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IVAN TEIXEIRA TRADIÇÕES DE LEITURA

Um trecho deste ensaio foi publica-


do pela Folha de S. Paulo, com o
título de “Um Passo em Falso do
Artifício” (Mais!, 5 de maio de
2002, pp. 18-9).

Artifício,
a ascensão e a queda de Olavo
Bilac possuem uma história.
Em 1888, aos 23 anos, quan-
do ainda era estudante de Me-
dicina no Rio de Janeiro, ob-
teve enorme sucesso com a pu-
blicação do volume Poesias.
Desencadeador de crescente onda de entu-
siasmo, foi empolgando críticos, jornalis-
tas, poetas, romancistas e pessoas suposta-
mente menos especializadas, até ser consi-
derado, em 1913, o maior poeta brasileiro
vivo, com o voto explícito de grandes artis-
tas e intelectuais do período (1). Hoje, pode-

persuasão
se dizer que a poesia bilaquiana oscila en-
tre o apreço de leitores que ainda não incor-
poraram a renovação modernista e a recusa
de intelectuais que ainda não se libertaram
do padrão modernista. O presente ensaio
pretende contribuir para uma terceira hipó-

e
tese de leitura.
Partirá da idéia de que o texto poético
não se constitui como entidade isolada, mas
como parte das convicções sociais de sua
época ou como enunciado necessariamen-
te vinculado ao momento de enunciação.
Sem perder sua identidade de construção

sociedade poética, o poema será considerado em suas


relações intrínsecas com outras formas de
comunicação social, por se julgar que a
formulação do discurso artístico partilha
dinamicamente das convicções coletivas de
seu tempo. Assim, além de artefato verbal,

em
o poema será concebido como evento cul-
tural, que resulta da articulação de vozes
do presente e do passado, podendo também

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Olavo Bilac REVISTA USP, São Paulo, n.54, p. 98-111, junho/agosto 2002
se tornar objeto de apropriações no futuro. bem-humoradas contra os parnasianos. Hoje, IVAN TEIXEIRA
Por essa perspectiva, as duas hipóteses não é difícil perceber que a glória póstuma é professor de Cultura e
Literatura Brasileira no
anteriores (a leitura passadista e a moder- do maior ícone da poesia brasileira de seu Departamento de
nista) apresentam-se como manifestações tempo dificultava a afirmação dos jovens Jornalismo e Editoração
desiguais e insuficientes da mesma família poetas do Modernismo. Conscientes da no- da ECA-USP. Atualmente,
desenvolve pesquisa como
conceitual, exatamente porque desconsi- vidade dos valores que introduziam, não lhes
professor convidado no
deram os vínculos entre enunciado poético restava alternativa senão a justificativa di- Departamento de
e enunciação do poema. A primeira, su- dática dos manifestos – com história e fun- Espanhol e Português da
Universidade do Texas,
pondo-o como manifestação privilegiada damentação teórica –, que, aliás, extrapolou
em Austin (EUA).
do belo absoluto, ignora a poesia como a formalidade do texto escrito e manifestou- É autor de, entre outros,
resultante de operações lógicas do juízo. A se também em conversas, posturas e gestos Mecenato Pombalino e
segunda, pautando-se pela herança de 22, coletivos. Poesia Neoclássica
(Edusp).
valoriza o poema pelo grau de ruptura lin- Por contingências históricas, os jovens
güística ou de problematização social que venceram. Pelo menos quanto às soluções
apresenta, tomando como critério os valo-
res do momento de leitura, e não o da pro-
dução do texto.
Como se sabe, ao terminar o século XIX,
Olavo Bilac – ao lado de Machado de Assis
– representava o que havia de melhor nas
letras brasileiras. Pela perspectiva de seu
tempo, teria participado decisivamente do
processo de atualização da arte local, enri-
quecendo-a com fórmulas e pensamentos
literários da Europa, adequadamente ajus-
tados à realidade brasileira. Um dos crité-
rios para valorização do artista na época,
como um pouco ainda hoje, é o nível de seu
relacionamento com as novidades euro-
péias, critério talvez hipertrofiado durante
o movimento de 1922. Enfim, a qualidade
de Bilac praticamente não foi contestada
Olavo Bilac,
em vida. Até José Veríssimo, o mais auste-
ro defensor do que então se considerava em caricatura
boa literatura, elegeu alguns de seus sone- de Loredano
tos como o ponto máximo a que tinha che-
gado a possibilidade de beleza nessa espé-
cie de poesia no Brasil (1977, pp. 9-15).
Apesar disso – ou exatamente por isso –,
o padrão de bom gosto criado pela geração
de Bilac foi vivamente combatido pelos mo- 1 No célebre concurso para
dernistas de 22. No “Prefácio Interessantís- “Príncipe dos Poetas Brasilei-
ros”, promovido pela revista ca-
simo”, manifesto de Paulicéia Desvairada, rioca Fon-Fon , votaram em
Bilac pessoas como Manuel
Mário de Andrade cita alguns versos de sua Bandeira, Lima Barreto, João
autoria contra outros de Bilac. Apresenta os do Rio, Gilberto Amado e José
Oiticica, entre outros. Cf. Fon-
versos bilaquianos como “melodia” ultra- Fon, número 16, ano VII, 19
de abril de 1913. Logo após
passada; os próprios, ele os apresenta como a morte de João Cabral de
“harmonia” revolucionária, insinuando tra- Melo Neto, em 1999, a Folha
de S. Paulo, de certa maneira,
tar-se da única opção aceitável para o mo- reviveu esse tipo de eleição,
mento. Manuel Bandeira e Oswald de promovendo velada disputa
em busca de um suposto “novo
Andrade, dentre outros, produziram sátiras príncipe” da poesia brasileira.

