor
ços russos no mesmo sentido. Em 1968, não havia qualquer
partido ou país comunista de alguma importância que reco
nhecesse a liderança ideológica de Pequim*. E a situação não
se altera no que se refere aos países afro-asiáticos. No conti
nente africano, onde as fôrças dominantes eram o tribalismo e
o nacionalismo, os chineses não ganharam qualquer influên
cia, a despeito de seus ingentes esforços diplomáticos. Em
Zanzibar, a influência chinesa chegou a ser sensível durante
certo tempo, mas êste país uniu-se a Tanganica, cujo Presi
dente, Nierere, “desempenhou um papel de moderador, não
sòmente entre o Ocidente e os comunistas, mas também entre
a China e a União Soviética”12. O Senegal oferece exemplo
típico da medida em que o “maoísmo” penetrou na África.
Depois de amplos contatos com a dividida esquerda senegale-
sa, o cientista político William Foltz estimava que em 1967 o
184
grupo “pró-Pequim” contava não mais do que vinte mem
bros13. “Na África”, escreve Zagoria, “os partidos comunistas
são, em sua maioria, pràticamente inexistentes. . . ”14
No Oriente Médio, procurar-se-ia em vão a presença co
munista. Os poucos e minúsculos partidos comunistas árabes
não reagiram aos apelos vindos do Extremo Oriente. Em geral,
os árabes têm sido tão sensíveis a Pequim como a Telaviv.
Na América Latina, o único Estado comunista, Cuba, tem fre
qüentes atritos com Pequim, colocando-se ao lado de Moscou
— quando não está em atrito com Moscou**.
Por tôda a Ásia, as pretensões chinesas à liderança foram,
no melhor dos casos, recebidas com frieza. O Partido Comu
nista da Índia, além de não retirar vantagens da liderança re
volucionária chinesa, teve suas fileiras divididas e sua posição
sèriamênte comprometida depois da guerra de fronteiras sino-
indiana. Na Indonésia, Pequim levou vários anos apoiando
Sukamo, depois apoiou a tentativa abortada de derrubá-lo e
finalmente limitou-se a calar quando trezentos a quatrocentos
mil comunistas indonésios (muitos dêles indonésios de origem
chinesa e apolíticos) foram assassinados no maior desastre so
frido por qualquer grupo no pós-guerra e também no maior
ato de genocídio praticado depois da Segunda Guerra Mun
dial. Mesmo o único país do sudeste da Ásia que caiu sob a
influência chinesa, o Camboja do príncipe Sihanuk, denunciou
vigorosamente a China por “intervenção” em seus assuntos in
ternos, em 1967. As- sociedades de amizade sino-cambojanas
foram dissolvidas e os jornais pró-Pequim fechados.
É fato marcante que nenhum país emergente e nenhum
movimento revolucionário em todo o mundo mostrem qualquer
tipo de filiação política, militar ou ideológica a Pequim. Mas,
por que isto deveria surpreender? Uma coisa é unir os po
185
bres dentro de um só país — tarefa de per si muito difícil;
coisa muito distinta é unir os países pobres num movimento
mundial — feito impossível. Os chineses enfrentam uma gran
de cacofonia de interêsses, fidelidades, tradições e ambições
no terceiro mundo. A maioria dos estudiosos concorda que o
"terceiro mundo” representa um conglomerado heterogêneo de
países que nada têm em comum, exceto sua pobreza e incon-
tível paixão no sentido de permanecer ou tornar-se donos de
seus próprios destinos. Alguns dos países emergentes mostra
ram-se sensíveis ao socialismo de partido único, mas quando
a doutrina foi identificada com os soviéticos ou com os chine
ses, rejeitaram-na como ameaça à sua independência15. Por
mais ressentidos que fôssem em relação ao Ocidente, os países
jovens não mostraram qualquer inclinação a cerrar fileiras com
Pequim. “O amplo movimento de opinião nos países subde
senvolvidos certamente se orienta para soluções socialistas, mas
estas soluções assumem formas locais e só parecem ter êxito
na medida em que se identificam com as características nacio
nais. Isto, afinal de contas, é o que .aconteceu com o comu
nismo na própria China”16.
NACIONALISMO CHINÊS
186
China vem acusando os soviéticos de nacionalismo egoísta e
de carecerem de verdadeira dedicação comunista aos .povos
oprimidos do mundo. Mas, a partir de 1960, Moscou, por sua
vez, queixa-se'do “chauvinismo de grande potência” da China.
Nas palavras de Krusohev, Mao revelava-se “esquecido de
quaisquer interêsses que não os seus próprios”17. Tanto os
russos como os chineses estavam certos, um em relação ao
outro.
Da mesma forma que a União Soviética, a República Po
pular Chinesa encontrou-se na situação de um Estado revo
lucionário em teoria, mas na prática um Estado nacional e,
como tal, não podendo ignorar seus próprios interêsses em
benefício dos movimentos revolucionários em outros países; não
podendo desenvolver relações proveitosas com os governos
existentes da Europa, África, Ásia e América Latina e ao mes
mo tempo bradar por sua derrubada18. Os chineses critica
ram os russos por não distinguir entre países “comunistas” e
“imperialistas”, mas êles mesmos cortejaram regimes conserva
dores na África, Oriente Médio e sudeste da Ásia, nenhum dos
quais poderia ser apresentado como exemplo daquilo que de
veria resultar das guerras populares de libertação. Mantive
ram relações estreitas com a Birmânia mesmo quando o go
vêmo birmanês estava em guerra com os insurretos comunis
tas locais. Começaram a transferir suas fontes de fornecimen
to de maquinaria modema dos países comunistas para os ca
pitalistas, aumentando consideràvelmente seu comércio com
cidadelas do capitalismo como a Alemanha Ocidental, o Ca
nadá, a Austrália, a Inglaterra e a Argentina.
O oportunismo nacional e o orgulho nacionalista eram
evidentes na cisão sino-soviética*. Mesmo o líder comunista
francês Maurice Thorez queixou-se, certa vez, de que grande
parte da disputa entre Moscou e Pequim em muito se asse
melhava a um conflito tradicional entre grandes potências e
187
tinha muito pouco significado para os outros partidos comu
nistas19. Pequim acusou Moscou de curvar-se diante dos Es
tados Unidos, com o objetivo de privar a China da segurança,
respeito e prestígio normalmente concedidos a uma grande
potência. “Êles são muito orgulhosos”, observou um historia
dor soviético ao retornar de Pequim. “Êles querem, que o
mundo os trate de igual para igual. Nós o conseguimos; êles
ainda estão lutando por isto”20.
O enfoque não-revolucionário, não ideológico de Pequim
se mostra em sua disposição a aplicar o rótulo de “guerras de
libertação” a quase todo golpe de estado ou rebelião antico-
lonial ou nacionalista, incluindo lutas na Argélia, Angola, Con
go e República Dominicana, onde foram conduzidas na ausên
cia de qualquer partido marxista-leninista efetivo. O Presi
dente Mao observou que a China se coloca ao lado não sò
mente “de todos os países socialistas” como também “dos países
asiáticos e africanos e de todos os países e povos amantes da
paz”21. A suposição chinesa é a de que quase todo naciona
lismo emergente no terceiro mundo enfraquece os Estados Uni
dos e, com isso, toma o mundo um lugar mais seguro para a
China. “Um dos grandes êxitos de propaganda de Pequim”,
escreve Benjamin Schwartz, “foi o de que Washington passou
a concordar com essa opinião”22.
A GRANDE IMPOSTURA
188
potência mundial expansionísta é uma invenção anticomunis
ta. Os dirigentes políticos de Washington fazem grande àlar-
de em tômo das afirmações mais belicosas da propaganda
de Pequim ao mesmo temço que ignoram suas declarações po
líticas mais conciliadoras, aquelas que reclamam negociações
sôbre as divergências e a coexistência pacífica. Retratam a
China como uma fôrça demoníaca monolítica, mesmo quando
tôda sua ordem política e social era abalada por disputas po
líticas internas. Êles nos envenenam com visões de um po
derio chinês que não guarda qualquer proporção com as pos
sibilidades reais daquele país e alimentam expectativas de um
expansionismo chinês que se choca inteiramente com o com
portamento passado e presente da China. Chegando, final
mente, à» compreensão de que a União Soviética segue uma
política tradicional e limitada de defesa de seus interêsses na
cionais, os dirigentes políticos americanos propagam agora a
imagem de uma China dedicada a conseguir a dominação mun
dial. Em momento algum, foram capazes de indicar como os
chineses poderiam criar um movimento ideológico mundial sub
serviente a Pequim. Em apoio à sua demonologia, fazem re
ferências irresponsáveis e facciosas aos “planos abertamente
proclamados de conquista mundial” elaborados por Pequim,
mas um exame detido das declarações chinesas não revela
qualquer intenção de exportar ou controlar os movimentos de
libertação ao mesmo tempo que mostra sua insistência na na
tureza interna da revolução.
Quando os chineses argumentam que qualquer incapaci"
dade de opor resistência à “agressão americana” sòmente vi
ria aumentar o apetite do agressor e, em última análise, re
presentaria um convite à guerra, ficamos impressionados com
o grau de semelhança, de sua opinião, sôbre os Estados Uni
dos como um expansionísta insaciável, com nossa opinião sôbre
a China, mas as duas posições não são exatamente imagens
refletidas uma da outra. Dada a situação militar real, os te
mores chineses têm uma base factual. Seria pura paranóia da
parte de Pequim pretender que os Estados Unidos estejam
ocupando países às suas fronteiras, empreendendo guerras nas
vizinhanças do território chinês, armando abertamente e pro
tegendo seu inimigo mortal em Taiwan, violando constante
189
mente seu espaço aéreo, mantendo fôrças navais, aéreas e ter
restres — se isto não fôsse em grande parte verdade23. A
ameaça militar americana ao longo da costa chinesa, da Tai
lândia à Coréia, é real e imensa. A ameaça militar chinesa
ao longo da costa americana — ou em qualquer outra região
do Oceano Pacífico — é inexistente.
De seu ponto-de-vista, os chineses vêem as juras ameri
canas de intenções pacíficas como mentiras grosseiras destina
das a mascarar o imperialismo. A política da China tem sido
dirigida mais contra a maciça presença militar dos Estados
Unidos na Ásia do que a favor de qualquer programa de re
volução mundial. Pequim sustenta que qualquer govêmo
asiático que permita que seu país se tome uma base para a
atividade militar americana representa uma ameaça à paz na
Ásia e à segurança da China. Assim, tendo a Tailândia so
licitado maior número de armas e tropas dos Estados Unidos,
ela se tomou cada vez mais o alvo das denúncias chinesas. A
presença militar americana em países não contíguos, como as
Filipinas, intranqjiiliza menos Pequim2,4. Tôda a sua história
convenceu os chineses de que as nações ocidentais não reve
lam qualquer respeito pelos direitos da China, a menos que
confrontadas com a determinação ativa de um povo chinês
forte e confiante em si mesmo e consciente de que relações
mantidas em quaisquer outras bases conduzem à degradação
e à subserviência nacionais.
Os elementos responsáveis pelas decisões americanas re
solveram ignorar a medida em que Pequim é motivada por
considerações de orgulho nacional e pela convicção, resultan
te de vinte anos de experiência, de que os Estados Unidos
constituem uma ameaça implacável à segurança nacional chi
nesa. Recusando-se a reconhecer a legitimidade dos temores
da China, nossos dirigentes políticos puderam concluir que
o ressentimento e a hostilidade dos chineses são mais uma ma
190
nifestação de agressão do que uma resposta às iniciativas ame
ricanas. “Estou convencido”, disse o então secretário Rusk,
sem mais explicações, “de que o desejo (de Pequim) de afas
tar nossa influência e nossas atividades do Pacífico ociden
tal e do sudeste da Ásia não é motivado pelo temor de que
os estejamos ameaçando”25. Não apenas nós sabemos que a
China nada tem a temer da América, mas presumimos que os
chineses também o sabem. Assim sendo, suas denúncias con
tra os Estados Unidos sòmente poderiam decorrer de inten
ções belicosas. Isto se ajusta perfeitamente à convicção ame
ricana, já antiga, de que nenhuma nação poderia alimentar te
mor justificado ou hostilidade em relação aos Estados Unidos.
Em tempo algum, Rusk ou Johnson reconheceram a possibili
dade de que nossas ações tenham sido uma causa importante
dos sentimentos dos chineses em relação a nós. “Aparentemen
te”, constata o New Republic em editorial, “a fabricação de
profecias que se cumprem por si mesmas tomou-se um há
bito. Isolando e humilhando a China, estimulamos a hostili
dade chinesa e, em seguida, partimos de sua dureza e beli-
cosidade para justificar nossa atitude”28.
Conquanto tratemos as apreensões chinesas com um ce
ticismo fácil e condescendente, encaramos nossas próprias fo
bias em relação a Pequim — não obstante a escassez de provas
— com a maior seriedade. A própria intensidade de nosso
temor é tomada como comprovação suficiente de sua valida
de. Para o anticomunista, os temores que motivam uma polí
tica extema não têm necessidade de fundamentação em dados
reais; suposições imaginárias parecem bastar. Mesmo que
não haja prova alguma de que a China constitua uma ameaça
para o mundo ou para nós, basta a conjetura de que ela pos
sivelmente se torne uma ameaça num futuro longínquo. Neste
ponto, os dirigentes políticos não tratam mais de possibilida
des políticas reais. Respondendo não à realidade mas a uma
' 191
cadeia de horrores imaginários que surge das visões mais vio
lentas de sua própria mente, êles crêem que é bastante conju-
rar uma imagem daquilo que pode acontecer baseados na
conjetura de que tudo pode acontecer. Os resultados podem
ser trágicos.
192
II
193
Tentativas feitas por Moscou e Pequim com o objetivo de es
tabelecer relações diplomáticas e econômicas com os governos
afro-asiáticos recém-formados foram consideradas como prova
lapidar da “crescente penetração comunista” nos países po
bres. Em 1964, o sudeste da Ásia e, em particular, o Vietnã
tomaram-se o foco de nossos esforços anticomunistas. ,
UM POUCO D E HISTÓRIA
194
que jamais seria novamente atingido depois que os franceses
ocuparam o país e aboliram as escolas. (Às vésperas da. Se
gunda Guerra Mundial, havia mais prisões do que hospitais
ou escolas na Indochina francesa.) Sob o domínio francês,
o campesinato vietnamita foi cada vez mais espoliado por
impostos elevados, pelo latifundismo absenteísta, pela renda
extorsiva da terra e por juros usurários, criando um círculo vi
cioso de pobreza e endividamento crônicos no campo.
As sublevações eram uma ocorrência comum deisde as
primeiras incursões colonialistas, na primeira metade do século
XIX. Em 1930, foi esmagada uma insurreição dirigida pelo
Partido Nacionalista Vietnamita, e êste partido foi liquidado.
O mesmo ano viu o aparecimento do Partido Comunista Indo-
chinês, sob a direção de Nguyen Ai Kuock (Nguyen o Patrio
ta) mais conhecido para o mundo como Ho Chi Minli*. O
Partido Comunista foi imediatamente tratado com a maior bru
talidade; cm 1932, ao que se calcula, já haviam sido executa
dos dez mil comunistas. Os quadros do partido de Ho foram
obrigados a passar para a clandestinidade ou exilar-se3.
Pode ser dito de Ho Chi Minh que êle foi, primeiro, um
patriota vietnamita e, sòmente mais tarde, um comunista. Em
documento revelador publicado em 1960, êle narra: “Foi o
patriotismo, e não o comunismo, a princípio, que me levou a
ter confiança em Lênin”. Quando estava em Paris no início
da década dos 20, êle se convenceu de que apenas os marxis-
tas-leninistas estavam interessados na independência vietna
mita. Os dirigentes burgueses, inclusive Woodrow Wilson,
cuja campanha mundial em prol da “autodeterminação” não
se estendia ao sudeste da Ásia, demonstravam intenção indis-
farçável de manter seus interêsses ultramarinos. Ao ler as
“Teses sôbre as questões nacional e colonial” de Lênin, Ho
195
fêz a sua conversão: “Fiquei emocionado até as lágrimas. Em
bora estivesse só em meu quarto, gritei alto como se estivesse
falando a grandes multidões: ‘Queridos mártires, compatriotas!
Isto é o que queremos, êste é o caminho de nossa libertação’”4!
Depois de uma entrevista com Ho Chi Minh, em 1946, Harold
Isaacs informava que êle ainda se utilizava de uma linguagem
mais nacionalista que de classe: “Meu partido é meu país; meu
programa é a independência”5. Nos primeiros anos da Segun
da Guerra Mundial, foi formada a Liga de Independência do
Vietnã (Viet Minh), sob a direção de Ho, para lutar contra
os japonêses e os franceses de Vichy. No fim da guerra, a
Liga tinha assegurado o contrôle da maior parte do campo e
um congresso do Viet Minh, representando tanto o norte como
o sul, elegeu um govêmo provisório para todo o país. Reali
zaram-se formidáveis manifestações de apoio ao govêrno de
Ho em Saigon e outras cidades; milhares de prisioneiros polí
ticos encarcerados pelos franceses e japonêses foram liberta
dos. Por todo o país, Ho Chi Minh foi saudado como o liber
tador e o “tio” do povo vietnamita. A nova República Demo
crática do Vietnã promulgou uma Declàração de Independên
cia, em setembro de 1945, que começava com as seguintes
palavras:
196
Milhares de franceses assistiam a êsses acontecimentos, im
potentes mas sem serem molestados. A tomada do poder foi pa
cífica e popular. Os japonêses muito pouco fizeram para in
fluenciar a nova situação política. Ho e seus companheiros,
otimistas quanto ao futuro, enviaram telegramas às principais
capitais, pedindo reconhecimento da República vietnamita,
admissão na ONU e autorização para desarmar as tropas ja-
ponêsas. As grandes potências, contudo, tinham outros pla
nos; em Potsdam, elas (inclusive a União Soviética) concor
daram em que o Vietnã ainda era uma possessão da França.
Deram aos nacionalistas chineses a tarefa de desarmar as tro
pas japonêsas ao norte do paralelo 16, cabendo aos inglêses
a mesma tarefa ao sul do paralelo. Os aliados não anuncia
ram aos vietnamitas que os franceses voltariam.
Em Saigon, depois de um mês de contrôie pacífico, os
funcionários do govêrno de Ho saudaram as tropas inglêsas
como “aliados antifascistas”. Mas, ao invés de tratar com o
nôvo govêmo vietnamita, os inglêses rearmaram cêrca de cin
co mil soldados da Legião Estrangeira francesa, declararam
a lei marcial e começaram a forçar a retirada de Saigon do
nôvo govêrno. Contingentes franceses, armados e abastecidos
pelos Estados Unidos, logo desembarcaram em grande núme
ro, e inglêses, franceses e japonêses iniciaram a tarefa brutal
de expulsar os vietnamitas do sul do país*.
Quando os chineses se retiraram do norte, os vietnamitas
ficaram sem apoio por parte de qualquer potência importan
te. Ho decidiu-se por um acôrdo político e, em 1946, foi assi
197
nado um armistício em Paris, estabelecendo a República do
Vietnã, “um Estado Livre com seu govêmo, seu parlamento,
seus exércitos e suas finanças” mas permanecendo dentro da
União Francesa. Foram realizadas eleições em 1946, com a
vitória do partido de Ho. Em Paris, os políticos saudaram o
acôrdo como uma solução final. Mas, como os acontecimentos
posteriores da Argélia tornariam claro, o exército colonial é
capaz de operar independentemente, perseguindo objetivos por
êle mesmo fixados; no caso, dando ordens secretas para sa
botar o “Estado Livre” e ocupar todo o Vietnã. Assim come
çou a longa luta que resultou na morte de aproximadamente
um milhão de vietnamitas e vinte cinco mil franceses, e que
terminou com a derrota francesa em Dien Bien Phu.
Mesmo depois que a guerra contra os franceses recome
çou, Ho Chi Minh manteve seu objetivo de um Vietnã inde
pendente e voltado para a neutralidade da guerra-fria7. JÊsse
fato não deve ser desprezado por aquêles que afirmam que
Ho era um instrumento do “comunismo internacional”. Sò
mente quando se tomou cada vez mais consciente do apoio
americano aos franceses é que êle começou a mostrar hostili
dade a Washington. (Em 1954, os Estados Unidos estavam
pagando oitenta por cento dos custos da guerra e tinham for
necido dois e meio bilhões de dólares ao exército francês no
Vietnã; Dulles pressionava para que tropas americanas parti
cipassem do conflito, medida que contava com a oposição dos
inglêses e que foi finalmente vetada por Eisenhower).
