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Você pode achar que um supermercado local não tenha ou para uma barra de chocolate, você notará talvez que os ingre-
muita relevância para o estudo da sociologia, mas, co- dientes estão listados em oito ou dez línguas diferentes.
mo aprendemos no Capítulo 1, os sociólogos freqüen- Que dimensões sociológicas existem neste breve passeio
temente procuram insighrs sobre o mundo nos lugares mais pelo supermercado? Como vimos na nossa discussão da socio-
inesperados. O supermercado é um lugar que pode nos dizer logia do café (ver Capítulo 1, "O que é Sociologia?"), não po-
muito sobre os fenômenos sociais que interessam os sociólo- demos separar nossas ações locais do abrangente cenário social
gos nesse começo do século XXI - a rapidez da mudança so- que compreende o mundo como um todo. A enorme diversida-
cial e o aprofundamento da sociedade global. de de produtos que estamos habituados a ver nos supermerca-
Na próxima vez que você for ao supermercado, preste aten- dos ocidentais depende dos complexos laços econômicos e so-
ção à vasta série de produtos disponibilizados nas prateleiras. Se ciais que ligam países e pessoas ao redor do mundo. Também
você começar suas compras na seção de produtos frescos, como refletem processos de mudanças sociais de larga escala, pro-
muitas pessoas fazem, há chances de encontrar abacaxis do Ha- cessos que levaram diferentes partes do mundo a inter-relacio-
wai, toronjas de Israel, maçãs da África do Sul e abacates da Es- narem-se umas com as outras. O mundo em que vivemos hoje
panha. No próximo corredor, você pode até se deparar com um nos faz muito mais interdependentes, mesmo a milhares de
amplo sortimento de pastas de curry, temperos e condimentos pa- quilômetros de distância, do que jamais fomos.
ra pratos indianos, uma ampla seleção de ingredientes para pratos Essas conexões entre o local e o global são bastante novas
do Oriente Médio, como cuscuz e falafel, e latas de leite de coco na história da humanidade. Aceleraram-se há 30 ou 40 anos,
para cozinhar comidas tailandesas. Continuando as compras, dê como resultado dos avanços dramáticos na comunicação, na
uma olhada nos cafés do Quênia, da Indonésia e da Colômbia, na tecnologia da informação e no transporte. O desenvolvimento
carne de ovelha da Nova Zelândia e nas garrafas de vinho da Ar- de aviões a jato, de velozes navios de carga e de outros meios
gentina e do Chile. Se voltar os olhos para um pacote de biscoito de transporte rápido significou o deslocamento contínuo de
Numa simples prateleira de supermercado, o mundo inteiro trazido pela globalização : as pessoas já não precisam es-
perar a estação das frutas.
* N. de R. T. Produce são produtos agrícolas resultantes de cultivo em lavouras e fazendas como hortifrutigrangeiros de lugares ou
regiões específicas, tais como "produtos da Índia".
SOCIOLOGIA 61
Com um toque no mouse , estas jovens num cibercafé em Bangalore , na índia, podem conversar com amigos no Reino
Unido - entrando em contato em tempo "real" e num lugar "virtualmente real".
O impacto desses sistemas de comunicação é incrível. Nos economia global não é mais fundamentalmente de base agríco-
países em que a infra-estrutura das telecomunicações é alta- la ou industrial. Na verdade, ela está cada vez mais dominada
mente desenvolvida, residências e escritórios têm agora múlti- pela atividade que é "virtual" e intangível (Quah, 1999). Essa
plas ligações com o mundo lá fora, incluindo telefones (fixos e economia virtual é a única na qual os produtos têm sua base na
móveis), aparelhos de fax, televisão a cabo ou digital, correio informação, como é o caso dos softwares de computador, dos
eletrônico e internet. A internet surgiu como o instrumento de produtos de mídia e de entretenimento e dos serviços baseados
comunicação que teve o maior crescimento em todos os tem- na internet. Esse novo contexto da economia tem sido descrito
pos - cerca de 140 milhões de pessoas no mundo usavam a in- por meio de inúmeros termos, como "sociedade pós-industrial",
ternet em meados de 1998. Estima-se que mais de 700 milhões "era da informação" e, hoje, mais corriqueiramente, como eco-
de pessoas estarão conectadas por volta de 2001. Essas formas nomia de informação (ver Capítulo 13, "Trabalho e Vida Eco-
de tecnologia facilitam a "compressão" do tempo e do espaço: nômica", p. 304). O surgimento da economia do conhecimento
dois indivíduos localizados em lados opostos do planeta, em se relaciona ao desenvolvimento de uma larga base de consumi-
Tóquio e em Londres, por exemplo, não somente podem con- dores que são tecnologicamente aptos e que avidamente inte-
versar em "tempo real", mas também podem enviar documen- gram em seus cotidianos os novos avanços na computação, no
tos e imagens um ao outro com a ajuda da tecnologia de satéli- entretenimento e nas telecomunicações.
tes. O uso difundido da internet e dos telefones móveis apro- A operação da economia global reflete as mudanças que
funda e acelera os processos da globalização; cada vez mais ocorreram na era da informação. Muitos aspectos da economia
pessoas estão se conectando por meio dessas tecnologias, mes- agora funcionam através de redes que cruzam as fronteiras na-
mo em lugares que antes estavam isolados ou pouco servidos cionais, em vez de limitarem-se a delas (Castells, 1996). Para
por sistemas tradicionais de comunicação (ver Figura 3.1). Em- serem mais competitivos nas condições globalizantes, os negó-
bora a infra- estrutura das telecomunicações não esteja desen- cios e as corporações reestruturaram-se a fim de ganharem fle-
volvida de modo uniforme no mundo (ver Tabela 3.1 e Figura xibilidade e de se tornarem menos hierárquicos (ver Capítulo
3.2), um número cada vez maior de nações pode agora acessar 12, "Organizações Modernas", p. 282). As práticas de produção
redes internacionais de comunicação de uma forma impossível e modelos organizacionais tornaram-se mais flexíveis. Acordos
anteriormente. de parceria com outras empresas tornaram-se banais, e a parti-
A globalização está também sendo impelida pela integra- cipação nas redes de distribuição globais tornou-se essencial pa-
ção da economia global . Ao contrário de épocas anteriores, a ra se fazer negócios num mercado em constante mudança.
SOCIOLOGIA 63
Figura 3.1 A multiplicação de aparelhos de televisão e telefones nas regiões do mundo, 1985-1995, e a explosão da co-
municação on-line.
Fonte: Dados do Banco Mundial. Human Development Report, Oxford University Press, 1999, p. 26.