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apresentadas para o impasse da poesia. Mais universo de enunciação. Em outros termos,
do que isso, transmitiram às novas gera- a recusa literária dos modernistas não sig-
ções seu horror conceitual ao Parnasia- nifica que estes eram, de fato, superiores
nismo. O curioso é que os detratores atuais aos parnasianos. Pois nada confirma o pres-
de Bilac (ainda os há) repetem os estereó- suposto teleológico de que as Letras cami-
tipos criados pela estratégia do combate mo- nham em contínuo progresso do pior para
dernista há oitenta anos, como se formas- o melhor, assim como não é indiscutível a
sem um critério de valor absoluto. Queren- idéia de que os padrões do presente são a
do alinhar-se a uma suposta visão progres- determinante ótima de compreensão do
sista do gosto, assimilam apenas o conteú- passado. Ao contrário, parece mais razoá-
do dos manifestos, sem considerar o gêne- vel supor que as poéticas e os poemas ape-
ro dos textos, com todas as suas implica- nas bastam aos fins para os quais são cria-
ções teóricas e históricas. dos. Como qualquer convenção, os poe-
Tais textos foram escritos segundo as mas também dependem de pessoas e idéias
regras do gênero manifesto. Logo, sua es- que, em seu tempo, os transformem em con-
trutura pressupõe o combate à situação vicções históricas, de onde emana seu va-
dominante em favor de uma nova platafor- lor. Enfim, a denúncia modernista contra
ma. Não convém a seu próprio código de os parnasianos não passa de versão renova-
Primeira edição leitura tomá-los como portadores de prin- da da dinâmica do processo literário em
de Poesias cípios críticos para aplicação fora de seu sua constante alteração de critérios de va-
lor, que pode ser exemplificada com a cé-
lebre polêmica entre iluministas e seiscen-
tistas, isto é, as idéias de Muratori, de Luzán
ou de Francisco José Freire sobre o século
XVII não devem nortear a leitura atual de
Marino ou de Gôngora, assim como a con-
trovérsia modernista não deve inibir, hoje,
o contato com os poetas parnasianos.

OBJETVIDADE CONSTRUTIVA
Como se sabe, o volume Poesias – origi-
nariamente composto por Panóplias, Via-
Láctea e Sarças de Fogo – consolidou o
Parnasianismo no Brasil. Entretanto, vista
em conjunto, a obra bilaquiana excede os
limites de filiação passiva ao estilo instaura-
do pelos poetas do Parnasse Contemporain
(1866-76). Dentre as sugestões que Bilac
extraiu deles para criar uma situação poé-
tica adequada ao Brasil de seu tempo, des-
Gentileza de Flávio de Almeida Andrade

taca-se o princípio da objetividade cons-


trutiva, que implica a idéia de que a poesia
resulta antes do esforço de composição do
que da inspiração, esforço que pressupõe,
em especial, a sabedoria lingüístico-social
de ajustar o código francês ao horizonte de
expectativas do leitor do final do Segundo
Reinado e da Primeira República. Trata-se,

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enfim, de um poeta de aguda consciência se como naturais. Afinal – pergunta o en-
retórica, o que lhe permitiu programar efei- saio –, não será essa a estrutura de todas as
tos, em vez de expressar sentimentos – des- verdades? Assim, o poema pressupõe duas
de que parecesse o contrário, como se obser- espécies de arte: uma que consegue ocultar
va no soneto “A Um Poeta”, de Tarde, edi- os artifícios (andaimes), tornando-se ini-
tado em 1919, logo após a morte do poeta: miga deles; e outra que, sem conseguir
ocultá-los, torna-se escrava deles, pois, em
“Longe do estéril turbilhão da rua, vez de produzir impressão de naturalidade,
Beneditino, escreve! No aconchego revela o esforço despendido no trabalho.
Do claustro, na paciência e no sossego, A tópica desenvolvida no soneto costu-
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua! ma ser interpretada como síntese do ideal
da arte pela arte, assumido como típico do
Mas que na forma se disfarce o emprego Parnasianismo. O ensaio prefere entendê-
Do esforço; e a trama viva se construa la como retomada do pressuposto clássico
De tal modo, que a imagem fique nua, (2) de que, em poesia, o domínio da técnica
Rica mas sóbria, como um templo grego. deve sobrepor-se ao mito do saber espontâ-
neo, posto em moda pelo Romantismo e
Não se mostre na fábrica o suplício radicalmente combatido por Olavo Bilac e
Do mestre. E, natural, o efeito agrade, por seus companheiros de geração. Pela
Sem lembrar os andaimes do edifício: perspectiva neoclássica do Parnasianismo,
sem beleza não há verdade, assim como
Porque a Beleza, gêmea da Verdade, sem forma não há poema. Ao afirmar, em
Arte pura, inimiga do artifício, “Profissão de Fé”, manifesto que abre o
É a força e a graça na simplicidade”. volume Poesias, que o poeta deve servir à
Forma e ao Estilo, Olavo Bilac já propu-
O soneto funda-se no conceito parado- nha a beleza como finalidade da poesia.
xal da arte como artifício que deve parecer Tanto neste soneto quanto naquele mani-
espontâneo. Essa é a dinâmica inerente ao festo, a beleza ideal revela-se em dimensão
princípio retórico de que a beleza, sendo o plástica, corporificada em objetos tangíveis
objeto da arte, não passa de efeito produzi- (escultura, jóia, porcelana, edifício), a des-
do por elocução eficiente. No primeiro peito de sua natureza verbal. Resultante da
terceto, o poeta desnuda o princípio, afir- apropriação escravista, católica e burguesa
mando que a função do artista consiste em de aspectos aparentes da Grécia Antiga, o
provocar efeitos agradáveis, isto é, em pro- ideal de beleza parnasiano não deixa, por-
duzir a sensação de beleza, que só se reali- tanto, de mimetizar o padrão de elegância
2 O vocábulo clássico é usado
za quando o artifício é percebido como da elite pensante do Rio de Janeiro, de onde aqui em sua acepção oitocen-
natural. Logo, o esforço técnico da enuncia- se alastra por todo o Brasil letrado. tista, podendo envolver tanto
apropriações de aspectos da
ção não pode deixar marcas no enunciado. Assim, o conceito de beleza parnasiano cultura greco-romana quanto
das artes quinhentistas, seiscen-
Em outros termos, a elocução eficiente não é tão “abstrato” quanto parece, pois se tistas e setecentistas. Em senti-
(“Arte pura”) seria aquela que arrebata o classifica como resultado de técnica dis- do amplo, liga-se, portanto, à
busca do equilíbrio, da clare-
leitor do plano técnico para o domínio da cursiva, e não como essência, objetivando- za, da simplicidade e da per-
natureza, em que beleza e verdade se rela- se com o propósito específico de atender a feição lingüística. Por esse cri-
tério, o Parnasianismo talvez
cionam em harmoniosa hierarquia. Repa- um horizonte de expectativas socialmente pudesse ser considerado, no
Brasil, a última reapropriação
re-se, todavia, que a verdade bilaquiana não bem definido. A poética cultural responsá- coesa e programática do que
se confunde com as essências platônicas e vel por esse padrão de beleza é, em sua se elegeu como clássico, es-
pecialmente, na arte antiga e
que o conceito de natureza expresso no feição mais característica, a mesma que, na quinhentista. Da mesma
forma, o século XIX caracteri-
soneto não passa de argumento retórico para por exemplo, não conseguia enxergar per- za como neoclássicas algumas
legitimar suas asserções conceituais. En- versão inerente, por exemplo, na exclusão manifestações da arte setecen-
tista. A propósito, não convém
tendida como efeito de efeito, a sua é, an- social dos negros recém-saídos da escravi- esquecer que tanto Camões
tes, uma verdade de classe, produzida por dão. Nesse sentido, seria antes uma poética quanto Bocage contam-se en-
tre os modelos declarados de
discursos que, sendo culturais, apresentam- sofística do que platônica, já que prefere o Bilac.