Os acôrdos de Genebra de 1954, elaborados com a parti
cipação de nove países, estabeleceram uma linha provisória
de armistício à altura do paralelo 16, com as fôrças de Ho
reagrupadas ao norte e os franceses no sul; eleições livres de
veriam ser realizadas para a unificação do Vietnã no máximo
em julho de 1956. As delegações soviética e chinesa à confe
rência, não partilhando da intensa dedicação dos vietnamitas
à sua causa e interessadas numa acomodação com o Ociden
te, prevaleceram sôbre Ho e seus companheiros, fazendo com
198
i
que aceitassem um compromisso inesperadamente favorável
aos franceses. (Não foi a primeira vez que os interêsses de Ho
Chi Minh foram sacrificados por uma potência maior).
O resto da história é provàvelmente mais conhecido dos
leitores americanos. Quando os franceses saíram, os Estados
Unidos entraram no sul para criar, financiar e armar o nôvo
governo Diem. Em seis ocasiões distintas, de 1955 a 1957, as
indagações e solicitações de Hanói a respeito das eleições na
cionais foram ignoradas ou explicitamente rejeitadas por Diem.
O Presidente Eisenhower, que anteriormente havia admitido
que Ho obteria oitenta por cento dos votos numa eleição em
que concorresse contra Bao Dai, apoiou a recusa de Saigon.
Enquanto isto, Diem empreendia sua campanha vigorosa e apa
rentemente simplista para alienar a população sul-vietnamita.
Aboliu os conselhos de anciãos eleitos nas aldeias, medida que
nem sequer os franceses tentaram, substituindo-os por funcio
nários indicados pelo govêmo (inclusive muitos católicos, re
cém-chegados do norte). Promulgou um decreto executivo exi
gindo a prisão de “indivíduos considerados perigosos à defesa
nacional e à segurança coletiva”. A terra distribuída aos cam
poneses pelo Viet Minh passou a ser requisitada por Diem em
benefício dos grandes proprietários. As vantagens que os ar
rendatários haviam conseguido durante a guerra foram subs
tituídas pelo velho sistema do latifundismo absenteísta e por
arrendamentos que chegavam a cinqüenta por cento do valor
da colheita. O terror policial criado por Diem passou a ter
sua mecânica própria de perseguições, razzias, pilhagem, pri
sões arbitrárias, interrogatórios, tortura e execução8. Em 1961,
nas prisões de Diem se encontravam trinta mil pessoas.
Vendo-se perseguidos, os resistentes decidiram responder
da mesma forma. A luta aberta' começou em 1957, passando
do estágio de operações de guerrilhas esparsas à guerra de
partisans em sua forma completa em 1959. Por dois anos, Ha
nói se manteve à distância e até mesmo em atitude de descon
fiança em relação ao conflito no sul, persistindo na política
199
de coexistência e reunificação pacífica, chegando ao ponto de
apelar aos guerrilheiros do sul para que desistissem de seus
intentos. Em 1960, os “Veteranos da Resistência do Sul” di
vulgaram extensa declaração, que visava Hanói da mesma for
ma que quaisquer outros, descrevendo o terrorismo de Diem
e dizendo que Saigon tinha “levado o povo do Vietnã do Sul
a pegar em armas em sua própria defesa”. A declàração con
clamava à derrubada de Diem e o estabelecimento de “um
govêmo democrático de União Nacional no Vietnã do Sul”9.
Só em setembro de 1960, dois anos e meio depois que come
çou a luta, é que Hanói cedeu às pressões do sul e apoiou a
guerra — ao mesmo tempo em que reduzia o orçamento mili
tar do Vietnã do Norte para permitir maior desenvolvimento
econômico **.
No mesmo ano, os partisans sulistas criaram a Frente de
Libertação Nacional (F L N ) que, nos anos seguintes, passou
a contar com uma fôrça de combate de duzentos mil homens.
O exército sul-vietnamita, a despeito do equipamento ameri
cano superior e do melhor treinamento e direção que vinte mil
“conselheiros” militares americanos podiam dar, mostrava pou
ca disposição para o combate. (Funcionários de Saigon admi
tiram as seguintes cifras de desertores: cento e treze mil em
1965, cento e dezessete mil em 1966 ) 10. Em 1965, os Estados
Unidos bombardeavam o norte e tropas americanas •se desin-
cumbiam da maior parte da luta; suas baixas mensais em pou
co tempo ultrapassaram o recrutamento mensal do exército de
Saigon. Em 1968, juntamente com as fôrças da FLN, a guer
ra envolvia entre trinta e quarenta mil soldados regulares nor-
te-vietnamitas, meio milhão de soldados americanos e consi
deráveis fôrças aéreas e navais americanas. Centenas de mi
lhares de vietnamitas morreram, um número ainda maior foi
200
ferido ou mutilado; mais de trezentos soldados americanos
morriam cada semana, e as fôrças dos Estados Unidos sofriam
mais de duzentas mil baixas em combate. Por que estávamos
no Vietnã?
Para o Presidente Johnson o motivo era claro: se saísse
mos do Vietnã, “quantos países iriam cair diante do agressor?...
Se permitirmos aos comunistas vencer no Vietnã, será mais
fácil e mais tentador para êles conquistar outros países em
outras partes do mundo. Teremos de lutar novamente em
outro lugar qualquer”11. E, em seu discurso na John Hopkins,
em 1965, êle afirmou: “O apetite do agressor jamais se satis
faz. Retirar-se de um campo de batalha significa apenas pre
parar o próximo”. A equação apresenta uma simplicidade co
movedora: melhor resistir ao inimigo no Vietnã para que não
tenhamos de lutar no Havaí ou na Califórnia. (Esta imagem
dos agressores asiáticos saltando de um passo todo o Pacífico
e atacando nossa pátria foi descrita por Walter Lippmann
como “um insulto leviano à Marinha dos Estados Unidos”.)
Mas, supondo que estivéssemos combatendo uma agressão in
cessante no Vietnã — o que de per si é uma hipótese duvidosa
— temos de perguntar: quem Johnson considera ser o “agres
sor”? Uma questão bastante razoável, pois seria inconcebível
que estivéssemos empenhados numa guerra de tais proporções
e de tal modo selvagem sem sabermos porque e quem esta
mos combatendo. Contudo, definir o agressor revelou-se qua
se tão difícil como derrotá-lo.
DEFIN IN DO O AGRESSOR
202
A forma de atuação básica do Vietcong (Comunis
ta Vietnamita) evidentemente não é nova. Com varia
ções de detalhe, é a mesma que se verificou na China,
e as teorias de Mao Tsé-tung sôbre a condução da guer
ra de guerrilhas são conhecidas de todo agente ou qua
dro vietcong. A maioria dêsses métodos foi também
usada na Malásia, na Grécia, nas Filipinas, em Cuba e
no Laos10. (O grifo* é meu)
203
povo soberano de um Estado vizinho. E para conseguir
seu objetivo utilizou todos os recursos de seu govêmo,
buscando realizar seu programa de agressão cuidadosa
mente elaborado18.
204
de estado assistente para Assuntos do Extremo Oriente, Roger
Hilsman, declarava: “Do total de trezentos mil homens das
fôrças inimigas no Sul, duzentos e cinqüenta mil foram recru
tados no sul”20. Contudo, afirmava-se agora que a guerra co
meçou em 1958 porque *Hanói cometeu uma agressão contra
o sul — e com tal sutileza que o fato escapou à atenção do
Departamento de Estado durante sete anos.
Mesmo admitindo quê Hanói tivesse de fato invadido o
sul, seria difícil convencer a opinião pública americana e o
mundo de que o minúsculo Vietnã do Norte constituía uma
ameaça fatal à segurança americana. Havia, contudo, a gran
de sombra da China comunista. O arsenal de imagens demo
níacas foi mais uma vez mobilizado. Na Coréia, dissemos que
os norte-coreanos e os chineses eram fantoches de Moscou.
Anos mais tarde, quando a China se tornou o nosso demônio
número um, ela foi promovida da condição de fantoche à de
agressor na Coréia e da condição de observador à de grande
responsável no Vietnã. Ho Chi Minh que, durante tôda a
década dos 50 era considerado instrumento da “agressão de
Moscou no sudeste da Ásia”, era agora um instrumento da
“agressão de Pequim no sudeste da Ásia”*.
Conclusão: a China era o agressor e Hanói o fantoche da
China.
Ao qu eu saiba, não existe qualquer declaração de porta-
vozes chineses revelando qualquer intenção de dominar o su
deste da Ásia. A única potência que proclamou tal intenção
são os Estados Unidos. Um bom testemunho disto é a seguin
te discussão entre um alto funcionário do Departamento de
Estado e um congressista numa comissão parlamentar, em 1954:
205
uma ameaça constante de ação militar contra a China
Vermelha, na esperança de que em algum momento sur
ja uma cisão interna?”
Secretário de Estado Assistente Robertson: “Sim, sir,
esta é a minha concepção”.
Coudert: “Em outras palavras, uma guerra-fria tra
vada sob a direção dos Estados Unidos, com a ameaça
constante de ataque à China Vermelha, organizado por
Formosa e outros grupos do Extremo Oriente e militar-
mente apoiado pelos Estados Unidos?”
Robertson: “S im ...”
Coudert: “No essencial, será que isso significa que
os Estados Unidos pretendem manter por um período in
definido o domínio americano no Extremo Oriente?”
Robertson: “Sim. Exatamente”21.
206
da pode tomar suas próprias decisões”24. E o próprio secretá
rio Rusk, embora considerando Pequim como o grande estra
tegista da revolução mundial, afirmava: “Penso que Hanói pode
por um fim à guerra se decidir-se a isso”. Em 1965, êle se inda
gava por que motivo "Hanói mostrava pouco interêsse pela
paz já que “também êles temem as ambições da China comu
nista no sudeste da Ásia”®5. Ou seja, Rusk parecia pensar que
o Vietnã do Norte tinha interêsses conflitantes com os da
China e era capaz de tomar decisões autônomas. Talvez, en
tão, Hanói não fôsse um fantoche de Pequim? Se não o era,
qual a ameaça à segurança americana no Vietnã? Numa en
trevista coletiva em 1967, a pergunta foi feita ao secretário
Rusk, com o seguinte resultado interessante:
207
Pergunta: Senhor Secretário, o senhor descreveria o
objetivo preciso no Vietnã como a contenção da ação
dos comunistas chineses?
Rusk: Não. O objetivo central é uma paz organi
zada e segura. Agora, se a China volta a pressionar
aquêles com quem temos alianças, teremos então um
problema diante de nós, o mesmo acontecendo com a
C h in a.. .
Não estamos escolhendo — não estamos escolhendo
Pequim como uma espécie de inimigo particular. Pe
quim é que indicou a si mesmo como tal ao proclamar
uma doutrina militante de revolução mundial e ao agir
em conseqüência. Não se trata de um debate teórico.
Êles estão agindo em conseqüência.
208
que Rusk pudesse ressuscitar a imagem de uma “ameaça chi
»\
nesa ).
A guerra no Vietnã, ao que parecia, era, em última aná
lise, uma luta contra a China comunista. Mas é preciso admi
tir que a agressão chinesa era extraordinàriamente curiosa e
estranha. Não havia soldados chineses no Vietnã. A expli
cação de Rusk para isso eta a seguinte: “Os chineses estão
dispostos a lutar até o último vietnamita”. Muito inteligente
da parte dos chineses. Contudo, permanecia, obstinadamente,
o fato de que se alguém demonstrava a determinação de lutar
até o último vietnamita, êsse alguém eram os Estados Unidos.
Até agora os chineses ainda estão por fazer sua primeira vítima.
Mais ainda não havia provas de que a China tivesse, em
1960, participado da decisão de Hanói de apoiar a insurreição
no Vietnã do Sul. Não havia indicações de que a China exer
cesse qualquer contrôie sôbre aquêles que combatiam, ou que
controlasse a política externa de Hanói27. Em fevereiro de
1967, quando Hanói anunciou que a suspensão do bombardeio
permanente de seu território poderia conduzir às negociações,
os chineses protestaram vigorosamente mas isto não provo
cou alteração na posição de Hanói*. O Vietnã do Norte, coe
rentemente, “recusou-se a receber conselhos, de Moscou ou de
Pequim, em relação à tática política ou militar” e parecia “mais
do que nunca senhor de sua própria estratégia de guerra”,
afirmava o New York Times em 196728. Tomando as coisas
ainda piores, os norte-vietnamitas se recusaram a aliar-se a
Pequim na disputa com Moscou. “Pequim”, escreveu um cor
respondente do Times, “não esconde seu aborrecimento diante
dos elogios à hierarquia do Kremlim, feito pela delegação nor-
te-vietnamita perante o X X III Congresso. . . no mês passado
209
em Moscou”29, reunião â qual o Vietnã do Norte comparecia
apesar do boicote chinês. Em 1967, a imprensa de Pequim
conclamou Hanói a escolher entre a Rússia e a China. “É im
perativo opor-se à linha contra-revolucionária do grupo diri
gente revisionista soviético. Não existe meio têrmo na luta
entre as duas linhas”30. Hanói rejeitou a opção.
Apesar de seus apelos ingentes, os chineses não davam
mostras de qualquer disposição particular de lutar no Vietnã.
Os dirigentes políticos de Washington reconheceram isto; as
seguraram-nos continuamente que apesar de nossa escalada, a
China não entraria na guerra, afirmação que não correspondia
â imagem de uma China belicosa, imagem que os mesmos di
rigentes políticos propagaram em outras ocasiões. Após uma
visita à China, escrevia um correspondente inglês, em 1966:
210
quantidades importantes sòmente algum tempo depois que os
Estados Unidos iniciaram o bombardeio do norte. Os forne
cimentos chineses dificilmente representaram fator decisivo,
estando mesmo muito aquém daquilo que era fornecido pelos
soviéticos. Um relatório do Serviço de Inteligência america
no observa que, até 1966, a ajuda militar soviética atingia
cêrca de duzentos milhões de dólares anuais, e a chinesa ses
senta milhões32. (A título de comparação, nosso esfôrço mi
litar nos custava cêrca de dois bilhões mensais .)
Ainda que gratos por tôda a ajuda externa, os dirigentes
norte-vietnamitas enfatizavam que eram exclusivamente res
ponsáveis por suas próprias decisões e que continuariam a luta
contra a agressão americana mesmo na ausência de ajuda33.
A maioria das revoluções recebe alguma ajuda externa, como
observou Howard Zinn. A revolução americana de 1776 be
neficiou-se de ajuda francesa e, contemporâneamente, os re
beldes argelinos foram ajudados por países árabes que com
êles simpatizavam, mas os que recebiam ajuda jamais termi
navam satélites dos que a forneciam. Mesmo se aceitássemos
a afirmação duvidosa de que a ajuda externa reduzia Hanói
e a FLN a uma situação de impotente dependência, Ho deve
ria ser considerado fantoche de Moscou, uma vez que o grosso
da ajuda era soviético. Contudo, em 1967, o secretário Rusk
absolvia categoricamente os russos, dizendo: “Êles não podem
dizer a Hanói o que deve fazer”* 34. Então, qual são os indí
211
cios que nos levaram à conclusão de que estamos combatendo,
no Vietnã, um imperialismo asiático comunista dirigido pelos
chineses? Aparentemente, basta a simples afirmação, seguida
da constatação de que os chineses são comunistas e se encon
tram na Ásia. Segundo esta lógica, quanto maior o número
de “comunistas” vietnamitas matarmos, tanto mais cedo derro
taremos o comunismo chinês.
É um fato que a China deu apoio verbal às várias revo
luções, ajudou Hanói e protestou contra a “agressão america
na” no Vietnã. Mas, consideremos a União Soviética: ela deu
apoio verbal às revoluções sociais, forneceu quantidades de
ajuda muito maiores a Hanói e protestou contra a “agressão
americana” no Vietnã. Contudo, não mais acusamos Moscou
de pretender ocupar o sudeste da Ásia. O envolvimento ma
terial e diplomático soviético no Vietnã do Norte foi muito
menor na década dos 50, quando acusamos a Rússia de ser
a agressora no Vietnã, do que em 1967-68, quando a absolve
mos dessa acusação. A verossimilhança de nossas acusações
de agressão contra qualquer país parece ter menos a ver com
as ações reais dêsse país do que com a nossa fobia anticomu
nista particular na época. Parece haver uma relação inversa
ou negativa entre o envolvimento real num conflito militar e
a possibilidade de ser acusado de “agressor”. A FLN, embo
ra seja quem, de fato e principalmente, esteja lutando e mor
rendo, não é o agressor e nem sequer é reconhecida como en
tidade política. Os norte-vietnamitas, com uma participação
muito inferior na luta, se viram atribuir uma parcela muito
maior da responsabilidade. E os chineses, que não tiveram
qualquer presença direta no conflito, eram considerados como
os mais agressivos de todos.
212
ENCONTRANDO O OBJETIVO
214
indicam que nosso interêsse pela paz parecia diminuir muito
tôda vez que a paz ameaçava impor-se.
Durante 0 período 1964-67, verifica-se essa situação os-
cilatória: primeiro, afirmações por parte de Washington de
que o outro lado não ha*da mostrado interêsse por negocia
ções, seguidas de revelações inesperadas feitas por várias fon
tes estrangeiras de que Hanói havia demonstrado um interês
se positivo por negociações* seguidas por declarações de Was
hington de que os oferecimentos não poderiam ser considera
dos como “sérios” ou “significativos”, embora jamais se reve
lasse como esta aferição da sinceridade de Hanói poderia ter
sido feita sem testar de fato os oferecimentos*. Em nove
períodos críticos, tentativas feitas pelo Vietnã do Norte ou por
várias outras partes de iniciar as negociações foram respondidas
com atos de escalada militar americana.
Restava ao Gen. Earle Wheeler, Chefe do Estado Maior
Conjunto, dar a mais clara definição das intenções americanas:
“A negociação não é um artifício para salvar a face e abando
nar os objetivos pelos quais temos combatido. É um método
de atingir nossos objetivos. Ê um meio que eu preferiria à
ação militar”, disse êle, acrescentando que os “comunistas” po
deriam pôr um fim à guerra assim que o desejassem e “se as
negociações tornassem mais fácil para êles pôr cabo à sua agres
são, estaríamos muito felizes em satisfazê-los”. Isto resumia a
posição de Johnson. Os Estados Unidos estavam prontos a
negociar os têrmos de uma derrota comunista tão logo os co
munistas estivessem prontos a admitir sua derrota, mas Was
hington não traía qualquer intenção de negociar qualquer coisa
que entrasse em contradição com o “atingir os nossos objetivos”.
Da mesma forma que Truman estava sempre disposto a tratar
com os russos se e quando êstes aceitassem as condições ame
ricanas, Johnson estava disposto a tratar com a FLN e Hanói.
Mais uma vez, a recusa a aceitar condições que eqüivaliam a
215
uma rendição era apresentada à opinião pública americana
como prova de agressão.
Quem era, então, o agressor no Vietnã? Segundo nossos di
rigentes, primeiro o imperialismo soviético, depois os insurre-
tos nativos sul-vietnamitas, depois o Vietnã, depois a China e,
finalmente, transcendendo tôda a realidade histórica, uma en
tidade metafísica coisificada chamada “comunismo” ou, mais
recentemente, “comunismo asiático”, com seu quartel general
em Pequim. Mas, o comunismo na Ásia, como disse James
P. Brown, é “uma coisa muito dividida”. O nacionalismo e
não o comunismo parece ser a ideologia dominante na Ásia.
Como concluiu Lionel Abel:
216
nente no Vietnã do Sul; para retirar-nos imediatamente depois
de um acôrdo negociado; para obter a vitória total; para es
tabelecer o domínio americano naquela região; para estabele
cer um sudeste da Ásia neutralizado; para defender nossa pró
pria segurança; para salvaguardar a liberdade do mundo in
teiro — tôdas estas coisas diferentes e, às vêzes, contraditórias,
e talvez outras mais, que ainda não foram inventadas.
No Vietnã, como em qualquer outro lugar de nossa esco
lha, o agressor foi alguém que decidimos designar como tal,
o objetivo era qualquer que quiséssemos imaginar, a incerte
za de nossa situação só sendo superada pela certeza de nossa
presunção.
217
12
Revolução e Contra-revolução
Entre as preocupações com a ambição, não seria ino
portuno precaver-nos quanto à nossa própria ambição. Devo
dizer sinceramente que temos nossa própria ambição. Temo
o fato de sermos muito temidos.
