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MariaH,en#:f::::i
Perguntar o que quer e o que pode esta língua é como perguntar o que querem e
podem aqueles que a falam. A língua, como todos nós, quer palpitar, crescer, tornar-
-se flexível e colorida, expandir-se, enfim, viver. E isso só acontece porque usamos
a língua para comunicar com os outros e connosco mesmos. O mais admiróvel é
que, com poucas dezenas de sons, todas as pessoas podem construir, em qualquer
língua do mundo, uma infinidade de expressóes que revelam aos outros o que pen-
sam, o que imaginam e o que sentem. Neste aspecto, as línguas tèm todas o mesmo
estatuto e a mesma gtandeza. Como diz Pinker:
15
te). Mais tarde, o portugués recebeu larga conribuigào do írabe, sobretudo no campo do
léxico e em algumas pronúncias particulares (sào arabismos agorda, albufeira, algoddo,
faquir, harém, etc., e a pronúncia da consoante inicial de palavras como xaile ou xaro-
pe). Evidentemente, como todas as línguas, o portuguès foi enriquecendo e mudando ao
longo da sua história em contacto com ouffas línguas próximas e afastadas.
Podemos afirmar, com base em nomes de pessoas e lugares e em alguns aspec-
tos lexicais de documentos da época, que entre os séculos u e vn o portugués foi
adquirindo características próprias que permitem identificar esse período como o
início do léxico comum galaico-portuguès ('). Mas só pelos séculos xr-xl[ se en-
contram documentos que revelam autihzagào de uma nova língua com autonomia
em relaEào à latina. E é evidente que, quando uma língua comega a ser documenta-
da graficamente, ela j6é pertenga de muitos falantes desde hó longo tempo.
É troie largamente aceite que as primeiras manifestagóes do portuguès escrito
remontam ao reinado de D. Afonso Henriques. Trata-se de um documento de dívidas,
uma <<Notícia de fiadores>>, datada de 1175, da autoria de Paio Soares Romeu e do
<Pacto de Gomes Pais e Ramiro Pais>>, de uma data aproximada (2). Outros dois textos
que sào referidos como pertencendo ao grupo dos mais antigos documentos escritos
em portuguès sào a <Notícia de Torto> (') e o Testamento deAfonso II, ambos reporta-
dos a cerca de aniílise desta documentaEào primitiva e de produEóes poéticas
I2l4.A
contemporàneas leva à afirmagào de que ((parece nào restar qualquer margem para
duvidar de que se escrevia em portuguès na segunda metade do século xtt>> (4).
Entre os séculos xrr e xxl o portuguès viveu novecentos anos de alteragóes e
expansào. Uma frase como <De noticia de torto que fecerú a Laurecius Fernàdiz por
plazo que fece Gócauo Ramiriz antre suos filios e Lourézo Ferrnàdi2....> (início da
Notícia de Torto, l2t4) difere substancialmente da correspondente frase actual:
<Da notícia do prejuízo que fizeram a Lourengo Fernandes por [causa do] pacto que
fez Gongalo Ramires entre os seus filhos e Lourengo Fernandes...>>
Nesta caminhada de séculos a língua portuguesa, em contacto com outras lín-
guas, foi enriquecendo e mudando no léxico, na pronúncia, na morfologia e na sin-
taxe. Na sua evolugào reconhecem-se habitualmente quatro períodos, ligados por
épocas de transigào ('). Sio eles
16
o portugués médio, durante o século xv (u)
- o portugués clóssico, até meados do século xvln
- o portuguès moderno, a partir do século xvu.
-
Algumas características das diferentes fases da língua portuguesa estào indica-
das a seguir:
Foi só durante o período do portuguès moderno que o -€-, e por vezes o -,-,
em
-
posiEào pretónica e postónica foram progressivamente substituídos por uma
(u) Em relagào a este período, pode considerar-se que o portugués médio é um grande período de
mudanga, uma transigào de fase entre o portuguès antigo e o portugués cl6ssico.
(?) Estes hiatos mantiveram-se na escrita de textos do século xv ainda que as duas vogais se passas-
sem a pronunciar como uma só.
(8) Cf. Mattos e Silva, 1994:265.
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vogal reduzida que hoje é habitualmente suprimida no registo coloquial do Portu-
gués Europeu. Estas vogais eram, desde o início da língua, bastante mais audíveis
do que sào hoje em Portugal (semelhantes, portanto, às vogais ótonas do Portuguès
Brasileiro e do portugués falado em Africa;.