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contingente ao essencial, a convicção à Academia, o aluno tinha de demonstrar
verdade, embora ostente o contrário. As- habilidade suficiente em imitar tais mode-
sim, sem se separar de uma noção funcio- los. Essa tradição persistiu durante todo o
nal de verdade (as verdades, enfim, não século XIX, projetando-se até os primeiros
serão sempre funcionais?), a idéia de bele- anos do século XX. O Museu Nacional de
za confunde-se com o domínio de um saber Belas Artes mantém em exposição algu-
técnico, que é exaltado no poema como fator mas dessas peças, a partir das quais se pode
distintivo da vida em sociedade. Tal elogio ter idéia do conceito de arte da época, por
da técnica – a técnica de obter o belo e, cuja manutenção se esforçou Manuel de
portanto, de propagar o bem e a verdade – Araújo Porto-Alegre, um dos mais
acabou por reunir em torno de si a maior operantes diretores da instituição no sécu-
parte dos artistas, dos intelectuais e dos lo XIX. Bilac deve ter tido contato com o
leitores da sociedade brasileira da época. ambiente da então Academia de Belas-
Em sentido restrito, o elogio da técnica Artes. É provável que tenha extraído daí
manifesta-se tanto na idéia de domínio da sugestões para seu repertório de arte anti-
retórica em geral quanto no domínio da lín- ga, que se manifesta particularmente nos
gua portuguesa em particular. Desse modo, poemas eróticos de Sarças de Fogo e de
o ideal de perfeição artística abandona, na Alma Inquieta, dominados por formas e po-
ação cultural da poesia, a esfera do belo sições da escultura grega.
absoluto para privilegiar os valores relati- Alguns dos poemas mais emblemáticos
vos da vida social: domina os meios e terás do erotismo bilaquiano são “O Julgamento
os fins – eis um dos sentidos possíveis do de Frinéia”, “A Tentação de Xenócrates”,
soneto. Esse era, de fato, um dos compo- “Tercetos”, “Satânia”, e “Alvorada do
nentes do discurso progressista e civilizador Amor”. Os dois primeiros desenham-se
da cultura carioca da belle époque, que se como pura imaginação arqueológica, no
configura com tanta eloqüência nas revis- sentido de restaurarem uma suposta licen-
tas ilustradas do período (profusão de co- ciosidade da Grécia antiga. Os três últimos
res e vinhetas!), das quais Olavo Bilac era encarnam o ideal pós-romântico de eman-
contínuo colaborador: Cosmos, Careta, cipação burguesa dos desejos, em que se
Fon-Fon, entre outras. figuram aspectos a um tempo decadentes e
joviais do discurso boêmio-amoroso do Rio
de Janeiro do tempo. Em ambos os casos,
Bilac soube adaptar sugestões de
EROTISMO ARQUEOLÓGICO (3) Baudelaire, que ele leu e traduziu.
Como é sabido, a partir dos anos 70 do
Na poética da cultura parnasiana, a eu- século XIX, Baudelaire foi muito traduzi-
foria técnica das grandes revistas convive do pelos poetas anti-românticos no Brasil.
com a nostalgia da arte greco-romana, cujo Uma das conseqüências da presença das
desenvolvimento no Brasil imperial forne- Flores do Mal no Rio foi a hipertrofia do
ce matrizes para a poesia do final do século sexualismo mórbido, que atinge proporções
XIX. Como se sabe, em 1816, d. João VI antropofágicas, em função do acúmulo de
instalou no Rio de Janeiro a Escola Real metáforas que encareciam os aspectos car-
das Ciências, Artes e Ofícios, que persiste nais da posse sexual (Machado de Assis
ainda hoje no Museu Nacional de Belas [1910], p. 116; Antonio Candido, 1987, pp.
Artes. Sob influência do chamado neoclas- 25-33). Os principais representantes dessa
3 Esta unidade foi extraída do pre-
fácio à edição das Poesias, de sicismo francês, essa primeira fase do estu- poesia de ênfase nos aspectos naturais do
Bilac, que preparei para a
Editora Martins Fontes, em do sistemático das artes plásticas no Brasil sexo foram Carvalho Júnior, Fontoura
1997. Em favor da unidade da privilegiou a imitação da estatuária grega, Xavier e Teófilo Dias, todos empenhados
reinterpretação do poeta pro-
posta pelo presente ensaio, para cujo ensino foram modeladas em ges- em eliminar a musa romântica, identificada
peço licença para reproduzir com mulheres angelicais e abstratas. Ao
aqui, com alterações, trechos
so cópias perfeitas das principais escultu-
publicados naquele volume. ras da tradição antiga. Para se graduar pela mesmo tempo, esses poetas pretendiam

