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RESUMO
Trata-se de um estudo sobre as possíveis conexões entre a canção de protesto
(Edu Lobo, Carlos Lyra) e os discursos do CPC durante os anos 60. As criações
artísticas são analisadas com vistas a captar os vínculos entre o nacional-popular
na canção brasileira e o impressionismo (C. Debussy), o cool-jazz (Miles Davis),
Rodgers and Hart, Heitor Villa-Lobos (modernismo), Waldemar Henrique.
Palavras-chave: música de protesto, nacional-popular, linguagem.
ABSTRACT
This is a study if the possible connections between the protest song (Edu Lobo,
Carlos Lyra) and the CPC discourses in the 1960s. The artistics creations are
analysed with a view to pointing out the ties between the national-popular in
Brazilian song and the impressionism (C. Debussy), the cool-jazz (Miles Davis),
Rodgers and Hart, Heitor Villa-Lobos (modernism), Waldemar Henrique.
Key words: protest song, national popular, language.
Os diálogos musicais estabelecidos por Edu Lobo e Carlos Lyra entre a Bossa Nova,
o modernismo nacionalista, o cool-jazz relativizaram as oposições estabelecidas
pelos seus partidários e não-simpatizantes: jazz versus samba;
violão versus guitarra elétrica; acordes consonantes versus acordes de nona;
artesanato versus indústria cultural; compositor-militante versus artista alienado;
música +" raízes" brasileiras versus música norte-americana...
A História do Brasil era interpretada pelo PCB, nos inícios dos anos 60, consoante
uma análise marcadamente economicista. Em linhas gerais, essa interpretação
incidia, de um lado, no debate sobre o capitalismo dependente, cuja tendência
dominante atrelava-se a gigantescos monopólios e oligopólios presos ao capital
financeiro de origem norte-americana, notadamente; e, de outro, na discussão
sobre a concentração fundiária ligada às elites empresárias brasileiras.
(...) saíram pelo país afora numa louquíssima mambembice revolucionária nunca vista na história das
esquerdas próximas do poder. O povo olhava embasbacado aquela multidão de jovens que lhes ensinavam
coisas de dedo em riste, lhes faziam equações, empurrões, gritos de estímulo, ei! sus! querendo transformar os
operários e camponeses em revoadas de torsos heróicos (...). Nunca se acreditou tanto na arte como força
política, no mundo8.
O Centro Popular de Cultura, fundado no Rio de Janeiro por Oduvaldo Vianna Filho,
Ferreira Gullar, visava a aproximar o teatro de um público mais amplo, através da
representação de espetáculos (peças, shows) em novos espaços.
(...) o escritor, o cineasta, o estudante, o profissional liberal redescobrem-se como cidadãos diretamente
responsáveis, como os demais trabalhadores, pela sociedade que ajudam a construir10.
De acordo com esse programa, o artista deveria assumir o papel de um militante
político, capaz de interferir na História através de suas armas espirituais, em prol
da libertação material e cultural do nosso povo11. E, paralelamente, preconizava
a autonomia da obra de arte como algo equivalente a um discurso que anunciava,
com antecedência, transformações sociais a serem implantadas, futuramente, pela
revolução social. Em contrapartida, o artista despolitizado, defensor da arte pela
arte, transformava-se numa presa fácil ou numa vítima dócil ou, ainda,
num instrumento da classe dominante, em função da produção de obras
sintonizadas com o status quo, ou antipopulares.
(...) a existência do artista de esquerda dentro da sociedade de classes é possível pela simples razão que
nenhuma formação sócio-econômica pode ser inteiriça e isenta das contradições pelas quais coexistem sempre
duas sociedades dentro de uma sociedade: a velha em fase de declínio e a extensão da nova em fase de
surgimento e expansão. Em nosso país, as contradições cada vez mais agudas entre as forças produtivas em
avanço e as relações de produção em atraso, entre as classes se apropriando do trabalho alheio, entre a nação
despertando para a conquista de seu futuro histórico e o imperialismo desejando para si o império da história,
são contradições que não podem deixar de se refletir em cada um dos aspectos da vida nacional12.
E, paralelamente, admitia:
(...) em nosso país não há nada mais fácil do que descobrir a presença ativa do novo. Ele encontra-se a cada
momento operando transformações de todas as ordens em todos os níveis da realidade nacional. Os que não o
encontram e por isso se perdem na angústia e na importância sem remédio são os artistas e intelectuais que se
recusam a compreender que o novo é o próprio povo e que há o novo onde está o povo e só onde está o
povo13.
Neste Manifesto, C. E. Martins substituiu a luta de classes pela noção de" povo",
elegendo o artista-militante como o porta-voz do novo. De acordo com esse
programa cultural, C. E. Martins dividiu os intelectuais-artistas em três tipos: 1º)
os conformistas (agentes da ideologia da dominação); 2º)
os inconformistas (agentes que se autoproclamavam neutros ou independentes em
face dos grupos sociais dominantes ou dominados); neste caso,
a neutralidade representava uma atitude epidérmica, não colocando em xeque os
segmentos dominantes da sociedade; 3º) os partidários de uma atitude
revolucionária conseqüente.
(...) os membros do CPC optaram por ser povo, por ser parte integrante do povo, destacamentos de seu
exército no front cultural. É esta opção fundamental que produz no espírito dos artistas e intelectuais que ainda
não a fizeram alguns equívocos e incompreensíveis quanto ao valor que atribuímos à liberdade individual no
processo de criação artística e quanto à nossa concepção de essência da arte em geral e da arte popular em
particular16.
(...) o povo não é uma entidade homogênea em sua composição, uma vez que dela faz parte não apenas a
classe revolucionária, mas também outras classes e estratos sociais os mais diversos17.