Por volta dos séculos xry-xv teve início a separagào que hoje se verifica entre o
portugués e o galego (p. ex.: no galego nào existem fricativas palatais sonoras,
como se revela na grafia de xeito, 'jeito', nem existem vogais nasais, como se obser-
va em unión,que difere de 'uniào'). Esta progressiva separagào tem sido entendida,
por alguns, como tendo dado nascimento a duas línguas (e), enquanto outros consi-
deram tratar-se de um grupo de dialectos que se distinguem, em conjunto, dos dia-
lectos portugueses ('o).
As variedades nacionais
r8
consoantes que habitualmente nào formam grupo (p. ex. captura cap[i]tur4 absur-
do ab[i]surdo, pneu p[i]neu). Outros aspectos em que as duas variedades se distin-
guem situam-se nos níveis morfológico, sintictico e, sobretudo, lexical. Assim, os
pronomes pessoais clíticos de terceira pessoa tèm formas diversas (p. ex. em PE, 'eu
vi-o na rua', 'eu quero vè-lo' , e em PB, 'eu vi ele na rua', 'eu vi vocè na rua', 'eu
quero lhe ver' , eu quero ver vocè'). O uso de ter e haver, em PB, com o significado de
existír em PE (p. ex. PB tem fogo naquela casa vs PE hd fogo naquela casa). O pos-
sessivo é, em PE, normalmente precedido de artigo (o meu cano) enquanto em PB
ocoffe sem artigo (meu cano). Por fim, as formas de tratamento revelam-se muito
mais complexas em Portuguès Europeu causando, por vezes, dificuldades em falan-
tes de outras variedades (p. ex. enquanto o PE usa, para o tratamento deferente, o
nome próprio, o cargo, o título ou o grau de parentesco, o PB utrliza o senhor a
senhora; no discurso familiar o PE vsatu e o vocè ao passo que o PB utiliza maiorita-
riamente vocè).
(") Sobre a cuacteizagào dos dialectos do Portuguès Europeu, ver Cintra, I97 la. Para mais detalhes,
ver Segura e Saramago, 2001. As diferengas entre os dialectos portugueses sào basicamente de cnilcter
fonético.
19
-.
(a) Os dialectos setentrionais, caracterizados pelo desaparecimento da oposiEào
enffe hl e lvle sua fusào numa única consoante,rcahzada quer como [b] quer
como [v] (''), pela manutengào das fricativas ópico-alveolares lSl e lal(o deno-
minado-s-beirào, graficamente <s> e <s,t>, como em saber,, passa), pela conser-
vagào do ditongo /ow/ (graficamente <ou>, como em pouco, soube), pela
manutengào da oposigào enffe a africada /tÍ (graficamente <ch>, como em chn-
ve, cham.a) e a fricativa palatal ltl, (graftcamente <r>, como em xnile, pa.xó).
('t) Sempre que se considere necessório, indicam-se os sons entre parénteses rectos, [ ], quando se tra-
ta da sua pronúncia (ou seja, do nível fonético) e entre barras oblíquas, / /, se nos referimos a um elemen-
to do nível fonológico, comum aos viírios dialectos e variedades.
('') Na regiào de Lisboa este ditongo conserva-se com a pronúncia [ej].
20
\1
'Viana
-:-*)f .,L.
Evora
\
Ì
l
u--
22
do que usamos para falar com aqueles que nos sào familiares. Um locutor de televi-
sào utiliza expressóes que nào empregaria no seu dia-a-dia, e que sào diferentes, até,
das que usa um locutor de ródio. O uso oral de uma língua distingue-se do seu uso
escrito. Uma conversa através da Internet tem, por seu lado, características particu-
lares por adaptaEào a este recentíssimo meio de comunicagào.
Perante tantas formas de variagào linguística deve pór-se em relevo que a língua que
a todas cobre é, evidentemente, uma absffacAào necesséria à sua descrigào como língua
particular que, nessa perspectiva, se distingue e conffasta com as restantes línguas natu-
rais. Mas em todas essas modalidades, a língua com que comunicamos uns com os
ouffos e connosco mesmos exibe a sua vitalidade e mosffa que é um 'organismo vivo',
uma forma indissocióvel das restantes manifestaEóes do comportamento humano.