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agredir o que consideravam provinciano nos teatral. Para ilustrar este último tipo de
valores sociais do Rio de então. Machado persuasão – que, aliás, Quintiliano conde-
de Assis, sempre recatado, julgou que tais na – relata o caso de Frinéia, que Bilac re-
aspectos deformavam o verdadeiro compõe em seu poema. Trata-se de uma
Baudelaire (1910, pp. 118-9). Partilhando prostituta de rara beleza, acusada de aten-
do conceito de elegância machadiana, Bilac tar contra os costumes de Atenas. Seu ad-
também recusou o que julgava excessivo vogado de defesa, o renomado orador
nos poetas que o antecederam na assimila- Hipérides, percebendo que os anciãos do
ção de Baudelaire no Brasil. Sempre sen- conselho se mostravam insensíveis a seus
suais e insinuantes, suas mulheres primam elaborados argumentos verbais, dirige-se à
pela exibição da beleza plástica, e não pe- ré e desnuda-a em pleno Areópago. Diante
los arroubos de sadismo ou de devoração da nudez de Frinéia, os anciãos não hesita-
sexual. Em “A Tentação de Xenócrates”, ram em absolvê-la, persuadidos de que os
há um bom exemplo desse erotismo encantos do corpo se sobrepunham ao ri-
exibicionista, mas controlado pelo equilí- gor aparente dos costumes. Assim, o poe-
brio das poses: ma colocava para os leitores de seu tempo
uma questão ética interessante, que deve
“Tem nos seios – dois pássaros que pulam ser pensada nos termos da época, embora
Ao contacto de um beijo, – nos pequenos ainda hoje não seja plenamente resolvida,
Pés, que as sandálias sôfregas osculam, que é a conciliação entre prostituição e vir-
tude, abordada, em diferentes termos, por
Na coxa, no quadril, no torso airoso, grandes escritores oitocentistas.
Todo o primor da calipígia Vênus Sabe-se que, depois da absolvição de
– Estátua viva e esplêndida do Gozo”. Frinéia, foi proibida em Atenas a permanên-
cia do réu nas sessões de julgamento, de
Igualmente eficaz nas imagens, é o poe- modo que sua presença não se insinuasse
ma “Satânia”, que pode ser entendido como como parte dos argumentos da defesa
uma ruidosa e rutilante alegoria da busca do (Quintiliano, 1788, p. 5). Não obstante, Bilac
prazer solitário por uma formosa mulher que, aprova a absolvição da prostituta, por con-
nua em seu quarto, põe-se a imaginar as vozes siderar, à imitação do conselho de anciãos
do próprio corpo, ansioso por se deixar pos- do Areópago, a Beleza como degrau para a
suir. Como as outras modalidades de poesia virtude. De fato, a suposta devassidão não
em Bilac, os poemas eróticos obedecem a impede a personagem – cujo primitivo nome
um rigoroso cálculo retórico, no sentido de era Mnezarete (um composto de memória e
objetivarem um efeito e buscarem-no pelo virtude) – de inspirar a escultura, a eloqüên-
manejo consciente de lugares retóricos da cia e a pintura de seu tempo, como se perce-
poética tradicional. be pela primeira estrofe do poema:
Mais que todos, é assim “O Julgamento
de Frinéia”, que deve ter se inspirado na “Mnezarete, a divina, a pálida Frinéia,
leitura de uma página das Instituições Ora- Comparece ante a austera e rígida
tórias, de Quintiliano. Durante o século [assembléia
XVIII, essa obra recebeu três adaptações Do Areópago supremo. A Grécia inteira
para o português, sendo que a mais consa- [admira
grada é a de Jerônimo Soares Barbosa, fei- Aquela formosura original, que inspira
ta para seus alunos de Coimbra na década E dá vida ao genial cinzel de Praxiteles,
de 1760, mas só editada entre 1788 e 1790, De Hipérides à voz e à palheta de Apeles”.
em dois tomos(4). No primeiro capítulo do 4 As outras são devidas a Vicente
famoso manual da Antigüidade, ao tratar A noção de beleza associada à virtude, Lisbonense e a João Rozado
Villa-Lobos e Vasconcellos, con-
das diversas maneiras de persuasão, o au- em si, pode se aproximar do essencialismo forme dados da “Prefaçam” à
tradução de Jeronymo Soares
tor explica que também se persuade sem platônico, mas, no poema, revela, antes, a Barboza (Quintiliano, 1788,
palavras, mediante o silêncio ou o gesto inclinação sofística da poética bilaquiana, vol.I, IV).