As causas da crescente globalização sos da globalização, mas deveria também ser visto como um
resultado da própria globalização. As economias comunistas
Mudanças políticas planificadas e o controle ideológico e cultural da autoridade
Há inúmeras forças influentes por trás da globalização contem- política comunista foram incapazes, ao final, de sobreviver a
porânea. Uma das mais significativas é o colapso do comunis- uma era de mídia global e de economia mundial eletronica-
mo de estilo soviético, que aconteceu numa série de revoluções mente integrada.
dramáticas na Europa Oriental, em 1989, e culminou na disso- O segundo fator importante que conduz à intensificação do
lução da própria União Soviética em 1991 (ver Capítulo 2, processo de globalização é o crescimento dos mecanismos regio-
"Cultura e Sociedade"). Desde a queda do comunismo, países nais e internacionais de governo. As Nações Unidas e a União
do antigo "bloco" soviético - incluindo Rússia, Ucrânia, Polô- Européia são os dois exemplos mais proeminentes de organiza-
nia, Hungria, República Tcheca, os países bálticos, as nações
ções internacionais que reúnem os estados-nação em um fórum
do Cáucaso e da Ásia Central, e muitos outros - estão mudan-
político comum. Enquanto as Nações Unidas fazem isso como
do para os sistemas político e econômico do estilo Ocidental.
uma associação de estados-nação individuais, a União Européia
Esses países não estão mais isolados da comunidade global,
mas estão se integrando a ela. Esse desenvolvimento significou é uma forma mais pioneira de governança transnacional em que
o fim do sistema que existira durante a Guerra Fria, quando os um certo grau de soberania nacional é abdicado pelos seus esta-
países do "Primeiro Mundo" estavam separados dos do "Se- dos-membros. Os governos dos estados individuais da UE são li-
gundo Mundo". O colapso do comunismo acelerou os proces- mitados por diretivas, regulações e tribunais comuns aos países
30.000
da UE, mas também colhem benefícios econômicos, sociais e
políticos de sua participação na união regional.
Finalmente, a globalização está sendo conduzida pelas or-
ganizações intergovernamentais (OIGs) e pelas organizações 20.000
internacionais não-governamentais (ONGs). Embora esses
termos possam ser novos para você, as idéias por trás deles são
provavelmente muito familiares. Uma organização intergo-
vernamental é um organismo que é estabelecido pelos gover- 10.000
nos participantes, ao qual é dada a responsabilidade de regular
e supervisionar um domínio particular da atividade que é de
alcance transnacional. O primeiro organismo desse gênero, a
176
União Internacional de Telégrafo, foi fundado em 1865. Des- 0
de aquele tempo, um grande número de corporações similares 1909 1964 1993
foi criado para regular questões abrangendo desde a aviação Figura 3 .3 O crescimento das organizações não-go-
civil, passando pela difusão de sinais, até a remoção de deje- vernamentais, 1909-1993.
tos perigosos. Em 1909, havia 37 OIGs existentes para regular Fonte: Commission on Global Governance, 1995. From UNDP,
Human Development Report, Oxford University Press, 1999.
assuntos transnacionais; já em 1996 havia 260 (Held et al.,
1999).
SOCIOLOGIA 65
mais propensos a se identificarem com questões e processos Oito étnico e de violação de direitos humanos, embora tais
globais do que no passado. mobilizações sejam mais problemáticas do que no caso de de-
Essa mudança para uma perspectiva global tem duas di- sastres naturais. Entretanto, no caso da Guerra do Golfo, em
mensões significativas. Primeiro, como membros de uma co- 1991, e dos violentos conflitos na antiga Iugoslávia (Bósnia e
munidade global, as pessoas cada vez mais percebem que a Kosovo), a intervenção militar foi vista como justificada por
responsabilidade social não pára nas fronteiras nacionais, mas muitas pessoas que acreditavam que os direitos humanos e a
se estende além delas. Os desastres e as injustiças que as pes- soberania nacional deveriam ser defendidos.
soas enfrentam do outro lado do globo não são simplesmente Em segundo lugar, a perspectiva global significa que as
infortúnios que devem ser suportados, mas motivo legítimo pa- pessoas estão cada vez mais buscando outras fontes, que não o
ra ação e intervenção. Há uma suposição crescente de que a co- estado-nação, ao formular seu próprio senso de identidade. Es-
munidade internacional tem a obrigação de agir nas situações se é um fenômeno que é produzido pelos processos de globali-
de crise para proteger o bem-estar físico e os direitos humanos zação e que os acelera ainda mais, Em várias partes do mundo,
das pessoas que vivem sob ameaça. No caso dos desastres na- as identidades culturais locais estão vivenciando poderosos
turais, tais intervenções assumem a forma de auxílio humanitá- ressurgimentos numa época em que o tradicional domínio dos
rio e de assistência técnica. Terremotos na Armênia e Turquia, estados-nação está passando por profundas transformações. Na
inundações em Moçambique, a fome na África e furacões na Europa, por exemplo, os habitantes da Escócia e da região bas-
América Central foram pontos de convergência para a assistên- ca da Espanha talvez estejam mais propensos a se identifica-
cia global. rem com sua nacionalidade escocesa ou basca - ou com sua
Nos últimos anos, também têm ocorrido solicitações ca- identidade européia - do que com sua nacionalidade britânica
da vez maiores por intervenções em casos de guerra, de con- ou espanhola. O estado-nação, enquanto fonte de identidade,
está diminuindo em muitas áreas, à medida que as mudanças
políticas em nível regional e global enfraquecem a ligação das
pessoas com os estados em que vivem.
As corporações transnacionais
Entre os diversos fatores econômicos que conduzem à globali-
zação, o papel das corporações transnacionais (CTs) é parti-
cularmente importante. As CTs são companhias que produzem
bens ou serviços comerciais em mais de um país. Podem ser
empresas relativamente pequenas, com uma ou duas fábricas
fora do país onde estão baseadas, ou gigantescas empresas in-
ternacionais, cujas operações se entrecruzam ao redor do glo-
bo. Algumas das maiores CTs são companhias conhecidas no
mundo inteiro: Coca-Cola, General Motors, Colgate-Palmoli-
ve, Kodak, Mitsubishi, etc. Até mesmo quando essas corpora-
ções têm uma base claramente nacional, elas são orientadas aos
mercados globais e aos lucros globais.
