Вы находитесь на странице: 1из 30

Lina Bo Bardi

Obra construída Built work

Olivia de Oliveira
Fotografias Photography Nelson Kon
www.ggili.com.br

GG
www.ggili.com.br
001-003_1-3 crèdits, index.ok 03/04/14 10:11 Página 1

Lina Bo Bardi
Obra construída Built work

Olivia de Oliveira Prefácio: Vão Livre Foreword: Open Void 2


Acerca de Lina Bo Bardi Concerning Lina Bo Bardi
4
Casa de Vidro, São Paulo House of Glass, São Paulo 22
Casa do Jardim de Cristal e casa de
convidados La Torracia, São Paulo
Crystal Garden House and La Torracia guests’
residence, São Paulo
42
Casa do Chame-Chame, Salvador (Bahia) The Chame-Chame House, Salvador (Bahia) 56
MASP (Museu de Arte de São Paulo), São Paulo MASP (São Paulo Art Museum), São Paulo 60
Solar do Unhão, Museu de Arte Moderna da
Bahia (MAM-BA) e Museu de Arte e Tradições
Solar do Unhão, MAM-BA (Bahia Modern Art
Museum) and Folk Art Museum, Salvador (Bahia)
80
Populares, Salvador (Bahia)

Igreja do Espírito Santo do Cerrado,


Uberlândia (Minas Gerais)
Espírito Santo do Cerrado Church, Uberlândia
(Minas Gerais)
90
Olivia de Oliveira Uma visita inesperada An unexpected visit 102
Capela Santa Maria dos Anjos, Vargem Grande
Paulista (São Paulo)
Santa Maria dos Anjos Chapel, Vargem Grande
Paulista (São Paulo)
104
SESC Fábrica Pompeia, São Paulo SESC Pompeia Factory, São Paulo 112
Ateliê Bo Bardi, São Paulo Bo Bardi Studio, São Paulo 136
Centro Histórico de Salvador (Bahia) Salvador old town center (Bahia) 142
Teatro Gregório de Mattos, Salvador (Bahia) Gregório de Mattos Theater, Salvador (Bahia) 144
Ladeira da Misericórdia, Salvador (Bahia) Ladeira da Misericórdia, Salvador (Bahia) 150
Casa do Benin, Salvador (Bahia) Benin House, Salvador (Bahia) 160
Casa do Olodum, Salvador (Bahia) Olodum House, Salvador (Bahia) 172
www.ggili.com.br

Centro de Convivência LBA, Cananeia


(São Paulo)
LBA Civic Center, Cananeia (São Paulo) 176
Teatro Oficina, São Paulo Oficina Theater, São Paulo 184
Nova Prefeitura, São Paulo New City Hall, São Paulo 194
Biografia Biography 206
Lina Bo Bardi nexus nexus
Teoria e Filosofia da Arquitetura The Theory and Philosophy of Architecture 209
Sobre a linguística arquitetônica On Architectural Linguistics
Planejamento ambiental: “desenho” no impasse Ambient Planning. ‘Design’ Impasse

Olivia de Oliveira Entrevista com Lina Bo Bardi Interview with Lina Bo Bardi
230
001-003_1-3 crèdits, index.ok 03/04/14 10:11 Página 2

Vão Livre Open Void


Mais de dez anos se passaram desde que editamos a monografia 2G More than ten years ago we published this 2G monograph covering
dedicada à obra construída de Lina Bo Bardi. Pareceu-nos importan- Lina Bo Bardi's built work. At last it is published in Portuguese, its
te escrever algumas linhas atualizando a presente edição, que final- original language, and I must take a few lines to update it.
mente se faz em seu idioma original, o português. In 2001, to prepare the monograph, I toured the buildings in the
Quando em 2001 percorri a obra de Lina Bo Bardi, acompanhada company of the photographer Nelson Kon and was able to inspect
pelo fotógrafo Nelson Kon para preparar esta monografia, pude and consider the poor state of repair of many of her buildings. With
fazer um balanço do estado de degradação em que se encontravam a heavy heart I can report that this is still very true. Above all we are
muitos de seus edifícios. Constato com tristeza que o dito naquele still defenceless against a kind of "deterioration that attacks and dis-
balanço ainda é hoje de extrema atualidade e, sobretudo, que conti- torts the deepest meaning of Lina Bo Bardi's architecture”.
nuamos sem defesa diante de um tipo de “deterioração que ataca e Now I must write about the threat that the MASP void—called "open"
deturpa o mais profundo sentido da arquitetura de Lina Bo Bardi”. until now—will be enclosed! An editorial in the newspaper O Estado
Agora mesmo escrevo sob a ameaça de que o vão do MASP – até aqui de São Paulo1 announced this proposal and the museum's curator
conhecido como LIVRE – venha a ser gradeado! A proposta anun- Teixeira Coelho defended it. He said that the aim is to protect peo-
ciada num editorial anônimo do jornal Estado de São Paulo,1 e defen- ple who have “the right to cultural access” from “pickpockets”2 and,
dida pelo atual curador do museu Teixeira Coelho, visa segundo este the author of the editorial adds, “drug addicts and traffickers, home-
último, proteger os que têm “direito de acesso a cultura” dos referi- less people who are taking over the MASP open void”, and concludes
dos “batedores de carteira”,2 bem como dos “dependentes e trafican- that “a way of freeing the area from them and from demonstrators is
tes de drogas, moradores de rua que estão tomando conta do vão to enclose the museum”. The curator himself recognises that “this
livre do MASP”, acrescenta o autor do editorial. Este conclui que will not eliminate the problem, but it will improve the situation".
“uma forma de livrar o local tanto deles como dos manifestantes é It seems absurd, but public spaces come to be treated like private
cercar o Museu”, medida que o próprio curador reconhece “não eli- condominiums. And the MASP open void would not be the first… In
minar o problema, mas amenizaria a situação”. large Brazilian cities many of the main and most beautiful public
Por mais absurdo que pareça, os espaços públicos passaram a ser tra- spaces have already been enclosed. Unfortunately, instead of spend-
tados como condomínios privados. E o vão livre do MASP não seria o ing time on our cities, looking after them and revitalising the few fine
primeiro... muitas das principais e mais belas praças públicas das urban spaces we have, they decided to fence them in on the pretext
grandes cidades brasileiras já encontram-se gradeadas. Lamentavelmente, that this would eliminate or diminish danger. This attitude is wrong
em vez de ocuparmo-nos das nossas cidades, cuidá-las, revitalizar os in two ways — it privatises space that should be public, and they turn
raros espaços urbanos de qualidade que ainda existem, opta-se por their backs on the city and its citizens. It negates the city and treats it
cercá-los, sob o pretexto de com isto excluir ou amenizar o perigo. as no man's land, handing it over to abandonment and ruin… São
Tal atitude é errônea em dois sentidos: por um lado, privatiza aquilo Paulo, Rio de Janeiro, Salvador… they all move in the same direction.
que deveria ser público; por outro, dá as costas a cidade e seus cida- There should be no illusions: social, urban and public security prob-
dãos, nega a cidade tratando-a como “terra de ninguém”, entregan- lems must be resolved, not avoided.
do-a ao abandono e à ruína... São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador... The MASP was designed as a musée hors des limites3 which literally
todas elas seguem a mesma direção. Não é preciso iludir-se: os pro- means limitless, as much by its great size as by the idea of how to
blemas sociais, urbanos e de segurança pública devem ser resolvidos, exhibit and the philosophical and architectural concept. And the
não esquivados. emptiness of the void is an essential part of this vision. Lina Bo Bardi
Ora, o MASP foi concebido como um museu hors des limites,3 o que designed the intermediary space as a place where a person is a free
literalmente quer dizer fora dos limites, tanto por suas grandes and sovereign individual, and by definition the area is open to the
dimensões, como por sua concepção filosófica, arquitetônica e expo- unplanned, a void full of possibilities. As in John Cage's music, this
sitiva. E o vazio do vão é peça fundamental deste conceito; este espa- interval makes room for incidental, unexpected, accidental things
ço intermediário projetado por Lina é um lugar onde o sujeito é and to everything our society tries to deny and repudiate, an under-
indivíduo livre e soberano, um lugar por definição aberto ao inde- ground level of reality —one that is oppressed but not suppressed. I
terminado, um vazio impregnado de possibilidades. Tal como na am not going to elaborate, I have already expounded on this topic
música de John Cage, este intervalo dá lugar ao contingente, ao ines- elsewhere4, but I must emphasise that the open void at the MASP has
perado, ao acidental e também a tudo aquilo que nossa sociedade features that make it the window of São Paulo society. Now it displays
tenta negar e repudiar, o subterrâneo da realidade, aquilo que está social inequalities, distortions and infirmities of the metropolis. In
oprimido, mas não suprimido. Não vou estender-me, pois já escrevi 1978, when she started the project for SESC Pompeia, Lina declared
sobre o tema em outras ocasiões.4 O que, sim, quero salientar é que São Paulo to be a “pile of bones”, and said that it was “the world
o vão livre do MASP, por suas características, torna-se a janela da champion city for self-destruction”. She found only one positive
sociedade paulistana. E hoje ele põe de manifesto as desigualdades aspect —the city suburbs inhabited by north-easterners, which she
www.ggili.com.br

sociais, as distorções e enfermidades da metrópole urbana. Em 1978, saw as the “true São Paulo”.5 When Lina designed SESC she paid
quando iniciava o projeto para o SESC Pompeia, Lina declarou que homage to these forgotten people and their popular culture with fea-
São Paulo era uma “ossada”, “a cidade campeã do mundo em auto- tures that include the River São Francisco flowing across the large
destruição”, tendo, como único dado positivo, o cinturão nordestino leisure area. A core of Lina's thinking is that each of her buildings
que a envolvia e que para ela era a “verdadeira São Paulo”. 5 E ao projetar displays and reserves space for things that western civilisation con-
o SESC, Lina rendeu homenagem a essa população esquecida e à sua stantly relegates to the second level, forgets or rejects.
cultura popular, entre outras com o Rio São Francisco atravessando To enclose the void it is not an accident that Teixeira Coelho provides
o grande espaço de lazer. Cerne do pensamento de Lina, cada uma excuses that address this question. He evokes a past that he considers
de suas obras põe de manifesto e dá lugar ao que constantemente é was better than the present: “When the MASP was built São Paulo was
relegado ao segundo plano, esquecido ou recusado pelo ocidente a civilised city, it was possible to step directly from the street into the
civilizado. museum. No longer. São Paulo is a city that does not even provide
Não por acaso, as escusas dadas por Teixeira Coelho para que o vão seja public conveniences on its streets.”6 Certainly he does not know that
cercado apoiam-se nesta questão, evocando o passado que ele parece before the MASP there was a project to build “two big public toilets”
considerar melhor do que o presente: “Quando o MASP foi construído, in the Trianon belvedere, as Lina reports in the interview published
001-003_1-3 crèdits, index.ok 03/04/14 10:11 Página 3

São Paulo era uma cidade civilizada, era possível passar diretamente here. Also it seems that it was forgotten that the MASP was built dur-
da rua para o museu. Hoje, não. São Paulo é uma cidade que sequer ing the military dictatorship when nobody had the right to demon-
oferece banheiro público às pessoas nas ruas”6. Certamente, desco- strate about anything! Fear, police, hygiene, blame —words that con-
nhece o fato de que antes do MASP existia um projeto para a cons- stantly return and reverberate in attempts to defend life behind bar-
trução de “duas grandes privadas” públicas no belvedere do Trianon, riers.
tal como evoca Lina na entrevista aqui publicada. Também parece I remember that Lina produced a drawing of the MASP void on 5
esquecer que o MASP foi construído em plena ditadura militar, quan- November 1965, exactly 48 years ago. It is a perspective of that space
do ninguém tinha direito a manifestar o que seja! Medo, polícia, with an apparent exposure of the initial consequences of the military
higiene, censura, palavras que retornam e ressoam constantemente coup. The drawing's title in Italian proclaims the dark time they were
nas explicações dadas pelos que defendem viver atrás de grades. living through: l’ombra della sera, that is “the shadow of night”. As a
Recordo um desenho que Lina fez do vão do MASP, precisamente há censured protest Lina conceals the words liberdade (freedom) and
48 anos, no dia 5 de novembro de 1965. Trata-se de uma perspectiva do solidão (solitude) which appear to be drawn on the concrete slab
vão do MASP onde parece denunciar as impressões das primeiras con- above the void, but in mirror writing.
sequências do golpe militar. O título do desenho em italiano anuncia We do not accept that feelings of fear, disapproval and isolation take
o momento obscuro vivido: l’ombra della sera, “a sombra da noite”. over the MASP void, nor that they overtake and obscure the desire
Nele, sob a forma de um protesto censurado, Lina dissimula as pala- for freedom and solidarity that Lina's architecture demands. The
vras LIBERDADE e SOLIDÃO, que aparecem como se estivessem void should go back to being open, not because that was its original
grafitadas na laje de concreto do vão, mas escritas em espelho. state, but for the exceptional originality of the concept and particu-
Não deixemos que o sentimento de medo, a censura e o isolamento larly the opportunity it represents. It helps us to take a critical look at
ocupem o vão do MASP nem que sobrepujem e obscureçam os desejos our current circumstances and the challenges of struggling against
de liberdade e solidariedade clamados pelas arquiteturas concebidas por the inequality, injustice and violence that persist despite the success
Lina Bo Bardi. O vão deve voltar a ser livre, não porque este era o seu of our democratic gains.
estado original, mas pela originalidade excepcional com que foi pensado,
e sobretudo pela abertura que hoje representa, ajudando-nos a cons- Olivia de Oliveira
truir um olhar crítico sobre nossa contemporaneidade e os desafios a
serem encarados na luta contra as desigualdades, as injustiças e a violên-
cia, que persistem para além das conquistas democráticas alcançadas.

