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SEGUNDO VOLUME
OS IMPREVISÍVEIS ENCONTROS
Memórias de um "Museu Imaginário"
"(...) O asfalto estava pejado de carros que buzinavam
sem
tréguas. As motos subiam para cima dos passeios e abriam
caminho
por entre os peões. eu pensei em Agnès. Havia dois anos, dia
por
dia, que a imaginara pela primeira vez;estava então à espera
de
Avenarius numa cadeira de repouso do clube. Fora por isso
que hoje
tinha pedido uma garrafa de vinho. O meu romance acabara e
eu tinha
querido festejálo no lugar onde nascera a sua primeira
ideia.
Os carros buzinavam, ouviamse gritos de cólera. Numa
mesma
atmosfera, outrora, Agnès desejara comprar um miosótis, uma
só flor
de miosótis; desejara trazêla diante dos olhos como último
vestígio, mal chegando a ser visível, da beleza. ".
Milan Kundera, "A Imortalidade".
I EXPOSIÇÃO TEMPORÁRIA os "primitivivos".
Há, na vida, incomensuráveis ironias! O mundo da Criação
abriuseme de forma insólita, num antiquíssimo Natal já
desfeito na
bruma da infância quando, num amanhecer mágico e gelado, sobre
um
fogão de lenha, num sapato sob a chaminé, estava um livro de
colorir e
uma caixa de lápis de côr, mesmo à beira dum "arremedo" de
tanque de
guerra, com lagartas em borracha, que cuspia umas vagas
faíscas pelo
canhão de "folheta", sempre que se fazia pressão no chão da
cozinha...
Claro que passei a manhã a gastar a pedra de isqueiro
escondida
por trás dessa artilharia, imaginando índios ferozes, como nos
filmes
de Gary Cooper ou as bandas desenhadas de Roy Rogers, e eu a
debitar
metralha em todas as direcções dentro do monte de lata da
imaginação.
Acabados os "fulminantes", com fastio, dediqueime a
aguçar
meticulosamente os lápis de côr, em caixinha de cartão, de
aparência
análoga aos maços de cigarros que então se vendiam. O bico era
mole e
desfaziase, a madeira que suportava o "crayon" esfarelavase
e o
lápis só diminuia de tamanho na vertigem do aguçar, até se
transformar
num "coto" informe, mesmo para dedos infantis!
Lá pintei como pude umas inconsequentes figuras sem
relação entre
si, um urso polar, uma galinha, uma margarida, um lago com
nenúfares
que logo me fez trazer gulosamente à memória o desejo dum jogo
de
cartão da Majora, em opulenta exposição no "Bazar dos 3
Vinténs" numa
esquina da R. de Cedofeita (ainda hoje, degradado e doente, lá
permanece!), onde num aquário de cartolina se deitavam vários
peixes
de papelão colorido, uma sardinha, um goraz, um linguado, uma
espécie
de baleia (para mim, nessa altura, classificada como "o maior
peixe do
Mundo"), fauna aquática essa que terminava numa argola
metálica que
lhes perfurava um local algures entre as guelras e os olhos.
Então, com umas canas de madeira pintada a côrderosa, aí
com 15
cm. de comprido, descaía um pedaço de "fio do Norte" onde se
suspendia
um íman e os jogadores pescavam, um de cada vez, marcandose a
pontuação no fim!
Quanto à pintura a lápis de côr, gastouse nessa manhã de
Natal e
o livro perdeuse nas mudanças de casa que entretanto se
deram!
As artes plásticas eram então coisa estranha, depositadas
em
museus onde se andava péantepé, com respeito e silêncio,
como nos
velórios, cochichando baixinho e, nunca por nunca, tocando em
nada!
Molduras enormes, de "torcidos e dourados", delimitavam esses
incomensuráveis metros de telas, onde se presumia que estava
"A Arte"
e eu, indiferente, só pensava quando acabaria o martírio e ia
jogar o
pião com o Horácio, vender velhos livros a um alfarrabista,
para tocar
os proventos por bilhetes nas sessões de "2 filmes" no "Carlos
Alberto", salão cinéfilo das "classes piolhosas" do Porto, bem
próximo
daquela sala mágica do "Cinema Paraíso"!
Arte, arte, eram as belas bandas desenhadas do "Príncipe
Valente",
do "Cavaleiro Andante", as aventuras de "Mortimer & Blake" em
torno da
"Marca Amarela", os irmãos Dupont de Hergé, a Castafiore e o
foguetão
de quadrados vermelhos e brancos na "Viagem à Lua" de Tintin e
Milou.
Pegava em papel vegetal e "copiava por cima", pensando na
divina
injustiça que dava às minhas mãos um balancear canhestro,
língua ao
canto da boca para ajudar à concentração do plágio, mas nem
"copiando
por cima" saía Arte!...
Aquilo era mistério profundo,talvez quando crescesse
soubesse o
"porquê"!
II. PISO 2 "Sala das Memórias"
Cresci, como todos, nos dias intermináveis que antecedem
os verdes
anos, Liceus onde se "formava" para entrar nas aulas,
corredores
gélidos e marmóreos, contínuos com fardas azul e cinza, chefes
e
subchefes de Turma, que marcavam a giz no quadro os "MC"
(MalComportados) antes do Professor entrar, tudo em pé, no
bolso
fisgas e canivetes, caramelos comprados a um pobre homem que
aguardava
pacientemente a saída das aulas junto ao "Largo do Priorado",
mesmo ao
pé da velha igreja românica de Cedofeita, com um tira de couro
luzidia
por trás do pescoço, que agarrava uma caixa de madeira
envernizada,
com dois vidrostampas por cima, sob os quais, embrulhados em
papel
celofane multicolor, espreitavam coisas açucaradas de
milcores, do
amarelo solar ao verdebílis.
Todas estas iguarias se "propunham", quais donzelas do
"Bairro
Vermelho" de Amsterdam, à nossa inescrutável ganância de
"doce"!
Aquilo partiase nos dentes, parecia grude que nos impedia na
próxima
meiahora de abrir os maxilares, um "craccraccrac" fazia
estalar os
ouvidos e tudo por cinco tostões..
Arte era acertar com uma espingarda de setas nos alvos de
papel da
Feira Popular, o "Palácio", como então se chamava, em memória
do velho
"Palácio de Cristal", onde em miúdo alugava bicicletas com
duas rodas
de apoio atrás, nas manhãs de Domingo, e atravessava como uma
bala as
sombras frescas da "Avenida das Tílias", por entre barracas
fechadas
dos "Chocolates Regina", das tendas que faziam balões de
açúcar, as
"barbasdevelho", e então já era o Alves Barbosa, o maior
ciclista do
mundo, só porque ganhava a "Volta a Portugal em Bicicleta"!
Apareceram então no Porto os primeiros "arremedos" de
"Galerias",
onde gente estranha, vestida "à Artista", perorava em gesto
largo e
linguagem bizarra, sobre a "violência" dum azul, o onirismo
surrealista duma paisagem onde não havia nem árvores, nem
flores, nem
pássaros, mas simplesmente uns objectos "espongiformes", que
se
derretiam na diagonal das obras, como aqueles relógios
viscosos de
Dali.
Não, ali não entro! Que vou fazer junto daqueles olhares
iluminados de "entendidos", ainda mais hostis aos de "fora do
clã",
que os guardiães caninos do "Soares dos Reis".