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porque admite a inclusão de elementos não- Como se vê, o texto desenvolve a mes-
verbais como integrantes da máquina per- ma tópica do poeta entregue ao paciente
suasiva do discurso. Assim, se o gesto tea- trabalho de escrever, com uma importante
tral da exposição do corpo de Frinéia fun- diferença: no soneto, é caracterizado por
cionou, no Areópago, como argumento em um misto de devoção religiosa e obstina-
favor de sua absolvição, procura, no poe- ção profana; aqui, caracteriza-se unicamen-
ma, convencer os leitores a admitir em seu te pelo espírito cívico do conhecimento
código de conduta a hipótese de uma trans- sistemático. Genericamente, portanto, a
gressão ideal, que, em termos de elegância passagem contém uma recomendação ao
mundana, pode, ao propiciar uma certa in- estudo e à disciplina, que se particulariza
terferência da Grécia no cotidiano carioca, na necessidade de um saber específico (a
promover um “toque de classe”, muito língua portuguesa), que servirá de base a
ambicionado pelas elites da época. outro saber mais específico ainda (a poe-
sia). Fundado em noção corrente desde
Aristóteles e Quintiliano (1790, vol. II, pp.
7-8), o texto supõe, ainda, dois usos da lín-
ARTE + NATUREZA + ESTUDO gua: o uso correto e apenas suficiente às
necessidades básicas da comunicação; e o
Apesar de esquecida atualmente, outra uso artístico, que, além de comunicar o
fonte básica do pensamento poético de pensamento, procura impressionar o leitor,
Olavo Bilac é o Tratado de Metrificação, causando-lhe admiração e espanto, por
em cujas páginas também se confirma o meio da aplicação conveniente dos tropos
princípio da objetividade construtiva, do e figuras. Em termos mais específicos, o
qual decorre o conceito de beleza como efei- emprego poético da língua (“a mais difícil
to retórico, que implica o elogio ao domí- das artes”) seria aquele que logra produzir
nio técnico do saber especializado como no leitor a paixão ou afeto idealizado pelo
prática social desejável. Há, nesse livro, a poeta, processo em que a natureza se mis-
defesa de uma das principais convicções tura com a cultura por meio da imitação
da teoria e prática bilaquianas, que é o alar- artística, no sentido aristotélico.
gamento dos horizontes da poesia median- Se a tese proposta for aceitável, a esta
te o estudo do vernáculo e a leitura dos clás- altura já se terá demonstrado a origem
sicos. Composto em parceria com Guima- neoclássica da doutrina bilaquiana, aqui
rães Passos em 1910, o pequeno manual, entendida como correlato do que acima se
longe de ser unicamente uma exposição de chamou de objetividade construtiva, cate-
técnicas do verso, restaura alguns dos ele- goria com a qual o ensaio busca, também,
mentos essenciais das poéticas tradicionais, caracterizar a reação parnasiana ao modo
adaptando o gênero preceptístico às neces- romântico de encarar o fenômeno poético.
sidades didáticas do tempo. Nele, lê-se o Mas há outro texto talvez ainda mais ade-
seguinte trecho (1918, p. 79): quado à demonstração dessa idéia – gene-
ricamente admitida, mas pouco documen-
“Deve o poeta estudar com afinco a sua tada. Trata-se de um elogio a Alberto de
língua, conhecer-lhe as origens, a filiação, Oliveira, proferido em 1917 e publicado
ler o maior número de clássicos autoriza- postumamente em Últimas Conferências e
dos, para depois se arriscar à arte difícil do Discursos. Nele, depois de proclamar o
verso, de todas as artes a mais difícil. Só amigo como chefe da “escola poética” a que
depois de tudo esmiuçado, recolhido, re- pertencia, o poeta reconstitui a batalha
gistrado e analisado, pode escrever. Sem conceitual de sua geração contra os últimos
grande cópia de vocábulos sempre será falha românticos, que, prejudicados pela imagi-
a enunciação do pensamento. A língua em nação e pela desordem formal, teriam quase
primeiro lugar, – depois a arte, que trará o levado ao esquecimento o que considera as
deleite e a vitória”. “virtudes máximas” da tradição greco-ro-

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Resultado da
eleição do
Príncipe dos
Poetas
Brasileiros,
Fon-Fon, 19 de
abril de 1913

mana: simplicidade, correção, sobriedade, “Quiseram apenas lembrar que, em ma-


clareza e justeza (1924, pp. 21-7). Ainda téria de arte, não se compreende um ar-
nesse texto, recusa a hipótese crítica de que tista sem arte; que, sem palavras preci-
os integrantes do Parnasse Contemporain sas, não há idéias vivas; que, sem locu-
tivessem proposto a teoria da poesia impas- ção perfeita, não há perfeita comunica-
sível – sem pensamento ou paixão – e que se ção de sentimento; e que não pode haver
esgotasse no culto da forma pela forma, afir- simplicidade artística sem trabalho, e
mando que os mestres franceses: mestria sem estudo”.

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O texto apropria-se do princípio – re-
corrente nas retóricas da tradição greco- COMPOSIÇÃO SERIADA
romana – de que a elocução perfeita resulta
da confluência de três elementos: arte + Outra configuração relevante do prin-
natureza + estudo. Na fórmula, arte e natu- cípio da objetividade construtiva em Olavo
reza querem dizer, respectivamente, técni- Bilac, abstraído da doutrina – explícita ou
ca (domínio da língua e da retórica) e enge- implícita – do próprio autor, consiste no
nho (capacidade espontânea devida a con- projeto de elaboração de poemas em série,
figurações do organismo), assim como es- que se observa, sobretudo, em Tarde, livro
tudo equivale ao exercício despendido pelo publicado após a morte, mas inteiramente
escritor no desenvolvimento e integração organizado pelo poeta. Trata-se do apogeu
dos elementos antecedentes (Quintiliano, de seu domínio sobre o código poético
1788, vol. I, pp. 31-4; 58-60). Embora uni- parnasiano, que pode ser interpretado, viu-
das na elocução eficiente, arte e natureza se, como consubstanciação de certos ele-
não se confundiam na doutrina antiga. Bilac, mentos do discurso cultural da época, mar-
ao contrário, ratifica a idéia do artifício cado por acentuada preocupação técnica.
natural, procurando legitimar a técnica por Articulando eficientemente a dimensão
meio de sua integração com a natureza, o formal com a semântica, o poeta, nesse li-
que é, enfim, uma maneira de ocultar os vro, consolida o ideal da elocução perfeita
meios (“andaimes do edifício”) pelos quais ou apenas funcional, isto é, aquela caracte-
se obtêm os efeitos desejados. Esses são os rizada pelo efeito instantâneo: lido o poe-
argumentos com que o texto ajuíza que, em ma, o impacto deveria ser imediato, mes-
arte (= técnica + engenho), a vivacidade mo com o risco de possuir curta duração.
resulta da precisão vocabular; e o sentimen- Do ponto de vista da estrutura poemática,
to, da perfeição elocutiva. Pe. Antônio o projeto repercute na escolha exclusiva do
Vieira também, ao tratar da clareza neces- soneto, o que já tinha ocorrido na concep-
sária ao estilo do púlpito no Sermão da ção de Via Láctea.
Sexagésima, reivindica para a eloqüência Uma das singularidades de Tarde ma-
de seu tempo uma arte que se aproximasse nifesta-se na organização de conjuntos de
da natureza, sugerindo que, pelo estudo, se poemas interligados pela exploração de
Nesta página e produzisse “uma arte sem arte” (Vieira, motivos de uma mesma área semântica,
2000, p. 39). como a série constituída pelos sonetos em
na seguinte,
que se personificam formas da natureza:
embarque de “O Vale”, “A Montanha”, “Os Rios”, “As
Bilac para a Estrelas”, “As Nuvens” e “As Ondas”; ou
como os que giram em torno de grandes
Europa, mestres da arte: “Dante no Paraíso”,
novembro de “Beethoven Surdo”, “Milton Cego”,
1913 “Miguel-Ângelo Velho” e “No Tronco de
Goa”. Há em Tarde, pelo menos, mais cin-
co conjuntos de sonetos seriados, dentre os
quais se destacam, ainda, os trípticos for-
mados por “Pátria”, “Língua Portuguesa”
e “Música Brasileira”; “Prometeu”, “Hér-
cules” e “Jesus”. No lirismo épico de As
Viagens, Bilac adota o mesmo processo
serial, compondo um conjunto de sonetos
em torno da tópica da aventura de povos ou
indivíduos que se entregam a extremos.
Essa preocupação com o inter-relaciona-
mento dos poemas conduz à inevitável
conclusão de que Bilac pertence à família