Olivia de Oliveira

1 1
“É preciso preservar o “É preciso preservar o
MASP”. O Estado de São MASP,” O Estado de São Paulo,
Paulo. São Paulo. 20 nov. São Paulo, 20 November
2013. Disponível em: 2013. Available in:
www.estadao.com.br/ <www.estadao.com.br/
noticias/impresso,e-preciso- noticias/impresso,e-preciso-
preservar-o- preservar-o-masp-
masp,1098579,0.htm. ,1098579,0.htm>.
Acesso em: 16 jan. 2014. 2
Gonçalves Filho, Antonio
2
Gonçalves Filho, Antonio and Maia, Laura, “Sem
e Maia, Laura. “Sem segu- segurança, mostra é
rança, mostra é cancelada cancelada no MASP,”
no MASP”. O Estado de São O Estado de São Paulo, São
Paulo. São Paulo, 16 nov. Paulo, 16 November 2013.
2013. Disponível em: Available in:
<www.estadao.com.br/ <www.estadao.com.br/
noticias/impresso,sem- noticias/impresso,sem-
seguranca-mostra-e-cancelada- seguranca-mostra-e-cancelada-
no-masp-,1097299,0.htm>. no-masp-,1097299,0.htm>.
Acesso em: 16 jan. 2014. 3
Bardi, Pietro Maria,
3
Bardi, Pietro Maria. “Museés hors des limites.”
“Museés hors des limites”. Habitat, no. 4, São Paulo,
Habitat. n. 4. São Paulo, 1951, p. 50.
1951, p. 50. 4
Oliveira, Olivia de, Subtle
4
Oliveira, Olivia de. Sutis Substances. The Architecture
substâncias da arquitetura de of Lina Bo Bardi, Editorial
Lina Bo Bardi. Gustavo Gili e Gustavo Gili, Barcelona,
Romano Guerra editores. 2006, pp. 259-337.
Barcelona/São Paulo, 2006, 5
Soares, Dirceu, “Um
pp. 259-337. centro de lazer na cidade
5
Soares, Dirceu. “Um centro morta”, Folha de S. Paulo,
de lazer na cidade morta”. São Paulo, 20 January 1978.
Folha de S.Paulo. São Paulo, 6
Interview with Teixeira
© Instítuto Lina Bo e P. M. Bardi
20 jan. 1978. Coelho: “Não é o caso de
6
www.ggili.com.br

Entrevista com Teixeira esperar pela solução do


Coelho: “Não é o caso de problema na cidade toda
esperar pela solução do para decidir o que fazer
problema na cidade toda com o vão livre do MASP.”
para decidir o que fazer Cosmopista, São Paulo, 2
com o vão livre do MASP”. December 2013. Available in:
Cosmopista. São Paulo, 2 dez. <cosmopista.com/2013/12/
2013. Disponível em: 02/entrevista-com-teixeira-
<cosmopista.com/2013/12/ coelho-nao-e-o-caso-de-
02/entrevista-com-teixeira- esperar-pela-solucao-do-
coelho-nao-e-o-caso-de- problema-na-cidade-toda-
esperar-pela-solucao-do- para-decidir-o-que-fazer-
problema-na-cidade-toda- com-o-vao-livre-do-masp>.
para-decidir-o-que-fazer-
com-o-vao-livre-do-masp>.
Acesso em: 16 jan. 2013.
004-021_4-21 introducció.ok 27/02/14 15:49 Página 4

4 OLIVIA DE OLIVEIRA

Acerca de Lina Bo Bardi


Concerning Lina Bo Bardi

Se a oportunidade de visitar em um curto espaço de tempo todas as The possibility of visiting all of Lina Bo Bardi’s built architectural
obras construídas por Lina Bo Bardi possibilitou-me rever em con- work in a short period of time allowed me to review the works as a
junto obras que já havia frequentado e outras que conhecia apenas whole. Some of these works I had often visited and others I only knew
no papel, ela permitiu-me também, sem que eu o tivesse premedita- from blueprints. It also allowed me to revise and evaluate the current
do, repassá-las e fazer um balanço do estado atual desse patrimônio. condition of this collection. Unfortunately this evaluation is not very
Lamentavelmente, o balanço não é dos mais positivos. Na contramão positive. The growing international interest in her work in recent
do crescente interesse que sua obra tem registrado e despertado nos times is inversely proportional to the concern for her buildings,
últimos anos em diferentes países e continentes, seus edifícios não which show a nonstop process of deterioration and mishandling. The
cessam de ser maltratados e deteriorados profundamente. É certo fact is that modern Brazilian architecture in general is in a precarious
que a arquitetura moderna brasileira, no geral, sofre de um precário state of preservation, and Lina Bo Bardi’s work is no exception to
estado de conservação, e nesse sentido a obra de Lina Bo Bardi não this. I’m not referring to the time factor, to the aging process that
é exceção. Mas não me refiro aqui à ação do tempo sobre os edifícios, each work has the right to undergo, but to a deterioration that
do envelhecimento digno que cada obra tem direito a viver, mas de attacks and undermines the deeper sense of Lina Bo Bardi’s archi-
uma deterioração que ataca e deturpa o mais profundo sentido da tecture. These attacks do not always occur because of a lack of mate-
arquitetura de Lina Bo Bardi. E esses golpes não se devem tanto à rial resources, which in certain cases make the decline of the work
falta de recursos materiais – o que em alguns casos torna efetiva- unavoidable, but come from a wholly other quarter; that is, from sup-
mente inevitável a decadência da obra –, mas provêm principalmen- posedly well informed bodies with big budgets. The fact that almost
te dos meios supostamente mais bem nutridos e informados. O fato all the buildings constructed or renovated by Lina Bo Bardi are reg-
de quase todos os prédios construídos ou restaurados por Lina Bo istered by various preservation societies as part of the historic her-
Bardi estarem tombados por órgãos de proteção do patrimônio his- itage doesn’t prevent their systematic deterioration, mainly due to an
tórico não tem impedido a sistemática destruição destas obras, sobre- unstoppable and overwhelming impulse that kowtows to fashion as
tudo por conta de um desenfreado impulso avassalador pronto a well as to significant business interests.
substituir o existente em nome da última novidade e do interesse Such interventions not only physically destroy the works, but also
mercantil. conceptually contradict Lina Bo Bardi’s strategy as a designer. Lina
www.ggili.com.br

Essas ações não apenas destroem fisicamente as obras, mas se opõem worked with the extant, observing it carefully, allowing herself to be
conceitualmente à atitude de Lina Bo Bardi ao projetar. Lina traba- enthused by the immediate surroundings in order to recreate and
lha com o pré-existente, observando-o cuidadosamente, deixando-se translate these in her work. Her architectures have the rare capacity
embeber pelo entorno para recriá-lo e traduzi-lo em sua obra. Sua to narrate and present the memory of a place. Frequently misunder-
arquitetura possui a rara capacidade de narrar e apresentar a memó- stood, they’ve been considered “nostalgic,” a word not in her vocabu-
ria do lugar. Muitas vezes incompreendidas, suas obras foram qualifi- lary. Lina lived in the present, in the real world of real things, and not
cadas de “nostálgicas” – palavra que jamais teve lugar no vocabulário in things framed by a nostalgic past or a nonexistent future. The past

OLIVIA DE OLIVEIRA (São Paulo, 1962) é arquiteta, formada pela Universidade Federal da OLIVIA DE OLIVEIRA (São Paulo, 1962) is an architect who trained at the Universidade Federal
Bahia e doutora pela ETSAB de Barcelona. Associada ao escritório butikofer de oliveira vernay da Bahia and received a doctorate at Barcelona School of Architecture. She works at butikofer
architectes, sediado em Lausanne (Suíça), foi professora assistente no Departamento de de oliveira vernay architectes, based in Lausanne Switzerland, and was an assistant at the
Arquitetura da EPF de Lausanne (2000-2001) e professora e pesquisadora convidada do mes- Architecture Department of the EPF in Lausanne (2000-2001) as well as invited lecturer and
trado da Faculdade de Arquitetura na Universidade Federal da Bahia (1995-1997). É autora de researcher in the Masters programme at the Universidade Federal da Bahia’s Architecture
vários títulos e artigos dedicados à teoria crítica da arquitetura brasileira, entre eles do livro Sutis Faculty (1995-1997). She is the author of various works and articles that analyse Brazilian archi-
substâncias da arquitetura de Lina Bo Bardi (Editorial Gustavo Gili/Romano Guerra, Barcelona/ tecture including the book Subtle Substances. The Architecture of Lina Bo Bardi (Editorial
São Paulo, 2006), que recebeu o prêmio do Instituto dos Arquitetos do Brasil (2006) e foi finalista Gustavo Gili, Barcelona, 2006), which received the Institute of Brazilian Architects prize (2006)
do Jabuti de literatura (2006) e do prêmio do RIBA (2007). and was shortlisted for the Jabuti literature prize (2006) and the RIBA prize (2007).
004-021_4-21 introducció.ok 27/02/14 15:49 Página 5

de Lina Bo Bardi. Lina vive no presente, no mundo real das coisas for Lina Bo Bardi was synonymous with memory, individual or col-
reais, e não daquelas idealizadas em um passado nostálgico, ou em lective, memory being an innate human sentiment. It is precisely this
um futuro inexistente. O passado é para Lina Bo Bardi sinônimo de respect for human beings, nature and life that guided her architec-
memória – seja ela individual ou coletiva –, e a memória é o senti- ture. When designing, Lina motioned towards the past in order to
mento humano por excelência. É justamente este respeito ao ser recompose it, and simultaneously examined a present then begin-
humano, à natureza, à vida o que guia sua arquitetura. Ao projetar, ning to assume a new, unexpected, and never before seen form. The
Lina realiza um movimento em direção ao passado para recompô-lo past for Lina was something forever alive, something occurring in the
e, ao mesmo tempo, em direção ao presente que, por sua vez, vai present.
tomando “uma nova, inesperada e nunca vista forma”. O passado é Her unfinished project for the restoration of the historic district of
para Lina Bo algo que ainda está vivo e acontecendo no presente. Salvador not only condensed the preexisting surroundings, but also
Seu projeto de restauração para o centro histórico da Bahia, incon- enhanced their social, cultural and religious qualities—which is what
cluso, não apenas densificava o pré-existente como valorizava-o atra- ultimately bothered the decision-makers. It isn’t hard to get the mes-
vés de suas características sociais, culturais e religiosas, coisas que, em sage if you look at the interventions in the area: the plan superim-
última análise, eram as que mais incomodavam aos que detinham o posed on Lina Bo Bardi’s design transformed the Pelourinho into a
poder de decisão. Não é difícil compreender isso observando as consumer paradise aimed at business and tourism, lending it a qual-
ações posteriormente realizadas no lugar: o projeto que sucedeu ao ity not unlike the endlessly proliferating shopping centers that
de Lina Bo Bardi transformou o Pelourinho em um centro de con- homogenize this city. In this same key, the Belvedere da Sé—pract-
sumo destinado basicamente ao comércio e ao turismo, conferindo- ically the only urban intervention Lina Bo Bardi was able to build in
-lhe uma característica não distante do modelo dos shoppings centers the historic district of Salvador—was recently demolished and
que não param de multiplicarem-se, higienizando e homogeneizan- replaced by a granite pavement next to the “renovated” Praça da Sé.
do a cidade. Nessa onda, o Belvedere da Sé – praticamente a única Not only does the past live on in Lina’s work, but so does everything
realização urbana que Lina Bo Bardi pôde erguer no centro históri- that is not represented in our society because it has been deemed to
co de Salvador – foi recentemente destruído e substituído por uma be “background”—nature, silence and emptiness—or because it has
área pavimentada em granito quando da “renovação” da Praça da Sé. been discarded as useless: lost, broken and abandoned; in short,
Não somente o passado vive na obra de Lina, mas também tudo aqui- trash. Lina Bo Bardi worked with what she had to hand, without dis-
lo que não figura em nossas sociedades, ou porque sistematicamente regarding anything she found en route, recycling materials and
considerado como pano de fundo – a natureza, o silêncio e o vazio –, opening up new possibilities for use. These narrative works heighten
ou porque descartado como inútil – os objetos perdidos, quebrados the senses, suggesting strategies for survival. Perceptually, this
ou abandonados, o lixo. Lina Bo trabalha com o que tem às mãos, respected work has an ethical and environmentally aware side to it. It
sem menosprezar nada do que encontra pelo caminho; vai reciclan- is an architecture that takes advantage of the unexpected, of chance,
do materiais e abrindo-lhes novas possibilidades de uso. Essas obras- precariousness and a lack of resources. It is a kind of procedure very
-narrativas aguçam os sentidos e assinalam estratégias de sobrevivên- close to the folksy way of doing things, to kitsch-type art, which works
cia. A consciência desse trabalho respeitoso demonstra uma atitude with the scarcity of means in order to arrive at maximum expressive-
tanto ética como ecológica. Essa arquitetura tira proveito dos impre- ness. Lina Bo Bardi’s oeuvre offers a powerful critique of a society
vistos, dos azares, da precariedade e da falta de meios: é um procedi- corrupted by consumerism, the same society that now mistreats it.
mento muito próximo do fazer popular, da arte Kitsch, que trabalha We know from Freud that remembering the past is the best way of
a escassez de meios para obter uma máxima expressividade. De sua exorcising it. In the SESC Pompeia Factory, for example, Lina Bo
obra, surge uma potente crítica à sociedade deteriorada pelo consu- Bardi preserved the image of the factory in order to undermine it:
mo, esta mesma que agora dispõe da obra de Lina Bo Bardi ao seu here work is the ally, and not the enemy, of pleasure. She has work lose
bem entender. its unpleasant, repressive, violent and painful side, and relates it to
Em todo caso, desde Sigmund Freud sabemos que recordar o passado sensitivity, freedom, imagination and libido. The trademark designed
é também a melhor forma de esconjurá-lo. No SESC Fábrica for the new group, a chimney belching flowers instead of smoke,
Pompeia, por exemplo, Lina Bo Bardi preserva a imagem da fábrica expresses this clearly. The link with Situationist thinking, where play
para logo subvertê-la: aqui o trabalho torna-se aliado do prazer e não was a concrete representation of the life force, where the competitive
mais o seu oposto. Ela retira do trabalho aquele caráter desagradável, element attached to all interpersonal relations would be abolished,
repressivo, violento e penoso, para associá-lo à sensibilidade, à liber- giving way to a notion of collective endeavor, is evident here. The joint
dade, à imaginação e à libido. O logotipo desenhado para o novo creation of ludic areas in the city and the suppression of the distinc-
conjunto, com uma chaminé soltando flores em vez de fumaça, tion between play and everyday life were the main goals of the
www.ggili.com.br