Não resta dúvida que, se nos mantivermos no plano do juízo estético puro e simples, jamais abarcaremos a
complexidade desse fenômeno cultural em curso hoje no Brasil. É preciso não esquecer, como dissemos antes,
que se trata da dramática tomada de consciência, por parte dos intelectuais, do caráter histórico, contingente,
de sua atividade e do rompimento da parede que pretendia isolar os problemas culturais dos demais problemas
do país. O escritor, o cineasta, o pintor, o professor, o estudante, o profissional liberal redescobrem-se como
cidadãos diretamente responsáveis, como os demais trabalhadores, pela sociedade que ajudam a construir
diariamente, e sobre cujo destino têm o direito e a obrigação de atuar.
A cultura popular é, em suma, a tomada de consciência da realidade brasileira. Cultura popular é compreender
que o problema do analfabetismo, como o da deficiência de vagas nas Universidade, não está desligado da
condição de miséria do camponês, nem da dominação imperialista sobre a economia do país. Cultura popular é
compreender que as dificuldades por que passa a indústria do livro, como a estreiteza do campo aberto às
atividades intelectuais, são frutos da deficiência do ensino e da cultura, os quais são mantidos como privilégios
de uma reduzida faixa da população. Cultura popular é compreender que não se pode realizar cinema no Brasil,
com o conteúdo que o momento histórico exige, sem travar uma luta política contra os grupos que dominam o
mercado cinematográfico brasileiro. É compreender, em suma, que todos esses problemas só encontrarão
solução se se realizarem profundas transformações na estrutura sócio-econômica e, conseqüentemente, no
sistema de poder. Cultura popular é, portanto, antes de mais nada, consciência revolucionária21.
Assim, as músicas de Edu Lobo e de Carlos Lyra deveriam refutar o folclore como o
símbolo do atraso ou do conformismo e a música destinada a um consumo imediato
pelas massas urbanas conforme normas do mercado. Na realidade, a canção
participante representava o esboço de um projeto a ser disseminado na sociedade
como uma utopia a se concretizar como um programa hegemônico.
A partir desse momento, a canção de protesto passou a ser considerada pelos
críticos - simpatizantes dos CPCs - como a única verdadeiramente revolucionária,
capaz de despertar no povo a sua "(...) qualidade heróica de futuros combatentes
do exército de libertação nacional e popular"22. De acordo com uma interpretação
mais dogmática desse Manifesto, a canção revolucionária deveria provocar no
ouvinte - povo - a passagem do" (...) reino da necessidade para o reino da
liberdade"23. Edu Lobo e Carlos Lyra, influenciados pelos discursos verbalizados
sobre a arte popular revolucionária, escreveram músicas em parceria com
Gianfrancesco Guarnieri, Ruy Guerra, Vinicius de Moraes, Oduvaldo Vianna Filho,
entre outros, baseando-se nos critérios de clareza, de simplicidade,
de objetividade política e sob a perspectiva técnica de critérios inspirados no
impressionismo neo-romântico e neoclassicismo (sistema tonal + dissonâncias +
ritmos sincopados).
Edu Lobo e Carlos Lyra, ligados, em algumas fases de suas carreiras, ao Teatro de
Arena de São Paulo, acabaram internalizando em algumas de suas canções,
critérios genéricos do Manifesto do CPC. Devido à inexistência de um projeto
específico para a área musical e em função da historicidade das memórias sonoras
desses compositores25, o projeto sobre a canção de protesto foi-se esboçando
através de matizes poético-políticos e musicais muito diversos. Nem sempre as
mensagens de Edu Lobo ou de Carlos Lyra em suas canções Borandá, Mesmas
Histórias, A mulher de cada porto reproduziam as chamadas condições objetivas da
História, como por exemplo, a exaltação do proletariado:" (...) classe por
excelência negação, única classe que luta para negar-se a si própria, para deixar de
existir como tal e com isto, fundar o novo mundo em que não exista mais
classes"26, ou ainda distanciavam-se da compreensão didática de sua mensagem
pelo chamado povo brasileiro, de acordo com as centenas de textos divulgados pela
União Nacional dos Estudantes:
(...) falando ao povo (a respeito dos problemas do povo) o intelectual passa a ser povo e então seu porta-voz,
e então intelectual da sociedade, não intelectual da anti-sociedade27.
Oduvaldo Vianna Filho captou, com clareza, o sentido utópico de uma possível
aproximação do artista-engajado e as massas (povo): a ênfase dada pelos
dramaturgos, compositores, poetas no conteúdo político de uma peça ou de uma
canção implicava o sufocamento da aura da obra de arte ou da especificidade das
linguagens artísticas, e o projeto artístico engajado numa espécie de pronto
socorro artístico28. Ferreira Gullar, um dos mais ardorosos defensores da arte
popular revolucionária, nos fins dos anos 60 também criticou o excessivo
didatismo das obras criadas pelos nacionalistas de esquerda, contribuindo para o
surgimento de um radicalismo político, típico de intelectuais de classe média.
(...) não passa pelo Manifesto a suposição de que o trabalho de uma obra cultural (superior ou inferior) se
realiza da mesma maneira enquanto obra, isto é, como esforço para capturar a experiência, determinando-a
como visível, pensável ou dizível. Nem passa pelo Manifesto a suposição de que uma obra de arte (superior ou
inferior) não se encontra apenas nela mesma, como objetividade empírica ou ideal, mas no campo constituído
por ela e seus destinatários, campo criado a partir dela com eles, aos quais se dirige. Há no Manifesto, além do
maniqueísmo das distinções, um objetivismo artístico que redunda em subjetivismo do criador.
O artista do CPC é e não é povo - não é povo, como indica a visão que possui de seu público; e é povo porque
vanguarda do herói do exército de libertação popular e nacional. Essa curiosa fantasmagoria, vasada em
linguagem hegeliana do em si e do para si, traduzida para a fenomenologia husserliana do fenomênico e do
essencial e para o existencialismo do ser-no-mundo-com-os-outros, acoplada ao conceito lukacsiano da falsa
consciência e à concepção leninista da consciência vinda de fora, pretende estar a serviço de uma revolução
popular heróica. Entre duas alienações - a da arte superior e a da arte do povo - e entre dois alienados - o
artista superior e o artista do povo - insere-se a figura extraordinária do novo mediador, o novo artista que
possui os recursos da arte superior e o encargo de fazer arte inferior sem correr o risco da alienação presente
em ambas. Assim, através da representação triplamente fantástica - do artista alienado, do artista do povo e
do artista popular revolucionário em missão - é construída a única imagem que interessa, pois é ela que se
manifesta no Manifesto: o jovem herói do CPC29.