As corporações transnacionais estão no centro da globali-
zação econômica: elas contabilizam dois terços de todo o co-
mércio mundial e são instrumentais na difusão de novas tecno-
logias ao redor do globo. São também as principais protagonis-
tas dos mercados financeiros internacionais. Como foi notado
por um observador, elas são os "alicerces do mundo econômi-
co contemporâneo" (Held et al., 1999, p. 282). Cerca de 400
Por mais distante que seja sua casa , este aborígine es- CTs tiveram vendas anuais de mais de 10 bilhões de dólares
tá mesmo assim conectado à cultura global , por meio em 1996, quando então somente 70 países poderiam se vanglo-
do telefone ou mesmo por meio de sua própria preocu- riar de produtos nacionais brutos que alcançassem esse mon-
pação - e da dos outros - com seus direitos humanos.
tante no mínimo. Em outras palavras, as corporações transna-
66 ANTHONY GIDDENS
cionais mais poderosas são maiores economicamente do que a transferência de grande quantia de capital pode desestabilizar
maioria dos países (ver Tabela 3.2). economias, desencadeando crises financeiras internacionais
As CTs tomaram-se um fenômeno global nos anos seguin- como aquelas que iniciaram nos "Tigres Asiáticos" e se espa-
tes à Segunda Guerra Mundial . A expansão , nos anos iniciais do lharam para a Rússia e outros países em 1998. Como a econo-
Pós-Guerra , veio de empresas baseadas nos Estados Unidos, mia global tornou-se cada vez mais integrada, um colapso fi-
mas por volta da década de 1970 empresas européias e japonesas nanceiro em alguma parte do mundo pode ter enormes efeitos
também começaram a investir no exterior. No final das décadas nas economias mais distantes.
de 1980 e 1990 , as CTs expandiram- se dramaticamente com o Os fatores políticos, econômicos, sociais e tecnológicos
estabelecimento de três poderosos mercados regionais: Europa descritos anteriormente estão se unindo para produzir um fenô-
(Mercado Comum Europeu ), Ásia - Pacífico ( a Declaração de meno sem precedentes tanto em termos de intensidade como
Osaka garantiu comércio livre e aberto para 2010 ) e América do de alcance. Veremos posteriormente, neste capítulo, que as
Norte (Acordo de Livre-Comércio da América do Norte ). Desde conseqüências da globalização, além de muitas, são de vasta
o começo dos anos de 1990, outros países também liberalizaram abrangência. Mas, antes, voltaremos nossa atenção às princi-
as restrições ao investimento estrangeiro . No limiar do século pais concepções da globalização que foram apresentadas nos
XX, poucas economias no mundo ficaram fora do alcance das últimos anos.
CTs. Ao longo da década passada, as CTs baseadas em econo-
mias industrializadas foram muito ativas ao expandir suas opera-
ções em países em desenvolvimento e nas sociedades da antiga O debate sobre globalização
União Soviética e da Europa Oriental.
A "economia eletrônica " é outro fator que serve de funda- Nos últimos anos, a globalização tornou-se um tópico caloro-
mento à globalização econômica . Os bancos, as corporações, samente discutido. A maioria das pessoas aceita que há trans-
as administradoras de fundos e os investidores individuais são formações importantes ocorrendo ao nosso redor, mas contes-
capazes de transferir fundos internacionalmente com um toque ta-se até que ponto é válido explicá-las corno "globalização".
no mouse. Essa nova habilidade de transferir instantaneamente Isso não é inteiramente surpreendente. Como um imprevisível
"dinheiro eletrônico ", porém, traz consigo grandes riscos. A e turbulento processo, a globalização é vista e compreendida
de modo bem diverso pelos observadores. David Held (1999) e
seus colegas fizeram um levantamento sobre a controvérsia e
Tabela 3 .2 Valor das vendas das principais corporações dividiram seus participantes em três escolas de pensamento: os
comparado ao PIB dos países selecionados, 1997 céticos, os hipe rglobalizadores e os transforntacionalistas. Es-
PIB ou total de vendas
sas três tendências, dentro do debate da globalização, estão re-
País ou
corporação (em bilhões de dólares) sumidas na Tabela 3.3, na p. 67.
General Motors 164
Tailândia 154
Noruega 153
Os "céticos"
Ford Motor 147 Alguns pensadores argumentam que a idéia de globalização es-
Mitsui & Co. 145
tá "supervalorizada" - que o debate sobre globalização está
Arábia Saudita 140
cheio de conversa sobre algo que não é novo. Os "céticos",
Mitsubishi 140
nessa controvérsia acerca da globalização, crêem que os níveis
Polónia 136
atuais de interdependência econômica já possuem precedentes.
Itochu 136
Apontando para as estatísticas do século XIX sobre o comércio
África do Sul 129
e investimento mundiais, eles sustentam que a globalização
Royal Dutch/Shell Group 128
Marubeni 124 moderna difere de outras formas passadas apenas na intensida-
Grécia 123 de da interação entre as nações.
Sumitomo 119 Os céticos concordam que talvez hoje exista mais contato
Exxon 117 entre países do que em períodos passados, mas, segundo eles, a
Toyota Motor 109 atual economia mundial não está suficientemente integrada pa-
Wal-Mart Stores 105 ra constituir uma verdadeira economia globalizada. Isso se dá
Malásia 98 porque o grosso do comércio ocorre dentro de três grupos re-
Israel 98 gionais - Europa, Ásia-Pacífico e América do Norte. Os países
Colômbia 96 da União Européia, por exemplo, comercializam predominan-
Venezuela 87 temente entre si. O mesmo ocorre com outros grupos regionais,
Filipinas 82 invalidando, assim, a noção de uma economia global isolada
Fonte: Forbes Magazine 1998 : from UN Development Programme , Human Deve- (Hirst, 1997).
lopment Report , Oxford University Press , 1999, p. 32,
SOCIOLOGIA 67
Características dominantes Capitalismo global, 0 mundo é menos interdependente Globalização "densa" (intensa e
governança global, do que na década de 1890. extensiva).
sociedade civil global.
Padrões de estratificação Desgaste das velhas Crescente marginalização do sul. Nova arquitetura da ordem mundial.
hierarquias.
Motivo dominante McDonald's, Madonna, etc. Interesse nacional. Transformação da comunidade política.
Conceitualização Como uma reordenação Como internacionalização e Como a reordenação das relações
da globalização estrutural da ação humana. regionalização. inter-regionais e das ações
a distância.
Muitos céticos focalizam nos processos de regionalização lugares. A globalização é vista como um processo que é indife-
dentro da economia mundial, como a emergência dos principais rente às fronteiras nacionais. Ela está criando outra ordem glo-
blocos financeiros e comerciais. Para os céticos, o crescimento bal, produzida por poderosos fluxos de comércio e produção que
da regionalização evidencia que a economia mundial tornou-se ultrapassam fronteiras. Um dos mais conhecidos hiperglobaliza-
menos, e não mais integrada (Boyer e Drache, 1996; Hirst e dores, o escritor japonês Kenichi Ohmae, constata que a globa-
Thompson, 1999). Numa comparação com os padrões de co- lização está nos levando a um "mundo sem fronteiras" - um
mércio que prevaleceram no século passado, eles argumentam mundo em que as forças de mercado são mais poderosas que os
que a economia mundial é menos global no seu alcance geográ- governos nacionais (Ohmae, 1990; 1995).
fico, concentrando-se bem mais em alguns intensos bolsões de Muitas análises da globalização apresentadas pelos hiperglo-
atividade. balizadores concentram-se na função mutável de uma nação. Ar-
Os céticos rejeitam a visão defendida por teóricos como os gumentam que os países individualmente já não controlam suas
hiperglobalizadores (ver a seguir), de que a globalização está fun- economias, devido ao vasto crescimento do comércio mundial.
damentalmente minando o papel dos governos nacionais e produ- Os governos nacionais e seus políticos, conforme dizem, estão
zindo uma ordem mundial em que eles já não são mais importan- cada vez mais incapazes de controlar os problemas que ultrapas-
tes. De acordo com os céticos, os governos nacionais continuam a sam suas fronteiras - tal como os mercados financeiros voláteis e
ser os protagonistas fundamentais em função de seu envolvimen- as ameaças ambientais. Os cidadãos reconhecem que os políticos
to na regulação e na coordenação da atividade econômica. Os go- possuem limites em sua capacidade de enfrentar esses proble-
vernos, por exemplo, são a força atuante por detrás de muitos mas, perdendo, assim, a confiança nos sistemas existentes de go-
acordos comerciais e de políticas de liberalização econômica. vernança. Alguns hipergiobalizadores acreditam que o poder dos
governos nacionais também está sendo desafiado de cima - pelas
novas instituições regionais e internacionais, como a União Eu-
Os "hipergiobalizadores" ropéia, a Organização Mundial do Comércio e outras.