expressa-o claramente. É evidente a correspondência com o pensa- Situationist International. These collective constructions were to be
mento situacionista, em que o jogo era entendido como representação instrumental in the decline of bourgeois society, functioning as both
concreta da luta por uma vida à medida do desejo, em que o ele- a critique and a total subversion of the bourgeois ideal of pleasure.
mento de competição, ligado a todas as outras manifestações de tensão The intervention Lina Bo Bardi proposed for the historic district of
entre os indivíduos, seria abolido para dar lugar a uma concepção Salvador was amusing and not “nostalgic,” and dedicated to the gen-
muito mais coletiva. A criação comum de ambientes lúdicos selecionados eral public, especially children. The SESC Pompeia Factory obviously
e a abolição da distinção entre jogo e vida cotidiana eram a principal has an important parallel in the restoration project for the historic
004-021_4-21 introducció.ok 27/02/14 15:49 Página 6

SESC Fábrica Pompeia:


estúdio de carrinhos para
a venda de guloseimas,
também propostos para
o Centro Histórico de
Salvador.
SESC Pompeia Factory:
study of small carts for
selling snacks, also
proposed for the historic
center of Salvador.

© Instituto Lina Bo e
P. M. Bardi

Festa no SESC Fábrica


Pompeia.
SESC Pompeia Factory
social gathering.

© Nelson Kon
www.ggili.com.br
004-021_4-21 introducció.ok 03/04/14 10:15 Página 7

7
Acerca de Lina Bo Bardi Concerning Lina Bo Bardi

meta da Internationale, pois revalorização do jogo era entendida em center of Salvador. The year 1986 was to signal the final building of the
um contexto ideológico claramente definido. Essas construções cole- SESC Pompeia Factory sports complex and the beginning of the
tivas contribuiriam para a ruína da sociedade burguesa, atuando restoration project for the historic center of Salvador. Almost all the
como crítica e subversão completa dos ideais burgueses de prazer. elements used in the SESC would be reused in Salvador. Along with
Lúdica, não “nostálgica”, era a intervenção que Lina Bo Bardi pro- the construction of the sport complex, the “pre-historic holes” opened
punha para o centro histórico de Salvador, dedicada ao homem in the walls of the “sporting cave,” related by Lina Bo Bardi to recol-
comum e, em especial, às crianças. No SESC Fábrica Pompeia isso é lections of war, to a “citadel,” a sheltered and secluded autonomous
evidente, e a obra guarda um importante paralelismo com o projeto de place, would not only reappear in the foreground of the Oficina
restauração do centro histórico de Salvador. O ano de 1986 marcará o Theater1 but in the historic center of Salvador, whose advanced degra-
término da construção do conjunto esportivo do SESC Pompeia e dation recalled an emergency situation like an earthquake or a bomb-
também o início do projeto para o centro histórico de Salvador. ing. Thus, the rehabilitation of both the factory and the historic cen-
Quase todos os elementos utilizados no SESC serão reutilizados em ter not only involved recouping the memory of the buildings, but also
Salvador. Contemporâneos à construção do bloco esportivo do SESC, the memory of the place, of the country’s recent past, the recollection
os “buracos pré-históricos” abertos nas paredes da “caverna esporti- of exile, war, readings, travels, of a personal memory that, as in a
va” – e associados por Lina Bo Bardi a recordações de guerra, a uma dream, involuntarily embraces collective memory.
“cidadela”, um lugar protegido e recolhido em sua autonomia – reapa- Many of the symbolic elements impregnating Lina’s imagination
recerão tanto no anteprojeto para o Teatro Oficina,1 como no centro came directly from the traditions, cults and folk festivals she experi-
histórico de Salvador, cujo estado de degradação traria à sua mente enced in the northeast of Brazil. In fact Lina made a distinction
situações de emergência: um terremoto ou um bombardeio. Assim, between the northeasterners and the people from São Paulo, always
tanto a recuperação da fábrica como a do centro histórico serão não taking the part of the former, not out of favoritism, but because
apenas recuperação da memória dos edifícios, mas também da according to her the latter had adulterated native culture and were
memória do lugar, do passado recente do país; memórias de exílios, too committed to industrial modernization and imported mass cul-
guerras, leituras e viagens, de uma memória pessoal que se mescla ture, while in the northeast a strong popular, archaic tradition still
involuntariamente, como ocorre em um sonho, à memória coletiva. held sway.2 In 1978, when the SESC Pompeia project got underway,
Muitos destes elementos simbólicos impregnados no imaginário de she declared that the city of São Paulo was a “skeleton,” “the world
Lina vinham diretamente das tradições, dos cultos e festas populares, title-holder in self-destruction,” the only positive thing about it being
vivenciados por ela no Nordeste. De fato, Lina Bo fazia uma distinção the northeastern belt that surrounds it—for Lina this was “the true
entre o povo nordestino e o paulistano, sempre situando-se junto ao São Paulo”3. At the end of the SESC project, during the designing of
primeiro, não por bairrismo, mas porque, segundo ela, este último já the historic district of Salvador, she wrote: “The people from Bahia
havia deturpado a cultura autóctone e estava demasiado comprome- are ‘Old and Modern,’ they are ‘International-Popular,’ and their
tido com a modernização industrial e a cultura de massa importada, inventions owe nothing to colonial rancidity.”4 What really interested
enquanto o Nordeste, aos seus olhos, ainda possuía uma força de rea- Lina was to give a place to all that is forgotten or repudiated by “civ-
ção proveniente da sua forte tradição arcaica e popular.2 Em 1978, ilization,” so as to lend balance to the admixture. This is evident in
quando iniciava o projeto para o SESC Pompeia, Lina Bo declararia the SESC: the old and the new, the artisanal and the industrial, the
que São Paulo era uma “ossada”, “a cidade campeã do mundo em big and the small, the simple and the complex, the innocent and the
autodestruição”, tendo, como único dado positivo, o cinturão nor- aggressive, the delicate and the crude are all worked out in such a way
destino que a envolvia e que, para ela, era a “verdadeira São Paulo”,3 that one doesn’t impose on the other.
enquanto, ao final do projeto para o SESC, durante a concepção do The respect for traditional architecture and for popular savoir-faire
Centro Histórico de Salvador, escreve: “o povo da Bahia é ‘antigo e are evident in the pages of the magazine Habitat, founded in 1951
moderno’, é ‘internacional-popular’ e, nas suas invenções, nada tem and directed by Lina Bo and her husband, the critic, collector and art
do ranço da colônia”.4 O que interessava à Lina era dar lugar a tudo gallery owner Pietro Maria Bardi. Running counter to the myth of
o que constantemente é esquecido ou recusado pela “civilização”, de originality promulgated by part of the Brazilian architecture of the
forma a garantir o equilíbrio dessa mescla, e no SESC isso é claro: o day, Lina Bo Bardi looked towards the extreme coherence of the
antigo e o novo, o artesanal e o industrial, o pequeno e o grande, o work, its camouflaging within its surroundings, as in the Chame-
simples e o complexo, o singelo e o agressivo, o delicado e o rude Chame House and the Valéria Cirell House, both created at the end
estão trabalhados de forma que um não se imponha ao outro. of the 50s. Her work was not only a manifesto against the idea of an
O respeito pela arquitetura tradicional e pelo saber fazer popular já heroic and universal architecture, but also against the notion of
vinham sendo registrados desde as páginas da revista Habitat, que Lina development associated with progress that became popular during
www.ggili.com.br

Bo funda e dirige em 1951 com seu esposo – o crítico, colecionador e the 1950s in Brazil, with Brasilia as a kind of symbolic El Dorado.
galerista de arte Pietro Maria Bardi. Longe do mito da originalidade From that time onwards, Lina Bo Bardi fought, through her work
propagado pela arquitetura brasileira de então, Lina Bo Bardi pro- and writings, against such cultural colonialism, one associated with
cura a contextualização extrema da obra, recorrendo mesmo à camu- the overwhelming force of commercial interests.
flagem com o entorno, como os flagrantes exemplos da casa do Curiously, the most brutal attacks on Lina Bo Bardi’s work have been
Chame-Chame ou da casa Valéria Cirell, concebidas a finais da déca- mounted against her museums, exactly the point at which her rupture
da de 1950. Sua obra não somente constituiu um manifesto contra with both the hegemonic idea of progress and the Western model of
1 2 4 1 2 4
Numa das aquarelas feitas Bo Bardi, Lina. “No lugar Ferraz, Marcelo Carvalho In one of the watercolors “No lugar da antiga fábrica, Ferraz, Marcelo Carvalho
para o Teatro Oficina, Lina da antiga fábrica, um centro (org.). Lina Bo Bardi. São made for the Oficina um centro cultural”, O Estado (ed.), Lina Bo Bardi, Instituto
Bo Bardi anota ao lado de cultural”. Jornal da Tarde. São Paulo, Instituto Lina Bo e P. Theater, Lina Bo Bardi writes de São Paulo (Jornal da Tarde), Lina Bo e P. M. Bardi, São
três desses buracos: “Guerra Paulo, 24 set. 1979. M. Bardi, 1993, p. 272. beside one of three complex-es: 24 September 1979. Paulo, 1993, p. 272.
de España”, deixando clara 3 “Guerra de España” (the 3
Soares, Dirceu. “Um centro Soares, Dirceu, “Um centro
a correspondência em seu de lazer na cidade morta”. Spanish Civil War), making de lazer na cidade morta”,
imaginário. Folha de S.Paulo. São Paulo, the connection clear in her Folha de São Paulo, 20 January
20 jan. 1978. imagination. 1978.
004-021_4-21 introducció.ok 27/02/14 15:50 Página 8

uma arquitetura heroica e universal, mas também contra a ideia de an historical linear time, homogeneous, irreversible and always direct-
desenvolvimento associado ao progresso que desde a década de 1950 ed towards the future, was strongest. The potency of these spaces
invadiu o Brasil tendo como imagem emblemática a promessa de um deeply bothered the Establishment. There are many criticisms of
Eldorado chamado Brasília. Desde aquela época Lina Bo Bardi vinha Lina’s museums, especially when it comes to the exhibition areas,
lutando, com sua obra e seus escritos, contra esse colonialismo cul- which are often thought to be unadaptable. As a consequence of this
tural, que de braços dados com o impulso avassalador do interesse narrow view, inadequate interventions have been realized that express
mercantil já avançava a passos largos. disdain as to the meaning and importance of this architecture. The
www.ggili.com.br

Vista do MASP da Avenida


Paulista.
View of the MASP from
the Av. Paulista.