III. SALA 3 "Exposição bibliográfica"
Arte era a Literatura, os "livrossódeler", humildemente
confesso que começaram por ser os da colecção "Búfalo" e
"Bisonte",
depois os policiais de Mickey Spillane, as aventuras
extragalácticas
da colecção "Argonauta", o Júlio Verne entremeado pelo medonho
facalhão de Sandokan, o Tigre da Malásia. Até que, um dia,
numa
promoção de livros, gastei 500$00, uma fortuna de 2 anos de
mealheiro,
e recebi em casa, pelo Correio, uma série de Romances, a
verdadeira
abertura da minha alma banal à Literatura. Como era normal na
"geração
de 60", comecei pelos "estrangeiros", que Portugal era uma
"chumbada",
e pronto...
Que espanto ao encontrar "A Pérola" e "A um Deus
Desconhecido" de
Steinbeck, "O Velho e o Mar" e "Por quem os Sinos dobram" de
Hemingway, "Um Certo Sorriso" de Françoise Sagan, "A Ponte",
de
Manfred Gregor, "A Peste", de Camus, os longos romances de
Roger
Martin du Gard.
Corria para casa e, avaramente, quando o livro começava a
chegar
ao fim, lia cada vez mais devagar, para "poupar", para evitar
que
aquele sonho acabasse, que a vida regressasse à banalidade dos
horários com Geografia, FísicoQuímicas, Françês, Matemáticas,
História, Guerra dos Cem Anos, Guerra dos Trinta Anos,
coligações e
batalhas, tratados diplomáticos, rios e Continentes onde nunca
iria,
modelos em madeira de cristais que eram "arrumados" na
estranha
taxonomia de "monoclínico", "triclínico" e "ortorrômbico"!
Então, na TV a preto e branco, o boletim meteorológico era
feito a
giz num Portugal de papelão, no Natal as mensagens de Angola,
Moçambique, Guiné:
"Daqui, Manuel António, falando para seus Pais, Irmãos
Amigos
e noiva Maria do Céu, deseja Boas Festas e Novo Ano cheio de
"propriedades"!
Nos estádios, aos domingos, Eusébio marcava golos de
meiocampo
contra tudo que tinha a forma de baliza e, no Palácio de
Belém,
Américo Tomás recebia as "famílias numerosas" do Ano, uma
galeria de
desgraçados carregados de filhos, hierarquizados por alturas,
posando
para o "Diário de Notícias", uma condecoração, uma fita por
cima do
fatinho coçado e um "cabaz de Natal" com um bacalhau, uns
azeites,
umas latas de atum e uma garrafa de espumante.
Fugia daquilo tudo para o calor do Café "Diu", onde estava
a
"troupe" dos amigos, do "Diário de Lisboa", do bilhar "às três
tabelas", das conversas pela noite fora, dos conhecidos que
iam
morrendo discretamente na Guiné, dos que desapareciam "a
monte" para
as Franças, as Bélgicas, as Alemanhas, assim escapando aos
Editais
trimestrais que decarregavam carne para canhão em Mafra,
Tomar, Vendas
Novas, Caldas da Rainha, quartéis onde se entrava para os
próximos
três anos e íamos parar aos barcos que partiam da "Gare de
Alcântara",
rodeados de familiares que nesse pedaço de pedra deixavam
lágrimas que
pesavam toneladas de amargura e silêncio.
Mas a Literatura salvoume desse insólito Portugal, graças
à
"Cidade das Flores" do Augusto Abelaira, ao riso dos
"Cotovelos de
Vénus" de Santos Fernando, ao "Diário" de Sebastião da Gama,
ao
sarcasmo profundo das "Farpas", à melancolia irónica de
"Fradique
Mendes".
Afinal, a Arte estava ali, naquelas palavras magistrais,
nos
livros em segunda mão, na perfeição inicial dum parágrafo, dum
adjectivo, duma figura que sintetizava uma época que agora
vislumbro
com a nostalgia dos 50 anos, mas onde não gostaria de
regressar.
Descobri que estava "do lado dos Livros", das bibliotecas,
do
prazer de abrir com faca as páginas fechadas que me levariam a
Samarcanda, ao "Deserto dos Tártaros", à Indochina de Malraux,
aos
quartos fechados de Sartre, à Alexandria turbilhonar de
Lawrence
Durrell.
Andava em "Filosofia", porque "Direito" não era possível,
era só
Coimbra, era longe, era caro, não podia ser e acabei por amar
o que
tinha. Os préSocráticos, a História da Arte, as "Culturas"
nãoseiquê, nãoseiquemais, acabando com um diploma em
Latim,
manuscrito de pergaminho, onde se pendurava um selo de lacre
envolto
em caixinha vagamente prateada, presa a uma espécie de fita de
comenda, com o azuldeLetras.
IV. PISO TÉRREO "Fechado para obras".
Tanta Filosofia deu em ser colocado como professor de
"Língua
Portuguesa" na "Ramalho Ortigão", 22 horas mais 6
extraordinárias,
três contos por mês, 10 meses ao ano até, nem sei como,
aceitar ir
para a Faculdade de Letras dar aulas, sempre pagavam doze
meses ao ano
o que, por acaso, era exactamente coincidente com o número de
vezes
que tínhamos de entregar a renda ao senhorio.
Foime entregue, entre outras coisas, a "Estética".Então,
a Arte,
falar da Arte, transformouse num ganhapão, agora era eu o
Professor
e estava do lado de cá daqueles rostos que ainda ontem se
sentavam ao
meu lado, nas mesas de tampo verde do velho edifício junto ao
"Hospital de Santo António". Li livros e mais livros, e
encontrei
nesse "Museu Imaginário" a pintura,a escultura,a arquitectura,
o
urbanismo. Com eles me casei, como naqueles matrimónios
contrariados
da época feudal, decisão tomada por outros, viver com uma
"estranha"
e, miraculosamente, ano após ano, descobrir que nem sempre o
Amor é um
"coupdefoudre", que se pode construir aprendendo diariamente
que um
afecto também nasce com a lentidão que levou a levantar das
areias do
deserto o templo de Karnak!
Bisontes de Altamira e Lascaux, frescos cretenses com o
insuportável azul de golfinhos e princesas com tranças, as
estatuetas
de Tanagra e Mirina, o entrelaçado vertiginoso do Islão, os
granitos
comoventes do Românico, a luz de Giotto por entre névoas de
ouro, as
flores de Boticelli, o intimismo de Vermeer, os desenhos
agrestes de
Beardsley, as cabeleiras prérafaelitas de Rossetti, as noites
com
estrelaslírios de Van Gogh, as ancas doces da Polinésia de
Gauguin,
os circos azul e rosa de Picasso, a pureza branca, amarela,de
Mondrian, os sonhos de Chagall, o esbracejar convulsivo de
Pollock.
E tudo aquilo me perseguia, o "daimon" que atravessava
aqueles
espaços, a indizível alegria, a calma, o sofrimento e a
impotência das
Palavras em "dizer" essas mil vozes que por aí andam desde o
princípio
do Mundo!
Até que descobri e aceitei que há mistérios insondáveis
dentro de
nós, que a Razão não é tudo, que há murmúrios e lugares que
ignoramos,
que todo o Sol define o contraste duma Sombra, que essa sombra
varia
com as horas, os anos e as gerações. Dessa Sombra irrompe uma
espécie
de Rumor, vindo de sítionenhum, algo que eternamente nos
escapa e nos
deslumbra.
Hoje, perdidas as certezas dos verdes anos, sei que a
imortalidade
se perdeu na alvorada de todos os "Mitos da Criação". Para
nossa
consolação, em memória desse tempo perfeito, deixaramnos o
canto de
Orfeu e a alegria de Pã. Nas nossas vidas, em hora
imprevisível, qual
"Aparição", seremos visitados, talvez, por uma inexplicável
Alegria.
Porto, Fevereiro de 1997
A FRONTEIRA DA LUA
Uma convicção cosmológica no Mundo Antigo.