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de poetas brasileiros que, no exercício do
gênero lírico, concebem os poemas como
parte de um todo orgânico, cujo conjunto
excede a simples coletânea feita mais ou
menos ao sabor do acaso ou da inspiração.
Mantendo a tradição do chamado período
clássico, compunha livros de poemas, e não
poemas que resultassem em livros.
No século XX, João Cabral de Melo
Neto soube se apropriar da objetividade
construtiva observada no projeto parna-
siano (que também se encontra em
Mallarmé, integrante, como se sabe, do
grupo do Parnasse Contemporain), sem se
confundir com ela, mas dela extraindo efei-
tos surpreendentes para o repertório con-
temporâneo. A idéia do poema como arte-
fato tangível (edifício, escultura, pintura, uma cultura de tipo universitário, cuja no-
peça de ferreiro), que em Bilac assume ção de grande literatura incluía ou o protes-
conotação anti-romântica e neoclássica, to social ou a renovação dos modos de di-
manifesta-se, também, em Cabral pelo pro- zer ou ambas as coisas ao mesmo tempo.
jeto da construção em série, caracterizada Logo, não se propõe aqui a recuperação
pela condensação sistemática e desenvol- de Bilac a partir do ponto de vista pós-moder-
vida de variações em torno do mesmo as- no. Nem se pretende traçar uma possível re-
sunto. Trata-se das conhecidas composi- lação teleológica entre a poética parnasiana e
ções que abordam aspectos diferentes de os autores do século XX, como se aquela fosse
uma só tópica, como se observa nos livros estágio precursor destes. Assim, o ensaio não
Quaderna e Serial, inteiramente domina- toma a poesia de Bilac como antecipação
dos pela investigação de facetas imprevis- necessária de Cabral ou, digamos, do
tas de coisas bem conhecidas, como uma Drummond de Claro Enigma. Acredita, an-
cabra, um ovo, um cemitério, um canavial, tes, que estes poetas tenham se apropriado
etc. Assim como o estudo das semelhanças de processos, de tópicas e princípios, que,
– aqui apenas indicadas como matéria de presentes em Bilac e em seu tempo, podem
possível reflexão –, a análise das diferen- ser entendidos como elementos estruturais
ças desses pormenores do projeto de am-
bos os poetas exige capítulo à parte, embo-
ra tanto as diferenças quanto as semelhan-
ças se encontrem em estado latente na tese
de que cada sociedade inventa a poesia de
que precisa. Escrevendo basicamente para
escravocratas liberais ou para jovens repu-
blicanos, Bilac concebia a elegância a par-
tir do ideal de uma possível formação euro-
péia para o Brasil, por meio da França e de Bilac em foto
seus correlatos greco-romanos. João
da edição
Cabral, que escreveu depois de O Cortiço
e de Os Sertões, ao atribuir à técnica uma italiana de
espécie de materialização do bom gosto O Caçador de
revolucionário, fundou sua poesia na bus-
ca de um estilo adequado à mimetização da
Esmeraldas,
miséria brasileira, em consonância com 1908