© Nelson Kon
004-021_4-21 introducció.ok 27/02/14 15:50 Página 9

Acerca de Lina Bo Bardi Concerning Lina Bo Bardi


9

Curiosamente, os ataques mais brutais feitos à obra de Lina Bo Bardi atin- most notorious example is the MASP Museum, where a series of
gem seus museus, justamente ali onde melhor se potencia sua ruptura changes were, and still are being, made that do great violence to this
com a ideia hegemônica de progresso, com o modelo ocidental de extraordinary work. It goes without saying that the building has to be
tempo histórico linear homogêneo e irreversível, sempre dirigido ao futu- maintained and that certain measures are essential to guaranteeing
ro. A potência desses espaços incomodam profundamente o establishment. the adequate performance of the museum, but these measures have
As críticas aos museus de Lina são inúmeras, sobretudo no que diz res- been undertaken by ignoring the very qualities of the architecture.
peito à inadaptação e condicionamento do espaço para exposições. Suffice it to say that there are many ways of adapting a museum to its
www.ggili.com.br

O MASP em construção,
1968.
The MASP under
construction, 1968.

© Hans Günter Flieg


004-021_4-21 introducció.ok 27/02/14 15:50 Página 10

10

O MASP em construção, >

>
década de 1960. MASP.
The MASP under The MASP.
construction, 1960s.
© Nelson Kon
© Luis Hossaka/Biblioteca
e Centro de Documentação
do Museu de Arte de São
Paulo Assis Chateaubriand

© Miroslav Javurek/
Instituto Lina Bo e P. M.
Bardi

Sob esta estreita ótica, intervenções pouco hábeis vêm sendo feitas, new needs without foregoing its character and the elements that
denotando um menosprezo ao significado e importância dessas arqui- make it different, special and unique. There is technique, for one;
teturas. O Museu de Arte de São Paulo (MASP) é o exemplo mais something Lina never rejected—or she wouldn’t have attempted to
conhecido, onde uma série de transformações foram e continuam create such an audacious museum. I’m referring here to the removal
sendo feitas atentando definitivamente contra essa extraordinária of the system of glass exhibition easels specific to this museum, as well
obra. É indiscutível que medidas de manutenção do edifício sejam as the 70-meter empty space that is today partially obstructed by bar-
indispensáveis, e que outras devam ser implementadas para o bom fun- riers, screens, ticket booths and a cloakroom counter. I could also
cionamento do museu, mas elas têm sido realizadas dando as costas às cite the reflective pools that once surrounded the building and which
www.ggili.com.br

qualidades dessas arquiteturas. are now debased with a false bottom or have been buried during a
Não creio seja necessário dizer que existem muitas maneiras de adap- recent renovation, as well as the changes to the lighting system, fur-
tar um museu a suas novas necessidades sem o descaracterizar nem nishings and materials that are quietly being made throughout the
perder aquilo que lhe torna distinto, especial, único. Para tanto, está building. Among these countless interventions is the replacing of the
aí também a técnica, que, diga-se de passagem, Lina Bo Bardi nunca Goiás stone floor in the Civic Hall by one of polished granite. “It was
relegou, ou jamais teria ousado fazer um museu tão arrojado. Refiro-me too much,” claims the current president of the institution, Mr. Julio
aqui sobretudo à retirada do sistema expositivo sobre cavaletes de Neves, also an architect. “The dust the stone produced might be very
004-021_4-21 introducció.ok 27/02/14 15:50 Página 11

Acerca de Lina Bo Bardi Concerning Lina Bo Bardi


11

vidro, específicos a este museu, assim como ao seu vão livre de 70 modern but it covered the pictures in grime.”5
metros, hoje parcialmente obstruído por barreiras, divisórias, bilhe- Respect for the building doesn’t mean keeping it unchanged, but
terias e um balcão guarda-volumes. Mas poderia referir-me também suiting it to currently prevailing standards instead. Here, expensive
aos espelhos d’água que contornavam o prédio e que foram reduzi- and refined materials replace the simple, economical and transpar-
dos com fundo falsos ou simplesmente soterrados em recente refor- ent solutions that were the hallmark of Lina Bo Bardi’s architecture.
ma, bem como às substituições do sistema de iluminação, de mobi- There are certainly ways of accommodating the new needs of the
liário e de materiais que vão sendo feitas na surdina e disseminando- museum without losing these qualities, qualities that are ultimately at
-se por todo o edifício. Entre as inúmeras intervenções, está a substi- one with the living conditions in this country. Instead, the MASP is
www.ggili.com.br

tuição do piso de pedra goiás do hall cívico por granito polido. “Aí já being slowly and stealthily transformed into a neutral, hygienic place,
é demais – reage o atual presidente da instituição, o sr. Júlio Neves, just like “all the other museums in the world,” as the architect-presi-
que também é arquiteto –, aquela poeirada que a pedra produzia dent likes to argue,6 allowing his completely colonized and provincial
podia ser moderna demais, mas enchia os quadros de sujeira”.5 vision to come to the fore.
Ora, o respeito ao construído não está no fato de mantê-lo inalterado e Coincidentally, also his is the project for the Bela Vista Festival
sim traduzido na qualidade do novo. Aqui materiais caros e rebuscados Center, which is due to be built by the Silvio Santos Group—one of
substituem soluções simples, econômicas e transparentes que sempre the biggest combines in Brazil—alongside another Lina Bo Bardi
5 5 Celso, “MASP fecha após
Scavone, Miriam. Scavone, Miriam, “Polêmica
“Polêmica no MASP”. Veja, no MASP”, Veja, no. 47, São semestre capenga”, Folha de
n. 47, p. 30. São Paulo, 25 Paulo, 25 November 1998, São Paulo, 22 July 1999;
nov. 1998. p. 30. Ribeiro, Marili, “MASP mos-
6
He repeats this on various tra polêmica sobre como exi-
occasions. See Viana, Andrá, bir arte”, Jornal do Brasil, Rio
“Monumento em Guerra”, de Janeiro, 27 November
Gazeta Mercantil [Caderno 1998.
Fim de Semana], São Paulo,
4 May 2001; Fioravante,
004-021_4-21 introducció.ok 27/02/14 15:50 Página 12

12

caracterizaram e qualificaram as arquiteturas de Lina. Certamente,


existiria um modo de adaptar-se às novas exigências de uso do museu
sem perder essas qualidades que, além do mais, são coerentes com as
condições de vida deste país. Em vez disso, o MASP vai sendo trans-
formado, aos poucos e sorrateiramente, em um lugar neutro e higiê-
nico como “todo museu do mundo”, tal como o arquiteto-presidente
tanto gosta argumentar,6 deixando aflorar sua visão absolutamente
colonizada e provinciana.
Coincidentemente, é de sua autoria também o projeto do shopping
Bela Vista Festival Center que ameaça ser construído pelo Grupo
Silvio Santos – uma das maiores redes de comunicação do país – ao
lado de outro projeto de Lina Bo Bardi, o Teatro Oficina. Se cons-
truído tal como hoje está concebido, esse shopping impediria a expan-
são prevista por Lina, recentemente retomada em projeto pelo arqui-
teto Paulo Mendes da Rocha. O Oficina deveria varar literalmente as
paredes do fundo desembocando em uma praça verde e pública que
o ligasse ao outro lado da rua, ao vale esverdeado do Anhangabaú. A
ideia era de criar uma via de passagem potencializada pela caracte-
rística pedestre do bairro do Bixiga, um dos mais antigos da cidade
de São Paulo. O projeto de Lina Bo Bardi procurava integrar este
pequeno teatro à escala, às características e à diversidade desse bairro.
Sua atitude é diametralmente oposta à outra, que com seus 55.000 m2
de teatros, salas de cinema multiplex, parques e restaurantes temáti-
cos, distribuídos em oito andares sufocariam não apenas o Teatro
Oficina, como achatariam a diversidade dos inúmeros pontos de
lazer, restauração e cultura que hoje integram o Bixiga.
Como se não bastasse, tem-se ainda em mira a “recuperação” da
Galeria Prestes Maia, o MASP-Centro: “Este museu faz parte do projeto
de revalorização do centro de São Paulo e tudo o que mais precisa
é de água, sabão, segurança, iluminação e a saída dos camelôs – essa é
a minha receita para o centro da cidade”.7 Higiene, polícia, medo,
perseguição: palavras que assim encadeadas ecoam nos piores regimes
totalitários. project, the Oficina Theater. If built according to plan, this shopping
mall will hinder the extension foreseen by Lina Bo Bardi, a project
“Parafusar quadros em vidro nunca foi solução museológica”,8 alega recently revived by the architect Paulo Mendes da Rocha. The
o professor de história da arte Luis Marquez, ex-curador do MASP. Oficina Theater should pierce the back wall and extend towards a
Segundo ele, a solução de Lina Bo Bardi “permaneceu isolada porque green public square, connecting it to the other side of the street, the
nenhum museu de pintura do mundo a adotou”.9 Certamente que os green valley of Anhangabaú. The idea is to create a passageway typi-
cavaletes de Lina são diferentes e, nesse sentido, permanecem “margi- cal of the pedestrian zoning of the Bexiga neighborhood, one of the
nais”, à margem do estabelecido. Ora, tudo aquilo que não é rotineiro oldest in São Paulo. Lina Bo Bardi’s project attempted to integrate
e assegurado mete medo aos funcionários de carreira e, por conse- this small theater with the scale, quality and diversity of this neigh-
guinte, toda a heterogeneidade deve ser erradicada. borhood. Lina’s attitude was the exact opposite of Mr. Neves’. The
Sim, a obra de Lina Bo Bardi subverte as normas e por isso mesmo mall has 55,000 m2 of theaters, Multiplex movie houses, parks and
está sempre em perigo, como alertou o arquiteto Aldo van Eyck, a theme restaurants spread over eight floors: it would not only suffo-
propósito do MASP: “O que é anormal – neste caso à revelia, devido cate the Oficina Theater, but also obliterate the diversity of the count-
a seu caráter único – também é vulnerável no sentido de que corre o less eating, culture and leisure spots that go to form the Bexiga neigh-
risco de ser mudado ou desmantelado completamente”.10 borhood.
Vale dizer que a concepção arquitetônica e museográfica de Lina Bo And as if that weren’t enough, the “rehabilitation” of the Prestes Maia
www.ggili.com.br

Bardi para o MASP não é absolutamente isolada. Experiências simi- Gallery, also known as the MASP-Centro, is also on the cards: “This
lares vêm sendo realizadas desde os anos trinta na Itália por Franco Museum is part of the project to increase the value of downtown São
Albini e por Eduardo Persico. Antes disso, em 1924, Frederick Kiesler Paulo, as well as anything that requires water, soap, safety, light and
já havia inaugurado em Viena, com seu spatial exhibition method, uma the removal of the street- sellers—that is my recipe for the center of
nova forma de agenciar o espaço que promovia a relação entre os the city.”7 Hygiene, police, fear and persecution: words that, taken
diferentes objetos nele expostos, indo contra o isolamento da obra together, evoke the worst totalitarian regimes.
de arte até então instituído pelas formas de exposições. Todos esses “To shut paintings behind glass was never a museum solution,”8
7
6
Repetidamente em diferentes “MASP mostra polêmica 8
“MASP”. Jornal da Tarde, Remark made by Júlio Fachada do Teatro
declarações e ocasiões. Ver sobre como exibir arte”. Coluna do leitor. São Paulo, Neves in Medeiros, Jotabê, Oficina.
por exemplo: Viana, André. Jornal do Brasil. Rio de 3 abr. 2001. “MASP soterra espelhos Facade of the Oficina
“Monumento em guerra”. Janeiro, 27 nov. 1998. 9
Ibidem. d’água e acende polêmica”, Theater.
7
Gazeta Mercantil. São Paulo, Declaração de Júlio Neves 10
Van Eyck, Aldo. “A in O Estado de São. Paulo,
4 jun. 2001; Fioravante, recolhida em: Medeiros, [Caderno 2], São Paulo, © Nelson Kon
superlative gift”. In Museu de
Celso. “MASP fecha após Jotabê. “MASP soterra Arte de São Paulo. Lisboa, 2 July 2001.
semestre capenga”. Folha de S. espelhos d’água e acende Blau / Instituto Lina Bo e P.
Paulo. São Paulo, 22 jul. polêmica”. O Estado de S. M. Bardi, 1997.
1999; Ribeiro, Marili. Paulo, Caderno 2. São Paulo,
2 jul. 2001.
004-021_4-21 introducció.ok 27/02/14 15:50 Página 13

Acerca de Lina Bo Bardi Concerning Lina Bo Bardi


www.ggili.com.br 13

Interior do Teatro Oficina.


Interior of the Oficina
Theater.

© Nelson Kon
004-021_4-21 introducció.ok 27/02/14 15:50 Página 14

14
www.ggili.com.br

Pinacoteca do MASP com >


os cavaletes de vidro. Pinacoteca do MASP,
The MASP gallery with its 1969.
glass easels. The MASP gallery, 1969.