Causas da variagào
23
A mudanga proveniente do contacto nào se resume ao léxico nem
um número a
restrito de variagóes gramaticais ou fonéticas ('').O contacto entre línguas pode dar
origem ao surgimento de línguas mistas o sabir ou língua franca, os pidgins e os
-
crioulos. O pidgin é um género especial de língua reduzida que serve as necessida-
des de um grupo de falantes de línguas diversas, ao passo que o crioulo é uma lín-
gua nativa que surge em circunstàncias especiais de colonizaEio e tem, portanto,
uma língua colonizadora como base, constituindo-se como língua autónoma com
uma gramilticaprópria ("). Estó hoje completamente posto de parte o conceito effa-
do de que o crioulo era alíngua de base 'mal falada', ou um seu dialecto. Nos paí-
ses africanos que tém o portugués como língua oficial existem crioulos como língua
materna em Cabo Verde, Guiné-Bissau e Sào Tomé e Príncipe.
As causas da mudanga nào sào apenas exteriores. Amudanga interna, endógena,
também se d6. Os fenómenos fonéticos de supressào de consoantes e vogais, ou mes-
mo de palavras inteiras com menor corpo fonético (como, em portuguès, as formas do
acusativo dos pronomes pessoais, o, a, os, a,r, que sào substituídas em certas varieda-
des por formas do nominativo ele, ela, vocè, etc.) desenvolvem-se muitas vezes pelo
simples facto de a língua ser falada, usada. A simplificagio de um dos sistemas da lín-
gua pode constituir-se em factor de modificagào e levar, por exemplo, à redugào de
viírias formas verbais a uma única, o que sucede no portuguès do Brasil com formas
como tufala,, ele fala, nós fala,, ou no inglés com as conjugaEÓes verbais (20).
Yanagdo e nofina
('8) Sobre os problemas deconentes do contacto entre línguas, ver Mota, 1996.
('') Sobre pidgins e crioulos, ver Baxter, 1996.
('o) Sobre causas e consequèncias do contacto entre línguas, ver Mota, 1996: 518-520.
24
-5.
Sào dois os planos em que se situam os argumentos com que se atribui superio-
ridade a uma das variedades do portugués: o propriamente linguístico e o sócio-cul-
tural. Tais argumentos sào, contudo, facilmente contestóveis.
O modelo do passado é muitas vezes invocado como base de uma valonzagio
linguística. Se tal servisse para prestigiar a variedade do Portugués Europeu peran-
te as demais variedades, devia lembrar-se que a língua que os portugueses difundi-
ram com a colonizagào tinha um sistema de vogais ótonas claramente menos
reduzido do que a nonna actual do portuguès falado em Portugal, e mais próximo,
portanto, das normas brasileira e africana. Este é um dos exemplos em que a varie-
dade europeia manifesta uma maior evolugào do que outras variedades do portu-
guès. Mas nào podemos com isto supor que a pronúncia de outras variedades como a
brasileira tenha ficado suspensa no tempo. Exemplos claros de evolugào sào a vocali-
zagào do lU final de sílaba (Brasil, Brasi[w]) ou a palatalizagio do ltJ e do ldl (tía,,
ltflia, bate, battJ]i). Este tipo de observagóes pode multiplicar-se, provando que con-
servagào e mudanEa fonéticas caracterizam, diferenciando, as variedades de uma
mesma língua sem que constituam em si próprias uma superioridade linguística.
O argumento de conservagào de características linguísticas é invocado, igual-
mente, em relagào a outros aspectos da língua como apoio de julgamentos de valor.
Mas também aqui os processos sào complexos e nào justificam tais julgamentos.
Vejamos um exemplo.
No desaparecimento dos casos latinos que distinguiam fungóes como as de sujei-
to, complemento directo ou indirecto, o portugués apresenta uma excepgào: os prono-
mes pessoais. O eu, sujeito, diferencia-se do me, complemento indirecto; o ele e o ela,
sujeitos, distinguem-se de o e a quarrdo complementos directos. Portanto, frases como
Euvi ele na nta, que ocofrem em certas variedades do portuguès como a brasileira, sào
consideradas incorrectas. E, no entanto, essa 'inconecgào' mostra que também nesta
circunstància se aplicou aregrageral de desaparecimento dos casos latinos, reduzindo
as formas casuais dos pronomes pessoais às formas do nominativo. É no ambiente da
chamada 'língua culta'e através da escolarizagàoque o falante aprende que, nessa e em
oufas circunstàncias, a regrc geral nào foi aplicada, tendo-se mantido uma regra que
hoje constitui excepgAo como as que regulam ou fixam, nos verbos inegulares, as
-
formasy'z (em lugar do regular *fazi) outrouxe (em lugar de*truxe,paralela de pude).