E dm und B urk e
P
-L a r a o anticomunista, o que é importante não é saber se
218
que o diabo assuma aparências diversas e se transforme em
coisas diferentes daquelas que julgávamos que fosse, êle con
tinua sendo o diabo. Freqüentemente, um objeto temido du
rante longo tempo continua temível mesmo depois que as con
dições ameaçadoras associadas a êle foram eliminadas. Houve
um tempo em que o comunismo era temido por se tratar de
uma conspiração global monolítica; esta imagem, foi abalada
por conflitos policêntricos aipplamente difundidos, e o comu
nismo agora é temido porque é comunismo.
Não importa que os revolucionários de algum país gozem
de apoio popular e representem sentimentos nacionalistas; ou
que estejam dispostos a seguir uma política neutralista no que
se refere às relações Oriente-Ocidente e, com isso, não repre
sentem qualquer ameaça à segurança dos Estados Unidos; não
importa que tanto Moscou como Pequim não possam controlá-
los ou aproveitar-se de sua revolução, pelo menos tanto quanto
nós — o que importa é que êles foram tachados de “comunis
tas” e, ainda que não tenhamos de salvá-los dos russos ou dos
chineses, parece que ainda temos de salvá-los de si mesmos.
Contudo, a afirmação de que estamos preparados para
combater o comunismo em tôdas as suas formas de manifes
tação não é muito rigorosa pois, de fato, os dirigentes políti
cos de Washington não consideram todos os comunistas como
igualmente repugnantes. Os iugoslavos e os poloneses gozaram
dos benefícios aos subsídios e do comércio americanos e
Washington assina tratados e mantém intercâmbio cultural
com Moscou. Pareceria que alguns comunistas não são tão
diabólicos, em última análise; ou, pelo menos, não o são su
ficientemente para que tenhamos de mostrar uma hostilidade
crônica em relação a êles. Por que alguns comunistas provo
cam a hostilidade da América ao passo que outros merecem
ajuda? Na medida em que posso julgar, os comunistas acei
táveis são aquêles que, do ponto-de-vista americano, se recon
ciliaram com o mundo vigente, ao passo que os inaceitáveis
são aquêles que se supõe serem contrários a êste mundo, os
propagadores da violência e da revolução. A “revolução”, mui
to mais que o “comunismo” de per si, parece ser o fator deci
sivo. Veja-se a opinião do Gen. Maxwell Taylor, emitida
quando êle era colaborador de Lyndon Johnson. Taylor en
219
xerga um mundo assolado por “perturbadores” reais e poten
ciais, que define da seguinte maneira: “A maioria dêles é real
mente comunista, mas esta não é uma característica essencial”1.
(O grifo é meu). A característica essencial é a de que êles
procuram abalar a “estabilidade mundial”.
A presença real do comunismo não é um fator necessário
para nossa política contra-revolucionária, e isto pode ser visto,
da maneira mais clara, nos acontecimentos que cercaram a re
belião dominicana. Em 1962, nas primeiras eleições realmen
te democráticas em São Domingos depois de Trujillo, Juan
Bosch, dirigente da esquerda não-comunista, obteve uma vitó
ria esmagadora. Pouco mais de um ano depois, um golpe
militar derrubou Bosch do poder. O nôvo govêmo militar, de
nunciado pelo Presidente Kennedy, foi reconhecido diplomàti-
camente por Lyndon Johnson logo após a ascensão dêste à
Casa Branca. Em abril de 1965, dirigida por oficiais consti-
tucionalistas, uma fôrça popular de cêrca de seis mil civis, com
posta de operários industriais, empregados urbanos, sindica
listas católicos, artesãos, estudantes' e profissionais liberais,
partidários de Juan Bosch, desfechou um golpe súbito e qua
se fatal na Junta pró-americana. Foi nesse momento que
Lyndon Johnson apressou-se em intervir com vinte e três mil
fuzileiros navais americanos que, por meio da fôrça, estabele
ceram um cordão em tômo dos contingentes constitucíonalis-
tas, pulverizaram o exército popular com a artilharia e man
tiveram um fogo de metralhadoras durante dois dias e três
noites; depois de cortar a zona rebelde em duas partes, os fu
zileiros permitiram em seguida às tropas reagrupadas da Jun
ta limpar o setor isolado. O número total de dominicanos
mortos durante a luta, segundo Bosch, foi de três a quatro
mil.
Depois de salvarem a junta militar, os Estados Unidos se
lançaram à tarefa de compor uma relação de dominicanos
“comunistas”, para justificar nossa incursão. Os cinqüenta e
três nomes recolhidos pelo CIA e liberados pelo Departamen
to de Estado para publicação incluíam muito poucos comunis
220
tas ativos, poucos realmente ligados à guerra civil, alguns que
nem mesmo se encontravam no país e um certo número de
dirigentes estudantis liberais. Sendo pertinência desta lista
amplamente contestada, funcionários americanos concordaram
em que o número real *dos comunistas não era, de fato, im
portante; o essencial, porém, era que o país fôra salvo antes
que quaisquer elementos pró-Castro tivessem podido fazer sua
aparição para tirar proveito do estado de coisas2; ficando su
bentendido, está claro, que os comunistas trabalham melhor
quando invisíveis".
Da oposição aos comunistas, porque êles podem ser re
volucionários, à oposição aos revolucionários, porque êles po
dem ser comunistas, o passo é curto. A lógica dêsse desloca
mento pode ser assim resumida: para conter o comunismo, de
vemos apoiar a “estabilidade” de diferentes espécies de regi
mes conservadores e mesmo reacionários; as revoluções sociais
ameaçam tais regimes; ergo, devemos desencorajar ativamen
te as revoluções sociais. Provas de uma presença comunista
real não são um pré-requisito da intervenção. Apesar de tudo
o que dizemos sôbre um futuro melhor para a humanidade, nos
tornamos crescentemente preocupados com o mundo que está
por vir a ser e aferrados ao mundo como êle é. Entregamos,
assim, ao comunismo a fiança da revolução em todo o mundo8.
2 Ver Tad Szulc, Dominican Diary, New York, Dial Press, 1965,
págs. 44-45; ver ainda Theodore Draper, ‘The Dominican Crisis”, pág. 59.
* O jôgo de números passou de três para oito, de oito para cin
qüenta e três, de cinqüenta e três para cinqüenta e oito, caiunovamen
te para cinqüenta e três e fixou-se, finalmente, em setenta e sete, per
manecendo contudo a teoria de que os números realmente pouco im
portam. Rusk observou: “Houve um tempo em que Hitler se reunia
numa cervejaria de Munique com sete pessoas”. O embaixador Bennett
e o subsecretário Thomas Mann lembraram, ambos, que Castro come
çou com apenas onze homens.
3 Ver Hans J. Morguenthau, “To Intervene or Not to Intervene",
Foreign Affaírs 45, abril de 1967, pág. 433.
221
REVOLUÇÕES PACIFICAS?
222
revolução social não pode ser realizada pacificamente. “A re
volução pacífica é uma raridade histórica”, lembra o senador
Fullbright4. Mesmo no Ocidente, as grandes transformações
Íiolíticas vieram freqüentemente sob a forma de levantes vio-
entos, sendo difícil encontrar-se no mundo uma nação cujas
origens não estejam implantadas na violência, inclusive a
nossa. *
Talvez nos países muito prósperos, onde a pobreza é rela
tivamente limitada face aos recursos disponíveis, onde uma
redistribuição pode ser realizada sem pôr em risco os interêsses
essenciais das classes dominantes, mudanças pacíficas lentas e
de alcance limitado possam ser atingidas por meios políticos.
Nas nações pobres, contudo, a situação é qualitativamente di
ferente! Como nos lembra Conor Cruise Ô’Brien, lá os opri
midos não constituem minorias, êles são as próprias massas;
os recursos não são generosos, mas escassos. São os proprie
tários da terra, os grandes comerciantes, os chefes militares, os
usurários, os proprietários de lojas de luxo, os patrões e os
grandes burocratas, cuja existência depende da manutenção
de um contrôle estrito sôbre a limitada riqueza, que têm sua
raison d être ameaçada pela revolução social, seja ela pacífica
ou violenta5. A advertência “Se vocês não fizerem reformas, os
comunistas farão” tem pouco sentido para os dirigentes nati
vos. Para êles, a realização voluntária de reformas estrutu
rais básicas seria nada menos do que um ato de suicídio de
sua classe, tão fatal à sua existência privilegiada como qual
quer transformação violenta. Que sentido teria lutar para im
pedir que a plebe tome a terra para depois entregá-la numa
bandeja? E é assim que nenhum programa de reforma agrá
ria efetiva materializou-se, no Vietnã do Sul como em outras
partes.
O fracasso das reformas pacíficas é comumente atribuído
à “corrupção” e à “má administração” dos funcionários gover
namentais locais. Conquanto as elites nativas sejam certamen
te culpadas de tais pecados, a verdade é que elas não são
223
tão míopes como às vêzes supomos. Programas de reforma
agrária são uma questão tècnicamente simples, sem dúvida, se
comparados com os feitos hercúleos realizados em prol da guer
ra e da reconstrução militar, e mesmo dirigentes, com o que
dispõem em Saigon, com um mínimo de assistência amertáana,
poderiam realizar em pouco tempo um programa realista de
reforma agrária. Por trás de sua inércia está, não uma ino
cente inaptidão, mas um propósito deliberado. Se alguém é
míope, são aquêles americanos que parecem incapazes de com
preender que os oligarcas não têm qualquer interêsse em ar
riscar suas posições pela introdução de inovações substanciais
e não sentem qualquer necessidade de “corrigir-se” enquanto
permanecermos dispostos a gastar nossa riqueza e derramar
nosso sangue em sua defesa.
Ao invés de promover reformas, as classes dominantes se
arranjam de modo a que outros defendam seus interêsses.
6 íbid.
224
to àquelas nações que consideram seus interêsses ameaçados
pela revolução social, ocorra onde ocorrer (tropas americanas
na República Dominicana e no Vietnã). Se a intervenção ini
cial fracassa em restaurar algo semelhante ao status quo, a re
petição dos apelos à ideologia anticomunista americana comu-
mente basta para provocar uma escalada dos esforços; as eli
tes nativas aprendem ràpidamente a falar o idioma do anti
comunismo americano, produzindo o tipo de testemunho mais
propício a alimentar a visão demonologica do mundo, parti
cular a Washington.
Chegamos, assim, a um curioso estado de coisas: aquilo que
começou como um comprometimento americano no sentido de
transformações pacíficas não-violentas termina como um com
prometimento americano na defesa, pela violência, do status
quo. A violência pode ser empregada para mudar sòmente
quando a mudança favorece a reação, como ocorreu na Gua
temala, Irã, Indonésia e República Dominicana. Em tôdas
estas aventuras, o duplo padrão do anticomunista é rigorosa
mente mantido: os soviéticos ou os chineses não podem man
dar tropas em apoio às revoluções, mas os Estados Unidos
podem enviar ou apoiar fôrças para esmagar revoluções ou
derrubar governos.
O IM PÉRIO AMERICANO
225
tes — pouco teriam feito no sentido de amenizar as imensas
iniqüidades e as portentosas privações sofridas pelo povo.
Em muitos casos, os créditos tiveram utilizações que ne
nhuma acrobacia de imaginação poderia transformar em algo
que pudesse favorecer as reformas. Parte substancial da aju
da americana ao Vietnã seguiu o caminho das contas bancárias
da clique dirigente na Suíça ou na França, ou foi, por outros
meios, vergonhosamente desviada em benefício da elite local.
A ajuda americana ao Laos é, per capita, mais elevada do que
a qualquer outro país. Uma parte dela foi realmente utilizada
em irrigação. “Infelizmente, as áreas irrigadas tendem a ser
proclamadas propriedade pessoal de poderosos latifundiários,
que transformam ràpidamente os camponeses em servos”7. De
sacompanhado de qualquer programa político de reforma so
cial, o dinheiro americano cai nas mãos daqueles que têm o
poder de controlá-lo e distribuí-lo, aquêles justamente que me
nos estão interessados em transformações. A tentativa de tra
balhar no sentido das reformas, nos quadros do sistema vigen
te, toma-se uma política que se contradiz a si mesma pois o
primeiro princípio do sistema consiste em manter-se a despei
to e contra as reivindicações dos que nada possuem. A so
lução alternativa seria promover grandes injeções de ajuda
americana sòmente após uma importante reavaliação dos-obje
tivos sociais e uma renovação radical do pessoal dirigente, ou
seja, sòmente depois de uma revolução social.
A tendência atual do mundo não é nem a da reforma,
nem a da revolução, mas a do governo militar; e os Estados
Unidos representaram sua parte em tal evolução. No Irã, na
Grécia e, pelo menos, em sete países da América Latina, nos
últimos anos, governos apoiados pelos americanos foram der
rubados por exércitos equipados pelos americanos. Em todos
os casos, os regimes militares resultantes beneficiaram-se de
maior ajuda dos Estados Unidos.
Em Portugal, cinqüenta por cento do orçamento nacional,
subsidiado pelos americanos, se destinam a gastos militares
(relativos à manutenção de um exército de cem mil homens
226
em Moçambique e Angola). Oitenta por cento do orçamen
to de Taiwan, igualmente subsidiado pelos Estados Unidos,
destinam-se à manutenção do exército de Chiang. Sessenta
por cento do orçamento, subsidiado da Coréia do Sul corres
pondem a despesas militares (quando vinte por cento da po
pulação, em 1965, eram constituídos de desempregados). A
autocracia da Tailândia fof grandemente fortalecida pela cons
tituição, em larga escala, de fôrças armadas, americanas e na
tivas. Nas últimas eleições razoàvelmente livres do Laos, em
1958, o Neo Lao Naksat (braço político do Pathet Lao), alia
do a um partido neutralista de esquerda, conquistou sessenta
e dois por cento dos assentos da Assembléia Nacional; os
Estados Unidos reagiram cortando a generosa ajuda mensal
ao govêmo laosiano e aumentando o fluxo de armas e dinheiro
para os generais direitistas. O govêmo foi ràpidamente for
çado a renunciar8.
Pode dizer-se que uma grande parte do mundo de nossos
dias foi transformada em campo militar americano. Em 1968,
os Estados Unidos mantinham no exterior mais de um milhão
de soldados americanos0, equipes de conselheiros militares em
pelo menos trinta e oito países, bases militares importantes
em vinte e mais de três mil “bases menores” espalhadas pelo
mundo. Armavam e subsidiavam cêrca de dois milhões de
soldados nativos, grande parte sob o comando de ditadores
militares. E prestavam tôda sorte de assistência — principal
mente militar — a setenta e seis países, cêrca de três quintos
do total de nações da Terra**. Os Estados Unidos eram tam
bém membros de cinco alianças regionais de defesa, de qua
renta e dois pactos bilaterais de defesa e se tinham compro
metido, segundo palavras do Presidente Johnson, a prover “em
todo o mundo. . . os recursos necessários à luta contra a agres-
227
t
»
são”, promessa feita com a menção explícita de que ela não se
limitava aos países com os quais havíamos assinado tratados.
Na história da humanidade, nenhuma nação fêz mais no sen
tido de propagar os instrumentos da violência e multiplicar as
ocasiões potenciais para que essa violência ecloda.
O “Mundo Livre” pode ser descrito pelas estatísticas. Na
Venezuela, dois por cento da população possuem setenta e
cinco por cento da terra. No Brasil, cinco por cento possuem
noventa e cinco por cento. No Peru, trinta famílias possuem
oitenta por cento da riqueza nativa (abstração feita da rique
za em mãos de estrangeiros)9. Na Argentina, mil indivíduos
controlam setenta e oito por cento do capital nativo***. Após
ter recebido quase três bilhões de dólares em ajuda econômi
ca e militar durante um período de vinte anos, a Grécia per
manece a terra de uns poucos privilegiados e de uma esma
gadora maioria de empobrecidos. Quatrocentas famílias con
trolam a maior parte da riqueza e da terra. (A Junta militar
que assumiu o poder em 1967 fêz pouco no sentido de mudar
a estrutura sócio-econômica, mas fêz. muito para destruir tôda
a liberdade política de que gozavam os cidadãos gregos, abo
lindo as eleições, suprimindo jornais e prendendo milhares de
pessoas). Na Guatemala, cinqüenta pessoas controlam sessen
ta e nove por cento do capital nativo, cêrca de sessenta e seis
por cento do produto nacional bruto. Em Honduras,' apenas
doze pessoas possuem noventa por cento do capital nativo, o
que os beneficia com noventa por cento da renda nacional10. O
consumo alimentar per capita na América Latina é hoje menor
do que vinte e cinco anos atrás.
Segundo Lleras Camargo, ex-Presidente da Colômbia, ne
nhum govêmo da América Latina processou, em ocasião algu
228
ma, um único político ou industrial por sonegação de impostos,
prática amplamente difundida entre os ricos. A carga fiscal,
na maioria dos países do mundo livre, recai mais pesadamente
sôbre os pobres. No Vietnã do Sul, segundo informação do
New York Post, “existe ainda um nível oscilante de sonega
ção de impostos e de fraude, particularmente entre aqueles
que mais lucram com a guerra”11. Nas áreas controladas pelos
Estados Unidos, os camponeses arrendatários, que constituem
o grosso da população agrária, “são obrigados a pagar até
cinqüenta por cento e mais de suas colheitas de arroz aos la
tifundiários ausentes”12. Na maioria dos países do sudeste da
Ásia, um pequeno grupo possui e controla o grande quinhão
das terras aráveis.
Comumente, Washington não é nem favorável nem indi
ferente às reformas; antes, opõe-se ativamente a elas. Ao to
mar fortes medidas no sentido de assegurar a “estabilidade”
em diversos países, os Estados Unidos colaboram sempre na
destruição daquelas condições que eventualmente pudessem
existir para transformações pacíficas. O modelo é mais ou
menos êsse: oligarcas reacionários, resistindo a qualquer mu
dança significativa, recorrem inicialmente ao terror e, em se
guida, ao apoio militar americano. Reformistas sociais pouco
numerosos — comumente intelectuais urbanos, sindicalistas e
políticos profissionais — procuram derrubar a fortaleza da rea
ção, mas recusam-se a buscar apoio num movimento revolu
cionário de operários é camponeses. Carecendo de apoio real
de massas, embora se tomem logo o objeto da repressão go
vernamental, se vêem forçados a optar entre a revolução e a
retirada para a passividade*. “Enquanto os Corpos da Paz
americanos e os funcionários dos programas de assistência se
dedicam aos seus trabalhos de Sísifo nas aldeias, outros ame
ricanos atuam entre oligarcas e generais com o objetivo de
229
evitar a emergência de qualquer fôrça radical. O reformador
é derrotado”13.
Vez por outra, um líder popular de tendência reformista
consegue eleger-se Presidente de um país latino-americano.
Mas, uma vez no pôsto, descobre que qualquer iniciativa no
sentido de uma reforma agrária, fiscal, ou da nacionalização
de investimentos estrangeiros esbarra na oposição dos indus
triais, dos proprietários da terra, dos militares, e dos Estados
Unidos. Se se acomoda aos podêres existentes, pode conseguir
sua sobrevivência política, ao preço de seu programa de re
formas. Se dá continuidade a seu programa, é afastado pelos
militares — com ou sem a ajuda da CIA. Seus partidários
chegam logo à conclusão de que nenhum líder populista pode
sobreviver sem dispor de um exército revolucionário sob seu
comando. A lição tornou-se clara na Guatemala e na Repú
blica Dominicana.
Na Guatemala, nove anos de um reformismo de esquerda,
sob Presidentes democràticamente eleitos, Arevalo e Arbenz,
obtiveram elevado aumento anual da, renda per capita, oito e
meio por cento, em comparação com a média de três por cen
to em onze países da América Latina. Os governos de Areva
lo e Arbenz promoveram reformas educacionais (até então,
apenas dez por cento da população freqüentara escolas), le
galizaram os sindicatos, encorajaram a imprensa livre- e, em
seguida, proclamaram um programa de reforma agrária. Es
ta última medida provocou sua perda. ( Cêrca de quatrocentos
mil acres da melhor terra pertenciam à United Fruit Com pany).
Quando Arbenz distribuiu cento e oitenta mil acres aos cam
poneses, os Estados Unidos o condenaram como comunista14,
encontraram um coronel direitista treinado por americanos,
Carlos Castillo Armas, fomeceram-lhe armas e dinheiro para
a organização de uma fôrça rebelde (inclusive seis F-47 pilo
tados por “voluntários” americanos) em Honduras e na Nica
rágua, e o ajudaram a derrubar Arbenz.