Se você jurar/ Que me tem amor/ Eu posso me regenerar/ Mas se é/ Para fingir, mulher/ A orgia assim não vou
deixar/ Muito tenho sofrido/ Por minha lealdade/ Agora estou mais sabido/ Não vou atrás de amizade/ A minha
vida é boa/ Não tenho em que pensar/ Por uma coisa à-toa/ Não vou me regenerar.../ (Ismael Silva, 1931).
As músicas escritas por Edu Lobo e Carlos Lyra refletiram, de um lado, algumas
dimensões político-estéticas de uma memória coletiva construída
pela esquerda durante os anos 60, centrada nos temas sobre o morro e o sertão,
como verdades inquestionáveis, sob o ponto de vista de uma determinada leitura
sobre a História do Brasil; e, de outro, alguns traços técnico-estéticos já
consolidados pelos compositores eruditos, tais como Villa-Lobos, Camargo
Guarnieri, Lorenzo Fernandez e Francisco Mignone. E, influenciados por uma
determinada interpretação do tema construído pelos cepecistas sobre a Revolução
Russa de 1917 e a Revolução Burguesa e Francesa de 1789, esses compositores
construíram, consciente ou inconscientemente, músicas representativas de duas
frações da classe oprimida: o campesinato e o proletariado urbano.
(...) visão da revolução que converteria a nação inteira, mesmo que tivesse de utilizar, em sua etapa final os
`dispositivos do poder', que controlava o voluntarismo e ilusão, talvez. Em suma, um vanguardismo
singularmente nuançado.30
Nas músicas de Edu Lobo, escritas entre 1963-68 sobre o sertanejo ou o pescador,
pode-se resgatar temas inspirados no folclore, de acordo com os paradigmas
discutidos por Mário de Andrade, em sua vastíssima obra sobre essa
questão. Reza, Aleluia, Upa Neguinho, Cinco
crianças, Borandá, Arrastão, Ponteio representam canções de Edu Lobo que
procuravam, de um lado, negar ou deglutir o chamado romantismo regionalista-
ufanista presente no Luar do Sertão de Catulo da Paixão Cearense, e, de outro,
denunciar ou desmitificar mitos arraigados no imaginário das populações rurais ou
dos despossuídos das grandes cidades.
Na realidade, as canções de Edu Lobo inspiradas nos gêneros populares tais como o
frevo, o cordão, a embolada, apresentavam um acabamento formal de natureza
erudita, oriunda dos grandes centros urbanos. Notam-se em Ponteio e Memórias de
Marta Saré, de um lado, pulsos oriundos do imaginário nacional-populista do CPC,
e, de outro, uma feitura técnico-estética de altíssimo nível, podendo ser incluídas
entre as canções mais significativas escritas durante o século XX.
O Show Opinião
Nara Leão, posteriormente substituída por Maria Betânia, João do Valle e Zé Ketti
assumiram papéis de artistas integrantes de um front cultural, conforme concepção
jdanovista, que haviam transformado o limite de suas ações políticas no âmbito das
dimensões do palco dos teatros onde essa peça foi encenada (Rio de Janeiro, São
Paulo, Porto Alegre). Os cantos de protesto baseavam-se em formas da música
popular brasileira: samba, baião, embolada. Competia, portanto, aos intérpretes e
aos autores dos textos poéticos e musicais das canções (Carlos Lyra, Edu Lobo, Zé
Ketti, João do Valle, Vinicius de Moraes, Gianfrancesco Guarnieri, Sérgio Ricardo)
divulgar um imaginário capaz de captar e transmitir emoções próximas aos anseios
do povo. Assim, todos os criadores desse espetáculo deveriam ter
uma opinião sobre os problemas sociais que afligiam o "povo" brasileiro. E,
paradoxalmente, todos os públicos que compareceram durante um ano para assistir
e aplaudir de pé esse show, eram vistos pelos ideólogos da arte engajada
como atores que espelhavam a verdadeira face do povo.
(...) como nos ritos religiosos, onde os mitos subjazem numa forma conhecida pelos fiéis circunscrevendo,
portanto, um código próprio. Opinião operava uma comunicação em circuito fechado: palco e platéia irmanados
na mesma fé. Aliás, um raro exemplo de espetáculo brasileiro contemporâneo grego em seu espírito. O povo de
palco era o mesmo povo da platéia32.
Neste espetáculo foi mantido o conceito de povo sacralizado por Nélson Werneck
Sodré nos Cadernos do Povo: conjunto de classes ou de camadas ou de grupos
sociais. E Borandá e Marcha da 4a feira de Cinzas foram inseridas nesse espetáculo
e interpretadas nesse contexto sócio-cultural (texto dramatúrgico + encenação +
arte engajada) como representativas de uma arte popular revolucionária.
E, paralelamente, a
(...) música Carcará, por exemplo, quando cantada em qualquer hora e lugar tornava-se a senha de
reconhecimento da tribo ideológica. Metonímia, simbolização, o próximo passo deste processo político é a
criação do mito, para completar a circularidade própria das criações ideológicas artificiais. O mito, como se
sabe, define-se pela heteronomia de seu corpus em relação às suas origens reais, ou seja, é uma forma
autônoma, referente a algo que existiu, mas totalmente independente, em sua existência separada de suas
constituintes originais. Como relação de alteridade e, então, pura ideologia33.