© Paulo Gasparini/Instituto © Hans Günter Flieg


Lina Bo e P. M. Bardi
© Miroslav Javurek/Instituto
Lina Bo e P. M. Bardi
004-021_4-21 introducció.ok 27/02/14 15:50 Página 15

Acerca de Lina Bo Bardi Concerning Lina Bo Bardi


15

arquitetos buscavam, exatamente como o faz Lina Bo Bardi, criar, affirms Art History Professor Luis Marquez, former MASP curator.
com seus sistemas expositivos, um ambiente ou uma “atmosfera” de According to him, Lina Bo Bardi’s solution “remained an isolated
aproximação tanto entre as obras expostas como entre o visitante e a case because no art museum in the world adopted it.”9 Certainly,
obra de arte. E não só no passado encontramos referências. Em sua Lina’s easels are different and in that sense remain “marginal,” on
recente reforma da National Portrait Gallery de Londres, o arquiteto the fringes of the established order. Besides, anything that is not typ-
holandês Piers Gough explica que sua proposta em expor “as pintu- ical and routine frightens the art bureaucrats; all heterogeneity
ras sustentadas em paredes de vidro” recebeu “influência direta do ought therefore to be eradicated. Lina Bo Bardi’s work upsets the
projeto de Lina para o MASP”.11 norms and is thus always in danger, as the architect Aldo Van Eyck
O interessante é que os argumentos que vêm sendo utilizados para warns about the MASP: “[...] whatever is abnormal—in this case by
“purificar” e renegar a arquitetura e os sistemas de exposições previs- default, due to its unique character—is also vulnerable because it can
tos para o MASP são diametralmente opostos aos utilizados por espe- be totally modified or dismantled.”10
cialistas de outros museus. Oitenta réplicas desses mesmos cavaletes, It is worth mentioning that Lina Bo Bardi’s architectural and muse-
relegados ao porão do MASP, atualmente integram uma das princi- um scheme for the MASP is no isolated case. Franco Albini and
pais obras construídas pelo mestre da arquitetura moderna Mies van Eduardo Persico made similar experiments in Italy in the 1930s.
der Rohe: nada mais nada menos do que o Crown Hall, o salão prin- Before that, in Vienna in 1924, Frederick Kiesler introduced his “spa-
cipal de exposições do Illinois Institute of Technology (IIT) em tial exhibition method,” a new way of defining space by promoting a
Chicago. Também o Museu Rietveld, na Holanda, pediu permissão relationship between the different objects on show, an idea running
para copiar os cavaletes de vidro do MASP. Os mesmos que o arqui- counter to the isolation of the art object as instituted by the display
teto-presidente do MASP preferiu substituir por paredes de gesso de techniques of the day. These architects searched for the same thing
quatro metros de altura, projetadas por ele mesmo, para dividir o as Lina Bo Bardi: to create an ambience or “atmosphere” of close-
salão da pinacoteca em dez saletas de exposição e dois pares de cor- ness, not only between the works per se but also between the works
redores. Com isso, conseguiu-se transformar o que era um dos mais and the viewer. We don’t only find references to such systems in the
excepcionais espaços de exposição na mais banal galeria de arte que, past. The Dutch architect Piers Gough recently renovated the
para seu regozijo, poderia estar em qualquer parte do mundo. National Portrait Gallery in London and explained his scheme for
www.ggili.com.br

O objetivo aqui, tal como anunciado no website do museu, é “apre- displaying “the paintings on glass walls” as being the result of “direct
sentar à população um novo conceito de organização do segundo influence from Lina’s project for the MASP.”11
andar – moderno, contemporâneo e inédito no Brasil – caracteriza- The interesting thing is that these statements are being used to “puri-
do por painéis totalmente móveis, vitrines e sistema de iluminação fy” and degrade the architecture and exhibition systems planned for
distribuídos de forma a proporcionar não só exposições rotativas de the MASP. On top of that they run counter to statements by other
nosso acervo – com melhores visuais para o visitante – como também, specialists from other museums. Eighty replicas of these same easels,
e principalmente, condições adequadas para o exercício de ativida- banished to the MASP basement, can presently be found in one of
11 8 11
Em carta dirigida ao “MASP”, Jornal da Tarde, In a letter addressed to the
Instituto Lina Bo e P. M. São Paulo, 3 April 2001. Instituto Lina Bo e P. M.
Bardi. 9 Bardi.
Ibid.
10
Van Eyck, Aldo, “A superla-
tive gift (Um dom superlati-
vo)”, Museu de Arte de São
Paulo, Blau and Instituto
Lina Bo e P. M. Bardi,
Lisbon, 1997.
004-021_4-21 introducció.ok 27/02/14 15:50 Página 16

16

des de ensino e atendimento de grupos monitorados, prioridades the major built works by the master of modern architecture, Mies van
estas que ensejam um novo dinamismo na atuação didática do der Rohe: the Crown Hall, no less, the main exhibition area of the
museu”. Illinois Institute of Technology, Chicago. The Rietveld Museum in
Seu modelo de inspiração, declara, é Frank O. Gehry em Bilbao.12 Holland has also asked permission to copy the glass easels from the
Mesmo se distante da excepcionalidade do outro arquiteto, trata de MASP. The same easels the architect-president chose to replace with
criar aqui um lugar para exposições temporárias, onde “o visitante four-meter-high gypsum walls designed by him to divide the exhibi-
sempre encontra uma novidade em sua visita ao museu, por mais fre- tion area into ten little rooms and two sets of corridors. In so doing,
quente que seja”.13 Esta nova e contemporaneíssima concepção arqui- he was able to transform what was an exceptional exhibition space
tetônica e museográfica – que apenas executada já se considera ana- into an ordinary art gallery that, to his delight, could be found any-
crônica – substitui aquela imaginada pelo casal Bardi, cuja atual dire- where in the world!
ção do MASP reconhece e enterra em uma única frase: The intention, as announced on the museum’s website, is “To present
“Revolucionária para sua época”.14 Não apenas o passado é enterra- people with a new organizational concept for the second floor—
do, mas também o presente aqui é engolido e substituído por um modern, contemporary, and unprecedented in Brazil—characterized
cenário provisório, de duração ínfima, a ser consumido na imediatez by completely mobile panels, glass showcases and lighting systems
de seu instante. laid out so as to offer not only rotating exhibitions from our own col-
A atual direção do museu – e talvez não somente ela, pois temo que lection—with improved display facilities for our visitors—but also,
essa ideia seja compartilhada por uma potente minoria capaz de per- and primarily, proper conditions for teaching and for attending to
suadir a grande maioria – apenas concebe o passado como algo já monitored groups, these being priorities that provide the opportuni-
morto a ser literalmente ultrapassado, exatamente como ocorre em ty for a new rationale for the museum.”
uma autoestrada: o passado vai sendo deixado para trás, ficando cada His source of inspiration is, he declares, Frank O. Gehry in Bilbao.12
vez mais distante. Do retrovisor, o motorista vê cada instante insípido Ever far from the exceptional quality of the latter, Neves tries to cre-
do presente escoar às suas costas em direção ao passado, cada vez ate a place for temporary exhibitions in which “visitors will always
menor, até não poder mais ser visto nem reconhecido. Já sem olhar find something new during their visits, however often that may be.”13
para trás, o condutor pisa o acelerador do carro e avança ansioso, em This “new and contemporary” museographic and architectonic con-
alta velocidade, em direção ao futuro. ception of museum architecture—in which the execution alone is
Na contramão desse conceito, estão os cavaletes da pinacoteca do already an anachronism—replaces the one imagined by the Bardi
MASP. Com eles, rompe-se a ideia clássica dos museus – um percurso couple, whom the current MASP management both recognizes and
contínuo linear e unidirecional – tal como o Mundaneum de Le buries in a single phrase: “revolutionary for its time.”14 Not only is the
Corbusier ou o Guggenheim Museum de Frank Lloyd Wright, que past buried—the present, too, is swallowed whole and substituted by
traduzem uma noção de tempo progressivo continuamente amplifi- the briefest of temporary scenarios, something to be instantly con-
cado, onde o edifício e o visitante avançam no decorrer do tempo. sumed.
Lina Bo comprime no interior da arquitetura todo o tempo para ofere- The current management of the museum—and I’m afraid that this
cê-lo como um só instante de duração infinita. Este é o sentimento idea is shared by a forceful minority capable of persuading the vast
que temos ao deparar com a pinacoteca do MASP, ou melhor, com o majority—only understands the past as something dead, literally back
que era a pinacoteca do MASP. there and ever more distant, as happens in the rearview mirror of an
Nessa imensa caixa de luz, os quadros de diferentes épocas e estilos automobile. Without looking back the driver steps on the gas and
flutuavam sem nenhuma espécie de sistematização. Eram apresenta- anxiously advances, at top speed, towards the future.
dos sobre painéis de vidro transparentes apoiados em uma base cúbi- The MASP painting easels stand opposed to this idea. With them the
ca de concreto. Para Lina Bo, os quadros deveriam “retornar ao ar”, classic museum concept—a linear, continuous and one-way high-
isto é, ao cavalete, ao momento em que ainda estavam sendo pinta- way—is disrupted. Like Le Corbusier’s Mundaneum or Frank Lloyd
dos. Com tal atitude, ela promovia uma dupla subversão da ideia de Wright’s Guggenheim, they translate an idea of progressive time that
progresso, seja porque introduzia a noção de reversibilidade do is continually amplified, in which building, visitor and time advance
tempo, seja porque, com ela, restabelecia o momento criativo, de as one. Inside the architecture Lina Bo Bardi compresses all of time,
quando o quadro ainda se encontrava cara a cara e em pleno diálo- offering it in an instant that lasts forever. This is the feeling we used
go com o pintor. A meta aqui é de reter o tempo naquele instante to get when visiting the MASP exhibition hall.
ativo para repropô-lo ao visitante, que com a sua presença voltará a In this immense light box, paintings from various periods and in dif-
dialogar e dar vida ao quadro. Suspensos nos cavaletes de vidro, os ferent styles floated free of any kind of system. They were displayed
quadros deixavam as paredes para virem procurar a companhia do on transparent glass panels set on a cubic concrete base. According
www.ggili.com.br

público. Misturavam-se ao público e, por transparência, víamos uma to Lina Bo Bardi, the paintings should “return to the air,” namely to
fusão e superposição de acontecimentos. Aqui quadros e visitantes the easel, to the time they were still being painted. With this attitude
estavam libertos de todas balizas de épocas e de leituras pré-definidas. she promoted a twin subversion of the idea of progress, whether
Essa concepção é diametralmente oposta ao modelo atual previsto because it introduced the notion of time’s reversibility or because it
para atender “grupos monitorados”. Lina Bo não concebe o ensino reinstated the creative moment, when the painting was face to face
como instrução de uma massa teleguiada, mas como cultivo da livre and in deep dialogue with the author. The idea was to hold back time
descoberta do indivíduo. E nisso coincide com o revolucionário pro- in the active instant in order to offer it again to the visitors, so that
12 12
Declaração em: Medeiros, Julio Neves in Medeiros,
Jotabê. Op. cit. Jotabê, “MASP soterra espe-
13 lhos d’água e acende polêmi-
“Histórico”. MASP
masp.art.br/sobreomasp/ ca”, O Estado de São Paulo
historico.php. Acesso em: 13 [Caderno 2], São Paulo,
dez. 2013. 2 July 2001.
13
14
Ibidem. See the MASP webpage:
<masp.art.br/sobreomasp/
historico.php>.
14
Ibid.
004-021_4-21 introducció.ok 27/02/14 15:50 Página 17

Acerca de Lina Bo Bardi Concerning Lina Bo Bardi


17

cesso de educação proposto por Paulo Freire, cuja raiz residia na their presence would reestablish a dialogue with the painting and
“conscientização”, invertendo o processo tradicional do aprendizado. imbue it with life. Suspended on glass easels, the paintings would quit
Como em um baile, o visitante é livre para escolher com que quadro the walls and seek the public’s company. They would mix with the
vai iniciar a dança. Há uma impressionante sintonia com os objetos public, and via transparency the latter would witness the fusion and
suprassensíveis de Hélio Oiticica e Lygia Clark, dois artistas que no superposition of events. Here, paintings and visitors were freed from
Brasil proporão, na mesma época, novas formas de sensibilizar o all signs of period and from any pre-established reading.
espectador, solicitando sua participação na obra e criando objetos de Such an idea is diametrically opposed to the current model, which is
arte que incitam ao tato e ao jogo. supposed to serve “monitored groups.” Lina Bo Bardo didn’t envi-
A obra de arte não se oferece ao espectador como representação, mas sion education as the instruction of a guided mass, but as the cultiva-
como presença, daí o estranhamento que se sente ao estar em meio tion of the free discovery of the individual. This coincides with the
a estes quadros: “Como posso me movimentar entre tantos cavale- revolutionary pedagogy proposed by Paulo Freire, whose roots pene-
tes?”15 Diante desses cavaletes de vidro, qualquer um sente-se obriga- trate “consciousness,” inverting the traditional process of learning. As
do a confrontar o passado e o presente, a ver os quadros, a escutá-los in a dance, the visitor is free to choose which painting he or she will
e a recriá-los. E essa noção de presença tem pouco a ver com a de start “dancing” with. There is a striking similarity, here, to the “supra-
espetáculo, que vincula o espectador a contemplar obediente, auto- sensitive” objects of Hélio Oiticica and Lygia Clark, two artists who
mática e passivamente o que lhe é exposto diante dos olhos. O pre- were in Brazil during that period, objects suggesting new ways of
sente vivo contrapõe-se a este modelo de presente agora convertido touching the spectator, inviting his or her participation in the art-
em uma pausa inconsistente e desvitalizada. work and creating art objects which call for touching and interaction.
Essa forma de expor encontra ecos na Surrealist Gallery, de Frederick The artwork is not offered to the spectator as a representation but as
Kiesler, e também em seu conceito de tempo, “um todo unificado, a presence, whence the strangeness experienced when one is among
que tal como um punho fechado, é pronto a cada instante, ao se these paintings: “How can I move among so many easels?”15 In front
abrir, a liberar a energia necessária”, um tempo retido e comprimido, of these glass easels one feels the obligation to confront the past and
mas não estático; apenas suspenso e pronto a colocar-se em movi- the present, to see the paintings, to listen to them and to recreate
mento com a vida que as pessoas lhe aportam. É uma atitude contrá- them. This idea of presence has little to do with the kind of spectacle
ria a de Frank O. Gehry, no Museo Guggenheim de Bilbao,16 conce- that obliges spectators to compliantly, automatically and passively
bido como um sistema autossuficiente que funciona por si mesmo, contemplate what is in front of their eyes. The living present is
sem a necessidade do homem, estabelecendo-se ali como uma colo- opposed to this model of a present converted into a series of incon-
nização apartada do lugar ou do existente. sistent and lifeless pauses.
Os diretores do MASP não têm sido capazes nem de ver nem de acei- This kind of show finds its echo in Frederick Kiesler’s Surrealist
tar que os cavaletes e o edifício são tão importantes quanto os qua- Gallery, and also in his definition of time as “a unified whole, which
dros neles expostos. Sou contra a ideia bastante difundida de que “o like a closed fist is instantly ready, in opening, to disburse the neces-
suporte de um quadro não pode ter a mesma importância que a obra sary energy,” a time confined and compressed but not static, merely
de arte”. E com isso não estou defendendo a obra de Lina Bo Bardi suspended and ready to move with the life people bring to it. This is
enquanto marca de identificação pessoal e intransferível, o que seria an attitude at odds with Frank O. Gehry’s Guggenheim Museum in
anacrônico de minha parte. O que não compartilho é a visão forma- Bilbao,16 envisioned as a self-sufficient, colonizing system that func-
lista e mercantil das coisas implícita nessa afirmação. Tal visão apenas tions by itself, without the need for human presence.
ganha sentido se reduzirmos a comparação entre quadro e suporte a The management of the MASP is incapable of seeing and accepting
um aspecto puramente formal – suporte impõe uma agressão visual that these easels and this building are as important as the paintings
frente aos quadros – ou a uma questão de valor de mercado – supor- displayed on them in it. I’m against the well-worn idea that “the
te é mais caro que o quadro. Obviamente os cavaletes de vidro do mounting of a painting can never be as important as the painting
MASP não se encaixam em nenhum dos dois casos: são transparentes itself.” I’m not defending Lina Bo Bardi’s work as a sign of unchang-
justamente para passarem desapercebidos ao lado do quadro e cons- ing personal identification—that would be an anachronism on my
truídos com materiais e técnicas simples e baratas. part. What I don’t agree with is the formalist and mercantilist vision
Os cavaletes são importantes não por sua aparência formal, mas por implied in this statement. The latter can only make sense if we reduce
abrirem uma nova maneira de relacionar visitantes e quadros. Pois tal the comparison between painting and mounting to an entirely for-
como na obra dos mestres da arquitetura moderna e das primeiras mal question—mounting equals visual aggression towards the paint-
vanguardas, a ruptura formal aqui apoia-se na superação da percep- ings—or to a question of market values: mounting is more expensive
ção habitual e rotineira do espectador e jamais em um formalismo than the painting. Obviously the glass easels of the MASP don’t fit
www.ggili.com.br

inconsequente. either case: they are transparent in order not to be noticed alongside
Fica claro que o que está dissimulado por trás de um vaivém de acusa- the painting; and they are built with simple and inexpensive mater-
ções são modelos expositivos distintos e, sobretudo, concepções ideo- ials and techniques.
lógicas diametralmente opostas. As declarações dadas pela direção do Not only are the easels important for their formal appearance, but
museu deixam transparentes por onde passam seus reais interesses: because they also suggest a new way for visitors to relate to the paint-
“As pessoas precisam entender que a utilização do suporte de vidro ings. As in the work of the masters of modern architecture and the
nos obriga a ter um par para cada obra, o que limita o número de first avant-gardes, formal rupture is substantiated by overcoming the
15 todas as características que 15 to identify all the characteris-
Declaração de Júlio Neves Statement made by Júlio
em: Pavão, Jadyr. “MASP distinguem a arquitetura do Neves. Pavão, Jadyr, “MASP tics that distinguish the archi-
rejeita tombamento de cava- espetáculo em: “Miscelánea rejeita o tombamento de tecture from the spectacle in
letes”. Valor. São Paulo, 4 fev. de opiniones ajenas y prejui- cavaletes”, Valor, São Paulo, “Miscellany of others’ opi-
2000. cios propios, acerca del 4 February 2000. nions and own prejudices
16
Josep Quetglas já explicou Mundo, el Demonio y la 16
Josep Quetglas has already about the World, the Devil
de que formas uma obra Arquitectura”. El Croquis, n. explained how an artwork and Architecture”, El Croquis,
como o Museo Guggenheim 92. Madrid, 1998. like the Guggenheim n. 92, Madrid, 1998.
em Bilbao permite identificar Museum in Bilbao allows one
004-021_4-21 introducció.ok 27/02/14 15:50 Página 18

18

quadros expostos. Com a atual concepção, basta trocar a peça pen-


durada na parede e temos maior flexibilidade. Poderemos, durante
um ano, num sistema de rodízio, mostrar até mil obras do acervo.
Não sendo escravos dos vidros, não preciso exibir apenas 200 o ano
inteiro.17
Exposições de artistas famosos atraem o público. Mesmo sem conhe-
cer a obra do pintor, as pessoas vêm ao museu”.18
As obras de arte são aqui tratadas como se fossem carne em espetos
a serem servidas num “rodízio”, o mais rápido possível ao maior
número de pessoas possível. Evidentemente, nem a arquitetura, nem
a arte nem muito menos os visitantes – generalizados e diluídos numa
massa uniforme e acrítica – são protagonistas nesse gênero de museu.
Aqui os argumentos que precedem qualquer ação resumem-se a uma
questão quantitativa. A lista de parceiros e patronos dessa chamada
“revitalização do MASP” fala por si só: é inteiramente constituída por
bancos, grandes grupos financeiros, redes de supermercados e shopping
centers.19 Nesse ambiente, arquitetura e obra de arte não passam de
mercadorias e decoração. Vincent van Gogh, Amadeo Modigliani e
Camille Corot são oferecidos no site do museu como “brindes” para
servirem de wallpaper – arte para decorar a tela de computadores, da
mesma forma em que o próprio museu, ali representado por duas
significativas perspectivas: uma no mais alto estilo promocional – que
não se distingue daquelas utilizadas pelos empreendedores para ven-
der o último lançamento no mercado imobiliário – e outra, onde um
rápido e certeiro “efeito gráfico” borra literalmente o edifício.
Aqui, arquiteto e obra estão sempre subordinados a decisões e nor-
mas impostas por outrem.
Isso que hoje parece natural é estritamente o contrário do modo de
proceder tanto de Lina Bo Bardi como dos grandes mestres da arqui-
tetura moderna, que sempre precederam o mercado. Na entrevista
transcrita nesta publicação, Lina Bo Bardi conta como convenceu
todo o seu entorno – dos amigos ao esposo, do engenheiro à muni-
cipalidade – a construir o MASP tal como ele é. Esses arquitetos
tinham a capacidade de encomendar a si mesmos os projetos para
produzir como resultado não somente a arquitetura, mas também o
próprio cliente, que então era capaz de compreender, necessitar e
encomendar aquele projeto. Dessa forma, tais modos de arquitetura
eram capazes de abrir aos usos possibilidades inesperadas. Pois na
arquitetura moderna, o estimulante não era a forma em si, mas a
novidade de usos que esta permitia e estimulava. E os usos permitiam
a ação das pessoas.20

O MAM, Museu de Arte Moderna – situado sob a magnífica marqui-


se do Parque Ibirapuera, projetada no início da década de 1950 pela
equipe formada por Oscar Niemeyer, Zenon Lotufo, Hélio Uchôa,
Eduardo Kneese de Mello, Gauss Estelita e Carlos Lemos –, assim
como o Museu de Arte Moderna da Bahia, fundado pela própria Lina
www.ggili.com.br

Bo Bardi em 1960 e instalado desde 1963 no Solar do Unhão após ser


restaurado pela arquiteta, passaram por reformas para “adaptar-se ao
ar dos tempos”.
Uma das mais alucinantes transformações é o cordão de isolamento
criado pelos painéis de madeira pintados de branco colocados em
todo o perímetro interior do edifício do Solar do Unhão. A instala-
ção provisoriamente definitiva impossibilita o acesso às janelas exis-
17
Declaração de Júlio Neves “Um legado de Museu de Arte Moderna Escada do Solar do
em: Ribeiro, Marili. “MASP Chateaubriand ao Brasil”. de São Paulo sob a Unhão.
mostra polêmica sobre como Estado de Minas. Belo marquise do Parque The Solar do Unhão
exibir arte”. Jornal do Brasil. Horizonte, 3 abr. 1997. Ibirapuera. staircase.
Rio de Janeiro, 27 nov. 1998. 19
A lista completa pode ser São Paulo Museum of
18
A afirmativa é de Fernando conferida no site do museu: Modern Art under the © Nelson Kon
Pinho, gerente administrativo <www.masp.art.br> Ibirapuera Park canopy.
20
do MASP. Assef, Claudia. Quetglas, Josep. Op. cit.
© Olivia de Oliveira
004-021_4-21 introducció.ok 27/02/14 15:50 Página 19

Acerca de Lina Bo Bardi Concerning Lina Bo Bardi


19

tentes e consequentemente priva o espaço tanto da entrada de luz spectator’s perceptual habits and never by an inconsequential for-
natural como da esplêndida vista sobre a Bahia de Todos os Santos. malism. It is clear that what is hidden behind the mutual accusations
Indagado sobre o porquê da reforma, o responsável pelo museu nos are distinct exhibition models, and above all diametrically opposed
explica: “É que Lina tinha pensado este lugar como um museu de ideological beliefs. Statements made by the museum’s management
arte popular”. team show where their real interests lie: “The public needs to under-
Sem entrar na questão do tom depreciativo usado para falar da arte stand that the use of the glass mounting obliged us to have one for
popular – a arte dos despossuídos, de seres humanos que agonizam each artwork, thus limiting the number of paintings displayed. With
como cultura e muitas vezes também como grupo ou nação étnica –, the current system we have more flexibility in merely changing the
separar arte popular de arte erudita é conceber a segunda como picture hanging on the wall. Using a rotational system, this allows us
única e dominante. to show up to a thousand works from our collection in the course of
As arquiteturas de Lina Bo Bardi não detêm lugares “exclusivos”. a year. By not being a slave to the glass mounts, I don’t need to limit
Nada, ninguém é excluído dessas construções, sempre aptas à mistu- the museum to showing only 200 works per year.”17 Or: “Exhibitions
rar velho e novo, arte popular e arte erudita, intelectuais e analfabe- of famous artists attract the public. Even without knowing the work of
tos, pobres e ricos, adultos e crianças, negros e brancos, o passado e the painter, people will go to the museum.”18
o presente. Nessas arquiteturas está se realizando a síntese original e The artwork is treated as if it were a hamburger in a fast-food joint.
revolucionária entre mundos que nossos “homens de cultura” fazem Neither the architecture nor the art, and even less the visitors—gen-
questão de manter fracionado. E, infelizmente, eles são muitos e eralized and diluted into a uniform, uncritical mass—are the main
encontram-se espalhados pelos principais postos de decisão. Em um protagonists in this sort of museum. Quantity is the final arbiter here.
artigo,21 o filósofo Eduardo Subirats detecta e repudia esse mesmo The list of partners and patrons of the so-called “revitalization of the
tipo de discriminação pela arte popular na Bienal de São Paulo de MASP” speaks for itself: it consists entirely of banks, big financial
2002, recordando que dar as costas à arte popular é esquecer não groups, supermarket chains and shopping centers.19 In such an envi-
apenas que a modernidade artística e literária brasileira foi gerada ronment both the architecture and the art are nothing more than
por essa mesma arte, mas também esquecer o papel central da vin- merchandising and decorativeness. Van Gogh, Modigliani and Corot
culação entre o popular e o erudito nas manifestações mais inovado- are offered on the museum’s website as a gift that can be used as wall-
ras das primeiras vanguardas europeias. paper: art to decorate your computer screen with. This is in perfect
É justamente com essas vanguardas – da antropofagia ao surrealismo – agreement with the two ways the museum is represented: one in the
que a obra de Lina Bo Bardi tece uma importante correlação. Lina promotional style—barely distinguished from that used by entrepre-
faz parte de uma geração que considera o Surrealismo como o últi- neurs when selling real estate—and the other where a quick and eye-
mo grande movimento artístico-ético. O Surrealismo procurou supe- catching “graphic effect” literally smears the building.
rar toda a contradição entre lógico e ilógico, entre sonho e razão, Here the architect and the artwork are always subordinate to the
entre realidade e imaginação ou desejo, liberando o inconsciente e, norms and decisions imposed by others. What today seems normal is
ao mesmo tempo, domando a razão. Assim, liberava-se da crença in fact exactly the opposite of Lina Bo Bardi’s methods and those of
ideologicamente etnocêntrica e burguesa que distingue e opõe other great figures in modern architecture, who always anticipated
razão-desvario, dia-noite, sonho-vigília, arte erudita-arte popular, pas- the market. In the interview transcript Lina Bo Bardi tells how she
sado-presente, etc. Lina Bo Bardi fala de “síntese”, de uma “revisão convinced her community—from her friends to her husband, from
dos valores humanos contra a destruição”. Seus textos, bem como sua the engineer to the city itself—to build the MASP the way it is. These
obra inteira, estão carregados de um sentido táctil e tático, solidário architects had the ability to develop the project themselves in order
e harmônico implícito do gesto ético e poético de re-ligare, também to produce not just architecture but also the need for the client to
procurado por André Breton no segundo manifesto do Surrealismo. understand and define it himself. In this way the architecture was
“Eu nunca esqueço o surrealismo do povo brasileiro, suas invenções, open to unsuspected uses and possibilities. What was stimulating
seu prazer em ficar todos juntos, de dançar, cantar. Assim, dediquei about modern architecture wasn’t just the form but the new uses this
meu trabalho da Pompeia aos jovens, às crianças, à terceira idade: form encouraged. And these uses allowed for individual interven-
todos juntos”.22 tion.20
Essa capacidade de mesclar-se está diretamente ligada à capacidade
de escuta ao outro, de abertura ao indeterminado e ao azar, no sen- Both the Modern Art Museum (MAM)—located beneath the mag-
tido utilizado por John Cage, ao que surpreende sem necessidade de nificent Ibirapuera Park canopy, designed in the early 50s by Oscar
apelo ao espetáculo. E o espetáculo das megaexposições é exata- Niemeyer, Zenon Lotufo, Hélio Uchôa, Eduardo Kneese de Mello,
mente o que se visa com as renovações impostas a esses museus. Gauss Estelita and Carlos Lemos—as well as the Bahia Modern Art
www.ggili.com.br

Como prato requentado, o espetáculo é algo sempre preparado de Museum (MAMB), founded by Lina Bo Bardi in 1960 and installed
antemão, previsto em todos seus detalhes e em todo seu modo de since 1963 in Solar do Unhão (after being restored by the architect
funcionar; ele está apenas à espera de ser consumido pelo eterno herself), have had to submit to renovation in order to “adapt to the
espectador. Ora, nos museus de Lina Bo Bardi – assim como em seus spirit of the times.”
teatros e finalmente em toda sua obra –, não há lugar para espetáculos One of the more bizarre changes has been the barrier created by
e, por conseguinte, tampouco há lugar para espectadores, para este white-painted wooden panels placed around the entire internal
ser passivo. Suas arquiteturas “são organismos aptos à vida” e nelas as perimeter of the Solar do Unhão building. This temporary, but in
21 22 17 18 19
Subirats, Eduardo. “O Bo Bardi, Lina. “Na Remark made by Julio This remark is from The complete list can be
popular e o pós-vanguardista Pompeia. O bloco esportivo”. Neves, MASP President. Fernando Pinho, administra- seen on the museum website:
(ou como é gostoso o meu Casa Vogue, p. 134. São Paulo, Ribeiro, Marili, “MASP mos- tive manager of the MASP. <www.masp.art.br>.
francês). Uma crônica da nov.-dez. 1986. Os grifos são tra polêmica sobre como exi- Assef, Claudi, “Um legado de 20
Quetglas, Josep, op. cit.
XXV Bienal de São Paulo”. da própria Lina. bir arte”, Jornal do Brasil, Rio Assis Chateaubriand ao
Disponível em: de Janeiro, 27 November Brasil”, Estado de Minas,
<www.vitruvius.com.br>. 1998. Minas Gerais, 3 April 1997.
Acesso em: 13 dez. 2013.
004-021_4-21 introducció.ok 27/02/14 15:50 Página 20

20

pessoas são tratadas como “atores”, isto é, seres que detêm o poder fact definitive, solution renders accessibility to the existing windows
de decisão e de transformação do existente. impossible, thus depriving the room of both natural sunlight and the
É fácil imaginar quanto estes lugares chegam a incomodar aos que splendid view of the Todos os Santos Bay. Asked about the reason for
não suportam misturar-se nesse tipo de “promiscuidade”. Por isso, é this renovation, a museum spokesperson explained: “Lina had con-
necessário isolar-se, criar um envoltório neutro em torno de si, impe- ceived the place as a folk museum...” Without getting into the issue
dir o incômodo em seus mínimos detalhes: nem por artes populares, of the degrading tone subtending this remark about folk art—the art
nem por cavaletes, nem pelos caprichos do tempo, nem por janelas, of the deprived, of human beings who struggle individually and often
nem pela desagradável luz do sol, nem pelos sons, nem pelo salitre as a group or ethnicity—, the very fact of separating folk from
do mar, nem por seus odores... Livre de tudo, poderiam então, final- “refined art” involves valorizing the latter as the single, dominant
mente, estar em condições de apreciar a “obra de arte”, agora “prote- form.
gida” e “preservada”, para não dizer mumificada, nesse lugar insípido Lina Bo Bardi’s architecture doesn’t set out to define an “exclusive”
e totalmente mortificado; ou em palavras de Lina: em “um túmulo place. Nothing and nobody is excluded from these buildings—she
para múmias ilustres”. was always ready to mix the old with the new, popular and refined art,
intellectuals and illiterates, rich and poor, adults and children, blacks
Resta ainda algo a comentar a respeito do formato desta revista. and whites, past and present. In this architecture the original and rev-
Confrontados com a extensão e diversidade da obra de Lina Bo olutionary synthesis of different worlds has come about, yet our “cul-
Bardi, que abrange da cenografia ao design de móveis, joias e figuri- tural representatives” would like to see this synthesis shattered. They
nos, optamos por reunir aqui toda a obra arquitetônica construída. are numerous, alas, and occupy the main decision-making posts. In a
Alguns desses edifícios já não existem. Uns, porque foram demolidos, recent article21 the philosopher Eduardo Subirats rejected the dis-
caso da casa do Chame-Chame e do Belvedere da Sé, em Salvador. crimination shown towards popular art in the 2002 São Paulo
Outros encontram-se bastante modificados, a exemplo do MAM ou do Biennial of Art, arguing that to turn one’s back on folk art is not only
Centro de Convivência LBA em Cananeia. Por uma questão de espa- to forget that Brazilian modern art, both literary and visual, was gen-
ço, não foi possível publicar aqui alguns desses casos. Com a decisão erated by this same folk art, but also means forgetting the central role
de potenciar a obra construída, pensamos que seria oportuno ter, ao that the conjunction of the popular and the refined played in the
lado da nova reportagem fotográfica realizada, um conjunto de dese- innovative output of the first European avant-gardes.
nhos técnicos que ajudassem à compreensão dos espaços e que ao And it is precisely these avant-gardes—from the anthropophagous to
mesmo tempo permitissem ao leitor percorrer estas obras despeda- Surrealism—that Lina Bo Bardi’s work correlates with. Lina was a
çadas, modificadas e ameaçadas de desaparecer. Os desenhos agora part of a generation that considered Surrealism to be the last great
apresentados foram completados, retrabalhados ou mesmo total- ethico-artistic movement. Surrealism attempted to overcome the con-
mente refeitos, com base em diversos tipos de materiais e na infor- tradiction between logic and illogicality, dream and reason, reality
mação existente. Como sabemos, Lina sempre preferiu as aquarelas and imagination (or desire), liberating the unconscious and at the
e os croquis a cores, sem sombra de dúvidas, muito mais expressivos same time defining the limits of reason. It subverted the ethnocen-
do que qualquer um destes desenhos que ela chamaria de “lingua- tric, bourgeois ideological belief that distinguishes and opposes rea-
gem cifrada”. A própria Lina nunca se interessou em publicar sua son/delirium, day/night, dream/waking, refined art/popular art,
obra, tal como declarou-me na entrevista aqui transcrita. Entretanto, past/present, etc. Lina Bo Bardi spoke of “syntheses,” of “a re-vision-
nossa intenção com os desenhos é realizar um trabalho produtivo, ing of human values in the face of destruction.” Her writings as well
não arqueológico; um trabalho que nos permita observar a obra com as her built works are full of tactile and tactical meaning, replete with
atenção e cuidado, mas sem passividade; redesenhá-la para encará-la the ethical and poetic aspiration to holistic experience called for by
tal como é: aberta e indeterminada. Somos conscientes do risco que Breton in the Second Manifesto of Surrealism. “I find it impossible to for-
corremos em cometer equívocos. Em todo caso, queremos lembrar get the innate Surrealism of the Brazilian people,” she wrote, “its
que essas arquiteturas, enquanto “organismos aptos à vida”, estão inventions, its pleasure in being together, in dancing, in singing.
sempre reclamando presença. Nesse sentido, lançamos o convite ao Thus it was that I dedicated my work in Pompeia to the teenagers, the
leitor a vir ele mesmo percorrer e experimentar in situ essas obras, que kids and the old folk, all together.”22
mesmo quando bastante maltratadas, permanecem intactas em sua This ability to intermingle things is directly connected to the ability
imensa carga vital e expressiva e em seu maravilhoso poder sugestivo. to listen to the other, to open oneself to indeterminacy and to
chance, in the way John Cage understood it; to what causes surprise,
without the need for show. And the show of the mega-exhibition is
precisely the goal of the renovations imposed on these museums.
www.ggili.com.br

Like a warmed-over dish, the show is something prepared before-


hand, foreseen in every detail. And in its modus operandi, the show is
just waiting to be consumed by the eternal spectator. In Lina Bo Bardi’s
museums, however—as well in her theater designs and finally in all
her work—there is no place for spectacle and hence no place for
spectators, the passive kind, anyway. Her architectures “are organisms
suited to life” and in them people are treated as “actors,” meaning
21 22
Published in Spanish and Bo Bardi, Lina, “Na
Portuguese on the Vitruvius Pompeia. O bloco Esportivo”,
website under the title “O Casa Vogue, November-
popular e o pós-vanguardista December 1986, p. 134.
[ou como é gostoso o meu The italics are Lina’s.
francês]”. Uma crônica da 25
Bienal de São Paulo”,
<www.vitruvius.com.br>.
004-021_4-21 introducció.ok 27/02/14 15:50 Página 21

Acerca de Lina Bo Bardi Concerning Lina Bo Bardi


21

beings who have the power to decide about and change what exists.
It is easy to imagine how much these places must bother people who
can’t abide such “promiscuity.” Because of this, it is necessary to iso-
late oneself, to wrap oneself in cling-film, to avoid being molested by
minor details: by folk art, by easels, by the strangeness of time, by win-
dows, by unpleasant sunlight, by sounds, by neither the salty tang of
the sea, nor its smell… Once free of all this, one can finally apprec-
iate the “artwork,” now “protected” and “preserved,” not to say
embalmed, in this tastelessly, totally modified place. In Lina’s words: in
“a grave for renowned mummies.”

There is one further comment to be made about the format of this


magazine. Confronted by the volume and diversity of Lina Bo Bardi’s
work, which also embraces set-design and furniture design, jewelry
and clothing, we have opted to bring together all her built architec-
tural work here. Some of these buildings have been demolished; this
is the case with the Chame-Chame House or the Belvedere da Sé in
Salvador. Others have been highly modified: the São Paulo MAM or
the LBA Community Center in Cananeia, for instance. Based on the
decision to increase the potential of the built work, we thought it
would be a good idea to place, alongside the newly shot photo-essay,
a collection of technical drawings that help one understand the
spaces and allow the reader to “tour” these depleted, modified and
threatened works. The drawings shown here have been completed,
reworked or sometimes redrawn, based on various kinds of material
and the extant information. As we know, Lina Bo Bardi always pre-
ferred watercolor and crayon sketches, because they were much more
expressive than any of the types of drawing she called “coded lan-
guage.” Lina was never interested in publishing her own work, as she
told me in the interview transcribed here. Our aim in publishing
these drawings is to arrive at a productive study, not an archeological
one, a study that allows us to observe the work with attention and
care, but without passiveness; to redraw it in order to face it the way
it is: both open and indeterminate. We are aware of the risk of mak-
ing mistakes. As it is, we would like to remember that these architec-
tures, while “organisms fit for life,” are consistently making a claim
for life’s very presence. In that sense, we invite the reader to visit and
experience these works in situ, works that, even if grossly mistreated,
are unsullied in their tremendous élan vital and in their wonderful
suggestive power.
www.ggili.com.br

Casa do Chame-Chame,
1976.
Chame-Chame House,
1976.