"(...)Imaginemos um jardim, com centenas de árvores das mais
variadas, milhares de flores das mais variadas, centenas de
frutos,
de ervas das mais variadas.Se se dá o caso de o jardineiro
desse
jardim não conhecer outra diferenciação botânica que não
seja a de
«comestível» e «erva daninha», então não saberá lidar com
nove
décimos do seu jardim, arrancará as flores mais
encantadoras,
abaterá as árvores mais nobres ou pelo menos háde odiálas
e
olhálas de través.Assim age o Lobo das Estepes para com
milhares
de flores da sua alma.(...)"
HERMAN HESSE,"O Lobo das Estepes".
I PARA ALÉM DAS NUVENS
A aspiração de crescer é uma tentação a que mil vezes os
gregos
escaparam. Habituados a espaços duma escala inteligível, que
um olhar
enquadrava, neles geriram o singular destino e estilo que foi
o seu.
Estados à escala de cidades, rodeados de objectos urbanos,
instituições ou ideias, praças ou teatros, era aí que o caos
do mundo
se detinha, o sentido da cidadania e da política se
confundiam.
Uma paixão nunca abandonada pela procura duma "ordem
humana" que
trouxesse um pouco da perfeição dos céus ao "perpetuum mobile"
da
História explica a minúcia, a quase obsessão com que
desenharam os
"mundos ideais", as cidadescomodevemser para que o
pensamento se
liberte e o filosofar, o governar, o criar deixem aberto o
caminho
superior da meditação e da contemplação. Esse almejado e
prestigiado
ócio, estrada real da liberdade.
Mas o tempo raramente cumpre os desejos daqueles que o
prendem
com laços e fitas e nenhuma cultura inventa os seus sonhos sem
trilhar
as sombras que o acaso ou o destino algures se comprazem em
tecer. De
Tales a Sócrates a filosofia descobre que a paixão da física
celeste
pode enredarse nos assuntos da cidade, nas nuances sobre a
"origem
das ideias", a justeza das Leis, a retórica dos discursos.
Em Platão, o vigor da eterna batalha da Filosofia já não
esconde
alguma amargura e desencanto, um nãoseiquê se desprende das
lutas de
Sócrates com os interlocutores e a frescura das ideias e do
filosofar
dos fundadores pouco mais é que a perdida inocência dum tempo
que foi
mas já não é. Lentamente se abre uma era de desconfiança, de
pálidas
certezas, confrangedoras, mas tão admiravelmente humanas.
A Academia e o Liceu debatemse com o presente e o
passado e
revelam mais dois "estilos" do que dois "mundos"
incomunicantes. Nas
suas salas ou jardins, na comunidade dos adeptos e aprendizes,
nos
seus livros, nas suas colecções, a Filosofia complicouse e
reconhece
que entre os homens e o mundo há muito mais que o cristal
incorruptível do pensamento.
Percase a Terra, soltese o desencanto do "relativo", do
"possível", do "talvez", do meiotermo, mas continua a
persistir o
intocável, o próximodistante que é o reino dos Céus, essa
máquina
cósmica que nos cobre e protege, astrosdeuses, desafiandonos
desde
os inícios do tempo. Tudo muda, tudo se transforma, mas para
além das
nuvens e dos meteoros, nesse localfronteira imediatamente
acima da
Lua, a regra que perdura vem dos séculos dos séculos e o seu
segredo
escapará ainda ao claroescuro que doravante se entretecerá
nos jogos
da razão.
A partir duma certa altura todos são devedores dos
Pitagóricos,
no que à estrutura do Cosmos diz respeito. Após as hesitações
da
Escola de Mileto quanto à forma, localização e comportamento
do
insondável reino celestial, e se excluirmos a curiosíssima
perspectiva
de Anaximandro com a sua interpretação de natureza geométrica
e com o
seu quê de prégravitacional, são as leituras oriundas dessa
singular
comunidade parafilosófica que estabelecerão as regras do jogo
a que
poucos escaparão.
As regras são precisas, radicais e com reduzido número de
variações na sua configuração. Astros esféricos, órbitas
desenhando
círculos perfeitos, a crença na natureza perfeita dos mundos
para além
da Terra, a aposta da escrita cósmica remeter para uma
combinatória
geométrica e matemática. Tudo o que reduz o alcance das
aparências
titubeantes dos movimentos planetários a ilusões que remetam
para a
perspectiva do observador ingénuo, vai na direcção da longa
ascese que
prepara o conhecimento verdadeiro, aquele que vislumbra as
harmonias
numéricas e assim trilha o caminho da contemplação e do
pensamento
feliz!
As variações, como já se viu, são reduzidas, mas
significativas.
Lembrese a posição de Filolao e o seu "fogo central", de
simbologia
estéticoreligiosa, mais a sua obscura "AntiTerra" que
harmonizava a
cumplicidade da "tetractis" com a face do mundo, ao forçar o
universo
a cumprir a mística do "número 10". Mas sobretudo atentese
que esta
deslocação e as honrosas motivações que a possibilitam, tolera
e exige
que a Terra saia do centro e que ocupe, por conseguinte um
lugar
equivalente aos restantes planetas, eternamente singrando na
esfera e
trajectória circular que lhe compete em torno desse "trono de
Zeus"
que compensa e equilibra no centro cósmico esse outro "fogo
exterior"
que se estende para além do derradeiro limite inteligível das
estrelas
fixas.
Digamos, pois que o essencial foi descoberto cedo.
Platonismo e
aristotelismo aceitam a lógica de tais princípios, ainda que
utilizando universos conceptuais distintos, como são os que
distinguem
o registo alegórico do Timeu, da leitura mais inteligível e
fria dos
céus de Aristóteles. A solução encaminhase em direcção do
poder das
matemáticas e das combinatórias geométricas em torno da
pressão do
"dogma do círculo". Daqui resultará uma solução complexa e
habilidosa,
um compromisso entre as "aparências" provenientes da
observação e as
Leis imutáveis que a condicionam.
Tal caminho conduz a uma desmultiplicação das esferas
planetárias, cujo número é condicionado por determinantes que
não
passam por qualquer verificação experimental, tratandose
somente de
encontrar uma construção que enquadre as trajectórias errantes
numa
série adequada de sucessivas esferas de dimensões pensadas
para servir
cada um dos astros conhecidos. Com Eudoxo e com Aristóteles
esse
número pode aproximarse da escala das dezenas! Daqui para
diante o
modelo está estabelecido e o seu expoente superior irá
confluir para a
escola de Alexandria, na obra de Claudio Ptolomeu.
Porém, não esqueçamos que até aí chegarmos alguns séculos
e
significativos acontecimentos irão modelar o mundo antigo.
II O SONHO DE ALEXANDRE
Um ponto de viragem será associado à figura de Alexandre,
o
príncipe macedónio, cuja vocação de conquista levará os gregos
para
além dos seus limites estratégicos. Educado em terrenos
aristotélicos,
aspira a uma civilização que rompa os limites da "polis" ou,
melhor
ainda, que estenda as suas regras a uma escala territorial que
nunca
foi a sua. Digamos que Alexandre é um conquistador cosmopolita
no
sentido etimológico da expressão. Mundo à imagem da Cidade.
Cidade
como resumo do Mundo. Ao modo grego, claro.
Sabese a eficácia momentânea do seu projecto. A rapidez
do seu
triunfo, a amplitude que nos mapas do mundo se deixa colorir
pelos
sonhos de Alexandre. Da India ao Egipto um império se desenha.
Mas o Império não é o modo grego de estar no mundo, pela
lógica
de confusão, mistura, essa escala das coisas para além do
limiar do
razoável. Tudo unir na amálgama de mil vozes, mil usos, mil
deuses
pode parecer um sonho digno, um desejo de modernidade, uma
fraternidade universal. Mas é também uma paixão que ignora o
possível
e cada conquista dos generais de Alexandre é uma fissura
irreparável
nos mármores do Partenon, uma porta aberta à incerteza e ao
caos nas
ideias e nas almas.