O sucesso desta tendência deve-se particularmente à atuação de Nara Leão, cantora sem grandes recursos
vocais, mas que se associou à BN pelas características básicas de sua interpretação. Exprimindo-se sempre da
maneira mais simples e direta, adotando também a prática do canto quase falado, lançando mão de um
repertório de qualidade, despertou, pela sua inteligência e musicalidade, grande interesse popular para com a
temática participante. Aparentando pessoal e vocalmente certa fragilidade, Nara lançou um repertório de
conteúdo bastante agressivo, numa época, inclusive, em que a manifestação pública de idéias se tornara
problemática. O sucesso do repertório `participação' alcançou maiores proporções através do show `Opinião'
onde Nara Leão era figura de proa. O sucesso do show tanto no Rio como em São Paulo sugeriu a encenação de
outros na mesma linha - `Liberdade, Liberdade' e `Zumbi' - assim como as suas gravações em disco. Montado
sob condições técnico-teatrais das mais primitivas, o espetáculo conseguiu, através dessas músicas, grande
contato com o público, que aplaudia no decorrer da apresentação e não raro participava ativamente, cantando
junto com os atores. Nessa época surgiu uma série de novas composições, das quais João do Valle e os irmãos
Marcos e Paulo Sérgio Valle foram os autores mais destacados. Nelas presenciamos verdadeiros manifestos:
`onde a terra é boa o senhor é dono não deixa passar', `o nordestino vai criar coragem pra poder lutar pelo
que é seu', `plantar pra dividir? Não faço mais isso não', `quem trabalha é que tem direito de viver, pois a
terra é de ninguém', `o dia da igualdade está chegando, seu doutor' etc. Nessa linha, além dos textos do tipo
`libelo', existem também aqueles cujo impacto resulta da aridez agressiva do próprio fato narrado: `Carcará/
pega, mata e come/ Carcará/ não vai morrer de fome/ Carcará/ mais coragem do que homem/ Carcará/ pega,
mata e come!'
No que toca à interpretação, se as canções do tipo `amor-sorriso-flor' oferecem ao cantor maior liberdade, por
se basearem mais na subjetividade afetiva de cada um, as canções que cantam a aridez, o marasmo, o
abandono e o tipo vegetativo de sobrevivência de toda uma coletividade, exigiriam do cantor uma interpretação
correlata. Uma interpretação ainda mais impessoal, ainda menos `expressiva', sem o menor perfeccionismo
vocal e não raro com muita dureza. Assim se explica, por exemplo, a ascensão rápida da cantora Maria Betânia,
que, ao substituir Nara no show `Opinião', teve sucesso imediato. Possuindo uma voz ainda mais primitiva e
rude, sua interpretação conferiu a empostação exata e ainda maior autenticidade ao conteúdo daqueles textos -
particularmente o Carcará35.
Podem me prender/ Podem me bater/ Podem até deixar-me sem comer/ Que eu não mudo de opinião/ Daqui
do morro/ Eu não saio, não/ Se não tem água/ Eu furo um poço (...) Fale de mim quem quiser falar/ Aqui eu
não pago aluguel/ Se eu morrer amanhã, doutor/ Estou pertinho do céu/.
Em Borandá (letra e música de Edu Lobo), canção com ambientação rural, o autor
procurou desmistificar a religiosidade popular dos nordestinos, vista como um
entrave ou obstáculo que contribuía para a não-conscientização do homem
rústico em face dos reais problemas sociais. Aproximando-se das idéias estético-
políticas esboçadas por Glauber Rocha em seu filme Deus e o Diabo na Terra do
Sol, Edu Lobo denuncia a miséria como um sintoma da seca e, paralelamente,
procura desmistificar a religiosidade popular que impelia o sertanejo a assumir o
papel de um ser errante, que se dirige para os grandes centros urbanos do litoral
em busca de melhores condições de vida ou terras férteis em outras regiões do
Nordeste. A temática dessa canção lembra problemas levantados por Graciliano
Ramos em sua obra Vida Secas, e filmada por Nélson Pereira dos Santos em 1963-
1964: Deve ser que eu rezo baixo e, ironicamente, o autor procura indicar uma
resposta: "(Pois meu Deus não ouve, não)/ É melhor partir lembrando (Que ver
tudo piorar)". E, em seguida, Edu Lobo resume, em poucas linhas, o retrato sobre
as condições de vida do retirante: "(...) Borandá, que a terra/ Já secou, borandá/ É
borandá, que a chuva/ Não chegou, borandá". E, sutilmente, denuncia a relação
Igreja/ coronelismo e uma possível solução dos problemas sociais: "Já fiz mais de
mil promessas/ Rezei tanta oração/ deve ser que eu rezo baixo/ Pois meu Deus não
ouve, não/ Borandá, que a terra/ Já secou borandá/ É borandá, que a chuva/ Não
chegou, borandá". E, finalmente, sem nenhuma ilusão, o sertanejo procura outros
lugares para fugir da seca: "Vou-me embora, vou chorando/ Vou-me lembrando de
meu lugar/ Quanto mais eu vou pra longe/ Mais eu penso sem parar/ Que é melhor
partir lembrando/ Que ver tudo piorar/ Borandá, borandá/ Vem borandá".
Convidado por Oduvaldo Vianna Filho para escrever a trilha sonora da peça Os
Azeredos e os Benevides (tema central: a vida do povo nas áreas rurais), Carlos
Lyra engajou-se no movimento político liderado pelo PCB. A partir de 1961-1962,
as canções de Carlos Lyra e as suas posturas políticas procuravam refletir o seu
engajamento nas lutas da UNE, do Teatro de Arena, e, posteriormente, do CPC. O
objetivo de Carlos Lyra poderia se resumir no seu depoimento recente:
(...) trazer a Liga Operária Camponesa para minha música. Quando eu contava tudo isso ao Estevan, ele
vibrava. Era a música de Zé Ketti, Nélson do Cavaquinho e Cartola, o pessoal da escola de samba, mais João do
Valle, que era homem rural do interior do Maranhão. Acho que a música brasileira é isso. Ela está ou no
interior, ou na escola de samba, no morro, enfim, nesses lugares onde estão as verdadeiras manifestações
populares37.