Estas sào histórias secretas das palavras, regras que foram desactivadas, inte-
racgóes, mistérios. E, contudo, essas mesmas formas excepcionais que a escola nos
ensina vào sofrendo alteraEóes, modificagóes, novas regras surgem e comegam a ser
aplicadas, outras caem em desuso. Nào pode considerar-se, portanto, que determi-
nado momento na história de uma língua, ou que a forma que se fixou em certa varie-
dade, sejam superiores a outros do ponto de vista linguístico.
Um diferente tipo de argumentos apresentados para valonzar certa(s) varieda-
de(s) fundamenta-se em factores que só longinquamente se relacionam com a natu-
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reza da língua: o número de falantes, a importància histórica, o estatuto adquirido
em contextos multilingues institucionalizados. Ainda que tais argumentos pudes-
sem justificar asuperioridade de uma variedade, o facto de esses argumentos serem
de natureza sócio-política confirma que se trata de uma visào nào exclusivamente
linguística, mas claramente sócio-cultural. Portanto, se do ponto de vista linguísti-
co nào hó hierarquia entre as variedades de uma língua, toda a afirmagào que se pro-
dtzanesse sentido radica em critérios de cwilctet social.
O que se afirma em relagào às variedades nacionais de uma língua pode dizer-se
igualmente em relagào aos seus dialectos. O desprestígio que marca certas pronúncias
tem como causa a consagraEào de um dialecto como norma da língua culta, dialecto
que coffesponde, normalmente, ao que se fala na regiào em que estào sediados os
órgàos do poder. Mas se hoje a sede do poder político estó na regiào de Lisboa, tem-
pos houve em que o portuguès falado no interior das Beiras determinava a pronúncia
coffecta. Aliis, uma das características mais evidentes destes dialectos, o chamado 's
beirào'que se pronuncia com a ponta da língua a tocar nos alvéolos é herdeiro direc-
to do 's latino', enquanto nos restantes dialectos o 's dental'resultou, sobretudo, da
evolugào da sequéncia latina ri. Esta é arazào por que a grafta de palavras como pas-
so ('passum'em latim) e pago ('palatium'em latim) diferem e conespondem, em cer-
tos dialectos, a pronúncias diferentes, enquanto nos outros dialectos (nos quais se
incluem os da regiào de Lisboa) convergiram para uma única pronúncia. Estamos,
portanto, neste caso como em muitos outros, perante uma forma da língua com raízes
históricas que nào é habinnalmente adoptada como a norma.
Mas se todas as formas que a língua assume na sua variagào tém o mesmo esta-
tuto linguístico, poderemos falar de norma-padrdo, ou seja, de uma escolha entre
variantes que se aceite como modelo e seja utilizada no ensino da língua materna e
estrangeira ou nos meios de comunicagào?
A existéncia de uma nonna-padrào é necessiíria como referéncia da produgào
linguística e como garante da aceitabilidade de um certo comportamento no contexto
sócio-cultural em que estamos inseridos. Todas as variedades nacionais possuem a
sua norma-padrào de que a escola é especial depositríria. Como em qualquer campo
da actuagào humana, a norma tem justificagóes sócio-políticas e históricas, de
cnfuctqpedagógico e comunicativo. É, em certas circunstàncias, um factor de iden-
tificagào linguística e cultural e de solidariedade social. Em última anólise, o papel
da norma linguística torna-a um instrumento essencial de cidadania nas sociedades
contemporàneas.
Tendo presente, contudo, a evidència da variagio linguística no tempo e no espa-
go e a constante mudanEa decorrente da actividade linguística, existem dificuldades
na definigào de uma nofina-padrào que nos permita, em cada momento, estabelecer
sem dúvidas uma distingào entre o 'correcto' e o 'inconecto'. Na verdade, existe
uma alta percentagem de subjectividade que nos leva, em muitas ocasióes, a anate-
26
mafrzar certas construqóes ou certas formas lexicais.,Tomemos alguns exemplos do
Portuguès Europeu.