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dispersos no uso histórico das regras da poe- mito da identidade, instauraria a busca da
sia. Nesse sentido, é possível conceber tam- diferença, da divergência ou do contrário
bém que Bilac tenha, de fato, funcionado como nervo motivador da leitura, movimento
como uma das sugestões para que tais poe- que pressupõe uma máscara não apenas para
tas restaurassem a paciência arquitetônica o autor, mas também para o leitor, que –
do verso clássico em substituição à presu- entendendo a leitura como puro gesto de
mida soltura da frase coloquial modernista. convenções imaginadas – veria nela a cris-
talização de todas as fantasias críticas que a
experiência com os livros faz nascer.
Retornando ao princípio da objetivida-
DESCRIÇÃO ANIMIZADA de bilaquiana, ela tanto pode se manifestar
em textos de construção da intimidade do
Do ponto de vista da microestrutura, indivíduo quanto em textos de figuração da
desde que se admita a hipótese da poesia realidade exterior. Nesta segunda espécie
como trabalho de arte em busca do efeito de poemas, além dos que imitam traços da
previsto, pode-se dizer que a objetividade arquitetura e da escultura, encontram-se
construtiva manifesta-se em quase tudo os que se poderiam chamar mais propria-
quanto Bilac escreveu. Nesse sentido, mes- mente de pictóricos, porque compõem, por
mo aqueles poemas em que um eu apaixo- meio da descrição, uma paisagem, uma
nado se desata em falas emocionais (“Bei- cena, um objeto ou uma situação. É o que
jo Eterno”, “A Alvorada do Amor”) seriam se observa, por exemplo, em “Rio Abai-
regulados pela consciência objetiva do sa- xo”, de Sarças de Fogo:
ber retórico, que a tudo preside como um
maestro no furor estudado da regência. A “Treme o rio, a rolar, de vaga em vaga…
questão que se coloca, então, é: qual a pos- Quase noite. Ao sabor do curso lento
sibilidade de se aferir, hoje, a eficácia da Da água, que as margens em redor alaga,
elocução particular de cada texto no passa- Seguimos. Curva os bambuais o vento.
do, tendo em vista os padrões da poética
cultural segundo os quais foi escrito? A Vivo há pouco, de púrpura, sangrento,
resposta a essa questão implica, necessaria- Desmaia agora o ocaso. A noite apaga
mente, o esforço de conhecimento do re- A derradeira luz do firmamento…
pertório não só do autor, mas também do Rola o rio, a tremer, de vaga em vaga.
leitor originariamente previsto para o tex-
to, acrescido da experiência do leitor Um silêncio tristíssimo por tudo
empírico do momento efetivo da leitura, o Se espalha. Mas a lua lentamente
qual não deveria, em princípio, desrespei- Surge na fímbria do horizonte mudo:
tar a autoridade estrutural da mensagem
nem desconhecer suas intrínsecas relações E o seu reflexo pálido, embebido
com o código de referências a partir do qual Como um gládio de prata na corrente,
se organizou. Por essa perspectiva, sempre Rasga o seio do rio adormecido”.
haverá a hipótese de se inaugurar o poema
cada vez que uma pessoa diferente (e de Ainda em vida de Bilac, esse tipo de
qualquer época) o lê, como se, ao construir descrição sem ênfase – muito freqüente em
seu sentido, procurasse reconstruir também Panóplias, principalmente – foi considera-
o teatro de vozes históricas de sua enun- do por seus opositores como decorrência do
ciação, sempre possíveis de se perpetuarem que se denominou impassibilidade
na singularidade verbal do discurso. Assim, parnasiana, categoria crítica com que se pro-
o leitor de hoje não buscaria apenas a iden- curava desqualificar a nova poesia, por se
tidade de seu tempo com o passado e nem afastar do estilo exaltado dos românticos. O
procuraria entender o passado como prenún- poeta reagiu contra essa restrição, com o
cio inevitável do presente. Abandonando o argumento de que a beleza por si só já con-

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tém emoção, podendo, portanto, prescindir “fímbria do horizonte” (6). Todavia, os
da sublimidade romântica (1924, pp. 24-5): tênues tropos dos quartetos e do primeiro
terceto acabam por realçar a existência de
“Aos chamados poetas parnasianos tam- uma fortíssima metáfora no final, quando
bém se deu outro nome: ‘impassíveis’. surge, subitamente, a figuração alegórica
Quem pode conceber um poeta que não seja da espada de prata do luar rasgando o seio
susceptível de padecimento? Ninguém e do rio. Entretanto, o ponto mais alto da
nada é impassível: nem sei se as pedras elocução poética talvez consista na repe-
podem viver sem alma. Uma estátua, quan- tição quiasmática do primeiro verso no
do é verdadeiramente bela, tem sangue e final do segundo quarteto:
nervos. Não há beleza morta: o que é belo
vive de si e por si só”. “Treme o rio, a rolar, de vaga em vaga…
Rola o rio, a tremer, de vaga em vaga”.
A doutrina desse fragmento contem-
pla perfeitamente o soneto anterior, pois, Procedimento tipicamente sintático, a
por detrás da aparente indiferença de seus reordenação dos elementos de um verso em
versos, pulsam poderosas insinuações se- outro produz indiscutível efeito semântico,
mânticas, todas vivificadas pela densida- contribuindo para o sentido geral do texto,
de artística da composição. “Rio Abaixo” que consiste na aceitação do fluxo inexorável
desenvolve a tópica da poesia como pin- da vida, a que o eu do poema assiste com
tura que fala, isto é, como composição estóica paciência, sugerindo que o contínuo
verbal voltada para estímulos visuais. desfazer das ondas se aplica também ao
Nesses casos, a tradição retórica fala tam- homem. Em outros termos: assim como os
bém em poesia dos olhos ou pintura elo- versos se reproduzem invertidamente, o es-
qüente (Freire, 1759, vol. I, p. 34). Toda- pelho das águas reflete a fugaz condição do
via, a eficácia do texto decorre, sobretu- sujeito da enunciação. Observe-se que esse
do, da adequação do estilo médio à discre- eu é, ao mesmo tempo, personagem e emis-
ta solenidade do tema do entardecer, asso- sor do poema, pois diz “seguimos”. Não só
ciado à imagem da morte. O fluxo das constrói o cenário (o poema resulta de sua
águas sempre foi motivo fértil em poesia, fala), como também se coloca no centro dele,
sobretudo quando ligado ao movimento encontrando ali um lugar estratégico para a 5 Como se sabe, a retórica anti-
ga fazia diferença entre tropo
de um barco, que imita o curso do sol, contemplação cética da vida e do leitor, e figura. Tropo designava o
rumo ao limite do dia, como se observa que o admira de fora. O curioso é que, procedimento retórico que al-
terava o sentido próprio dos
nesse soneto bilaquiano, que acolhe sendo observado, o leitor julga-se obser- vocábulos, tal como se obser-
va na metáfora e na metonímia,
lampejos de mitos primevos do Ocidente vador por excelência. Trata-se do mesmo entre outros. Por figura, enten-
e do Oriente. tipo de ironia que se encontra na famosa dia-se a alteração da ordem
usual dos vocábulos, sem que
Do ponto de vista formal, convém des- tela de Velazquez, em que o pintor simula o sentido próprio fosse altera-
do, tal como se dá com a
tacar o surpreendente poder das frases cur- uma espécie de cena teatral em que, em anástrofe e com o hipérbato,
tas no texto, cujo melhor exemplo se en- vez de contemplado, torna-se sujeito ma- entre outros.