Com a criação do CPC do Rio de Janeiro, Carlos Lyra passou a ocupar a direção do
Departamento de Música. Tendo passado pelo samba-canção, pela Bossa Nova,
Carlos Lyra tinha uma visão muito particular sobre o conceito de cultura popular e
de canção participante. No momento da fundação do CPC da UNE, C. Lyra se opôs a
essa denominação, pois admitia que a produção cultural dos intelectuais não
deveria ser chamada de cultura popular. Achava que o teatro não era do povo, nem
a música mais politizada poderia ser classificada como a música do povo. Era
favorável à aproximação do intelectual com o povo, mas nunca transformar a
música num discurso político engajado capaz de contribuir para as transformações
da realidade histórica.
Para Carlos Lyra, a maioria dos artistas da Bossa Nova eram de direita, com
exceção de Vinicius de Moraes e Sérgio Ricardo. Entretanto, acreditava que, com o
surgimento do CPC, a Bossa Nova nunca poderia continuar a trilhar os mesmos
caminhos ideológicos. E, por essa razão, procurou envolver muitos
artistas indecisos:" (...) até o Tom Jobim, que era de direita, começava a mudar
pela mão do Vinicius (...)". Assim, Carlos Lyra procurou, de um lado, aproximar-se
dos artistas comprometidos com as raízes do povo, como João do Valle, Zé Ketti,
Cartola, Nélson Cavaquinho; e, de outro, convencer os chamados artistas
alienados, como Geraldo Vandré, "(...) advogado cantador de bolero, que não tinha
nada a ver com a política"38. Em parceria com Vinicius de Moraes, escreveu o Hino
da UNE, a Canção do subdesenvolvido, com Chico de Assis, e, no teatrinho do CPC,
Carlos Lyra convidou o quarteto em Cy, o Tamba Trio, Cartola, Zé Ketti, entre
outros, para realizar diversos shows.
(...) Faço bossa-nova, faço teatro. Mas, da mesma forma que não acho que o teatro que a gente faz seja um
teatro do povo, a minha música, por mais que eu pretenda que ela seja politizada, nunca será uma música do
povo. Tudo pode ser feito com essa intenção de chegar ao povo, um teatro para o povo, uma música que
busque a participação, a integração popular. Mas, classificá-los como arte popular, aí já é outra história.
Reconheço que a Bossa Nova, por exemplo, nunca mais foi a mesma depois do CPC. Antes, ela era a Bossa
Nova do amor, do sorriso e da flor. Depois, passou a criticar a influência do jazz e também fazer uma análise
das coisas que estavam influenciando a cultura brasileira naquele momento. Vem o tempo do `morro não tem
vez' (...)40.
Pobre samba meu/ Foi-se misturando, se modernizando/ E se perdeu/ E o rebolado, cadê?/ Não tem mais/
Cadê o tal gingado, que mexe com a gente/ Coitado do meu samba, mudou de repente/ Influência do jazz/
Quase que morreu/ E acaba morrendo, está quase morrendo/ Não percebeu/ Que o samba balança de um lado
pro outro/ O jazz é diferente, prá frente e prá trás/ E o samba meio torto, ficou meio torto/ Influência
do jazz(...)
Em 1962, juntamente com Juca Chaves, Alaíde Costa, Sílvia Telles, Oscar Castro
Neves, realizou vários shows em Universidades. Participou do musical Um
americano em Brasília (1961), de autoria de Chico de Assis e Newton Lins e Barros.
A Canção do subdesenvolvido, incluída nessa peça, foi posteriormente gravada,
mas em função da proibição da encenação da peça pela Censura Federal, o disco foi
retirado das lojas.
(...) a minha presença no CPC fez com que a minha cabeça musical mudasse. Eu já estava preocupado em
fazer música do tipo Marcha da 4a feira de Cinzas e não só em criar canções como Você e eu e Coisa mais
linda... mas foi o Centro Popular de Cultura que fez deslanchar tudo isso. Como eu era fundador e diretor
musical do CPC do Rio, fazia parte do meu trabalho revisar a música brasileira. Enquanto a bossa nova era
busca da forma, com o CPC começou uma busca do conteúdo e isso veio influenciar todos os bossa-novistas,
para falar a verdade. Nessa fase, é possível perceber que o Tom Jobim, eu, todos nós começamos a mudar.
Todo o conteúdo mudou em função do Centro Popular de Cultura. Mesmo que as pessoas não fossem ligadas à
esquerda, elas estavam conscientes da realidade social do Brasil, e isso é muito importante para a nossa
identidade cultural41.
Nesse processo de reprodução da música popular, a `esquerda' musical deu a sua contribuição. Até 1964, sua
atuação esteve mais ligada aos postulados de uma `cultura popular' que esclarecesse o povo sobre seus
dramáticos problemas. Muitos músicos estiveram ligados ao Centro Popular de Cultura, agência de uma arte
nacional e popular, destacando-se os nomes de Edu Lobo e Carlos Lyra. Através da linha `bossanovista', a
ênfase recaía no conteúdo politizado da canção, no protesto (...)42.
E assim, a Marcha da 4a feira de Cinzas, escrita por Carlos Lyra e Vinicius de
Moraes em 1962, foi naturalmenteselecionada por Oduvaldo Vianna Filho, Paulo
Pontes e Armando Costa para ser apresentada no Show Opinião:
Acabou nosso carnaval/ Ninguém ouve cantar canções/ Ninguém passa mais brincando feliz/ E nos corações/
Saudades e cinzas foi o que restou/ Pelas ruas o que se vê/ Que nem se sorri/ Se beija e se abraça/ E sai
caminhando/ Dançando e cantando cantigas de amor/ E no entanto é preciso cantar/ Mais que nunca é preciso
cantar/ Mais que nunca é preciso cantar/ É preciso cantar e alegrar a cidade/ A tristeza que a gente tem/
qualquer dia vai-se acabar/ Todos vão sorrir/ Voltou a esperança/ É o povo que dança/ Contente da vida feliz a
cantar/ Porque são tantas coisas azuis/ E há tão grandes promessas de luz/ Tanto amor para amar que a gente
nem sabe/ Quem me dera viver prá ver/ E brincar outros carnavais/ Com a beleza dos velhos carnavais/ Que
marchas tão lindas/ E o povo cantando seu canto de paz/ Seu canto de paz43.