Uma vez no poder, Armas prendeu e assassinou grande
número de opositores, privou de direitos civis a cêrca de se
230
tenta por cento do povo ( principalmente aos camponeses), ins
tituiu um “impôsto de libertação”, restituiu à United Fruit
tôdas as terras expropriadas, permitiu aos proprietários das
fazendas reduzir os salários em trinta por cento, aboliu os im
postos que incidiam sôljre dividendos, juros e lucros dos in
vestidores residentes no estrangeiro, presenteou companhias
americanas com vantajosas concessões para exploração de pe
tróleo, válidas para mais” da metade da superfície total do
país13. Por tudo isto, em dois anos êle recebeu cêrca de no
venta milhões de dólares dos contribuintes americanos, em ar
mas e subsídios em dinheiro*.
Hoje, com um exército equipado pelos Estados Unidos,
esquadrões para militares treinados pela CIA e Fôrças Espe
ciais, a direita guatemalteca prossegue uma já prolongada
campanha de terror. Apenas no mês de abril de 1967, trinta
e cinco pessoas foram assassinadas. Em janeiro de 1958, o
New York Times estimava entre dois e três mil o total de as
sassinatos. Os bispos guatemaltecos foram levados a protes
tar, publicando uma carta pastoral: “Pessoas são violentamente
arrancadas de sua casa por seqüestradores não-identificados, ou
são brutalmente assassinadas, seu corpo aparecendo mais tar
de com sinais de tortura e mutilação”16. O Pe. Bonpane, mem
bro do grupo de padres de Maryknoll, que se dedicava à or
ganização de cooperativas de crédito e à redistribuição de
camponeses sem-terrá da Guatemala, e que apoiava a esquer
da guatemalteca, assim resumia o papel dos Estados Unidos
naquele país:
231
Ninguém quer a violência, mas quando o poder dos
Estados Unidos é pôsto a serviço dos dois por cento de
indivíduos que possuem oitenta por cento da terra e
apóia um exército direitista que assassina reformistas sob
o pretexto de que sejam “comunistas”, a violência já foi
institucionalizada17.
232
As reformas defendidas pelos constitucionalistas derrotados,
como a concessão aos trabalhadores do direito de participação
nos lucros, a proibição da propriedade da terra além de um
certo limite máximo, a restrição do direito de estrangeiros a
adquirir terras — tôdas elas condenadas pelos Estados Unidos
— eram agora apenas sonhos do passado19.
James Petras concluía,- em 1966:
233
Na Guatemala e na República Dominicana, nos revelamos
contra reformas pacíficas de base e defendemos o reaciona
rismo violento.
234
mas surgem apenas quando existam reservas de sentimentos
que possam ser galvanizadas em ações populares. As. revolu
ções são feitas quando amplos setores da população se con
vencem da justiça dos apelos revolucionários e se dispõem a
responder a êsses apegos. O potencial revolucionário emerge
quando o povo atinge aquilo que William Sloane Coffin Jr.,
chamou de “aquele estado de agitação-que-é-esperança”.
Embora seja freqüente afirmar-se que nosso mundo é um
“mundo revolucionário”, a verdade é que a revolução não é
um lugar comum, mas condição humana bastante extraordi
nária. Como acentuou John Locke há quase três séculos, os
homens têm uma tendência a suportar terríveis sofrimentos
antes de se decidirem a arriscar sua vida pela correção dos
abusps. Não existem revoluções levianas, nem revoluções fa
bricadas segundo o desejo de grupos demagógicos. Para Locke,
o fato de que o povo tenha sido conduzido a um ato extraor
dinário de violência contra seus próprios governantes indica cla
ramente que êstes governantes se mostraram insuportáveis
tiranos.
O homem que luta numa revolução não deseja a dor e a
morte mais do que qualquer outro. A imagem que representa
os revolucionários como fanáticos audaciosos, desprovidos de
temor pessoal e dedicados à destruição de todos os valôres
existentes, encontra pouca confirmação na realidade. Depois
de uma visita ao Vietnã do Norte, dois observadores consta
tavam:
235
mente movidos por ambições utópicas; êles se revoltam
por ódio aos crimes, que buscam corrigir, e porque as
sementes da vida que escolheram não podem germinar
na sociedade tal qual a encontraram24.
237
Quer* consigamos ou não esmagar a revolução vietnamita,
alguns problemas continuarão a nos perseguir. Por que razão
centenas de milhares de camponeses sul-vietnamitas optaram
pela luta revolucionária, o que implicava em viver em pânta
nos fétidos, freqüentemente privados dos mínimos confortos
da vida, em assistir à mutilação e à morte de companheiros
vitimados por um poder de fogo amplamente superior, em ex
perimentar tôda a gama de miséria e dor? Por que os vietcongs
lutavam com tanta coragem e as tropas de Saigon raramente
o faziam? Se realmente se tratasse de mera questão de “dou
trinação comunista”, então nossa tarefa consistiria simplesmen
te em copiar as técnicas comunistas de propaganda e organi
zação, bastante conhecidas; coisa que, com efeito, andamos
fazendo, com parco resultado positivo. E isto porque, a des-
Í >eito dos macêtes da guerra psicológica, representamos o lati-
undiário absenteísta, o burocrata venal e o estrangeiro violento.
Que os americanos, que se consideram os “melhores vendedo
res do mundo”, estejam sendo passados para trás pelos comu
nistas, isto se deve, em grande medida, ao fato de que êles
pouco têm a vender. Quando divorciado de objetivos revolu
cionários, 0 emprêgo de técnicas revolucionárias revela que
tais técnicas perdem todo o seu valor**.
Segundo a concepção demonológica, as revoluções são cau
sadas pelas maquinações perversas dos subversivos, pelo fana
tismo super-humano dos guerrilheiros, pela agressão externa,
pelas insuficiências das técnicas contra-revolucionárias — por
tudo, menos pela bancarrota moral e política da ordem social
que é contestada.
238
A EQUAÇÃO MORAL
239
No sul, o quadro é ainda mais confuso. Ao invés de rece
ber de braços abertos as fôrças de libertação tremendamente
superiores dos Estados Unidos e de Saigon, os camponeses con
tinuam a dar apoio à FLN ou, pelo menos, permanecem hostis
a Saigon. Os vietcongs gozam de tôdas as vantagens táticas
da guerrilha (refúgios, suprimentos, inacessibilidade e ações
de surpresa) em grande medida porque contam com o apoio
ativo da maioria da população do campo — algo que não po
deriam obter apenas pela intimidação27. (Se a coação e a in
timidação obtivessem apoio, deveríamos então ter conquistado
fàcilmente a população para o nosso lado, desde 1966.)
Por que motivo um povo escolheria a “tirania comunis
ta”? ** Explicações reveladoras nos vêm de certas fontes ines
peradas : “De muito tempo para cá”, admitiu o embaixador Lod
ge, “os únicos povos que têm feito alguma coisa em benefício
aas pessoas pobres — procurando elevar sua condição — são
os povos comunistas”28. No mesmo sentido escreveu Reston:
“Até mesmo o Primeiro-Ministro Ky afirmou a êste repórter
240
que os comunistas estão mais próximos das aspirações do povo
pela justiça social e por uma vida independente do que seu
próprio govêmo”29. (Mas especificamente: a) os camponeses
querem terra; os vietcongs distribuem a terra entre êles, o go
vêmo de Saigon freqüentemente a toma de volta; b ) as auto
ridades de Saigon e as fôrças americanas, com seu poder de
fogo maciço e insdiscriminado, se alienam parcelas da popu
lação incomparàvelmente maiores do que as que, pela mesma
razão, se afastam dos vietcongs; c) o nacionalismo dos viet
namitas, que esteve mobilizado durante tantas décadas, tende
mais fàcilmente a simpatizar com os combatentes da libertação
do que com governos apoiados pelos franceses ou criados pelos
americanos em Saigon30). Durante a guerra contra os franceses,
Joseph Alsop, que mais tarde se tornaria um dos mais veemen
tes ‘ falcões”, visitou uma região controlada pelo Viet-Minh e
assegurou que o govêrno comunista estava “efetivamente ser
vindo ao povo” e, conquanto lhe fôsse difícil conceber dêsse
modo um estado comunista, concluiu que o regime de Ho Chi
Minh era “um govêmo popular” e “quase um govêmo demo
crático”. Em parte alguma encontrou os sinais da opressão
comunista que esperava. Mais adiante, resumia afirmando que
o Viet-Minh não teria conseguido manter sua prolongada resis
tência aos franceses não fôra o “apoio decidido do povo uni
do”31.
Retomando de outro país revolucionário, onde permane
cera durante quase um mês em 1965, um diretor de jornal
americano escreveu:
241
eram particularmente favoráveis a Fidel. . . Os antigos trabalha
dores sem terra das fazendas. . . eram uma outra fonte de apoio
total. . . Antes de Castro, a agricultura cubana era dominada
pelas imensas plantações de açúcar, a maior parte de proprieda
de de estrangeiros, principalmente americanos. Uma boa parte
da terra desapropriada foi entregue aos camponeses sem terra32. . .
Dois anos mais tarde, após uma visita a Cuba, Reston es
crevia: “Os cubanos têm seus problemas, mas estão fazendo
progressos. . . De um extremo ao outro desta linda ilha, há
um sentido comum de vida e de objetivos”. E, em 1968, Juan
de Onis informava no New York Times que Cuba estava se
desenvolvendo “mais ràpidamente do que a maioria das nações
latino-americanas. Sob o Primeiro Ministro Fidel Castro, Cuba
obteve importantes êxitos na educação de massa, saúde públi
ca, modernização rural, utilização da terra, diversificação eco
nômica, formação da mão-de-obra, reformas administrativas e
organização do comércio exterior”83.
Existem liberais anticomunistas convencidos de que todo
aquêle que profere uma palavra favorável em relação às re
voluções autoritárias de esquerda deve, necessàriamente, abri
gar sentimentos antidemocráticos ou “maoístas”. Mas, aplaudir
a revolução social não implica em oposição à liberdade política.
Em Cuba, por exemplo, há uma boa dose de liberdade política
e artística e de discussão aberta. Os cidadãos criticam a qua
lidade e as tendências dos programas governamentais, assim
como o desempenho dos administradores. O que lá não se
tolera é a contestação dos fundamentos do sistema e os ataques
à legitimidade da revolução.
Além disto, na medida mesmo em que criam alternativas
substantivas para seus povos, os governos social-revolucionários
aumentam as opções dos homens e a liberdade humana. Não
existe liberdade abstrata; existe a liberdade de se dizer aquilo
que se quer, a liberdade de oportunidade e escolha na aquisi
ção de educação e no atendimento a uma vocação, a liberdade
242
que consiste em estar-se protegido contra a penúria, a liberdade
de ter e não ter fé, a liberdade de gozar de certos benefícios
sociais, etc. Os governos revolucionários ampliam um certo
número destas liberdades sem destruir aquelas que jamais exis
tiram, propiciando assim a preservação da saúde e da vida
humana, o desenvolvimento econômico e o fim da exploração
estrangeira; e, quiçá, assegurando, ao final das contas, a pos
terior expansão das liberdades políticas que uma população
educada começa a exigir34.
O axioma anticomunista oficial proclama: “qualquer vitó
ria revolucionária esquerdista, em qualquer parte, representa
uma diminuição da liberdade no mundo”. O apêgo à liberdade
é digno de admiração, mas a afirmação é falsa. A revolução
chinesa não esmagou a democracia: não havia qualquer de
mocracia que pudesse ser esmagada. A revolução não destruiu
a liberdade: destruiu um odioso estado policial. A revolução
argelina não aboliu as liberdades nacionais; estas não existiam
sob o domínio dos franceses. Nem o Viet-Minh nem a FLN
suprimiram os direitos individuais: êles eram extraordinària-
mente insignificantes para as massas de camponeses sob Bao
Da, Dien ou Ky. Como já lembramos, ninguém na América
se afligia muito com a falta de liberdade política na Indochina
francesa ou na China do Kuomintang; ninguém hoje se preo
cupa muito com a opressão política na Coréia do Sul, Tailân
dia, Taiwan, Paraguai, Peru, etc. O desejo sincero dos ameri
canos de levar aos chineses, cubanos e vitnamitas as formas
da democracia política ( “Podem êles ouvir mais de uma opi
nião? Têm êles uma verdadeira opção quando votam?”)
raramente é estendido aos regimes não-revolucionários, inclu
sive os próprios Estados Unidos.
Confrontados com os males de uma revolução, os êxitos
obtidos valerão a pena? O balanço de lucros e perdas é assunto
complicado, quando se trata de transições sociais. Mas algum
dia já nos preocupamos em comparar a violência da revolução
com a violência que a precedeu? “Eu não sei como se mede
o preço das vitórias históricas”, disse Robert Heilbroner, “ou
243
como alguém pode algum dia decidir que um êxito difuso vale
uma perda particular e sensível. Sei apenas que a maneira
como ordinariamente mantemos os livros da história é erra
da”315. De algum modo nós asseguramos um inventário deta
lhado, embora nem sempre rigoroso, daqueles que foram
levados à guilhotina ou daqueles que se refugiaram em Lon
dres, Miami ou Taiwan. Mas não fazemos qualquer inventário
das gerações infelicitadas por essa combinação de negligência,
exploração e brutalidade tão característica dos velhos regimes,
das desgraças vítimas das inundações e da fome no vale do
Iangtsé de outrora, das crianças prostituídas encontradas mor
tas nos sórdidos becos da velha Xangai, dos mujiques sem
nome embrutecidos pelo frio e pela miséria. E o que dizer de
nossos dias?
244
13
Lucro, prestígio
e autopreservaçao
As manias podem ser de tôdas as sortes, mas há dois
tipos delas que merecem atenção especial em virtude de sua
grande freqüência: a de grandeza e a de perseguição. . . Os
dois tipos comumente sc combinam: um paciente pode sus
tentar ser êle o Rei, mas que existe uma conspiração orga
nizada para privá-lo dos seus direitos de nascimento.
B e b n a b d H a r t , T h e Psychology of Insanity
245
UMA QUESTÃO D E DÓLARES E D E SENSO
246
estivessem limitados a nos vender “caviar e peles”, em troca
de maquinaria e know-how técnico americano; ao invés disto,
êles nos ofereceram artigos como manganês, ligas ferrosas, pla
tina, cromo, sais de potássio e equipamento industrial, em
troca de aparelhos de a f condicionado, televisores, medicamen
tos e bens de consumo não-duráveis. Recusamos tal intercâm
bio, preferindo manter nossa virtude e deixando o mercado
russo para nossos aliados europeus2. As jovens nações revo
lucionárias pouco devem ter a oferecer em troca de nossos bens
e serviços. Mas, assim sendo, como poderia a perda de seus
recursos e mercados relativamente insignificantes resultar em
nosso “estrangulamento econômico”, como foi profetizado por
Rusk? Ao mesmo tempo que nos privamos voluntàriamente dos
importantes mercados da União Soviética e da China, conti
nuamos a sustentar que a perda dos pequenos mercados do
terceiro mundo nos arrastaria à perdição.
De qualquer modo, não há razão para presumir-se que os
governos revolucionários de esquerda tenderiam a privar-nos,
e a si mesmos, de relações econômicas. Mais provàvelmente,
se é possível orientar-nos pelo comportamento dos Estados co
munistas existentes, o surgimento de um grande número de
governos comunistas dedicados ao desenvolvimento nacional
ocasionaria, entre êles, aguda competição em disputa dos es
cassos recursos tecnológicos, das oportunidades no mercado
ocidental e dos dólares americanos. Os Estados Unidos pro
vàvelmente desfrutariam de posição mais vantajosa do que a
da maioria dos países para conquistar as oportunidades de co
mércio e para exercer uma influência amistosa sôbre tais Es
tados revolucionários.
A importância econômica atual do terceiro mundo tem sido
amplamente superestimada; como observou Heilbroner, o con
sumo total de energia (em têrmos de equivalente-carvão) do
Afeganistão, Bolívia, Brasil, Burma, Ceilão, Colômbia, Costa
Rica, República Dominicana, Equador, E l Salvador, Etiópia,
Guatemala, Haiti, Honduras, Índia, Indonésia, Irã, Iraque, Co
réia, Líbano, Nicarágua, Paquistão, Paraguai, Peru, Filipinas,
247
República Árabe Unida, Uruguai e Venezuela todos reunidos,
é menor do que o consumo anual da Alemanha Ocidental, ape
nas3. (Poder-se-ia acrescentar a esta lista a energia industrial
consumida anualmente pelos Estados recentemente indepen
dentes da África, sem alterar muito a comparação.)
É bastante conhecido que o maior cliente de uma nação
industrial é sua própria população. Onde há produção, há
empregos, renda, consumo e mercados. A maior parte da
riqueza da América é produzida e consumida na América; e
é por isso que desfrutamos de tal abundância. Na área do
comércio exterior, em grande parte pela mesma razão, as nações
industriais desenvolvidas são os melhores clientes, uma das
outras; e o grosso do comércio exterior americano se realiza
com a Europa Ocidental, o Canadá e o Japão*. A perda total
de nossos 14,9 bilhões de dólares investidos no terceiro mundo
dificilmente causaria perturbação grave numa economia como
a americana, cujo produto nacional bruto se aproximou, em
1968, oitocentos e cinqüenta bilhões de dólares e na qual o
ativo das empresas monopolísticas atinge cêrca de um e meio
trilhão de dólares.
Mais ainda, os lucros produzidos pelos investimentos na
Ásia, África e América Latina dificilmente representam ganho
líquido para nosso país. Além das graves questões morais re
lacionadas com o caráter espoliativo dos lucros no' terceiro
mundo**, o império americano nos custa, em têrmos monetários
exclusivamente, mais do que realmente vale. O total de nossos
investimentos no terceiro mundo eqüivale aproximadamente
248
àquilo que gastamos em seis meses de guerra no Vietnã. Nas
Filipinas, dispendemos quase dois bilhões em ajuda militar,
protegendo ostensivamente investimentos comerciais inferiores
a meio bilhão de dólares. Cada ano, nosso orçamento militar
representa três ou quatro vêzes o volume de nossos capitais no
terceiro mundo.
O economista Kenneth Boulding nos lembra que, nesta
época da invenção científica, “para cada dólar obtido pela ex
ploração de um homem pode-se extrair dez dólares da natu
reza”. A ciência reduz a rentabilidade da exploração do homem
ao aumentar a produtividade das máquinas e também ao au
mentar os custos militares de um império. “No século passado,
o império passou a ser uma carga, ao invés de uma fonte de
rendas”, conclui Boulding. “E em têrmos de ritmo de cresci
mento, ser uma grande potência não se revelou vantajoso. Os
ritmos de crescimento da França e da Inglaterra, por exemplo,
foram, a partir de 1860, consideràvelmente menores do que os
de muitos países menos ambiciosos, como a Suécia e, mesmo,
o Japão”4.
Os interêsses dos monopólios privados conseguiram com
pleno êxito identificar-se com o patriotismo, de forma a que
falemos hoje de “nosso” petróleo e de “nossas” matérias-primas.
Contudo, nós, os milhões de americanos que carregam o pêso
do império, pouco participamos de seus benefícios. Cabe per
guntar se aquela pequena parcela de “nossa” riqueza, repre
sentada pelos lucroS obtidos no exterior por umas poucas
empresas monopolísticas, compensa a subestimação dos servi
ços sociais à nossa população, a deterioração do bem-estar na
cional, o crescimento contínuo do militarismo e o enorme preço
em sangue, suor e impostos que paga o povo americano.
As classes possuidoras americanas sempre estiveram entre
os mais ativos propagadores do anticomunismo militante. Mas
ao longo dos anos um certo número de vozes conservadoras
colocou em questão o intervencionismo militar - desde Andrew
Camegie, que considerava os gastos militares como perda de
dinheiro e argumentava que o comércio internacional multi
249
plicava os laços entre as nações e tornava a guerra impensável,
até o senador Robert A. Taft, o falecido dirigente republicano,
que sustentava que as aventuras no exterior traziam consigo
um govêmo federal muito mais coercitivo, impostos excessivos,
crise econômica e perda de liberdade política5. No auge da
guerra do Vietnã, uma importante firma de corretagem de Wall
Street, a Paine W ebber, Jackson and Curtiss, publicou o se
guinte anúncio de página inteira no New York Times:
e Ver Huntington, The Soldier and the State, págs. 222-226, sôbre
os primórdios do “pacifismo do husiness” . Ver ainda Henry H. Berger,
“A Conservative Critique of Containment: Senator Taft on the Early
Cold W ar Program”, em Horowitz, Containment and Revolution, págs.
125-139.