contra no final do quarto verso: “Curva os licioso da contemplação (Foucault [1967], 6 Como tropo, a metáfora con-
siste no uso de um vocábulo
bambuais o vento”. Como se vê, o teor pp. 17-33). em lugar de outro, sendo que
poético da frase resulta de uma simples Situada dentro do quadro, a persona deve haver uma relação de se-
melhança entre o termo utiliza-
anástrofe, a mais elementar das inversões elocutória distribui os toques que compõem do e o evitado. A metáfora será
tanto mais razoável ou ajuiza-
sintáticas. Todavia, seu efeito é forte, es- as dimensões sensoriais da pintura, produ- da quanto mais seus termos
tendendo-se por todo o texto, que é intei- zindo, num primeiro momento, a impres- forem previsíveis pelo hábito
lingüístico dominante na épo-
ramente marcado por figuras dessa espé- são de que seu ponto de observação é exte- ca de sua formulação. Os
exemplos aqui apresentados
cie. Os tropos (5) também são moderados, rior, simulando posição semelhante à dos são praticamente extraídos do
pois a relação entre os termos das metáfo- leitores, que observam o quadro de fora. senso comum: 1. “o rio ondula
como se tremesse”; 2. “o oca-
ras é, quase sempre, regulada pela razão, Mas, em rigor, o poeta-pintor fala de den- so se desfaz como se desmai-
e não pela fantasia, tal como se observa tro do poema-pintura, contrariando a idéia asse”; 3. “o horizonte é tão
nítido como se possuísse de
em “treme o rio”, “desmaia o ocaso” e romântica da impassibilidade parnasiana, fato uma linha divisória”.

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aliás repudiada – viu-se anteriormente – luta indiferença pela presença do homem,
pela doutrina do próprio Bilac: primeiro, o apesar dos efeitos que produz sobre ele.
texto faz ressaltar a sensação oscilante das Ao tratar das descrições ou pinturas –
águas, comparadas com o tremor dos mús- apropriadas ao gênero demonstrativo do
culos ou dos nervos humanos; depois, re- discurso, entendido como aquela espécie
gistra o efeito do sol sobre os olhos da per- de texto que propõe o deleite pela exposi-
sonagem e sobre o ponto geográfico de que ção das virtudes ou dos defeitos das maté-
fala; em seguida, assinala a intensidade rias selecionadas –, a retórica antiga reco-
moderada do vento, que alaga as margens, menda o emprego da enarguéia (também
movimenta a vegetação e impulsiona o chamada hipotipose ou evidência), que
barco. Observe-se que é omitido qualquer consiste em corporificar o mais vivamente
vocábulo que pudesse explicitar a existên- possível a idéia proposta, de modo a produ-
cia da embarcação, omissão que, talvez, se zir no leitor o efeito de que a tem diante dos
explique como expediente para camuflar a olhos (Quintiliano, 1790, vol. II, pp. 103-
presença do artista no centro do próprio 27). Essencial ao entendimento do soneto
cromo, que, não obstante, vai tomando for- em questão, o procedimento da enarguéia
ma e ser à proporção que enuncia os com- já fora aplicado por Bilac, em sua “Profis-
ponentes verbais e visuais da obra, que são de Fé”, particularmente na passagem –
encena o ato da própria composição. De nem sempre lida com simpatia pela crítica
repente, no início do final, surge o registro do século XX –, em que, resenhando a pro-
do som, também pelo avesso da percepção posta de instituir o objeto pelo poder
vivenciada, pois se confunde com a reação instaurador da palavra, afirma:
psicológica produzida pelo ambiente no
momento mesmo da enunciação, manifes- “Por isso, corre, por servir-me,
tando-se pela ausência gradual de ruído: Sobre o papel
Escola de Belas
“um silêncio tristíssimo por tudo/ se espa- A pena, como em prata firme
Artes, no Rio, lha”. No final, o surgimento da lua, sem al- Corre o cinzel.
cujo academismo terar a mudez da sinfonia – pois se trata de
sinfonia visual –, reinstaura o alívio da luz e Corre; desenha, enfeita a imagem,
Bilac respirou arremata o poema com a alegoria da espada A idéia veste:
na juventude lunar rasgando o reino das águas, com abso- Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem
Azul-celeste”.

A partir desse lugar, especialmente da


1segunda estrofe, poder-se-ia supor que
Bilac desdenha a identidade entre a pala-
vra e a “substância das coisas”, limitando-
se a “vestir magnificamente” as idéias
(Bosi, 1970, p. 254). Trata-se de leitura
possível, mas contrária à doutrina do poe-
ta, aqui definida experimentalmente como
uma teoria sofística do poema, por se pen-
sar que instaura o próprio logos ao se impor
como linguagem. Por essa perspectiva, o
sentido das coisas – e também das pala-
vras – decorreria de seu valor de uso, e não
de uma suposta significação imanente, de-
pendendo, antes, de convenções históri-
cas do agir e do dizer. Conviria lembrar
também que, como poeta de formação
neoclássica, Bilac emprega vestir na

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acepção de atribuir condições de conheci- conceito como decorrência de relações entre
mento da idéia ou da imagem (senso- palavras, processo em que a enarguéia
7 Esse entendimento está pressu-
rialidade, visibilidade), assim como Ma- participa como agente da inteligência po- posto na análise que fiz de um
nuel Botelho de Oliveira já utilizara vesti- ética. Esse é o lugar de onde se deve ler soneto do poeta seiscentista em:
“O Engenhoso Fidalgo Manuel
do no sentido estrito de aparência (7). “Rio Abaixo”, que aplica o antigo proce- Botelho de Oliveira”, in Revista
Enfim, o que Olavo Bilac quer dizer é que dimento como correlato do princípio da USP, no 50, São Paulo, CCS-
USP, jun.-jul.-ago./2001, pp.
não existe idéia sem corpo, pois entende o objetividade construtiva. 183-4.

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