Essa canção exemplifica, com nitidez, as inter-relações entre Bossa Nova e o novo
imaginário calcado no programa sobre o nacional e o popular na cultura brasileira.
Com letra de Vinicius de Moraes, esta marcha-rancho tornou-se um dos grandes
sucessos no ano do seu lançamento: 1962. Na realidade, esse texto denota um
forte otimismo e esperança numa possível mudança histórica, tendo o povo como o
seu principal porta-voz. No Show Opinião, em dezembro de 1964, essa canção
inseriu-se num outro contexto histórico: peça teatral como resistência à ditadura
recém-instaurada no País e, além disso, as tropas do governo já haviam destruído,
em seu sentido literal, a sede da UNE no Rio de Janeiro, iniciando as perseguições
aos ex-cepecistas.
(...) até certo ponto, o samba é a raiz da bossa nova. Mas a bossa nova não é somente samba. As raízes da
música brasileira vão além. Por isso, a bossa não pode ser somente o samba. Ela às vezes fica restrita ao
universo do samba porque João Gilberto é um cantor sambista. Ele canta sambas na maior parte do seu
repertório. Então, passou para muita gente, inclusive no exterior, a idéia de que a bossa nova é um sambinha:
`samba bossa nova'. Com isso eu não concordo (Carlos Lyra).
NOTAS
1
Ver: SAID, Ana Maria. O projeto político-pedagógico do Teatro de Arena de São Paulo. Campinas, Dissertação
de Mestrado defendida na Faculdade de Educação da UNICAMP, 1989. [ Links ]
2Pedro Pedreiro (Chico Buarque de Holanda). Gravado em 23 de novembro de 1965, no show: 1ª Dentisamba.
Teatro Paramount de São Paulo; Sem Deus, com a família (César Roldão Vieira, nov. 1965); Zé do Trem (César
Roldão Vieira, nov. 1965); Aleluia (Edu Lobo/ Ruy Guerra), gravado no show sem título, na noite de 26 de abril
de 1965, no Teatro Paramount; Canção do cangaceiro que viu a Lua cor de sangue (Carlos Castilho/ Chico de
Assis, 1967); Anda que te anda (Ary Toledo/ Mário Lago, 1967).
3 Na conjuntura histórica - 1966/1967 - o debate estético sobre as verdadeiras raízes do MMPB confundiu-se
com questões político-ideológicas. De um lado, ocorreu a passeata da Frente única da MPB e, de outro, a Jovem
Guarda lançou o seu Manifesto do Iê-Iê-Iê contra a onda de inveja (publicado n'O Cruzeiro, em 5 de agosto de
1967)." No dia 18 de julho de 1967, a `passeata' pela MPB, `contra as guitarras elétricas' saiu do Largo São
Francisco, no Centro de São Paulo, e seguiu até o `templo da bossa', o Teatro Paramount. Tendo à frente Elis
Regina, Gilberto Gil, Jair Rodrigues, Edu Lobo, o conjunto MPB-4, a `passeata' na verdade era um evento de
lançamento do novo programa da TV Record, Noite da MPB, que deveria suceder O Fino da Bossa; porém,
acabou sendo vista como uma manifestação `ideológica' contra a turma do iê-iê-iê, o que era plausível tendo
em vista as declarações que circulavam na imprensa. Elis, por exemplo, havia declarado: 'Está nascendo uma
nova frente na música popular brasileira, onde se diz o que se diz para unir os inimigos e vencer o iê-iê-iê'.
Mesmo relativizando posteriormente o sentido desta declaração, Elis demarcava uma posição ideológica e
comercial, ao mesmo tempo". In: DE EUGÊNIO, Marcos F. Napolitano. O debate estético-ideológico e a indústria
cultural em torno dos Festivais da MPB da TV Record (1966-1969). Relatório para Exame de Qualificação, São
Paulo, FFLCH-USP, out. 1997, p. 93. [ Links ]
Caetano Veloso assim se manifestou sobre esse confronto MMPB versus Jovem Guarda: "(...) Na noite do
primeiro, creio que a cargo de Simonal, preparou-se uma passeata, em mais uma macaqueação da militância
política. Era a Frente Ampla da MPB contra o Iê-Iê-Iê, com faixas e cartazes pelas ruas de São Paulo. Eu
conversara com Gil sobre a reunião (...) Ficou claro entre nós que todo aquele folclore nacionalista era um
misto de solução conciliatória para o problema de Elis dentro da emissora e saída comercial para os seus donos.
Que Gil aproveitasse a oportunidade para lançar as bases da grande virada que tramávamos. Mas nunca
considerei aceitável que ele participasse, ao lado de Elis, Simonal, Jair Rodrigues, Geraldo Vandré e outros
(dizem que Chico chegaria a se aproximar por alguns minutos) dessa ridícula e perigosa jogada de marketing.