Falta aos gregos a dimensão de gestores dos grandes
espaços, das
redes de poder burocratizadas, do cimento de coesão que o
Direito
Romano admiravelmente saberá distribuir por entre a "pax" das
legiões.
A morte prematura de Alexandre, se parece ir ao encontro da
máxima
segundo a qual "aqueles que os deuses amam morrem jovens",
deixa como
primeiro legado um problema impensável à escala da "polis",
isto é, a
repartição dum imenso território, repetido orgulho e maldição
de toda
a conquista.
É sobre os seus mais próximos amigos e chefes militares
que recai
o prosseguimento do sonho, agora mais condicionado por uma
atitude
defensiva e realista que visa a consolidação no terreno duma
lógica do
possível. No território egípcio, abrese a porta à dinastia
dos
Ptolomeus. Para além da Lua, os astros perfeitos continuam por
enquanto imunes aos jogos mutantes e corruptíveis a que se
entregam os
homens.
III ALEXANDRIA.CIDADE ABERTA
É com Ptolomeu Sotero, o general coberto pela sombra
protectora
de Horus, que uma ideia grega vai ocupar um poder até então
entregue
aos "deuses vivos" que escolherem o Egipto como morada.
Verdade seja
dita, sempre os gregos olharam para esse lado do Mediterrâneo,
esse
local simultaneamente acolhedor e ambíguo, como um espaço
sedutor,
onde um saber vindo dos confins do tempo se acumulava com uma
espessura só possível num reino vocacionado para a eternidade.
Desde a escola de Mileto até Platão muitos foram aqueles
que,
pressionados por uma ideia de conhecimento que visava uma
abertura aos
outros, introduziram o gosto da viagem como uma virtude da
Filosofia.
Entre outros, o Egipto era local de estadia quase obrigatório.
Muita
coisa aí foi apreendida e reciclada pela cultura urbana
subjacente ao
filosofar, pois o "milagre grego" é mais uma ars combinatoria
que um
acto de rotura sem retorno face ao património de informação do
mundo
antigo.
Não se tratava de fazer do poderoso império agrário uma
Grécia
desproporcionada, missão em si mesma contraditória e
impossível. Mas
de criar um estilo híbrido, na intersecção de dois modos de
vida que
supõem uma bifurcação de caminhos civilizacionais e mentais. O
compromisso abre portas à dimensão urbana, patamar mutuamente
aceitável pelas duas culturas. Está aberto o projecto de
Alexandria,
obra desmesurada a que os novos poderes dedicarão atenção
prioritária.
O nome da cidade não engana. É a homenagem viva ao
Conquistador que a
possibilitou!Mas é mais do que isso.
Contrariamente ao hábito corrente do desenvolvimento
urbano das
sociedades camponesas, mais dependente dum crescimento
afectivo e
desordenado do que duma demarcação no território das linhas de
razão,
Alexandria visa um desejo de "ordem" cujas raízes mergulham na
"polis"
e que só arquitectos e engenheiros são dignos de planear. É
uma tarefa
que mobilizará os recursos gregos sob o patrocínio dos
primeiros
Ptolomeus.
Deste modo a Cidade cresce com um objectivo de fundo
helenístico,
esse grande desejo de mistura de muitas vozes, múltiplos
encontros que
o acaso tece. Cidade marítima, entreposto de projectos, de
línguas, de
deuses, mal sonha o milénio de grandeza e devastações que a
aguarda.
Duas instituições míticas com ela nascem e que se
transformarão num
dos grandes símbolos do mundo antigo. Ambos superiormente
patrocinados
pelo poder, concretizam o melhor dos sonhos gregos e da sua
particular
relação com a Teoria e a experiência. O Museu e a Biblioteca.
Recolhem a experiência de instituições como a Academia
platónica
e o Liceu aristotélico e do gosto de convivência, de ensino e
de
Escola nelas suposto, mas dotadas de meios materiais
manifestamente
superiores, ao que tudo leva a crer. Talvez que o paradigma
dominante
seja o aristotélico, designadamente pela intensidade que nelas
manifesta um saber experimental, empírico, prático, sempre
olhado com
alguma reserva por toda a tradição platónica.
O Museu deve ser pensado num sentido muito amplo, a meio
caminho
entre o sentido mais estrito que hoje damos ao termo e a
instituição
multidisciplinar que abarca o essencial das áreas do saber, da
Astronomia à Botânica, da Geografia e Matemática à Zoologia e
Medicina. Verdadeiro centro de investigação e pesquisa, nele
são
previstos espaços para uma pleiade de estudiosos que nele
operam em
termos quase profissionais. Nem um Zoo faltará para ir de
encontro à
vocação englobante que o preside!
Quanto à Biblioteca, que se julga ter recolhido um fundo
bibliográfico pertencente ao próprio Aristóteles, acumula um
património de informação invejável por muitos séculos.
Patrocinada
pelo poder real como centro de afirmação cultural, para ela
foram
recolhidos, arquivados e duplicados dezenas de milhar de
livros, que
atrairam estudiosos de toda a parte, e transformaram os
bibliotecários
de Alexandria numa das personalidades mais prestigiadas do
mundo
antigo, de tal forma que passam a ser encarregados da educação
do
príncipe.
O conjunto destas instituições permitiram que em
Alexandria se
atingisse o que hoje se designa como "massa crítica" de
investigação,
de tal forma que no seu período de máximo esplendor (séc.
IIII a.C. )
aí se encontram personalidades de inequívoco relevo. Entre
outros,
Euclides, o matemático, Eratóstenes, o geógrafo que pela 1ª
vez
sugeriu uma medida espantosamente precisa do diâmetro da
Terra,
Aristarco, o astrónomo, que propõe um sistema heliocêntrico,
cuja
precoce modernidade só será recuperada na obra de Copérnico.
As observações astronómicas cada vez mais precisas e
detalhadas,
acentuavam uma questão que já tinha sido equacionada desde os
primeiros pitagóricos até Platão e Aristóteles, isto é, a
constatação
dos movimentos "errantes" dos planetas, a variação periódica
do seu
tamanho aparente ao longo do ano, e a necessidade de
compatibilizar
estes dados sensitivos com a racionalidade metalunar do dogma
dos
movimentos circulares e uniformes. A soluçãotipo consistia em
atribuir um papel fundamental à Astronomia Geométrica como via
de
interpretação das peculiaridades da Astronomia de
"observação".
O resultado é iremse constituindo modelos
cosmológicogeométricos progressivamente complexos que
explicam com
crescente barroquismo a intocável precisão do reino dos Céus.
A obra
de Ptolomeu é o corolário final destes esforços, cujo sucesso
é
indesmentível, quanto mais não seja pelos quase 1. 400 anos em
que se
manteve à tona da história do pensamento astronómico.
IV PTOLOMEU.A MÁQUINA CÓSMICA
Não se julgue que a teoria de Ptolomeu (séc. II) só deva
ser
vista como uma "velharia", o resultado exemplar dum bloqueio
epistemológico, uma incapacidade de ver as coisas como são,
por
carência de espírito objectivoexperimental, característico da
Ciência
moderna pósrenascentista. Que é um acumular de erros e
perversões que
só a cegueira da razão permitiu manter durante séculos e
séculos.
O sistema ptolomeico permite prever factos astronómicos
com
suficiente precisão, medir distâncias, elaborar cálculos com
eficácia
prática e os seus modelos e abordagem geométrica, apesar de
ultrapassados pelo binómio KeplerNewton, estão ainda bem
presentes
nas considerações de Copérnico, cujo sistema é bem menos
simples do
que as imagens redutoras que, por vezes, dele nos são dadas.