250
. . . A paz no Vietnã, para o mercado de ações, se
ria a coisa mais construtiva e mais alentadora que pode
ria suceder6.
251
mais amigos do que pensavam e sòmente então poderão exercer
a liderança inteligente, prática e rica em recursos, que freqüen
temente proclamam como uma de suas virtudes comuns.
SALVANDO O IM PÉRIO
252
Schlesinger Jr. argumentava: "Nossa segurança nacional pode
não nos exigir que tracemos uma linha no sudeste da Asia lá
onde o fizemos; mas, uma vez que a traçamos, não podemos
abandoná-la levianamente. A parada que jogamos no Vietnã
do Sul pode ter sido criada por nós mesmos; não obstante, ela
se tornou real”8. Real em que sentido? Nossa “parada” no
Vietnã seria real apenas se acreditássemos que um comprome
timento cria, por si mesmo, um interêsse vital. “Se a decisão
inicial foi ou não um êrro é, hoje, questão discutível”, racioci
nava o senador Russell, “Os Estados Unidos estão contudo
comprometidos no Vietnã do Sul. A bandeira lá está. A honra
e o prestígio dos Estados Unidos lá estão. E, o que importa
mais do que tudo, os soldados americanos lá estão”9. Para
Russell, a perda do Vietnã do Sul dificilmente seria fatal “seja
do ponto de vista estratégico, tático ou econômico”, mas repre
sentaria sério “golpe em nosso prestígio mundial”. E assim são
as coisas: preocupados com nossa imagem, estávamos dipostos
a empreender uma guerra interminável, insensata e suja para o
bem de nosso orgulho e prestígio, sem atentarmos para o fato
de que o espetáculo de uma gigantesca nação industrial que
tenta pulverizar um débil povo subdesenvolvido e reduzi-lo à
submissão dificilmente pode ser a mais exaltadora imagem a
apresentar-se ao mundo**. “Há mais respeito a conquistar na
opinião dêste mundo”, observou certa vez George F. Kennan,
253
“pela decidida e corajosa eliminação de posições errôneas do
que pela mais obstinada perseguição de objetivos extravagantes
e que nada de bom podem trazer”.
A preocupação americana em não ser “mole”, o temor
de que outros vejam em nós irresolução e vulnerabilidade, nos
leva a mostrar-lhes nosso poder e nossa “determinação de per
manecer firmes”. Parece que jamais nos ocorreu perceber que
o único povo no mundo que teme que a América possa não
ser suficientemente forte é o povo americano. Empregamos
nosso poder para manter nosso prestígio e, desde o início, de
finimos nosso prestígio exclusivamente em têrmos de poder. Os
demais povos, todavia, estabelecem uma distinção: são dolo
rosamente conscientes de nossa imensa fôrça e é essa mesma
fôrça que solapa nossa popularidade e prestígio ao tornar-se
um objeto de mêdo e desconfiança. William Foote Whyte nos
recorda que uma nação pode ser julgada forte ou fraca, mas
que ela é também julgada segundo outros critérios: cruel ou
humana, temerária ou responsável, belicosa ou pacífica, arro
gante ou respeitosa perante as demais, imperialista ou antiim-
perialista, inteligente ou estúpida. Suponha-se que nossas ações
no Vietnã e em outros lugares “convençam os líderes da opinião
de uma dada nação de que somos fortes — mas que somos
igualmente cruéis, temerários, belicosos, arrogantes, imperialis
tas e estúpidos. Teremos uma boa ‘imagem’ nesse país?”10 - Te
remos conquistado popularidade, respeito e apoio e nos mos
trado dignos daquele papel de “líder mundial” a que aspiramos
com tanta ansiedade?
Talvez, como sugere Heilbroner, as nações européias te
nham conseguido estabelecer sua paz com o comunismo mais
fàcilmente do que nós por saberem não mais poder liderar o
mundo. Seremos capazes de aceitar tal rebaixamento de nosso
lugar na história ou deveremos continuar a ver em cada insur
reição violenta, em qualquer selva ou aldeia montanhosa, um
desafio potencial e fatal ao “nosso status de grande nação”?
Nossa preocupação com o poder e o prestígio, a necessidade
254
que sentimos de ser o Número Um, de estarmos sempre por
cima, de conduzirmos o rebanho, tudo isto trai uma profunda
debilidade. O senador J. William Fulbright oferece o seguinte
diagnóstico:
255
Nosso método não é defensivo, e sim expansionista. O
que estamos fazendo é menos defender “interêsses vitais” em
lugares como o sudeste da Ásia do que tentar estabelecer no
vos interêsses*. Se é verdade, como sustentam os globalistas,
que necessitamos da expansão para proteger aquilo que real
mente é “nosso”, devemos pelo menos reconhecer que, quando
os chineses e outros nos acusam de expansionismo, êles o
fazem com uma certa propriedade. E deveríamos nos per
guntar porque a expansão ilimitada em prol da auto-defesa
seria um privilégio que as outras nações não pudessem exercer
e porque não deveria encontrar resistência quando exercido
por nós. Isto nos conduz à questão do imperialismo moral.
256
14
O Imperialismo moral C
257
f
il
258
reside o poder de seu apêlo. No centro da religião secular
do nacionalismo está a crença de que a existência e as ações
da nação estão de tal forma dotadas de virtude que ela deve
ser colocada acima das regras normais de vida. As restrições
humanas ordinárias não se aplicam facilmente às nações e os
vícios comuns não lhe são. de bom grado atribuídos, pelo me
nos por seu próprio povo. Uma vez convencida de sua voca
ção para algum bem coletivo superior — seja êle o “bem-estar
nacional”, a “liberdade” ou a “ordem no mundo”, etc. — a
Nação Virtuosa não conhece outra restrição além das limita
ções de seus próprios desejos e de seu poder.
A distinção entre moral individual e internacional, eviden
temente, exige qualificação, pois há indivíduos que, por seu
egoísmo insano, parecem agir mais em consonância com a ló
gica invertida da moral patriótica, assim como há nações que
em certos momentos — raros — agiram por puro altruísmo e
com espírito de sacrifício, por exemplo, em casos de ajuda de
emergência a países vizinhos vitimados por catástrofes natu
rais. A diferença essencial entre a ética pessoal e a coletiva
é, contudo, uma diferença real. Quando uma pessoa exaltada
comete um delito é punida ou, caso não o seja, há pelo menos
certo consenso de que ela violou os padrões apropriados de
conduta e de que deveria fazer-se justiça. A mais implacável
violência — ultrajante para a moral individual e insuportável
na vida civil — é não obstante aplaudida quando posta em
prática em nome da nação*.
A moral patriótica' não é apenas aquela hipocrisia que
representa o tributo que o vício paga à virtude. O ego nacio
nal acredita honestamente em sua própria exigência de retidão
e bondade. O engodo deliberado joga freqüentemente um
papel predominante na manipulação da política, particular
' 259
mente no nível operacional (como veremós nas páginas sê-
guintes), mas quem poderia afirmar que os objetivos apaixo
nados do nacionalista salvador do mundo nunca são a expressão
de sentimentos reais?
L ID E R MUNDIAL
260
0
8 Saul Padover, “How the Asians See Us”, New School Bulletin,
28 de dezembro de 1965.
4 Discurso de Gunnar Myrdal na reunião da SANE, publicado em
SA N E W orld, janeiro de 1967.
6 Johnson, citado em T he Atlantic, setembro de 1966, pág. 12.
261
dificuldade em acreditar-se superiormente qualificada parla
erguer a humanidade. O impulso salvador se reforça quando
à virtude nacional junta-se o poder nacional, pois os ameri
canos começam a ver em seu poder, poder que os habilita a
arremeter contra os outros, uma prova de sua destinação di
vina. A proposição segundo a qual “devemos mobilizar nosso
poder para exercer a liderança” logo se transforma em “de
vemos exercer a liderança porque somos poderosos”. Nosso
representante na OTAN, Harlan Cleveland, insistiu para que
nos “acostumemos com nosso próprio poder e com as implica
ções de suas condições globais de existência”. Êle acreditava
que os Estados Unidos teriam de envolver-se “em tantos con
flitos horríveis e antipáticos, em tantos lugares”, simplesmente
por serem um país tão grande e tão poderoso6.
GUARDIÕES DA L E I E DA ORDEM
262
Sir, não tenho dúvidas de que sim”8. Aplicamos as leis inter
nacionais com invejável flexibilidade, às vêzes com resultados
singulares:
263
ser punido por supostas violações, como nós — que podíamos
violar o tratado à vontade — estávamos armados do direito de
executar a punição. Estávamos acima da lei, mas não indife
rentes à ela.
Na realidade, Rusk enganava seus interlocutores ao afirmar
que Washington não estava comprometido com o acôrdo de
Genebra. Conquanto não fôsse um signatário formal, os Esta
dos Unidos se comprometeram a “abster-se de qualquer ameaça
ou uso da fôrça visando perturbar” a execução dos acôrdos,
comprometendo-se igualmente a considerar “com tôda gravida
de, como uma séria ameaça à segurança e à paz internacionais”
qualquer violação dos acôrdos10. Dávamos, assim, nosso apoio
aos quatro compromissos básicos estabelecidos em Genebra: 1)
abster-se da concessão de ajuda militar ao Vietnã; 2) intervir
apenas no caso de solicitação da Comissão Internacional de
Contrôle; 3) respeitar todos os esforços do Vietnã do Norte e
do Vietnã do Sul no sentido da realização de eleições nacionais
em 1956; 4) considerar como provisória a linha de demarcação
do paralelo 1711. „
Em dois anos, os Estados Unidos já tinham faltado com
sua palavra em cada um dêsses compromissos. Tínhamos
enviado milhares de militares e armas para o Vietnã do Sul,
recusáramos a admitir a presença dêsse pessoal militar perante
a Comissão Internacional de Contrôle, reconhecêramos apenas
o govêmo do Vietnã do Sul, redefiníramos a demarcação pro
visória do paralelo 17, como fronteira permanente e inviolável
entre duas nações distintas e prometêramos continuar ajudando
e apoiando o govêmo de Saigon contra as influências de uma
“ideologia estrangeira”12. A partir de 1954, como revelam os
documentos da CIC, apesar de algumas infrações menores, o
Vietnã do Norte geralmente cooperou com a fiscalização exer
cida pela Comissão, enquanto o Vietnã do Sul se recusava a
264
(
E FE ITO S INVERTIDOS
’ 265
de camponeses que vivem diretamente no campo de batalha
ou em imundos campos de refugiados, o resultado se aproxima
ria ainda mais da unanimidade. Mesmo entre a população
católica, durante longo tempo apresentada como favorável à
guerra, há muitas evidências de uma situação semelhante. Em
1968, a hierarquia católica do Vietnã do Sul publicou uma
declaração pedindo a cessação dos bombardeios e negociações
imediatas, colocando-se assim em oposição à política intransi
gente de Washington e Saigon.
O que sucederia caso os vietnamitas ousassem fazer uma
opção que se chocasse com nossos planos? Que sucederia se
se unissem sob a direção de um líder que exigisse nossa parti
da? O embaixador Henry Cabot Lodge respondeu a tais ques
tões perante uma Comissão do Congresso: os Estados Unidos
não deixariam o Vietnã do Sul, mesmo que a isso fôssem solici
tados pelo govêmo daquele país; nossa responsabilidade no
Vietnã era perante o mundo inteiro.
(O govêrno “independente” do Vietnã do Sul não mani
festou a menor queixa ou protesto diante de tal declaração.) A
formulação de Lodge foi mais tarde ampliada por um “alto
funcionário” anônimo; segundo êste, a afirmação de Lodge sig
nificava que os Estados Unidos não se retirariam caso solici
tados a fazê-lo “por um govêmo de esquerda ou, mesmo, neu-
tralista que, na opinião dos Estados Unidos não refletisse os
verdadeiros sentimentos do povo sul-vietnamita ou dos dirigen
tes militares”14. Nosso envolvimento nas questões vietnamitas
não tinha limites nem mesmo aquêles que os vietnamitas por
ventura quisessem estabelecer. “O amor excepcional assegura
privilégios excepcionais”.
Confrontados com a possibilidade de eleições que teriam
resultado num govêmo civil em 1967, os generais sul-vietna-
mitas se anteciparam, formando um “comitê de assuntos mi
litares” cujo propósito expresso consistia em prosseguir dirigindo
o país da mesma forma que antes das eleições. O Mal. Ky,
que já declarara: “Lutaremos, caso o povo eleja um govêmo
neutralista ou comunista”, dizia agora que derrubaria qualquer
266
presidente eleito “que não se submeta às aspirações do povo
do Vietnã do Sul”15. Embora se afirmasse que os funcionários
americanos se mostravam descontentes com tais declaráções,
era na verdade difícil ver uma diferença entre as palavras de
Ky e as de Lodge: um como o outro se recusavam a partir,
ainda que convidados a fazê-lo por um govêrno democràti-
camente eleito.
A campanha eleitoral para a formação da Assembléia
Constituinte do Vietnã do Sul, em 1966, que durou duas se
manas, ofereceu, segundo o Califórnia Inquirer a escolha entre
“quinhentos e quarenta e dois candidatos anticomunistas cui
dadosamente selecionados para cento e oito cadeiras a serem
S reenchidas”10. O mesmo jornal, no mesmo dia, informou ain-
a que o Vice-Presidente Humphrey “previra novamente a
derrota°dos comunistas nas eleições”. Um jornalista americano
observou que os militares e a polícia receberam ordens “para
manter sob custódia os que se opunham às eleições” e “espa
lhar a notícia de que os que se abstivessem poderiam encon
trar-se em dificuldades”17. Diversos correspondentes informa
ram ainda que os candidatos se queixaram da severa censura
à imprensa e da impossibilidade de realizar eleições livres sem
imprensa livre18. Johnson declarou, porém, que as eleições “nos
forneceram uma lição duradoura de democracia”19. Ninguém
mencionou que candidatos sob suspeita de inclinações “co
munistas” ou mesmo “neutralistas” não tinham obtido permissão
para participar do pleito, e que no Vietnã do Sul o crime de
“neutralismo”, definido êste como “tôdas as ações que enfra
queçam o esforço nacional anticomunista e sejam nocivas à
luta anticomunista do povo e das Fôrças Armadas”, era crime
punível com a pena de morte20.
268
C RED IBILID A D E E IN CREDIBILIDADE
269
sempre a confirmar a imagem presente da cúpula dirigente,
seja ela qual fôr”23. John Mecklin, dirigente máximo dos ser
viços de informação dos Estados Unidos no Vietnã, descreve
como segue esta tendência à auto-ilusão:
272
Nada disto aconteceu. Nenhum funcionário, jornalista ou
militar jamais informou algo a respeito, nem mesmo sob a
forma de rumores. O embaixador Bennett disse mais tarde
não ter lembrança de quaisquer balas entrando em seu ga
binete; nem se protegera sob sua escrivaninha. Nenhum ci
dadão americano foi ferido, exceto dois jornalistas, baleados
por marines dos Estados Unidos; nenhum foi ameaçado. Nin
guém pôde ser encontrado que tivesse visto um só corpo de
capitado na República Dominicana. As decapitações foram
inventadas32.
Na guerra contra a verdade, as próprias palavras são
objeto de permanente abuso e as definições assumem signi
ficado oposto. Países “dependentes” e “fantoches”, por exem
plo, são exclusivamente aquêles do bloco comunista, enquan
to que países não-comunistas, embora influenciados ou contro
lados econômica, militar ou diplomàticamente pelos Estados
Unidos, merecem o título de “independentes”. É assim que
a Coréia do Norte — em cujo território não existem tropas
chinesas ou soviéticas, que dispõe de pequeno exército regu
lar e cuja população parece unida em tôrno da tarefa da re
construção nacional, e cuja liderança proclamou abertamente
sua independência em relação a Moscou e Pequim — nem por
isso deixa de ser “satélite” comunista. Inversamente, a Coréia
do Sul — com cinqüenta mil soldados americanos dentro de
suas fronteiras e um exército regular de seiscentos mil homens
equipado e financiado pelos Estados Unidos, com uma dita
dura economicamente dependente da ajuda americana — é
chamada nação “independente”33. (A mesma comparação po
de ser estabelecida entre o Vietnã do Norte e o do Sul.)
A verdade, em tôda a sua concretude e complexidade,
sucumbe diante de imagens e metáforas simplistas. Há uma
“onda” que deve ser contida, “cidadelas” cujas “fundações” de
vem ser defendidas, “postos avançados” a serem preservados.
Há “fantoches” e “instrumentos”, há os que insensatamente pre
tendem que sejamos “brandos”, quando de fato devemos ser
273
“firmes” ( “duro” foi abandonado como demasiado “rígido”). No
Vietnã, observou Johnson, há uma “enfermidade” que deve ser
“posta em quarentena”. Justificou nossa intervenção nos se
guintes têrmos: . .se você vê uma criança nesta sala tentan
do engatinhar pelo chão, e chega um marmanjo malvado, agar
ra-a pelos cabelos e começa a espancá-la, penso que você cer
tamente fará alguma coisa”34. (O marmanjo malvado era a
F L N ). Humphrey defendia nosso enorme orçamento militar
observando que “se você tem uma doença em casa” você terá
de gastar uma boa parte “de seu orçamento cuidando do doen
t e . .. O fato é que houve, nestes anos do pós-guerra, uma ‘enfer
midade’ no mundo (isto é, o comunismo) e que não nos demos
ao luxo de ignorar essa ‘enfermidade’ ”. Comparou qualquer
tentativa no sentido de um govêmo de coalizão no Vietnã
àquela que consistiria em “colocar uma rapôsa num galinheiro
ou um incendiário no corpo de bombeiros”. Em 1964 rejei
tou a coalizão alegando estar ela baseada na idéia de que
“o assaltante e o ladrão têm direito a algo”.
Foi ainda Rusk quem observou certa vez: “As linhas es
senciais da política dos Estados Unidos são simples e fàcil-
mente compreensíveis; estou perfeitamente seguro de que a
maioria dos estudantes das últimas séries do secundário po
deriam descrevê-las adequadamente”. Na mesma época, cri
ticou os professôres do nível médio por sua incapacidade para
compreender nossa política no Vietnã. “Trata-se aqui de um
paradoxo”, observou William Foote Whyte, “uma política ex
terna simples bastante para ser compreendida e aceita por es
tudantes secundaristas e não obstante acima da compreensão
e simpatia de muitos professôres profissionalmente interessa
dos nestes assuntos”35. Êle próprio professor do nível médio,
Whyte admitia não poder invocar imparcialidade em tal com
petição com os estudantes, contudo arriscava uma explicação:
as linhas da política eram de fato simples, tão simples que
os professôres — e com êles os membros do Congresso, a im
274
prensa, o clero, os artistas c os profissionais liberais, todos cies
pessoas bem informadas e conscientes do caráter multifacéti-
co da realidade política — não podiam conciliar o mundo que
estudavam com o quadro simplista traçado por Rusk. Tôdas
as referências a “ondaj”, “incêndios”, “rapôsas”, “ladrões” e
“marmanjos malvados” tampouco poderiam ser aceitas como
sucedâneos satisfatórios de um discurso racional e investigador.
’ 275
Assim que os comunistas evacuaram Quangnai, na se
gunda-feira passada, os jatos americanos bombardearam
os montes onde êles buscaram refúgio. Muitos vietna
mitas — uma das estimativas atingia quinhentas pessoas
— foram mortos pelas bombas. A tese americana é de
que se tratava de soldados vietcongs. Mas três. em ca
da quatro feridos que procuraram socorro no hospital
local, apresentando queimaduras de napalm, eram mu
lheres da aldeia.
The New York Times, 6 de junho de 1965.
Você certamente não crê que nossos pilotos “levan
tam vôo para bombardear crianças”, que enviamos bom
bas e equipamento pesado contra civis inocentes?.. . Você
sabe tão bem como eu, Gênia, que estamos bombardean
do depósitos de combustíveis, veículos e armas pesadas
e sofisticadas que êles utilizam para matar nõssos filhos.
John Steinbeck, carta a Eugene Evtuschenco,
Philadelphia Inquirer, 12 de julho de 1966.