Consideradas em conjunto, essas mudanças sinalizam, pa-
Os hiperglobalizadores assumem uma posição oposta à dos cé- ra os hiperglobalizadores, o despontar da "era global" (Albrow,
ticos - eles sustentam que a globalização é um fenômeno muito 1996), em que os governos nacionais perdem importância e in-
real, cujas conseqüências podem ser sentidas em quase todos os fluência.
68 ANTHONY GIDDENS
tão mais restritas ao domínio doméstico, e muitas das outras "trabalhando" ou "no serviço", descobrindo que muitos aspec-
sinalizações que moldavam a vida das pessoas têm desapare- tos de nossa existência - de nossos amigos a nossas preferências
cido. As estruturas tradicionais de identidade estão dissolven- de lazer - são formados por nossos padrões de trabalho.
do-se e novos padrões de identidade estão surgindo. A globa- A globalização desencadeou profundas transformações no
lização está forçando as pessoas a viver de um modo mais mundo do trabalho, como veremos no Capítulo 13 ("Trabalho
aberto e reflexivo. Isso significa que estamos constantemente e Vida Econômica", p. 302). Novos padrões de comércio inter-
respondendo e nos ajustando às mudanças de ambiente ao nos- nacional e a mudança para uma economia de informação tive-
so redor; como indivíduos, evoluímos com e dentro de um ram um significativo impacto sobre os antigos padrões de em-
contexto mais amplo em que vivemos. Até as pequenas esco- prego. Muitas indústrias tradicionais tornaram-se obsoletas pe-
lhas que fazemos em nossas vidas cotidianas - o que vestimos, los novos avanços tecnológicos ou pela perda de sua parcela do
como gastamos nosso tempo de lazer, como cuidamos de nos- mercado para os concorrentes do exterior, cujos custos de tra-
sa saúde e de nossos corpos - são parte de um processo em balho são mais baixos que nos países industrializados. O co-
curso de criação e recriação de nossas auto-identidades. mércio global e as novas formas de tecnologia têm tido um for-
te efeito sobre as tradicionais comunidades manufatureiras, on-
de os trabalhadores industriais perderam o emprego e as capa-
Padrões de trabalho cidades técnicas necessárias para ingressar na nova economia
O trabalho está no centro da vida de muitas pessoas - tanto nu- da informação. A região industrial central da Inglaterra (Mi-
ma base cotidiana como em termos de metas maiores de vida. dlands) e as comunidades carvoeiras do País de Gales, por
Embora possamos considerar o trabalho como um "fardo coti- exemplo, enfrentam uma nova série de problemas sociais, in-
diano" ou um "mal necessário", é inegável que o trabalho é um cluindo o desemprego a longo prazo e o aumento das taxas de
elemento crucial em nossas vidas. Desperdiçamos muito tempo criminalidade, como resultados da globalização econômica.
70 ANTHONY GIDDENS
Cultura popular*
Os impactos culturais da globalização receberam muita aten-
ção. As imagens, as idéias, os bens e os estilos disseminam-se
hoje com muito mais rapidez pelo mundo do que anteriormen-
te. O comércio, as novas tecnologias de informação, a mídia in-
ternacional e a migração global contribuíram com o livre fluxo
da cultura através das fronteiras nacionais. Muitas pessoas
acreditam que vivemos hoje numa única ordem mundial de in-
formação - uma rede massiva global em que a informação é
partilhada rapidamente e em grandes volumes (ver Capítulo
15, "A mídia e as comunicações de massas"). Um simples
exemplo deve ilustrar claramente essa questão.
Você viu o filme 7ïtanic? É bem provável que sim. Estima-
se que centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo te-
nham visto Titanic tanto em cinemas como em videocassete. O
filme de 1997 que reconta a história de um jovem casal que se
apaixona a bordo de uni transatlântico fadado a afundar é um
dos filmes mais populares já produzidos. Titanic bateu todos os
recordes de bilheteria, totalizando mais de 1,8 bilhão de dóla-
res em rendimentos pelas exibições em 55 diferentes países.
"Eu adoraria convidar você para entrar, Howard, mas em Em muitos países, durante a estréia de Titanic, centenas de pes-
10 minutos o pregão começa em Hong Kong." soas fizeram fila por ingressos que se esgotaram em todas as
The New Yorker Collection , 1999, Lee Lorenz de cartoon- exibições. O filme tomou-se popular em todas as faixas etárias,
bank . com. Todos direitos reservados.
mais particularmente entre garotas adolescentes - muitas das
quais pagaram para assistir ao filme várias vezes. As estrelas de
Titanic, Leonardo DiCaprio e Kate Winslet, viram suas carrei-
ras e futuros inteiramente transformados - passaram de atores
Se antigamente a vida de trabalho das pessoas era domi-
pouco conhecidos a celebridades globais. Titanic é um desses
nada pelo emprego garantido por apenas um empregador ao
produtos culturais que tiveram sucesso em atravessar fronteiras
longo de muitas décadas - o conhecido modelo do "emprego nacionais e em criar um verdadeiro fenômeno internacional.
para a vida inteira" -, hoje, um número maior de indivíduos
O que pode explicar a enorme popularidade de um filme
traça sua própria carreira, perseguindo metas individuais e
como Titanic? E o que o seu sucesso nos diz sobre a globaliza-
exercendo a escolha para sua realização. Muitas vezes, isso ção? A um primeiro nível, Titanic tomou-se popular por razões
envolve trocar de emprego várias vezes durante a carreira,
muito simples: combinava uma trama relativamente simples
constituindo novas capacidades e habilidades e transferindo-
(um romance com um pano de fundo trágico) com um evento
as aos diversos contextos de trabalho. Os modelos tradicionais histórico conhecido - o naufrágio, em 1912, do Titanic, no qual
de trabalho em tempo integral estão se transformando em for- mais de 1.6(X) pessoas morreram. O filme foi também ricamen-
mas mais flexíveis: trabalho em casa auxiliado por tecnologia te produzido, com grande atenção aos detalhes e incluiu efeitos
de informação, trabalho em equipe, projetos de consultoria de especiais de última geração.