De Claudio Ptolomeu pouco se sabe da sua vida a das datas
exactas
de nascimento e morte, presumindose que tenha vivido no
séc.II
(100170), por dedução feita a partir de alguns fenómenos
astronómicos
por ele observados e referidos nas suas obras. A Alexandria
que
Ptolomeu conheceu estava já distante do período de máximo
esplendor
dos séculos passados e vivia agora sob o ascendente dos
conquistadores
romanos, no tempo de Trajano, Adriano, Antonino Pio e Marco
Aurélio.
Os grandes investimentos culturais do tempo dos Ptolomeus
tinham
passado à história, apesar do continuado prestígio da cidade
junto da
elite culta, que continuava a usar o grego como meio de
comunicação
preferencial.
Ptolomeu, apesar de ser conhecido como astrónomo, não
deixou de
configurar o ideal eclético da cultura helenística ao cultivar
a
Geografia, a Óptica, a Música e a Astrologia. A sobrevivência
quase
integral das suas obras mais importantes, bem ao contrário do
que é
usual em tantos trabalhos desta época que estão reduzidos a
fragmentos, citações indirectas, às vezes pouco mais que
títulos,
devese a circunstâncias afortunadas, onde se destaca o grande
prestígio que o suas ideias adquiriram junto dos pensadores
árabes,
responsáveis em boa parte pela recuperação dos seus textos.
Foi,
aliás, a admiração destes intelectuais pelo trabalho
intitulado
"Grande Composição Matemática da Astronomia", que originou a
designação de "Almagesto", provavelmente introduzida no
vocabulário
actual por astrónomos cristãos da Idade Média. A este tratado,
escrito
por volta de 142, seguese um 2º livro de temática
astronómica,
intitulado "Hipóteses dos Planetas", provavelmente datado de
146.
Nestes textos, mais do que absoluta inovação, fazse uma
síntese
bem organizada dos inúmeros predecessores, visando uma unidade
teórica
de acordo com princípios bem estabelecidos, resultando numa
versão
final da cosmologia antiga, cuja solidez só será posta em
causa muitos
séculos mais tarde.
A associação entre Matemática e Astronomia patente no
título,
resulta da divisão aristotélica entre "filosofia teórica" e
"filosofia
prática", interessando particularmente a Ptolomeu a razão
científica,
isto é, teórica, na boa tradição grega. Os patamares desta
"filosofia
teórica" iam da Física à Teologia, passando pela Matemática,
cumprindo
a via de "purificação" dum conhecimento que vai do sensível ao
imutável. Neste quadro classificativo, a Astronomia é um
subcampo das
Matemáticas, a par da Geometria e Aritmética.
Desta forma, ganha consistência um modelo cosmológico
apoiado em
princípios, que compatibiliza a observação e as suas
estruturas
mutantes e erráticas com uma cobertura de racionalidade e
eternidade
que convém à perfeição dos objectos celestes. Tal é o
objectivo visado
pela "Grande Composição Matemática" e "Hipóteses dos
Planetas".
As proposições da Física que sustentam a astronomia visam
"(. . .
) Antes de mais, admitir que o céu é esférico e que se move da
maneira
que convém a uma esfera;que, pela sua forma, a Terra,
considerada no
conjunto das suas partes é, ela também, sensivelmente
esférica;que
pela sua posição, está situada no meio de todo o Céu, e que
ela aí
está como que no centro;que quanto ao assunto do tamanho e da
distância, ela está para a esfera das estrelas fixas na mesma
relação
que um ponto;que ela não executa qualquer movimento que a faça
mudar
de lugar. (. . . )".
Não iremos aduzir os argumentos de Ptolomeu em favor
destes
princípios, mas somente salientar que tais proposições exigem
que se
transite duma Astronomia Física a uma Astronomia Matemática,
espécie
de modelo computacional cujas exigências de precisão levarão a
propor
soluções duma mecânica abstracta, na sequência dos caminhos já
abertos
por Eudoxo, Hiparco e Calipo.
Daqui resultam duas ideias fundamentais em que se apoia a
construção de Ptolomeu. Por um lado, distinguir o "centro
geométrico"
do Mundo do seu "centro físico", que é ocupado pela Terra;por
outro,
imaginar que a revolução dos astros em torno do "centro" se
faz em
função dum "epiciclo", deslocação perfeita dum orbe no qual o
planeta
ocupa uma zona da circunferência que é arrastada pelo
movimento
circular e uniforme.
É naturalmente complexo apercebermonos das soluções
geométricomatemáticas subjacentes a esta engrenagem cósmica,
cujo
principal objectivo era "salvar as aparências", isto é, fazer
reduzir
a inconstância dos planetas a uma sucessão em cadeia de
movimentos
racionalmente aceitáveis que, vistos do centro do Mundo (a
Terra)
efectivamente seriam observados pelos "sentidos" como estando
de
acordo com princípios imutáveis.
Como a variação do movimento planetário obedece a padrões
individualizados para cada um dos astros conhecidos, a solução
genérica dos epiciclos terá de ser adaptada a cada caso
particular.
Haverá uma teoria do Sol, da Lua, de Mercúrio, de Vénus, de
Marte, de
Júpiter e de Saturno, obrigando a soluções "ad hoc" que acabam
por
desmultiplicar o número de orbes para o conjunto dos planetas,
de tal
maneira que o sistema ptolomeico ganha dimensões
cabalísticoestéticas!
Mantémse a "Teoria dos 2 Mundos" de proveniência
aristotélica,
distinguindo bem o reino do movimento, transformação,
corrupção, vida
e morte que habita a Terra, onde perpetuamente se transmutam
ar, água,
terra e fogo, duma região para lá das nuvens, onde se desenha
a régua
e esquadro a fronteira da Lua. É um Universo pequeno,
controlável,
inteligível, um Mundo à escala humana donde, bem vistas as
coisas, se
desprende uma certa doçura, bem distante do frenesim dos
"pulsars",
"quasars", supernovas, superenxames de galáxias, "bigbangs"
e
radiações isotrópicas a 3º Kelvin.
Será pecado, em certas horas cinzentas, terse saudades
dum erro
?!
PORTO, Setembro de 1993
Levi António Malho
"INCOMENSURÁVEL AFECTO"
Sobre livros, livros e mais livros
"(. . . ) Assim fiquei só com Fradique que me convidou a
subir
aos seus quartos, e esperar Vidigal, bebendo uma «soda e
limão».
Pela escada, o poeta das «Lapidárias» aludiu ao tórrido
calor
de Agosto. E eu que nesse instante, defronte do espelho no
patamar,
revistava, com um olhar furtivo, a linha da minha
sobrecasaca e a
frescura da minha rosa deixei estouvadamente escapar
esta coisa
hedionda:
Sim, está de escachar!
E ainda o torpe som não morrera, já uma aflição me
lacerava,
por esta chulice de esquina de tabacaria, assim
atabalhoadamente
lançada como um pingo de sebo sobre o supremo artista das
«Lapidárias», o homem que conversara com Hugo à beiramar! .
. .
Entrei no quarto atordoado, com bagas de suor na face. E
debalde
rebuscava desesperadamente uma outra frase sobre o calor,
bem
trabalhada, toda cintilante e nova! Nada! Só me acudiam
sordidezes
paralelas, em calão teimoso: «é de rachar»! «está de
ananases»!
«derrete os untos»! ... atravessei ali uma dessas angústias
atrozes, grotescas, que, aos vinte anos, quando se começa a
vida e
a literatura, vincam a alma e jamais esquecem. (. . . )".