As principais figuras da guerra aérea no Delta são
os batedores aéreos avançados. . . Êles cruzam o Delta
como uma brigada vigilante, com o poder de vida e mor
te sôbre os habitantes das aldeias vietnamitas situadas
na rota de sua patrulha diária. . . Um batedor pode ma
tar grande número de pessoas inocentes se cometer um
êrro, o que às vêzes ocorre. Encontrei certa vez um
batedor que vinha pilotando um bombardeiro de unida
des da marinha contra aldeias e concentrações vietcongs
há vários meses. Os destróieres se encontravam várias
milhas ao largo. Êsse jovem foi dispensado do serviço
militar depois de declarar-se abertamente culpado de
cumplicidade na matança de muitos civis porque os ca
nhões de longo alcance freqüentemente atingiram casas
e pessoas na vizinhança dos alvos estabelecidos. Era im
possível não sentir a agonia dêste jovem. “Eu só quero
voltar para casa e esquecer tudo isto para sempre”, disse
êle.
Frank Harvey
Flying Magazine, novembro de 1966.
276
Na imprensa americana, os vietcongs quase sempre
são apresentados como terroristas, pura e simplesmente. A
realidade nem sempre é tão simples. Algumas vêzes e
em algumas aldeias, os vietcongs de fato são terroristas.
Mas freqüentemeiite procuram ganhar o coração da po
pulação. Freqüentemente, os vietcongs realizam execuções
públicas de funcionários do govêmo, e isto é apresen
tado como “um ataque terrorista”. Contudo, a verdade
às vêzes é que o funcionário era um opressor e sua
execução é um acontecimento recebido com satisfação. . .
A selvageria dêles é pessoal e primitiva. A nossa é im
pessoal e sofisticada. Nós e os sul-vietnamitas usamos
artilharia para bombardear aldeias; não vemos o que
acontece do outro lado. . . Os vietcongs não usam na
palm; nós usamos. . . Sou cimrgião ortopedista há mui
tos anos. . . Mas nada poderia ter-me preparado para
encontrar mulheres e crianças vietnamitas queimadas
pelo napalm. Era algo perturbador, mesmo para um
médico, ver e sentir o cheiro da came enegrecida. . . E
nunca se esquece os olhos apavorados de uma criança
calada que sofre com as queimaduras de napalm.
Dr. Richard E. Perry
Redbook, janeiro de 1967.
O napalm- e seu mais terrível companheiro, o fósfo
ro branco, dissolve a carne e lhe dá formas grotescas.
Estas crianças, depois das queimaduras, pràticamente
não têm mais aparência humana, e é impossível defron
tar o efeito monstruoso das queimaduras sem ser inteira
mente abalado. . . A reação imediata no sentido de tra
tar e curar o ferimento é contida pelo temor de que a
pele se desfaça como cinza entre meus dedos. . .
Os soldados americanos no Vietnã que, acidental
mente, sofrem queimaduras de napalm são conduzidos
imediatamente em aviões especiais — equipados para os
primeiros tratamentos — para o Hospital Militar Brook,
no Texas, um dos melhores centros mundiais para o tra-
277
tameftto de queimaduras e para a cirurgia plástica inten
siva que se segue a êste tratamento.
William F. Pepper.
Ramparts, janeiro de 1967.
Devíamos estar orgulhosos do que estamos fazendo
pelo povo do Vietnã do Sul.
Secretário de Defesa Robert McNamara, 1967.
Os hospitais civis estão desesperadamente superlo
tados, particularmente nas regiões de bombardeio mais
intenso. . . A maior parte das vítimas apresenta queimadu
ras ou fraturas. Atualmente, existem aproximadamente três
mil mutilados na província de Quan N g a i...
Philadelphia Inquirer, 16 de julho de 1967.
O Pentágono divulgou uma carta do Secretário
Adjunto da Defesa, John T. McNaughton, ao presiden
te da Comissão de Relações Exteriores, Fulbright, di
zendo que apenas cento e nove civis foram mortos e cen
to e setenta feridos, nos sete meses entre 1.° de agôsto
de 1965 e 1.° de março de 1966.
I. F. Stone’s Weekly, 28 de março de 1966.
. . . Na noite de ontem, dois jatos escuros de asas
em delta, não identificados mas provàvelmente america
nos ou sul-vietnamitas, mataram cêrca de cento e cinco
pessoas e feriram cento e setenta e cinco num ataque com
bombas e rajadas de metralhadoras que durou vinte e
cinco minutos. Os habitantes da aldeia se haviam refu
giado em abrigos subterrâneos, mas muitos morreram, al
guns sufocados.
The Times, 4 de março de 1967.
Havia, às vêzes, duas pessoas numa só cama; e, às
vêzes, três. Eram camponeses de tôdas as idades, bas
tante feridos. . . O médico vietnamita do hospital me
disse: “Êstes que você vê aqui são os que foram capazes
de nos procurar. Para cada um que consegue alcançar
uma cidade existem dez que morrem na aldeia ou nos
278
campos ou em qualquer outra parte onde tenham sido
atingidos. E isto é verdade acima de tudo em relação
aos que sofreram queimaduras graves”. '
Robert Guillian
L e Monde, 12 de março de 1966.
to
É incrível o que anos de terror fizeram com a outro-
ra rica vida selvagem do Vietnã do S u l... Elefantes
selvagens que outrora percorriam em bandos as florestas
agora destruídas do Vietnã central modificaram seus há
bitos sexuais. “Parece que em muitos casos deixaram
de acasalar-se”, disse o Dr. Vu Ngoc Tan, diretor do
zoológico de Saigon. “Foram aterrorizados pelos bom
bardeios e os ataques de artilharia e de tanques na flo
resta”. Recentemente o Dr. Tan observou três elefantes
feridos, enquanto percorria o interior do país. . . “Apre
sentavam ferimentos graves, provàvelmente em resultado
de bombardeio e eu nada podia fazer por êles”, disse Tan.
“Òbviamente, êles tinham sido abandonados pelos demais
e se dirigiam àquele local para morrer” . . . Tigres e
panteras também sofreram com a guerra... A utilização
de elementos químicos para a destruição da flora causou
verdadeira devastação entre os pássaros ao destruir a ve
getação e os insetos que lhes serviam de alimento. Ma
cacos e veados foram igualmente atingidos. Apenas os
ratos tiraram proveito da guerra. Grandes como gatos, po
dem ser vistos à' noite nas ruas mais miseráveis de Saigon.
Êstes roedores carregam consigo uma pulga que trans
mite a peste bubônica, a “morte negra” que flagelou a
Europa na Idade Média.
The Baltimore Sun, 15 de janeiro de 1967.
Os franceses não mataram o suficiente. Quem mata
o suficiente ganha a guerra.
Um general do exército americano em Saigon.
The New York Times, 15 de maio de 1966.
Caro senador Fulbright: Muito se escreveu acêrca das
táticas terroristas do Vietcong. Os verdadeiros terroris
tas no Vietnã são os americanos e seus aliados. Não
nego que algumas acusações contra o Vietcong sejam
279
verdadeiras, mas a julgar por minha própria experiência
o terror e a destruição que causamos por tôda parte faz
com que o Vietcong pareça um grupo de môças bandei
rantes em piquenique.
O senhor pode imaginar como fica uma pequena
aldeia isolada cfepois de ter sido atingida, em poucos se
gundos, por cêrca de quinhentas a setecentas e, cinqüen
ta libras de bombas? Mulheres, crianças, velhos, gado,
qualquer coisa viva, são esmagados sem saber sequer a
causa imediata de sua destruição. E essa aldeia cessa
de existir por estar localizada numa região controlada
pelo Vietcong... Jamais encontramos um só spldado
morto mas como é o costume nas áreas controladas pelo
Vietcong, todos os mortos são relacionados como vietcongs
abatidos em ação.
Vi ainda milhares de libras de arroz serem lançadas
rio abaixo e, por conseguinte, destruídas, e isto porque
algum comandante de pequena unidade decidiu que ha
via arroz demais, numa aldeia qualquer, para o número
de habitantes que nela viviam» e que, portanto, o exce
dente deveria estar sendo encaminhado para o Vietcong...
Aquela gente trabalhou meses a fio para conseguir colhêr
o arroz e seus “defensores” chegavam e, em poucos mi
nutos, tudo destruíam. 'Esta cena repetiu-se dezenas de
vêzes enquanto servi. '
Carta de um segundo-tenente da Marinha ao senador
J. William Fulbright.
280
aquêle que vivesse na área operacional seria considerado
inimigo.
Fuller disse que os búfalos, patos, galinhas e porcos
estavam sendo dizimados para privar os batalhões ini
migos de comida fresca. Os cães eram igualmente mortos
pois, disse êle, em dificuldade os guerrilheiros podem
matá-los para com er!.. Centenas de toneladas de arroz
foram destruídas ou removidas. Alguns soldados carre
garam patos, para seu próprio alimento.
(AP) Gazette and Daily, (York, Pennsylvania), 14
de março de 1967.
Perguntaram a Domple acêrca do vietcong que fôra
morto na noite anterior. “Não era um vietcong”, disse
êle, “era um velho. Êle tinha sôbre o ombro uma vareta
com uma trouxa amarrada na ponta. Parecia uma ca-
rabina. Gritamos que parasse e êle começou a correr”.
Tom Buckley,
New York Times Magazine, 4 de novembro de 1967.
Segundo oficiais das Fôrças Especiais, matamos “dez
civis para cada vietcong”.
Newsweek, 14 de março de 1966.
Partimos hoje em missão, e não estou muito orgu
lhoso de mim mesmo, de meus amigos e de minha pátria.
Queimamos as cabanas que encontramos. Era um peque
no conjunto de aldeias rurais e o povo era incrivelmente
pobre. . .
Queimamos tôdas as cabanas e separamos todos os
homens com idade suficiente para carregar uma arma;
vieram então os “carniceiros” e os levaram (êles os le
varam para um ponto de concentração algumas milhas
mais adiante, para interrogatório) . . .
Todo mundo gritava, pedindo e implorando que não
os separássemos. . . As mulheres choravam e se lamen
tavam. 'Em seguida, olhavam aterrorizados enquanto
queimávamos suas casas, seus bens pessoais, seus alimen
tos. Sim, queimamos todo o arroz e fuzilamos todo o
gado.
281
. . . Um de meüs camaradas gritou “La dai” ( “Ve
nha cá”) para dentro de uma choça e um velho saiu.
Meu camarada disse ao velho que se afastasse da cho
ç a . .. e simplesmente lançou para dentro uma granada
de mão. Antes, quando êle acionou o detonador, o velho
ficou agitado, começou a gritar alguma coisa e correu
em direção a meu camarada e à cabana. Não compreen
dendo o que se ^passava, um soldado imobilizou o velho
com um pontapé no momento mesmo em que meu ca
marada jogava a granada dentro da choça. . . Todos nós
ouvimos o chôro de uma criança vindo lá de dentro. . .
Depois da explosão, encontramos a mãe, duas crian
ças (menino e menina, oom seis e doze anos de idade,
mais ou menos) e um bebê. Era isto o que o velho esta
va tentando dizer-nos. Foi horrível! A última còisa que
vi foi um velho, muito velho, vestido com miseráveis far
rapos sujos, ajoelhado diante da cabana em chamas, oran
do a Euda. O vento agitava seus cabelos brancos e lá
grimas lhe corriam pelo rosto. . . ;
Não muito longe havia outra cabana, e o chefe do
meu esquadrão disse-me que°fôsse lá e a destruísse. Um
ancião saiu da cabana. Assegurei-me de que lá não havia
mais ninguém e peguei os fósforos. Nisso, o homem veio
até mim e curvou-se, as mãos fazendo um gesto de ora
ção, e ficou assim, curvando-se e implorando com as mãos.
Parecia tão desesperadol Êle nada dizia, apenas con
tinuava a curvar-se, pedindo-me que não queimasse sua
ca sa .. . Com um pêso no coração, joguei os fósforos
acesos sôbre a palha e fui embora.
Pai, foi muito duro para mim voltar-me e olhá-los nos
olhos, mas eu o f i z .. . Joguei meu fuzil no chão e corri
para a cabana, que já ardia, e trouxe para fora tudo o
que me foi possível salvar — comida, roupas, etc. Quan
do terminei, o ancião pegou minha mão e, ainda sem
nada dizer, curvou-se e tocou as costas de minha mão
com sua fronte. . .
Carta de um soldado a seu pai,
Beacon Journal (Akron, Ohio), 27 de março de 1967.
CD
* 283.
cercaram uma aldeia próxima à fronteira do Camboja.
“Um oficial disse que a mulher parecia suspeita e man
dou que eu atirasse nela”. Tudk disse: “Eu sinto tê-lo
feito, mas era uma ordem”. Disse que o costume era não
fazer prisioneiros, exceto quando se tratava de oficiais
norte-vietnamitas. “Nós os fuzilamos. O único vietna
mita bom é o vietnamita morto, disseram-nos”.
New York Post, 24 de novembro de 1967.
Uma nova geração de americanos. . . Êstes jovens
de 18 e 19 anos, que são adequadamente considerados
“desajustados com instrução secundária”, tê m ... talvez
uma dose exagerada daquilo que os lutadores profissio
nais chamam de instinto de assassino. . . De nosso heli
cóptero, êles mataram uma porção de vietnamitas, todos
relacionados, evidentemente, como vietcongs, sejam ou
não mulheres e crianças. . . Êstes rapazes parecem gostar
de m atar...
Warren Rogers,
Journal-Amencan, de New York, 16 de setembro de
1965.
284
A minoria discordante tem o direito de falar m iii
ser punida... Mas, inconscientemente — espero quo si’jíi
inconscientemente — ela está destruindo êsse privilégio.
Ela tem o direito de objetar; deploramos contudo sua
ignorância e sua violência.
Presidente Lyndon B. Johnson,
30 de maio de *1967.
285
seus olhos estavam vedados pelo sangue que lhe escorria
da fronte. Ela vomitava, e seu vômito era igualmente
sangue. Apressadamente, êles a levaram embora.
Harvey Mayes, ibid.
(Pelos meados de 1967, mais de quinhentos mil acres
de florestas e matas e cêrca de duzentas e vinte mil de
plantações tinham sido destruídos. Posteriormente, o
arroz passou a ser lançado nos rios. As plantações de
cana-de-açúcar e de vegetais foram incluídas entre os
objetivos a serem destruídos.)
Ver Science, 20 de janeiro de 1967; e Congressional
Record, 6 de fevereiro de 1967, pág. S1609.
Analisemos o programa de destruição das plantações
e armazéns. O objetivo do programa é reduzir os viet
congs à fome pela destruição dos campos que fornecem
o arroz de suas rações. . . Como nutricionista que já viu
epidemias de fome em três continentes (um dêles a
Asia) e como historiador de saúde pública particularmen
te interessado nos problemas da fome, posso tranqüila
mente afirmar que jamais houve fome ou escassez ali
mentar — provocada^ por sêcas, doenças das plantas, per
turbações naturais em larga escala como enchentes ou
tremores de terra, pela interrupção das atividades agrí
colas em virtude de guerra ou desordem civil, ou por blo
queio ou outras medidas militares contra as reservas de
suprimentos — que não tenham, em primeiro lugar e so
bretudo, afetado as crianças de pequena idade.
Não cabe dúvida de que a morte pela fome ocorre
antes de tudo entre as crianças de tenra idade e os an
ciões; os adultos e adolescentes sobrevivem mais fàcil-
mente (as mulheres grávidas fre " ' ' ’ >ortam;
as mães que amamentam deixam bebês
morrem). As mais vulneráveis são as crianças menores
de cinco anos, que em diversas partes do mundo, inclu
sive o Vietnã, estão expostas a uma carência de proteínas
— que freqüentemente as atinge após a desmama e antes
que tenham idade suficiente para alimentar-se com co
mida de “adultos” — e a uma carência combinada de
286
calorias e proteínas (tais carências resultando, no primei
ro caso, na enfermidade conhecida como kwashiorkor e,
no segundo, no chamado marasmus.)
Os adultos, particularmente os homens, sobrevivem
comumente com rftaior facilidade que o resto da popu
lação. Bandos de homens armados não perecem de fome
e — sobretudo quando não têm afinidade com a popu
lação e, portanto, não estão embaraçados por laços fami
liares com suas vítimas — sentem-se perfeitamente justifi
cados ao apoderar-se dos alimentos disponíveis, por menor
que seja a quantidade dêstes, de modo a poderem con
tinuar lutando. A destruição de alimentos, dêsse modo,
jamais representa um obstáculo às operações militares do
ipimigo, mas deixa sempre grande número de vítimas en
tre as crianças. Durante a Primeira Guerra Mundial, o
bloqueio não teve qualquer efeito sôbre o abastecimen
to alimentar e as condições de luta dos exércitos da Ale
manha e da Áustria, mas — pela primeira vez desde o
século X V III — a fome, a carência de Vitamina A e de
proteínas destruíram a saúde, a vista e mesmo a vida de
milhares de crianças na Europa Ocidental.
Dr. Jean Mayer,
Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard,
Science , 15 de abril de 1966
O Pentágono lançou, aproximadamente, seiscentas e
trinta e oito mil toneladas de bombas sôbre o Vietnã em
1966. Isto representa cinco toneladas para cada milha
quadrada. No mês de fevereiro de 1967, os aviões ame
ricanos lançaram sessenta e oito mil toneladas sôbre o
Vietnã do Norte e do Sul. Esta cifra deve ser comparada
com os máximos mensais de vinte mil e oitenta mil to
neladas lançados, respectivamente, sôbre o Japão e o con
junto da Europa, no período de mais intensa atividade
da Segunda Guerra Mundial. (O Vietnã é um país de
superfície mais ou menos igual à do Michigan.)
Baseado em depoimentos do Secretário McNamara
perante as comissões de Relações (Exteriores e de Defesa
do Senado, em 1960 e 1987.
287
. Há também uma porção de lindos edifícios em Hai-
fong, não sei qual é a sua contribuição para o esfôrço de
guerra, mas o desejo de bombardear um edifício virgem
é terrível.
De um piloto da Marinha The Neto York Times, 20
de janeiro de 1968.
Jamais bombardeamos as embaixadas no Vietnã do
Norte. Jamais bombardeamos sua população. É claro,
tentamos atingir instalações militares, depósitos de com
bustíveis ou centrais elétricas.
Presidente Lyndon B. Johnson,
4 de julho de 1966.
288
no, poderiam ser eficazes contra pontes, centrais elétricas
e instalações ferroviárias.
Mary McCarthy, '
289
abandonar suas casas para viver na sordidez e desolação dos
campos de internamento, sem condições de satisfazerem suas
mais elementares necessidades e com assistência médica insu
ficiente ou, muitas vêzes, inexistente. “A maioria das crian
ças nos pareceu pálida e provàvelmente subnutrida”, escre
veu um observador do Neto York Times37. O Dr. Eric Wulf,
que visitou os campos, comentou:
290
escreveu, não havia ainda dados disponíveis sôbre o Vietnã,
mas é improvável que a tendência tenha sido invertida40. No
Vietnã, os civis não são freqüentemente vítimas acidentais, e
sim alvo exclusivo dos ataques. Se, como disse Mao Tsé-tung,
o guerrilheiro vive enfre o povo como o peixe na água, então
“vamos acabar com a água”, segundo um oficial americano.
“Mas, e os vietcongs, êles não matam?”, é a pergunta de
retórica que procura igualar o terror da FLN ao genocídio
americano. O implícito, aí, é que ao indicar as mortes come
tidas pelo Vietcong, estamos de certo modo absolvidos de res
ponsabilidade moral por nossas ações. Na verdade, os com
batentes da FLN não tiveram qualquer necessidade de enga
jar-se na desenfreada matança de civis. Contràriamente a seus
adversários, êles não recorreram às táticas de “terra queimada”,
de regiões inteiras declaradas “alvo livre”, numa espécie de
grande “estratégia da negação”; êles reconheceram as repercus
sões negativas de tais ações e não estão dispostos a agredir
aquela mesma população que assegura sua existência.
Supostamente, é o próprio caráter de deliberação com que
mata chefes de aldeia que tornaria os atos da FLN mais “frios”
e “imorais” do que nossa “não desejada” matança de civis. Duas
coisas devem ser ditas a êsse respeito: primeiro, como obser
vou Egbal Ahmad, especialista em guerra revolucionária: “O
emprêgo do terror pela guerrilha. . . é, sociológica e psicolo
gicamente, seletivo. Êle golpeia aquêles que, popularmente,
se identifica como ‘inimigo do povo’ — governantes, proprie
tários de terra, e assim por diante”*. Seu objetivo é alcançar
o máximo de apoio popular.