curta duração, horário flexível de trabalho e assim por diante
Mas outra razão para a popularidade de Titcntic é que ele re-
(Beck, 1992). fletia uni conjunto particular de idéias e valores que repercutiu
As mulheres passaram a participar massivamente da força
junto às audiências do mundo inteiro. Um dos temas centrais do
de trabalho, um fato que afetou muito as vidas pessoais dos in-
filme é a possibilidade de o amor romântico prevalecer sobre as
divíduos de ambos os sexos. A expansão das oportunidades
diferenças de classe e as tradições familiares. Embora tais idéias
profissionais e educacionais conduziu muitas mulheres a adiar
o casamento e a maternidade para somente depois do início da
carreira. Essas mudanças também significam que muitas mu-
N. de R. T. Deve-se considerar uni contraste entre a cultura popular e a cul-
lheres trabalhadoras retornam ao trabalho logo após o nasci- tura de massa embora ambas terminem confluindo numa complementaçào.
mento dos filhos, em vez de permanecer em casa com as crian- A cultura popular é urna das fontes de urna "cultura nacional", mas não a
ças como antes. Essas mudanças impuseram consideráveis única, e assim compõe e não exclui a cultura pop ou de massa. A cultura
ajustes nas famílias, na natureza da divisão doméstica do traba- popular (a soma dos valores tradicionais de um povo, expressos em fona
artística, como danças e objetos, ou nas crendices e costumes gerais`
lho, no papel dos homens na criação dos filhos, surgindo novas
abrange todas as verdades e os valores positivos, particularmente porque
políticas de trabalho, bem mais amigáveis às necessidades de
produzida por aqueles mesmos que a consomem, ao contrário do que ocorre
um novo tipo de família em que ambos, marido e mulher, tra- com a pnp (cf. Teixeira Coelho, O que é indústria cultural. São Paulo:
balham fora. Brasiliense, 1985)
SOCIOLOGIA 71
Para muitos, o fast food do McDonald's tornou- se um símbolo do novo "imperialismo cultural" que ameaça sufocar culturas
locais com poderosas marcas ocidentais.
sejam de modo geral aceitas na maioria dos países ocidentais, es- dades estabelecidas e os modos de vida fundados nas comunida-
tão ainda se firmando em muitas outras partes do inundo. O su- des e culturas locais estão reconfigurando novas formas de
cesso de um filme como 7itanic reflete a mudança de atitudes "identidade híbrida', compostas de elementos originários de
para com os relacionamentos pessoais e o casamento , por exem- fontes culturais contrastantes (S. Hall, 1992). Assim, um indiví-
plo, em lugares do mundo onde têm prevalecido valores mais duo negro, urbano, sul-africano pode hoje continuar a ser muito
tradicionais . É possível dizer, mesmo assim, que Ttanic, junta- influenciado pelas visões tradicionais e culturais de suas raízes
mente com outros filmes ocidentais, contribui para essa mudan- tribais. ao mesmo tempo que adota estilos e gostos cosmopolitas
ça dos valores . Filmes e programas de televisão feitos nos - no vestir, nas atividades de lazer, nos passatempos e assim por
moldes da cultura ocidental e que dominam a mídia global, ten- diante - que foram moldados por forças globalizantes.
dem a apresentar uni conjunto de pautas políticas, sociais e eco-
nômicas que reflete unia visão de mundo especificamente oci-
dental . Alguns se preocupam com o fato de que a globalização Globalização e risco
esteja conduzindo à criação de unia "cultura global " em que os
valores de maior poder e riqueza - como filmes produzidos em As conseqüências da globalização têm largo alcance, afetando
praticamente todos os aspectos do mundo social. Entretanto,
Hollywood - tenham uni efeito devastador sobre a força dos cos-
por ser a globalização uni processo aberto e internamente con-
tumes locais e da tradição . De acordo com essa visão , a globali-
traditório, ela produz resultados que são difíceis de prever e
zação é uma forma de "imperialismo cultural " em que os valo-
controlar. Outra maneira de pensar essa dinâmica é em termos
res, os estilos e as visões do mundo ocidental são difundidos de
de risco. Muitas das mudanças engendradas pela globalização
modo tão agressivo que sufocam culturas nacionais particulares.
nos são apresentadas com novas formas de risco que diferem
Outros, em contrapartida , relacionam os processos de globa-
muito daquelas que existiram em épocas passadas. Diversa-
lização a uma diferenciação crescente nas tradições e formas
mente dos riscos de outrora, que tinham causas estabelecidas e
culturais . A sociedade global , argumentam , caracteriza - se hoje
efeitos conhecidos, os riscos de hoje são incalculáveis na ori-
menos por uma homogeneidade cultural cto que por unia enorme
gem e indeterminados nas suas conseqüências.
diversidade de culturas que existem lado a lado . Tradições locais
estão acompanhadas por miríades de formas culturais adicionais
vindas do exterior, colocando as pessoas diante de uma gama A difusão do "risco produzido"
vertiginosa de estilos de vida passíveis de serem escolhidos. Es-
tamos testemunhando não una cultura global unificada, mas a Os humanos sempre tiveram de enfrentar riscos de algum ti-
fragmentação de formas culturais ( Baudrillard . 1988). As identi- po ou de outro, mas os riscos de hoje são qualitativamente di-
72 ANTHONY GIDDENS
Vírus eletrônicos
Em 4 de maio de 2000, o mundo eletrônico foi tragado quan- O "vírus do amor" foi um vírus de difusão particular-
do um vírus apelidado de "love bug" conseguiu sobrecarre- mente rápida, mas ele não é o primeiro desse tipo. Os vírus
gar os sistemas de computador do mundo inteiro. Lançado eletrônicos tomaram-se mais comuns - e mais perigosos -
de um computador pessoal em Manila, a capital das Filipi- à medida que os computadores e os meios eletrônicos de
nas, o "love bug" espalhou-se rapidamente através do globo comunicação cresceram em importância e sofisticação. Ví-
e forçou o fechamento de quase um décimo dos provedores rus como o "love bug" demonstram como o mundo interco-
mundiais de e-mail. O vírus foi mundialmente transmitido nectado tem se transformado com o avanço da globalização.
através de uma mensagem de e-mail com o assunto "I love Você poderia pensar que, neste particular exemplo, a inter-
you". Quando os destinatários abriam o arquivo que estava conectividade global provou ser uma coisa bem negativa,
anexado à mensagem, eles involuntariamente ativavam o ví- uma vez que um danoso vírus foi capaz de espalhar-se tão
rus em seus próprios computadores. O vírus do amor, então, rapidamente ao redor do globo. Entretanto, muitos aspectos
se duplicava e automaticamente se enviava a si mesmo a to- positivos da globalização também encontram reflexo neste
dos os endereços listados na agenda eletrônica, antes de ata- caso. Assim que o vírus foi detectado, especialistas em
car informações e arquivos armazenados no disco rígido do computadores e segurança do mundo todo trabalharam jun-
computador. O vírus espalhou-se para oeste à medida que os tos para prevenir sua disseminação, para proteger os siste-
funcionários, primeiramente na Ásia, depois na Europa e na mas de computador nacionais e compartilhar conhecimento
América do Norte, chegavam para trabalhar de manhã e sobre a origem do vírus. Embora a globalização traga con-
abriam sua correspondência eletrônica. Por volta do final do sigo riscos desconhecidos, ela também encoraja o uso de
dia, estimou-se que o "love bug" causara mais de 1 bilhão de novas tecnologias e novas formas de coordenação global no
libras em prejuízos no mundo inteiro. combate a tais riscos.