Eça de Queiroz, "A Correspondência de Fradique Mendes"
«Gasparzinho, o Às da Sorte, foi parar ao Polo Norte!». Tanto
quanto
me lembro foi assim, numa manhã de 25 de Dezembro, em cima dum
sapato
deixado sobre um fogão de lenha, que o Pai Natal me entregou o
1º
livro da minha vida, acompanhado duma caixa de lápis de côr
Viarco e
dum 'aguça', nesses já distantes anos da década de 50, tempos
da
Guerra da Coreia e da gente pequena que, pela magia da
infância, era
incapaz de ver que o negócio tinha sido consumado aos balcões
do
"Bazar dos Três Vinténs" da Rua de Cedofeita!
Primeiro livro, primeiro amor. Aquilo era uma vaga
história para
colorir, que metia ursos das neves árcticas, 'igloos',
pinguins e
peixes que saíam de buracos no gelo, esquimós com casacos de
peles
fofas e felpudas, que hoje seriam 'politicamente incorrectos'
e
desencadeariam a fúria de organizações ecologistas. Mas que
sabia eu
disso, então, num Portugal pacato, rural, mesmo numa cidade
como o
Porto, onde as luzes municipais eram acesas 'à mão' por um
pobre diabo
que, ao cair das tardes, chave em punho, ia ligando
interruptores que
vagamente emitiam uma claridade mortiça, sob um 'abatjour' de
esmalte, não escondendo a ferrugem e incúria da passagem de
imemoriais
solstícios e equinócios.
Que pena não ter já esse livro, embora confesse que a
maior
animação foi aguçar até à exaustão os lápis Viarco, actividade
de
nível metafísico incomensuravelmente superior ao tédio de
pintar os
peixes, os pinguins e o mais que para lá existia.
Desde então, a verdade é que os meus dias estão sempre
próximos de
livros!
Livro de 'Leituras', da 3ª ou 4ª Classe, com desenhos
pálidos e
moralistas, fábulas, "O Corvo e a Raposa", "O Milagre das
Rosas", "O
Alfageme de Santarém", "Egas Moniz com corda ao pescoço", mais
mulher
e filhos que pareciam saídos dum orfanato dirigido por um
descendente
do Scrugges de Dickens, a Pátria do 'Minho a Timor', os
Missionários
comidos por antropófagos ateus, livros de 'História' com
dinastias
inteiras a decorar, reis e cognomes, D. Sancho, o Gordo, D.
Manuel, o
Venturoso, D. João II, o Príncipe Perfeito, a Ínclita Geração!
Ou
ainda os malditos 'Livros de Exercícios' de Matemática, o
'Palma
Fernandes', capas corderosa, soluções no fim, sempre
obstinadamente
diferentes da conclusão a que chegávamos após safar, raspar,
multiplicar, prova dos nove, coisas sinistras, tanques com
torneiras
que debitavam 50 litros/hora e tinham de se reduzir a
hectolitros.
Montões de coisas úteis, tanto elas contribuiram para a
minha
felicidade que até me vêm as lágrimas aos olhos! Como, por
exemplo,
orientar 'modelos de cristais', espécie de cruzetas de
madeira, nomes
terríveis, sistema monoclínico, triclínico, ortorrômbico.
Que me interessa a mim o sistema ortorrômbico? ! E a
sexualidade
das plantas, a única sexualidade dos Liceus do tempo
modorrento de
Américo Tomás e Salazar, os estames e as corolas, os
cotilédones dos
feijões e das favas, as infrutescências e inflorescências, as
raízes
aprumadas ou fasciculadas? !
Então, 'livros bons' eram as colecções do "Condor
Popular", onde
pontificavam os músculos de Luís Euripo, o pugilista
português, o
"Cavaleiro Andante" com o Príncipe Valente e mais o sua espada
purificadora, o Flash Gordon e o Doutor Zarkov, ou as
peripécias do
'Marca Amarela' e de Mortimore na Atlântida, nas vésperas da
submersão
nas águas onde, quiçá, espreitava no Nautilus o olhar
alucinado do
Capitão Nemo das "Vinte Mil Léguas Submarinas". . .
Ah! E os «livros sódeler», sem figuras! A gente a
sonhar, a
inventar ventos, climas, amantes implacáveis, venenos, feras
esfomeadas, o som e a fúria dos tufões das Caraíbas, o enorme
facalhão
de Sandokan, o Tigre da Malásia, os execráveis Governadores
corruptos
ao serviço das Espanhas e das Inglaterras, os amores eternos e
fatais.
Como quem não quer a coisa, 'iaos' juntando, primeiro
numa pilha,
depois numa estante, sem saber que, como um 'zombie', estava a
construir uma Biblioteca. Quem me dera regressar a essas horas
apontadas ao prazer de começar certos livros, sentir o mundo
apagarse. Vir a correr da Escola, meterme no quarto que
ficava do
tamanho do Universo inteiro, até à chegada, aos gritos, da Mãe
e Tia:
Apaga a luz, que é tarde! Amanhã é que vão ser elas!
O destino fezme professor. De Filosofia. Tenho quase
50 anos
e os livros cercamme por toda a parte, falamme, quase os
sinto
murmurar:
A mim não me vais ler! Cabrão! Traidor! Para que me
compraste!
Se não me querias, por que não me deixaste em paz?
Tantas memórias, tantos livros me passam pela vida.
'Livros de
Sumários', marcando o ritmo pendular do ano lectivo. 'Livros
de
cheques', as malditas contas, o supermercado, as rendas, os
médicos,
os picheleiros, electricistas que sempre dizem:
Isto está 'p'rá qui' um sarilho!
É que é mesmo um bicodeobra!
Eu, crucificado no purgatório das obras, resmungo:
Está visto! Vaisme tirar a pele, e depois, não
satisfeito,
talvez esperes rapar o tutano de um ou outro osso mais à mão!
Tantos livros, tantos. Livros de Cavalaria que levaram a
loucura
de Quixote a correr a secura de Espanha, livros que acenderam
fogueiras, como os de Giordano Bruno, livros que enlouquecem
multidões, as Bíblias, os Corões, os 'livrosvermelhos' dos
Guardas do
Camarada Mao, da 'Grande Revolução Cultural' e do 'Grande
Salto em
Frente'! Livros queimados em hecatombes de estupidez,
arrogância
iluminada nas noites germânicas dos anos 30, livros que levam
a
sentença de morte como os "Versículos Satânicos", livros
escritos nas
masmorras da Bastilha, como os de Sade. Livros que escorriam
pelas
mãos brancas de tédio de Madame Bovary, livros intermináveis
como as
"Memórias de um Átomo", do tão querido João da Ega dos
"Maias", livros
com névoa, como no castelo do "Deserto dos Tártaros" de Dino
Buzatti,
livros terríveis como aqueles que pretendem explicar como se
programa
um videogravador com 4 semanas de antecedência.
E as colecções de livros? Os livros comprados 'a metro'
para
efeitos decorativos? E ter de arrumar os livros? E limpar o pó
aos
livros? E saber onde está um dado livro? E emprestar livros? E
encapar
livros? E, em segredo e com vergonha, vender livros? !
E saber, como no "Fahreneit 451" do Bradbury que é
possível um
mundo horroroso, onde todos os livros desapareceram? E as
descobertas
dentro de livros, uma carta perdida, um bilhete de eléctrico
de 8
tostões que ficou para ali, a servir de marca? E encontrar uma
dedicatória num livro em 2ª mão, dum amor que foi o maior do
mundo,
com nomes que não nos dizem nada, hoje velhos, mortos?
E o que pesam os livros, quando se tem de fazer
mudanças? E as
promessas de que se vão oferecer os livros que jamais
abriremos outra
vez, para arranjar espaço para meter mais livros?