Nara e eu assistimos, assombrados, de uma janela do Hotel Danúbio, à passagem da sinistra procissão. Lembro
que ela comentou: `Isso mete até medo. Parece uma passeata do Partido Integralista' (a versão brasileira do
nazi-fascismo, um movimento católico-patriótico-nacionalista de extrema direita nos anos 30, do qual alguns
antigos expoentes inclusive apoiavam o governo militar)". In: VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo,
Companhia das Letras, 1997, p. 161. [ Links ]
4 "Vocês ganharam!... vocês ganharam!... Este é o país subdesenvolvido. Vocês são uns animais!... Vocês são
uns animais!... (...) Em resposta à crescente indignação, quebramos - eu e todos que se somavam no meu
coração - o violão e o atiramos contra a platéia, acordando-a daquele transe, ainda que o gesto viesse a
significar o fim da minha carreira profissional". In: Sérgio Ricardo. Quem quebrou meu violão. Rio de Janeiro,
Record, 1991, p. 196. [ Links ]
5As canções bossanovistas de Carlos Lyra revelam os cruzamentos sonoros dos anos 50. "Não há dúvida de
que todas as influências jazzísticas - sobretudo o jazz West Coast - tiveram dois nomes como Chet Baker, Gerry
Mulligan e outros. Antes de nos aprofundarmos nesse jazz West Coast, já curtíamos Sinatra e todos aqueles
musicais americano com Gene Kelly e Fred Astaire. Já vinha por tabela a influência do jazz através dos
Gershwins, Rodgers Hart, Cole Porter, enfim, daqueles compositores que foram importantíssimos para a nossa
cabeça". Entrevista com Carlos Lyra. In: CHEDIAK, A. Songbook Carlos Lyra.' Rio de Janeiro, Lumiar, 1994, p.
20. [ Links ]
Apesar de algumas críticas de Edu Lobo e Carlos Lyra em face da invasão da música popular norte-
americana no momento de suas adesões ao MMPB, sob inspiração cepecista, esses compositores nunca
negaram as influências de modelos importados: Cole Porter, Miles Davis, Rodgers and Hammerstein, G.
Gershwin. Esses compositores interpretaram no acordeon ou no piano ou no violão um repertório cosmopolita,
preso ao sistema tonal (classicismo, romantismo) e nos pulsos/ timbres de peças de colorações populares. La
Cumparsita (E. Lemon); Tico-tico no fubá (Zequinha de Abreu); Night and Day (Cole Porter); Beguin to
beguine (Cole Porter), peças de Waldemar Henrique, compositor paraense, que veio para o Rio de Janeiro nos
fins dos anos 30.
Em parceria com Ronaldo Bôscoli escreveu um dos grandes sucessos da Bossa Nova:" Lobo bobo: Era uma vez
um lobo mau/ Que resolveu jantar alguém/ Estava sem vintém/ Mas arriscou/ E o lobo se estrepou/ (...) Pra
ver você que lobo também faz papel de bobo/ Só posso lhes dizer/ Chapeuzinho agora traz/ Um lobo na coleira,
que não janta nunca mais".
E alguns compositores de protesto - Edu Lobo e Sérgio Ricardo - inspiraram-se nas músicas de Heitor Villa-
Lobos e Waldemar Henrique, que escreveram suas canções como representações da brasilidade, tendo como
ponto nodal temas sobre o morro e o sertão.
6 Edu Lobo, um ser dividido entre as escutas de obras de compositores norte-americanos, como Georges
Gershwin, Jerome Kern, Cole Porter e as falas verbalizadas pelos discursos dos intelectuais nacionalistas, como
Carlos Estevan Martins, Ferreira Gullar, Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco Guarnieri. Na realidade, as
harmonias de Edu Lobo - Ponteio e Memórias de Marta Saré - aproximaram-se do imaginário musical
impressionista norte-americano:" Suas harmonias também são inconfundíveis. Em geral, evitam dissonâncias
extremas. Desde que seu estilo musical, suas harmonias são bastante consistentes em todas as composições.
São principalmente diatônicas. Encontram-se nelas acordes de sétima não-resolvidos e mudanças rápidas não
preparadas que passam da tônica para a tonalidade vizinha, geralmente meio passo ou um passo inteiro
adiante (como nesta sucessão de acordes; sol-fa-sol-si-si bemol-do natural)..." In SCHWARTZ, Charles. George
Gershwin - Uma Biografia. Rio de Janeiro, José Olympio, 1993, p. 340.
7 Muitos compositores, excetuando-se Edu Lobo e Carlos Lyra, aproximaram-se das teses jdanovistas sobre a
música. Os argumentos invocados por Andrei Jdanov imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, para
justificar a depuração da cultura soviética de seus resíduos formalistas subversivos, procedem de uma
interpretação mecanicista do determinismo marxista. Em uma sociedade decadente, tudo se dispersa: temos
talentos, autores, heróis. O escritor, conforme Jdanov, vende seu talento ao capitalista, ou, em caso de ser
honrado, faz do pessimismo o princípio criador de sua obra. Jdanov reafirma o princípio leninista da
continuidade cultural e proclama a restauração dos valores culturais da época burguesa destruídos pelos
movimentos modernistas. O partido comunista deve salvaguardar a herança clássica dos mestres do século
XIX, que é o modelo de todo desenvolvimento artístico posterior. Os critérios fundamentais de Jdanov para
traçar as fronteiras entre tradição clássica são a compreensibilidade e a simplicidade.
Em seguida, resumiremos as definições ortodoxas de Jdanov sobre a música realista e a música formalista:
(tabela ao lado)
8 PECAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil. São Paulo, Ática, 1989, p. 152. [ Links ]
9 MARTINS, Carlos Estevan." História do CPC." In Arte em Revista, no 3, 1980, p. 68. [ Links ]
10GULLAR, Ferreira. Cultura posta em questão. Rio de Janeiro, Editora Universitária da UNE, 1980, pp. 83-
87. [ Links ]
11
Manifesto CPC, p. 69.
12 Idem, p. 70.
13 Idem.
14 Idem.
15 Idem, p. 71.
16 Idem.
17 Idem.
18
Idem.
19 Idem, p. 73.
20
Idem.
23 Idem, p. 74.
24
Idem, p. 76.
25 A aproximação da obra de Edu Lobo com o simbolismo ou impressionismo musical francês na música erudita
(Claude Debussy, Maurice Ravel) ou com o neoclassicismo (Igor Strawinsky, Heitor Villa-Lobos) ou ainda com
o jazz (Miles Davis) vem exposta em algumas de suas canções escritas durante os anos 60.
Em Ponteio (1967); Memórias de Marta Saré (1968), notamos, de um lado, traços do classicismo e do
romantismo - preservação do sistema tonal; e, de outro, a presença de algumas inovações timbrísticas
inspiradas no Prélude à l'après-midi d'un faune; Reflets dans l'eau (Debussy) ou as Bachianas (H. Villa-Lobos).
Na realidade, estas canções denotam as belas sonoridades, refinadas e expressivas. Essa predileção incidiu nas
pesquisas timbrísticas, incorporando em sua música acordes paralelos (acordes utilizados conforme uma função
mais timbrística do que tonal), de escalas pentatônicas com algumas colorações dissonantes. Os contrastes
vivos internalizados no Ponteio e Memórias de Marta Saré reproduzem uma escuta que resgatou traços de uma
memória técnico-estética presentes em alguns compositores ligados ao bebop e outros autores eruditos
impressionistas. Na realidade, Edu Lobo prendeu-se, de um lado, à tradição da música das alturas (tendo como
eixo as estruturas melódicas), e, de outro, a uma textura que se organiza em torno dos pulsos, das repetições.
26
HOLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem. 2ª ed., São Paulo, Brasiliense, 1981, p.
147. [ Links ]
27 ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 72. [ Links ]
28PEIXOTO, Fernando. Vianinha. São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 163. Textos apresentados por F.
Peixoto. [ Links ]
29CHAUI, Marilena. Seminários - O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1982, p.
92.
31
Ver: PATRIOTA, Rosângela Rasga Coração. Tese de Doutoramento, São Paulo, FFLCH-USP,
1995. [ Links ]
33 Idem.
34
As tensões, os conflitos, as relações harmoniosas entre música e História (política) afloraram, sob matizes
diversos, nas sociedades e culturas, cronologicamente determinadas. N'A República de Platão (427-347 a.C.),
por exemplo, a concepção idealista da música prendia-se a valores éticos internalizados nas leis que
caracterizavam um Estado disciplinador. Na Grécia Antiga, o uso e a função social da música, devido à natureza
enigmática e altamente polissêmica do seu signo, denotava, de um lado, poderes agregadores e unificadores de
uma pólis harmônica, e, de outro, poderes desagregadores ou dionisíacos, como índices de uma possível
dissolução ético-moral do cidadão. Esses poderes desagregadores eram representados pelo ritmos" populares"
ou pelas canções ou práticas artísticas introduzidas pelos não-cidadãos: escravos e povos bárbaros (não-
gregos). Assim, a chamada barbárie poderia colocar em xeque a arte conservadora e o ideal de cidadania
simbolizado pelo tempo cíclico internalizado nas tragédias. Platão, entre outros filósofos, apropriava-se
ideológica e politicamente da música e passava a censurar, com rigor, todos os tipos de signos sonoros capazes
de induzir no cidadão grego comportamentos contrários às concepções de civismo, disciplina, ética, sacralizados
pela tradição. Para evitar possíveis choques entre a música tradicional e a moderna, foram estabelecidos
critérios normativos, como, por exemplo, a utilização de alguns modos, que poderiam incutir
no povo comportamentos considerados amorais, devassos ou pouco viris. A proposição desse tipo de pedagogia
musical retomava o debate sobre o conflito som versus ruído, sob um determinado matiz político-ideológico.
Por essa razão, alguns modos e instrumentos harmônicos foram considerados símbolos do civismo e da
disciplina, fundamentais para a formação educacional da criança e do adolescente, e outros, foram vistos como
perigosos, sensuais, obscenos, cacofônicos. Os ideais pitagóricos, platônicos, não preconizavam o isolamento
de um modo - considerado perigoso - em face dos demais, mas defendiam uma teoria do cosmos e dos
números. Essa teoria fundamentava-se numa relação harmoniosa entre repouso e tensão em todas as séries de
sons do sistema modal.
35 MEDAGLIA, Júlio. O Balanço da Bossa. São Paulo. Perspectiva, 1968, pp. 77-78. [ Links ]
36
Edu Lobo escreveu Músicas para as peças: Os Azeredos e os Benevides, de Oduvaldo Vianna Filho (onde se
destacou a canção Chegança - 1963 - posteriormente interpretada por Nara Leão e Maria Betânia
no show Opinião - dez. 1964-1965 e por Elis Regina n'O Fino da Bossa - programa da TV Record); O Berço do
Herói (Dias Gomes, 1964); Arena conta Zumbi (Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, 1965); Memórias de
Marta Saré (de Gianfrancesco Guarnieri), que estreou no teatro João Caetano - RJ - em janeiro de 1969;
ou para o cinema: O Barão Otelo no barato dos milhões (de Miguel Borges) ou para TV (Caso Especial, TV
Globo). Em 1973, escreveu a trilha musical para a peça Calabar ou o Elogio da Traição, de Chico Buarque de
Holanda. Entre 1974 e 1975, Edu Lobo, contratado pela TV Globo, escreveu a trilha sonora para quatorze
programas da série Caso Especial.
37BARCELLOS, Jalusa. CPC, uma História de Paixão e Consciência, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1994, p.
99. [ Links ]
38 Idem.
39 Idem, p. 102.
40 Idem, p. 97.
41
CHEDIAK, Almir. op. cit.
42 KRAUSCHE, Valter. Música popular brasileira, São Paulo, Brasiliense, s/d., pp. 78-79. [ Links ]
43
Inicialmente, marcha de rancho, música produzida por músicos predominantemente de sopro. Era
chamada orquestra dos ranchos carnavalescos cariocas nos fins da primeira década do século XX. Ritmo mais
dolente do que as marchas comuns. Apresenta maior desenvolvimento na parte melódica. Nos fins dos anos 20,
a marcha-rancho passou a ser escrita por compositores profissionais, como por exemplo, a marcha de rancho
com coro intitulada Moreninha, de Eduardo Souto (1927).