ferentes dos que existiram em épocas mais remotas. Até bem tais processos foi o início de uma destruição ambiental gene-
recentemente, as sociedades humanas eram ameaçadas por ralizada, cuja exata causa é indeterminada e cujas conseqüên-
riscos externos - perigos como secas, terremotos, escassez e cias são igualmente difíceis de calcular.
tempestades provenientes do mundo natural, que não tinham No mundo globalizado, somos confrontados com o risco
relação alguma com ações humanas. Hoje, porém, confronta- ecológico de diversas maneiras. A preocupação com o aqueci-
mo-nos cada vez mais com vários tipos de riscos produzidos mento global tem aumentado junto à comunidade científica
- riscos que são criados pelo impacto de nosso próprio conhe- nos últimos anos; aceita-se hoje, de modo geral, que a tempe-
cimento e da tecnologia sobre o mundo natural. Como vere- ratura da terra tem elevado-se devido ao aumento do volume de
mos, muitos riscos ambientais e de saúde enfrentados pelas gases prejudiciais na atmosfera. As potenciais conseqüências
sociedades contemporâneas são exemplos de riscos produzi- globais deste aquecimento global são devastadoras: se as calo-
dos - eles são o resultado de nossas próprias intervenções na tas polares continuarem a derreter como atualmente, o nível do
natureza. mar aumentará, podendo ameaçar as terras baixas e suas popu-
lações. As mudanças dos padrões climáticos têm sido citadas
Riscos ambientais como causas possíveis de graves inundações que atingiram par-
tes da China, em 1998, e Moçambique, em 2000 (ver quadro a
Uma das ilustrações mais claras de risco produzido pode ser seguir).
encontrada nas ameaças atualmente apresentadas pelo meio Por serem os riscos ambientais difusos em sua origem, não se
ambiente natural (ver Capítulo 19, "Crescimento Populacional sabe ao certo como devem ser enfrentados ou quem tem a respon-
e Crise Ecológica", p.478). Uma das conseqüências da acelera- sabilidade de agir em prol de uma solução. Um simples exemplo
ção industrial e do desenvolvimento tecnológico tem sido a demonstra porque isso é assim. Os cientistas descobriram que os
constante expansão da interferência humana na natureza. Há níveis de poluição química têm efeitos prejudiciais sobre certas
poucos aspectos do mundo natural que permanecem intocados colônias de pingüins antárticos. Mas é impossível identificar com
pelo homem - a urbanização, a produção e a poluição indus- precisão tanto as origens exatas da poluição quanto suas possíveis
triais, os projetos de agricultura em larga escala, a construção conseqüências para os pingüins no futuro. Neste exemplo - e em
de barragens e hidrelétricas e os programas de energia nuclear centenas de casos similares - é provável que ações efetivas não se-
são algumas das formas de impacto sobre os ambientes natu- jam tomadas para enfrentar o risco, porque a extensão da causa e
rais produzidas pelos seres humanos. 0 resultado coletivo de da conseqüência é desconhecida e indefinida.
SOCIOLOGIA 73
U 11
5
74 ANTHONY GIDDENS
plicou a tarefa, tornando desafiadora qualquer análise precisa idade , classe, gênero ou status - foram expostos a perigosos ní-
dos riscos. veis de radiação . Ao mesmo tempo, os efeitos do acidente es-
tenderam- se muito além de Chernobyl - por toda a Europa e
além, detectaram-se níveis radioativos anormalmente elevados
A "sociedade de risco" global por muito tempo após a explosão.
ricos e os mais pobres. A distância entre esses países era de se graças ao crescimento das exportações acima de 5%. Outros
aproximadamente 3 para 1 em 1820, 11 para 1 em 1913, 35 pa- países, como a Rússia, a Venezuela e a Argélia, tiveram poucos
ra 1 em 1950 e 72 para 1 em 1992 (ver Figura 3.4). No século benefícios com a expansão do comércio e da globalização
passado, a renda per capita cresceu quase seis vezes entre os (UNDP, 1999). Dados do Banco Mundial apóiam esse quadro:
25% mais ricos, ao passo que, entre os 25% mais pobres, o dentre 93 nações em desenvolvimento, somente 23 podem di-
crescimento não chegou a três vezes. zer que estão em "rápida integração". Há o perigo de que mui-
A globalização parece estar exacerbando essas tendências tos dos países que mais necessitam de crescimento econômico
ao concentrar mais renda, riqueza e recursos em um pequeno sejam deixados ainda mais para atrás à medida que a globaliza-
núcleo de países (ver Figura 3.5). Como já vimos neste capítu- ção progride (Banco Mundial, 2000).
lo, a economia global está crescendo e se integrando extrema- O livre-comércio é visto por muitos como a chave para o
mente rápido e a expansão do comércio global foi central para desenvolvimento econômico e para a diminuição da pobreza.
esse processo - entre 1990 e 1997, o comércio internacional A Organização Mundial do Comércio (OMC), por exemplo,
cresceu cerca de 6,5%. No entanto, somente um grupo de paí- trabalha para liberalizar regras de comércio e reduzir barrei-
ses desenvolvidos tem se beneficiado com esse crescimento e o ras comerciais entre os países. O livre-comércio através das
processo de integração da economia global tem sido desigual fronteiras é visto como uma proposição em que tanto os paí-
(ver Figura 3.6). Alguns países - tais como as economias do ses desenvolvidos como os em desenvolvimento saem ga-
Leste Asiático, do Chile, da índia e da Polônia - beneficiaram- nhando. Se as economias industrializadas são capazes de ex-
Medianos 3%
60%
Mais pobres
20% 1%
^ . Argentina
12
Bangladesh Paraguai
Botswana Nepal México
Jordânia
índia
8
Uganda Chile
Marrocos Costa Rica Polônia
Tunísia
4
- - Argélia
-0- Irã
Burkina 4- Guatemala
Fasso
o
- Nigéria
Coréia
Eslovênia
Bangladesh República
80 China W Cingapura
Dominicana Romênia
Tunlsia índia
Maurício Tailândia México
Sri Lanka Malásia Polônia
60
Marrocos Brasil
República
Africana
40 Central
Egito
f- Senegal
Federação
20 Russa
Figuras para Leste Europeu e CEI (antiga União Soviética ) são para os anos de 1980 a 1996-1997.
portar seus produtos para mercados ao redor do mundo, tam- cos argumentam que o livre-comércio é antes um negócio uni-
bém se afirma que os países em desenvolvimento se benefi- lateral que beneficia aqueles que já são ricos, exacerbando mo-
ciarão ganhando acesso aos mercados mundiais. Isso irá me- delos existentes de pobreza e dependência nos países em de-
lhorar, por sua vez, suas perspectivas de integração na econo- senvolvimento. Recentemente, boa parte dessas críticas con-
mia global. centrou-se em torno das atividades e políticas da Organização
Mundial do Comércio (OMC)* que se encontra na vanguarda
dos esforços para expandir o comércio global.