E encontrar 'algo' que é mais próximo de nós que a vizinha
do lado
e que tanto pode ser o Ulisses da 'Odisseia", o 'Zadig' de
Voltaire, o
Salviati de Galileu, a perfeição das horas brancas na Évora da
"Aparição", a bondade filantropa de Gog de G. Papini, as
flores
argelinas das colinas de Tipasa que vão dar ao Mediterrâneo,
nas
"Noces" de Camus, o bulício da Alexandria de Lawrence Durrell,
o amor
louco da "Espuma dos Dias" de Boris Vian, os aromas da
Arrábida de
Sebastião da Gama, as nortadas, anémonas e lubrinas de Luísa
DaCosta,
a indizível inquietação duma adolescente que encontrou "Um
certo
Sorriso" da Françoise Sagan, ou a imensa paz do "Sidharta" de
Herman
Hesse.
Tantos livros, tantas vidas! Tudo isto uma Biblioteca
guarda para
nós, para os vindouros. Biblioteca de Alexandria três vezes
queimada,
por acidente no tempo de Cleópatra, por estupidez no tempo de
Hipatia,
a bibliotecáriaastrónoma, delapidada pela populaça em fúria
contra o
saber 'pagão' e finalmente derrubada pelo vendaval rubro dos
estandartes do Islão.
Biblioteca mítica de Jorge Luis Borges, biblioteca que
escondia o
texto perdido da "Poética" de Aristóteles, elogio da comédia e
do
riso, no "Nome da Rosa" de Umberto Eco, biblioteca onde se
desvenda,
finalmente, o criminoso nos romances de Agatha Christie!
Estranha é a nossa vida que, tudo passado, se reduz a duas
páginas
num Livro, a 'Folhas Tantas', frente ou verso, perdidas nas
prateleiras duma Conservatória de Registo Civil, até que mais
ninguém
se lembre de nós, nem na data do nascimento, nem na data da
morte,
como tão perfeitamente, também num livro, o profetizou o
grande Álvaro
de Campos.
Outubro/1996
Levi António Malho
"EPPUR SI MUOVE "
Sobre uma biografia de Galileu.
Nota: este texto está baseado, no que diz respeito à
maioria das
citações de Galileu, na obra de Arthur Koestler, "The
Sleepwalkers. A History of Man's changing view of the
Universe"
(Arkana, London, 1989, 1ª edição. Hutchinson, London,
1959). A
tradução é da responsabilidade do autor e encontramse
publicadas
na separata da Revista da F.L.U.P., série de Filosofia,
(2ª
série), nº 11, Porto, 1995.
" Acordo. Que disseram os outros? Aurora que, cada manhã,
reconstróis o mundo; integral nos braços nús que conténs o
universo; juventude, aurora do homem. Que me importa o que
os
outros disseram, o que pensaram, o que acreditaram. Sou Febo
del
Poggio, um bobo. Os que falam de mim dizem que sou pobre de
espírito; talvez nem tenha espírito. Existo como um fruto,
como um
copo de vinho, como uma árvore. Quando vem o Inverno, as
pessoas
afastamse da árvore que não dá sombra; comido o fruto,
deitam fora
o caroço; vazio o copo, vão buscar outro. Eu aceito. Verão,
água
lustral da manhã sobre membros ágeis; ó alegria, orvalho do
coração. . .
Acordo. Tenho diante, atrás de mim, a noite eterna. Eu
dormi
milhões de idades; milhões de idades eu vou dormir. . . Só
tenho
uma hora. Havia de estragála com explicações e com máximas?
Estendome ao Sol, sobre o travesseiro do prazer, numa manhã
que
não voltará mais. "
MARGUERITE YOURCENAR, " Febo del Poggio "
[narule.gif]
1 A ALEGRIA DE OLHAR
Quando, em 1642, Galileu morre, com 78 anos, apesar da
condenação que
pesava sobre o grande tratado " Diálogo sobre os dois Grandes
Sistemas
do Mundo ", os seus trabalhos não entraram num longo
interregno de
apagamento e silêncio, como seria usual esperar por comparação
com
casos semelhantes, designadamente Giordano Bruno, cuja vida e
obra
foram devoradas durante séculos nas cinzas da fogueira acesa
no "Campo
das Flores", em Roma, quando se anunciava a Primavera do ano
da graça
de 1600.
Após a sentença que o obrigou a abjurar das convicções
copernicianas e lhe ter sido confiscada a obra em que se
confrontavam
as teses cosmológicas de " antigos " e " modernos " , Galileu,
com
quase 70 anos, ainda tem lucidez para publicar a Ciência da
Dinâmica,
mantendo prestígio e amigos, alimentando até ao fim a
capacidade de
provocar afectos excessivos, flutuando entre o rancor e a
admiração,
numa biografia pessoal e científica que marcou a alvorada da
Ciência
Moderna. Não nos devemos espantar, portanto, que após a sua
morte, os
amigos pretendam erguerlhe de imediato um monumento e que o
livro
proibido em 1633, circule clandestinamente na Europa culta,
dois anos
depois do decreto que o pretendia banir da face da Terra.
Esta trajectória de controvérsia e paixão, que acompanhou
toda a
sua vida e se mantém na tona da história há quase quatrocentos
anos,
tem dado origem a um dos mais estimulantes debates que
atravessaram as
ideias filosóficas e científicas, isto é, a conhecida polémica
da
Razão e da Fé! Galileu tem sido esgrimido pelas partes em
polémica com
uma paradoxal virulência, oscilando entre uma angélica
inocência e um
heterónimo sulfuroso de Belzebú em pessoa. . .
O que acontece é que estes estereótipos radicais não dão
uma
justa ponderação aos factos pois, apoiandose em pormenores
autênticos, esquecem deliberadamente outras dimensões tão
reais como
essas, susceptíveis de serem esgrimidas em sentido contrário.
Portanto, nem mártir nem santo, mas homem complexo,
temperamental,
habitado por um extraordinário " daimon " que leva à
coexistência das
grandezas e misérias que, às vezes, devastam certas vidas!
O seu primeiro livro, "O Mensageiro das Estrelas", vem a
público
quando Galileu tem 46 anos, numa altura em que o essencial da
sua
personalidade está formada, os projectos se encontram numa
fase
avançada, as grandes intuições tomam forma. E se bem que a
validade
duma obra não deva ser julgada pelo quotidiano de quem a fez,
assim
como a veracidade duma lei científica não impede que o seu
autor seja
assaltante de caminhos, nada impede que relacionemos Galileu
com o seu
tempo, deixando ao leitor o critério da ponderação destes
elementos.
Filho de Vincenzo Galilei, homem culto originário da
baixa
nobreza empobrecida, Galileu Galilei nasce em Pisa, em 1564,
numa
família com vagos investimentos comerciais, bem diferente da
desvairada e louca constelação de afectos do seu admirador e
contemporâneo, J. Kepler. Sobre o pai de Galileu, afirma
Arthur
Koestler: " (...) foi um homem de notável cultura, com
consideráveis
sucessos como escritor e compositor de música, um desprezo
pela
autoridade e tendências radicais. Escreveu, por exemplo, (num
estudo
sobre o contraponto) : «Pareceme que aqueles que tentam
provar uma
afirmação confiando simplesmente no peso da autoridade, agem
muito
absurdamente» . (...) ".
Frequentou a escola jesuíta do Mosteiro de Vallombrosa,
perto de
Florença, mas acabou por voltar a casa, a fim de se dedicar a
assuntos
comerciais, como era desejo do pai. Digase que a Companhia de
Jesus
vai exercer uma forte influência no destino de Galileu, quer
no
sentido positivo, quer no negativo, pois guarda inúmeros
amigos nesta
ordem religiosa, cujo espírito aberto e disponível para os
temas
culturais e científicos manifesta uma das mais curiosas
vertentes do
movimento da ContraReforma. As dificuldades económicas
crescentes da
família levamno a abandonar a Universidade de Pisa, para onde
tinha
entrado aos 17 anos, após lhe ter sido recusada uma bolsa para
prosseguir os estudos.