291
Quanto ao argumento de que as mortes civis que nós cau
samos não resultam de atos deliberados — e são portanto mais
desculpáveis — dever-se-ia lembrar que somos integralmente
responsáveis por tôda ação que tenha conseqüências óbvias e
inevitáveis, ainda que tais conseqüências não fizessem parte de
nossa intenção deliberada. Theodore Draper ilustra , êste con
ceito da seguinte maneira:
Iheiros, que estavam libertando a região das mãos dos estrangeiros; além
disto, tais chefes estavam envolvidos na sórdida empreitada de restau
ração dos interêsses dos latifundiários que, como gafanhotos, retomavam,
a partir de 1954, exigindo de volta as rendas e colheitas. Os guerrilhei
ros não tinham qualquer problema na preparação dos camponeses para
que aceitassem a execução de uma autoridade empenhada nesse tipo de
tarefa. Egbal Ahmad, “Revolutionary W arfare”, Gettleman, op. cit.,
págs. 351-362.
41 Draper, Abuse of Power, pág. 186, nota.
292
ria das mortes. Nós mesmos o dizemos e fornecemos estatís
ticas que o confirmam: até fevereiro de 1969, proclamávamos
ter matado cêrca de quatrocentos mil vietnamitas sòmente no
sul do país — todos eram inimigos. Num sentido a proclama
ção estava correta: nosso inimigo é o povo.
O D IR E ITO À AUTODEFESA
’ 293
o valoj supremo. Mas, mesmo os valôres supremos devem
ser questionados: “Por que o direito de preservação da nação
e de todos os seus interêsses vitais é considerado moralmente
inquestionável, custe o que custar às outras nações e à vida
internacional?”43 Caso algum dia venhamos a considerar esta
questão, constataremos que há certas ações que, conquanto
consideradas necessárias à preserváção da segurança america
na, são de tal forma moralmente condenáveis que a elas deve
remos renunciar. Mais ainda, deveremos perguntar-nos se a
desenfreada procura da segurança nacional não se transforma
num empreendimento suicida. Pois fazer “tudo aquilo que
julgarmos conveniente à manutenção de nossa segurança” in
clui a violação e a destruição da segurança de outras nações,
disto resultando que a nação mais obcecada em “organizar a
paz” para salvaguardar sua própria existência nacional é a
mesma nação que um número crescente de povos encara como
o principal violador da paz.
A ARROGÂNCIA DA VIRTUDE
294
vada a sua conclusão auto-enaltecedora — que nos tornou ca
pazes de produzir e empregar o napalm.
O imenso poder mobilizado em nome da virtude é por
tador de sua própria influência corruptora. Dean Rusk su
geriu certa vez que fizéssemos a revisão do teorema de Lord
Acton. Os Estados Unidos, dizia êle, não eram corrompidos
por seu grande poder porque nossa fôrça era exclusivamente
empregada na perseguição dos objetivos “simples e decentes”
da América. Supor, contudo, que o “poder corrompe” porque
toma subitamente os homens maliciosos e perversos é não com
preender a questão. “Pessoas inocentes e bem-intencionadas,
e eu me considerava uma delas”, observa Howard Zinn, re
cordando seus dias de bombardeador da Fôrça Aérea Ameri
cana na Segunda Guerra Mundial, “são capazes dos atos mais
brutais e das desculpas mais autojustificadoras, sejam elas
alemãs, japonêsas, russas ou americanas”44. Gary Porter nos
lembra que o poder corrompe tôda uma nação pelos mais
sutis e variados modos, “gerando pressões no sentido da uti
lização do poder disponível, exagerando constantemente as
legítimas necessidades de segurança de uma nação e transfor
mando-se em objeto de prestígio e orgulho”45.
Na passagem do século, muitos inglêses consideravam in
justo que seu poderoso país submetesse pela fôrça a pequena
República dos Boers. Várias décadas mais tarde, muitas pes
soas se indignavam com o feito das legiões de Mussolini que,
armadas com aviões, tanques e gases venenosos, desencadea
vam uma guerra moderna em larga escala contra a atrasada
Etiópia. Hoje, quando uma titânica nação industrial pulveriza
um pequeno país agrário, utilizando para tanto todos os ins
trumentos de morte concebíveis, v, imoralidade contida neste
fato parece ter-nos escapado. É assim que o poder corrompe.
Com incomparável arrogância, nós nos atribuímos o direito de
decidir que uma pequena nação deve morrer, se êste é o preço
para que ela não se tome vermelha, e como temos o poder
para fazê-lo, nós a ajudamos a pagar tal preço. Seguindo a
’ 295
lógica invertida do imperialismo moral, promovemos a horri
pilante ^devastação do Vietnã para salvar seu povo da agres
são; com isso, atribuímos um elevado valor à pureza de nossas
intenções e um valor realmente pequeno às vidas vietnamitas.
Não é a arrogância e sim a humildade que nos motiva, in
sistia Dean Rusk em resposta à acusação do senador Fulbright
de que estávamos sucumbindo à “fatal arrogância do poder”.
“Êstes problemas devem ser abordados de joelhos”, disse o se
cretário. “Êstes problemas fazem de nós pigmeus, e a não ser
que os abordemos com humildade, jamais os resolveremos”.
Mas era exatamente a emprêsa que obrigou Rusk a ser tão
humilde que Fulbright colocava em questão. A arrogância
reside na suposição de que recebemos a missão de resolver —
seja de pé, seja ajoelhados — os problemas da humanidade e
criar uma ordem mundial à nossa própria imagem e semelhança.
A virtude não tolera quaisquer das restrições que o vício
corriqueiro é obrigado a suportar. Mas, se ações como as nossas
podem ser perpetradas em nome do anticomunismo, qual é o
mal que resta para ser feito em nome do comunismo? Foi
o monge budista sul-vietnamita Pham Cong Thien que, numa
breve oração, apresentou a primeira e última acusação contra
o imperialismo moral: “Não nos leve à salvação, mas salve-nos
dos salvadores”.
296
15
O êxito trágico
Nenhuma sociedade ó inteiramente consciente, seja de
sua natureza intrínseca seja de seus objetivos naturais, se
ela ignora que existem muitas alternativas no caminho que
percorre e muitos objetivos concebíveis e possíveis, além
daqueles que são imediatamente visíveis.
L e w is M u m fo r d
297
quer ação construtiva dos “comunistas” é apenas um disfarce
para o mal, é uma das grandes tragédias de nosso mundo.
O anticomunismo americano mostra a mesma estabilidade
que é característica de tôdas as ideologias demonológicas. Sem
dúvida, o repertório das imagens demoníacas está sujeito a
mudanças. Os Estados Unidos fizeram a guerra contra a Ale
manha e o Japão que, hoje, são ambos considerados nossos
aliados. Mesmo os monstros potenciais que governam o Kremlin
são agora encarados como sêres humanos capazes de ação res
ponsável. Mas as imagens hostis às vêzes permanecem, a des
peito de serem repetidamente contrariadas pela evidência.
“Uma vez que se espera que os amigos sejam amistosos e os
inimigos hostis, existe a tendência a encarar seu comportamen
to de acôrdo com estas expectativas”, observa Ole Holsti. “A
imagem do inimigo claramente perpetua-se a si mesma, pois
o próprio modêlo nega a existência dos dados que o contesta
riam”1.
Isto é particularmente verdadeiro quando o inimigo é uma
entidade abstrata chamada “comunismo”. Afirmações que co
mecem com frases como estas: “Os comunistas q u erem ...”,
“os comunistas podem estar planejando. . . ”, “a estratégia co
munista reside em . . . ”, devem ser totalmente afastadas como
equívocas e vazias de significado. Depois de anos de propa
ganda de guerra-fria, os americanos têm uma idéia mais do
que imperfeita do que possa ser “comunismo” e “revolução
social” em lugares como o sudeste da Ásia e a América Latina,
e diante das transformações dramáticas que ocorrem nessas
regiões e nos países mais estabilizados da Europa Oriental,
uma idéia mais do que imperfeita do que possa ser o “comu
nismo” em qualquer parte do mundo. No mínimo, é tempo
de adotarmos imagens menos emotivas e mais concretas para
descrever os fenômenos sócio-políticos bastante diversificados
que atualmente submetemos ao mesmo estereótipo temeroso.
Muitos dos conflitos que enfrentamos parecem insolúveis
porque procuramos construir soluções operacionais baseadas
298
nas próprias imagens e premissas que provocaram êstes con
flitos. Uma vez que nos libertemos das premissas histéricas
do anticomunismo, ver-nos-emos diante de uma nova realida
de e estaremos em condições de criar novas opções. Descobri
remos que „
NÃO-INTERVENÇÂO
í
Os defensores do intervencionismo não se consideram de
sumanos; êles acreditam que uma posição de firmeza num país
299
nos livrará de guerras ainda maiores ao persuadir os revolu
cionários de outros países de que tais sublevações não são
compensadoras. Qualquer fracasso na manutenção de nossas
posições, argumentam êles, só levará a uma sucessão de con
flitos que, finalmente, chegarão ao nosso próprio território. A
guerra do Vietnã por isso, é importante como advertência, Esta
opinião, às vêzes chamada “teoria do dominó” ou “analogia de
Munique”, é simples como imagem, mas carece de evidência
demonstrativa. É difícil compreender como a intervenção no
Vietnã pode convencer as pessoas de outros países de que as
revoluções sociais são demasiadamente caras, pois os próprios
vietnamitas, aqueles justamente que receberam o impacto to
tal desta advertência, parecem não ter recebido a mensagem
que se quis transmitir. Nossas ações contra-revolucionárias não
têm tido grande valor como exemplo. Howard Zinn recor
da-nos:
300
Aqueles que crêem que a presença americana no Vietnã
exerceu grande influência sôbre o levante “anticomunista” em
1966 na Indonésia deveriam lembrar-se de que o golpe indo
nésio eclodiu num momento em que havia apenas duas dé
beis divisões americana^ no Vietnã e não havia ainda uma cer
teza sôbre a sua subsistência e manutenção no terreno4. A
afirmação de que devemos intervir num país a fim de evitar
a intervenção em outro poderia ser invertida e, com mais ló
gica, concluiríamos ser inútil lutar num país quando as mes
mas condições de insatisfação social e rebelião existem em
outro, pois, por mais que destruamos totalmente um país, não
resolvemos, com isso, os problemas de nenhum outro5.
Não apenas a teoria do dominó é incorreta ao sustentar o
valor de advertência da intervenção, como é fundamentalmen
te errônea ao presumir que as revoluções são males que de
vemos esmagar. Dada a crescente eficiência letal da tecnolo
gia antiinsurrecional e o continuado esforço americano no sen
tido de expandir e aperfeiçoar as fôrças militares dos gover
nos reacionários*1, é concebível que possamos manter uma or
dem social reacionária em boa parte do terceiro mundo. Na
Tailândia, nas Filipinas e na maioria dos países da América
301
ll
'»
Latina, os exércitos locais empreendem um treinamento anti-
guerrilhas sofisticado e em larga escala, ficando claro que sua
função primordial não é a salvaguarda das fronteiras nacio
nais, e sim a proteção dos regimes vigentes contra seus pró
prios povos. Tal política é deplorável, não por estar condena
da ao fracasso, mas justamente por ter consideráveis chances
de êxito. A “ordem e estabilidade” que conseguirmos con
denará os explorados do mundo a cessarem sua resistência e
entregarem-se a seu destino.
É tempo de a América, de modo claro e inequívoco, pôr
fim ao seu intervencionismo contra-revolucionário. Nossa po
lítica deveria partir da crença de que não há povo na terra
sôbre o qual tenhamos o direito de vida e morte, não importa
o quanto nos aborreçam suas rebeliões internas. Tal compro
misso significa não apenas que recusemos o emprego de tropas
americanas para proteger regimes impopulares, mas também que
desarmemos todo o nosso aparelho contra-revolucionário mun
dial, inclusive as missões de conselheiros militares, as unida
des de Fôrças Especiais, a rêde conspirativa da CIA e os bi
lhões de dólares em armamento que espalhamos pelo mundo
para apoiar fôrças militares nativas em guerra contra seus
próprios povos.
Será que esta política nos levaria ao isolacionisnio? Não
faz mais sentido igualar a não-intervenção ao isolacionismo do
que igualar intervenção e internacionalismo. Uma nação que
se recusa a lançar seu poder nas questões internas de outros
países está apenas respeitando um dos princípios sempre hon
rados da conduta internacional. E não está com isto conde
nando-se a enfiar a cabeça na areia. A verdade é que nossa
atual política de intervencionismo unilateral, com sua indife
rença face às opiniões e sentimentos dos outros, é mais carac
terística de uma nação deliberadamente isolada do que de
uma nação intemacionalista.
Um compromisso verdadeiro de internacionalismor em
contraposição ao nosso atual imperialismo moral, acarretaria
uma intensificação das relações de cooperação com outras na
ções (inclusive com governos esquerdistas que atualmente dis
criminamos) naquelas esferas (comércio, viagens, intercâmbio
302
cultural, empreendimentos científicos e econômicos conjuntos,
etc.) que representam o aspecto mais decente da vida inter
nacional. Uma América não-intervencionista poderia' prestar
ajuda técnica se e quando esta ajuda pudesse ser utilizada para
melhorar as condições .de vida das massas e não para benefi
ciai; os poderosos e corruptos. Neste empreendimento, traba
lhando por intermédio de agências internacionais, poderemos
juntar nossos esforços aos de outros países industrializados, in
clusive a União Soviética. Devemos reconhecer que os des
tinos de outros países não são uma questão que podemos ou
devemos resolver e que a imposição dos valores e do poder
americanos, ainda que bem intencionada, causa mais mal do
que bem. Se a história nos ensina algo, é que as transforma
ções .essenciais dependem grandemente da vontade política e
da energia dos povos nelas interessados.
Livres de nosso intervencionismo, poderemos dedicar-nos,
sem hipocrisia, à solução pacífica das disputas internacionais,
oferecendo nossos bons ofícios quando êstes forem bem rece
bidos, cuidando de nossos próprios assuntos quando isto fôr
mais indicado e confiando em negociações tranqüilas, comis
sões internacionais e côrtes mundiais de justiça, ao invés de
confiar em ameaças, ações unilaterais de polícia e na fôrça
bruta.
Uma América não-intervencionista poderá ainda manter
um mínimo de fôrças militares para garantir a segurança de
suas próprias fronteiras, reconhecendo embora que a seguran
ça real sòmente virá com a reaproximação política em relação
a Moscou e Pequim e a gradual desescalada mútua no que se
refere aos armamentos. O balanço dos anos passados demons
tra que uma acomodação razoável, tanto com a China quanto
com a União Soviética, não é impensável nem inatingível e
que, conquanto nenhuma dessas duas potências se tenha li
bertado de suas próprias teorias demoníacas, ações sadias e
conciliadoras de nossa parte encorajam respostas análogas. Um
nôvo entendimento com a China, todavia, é improvável até que
estejamos dispostos a pôr fim ao cêrco militar da China con
tinental e à defesa violenta do reacionarismo no sudeste da
Ásia.
A ANSIEDADE DOS QUE TÊM
304
son, com a eloqüência característica, resumiu a questão numa
reunião entusiástica da Câmara Júnior de Comércio: Possuí
mos a metade dos caminhões que existem no mundo. Possuí
mos a metade dos rádios que existem no mundo. Possuímos
um têrço de tôda a eletricid ad e...” mas o resto do mundo,
acrescentou, gostaria de frocar de lugar conosco. “Ora, gos
taria de vê-los gozar das bênçãos de que gozamos. Mas não
queiram ajudá-los a trocar „de lugar conosco, porque eu não
quero estar onde êles estão”. Para muitos americanos, John
son apontou o centro da questão: não permita que outros to
mem o que temos.
Seja tratando com os guetos negros, seja enfrentando um
mundo esfomeado fora de suas fronteiras, os americanos cada
vez mais colocam suas esperanças na tecnologia antiinsurrecio-
nal. “O» exército”, noticiou a Associated Press em 15 de feve
reiro de 196S, “está armazenando equipamento de contrôle
de motins em depósitos estratègicamente localizados em todo
o país e está em condições de transportar êsse equipamento
por via aérea a qualquer cidade, em caso de desordens civis. . . ”
A polícia de todo o país foi dotada de novas armas automá
ticas, carros blindados, colêtes à prova de bala, capacetes de
aço e gás paralisante. Sondagens de opinião pública, em
1967-68, indicaram que os americanos estavam tão preocupa
dos com o “crime nas ruas” (isto é, os distúrbios nos guetos)
quanto com o Vietnã; muitas pessoas defendiam medidas mais
vigorosas “contra o crime”, mas poucas mostraram indignação
face às condições que causaram os motins ou protestaram con
tra a violência branca, muito mais brutal, dos que reprimiam
os motins*.
' 305
Ao colocar a verdade de cabeça para baixo, os que têm,
geralmente, conseguem convencer-se de que estão sendo mal
tratados pelos que não têm. A América está sucumbindo a
uma terrível ansiedade e à psicose do cêrco, sentindo-se amea
çada por pequenos e distantes países e por sua própria mi
noria negra, brutalmente discriminada. Não somente nos aliamos
às elites de privilegiados de outros países, como as imitamos,
depositando nossa fé na repressão para contornar a necessidade
de enfrentar mudanças estruturais básicas. Um número muito
grande de americanos é motivado, não por qualquer interesse
pelo bem-estar dos outros povos, mas por um temor irracional
por sua própria pele e por sua propriedade. Os que têm, na
América, quer se trate de plutocratas de antiga linhagem ou
de recém-chegados operários, proprietários de suas próprias
casas, não são mais capazes de transcender seus interêsses pes
soais estreitos, não são mais capazes de um sentimento de
simpatia, caridade e zêlo pelas pessoas e povos menos afor
tunados, não são mais capazes de imaginação política e cora
josa invenção social do que as classes dominantes de outros
países. Mas por que deveríamos esperar outra coisa? Muitos
daqueles que se proclamam partidários da Grande Sociedade
estão de tal forma identificados com o status quo em nosso
país e fora dêle que são incapazes de empenhar-se nas tran
sições essenciais requeridas para a criação de uma grande so
ciedade; permanecem incapazes de encarar de modo crítico os
valôres americanos padronizados, por serem justamente os pri
meiros produtos diretos destes valôres. Obcecados pelo temor
de que os comunistas e os negros possam “invadir-nos” a
qualquer momento, colocam suas esperanças no reforço vio
lento da “lei e da ordem”, tanto dentro do país como no resto
do mundo. Quando vemos a repressão antiinsurrecional que
praticamos no Vietnã repetida em nossas próprias cidades, não
podemos evitar perguntas como estas: que espécie de país so
mos nós? se somos tão fortes, por que temos tanto mêdo? se
306
somos tão prósperos, por que é tão pobre nossa vida nacional?
se somos tão livres, por que oprimimos tanto? se somos tão
amantes da paz, por que somos tão violentos?
Nossa sociedade é aquela em que a riqueza insuperada
marcha ao lado da assistência médica insuficiente, da deca
dência urbana, do desemprêgo, das oportunidades educacio
nais desiguais, do transporte público caótico, dos recursos na
turais destruídos e poluítíos, da iniqüidade fiscal, dos meios
de comunicação embrutecedores, das práticas comerciais in
corretas e dos lucros monopolistas eternamente crescentes; re
sumindo, uma sociedade na qual “a tecnologia é das mais de
senvolvidas e o seu mau emprêgo dos mais vergonhosos”6 e
onde a riqueza e o poder privados, e não as necessidades pú
blicas, têm a última palavra na alocação dos recursos materiais.
6 nosso sistema político é aquêle que pode gastar anual
mente oitenta e cinco bilhões de dólares para impedir as trans
formações sociais em outros países, mas não pode efetuar dis-
pêndios realistas para empreender transformações sociais em
sua própria casa; um sistema que dedica quase todos os re
cursos públicos à produção e utilização da violência tecnoló
gica; que glorifica os executores dessa violência; que comete o
assassinato em massa no exterior e procura em sua própria casa
a solução paliativa de uma lei sôbre porte de armas para com
bater o crime. Uma das vítimas mais conhecidas desta loucura,
o senador Robert F. Kennedy, ofereceu-nos, alguns meses
antes de seu assassinato, êste eloqüente testemunho:
307
blifidados para a polícia reprimir motins em nossas ci
dades. Inclui a espingarda Whitman, a faca Speck e
programas de televisão que glorificam ao máximo a vio
lência para vender brinquedos às nossas crianças.
Contudo, o Produto Nacional Bruto não permite as
segurar a saúde de nossa juventude, a qualidade de sua
educação ou a alegria de sua diversão. Não inclui a
beleza de nossa poesia ou a solidez de nossos matrimô
nios, a inteligência de nossos debates públicos ou a in
tegridade de nossos funcionários estatais. Não mede
nosso espírito ou nossa coragem, nossa sabedoria ou nos
sa capacidade de aprender, nossa solidariedade ou nossa
devoção ao nosso país.