A campanha por "justiça global"
* N. de R . T. Não obstante a influência dominante da OMC na regulamen-
Nem todos concordam que o livre-comércio é a solução para a
tação do comércio internacional , essa atuação repercute em organizações
pobreza e para a desigualdade global. Com efeito, muitos críti- regionais como a ALGA e o NAFTA para a América Latina.
SOCIOLOGIA 77
e patenteados pelas companhias farmacêuticas. O conhecimento vestimento em "capital humano" - saúde pública, educação e
local sobre usos medicinais das plantas é freqüentemente usado treinamento. O principal desafio para o século XXI é assegurar
no desenvolvimento e na comercialização dos medicamentos, ain- que a globalização beneficie as pessoas em todos os lugares,
da que os indígenas da área não recebam nenhuma compensação não somente os que se encontram numa privilegiada posição.
por sua contribuição. Enquanto os países industrializados dentro
da OMC pressionam para fortalecer as leis da propriedade intelec-
tual, muitos, nos países em desenvolvimento, afirmam que essas Conclusão : a necessidade de uma
leis vão contra às necessidades de seus países. As agendas de pes- governança * global
quisa são ditadas por interesses de lucro, não por interesses huma-
nos, e valiosas formas de tecnologia podem se tornar inacessíveis À medida que a globalização progride, estruturas e modelos polí-
a países mais pobres que poderiam beneficiar-se de seu uso. ticos existentes revelam-se despreparados para gerenciar um mun-
Outra crítica à OMC é que ela opera em segredo e não le- do cheio de riscos, desigualdades e desafios que transcendem
va em conta os cidadãos que são diretamente afetados por suas fronteiras nacionais. Não está no poder dos governos individuais
decisões. Em muitos sentidos, essas críticas são válidas. As dis- controlar a disseminação da AIDS, conter os efeitos do aqueci-
putas comerciais entre membros da OMC estão sendo decidi- mento global ou regular mercados financeiros voláteis. Muitos
das a portas fechadas por um comitê inelegível de "peritos". processos que afetam a sociedade ao redor do mundo escapam ao
Quando uma decisão é transmitida, ela se toma legalmente controle dos atuais mecanismos governamentais. À luz desse "dé-
obrigatória para todos os estados-membros. A OMC também ficit" governamental, alguns reivindicam novas formas de gover-
pode desafiar ou cancelar leis de nações particulares que forem nança global capazes de enfrentar questões globais de um modo
consideradas "barreiras comerciais". Isso inclui leis nacionais global. Já que um número cada vez maior de desafios ocorre num
ou acordos bilaterais destinados a proteger o meio ambiente, nível que transcende os países individuais, afirma-se que as res-
preservar raros recursos, salvaguardar a saúde pública ou ga- postas a tais desafios devem possuir abrangência transnacional.
rantir padrões de trabalho e direitos humanos. Um exemplo é o Embora possa parecer irrealista falar de uma governança
fato de a OMC ter deliberado contra a União Européia, que se que transcende o nível de estado-nação, alguns passos já foram
recusou a importar carne norte-americana tratada com hormô- tomados em direção à criação de uma estrutura democrática
nio, em virtude de sua possível ligação com o câncer; a mesma global, como a formação das Nações Unidas e da União Euro-
OMC também desafiou uma lei aprovada no Estado norte-ame- péia. A UE, em particular, pode ser vista como uma resposta
ricano de Massachusetts, que proíbe companhias de investir em inovadora à globalização e poderia muito bem tornar-se um
Miammar (Burma) devido às violações dos direitos humanos. modelo para organizações semelhantes em outras partes do
Uma última preocupação compartilhada por muitos ativis- mundo, onde são fortes os laços regionais. Novas formas de
tas é a influência indevida exercida pelos Estados Unidos sobre governança global poderiam ajudar a promover uma ordem
as atividades da OMC e sobre outras corporações internacio- mundial cosmopolita, em que seriam estabelecidos e observa-
nais, tais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Interna- dos regras transparentes e padrões de comportamento interna-
cional (FMI). Nos anos seguintes ao colapso da União Soviéti- cional, tal como a defesa dos direitos humanos.
ca, os EUA foram descritos com freqüência como a única su- A década que se seguiu ao fim da Guerra Fria foi marcada
perpotência remanescente. De certo modo, isso é verdadeiro. por violência, conflitos internos e transformações caóticas em
Com seu irresistível poderio econômico, político e militar, os muitas partes do mundo. Enquanto alguns adotaram uma visão
Estados Unidos são capazes de influenciar debates e tomadas de pessimista, considerando a globalização como responsável pe-
decisões em muitas instituições internacionais. As "desigualda- la aceleração de crises e caos, outros viram nela uma grande
des" da globalização devem ser vistas em parte como uma refle- oportunidade de mobilizar as forças globalizantes em torno da
xão sobre o fato de que o poder político e econômico está con- busca de maior igualdade, democracia e prosperidade. A ten-
centrado nas mãos de um reduzido grupo de estados. dência a uma governança global e à formação de instituições
Os manifestantes contrários à OMC e a outras instituições regulatórias mais efetivas não é certamente inadequada numa
financeiras internacionais, como o Banco Mundial e o Fundo época em que a interdependência global e a rápida mudança
Monetário Internacional, argumentam que a exuberância da in- conectam a nós todos como nunca antes. Não está fora do nos-
tegração econômica e do livre-comércio globais está forçando so alcance reafirmar nossa confiança no mundo social. Essa ta-
as pessoas a viverem mais em uma "economia" do que em uma refa, com efeito, parece ser a maior necessidade e o maior de-
"sociedade". Muitos estão convencidos de que essas mudanças safio enfrentados pelas sociedades no início do século XXI.
enfraquecerão ainda mais a posição econômica das sociedades
pobres ao permitirem às corporações transnacionais operarem
com pouca ou nenhuma segurança e sem regulações ambien- * N. de R. T. Governança: termo preferido à govemabilidade quando se tra-
ta, segundo a definição de J. Saint Geours, "de explorar o tratamento da
tais. Segundo eles, os interesses comerciais estão cada vez mais
complexidade em termos sistêmicos . A governança é basicamente um sis-
recebendo preferência à preocupação com o bem-estar humano. tema de organização , isto é, um campo de ação da inteligência ou que tem
Se convém evitar que as divisões globais se aprofundem ainda relação com a inteligência" (...) (Cf. Cleveland). Etimologicamente signifi-
mais, então é necessário, não somente nas nações em desenvol- ca a ciência de governar, a saber, "princípios e modos de comunicação e
vimento, mas também nas industrializadas, que se faça mais in- regulação do sistema da sociedade. (Cf. Dicionário de novos termos da
ciência e tecnologias . 2.ed. São Paulo: Pioneira , 1996. p.131.)