© Rubem Nogueira Filho


022-041_22-41 Casa de vidrio.ok 27/02/14 15:55 Página 22

22

Casa de Vidro, 1. Casa de Vidro.


House of Glass.
2. Estúdio Bo Bardi.
São Paulo Bo Bardi studio.
3. MoradiaN do porteiro.

House of Glass, V
IE
L
A
Porter’s accomodation.
4. Tanque. Pond.
5. Caminhos do jardim.
São Paulo 4
Garden paths.
6. Garagem. Garage.

1950-1951
RU
AG
3

EN
ER
AL
AL

RIO
DE
MO
UR
A
2

POR
TO
1
4

ES
AR
SO
5

IO
PA
AM
ES
NT
IRA
RUA GE

DE
NERAL
ALMÉRIO

AN
DE MO
URA

AB
RU
N 0 2 5 10 20 m

Residência do casal Bardi, esta primeira obra craniana, isto é, dentro de uma intenção racional proprietárias de casinhas simples com alegres
construída pela arquiteta apresenta uma impor- e sensorial. Por isso, quanto mais penetramos quintais”. Mas é preciso desconfiar desse nome
tante afinidade com a obra dos mestres essas arquiteturas, mais compreendemos o que se tornou a marca registrada da casa.
modernos. Sem reproduzir os modelos por mecanismo de funcionamento daquilo que nos Não dá a chance de ver a outra parte da casa:
eles propagados, Lina Bo Bardi já realiza uma cerca. Ao franquear a porta de entrada, o olhar a parte não cristalina, construída com tijolo e
leitura apurada, atualizada e singular de suas coincide com a árvore situada no centro do técnica tradicional.
obras. A sua percepção é sensual e minuciosa. pátio interior, como se estivesse em uma casa Na realidade, poderíamos dizer que esta casa
Ao observá-las e descrevê-las, ela acentua construída sobre uma árvore. Essa sensação é híbrida – e esta afirmação será cada vez mais
sobretudo as sensações que o visitante deve- aérea é reforçada pelo revestimento do piso, validada ao observar o conjunto de sua obra –,
ria ter ao adentrar estas arquiteturas. Essa em ladrilho de vidro azul turquesa, uma refe- que procura reunir a arquitetura moderna à
preocupação estará claramente presente na rência à cor celeste, mas também à cor dos arquitetura tradicional vernácula; à frente abri-
Casa de Vidro, onde o visitante é conduzido lagos, rios e mares. Ao entrar nesta casa tem-se ga a parte social e atrás, a parte íntima. Nos
ao seu interior por meio de um percurso preciso a impressão de estar fora. Desde o primeiro seus primeiros estudos, Lina havia imaginado
e controlado, que acentua a relação da casa instante, o olhar é dirigido ao exterior e ao essas duas partes da casa unidas em um só
com o exterior. A casa tanto acolhe em si o “público”: primeiro a árvore do pátio central; corpo. O fato de lhes destacar em dois blocos,
exterior como, ao longo do percurso, apresen- logo, os salões, a vegetação que rodea a casa
www.ggili.com.br

ta-nos esse exterior para que cada vez mais e a vista ao longe da cidade de São Paulo.
nos aproximemos dele e o compreendamos. Enquanto isso, à sua direita, uma parede branca
O acesso dá-se pela parte de baixo da casa, e cega encarrega-se de proteger discretamente
em um “jardim coberto”, um abrigo de carro toda a parte íntima da casa. Com ela, Lina Bo
que acolhe e protege sem enclausurar. Bardi garante a necessária privacidade, adian-
A partir daí o visitante é induzido a subir o pri- tando uma preocupação com a vida cotidiana
meiro lance da escada, atingindo um patamar travada nos espaços íntimos da casa, como
que o coloca de frente à paisagem. Ainda no anos mais tarde proporá Peter Smithson,1 ao
exterior, esse patamar anuncia a sensação que comparar as portas de um armário com as
será revivida em seguida no grande salão da fachadas de uma casa. Essa parede é a verda-
casa. Exterior que se faz interior. Estamos deira fachada desta casa-armário.
muito próximos da ideia lecorbusierana, de “Casa de Vidro” é o apelido que recebeu dos
“o exterior é sempre um interior”. O exterior só moradores do bairro, quando este ainda era
existe quando captado, percebido, pensado. um bairro popular, habitado, segundo a arqui-
A paisagem só existe dentro da nossa esfera teta, por “pessoas humildes e pobres, mas
022-041_22-41 Casa de vidrio.ok 27/02/14 15:55 Página 23

www.ggili.com.br 23

< criando um pátio entre eles, enfatiza a polaridade Esse vidro forma volume, é película transpa-
Vista na década
de 1950.
existente, que aqui se busca eliminar. Em vez rente sobre a qual a natureza imprime suas
View, 1950s. de dois blocos em oposição, deveríamos com- marcas. Ele é um elemento captador do entor-
preendê-los como dois corpos em atração. no que por sua vez projeta seus reflexos sobre
© Chico Albuquerque.
Cortesía/Courtesy Ricardo E mais: o vidro aqui já não tem o sentido estri- a casa. É esse aspecto efêmero, mutante,
Albuquerque to de transparência liberadora cobrado na ambíguo do vidro, que interessa à Lina. A casa
década de 1920, que legitimava também um permanece camuflada em meio à natureza,
caráter inquisitivo e terrificante, enquanto pas- da mesma forma que ocorre com os pilares
1
Smithson, Peter. “In Praire sível de ser utilizado como instrumento de delgadíssimos, de apenas 17 cm de diâmetro,
of Cupboard Doors”. ILAUD
– International Laboratory of
vigia, delação e punição. Transparentes são pintados de um cinza esverdeado para
Architecture and Urban Design: apenas as partes sociais da casa. Toda a parte misturarem-se mais facilmente à vegetação.
Signus and Insights, pp. 40- íntima está protegida dos olhares indesejados, É como se a casa estivesse sido concebida
41. Urbino, 1979.
assumindo uma forma muito mais próxima à para desaparecer. Efetivamente, com o passar
casinha modesta e ao pudor não exibicionista dos anos, a casa vai perdendo importância em
da gente simples. relação ao entorno, à natureza, aos objetos
022-041_22-41 Casa de vidrio.ok 27/02/14 15:55 Página 24

24

que acumula e à vida que ali se desenvolve. and protects without cloistering. From there everyday life that occurs in the private spaces
Casa a meio caminho: metade transparente, the visitor is invited to climb a set of stairs to of the house, just as Peter Smithson1 would
metade opaca; metade pública, metade priva- reach a landing that positions him or her in propose years later, when he compared cup-
da; metade moderna, metade tradicional; front of a landscape. Still outside, this landing board doors to the facades of a house. This
metade aérea, metade aquática; metade announces the sensation that will be revived in wall is truly the facade of this cupboard-house.
apoiada sobre o terreno, metade sobre pilotis. the main lounge: the exterior becomes interior. The “Casa de Vidro” (House of Glass) is a
Casa frágil, provisória, pronta para se destacar We are very close to Le Corbusier’s idea that nickname given by the local people, when
e partir. Casa-armário ou casa-mochila, onde “the outside is always an inside.” The exterior according to the architect it was still a popular
se guardam as coisas essenciais à vida. Não only exists when arrested, registered and barrio inhabited by “humble and poor people
esqueçamos que Lina e Pietro eram emigrados. thought through. The landscape only exists who owned their simple houses with their
inside our brain; namely, within a sentient, cheerful backyards.” One must be wary of a
This, the Bardi residence, is the architect’s first rational intent. The more we penetrate into nickname that became the house’s hallmark,
built work and displays a close affinity with the these architectures, then, the more we are able since it doesn’t apply to the other part of the
works of the modern masters. Without repro- to understand the workings of what surrounds building, which is not transparent at all, being
ducing the models popularized by them, Lina us. As we pass through the front door, we see constructed with bricks and by using tradition-
Bo Bardi reads these works in a refined, con- a tree in the center of the internal patio, and it al techniques.
temporary and singular way. Her perception is feels like the house was built on top of a tree. We could say, in fact, that this house is a
sensual and detailed. While observing and This sensation is reinforced by the floor cover- hybrid—this statement will become increasingly
describing them, she especially stresses the ing of turquoise vitreous tiles, a reference to valid as we observe the totality of her works—
sensations the visitor would have when enter- the sky as well as to the color of lakes, rivers in which the architect tries to reunite modern
ing these architectures. This engagement is and seas. Entering this house, we have the and traditional vernacular architecture. The
clearly present in the House of Glass, where impression of being outside. From the first, our front part includes the social areas, the rear
the visitor is conducted to the interior through attention is directed towards the exterior, to part the private ones. In her first studies, Lina
a precise and controlled trajectory, one that the “public sphere”: first the tree in the central had imagined these two parts united as a single
accents the relationship between the house patio, then the lounge, then the vegetation sur- body. The fact that she separated the two parts
and the exterior. The house shelters the exteri- rounding the house, and finally the view of the with a central patio emphasizes the existing
or within itself, while the trajectory reveals this distant city of São Paulo. polarity she was trying to eliminate. Instead of
exterior, bringing us closer to it and obliging us In the meantime, to the right, there is a solid two opposite parts, we ought to understand
to understand it. white wall that discreetly protects the private them as two mutually attracted bodies.
Access is from below the house, from a cov- part of the house. With this wall Lina guaran- On top of that, the glass here doesn’t have the
ered garden, a garage porch that welcomes tees privacy, anticipating a preoccupation with strict sense of liberating transparency called
www.ggili.com.br
022-041_22-41 Casa de vidrio.ok 27/02/14 15:55 Página 25

Casa de Vidro, São Paulo House of Glass, São Paulo


25

for in the 1920s, a transparency which also A “halfway house”: half-transparent, half- 1
Smithson, Peter, “In Praise
had an inquisitive and terrifying side, since it opaque; half-public, half-private; half-modern, of Cupboard Doors”, ILAUD
International Laboratory of
was capable of being used as an instrument half-traditional; half-aerial, half-aquatic; half- Architecture and Urban Design.
of surveillance, denunciation and punishment. lying on the ground, half-standing on pilotis. A Signus and Insights, Annual
Report, Urbino, 1979, pp.
Only the social parts of the houses are trans- house that is frail, temporary, ready to display 40-41.
parent. The private areas are protected from itself and disappear. A cupboard-house or
prying eyes, assuming a form much closer to backpack-house where we keep the essentials
the modest little house and the unshowy mod- for life. Don’t forget that Lina and Pietro emi-
www.ggili.com.br

esty of ordinary people. grated.


This glass creates volume; it is a transparent
film on which nature imprints itself. It is an ele- Localização Location Rua General Almério de Moura, 200,
São Paulo (São Paulo), Brasil/Brazil | Projeto e construção
ment that ensnares the surroundings and then Project and construction 1950-1951 | Fotografia Photography
projects their reflection on the house. Lina is Nelson Kon | Arquivo Archive Chico Albuquerque.
interested in the ambiguous, transient, mutable Cortesia/Courtesy Ricardo Albuquerque
aspects of the glass. The house is still camou-
flaged in the midst of nature, with the delicate,
gray-green pillars—only 17 cm in diameter—
blending easily into the vegetation. It is as if
the house were asked to disappear. As the
years go by the house is in fact losing its
importance in relation to its surroundings,
nature, the objects it accumulates and the life
that is developed there.
022-041_22-41 Casa de vidrio.ok 27/02/14 15:55 Página 26

26

C D

Primeiro andar.
First floor.
10 1. Entrada. Entrance.
2. Biblioteca. Library.
5 6 9 3. Sala de estar. Lounge.
4. Pátio das Rosas.
Rose patio.
7 5. Lareira. Chimney.
6. Sala de jantar.
B B
Dining room.
7. Dormitório. Bedroom.
3 4 10 8. Closet. Dressing
room.
7 9. Cozinha. Kitchen.
10. Dormitório de serviço.
11 Maid’s room.
11. Sala de serviço.
14 Service room.
8
12. Lavanderia. Laundry
A A room.
12 13. Varanda. Porch.
1
14. Pátio. Patio.
15. Armazém. Store room.
16. Sala de máquinas.
Machine room.
2 7 13 17. Garagem. Garage.

PLANTA PAVT∫ SUPERIOR

C D N

C D

15 16

B B

15
www.ggili.com.br

A A

17

PLANTA PAVT∫ TÉRREO

C D N
Andar de acesso.
0 1 2 5 10 m
Access floor.
022-041_22-41 Casa de vidrio.ok 27/02/14 15:55 Página 27

Casa de Vidro, São Paulo House of Glass, São Paulo


27

Elevação noroeste.
Northwest elevation.

Seção DD.
DD section.
www.ggili.com.br
022-041_22-41 Casa de vidrio.ok 27/02/14 15:55 Página 28

28

Elevação sudoeste.
Southwest elevation.
www.ggili.com.br

Вам также может понравиться