Em resumo, mede tudo menos aquilo que torna a
vida digna, e pode dizer-nos tudo sôbre a América —
exceto o motivo por que somos orgulhosos de ser ame
ricanos.
Crianças morrem de fome no Mississípi, vegetam
nos guetos e se suicidam no desespero das reservas in
dígenas. Não serão os aparelhos de televisão — nem
mesmo se o seu número é de setenta milhões — que po
dem fazer com que nos orgulhemos dêsse tipo de riqueza.
E nem temos porque nos orgulhar de nosso lugar
no mundo. Outrora pensávamos, com Jefferson, que éra
mos a “melhor esperança” da humanidade. Mas agora
parece que nos baseamos apenas em nossa riqueza e
poder.
É assim que meio milhão de nossos melhores ho
mens luta, e muitos dêles morrem, numa guerra do ou
tro lado do mundo; enquanto isso, milhões de nossos me
lhores jovens nem compreendem a guerra, nem respeitam
seu objetivo, e muitos dêles repudiam as próprias insti
tuições de um govêmo no qual não acreditam. . .
Nosso poder é enorme, o maior que o mundo já
conheceu. Contudo, quando vemos antigos aliados re
tirando-se para seus próprios territórios e antigas alian
ças dissolvendo-se em disputas, compreendemos que nem
a América pode agir como se nenhum outro país exis
tisse, alardeando nosso poder e riqueza contra a opinião
308
e os desejos tanto de neutros como de aliados. Passamos
a indagar se ainda merecemos o respeito da opinião pú
blica mundial ou se, como a Atenas da Antiguidade, sa
crificaremos a simpatia, o apoio e, em última instância,
nossa própria segurança, na busca egoísta de nossos pró
prios objetivos7.
A ESPERANÇA D E MUDANÇAS
309
tões críticas sôbre nossa conduta internacional, até então ra
ramente apresentados por qualquer parcela considerável de
nossa opinião pública informada. E as lideranças políticas
não são tão insensíveis ao nôvo clima reinante na opinião pú
blica, como muitas vêzes pensamos. Levando cada vez mais
em conta a opinião pública, os políticos se permitem entreter
pensamentos que pouco tempo antes eram considérados proi
bidos. Mesmo homens de coragem extremamente limitada, e
muitos políticos estão incluídos nesta categoria, começam a
falar na necessidade de novos caminhos. Na maior parte dos
casos, a retórica é um disfarce para a inatividade, pois, em
bora os liberais americanos estejam sempre a favor das causas
justas, raramente parecem dispostos a ações que possam cau
sar-lhes qualquer privação ou desconforto ou colocá-los em
conflito com os poderes estabelecidos, ações não obstante ne
cessárias para alcançar as reformas de que se proclamam par
tidários.
Ainda que não exista motivo para otimismo insensato, é
preciso levar em conta que os responsáveis pelas decisões po
líticas sempre contam com maior margem de escolha na polí
tica externa do que na política interna, de modo geral.
As ações oficiais não somente refletem a opinião pre-
valecente, mas contribuem para criá-la. Muitas decisões
governamentais recebem apoio público depois • que se
tornaram fatos consumados, pois existe a suposição de
que nossos dirigentes devem ter razões sólidas para suas de
cisões. Esta concordância pública funciona tanto no bom como
no mau sentido. Quando Eisenhower enviou tropas ao Líbano,
o público aceitou, talvez descontente, a "necessidade de agir”.
Quando êle se recusou a empregar tropas americanas no
Vietnã, o público também aceitou a “sabedoria da moderação”.
A aventura de Kennedy na Baía dos Porcos, mesmo depois
que se revelou um fracasso, contou com apoio popular ou,
pelo menos, com compreensão por parte do público. Sua
recusa a intervir no Laos ou a tentar uma nova e mais forte
invasão de Cuba também teve apoio popular. O mesmo pú
blico que aceita a proliferação nuclear como “mal necessário”,
deu finalmente seu apoio ao acôrdo de proibição das expe
riências nucleares. A mesma população que se opôs a qualquer
310
“condescendência em relação ao comunismo” agora parece
apoiar as tendências no sentido de relações mais amistosas com
a União Soviética.
Uma vez assegurado de que não existem conseqüências
perigosas numa políticak menos militante, o público aceitará
esta política menos militante. A melhor maneira de convencer
o público é mostrar as vantagens desta política, isto é, colo
cá-la em execução. Os dirigentes políticos desempenham pa
pel importante na criação do ambiente de opinião pública
que supostamente os domina, e os dirigentes que se liberta
rem da psicose anticomunista das últimas décadas perceberão
que as aberturas corajosas que defendem hoje se transforma
rão no senso comum de amanhã. Dentro de certos limites,
o inconcebível se toma concebível na medida em que é ex
plicitado e em que se age de acordo com êle.
Como última palavra, devemos lembrar que alguns dos
valôres defendidos da bôca para fora pelo anticomunismo, co
mo a “dignidade humana” e a “liberdade individual”, são va
lôres preciosos e em grande parte derivados da ideologia da
democracia clássica. Tomamos um caminho diferente do anti
comunismo porque seu compromisso com a liberdade é uma
hipocrisia, seu raciocínio é faccioso e inteiramente simplista
e a política que inspira nos levou à tragédia e à vergonha.
Por sua atuação, os ideólogos anticomunistas, tanto os li
berais como os conservadores, causaram males muito maiores
que aquêles que supostamente combatem e, dêsse modo, se
transformaram naquilo que dizem odiar. Para infelicidade
de um sem número de inocentes, êles tiveram a possibilidade
de pôr sua ideologia à prova. Por mais de vinte anos, o país
e o mundo foram tratados como laboratório de experiências
para a teoria e a prática do anticomunismo. Os resultados
foram um trágico êxito, a criação de uma “realidade” grotesca
que se adaptasse a uma concepção grotesca.
Se a América só pode sobreviver na medida em que co
locar suas esperanças nesta ideologia, então a América não
merece sobreviver e de fato não sobreviverá — pelo menos não
de forma que possa ser reconhecida pela humanidade livre
e humana. Nossa melhor esperança é a de que ainda seja
tempo para que possamos parar de destruir os outros e co
mecemos a tratar de nossos próprios males.
311
Apêndice I
O Estado marcial
313
4*
fissional e grandes orçamentos militares relegou os militares
a uma posição periférica e humilde na sociedade americana.
A Segunda Guerra Mundial provocou uma mudança radical
de atitude. A suspeita tradicional foi substituída por um sen
timento nôvo no sentido de que “os militares devem contar com
tudo o que necessitam”, como observa Huntington, “e que
estava acima do alcance do Congresso questionar as estima
tivas militares, em qualquer esfera importante. O resultado
foi que as fôrças armadas obtiveram tudo o que queriam e
terminaram a guerra com cêrca de cinqüenta bilhões de dó
lares em dotações não utilizadas”1. Se o Congresso está do
minado pelo espírito marcial, o mesmo ocorre freqüentemente
com a Casa Branca. Assim, o senador McGovem descrevia
a atitude do Presidente Lyndon B. Johnson: “O nível cada
vez mais elevado da defesa, o avião supersônico — êle fala
sôbre isto, enfeita as coisas, lança todo o pêso da Casa Branca
em seu apoio”2.
A influência militar em outros setores governamentais
chega até mesmo à Agência de Desarmamento e Contrôle de
Armas dos Estados Unidos (ACDA). O diretor da ACDA,
Foster, disse em depoimento: “Temos relações muito íntimas
no nível mais elevado para garantir que os militares estejam
sempre atuantes e informados. O Departamento de Defesa
designou para servir nos nossos quadros treze oficiais'da ativa,
chefiados por um tenente-general da Fôrça Aérea. Êle tem
à sua disposição um major-general do exército e onze coro
néis. “Tôdas as recomendações feitas pela ACDA ao Presidente
são primeiro discutidas com o Comitê de Direção, que inclui
o Chefe do Estado Maior Conjunto e o Secretário da Defesa.
O tenente-general acima citado chefia a Divisão de Evolução
e Contrôle de Armamentos da ACDA.
Na medida em que a indústria se tornou a defensora de
uma preparação militar sempre maior, os militares passaram
a falar cada vez mais da livre emprêsa como símbolo do “mo
314
do de vida americano”. Com noventa por cento dos contratos
concedidos sem qualquer concorrência aberta no mercado, os
contatos pessoais cuidadosamente mantidos entre o pessoal
militar e as corporações tornaram-se fator determinante na
escolha daqueles que devem receber os contratos e de quem
devem recebê-los. Os oficiais da ativa, percebendo as vanta
gens econômicas e sociais que decorrem da entrada no mundo
dos negócios, estão muito longe de ser insensíveis às solici
tações dos interêsses particulares das corporações. A Comissão
Herbert descobriu que, em 1960, mais de mil e quatrocentos
oficiais reformados, acima do grau de major, eram empregados
das cem principais firmas de armamentos3.
Para citar dois casos interessantes: o Gen. Joseph McNar-
ney diçigiu os interêsses da Fôrça Aérea em sua luta vitoriosa
contra a Marinha pelo bombardeiro B-36, em 1950, que re
sultou numa dotação gigantesca para um avião já obsoleto.
Depois, imediatamente após sua reforma, passou a fazer parte
da fôlha de pagamentos da Convair, ou seja, a emprêsa que
obteve o contrato de construção do B-36. Como presidente
da companhia, recebeu setenta e cinco mil dólares por ano,
além de sua pensão de dezesseis mil. O Alm. Lloyd Harrison
teve uma carreira igualmente notável. Depois que onze dos
jatos F-3H da Marinha, produzidos pela McDonell Aircraft
e pela Westinghouse, sofreram acidentes de vôo, o Alm. Har
rison continuou insistindo em que aquelas companhias haviam
cumprido plenamente suas obrigações contratuais. A Marinha
aceitou sua indicação para um contrato adicional de trezentos
e dois milhões de dólares que, mais tarde foi reconhecido como
desastroso. Após sua reforma, o Alm. Harrison assumiu a
vice-presidência da McDonell Aircraft4.
As fôrças armadas dispenderam milhões de dólares em
relações públicas. Já em 1948, o Comandante-em-chefe das
operações na Europa contava com cento e sete militares e
trinta civis em sua equipe de publicidade. Técnicas profissio
nais de propaganda foram utilizadas para glorificar a “ima
315
gem” dos diversos serviços e armas e para incentivar determi
nadas campanhas estratégicas. Em sua campanha vitoriosa
para a votação da lei de recrutamento de 1948, o exército ad
mitiu com orgulho que havia contado com a ajuda de tre
zentas e setenta organizações nacionais, inclusive a Câmara
de Comércio dos Estados Unidos e a Legião Americana, tinha
estabelecido contatos com trezentos e cinqüenta e um prefeitos
de cidades americanas, promovido pelo menos quinhentos e
noventa e um artigos e editoriais, contratado a ajuda de lo
cutores do rádio e da televisão e até mesmo conseguido que
os escoteiros distribuíssem panfletos de propaganda5. A ju
ventude nacional está sendo diretamente militarizada: o pri
meiro de uma série de mil e duzentos programas especiais de
treinamento para jovens de 14 a 18 anos foi iniciado pelo Co
légio Jesuíta de Nova Orleans. O Gen. Wallace Green, con
gratulando-se com os estudantes por serem os primeiros a re
ceber a “honraria”, disse:
“Nós, no corpo regular de fuzileiros, estamos orgulhosos
de receber êstes novos membros da família dos fuzileiros”. E
o Rev. Donald Pearce afirmava: “Se nossa juventude fôr cor
retamente treinada, nosso poder será maior do que qualquer
arma que o homem possa inventar.. , ”e Os militares, sabendo
quem paga suas contas, organizaram um sem número de vi
sitas de congressistas às instalações militares, no país como
no exterior, completadas por informações reservadas e pelo
tratamento ameno destinado às personalidades importantes. ( O
fato de que exista uma lei federal referente à utilização de
recursos derivados de impostos para fazer publicidade entre
os contribuintes parece não ter tido a menor influência sôbre
ninguém.)
O Pentágono financia a maior parte da pesquisa de nossas
instituições especializadas. Isto tem levado a conflitos oca
sionais. Divergências surgiram entre a Marinha e o Grupo
de Avaliação de Operações do MIT. A Comissão de Energia
316
Atômica e a Universidade de Harvard se chocaram a propósito
da operação do acelerador de eletions de Cambridge, sendo
que a universidade afirmou que as exigências da comissão
constituíam “séria ameaça à liberdade acadêmica”. O Dr. Ellis
A. Johnson, chefe da Divisão de Pesquisas de Operações da
Universidade John Hopldns, financiada pelo exército, foi afas
tado do cargo por entrar.em choque com militares que pre
tendiam “controle rigoroso de todos os detalhes”. Mais de
acôrdo com o que os militares considerariam um bom acadê
mico, podemos citar o Dr. A. G. Hill, responsável por pesqui
sas militares no MIT, que declarou em têrmos bastante
claros: “Nosso trabalho não consiste em desenvolver o conhe
cimento, mas em fortalecer as fôrças armadas”7.
O "Pentágono transformou-se num dos mais entusiásticos
agentes de venda de armamentos. Veja-se, por exemplo, seu
panfleto Informação e Introdução à Assistência Militar:
318
Apêndice II
320
Supondo que tenham automóvel e supondo que nem as estra
das, nem seu automóvel, nem elas mesmas tenham sido des
truídas pelo impacto da explosão, poderiam tomar as estra
das congestionadas por milhões de outros e dirigir-se para de
terminadas áreas de evacuação e recreação que, não obstante
não disporem de instalações para habitação, alimentação e
fornecimento de água, deveriam servir como lugar de sobre
vivência durante semanas ou meses. A análise do tráfego con
gestionado das horas de rush convenceu os observadores mais
perspicazes de que os habitantes das cidades necessitariam de
proteção mais próxima. Assim, em New York, Boston, Washing
ton e outras cidades, começaram a aparecer nos porões, pá
tios, entradas de escolas, estações de metrô, etc., sinais prêtos
e amarelos da defesa civil com os dizeres: “Abrigo contra
irradiação”, fazendo, com isto, com que as pessoas esquecessem
que a irradiação é o menor dos perigos que as cidades correm;
um alvo de bombardeio precisa, pelo menos, de abrigos ma
ciços contra bombas , construídos sob toneladas e toneladas
de pedra e concreto — algo bastante diverso de abrigos contra
a irradiação, que só oferecem êste tipo de proteção, se é que
oferecem de fato alguma coisa. Esta segurança ilusória for
necida pelos sinais colocados nos abrigos deixou o habitante
das cidades na pior das situações. Ao mesmo tempo
que os sinais eram amostra evidente de um perigo particular
mente terrível, o próprio programa não oferecia qualquer pro
teção real. Na medida em que os habitantes das cidades sen
tiam-se garantidos pelos programas de defesa civil urbana, êles
se tornavam vítimas de uma fraude colossal*.
321
*
322
perigo e decidiram que uma milícia armada deveria fe
char a estrada que vem de Los Angeles. Em caso de
guerra, disse o encarregado da defesa civil de Nevada,
‘ eles chegarão a Nevada como bandos de gafanhotos”.
Um habitante ^do subúrbio de Chicago d isse... aos jor
nalistas que pretendia colocar uma metralhadora na
frente de seu abrigo e massacrar os que tentassem forçar
passagem. Em Hartford, os cidadãos foram aconselhados
a utilizar armas de fogo para repelir todo aquêle que
estivesse correndo de um lado para outro “como louco”,
depois de um ataque. Um padre jesu íta... (afirmou)
que o direito de autodefesa é tradicional na moral ca
tólica e que uma pessoa tem o direito de usar de vio
lência para impedir que vizinhos, carentes de proteção,
invadam seu abrigo familiar8.
323
Apêndice III
324
até certo ponto razoável, com o qual se poderia tratar. Ei>
quanto o explosivo Kruschev visitava a América, cortejando
políticos, homens de negócio e jornalistas em sua perseverante
campanha pela “coexistência pacífica” (üma de suas expres
sões que acabaria gor tomar-se aceitável e mesmo popular
no Ocidente), Pequim falava da necessidade de proteger-se
contra a “ameaça do imperialismo ocidental”.
À medida que o “bloco soviético dava sinais de conflitos
pluralísticos e a Europa alcançava uma situação de equilíbrio
Este-Oeste que deixava os guerreiros da guerra-fria sem terem
o que fazer naquela região do mundo, a atenção dos Estados
Unidos desviou-se para o “terceiro mundo”, onde se conside
rava que, primeiro os russos, depois os chineses com seus
slogans mais atraentes, eram a principal fôrça ativista a fo
mentar novas revoluções entre as nações pobres, “perigosa
mente vulneráveis”.
A tendência americana a estabelecer uma comparação en
tre russos e chineses favorável aos primeiros fortaleceu-se dian
te dos acontecimentos relacionados com a crise dos foguetes
em Cuba. Quando, face ao bloqueio americano, Moscou reti
rou seus mísseis de Cuba, revelando disposição de evitar um
confronto nuclear, Pequim ridicularizou os russos por temerem
um “tigre de papel”. A resposta de Kruschev afirmando que
o tigre tinha ‘ dentes nucleares” parece ter convencido muitos
americanos de que os soviéticos reconhecem e respeitam o
poderio americano, e os chineses não.
Enquanto Moscou e Washington concordavam em assinar
um tratado proibindo as explosões atmosféricas, os chineses,
que ainda trabalhavam em sua primeira bomba, denunciavam
a proibição como uma tentativa das potências nucleares de
estabelecerem o monopólio das armas atômicas. A recusa chi
nesa a assinar o tratado foi tomada pelos Estados Unidos como
nova indicação de seus intentos agressivos*1.
325
Enquanto os soviéticos expressavam desolação pelo assas
sinato de Kennedy e enviavam Mikoian aos funerais, informa
va-se que os chineses reagiam à morte do Presidente com um
comentário de mau-gôsto, sugerindo que o imperialista ame
ricano tivera o destino que merecia. Os estereótipos da guer-
ra-fria estavam mudando: por volta de 1964, as charges polí
ticas da imprensa americana pintavam Kruschev como um
personagem gorducho quase benigno, ofuscado por um pavo
roso gigante de olhos repuxados, a “China Vermelha” . E
na vida real, em 1966, Barry Goldwater antevia a possibilidade
de uma terceira guerra mundial opondo a América e a Rússia,
aliadas, ao inimigo comum chinês.
A intensificação do turismo americano na URSS tornou
difícil manter a imagem da Rússia como um “mistério assus
tador”. Alguns observadores americanos, constatando as ten
dências liberalizantes e a prosperidade crescente, concluíam
estarem os russos se tomando “cada vez mais como nós”, o
que é o maior elogio que os americanos podem fazer a qual
quer povo. A China, contudo, inacessível aos turistas ameri
canos, aos diplomatas e jornalistas, permanecia uma nação de
setecentos milhões de habitantes, desconhecida, fanática e su
postamente explosiva. 'Eíiquanto a Rússia, como nação, ia pas
sando para o campo dos que têm, a China permanecia no
campo dos que não têm, particularmente com as prdporções
da China, era forçosamente um inimigo potencial.
Já agora a profecia auto-realizadora se invertia, no que
diz respeito a nossas relações com a União Soviética: da mes
ma maneira que, antes, a hostilidade gerava hostilidade, agora
uma atitude conciliadora encorajava outra. Depois do tratado
de proibição das explosões atmosféricas, os dois países fir
maram um acôrdo consular, formularam um tratado de coope
ração espacial e passaram a estudar as possibilidades de me
lhorar suas relações comerciais, de comunicações e culturais.
Este tendência à aproximação não deve ser superestimada. A
escalada militar não dá sinais de acomodação. Muitos ame
ricanos, inclusive membros do Congresso, tendo ouvido duran-
A Cruzada Anticomunista,
porque constatou, ao longo de documentada pesquisa, que o
“anticomunismo” ultrapassou seus confessados propósitos para
se transformar numa histeria de violência, de absoluto des
respeito pelos direitos.fundamentais do homem.
Partindo da realidade imediata, que é a norte-americana,
M ic h a e l P a r e n t i extrapola suas conclusões para o plano in
ternacional, e conclui que “o anticomunismo produziu e con
tinua produzindo corridas armamentistas, terror nuclear,
fortalecimento de autocracias opressivas, reacionarismo anti-
revolucionário, morte ou incapacitação física de milhares de
jovens soldados norte-americanos, genocídio de centenas de
milhares de civis indefesos”.
A Cruzada Anticomunista
é a um só tempo libelo e advertência.
M a is um L an çam en to de C a t e g o r ia da
CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA