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contramão da política
Sylvia Moretzsohn
Universidade Federal Fluminense
1
Mas a questão pode ser colocada de modo . Isto quer dizer apenas que o conhecimento
a revelar ambigüidades. É o que se pode é um trabalho de construção do real, como já
perceber, embora com algum esforço, no o demonstraram, entre outros, Marx (o con-
ainda incipiente debate brasileiro acerca do creto como “síntese de múltiplas determina-
que deva ser o “bom jornalismo”: enquanto ções”) e Berger e Luckmann 2 . Entretanto,
uns argumentam com a “postura profissio- as críticas à objetividade costumam ser vis-
nal” para mascarar o modo de produção da tas como se propusessem o outro extremo, a
notícia, o processo de escolha que determina completa - e também impossível - subjetivi-
o que sai e o que não sai no jornal e os crité- dade total, o que implicaria a supressão do
rios de edição, outros procuram utilizar po- objeto.
liticamente esse conceito, acreditando que é Josenildo Guerra parte dessa premissa em
justamente através da defesa do “profissio- seu longo e minucioso estudo sobre a obje-
nalismo” que se pode combater e limitar o tividade no jornalismo, no qual confronta o
poder da empresa na manipulação da infor- construcionismo com o realismo na teoria do
mação. conhecimento 3 . Embora ressalte a coerên-
A crítica a esses dois discursos implica cia da crítica à fundamentação realista (me-
a crítica ao próprio conceito de profissiona- lhor dizendo, positivista) do conceito de ob-
lismo e à concepção de objetividade que o jetividade, o autor considera que, nesse pro-
sustenta. A partir daí, pretendemos mostrar cesso, o construcionismo acredita eliminar o
que a questão está deslocada, porque procura próprio conceito. Assim, o jornalismo, fun-
argumentos técnicos para enfrentar um pro- dado “a partir de um imperativo ético que
blema político e ético, ocultando o papel que prescreve a notícia como o discurso da rea-
o jornalismo desempenha na construção so- lidade”, teria de deixar de existir, pois nada
cial da realidade. poderia afirmar sobre os fatos que reporta.
Além do mais, representaria um “estelionato
ético e social”, pois responderia com uma
fraude à demanda social por informações.
3 O conhecimento relativizado A conclusão decorre provavelmente da in-
compreensão do sentido da crítica e do pró-
Qualquer discussão sobre objetividade re- prio discurso através do qual o jornalismo
mete, em primeiro lugar, a un tradicional de- se apresenta. No primeiro caso, conforme
bate no campo da teoria do conhecimento.
1
Desde Kant e, mais recentemente, Husserl Werner Heisenberg, apud. Milton Santos, Téc-
nica, espaço e tempo - globalização e meio técnico-
e Merleau-Ponty, parece clara a impossibili- científico informacional. São Paulo, Hucitec, 1996, p.
dade de um conhecimento absolutamente ob- 27-28
jetivo do mundo, dada a importância da sub- 2
Cf., respectivamente, Karl Marx. Crítica da eco-
jetividade na apreensão do objeto e mesmo o nomia política. São Paulo, Martins Fontes, 1977, p.
propósito do conhecimento: Heisenberg di- 218; Berger e Luckmann. A construção social da re-
alidade. Petrópolis, Vozes, 1985
zia que, “na ciência, o objeto de investigação 3
Josenildo Guerra. A objetividade no jornalismo.
não é a natureza em si mesma, mas a natu- Dissertação de mestrado, Facom/UFBA, agosto de
reza submetida à interrogação dos homens” 1998
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“Profissionalismo” e “objetividade”no jornalismo 3
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4 Sylvia Moretzsohn
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“Profissionalismo” e “objetividade”no jornalismo 5
sura passou - ou melhor, retornou - às mãos argumenta que, “para muitos estudiosos do
dos empresários, defender a “objetividade” e profissionalismo, os objetivos e os procedi-
o “profissionalismo” seria uma forma de re- mentos das organizações comerciais buro-
agir aos interesses comerciais que cada vez cráticas levarão inevitavelmente ao conflito
mais se impõem 11 . Estudos sociológicos in- com os objetivos e os procedimentos dos
gleses e americanos referem-se a essas pres- seus profissionais. Por outras palavras, a
sões de mercado e sustentam que os jornalis- fidelidade dos profissionais às suas normas
tas usam o “profissionalismo” contra o “co- deontológicas leva-os a entrar em conflito
mercialismo”, no que seria uma estratégia de com intuitos lucrativos da organização co-
defender a objetividade como forma de afir- mercial”, o que estaria a indicar uma incom-
mar e demarcar seu espaço profissional. Ci- patibilidade entre as ideologias do profissio-
tando Carey, Chibnall aponta a transforma- nalismo e do capitalismo, uma vez que “apa-
ção operada na apreensão do sentido da ob- rentemente, a ideologia do profissionalismo
jetividade, baseada originalmente em moti- tem fortes componentes antilucro e antimer-
vos comerciais (“servir politicamente um pú- cado que estão manifestos na idéia do ser-
blico heterogêneo sem alienar nenhum seg- viço para a sociedade”. No entanto, o au-
mento significativo”) e que depois se torna- tor lembra que essa oposição é ilusória, pois
ria um cânone de competência profissional e “profissionalismo e capitalismo estão estri-
fundamentaria a “ideologia da responsabili- tamente relacionados e partilham as suas raí-
dade social” 12 . zes históricas” 14 .
No caso americano, Tuchman afirma que Um dos problemas dessas análises é que
há, além do mais, uma séria preocupação em elas não identificam conflitos ideológicos no
atender à racionalidade industrial da produ- interior das redações. Ao contrário, a defesa
ção da notícia e evitar processos judiciais. do profissionalismo é vista como uma reação
Os jornalistas “defendem que, se todos os re- a pressões comerciais (e políticas) externas e
pórteres reunirem e estruturarem os ‘fatos’ estranhas ao trabalho da imprensa, que ado-
de um modo descomprometido, imparcial e taria princípios compartilhados tanto por edi-
impessoal, os prazos serão respeitados e os tores e repórteres. Foi esse, aliás, o tom da
processos de difamação evitados” 13 . “rebelião” no Los Angeles Times, que em ou-
Sobre o profissionalismo, visto também tubro de 99 publicou uma revista especial so-
como uma demanda dos jornalistas, Soloski bre o Staples Center, um centro de esportes e
11
entretenimento, sem informar aos jornalistas
No artigo “Jornalismo Disney - redes de varejo
decidem o que pode circular, estúdios pagam ‘repor-
e ao público que o jornal era sócio do empre-
tagens’ que podem virar filmes” (Caros Amigos, no endimento. Na edição do caderno especial
10, jan. 1998, p. 11), Renato Pompeu expôs alguns publicado em 20 de dezembro com a versão
desses interesses, a partir de reportagens publicadas dos jornalistas sobre o episódio, um dos arti-
no The Wall Street Journal e no alemão Süddeutsche gos ressalta que os jornais sistematicamente
Zeitung.
12
Steve Chibnall. Law-and-order news - an analy-
14
sis of crime reporting in the British Press. London, John Soloski. “O jornalismo e o profissiona-
Tavistock, 1977. lismo: alguns constrangimentos no trabalho jornalís-
13
Tuchman. art. cit., p. 78. tico”, in Nelson Traquina, op. cit, p. 93.
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6 Sylvia Moretzsohn
cospem no prato em que comem (oferecido velam suas estratégias para fazer passar in-
pelos anunciantes) devido ao seu “compro- formações contrárias à orientação da pauta,
misso com o público”, e reitera a necessi- evidenciando conflitos no interior da profis-
dade de preservação da linha divisória entre são, conforme (mas não apenas) as posições
a área editorial e o departamento comercial. hierárquicas de cada um 18 . Conflitos que
“A área editorial - os repórteres e editores - não revelam necessariamente uma ambição
sentem que devem sua lealdade básica não por ascensão profissional pura e simples (de
aos anunciantes nem à empresa - o jornal - modo que o repórter crítico de hoje será o
, mas aos princípios básicos do jornalismo” editor conservador de amanhã), mas podem
(grifos nossos).15 indicar mesmo o desejo de afirmação de um
Essa perspectiva remete ao sentido pú- jornalismo a serviço das mudanças sociais.
blico e à “responsabilidade social” da ativi-
dade, baseados no conceito clássico da im-
prensa como “quarto poder”, e considera 5 As mudanças no perfil
possível preservar a prática jornalística dos profissional
vínculos econômicos e políticos estabeleci-
dos pela empresa. Além disso, reforça a A imagem do jornalista como um profissi-
concepção corporativa em torno dos jornalis- onal comprometido com “a verdade dos fa-
tas, independentemente dos cargos que ocu- tos”, à parte o que tinha de ilusório e român-
pam, e não enxerga conflitos ideológicos in- tico, foi capaz de seduzir gerações que se
traprofissionais. No entanto, o próprio jor- lançavam à “aventura da reportagem” (não
nalismo americano é pródigo de exemplos por acaso, título de livro de um famoso
de que “editores e repórteres” não agem ne- repórter) e se orgulhavam do papel social
cessariamente num mesmo sentido 16 . Na que representavam, do desafio de descobrir
França, Serge Halimi aponta a conivência de segredos do poder (e dos micropoderes) e
jornalistas famosos com o poder (político e anunciá-los ao público, acreditando que sua
econômico) e suas conseqüências para a qua- função se revestia de um sentido iluminista e
lidade da informação que chega ao público mesmo revolucionário.
17
. No Brasil, começam a se tornar popu- No entanto, o perfil profissional vem mu-
lares os depoimentos de repórteres que re- dando no país. Em sua dissertação de mes-
trado 19 , Márcia Lisboa identifica no jorna-
15
David Shaw. “Journalism is a very different bu- lista de hoje o progressivo abandono da aura
siness - here is why”, in Los Angeles Times, 20/12/99. militante e a desistência do ideal de mudar o
O “Staplesgate”, como ficou conhecido, foi o auge de
18
uma crise que se instalou com a entrada de Mark Wil- Cf., entre outros, Chico Nelson et al., Jornalis-
les, ex-executivo de uma rede de cereais, para ocupar tas pra quê? - os profissionais diante da ética, Rio
o cargo de executivo-chefe da rede Times Mirror Co., de Janeiro, Sindicato dos Jornalistas Profissionais do
da qual o LA Times é a principal publicação Município do Rio de Janeiro, 1989.
16 19
Cf. Argemiro Ferreira. “Rebelião na redação é Márcia Lisboa. Jornalista, profissão: passageiro
lição para a mídia”, edição eletrônica do Observatório - as relações de trabalho dos profissionais da notí-
da Imprensa, 20 de novembro de 99 cia na grande imprensa brasileira atual. Dissertação
17
Halimi, Serge, Os novos cães de guarda, Petró- de mestrado em Comunicação e Cultura, ECO-UFRJ,
polis, Vozes, 1998 1994.
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“Profissionalismo” e “objetividade”no jornalismo 7
mundo para tornar-se um profissional (grifo vem conquistando os jovens que ingressam
nosso), embora ainda mantenha certas carac- na profissão, não importa se pela eficácia
terísticas “arcaicas” (palavras dela), como a do discurso ou pela percepção de que não
paixão pela profissão. O grande marco dessa aceitá-lo é praticamente condenar-se ao de-
nova realidade seria a descaracterização dos semprego.
confrontos entre jornalistas e patrões. Már- A reação ao livro Notícias do Planalto, de
cia nota que os empresários apreciam essa Mario Sergio Conti, lançado em fins de no-
mudança, que preserva a mística da “mis- vembro de 99, corrobora essa análise: ao di-
são”, da qual tiram proveito para manter e vulgarem aquilo que previam ser um sucesso
até aumentar seus lucros, de modo que a co- editorial - pois o livro prometia desvendar os
brança do “profissionalismo” não é acompa- bastidores da imprensa em sua relação com
nhada pela remuneração salarial que lhe se- o ex-presidente Collor -, jornais e revistas
ria correspondente. apressaram-se a editar matérias e artigos em
É preciso ressaltar, porém, que a qualifi- desagravo a si próprios, mostrando como a
cação “arcaico” é arbitrária e traz em si uma atividade teria mudado nos últimos 10 anos,
conotação negativa, por oposição à positivi- tornando-se mais “profissional” e “objetiva”.
dade do “moderno” (mas quantas vezes já Não vamos entrar, aqui, no mérito do livro
não se disse que o velho se veste de novo?); nem no sentido dessa reação. Queremos ape-
que militância não é ação exclusiva da es- nas realçar como esse episódio forneceu uma
querda, nem antônimo de profissionalismo oportunidade para demonstrar que o discurso
- ao contrário, deve ser considerada como do profissionalismo serve à empresa. De to-
a atitude deliberada, e legítima, de intervir das as entrevistas publicadas pelo Globo nas
sobre a realidade, e que pode assumir tanto quatro páginas que dedicou ao assunto, em
um caráter progressista quanto conservador; 27 de novembro de 99, a do presidente da
e que a chamada postura “profissional”, dita editora Abril, Roberto Civita, é quem expli-
assim sem considerandos, encobre o fato de cita melhor essa questão:
que esse “profissionalismo” corresponde a Lembro dos tempos em que qualquer as-
um determinado modo de produção, que apa- sunto era visto, discutido e enquadrado do
rece como o único modo de produção possí- ponto de vista ideológico. Não se podia fa-
vel. lar de política, de economia, negócios e até
Essas transformações que se operam hoje entretenimento sem esbarrar nos preconcei-
tornam a defesa da “objetividade” e do “pro- tos ou patrulhamento dos defensores desta
fissionalismo” contra a manipulação uma es- ou daquela visão do mundo. Hoje, graças
tratégia pouco eficaz. Em primeiro lugar, em boa parte ao fracasso do modelo comu-
porque o profissionalismo é uma palavra-de- nista no planeta inteiro, as novas gerações de
ordem do empresariado, amparado no dis- jornalistas estão menos polarizadas do que
curso vitorioso da técnica, que encobre as seus antecessores, e também melhor prepa-
relações de poder e “justifica” a manipula- radas para a tarefa de apurar e relatar os fa-
ção sutil; em segundo, porque, como vere- tos com maior profissionalismo, na acepção
mos a seguir, a notícia cada vez mais é as- exata da palavra (grifos nossos).
sumida como mercadoria. Esse pensamento A “acepção exata” não é definida, talvez
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porque seja conveniente insinuar que há um Já se disse que esse engajamento do jor-
consenso sobre o assunto. Ou porque é “evi- nal foi uma brilhante estratégia de marketing
dente”, como notou Pierre Bourdieu ao en- - que, entretanto, teve a vantagem de provar
trevistar um diretor de programação que “vi- que “um jornal não é só um produto a ser ge-
via na evidência total”. renciado com mais ou menos competência;
Eu lhe perguntava: “por que coloca isto quando conquista a confiança e atrai as ex-
em primeiro lugar e aquilo em segundo?” E pectativas do público, torna-se uma entidade
ele respondia: “é evidente”. E é sem dúvida social e cultural, carregada de emoções, ali-
por essa razão que ele ocupava o lugar onde mentando processos complexos de comuni-
estava; isto é, porque suas categorias de per- cação com informações, análises e opiniões
cepção estavam ajustadas às exigências ob- que podem contribuir para mudar os rumos
jetivas. 20 de povos e nações 21 . Seja como for, essa
estratégia se reorientou a partir do Projeto
Folha, em 1984, quando se inaugurou a “era
6 As mudanças na perspectiva dos manuais”, resultando no enquadramento
empresarial ou na exclusão de repórteres e desencade-
ando uma busca obsessiva pela objetividade.
No Brasil, a Folha de S. Paulo tem se desta-
Em seu último manual de redação, de
cado como a primeira empresa que assumiu
1992, a Folha se apresenta como um jor-
explicitamente o jornalismo como negócio,
nal que “se enraíza nas forças de mercado e
construindo uma racionalidade própria para
adota uma atitude de independência em face
o desempenho dessa atividade nos moldes
a grupos de poder”. E deixa claro que “con-
capitalistas. Por isso, e dado o sucesso mer-
sidera notícias e idéias como mercadorias a
cadológico de sua empreitada, serve como
serem tratadas com rigor técnico”. Cinco
padrão de análise. Além do mais, as próprias
anos depois, o Projeto Editorial 97, publi-
mudanças de política editorial pelas quais
cado em duas páginas no caderno principal
a Folha passou são representativas dos dois
de um domingo, 17 de agosto de 1997, rei-
modelos de jornalismo a que nos referimos
tera essas premissas, procurando justificar-se
anteriormente.
através de uma análise das recentes mudan-
No início dos anos 80, a Folha se nota-
ças ocorridas no mundo, na qual sedimenta
bilizou por privilegiar aquilo que passou a
a idéia do mercado como regulador da ativi-
ser conhecido como “jornalismo de autor”,
dade jornalística e das próprias ações huma-
expressão que procurava mostrar a valoriza-
nas.
ção da intervenção do profissional - e, con-
A dualidade política foi substituída por um
seqüentemente, da sua subjetividade - no re-
consenso. Uma só superpotência impôs seu
lato dos fatos. Praticava um jornalismo ex-
predomínio ao mundo, quase todas as soci-
plicitamente militante, que chegou ao auge
edades procuram se aproximar de seu mo-
com a adesão à campanha das diretas, entre
delo. Com pouca variação de grau, há uma
1983 e 1984.
20 21
Pierre Bourdieu. Sobre a televisão. Rio de Ja- Manuel Chaparro. Pragmática do jornalismo,
neiro, Jorge Zahar, 1997, p.36. São Paulo, Summus, 1994, p. 91-92.
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“Profissionalismo” e “objetividade”no jornalismo 9
só receita econômica (o mercado), uma só ções de um mesmo fato, o que, embora seja
fórmula institucional (a democracia), num fonte inesgotável de conflitos na própria re-
mundo que tende inevitavelmente à “globa- dação, pode estimular os jornalistas a buscar
lização”. Pois não se trata de um sistema es- um aprofundamento da pauta. Como na hi-
tanque, mas que se propõe a enquadrar toda pótese de Claudio Abramo:
diversidade étnica ou cultural num mesmo Existe o jornalista que só conta o fato: um
modelo, já batizado como “fim da história”, muro caiu na cabeça da dona Maria e ela
desde que cumpridos os preceitos da livre morreu debaixo de 35 tijolos. Isto é um fato,
competição e da técnica. puro e simples. Haverá outro jornalista que
Nesse contexto, o jornalismo não precisa- dirá que o muro caiu porque o dono do ter-
ria “aplacar a sua disposição crítica”, mas reno se recusou a gastar dinheiro e usou um
“refiná-la e torná-la mais aguda num ambi- suporte ruim, que ameaçava cair. Aí começa-
ente que não é mais dicotômico, no qual o se a se desenvolver o que se passa, da narra-
debate técnico substituiu, em boa medida, o tiva do fato para a crítica da sociedade 24 .
debate ideológico”. O Projeto Editorial 97 sintetizava a série
O jornal admite que “não existe objetivi- de discussões realizadas no âmbito interno
dade em jornalismo”, mas atém os argumen- da empresa, com o objetivo nada modesto
tos ao reconhecimento da influência da sub- de “organizar a experiência recente e apon-
jetividade nos vários procedimentos (escolha tar perspectivas para o futuro do jornalismo
do assunto, redação e edição do texto), algo brasileiro”. Pouco menos de um ano depois,
que não exime o jornalista “da obrigação de em 27 de julho de 98, um pequeno artigo
ser o mais objetivo possível”, o que signifi- de Alcino Leite Neto, então editor do ca-
caria “encarar o fato com distanciamento e derno “Mais!”, resumia e radicalizava o que
frieza”, embora não com “apatia nem desin- esse projeto propõe. Sob o título “Admirá-
teresse” 22 . Daí a famosa definição de Caio vel novo jornalismo”, afirmava a morte do
Túlio Costa: “objetividade jornalística é uma jornalismo tradicional e sua lenta mas inexo-
balela mas aproximar-se dela é dever do pro- rável substituição pelo que chamou de publi-
fissional” 23 . Definição cara à imagem da jornalismo, que estaria levando a imprensa a
utopia, capaz de nos fazer caminhar embora incorporar mecanismos da publicidade e do
sabendo que jamais a alcançaremos, mas que entretenimento.
se choca contra o detalhamento em verbetes Essa mutação presume que todos os ele-
específicos do próprio manual. mentos morais ou transcendentes agregados
Porém, ao comprometer o jornal com a ao jornalismo ao longo de sua história já se
tarefa de “tornar a notícia mais compreen- extinguiram ou estão associados a ele ape-
sível em seus nexos e articulações”, o pro- nas como caricatura. Ou seja, presume que
jeto editorial abre, ainda que indiretamente, o jornalismo já não se alimenta dos valores
uma brecha para a pluralidade de interpreta- superiores por meio dos quais ele se colo-
22
Folha de S. Paulo,17/8/97, p.19. cava como consciência da realidade e fazia
23
Costa, Caio Túlio. O relógio de Pascal - a ex-
24
periência do primeiro ombudsman da imprensa bra- Claudio Abramo. A regra do jogo, São Paulo,
sileira. São Paulo, Siciliano, 1991, p. 117. Companhia das Letras, 1988, p. 110.
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10 Sylvia Moretzsohn
da própria realidade um objeto que devia de- tal, a peça de teatro que forneceu a epígrafe
cifrar”. (...) O “publijornalismo” só contesta, a este artigo também nos ajuda a recordar.
elucida ou investiga porque está vendendo No trecho abaixo, os atores se revezam ao
um melhor produto e vendendo a si mesmo anunciar as notícias:
o tempo todo, e não porque julga, como seu
antepassado (o jornalismo), que estará tam- 1951. Dezembro. Stalin.
bém influindo numa determinada realidade Estamos fazendo experiências com bombas
atômicas de vários tipos e tamanhos.
ou cumprindo um papel cultural ou ideoló-
1954. Março.
gico numa sociedade 25 .
Os americanos explodem sua primeira
Alcino ressalva que encarar a informação bomba de hidrogênio tecnicamente perfeita.
como produto não lhe retira o valor simbó- Revista U.S.News & World Report
lico, mas implica que “o próprio conteúdo “A bomba de hidrogênio representa para o
passou para a escala do consumo”. mundo dos negócios um longo período de
Talvez não seja o caso de demonstrar o grandes encomendas. Nos próximos anos
quanto é absurda essa idéia de que o “novo” os efeitos financeiros da nova bomba con-
jornalismo deixaria de influir numa deter- tinuarão aumentando. A Bomba-H destruiu
minada realidade - a não ser que conside- quaisquer temores de depressão”.
rássemos a realidade como um dado, e não “Na nação como um todo, as autoridades
uma construção social. Nem de dizer que calculavam que entre um quarto e um terço
de toda a atividade econômica gira em torno
a “novidade” de juntar notícia com publici-
das despesas militares”.
dade e entretenimento data pelo menos do
Jornal Los Angeles Mirror News
século passado, com o sucesso popular dos “A Conferência de Cúpula falhou. Que sig-
folhetins. Mas devemos ressaltar que, bem nifica isto para você? Tremendo cresci-
a propósito, a manchete da Folha, naquela mento da indústria eletrônica. Bilhões de
mesma edição de 27 de julho, fornecia um dólares em salários. 110.000 empregados
exemplo prático dessa atitude “publijorna- numa indústria do sul da Califórnia. Grande
lística” diante do mundo: “Ganhe dinheiro alta!”
com a crise asiática”. A chamada remetia New York Times
ao caderno “Folhainvest”, que estreava na- “Fracasso da Conferência de Cúpula: um
quela segunda-feira e praticamente repetia tônico para o mercado” 26 .
a manchete: “Tire proveito da turbulência
asiática”. Diante desses argumentos, o “respeito ao
gênero humano” é mesmo uma razão muito
Cinismo pós-moderno? Talvez. Mas não
genérica e imprecisa para se deter a corrida
esqueçamos de que, cerca de meio século an-
armamentista, além de estar em perfeito de-
tes, em plena guerra fria, jornais americanos
sacordo com o mercado. Mas tem o valor de
lidavam com a mesma lógica ao justificar a
revelar que o que está em jogo, de fato, são
manutenção do investimento na indústria bé-
duas concepções éticas diante da vida.
lica. Redigida num registro semidocumen-
26
Antonio Carlos Fontoura, Armando Costa e Fer-
25
Alcino Leite Neto. “Admirável novo jorna- reira Gullar. A saída? Onde fica a saída? Grupo
lismo”. Folha de S. Paulo, 27/7/98, p. 2. Opinião, Rio de Janeiro, 1967, p. 67-68.
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“Profissionalismo” e “objetividade”no jornalismo 11
É assim que faz sentido o argumento de Projeto Folha seria o melhor exemplo, ao im-
Nicolau Sevcenko sobre a indissociabilidade por “um padrão de relações de trabalho coe-
entre política e imprensa, mostrando que rente com as novas ideologias yuppies, que
“jornalismo é coisa séria demais para que o justificam e enaltecem a luta do indivíduo
público se contente apenas em consumir no- contra seus companheiros de trabalho, eri-
tícias”. gindo a competição e o sucesso profissional
Desde os primeiros momentos de gestação como valores superiores, no lugar da solida-
da sociedade moderna, a imprensa foi vista riedade e da identidade de classe” (grifos
como um recurso fundamental para romper nossos).28
o monopólio de poder exercido pelas monar- Ressalte-se, ainda, que o “distanciamento
quias absolutistas. Contra o Estado autocrá- em relação aos centros de poder”, visto pela
tico que se escorava na força, na censura e Folha como uma conquista da grande im-
no segredo para submeter os súditos, os jor- prensa brasileira, procura reiterar a idéia de
nais representavam as luzes que viriam de- um “quarto poder” neutro, ocultando o pa-
belar as trevas da tirania pelas práticas da in- pel da mídia na construção do mundo que ela
formação, da fiscalização e da transparência. nos dá a conhecer todos os dias 29 . E, como
(...) Quando, porém, o Absolutismo foi su- diz Emir Sader,
plantado e se instalaram os primeiros regi-
mes liberais, a situação estava longe de ser uma ambigüidade central cruza a grande im-
luminosa. A imprensa logo se tornou ela prensa: ela desempenha uma função pú-
mesma um instrumento de manipulação, dis- blica, mas é uma empresa privada. No li-
torção e corrupção política, cruamente retra- mite, torna-se incompatível a busca de ren-
tado nas Ilusões perdidas, de Balzac. No tabilidade por parte da empresa jornalística
com a função de informar e ser um espaço
Brasil, quando no início do regime republi-
minimamente democrático de debate.
cano o jornalismo passou a ter um papel de-
Sua lucratividade faz com que ela perca
cisivo na condução da vida pública, Lima
independência, conforme passa a buscar
Barreto fez uma denúncia semelhante. Pela maior rentabilidade, participando de outros
ousadia, sua obra foi submetida a um boicote ramos econômicos e, assim, passando a ter
geral, que comprometeu a carreira do escri- interesses materiais que limitam ainda mais
tor. Fato que comprova não só a pertinência sua isenção. Todos os grandes órgãos da im-
de sua crítica, mas a coragem que ela exige prensa dos EUA, por exemplo, pertencem a
27
. grandes conglomerados que possuem vín-
Finalmente, Bernardo Kucinski analisa culos com os mais diferentes tipos de in-
como a radicalização da idéia da notícia dústrias - das telecomunicações à produção
como mercadoria interfere nas relações de de armas para o Pentágono - e, obviamente,
trabalho, traduzindo-se por um individua- com o Estado e suas distintas políticas. Por
lismo e um espírito de competição de que o outro lado, por esse meio, os grandes jor-
nais passam a fazer parte da “indústria da di-
27
Nicolau Sevcenko in Bernardo Kucinski. A sín- versão”, aquela que mais cresce no mundo,
drome da antena parabólica - ética no jornalismo
28
brasileiro. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, Bernardo Kucinski. op cit.p. 78.
29
1998. Robert Hackett. art. cit. p. 107.
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12 Sylvia Moretzsohn
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“Profissionalismo” e “objetividade”no jornalismo 13
tência de vozes dissonantes capazes de lutar FOLHA DE S. PAULO. Manual geral da re-
pela afirmação da dimensão política da ativi- dação. S. Paulo, 4a ed., 1994.
dade, uma luta que, como vimos, é de natu-
reza ética e se reflete tanto na representação FOLHA DE S. PAULO. Projeto editorial 97,
da profissão quanto na produção do sentido 17/8/97.
da informação e na própria definição do que GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pi-
merecerá o status de notícia. râmide - para uma teoria marxista do
jornalismo. Porto Alegre, Tchê, 1987.
8 Bibliografia:
GUERRA, Josenildo. A objetividade no jor-
ABRAMO, Cláudio. A regra do jogo. Com- nalismo. Dissertação de mestrado, Fa-
panhia das Letras, São Paulo, 1988. com/UFBA, agosto de 1998.
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