SOCIOLOGIA 79
Pontos Principais
1. Um dos fenômenos sociais de maior interesse para os so- nossos contextos locais e em nossas vidas íntimas através
ciólogos contemporâneos é a globalização - a intensifi- de fontes impessoais, como a mídia e a internet, e através
cação das relações sociais e da interdependência globais. de contatos pessoais com indivíduos de outros países e
A globalização refere-se ao fato de que vivemos cada vez culturas.
mais em um "mundo único", onde nossas ações têm con- 6. A globalização é um processo aberto e contraditório -
seqüências para os outros e os problemas do mundo têm produz resultados difíceis de controlar e prever. Ela nos
conseqüência para nós. A globalização está hoje afetan- introduz novas formas de risco que diferem daqueles que
do as vidas das pessoas em todos os países, ricos e po- existiram anteriormente. O risco externo se refere aos pe-
bres, alterando não apenas sistemas globais, mas a vida rigos que provêm do mundo natural, como os terremotos.
cotidiana. Já os riscos produzidos são aqueles criados pelo impacto
2. A globalização é freqüentemente retratada como um fe- do conhecimento humano e da tecnologia no mundo na-
nômeno econômico, mas essa visão é muito simplificada. tural. Alguns acreditam que estamos vivendo numa so-
Ela é produzida pela conjunção de fatores políticos, eco- ciedade de risco global, na qual todas as sociedades hu-
nômicos, culturais e sociais; progride, sobretudo, graças manas estão expostas a riscos (como o aquecimento glo-
aos avanços na informação e nas tecnologias da comuni- bal), produzidos pelas nossas próprias intervenções na
cação que intensificaram a velocidade e o alcance da inte- natureza.
ração entre as pessoas ao redor do mundo. 7. A globalização está progredindo rapidamente, mas de
3. Diversos fatores contribuem para o aumento da globaliza- modo desigual . Ela tem sido marcada por uma crescente
ção. Primeiro, o fim da Guerra Fria; o colapso do comu- disparidade entre os países mais ricos e mais pobres. A ri-
nismo de estilo soviético e o crescimento de formas inter- queza, a renda, os recursos e o consumo estão concentra-
nacionais e regionais de governança aproximaram os paí- dos nas sociedades desenvolvidas , enquanto muitos paí-
ses. Segundo, a difusão da tecnologia da informação faci- ses em desenvolvimento lutam contra a pobreza, a desnu-
litou o fluxo de informação ao redor do globo e encorajou trição , a doença e a dívida externa . Muitos dos países que
as pessoas a adotarem uma perspectiva global. Terceiro, mais necessitam dos benefícios econômicos da globaliza-
as corporações transnacionais cresceram em tamanho e ção estão em perigo de serem marginalizados.
influência, construindo redes de produção e consumo que 8. As barreiras ao comércio internacional têm sido regular-
atravessam o globo e ligam os mercados econômicos. mente reduzidas nas últimas décadas, e muitos acreditam
4. A globalização tornou-se um assunto calorosamente deba- que o livre-comércio e os mercados abertos permitirão
tido. Os "céticos" acreditam que a idéia da globalização aos países em desenvolvimento integrarem -se mais ple-
está superestimada e que os níveis atuais de interconecti- namente na economia global . Os oponentes a essa abor-
vidade possuem precedentes. Alguns céticos, por outro la- dagem argumentam que os organismos de comércio in-
do, concentram-se em processos de regionalização que es- ternacional , tais como a Organização Mundial do Co-
tão intensificando a atividade nos principais grupos co- mércio, estão dominados pelos interesses dos países
merciais e financeiros. Os "hiperglobalizadores" assumem mais ricos e ignoram as necessidades do mundo em de-
uma posição oposta, argumentando que a globalização é senvolvimento . Eles afirmam que as regras de comércio
um fenômeno real e poderoso, que ameaça desgastar de devem, primeiro e principalmente , proteger os direitos
todo o papel dos governos nacionais. Um terceiro grupo, humanos, os direitos do trabalho , o meio ambiente e as
os transformacionalistas, acredita que a globalização está economias nacionais , em vez de assegurar grandes lucros
transformando muitos aspectos da atual ordem global - in- para as corporações.
cluindo relações econômicas, políticas e sociais -, mas 9. A globalização produz riscos , desafios e desigualdades
que antigos modelos ainda permanecem. De acordo com que atravessam as fronteiras nacionais e escapam ao al-
essa visão, a globalização é um processo contraditório, cance das estruturas políticas existentes . Por estarem os
que envolve um fluxo multidirecional de influências que, governos individuais despreparados para controlar essas
às vezes, funcionam em oposição uma a outra. questões transnacionais, há a necessidade de novas for-
5. A globalização não está restrita a sistemas globais abran- mas de governo global que possam enfrentar os proble-
gentes. Seu impacto é sentido nas nossas vidas pessoais e mas globais de uma forma global. Reafirmar nossa vonta-
no modo como pensamos de nós mesmos e nossas cone- de neste processo mundial de rápida mudança pode ser o
xões com os outros. As forças globalizantes penetram em maior desafio do século XXI.
80 ANTHONY GIDDENS
Leitura Complementar
DICKEN , Peter. Global Shift: Transforming the World Eco- ROBERTS , J. Timmons and HITE, Amy (eds.). From Moder-
nomv. New York: Guilford Press, 1998. nization to Globalization: Perspectives on Development and
GRAY, John. False Dawn: The Delusions of Global Capita- Social Change. Oxford: Blackwell, 1999.
lism. London: Granta Books, 1998. VANDERSLUIS, Sarah Owen and YEROS, Paris (eds.). Po-
HELD , David; McGREW, Anthony; GOLDBLATT, David verty in World Politics: Whose Global Era? Basingstoke: Mac-
and PERRATON, Jonathan (eds.). Global Transformations. millan, 1999.
Cambridge: Polity, 1999.
LECHNER , Frank J. and BOLI, John (eds.). The globaliza-
tion Reader. Oxford: Blackwell, 2000.
Endereços na Internet
Centre for Analysis of Risk and Regulation (Centro de Análi- One World International Foundation
ses de Risco e Regulação) http ://www.oneworld .net/campaigns
http :llwww.lse.ac.uk/Depts/carr Tradewatch
Economic Policy Institute (on trade) (Instituto de Política http:/lww w.tradewatch.org
Econômica para o Comércio) World Bank
http://epinet. org/subjectpages/trade.html http:l/www.worldbank.org/
Globalization Resource World Trade Organization
http ://www.polity.co.uk/global http://www.wto.org/
International Forum on Globalization
http ://www.ifg.org