A rejeigào da forma do plural em "A maioria dos estudantes passaram no exa-
me", ou a supressào da preposigào antecedente do que nas oragóes relativas como
"O prédio que o Paulo vive é moderno" (em lugar de "O prédio em qve o Paulo vive
é moderno"), "O autor que eu mais gosto é Aquilino" (em vez de "O autor de que
eu mais gosto é Aquilino") sào formas aceites, hoje, como alternàncias possíveis, jé
que elas ocorem com frequéncia e se justificam linguisticamente (").Vejamos essa
justiîicagào: a alternància singular/plural em "A maioria (dos estudantes) pas-
sou/passaram" mostra que a concordància verbal se faz quer com a expressio'a
maioria de x' ("A maioria dos estudantes passou") quer com o núcleo do sintagma
nominal 'os estudantes' ("A maioria dos estudanles passaram"); a omissào da pre-
posigào nas relativas ("O autor que eu mais gosto") pode entender-se por paralelis-
mo com frases sem preposigào ("O autor que eu mais admiro").
Sendo assim, quem decide sobre a conecAào ou incorrecgào do uso do plural ou
da oragào relativa com omissào da preposigào? Quem decide, em última instància,
o que pertence à norma-padrào e o que deve ser corrigido? Porque achamos que a
forma *hd-dem, construída sobre comem com incorporagào da preposigio de no
corpo do verbo haver, é reprovóvel, e só pode aceitar-se hdo-de? Porque considera-
mos que *comestes tem que ser substituído por comesfe, quando todas as segundas
pessoas dos outros tempos verbais (comes, comias, etc.) terminam em -s? Porque
consideramos que o verbo pensar nào pode ser seguido por de (*Penso de que....)
mas gostar pode, ainda que, com este verbo, a omissào da preposigào seja aceitóvel
("O autor de que eu gosto" / "O autor que eu gosto")? Onde vamos buscar argumen-
tos para afirmar sem dúvidas que, por exemplo, "Houveram muitos acidentes" é
impossível e tem que ser corrigido para "Houve muitos acidentes"? Como saber o
que se pode aceitar e o que se deve reprovar?
Viírios factores concorrem pmaadefinigào e aceitagio da norma que nào pode,
hoje, tomar o seu modelo exclusivamente das graméticas normativas ou dos autores
consagrados (").
A escola obrigatória e universal é, sem dúvida, um primeiro factor de estabilizagào
da língua. Aí se pratica o desenvolvimento de um 'código elaborado'em todos os
níveis linguísticos, pela estimulagào da explicitagào verbal perante as novas exigéncias
do conhecimento. E porque a escola é o lugar marcado pelo poder para a orientagào
da sociedade, a evidència da nào escolarizagào, quando se utrhza um registo dife-
rente da norma, é elemento de discriminagào. Daqui decorre a importància da esco-
27
lanzagio como factor que proporciona as condiEóes bésicas de acesso de todos os
membros da sociedade às estruturas do poder.
Um segundo interveniente na identificaEio da norma e na explicagào da varia-
gào é o linguista, a quem compete estudar e analisar, conhecer e compreender o fun-
cionamento da língua. Esse é o objectivo primordial do seu trabalho. O linguista é
o profissional que conhece os meandros da história da língua e sabe distinguir entre
a variagào dialectal radicada na diferenQà, à excepgào que ainda perdura e a forma
que decone do desconhecimento e da ignorància. É, portanto, esse saber especiali-
zado que se lhe pede, no reconhecimento das formas linguísticas estabilizadas e na
identificagào das mudanEas que se encontram em curso.
Mas temos de admitir que os falantes estào expostos a muitos outros meios de
influéncia linguística, nomeadamente os meios de comunicagào. Podemos até acei-
tar a afirmagào de que (<a nonna portuguesa dotada de maior vitalidade e capacida-
de de fazer adeptos é a que transmitem os jornais, a ródio e a televisào (")n.
Este conceito de cwactenzagào da norrna vitalidade e capacidade de fazer
adeptos
-
pode ser discutível mas é aliciante. Parece evidente que o discurso dos
-
meios de comunicaEào é o que apresenta mais vitalidade: rodeia-nos, entra na nos-
sa casa, é inovador, exibe uma constante mudanga. É passível das nossas críticas
mas influencia o nosso falar quotidiano. Nào podemos aceiti-lo sem critério e nào
podemos, igualmente, desconhecè-lo.
O interesse que incide sobre o discurso utilizado na comunicagào social levou à
criaqào de um projecto que permitisse analisar o seu carócter inovador em vórios
campos da língua. Os capítulos que constituem a Parte II deste livro sào exemplifi-
cativos de variagóes em relagào à norma-padrào que poderào ser interpretadas como
mudangas em curso na variedade europeia do portugués.
BrsLrocRerte
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