Este facto deve explicarse mais pelo temperamento
pessoal de
Galileu, pela tendência polemista que tinha como alvo
preferencial os
professores de formação aristotélica, a quem devia fazer a
vida num
inferno, do que a qualquer falta de capacidades intelectuais
pois, com
20 anos, já tinha inventado o "pulsilogium" e intuído as leis
do
pêndulo.
Regressado a casa, mantém um espírito autodidacta e
potencia as
suas notáveis aptidões experimentais no campo da mecânica
aplicada e
na produção de instrumentos especializados, entre os quais uma
balança
hidrostática, que dá origem à publicação dum tratado que
circula
particularmente entre personalidades amadoras destas áreas.
Não tarda
a ser recomendado a Fernando de Médicis, Duque da Toscânia,
através
dos bons ofícios do Cardeal del Monte, e a ser nomeado
Professor de
Matemática em Pisa, na mesma Universidade que, há quatro anos,
através
de manobras mil, tinha julgado lançálo para o anonimato
eterno!
Com 25 anos, Galileu entra pela porta grande do meio
universitário, sob patrocínio real e em 1592, com 28 anos, é
promovido
a "titular" da cadeira de Matemática em Pádua, onde se manterá
durante
quase vinte anos. Podemos facilmente imaginar a alegria dos
seus
colegas docentes ao verem a fulgurante carreira de Galileu,
ainda por
cima sob os auspícios e o alto patrocínio de cardeais e
príncipes.
Galileu tem uma particular sensibilidade para ponderar a
correlação de
forças e não deixará de utilizar estes factores favoráveis
para alguns
ajustes de contas, que pacientemente irão alimentar o
caldeirão de
sentimentos em que a sua vida se move.
Este longo período em Pádua é o mais fértil da sua
existência, do
ponto de vista da estruturação das descobertas e princípios
que, a
partir de 1610 e da publicação do "Mensageiro das Estrelas",
irão dar
origem a uma sucessão de obraschave para a Ciência Moderna.
Enquanto
isto não acontece, o seu prestígio aumenta, os negócios correm
razoavelmente, pois mantém uma oficina de produção de
equipamentos
sofisticados e começa a ser conhecido alémfronteiras, se
atendermos a
que Kepler se dá ao trabalho de lhe oferecer uma cópia do seu
"Mistério Cosmográfico", vindo a público em 1597.
Apesar de sabermos das suas convicções íntimas em defesa
de
Copérnico, nesta altura, nas suas aulas, continuava
prudentemente a
não sustentar essa posição, preferindo divulgar as ideias
astronómicas
e cosmológicas aristotélicoptolomeicas. É isso que se
expressa numa
carta de Agosto de 1597, dirigida a Kepler, em agradecimento
ao livro
que este lhe enviou: " (...) Restame acrescentar que lerei o
seu
livro com tranquilidade, certo de nele encontrar as mais
admiráveis
coisas, e farei isso com a maior alegria já que adoptei a
mensagem de
Copérnico há muitos anos, e o seu ponto de vista permiteme
explicar
muitos fenómenos da natureza que certamente ficariam
inexplicáveis, de
acordo com as hipóteses mais correntes. Escrevi muitos
argumentos a
favor dele e em refutação da perspectiva oposta que,
todavia, até
agora não me atrevi a trazer a público, assustado pelo próprio
destino
de Copérnico, nosso professor que, apesar de ter adquirido
fama
imortal junto de alguns, é ainda para uma multidão infinita de
outros
( pois tal é o número dos loucos ), objecto ridículo e
desprezível.
Certamente, atrevermeia a publicar de imediato as minhas
reflexões
se existissem mais pessoas iguais a si; como não há,
sustermeei de
tal fazer. (...) ".
Este receio de Galileu não tem ainda suficiente
justificação
pois, por enquanto, a Igreja católica, designadamente a sua
hierarquia
mais esclarecida, apoia e discute Copérnico, mantendo a
política que
tinha seguido ao estimular, durante longos anos, a publicação
desse
texto que será causa remota de tanta controvérsia. O motivo
fundamental da prudência de Galileu deve procurarse mais do
lado das
reacções oriundas dos meios aristotélicos universitários, que
aguardavam o mínimo deslize para desferirem ataques, do que
dos
círculos afectos à Igreja. " (...) Até ao ano fatal de 1616, a
discussão do sistema de Copérnico era não só permitida, mas
estimulada
por eles sob a única limitação, que consistia em
confinála à
linguagem da ciência, e não tergivesar para assuntos
teológicos. A
situação foi claramente sintetizada numa carta do Cardeal Dini
para
Galileu, em 1615: «Pode escreverse livremente enquanto nos
mantivermos fora da Sacristia. ». (...) ".
Nos próximos dez anos, até à altura da publicação do
primeiro
livro, Galileu continua as investigações de física, prossegue
a
docência e desenvolve o telescópio que está na origem das
extraordinárias observações relatadas nesse texto.
Após a vinda a público do "Mensageiro das Estrelas" e da
abundante argumentação de natureza experimental sobre os
factos
astronómicos, onde se destaca, sem dúvida, a descoberta dos
quatro
Satélites de Júpiter, as discussões vão aumentar de
intensidade, pois
não faltaram aqueles que negavam a existência dessas
"monstruosidades"
celestiais. Galileu está no seu terreno favorito, convencido
da razão
que lhe assiste e detendo uma vantagem estratégica face aos
seus
adversários, não perde nenhuma oportunidade para fazer vingar
as suas
teses e ajustar contas com um mundo académico que jamais o
tinha
aceite de boa vontade!
Eram então levadas a efeito demonstrações da Luneta que
abrilhantavam serões de convívio e debate sobre assuntos
filosóficos e
astronómicos. Era frequente que nenhum dos convidados
conseguisse ver
coisa alguma através de tão estranho "tubo", quer devido à
falta de
treino de observação, quer pelo facto da sua construção ser
ainda
relativamente rudimentar. Claro que havia sempre duas atitudes
possíveis: a primeira, a daqueles que se consideravam
"modernos" e de
espírito aberto às novidades da Ciência, sempre haveriam de
murmurar
um comentário laudatório, mesmo que só tivessem visto umas
vagas luzes
nos céus; a segunda, situada no campo oposto, vociferava aos
sete
ventos o infame logro, atribuindoo a motivos de ilusão de
óptica e
aberrações oriundas de tão ordinário instrumento!
Foi o que aconteceu num convíviodemonstração que teve
lugar em
Bolonha, por fins de Abril de 1610, poucas semanas após a
publicação
do livro, onde ocorre o famoso episódio atribuido a Cremonini
e Libri,
professores de Filosofia em Pádua, que se recusaram a olhar
pela
Luneta, pois tal facto seria por si mesmo uma forma de admitir
que
"alguma coisa de novo" pudesse ser visto através dela...
Ora, dado que uma das facetas do temperamento de Galileu
o leva a
entender que a vingança é um prato que se serve frio, não é de
admirar
que, aproveitandose do facto da morte do Professor Libri,
tenha feito
constar a seguinte opinião: " (...) Libri não optou pela
observação
das minhas ninharias celestiais enquanto estava na Terra;
talvez neste
instante o faça, agora que foi para os Céus. (...) ".
A controvérsia arrastase durante meses e o único apoio
recebido
vemlhe de Kepler, com quem mantinha uma vaga correspondência
que
remontava a 1597 e que, na altura, era um matemático e
astrónomo de
grande prestígio. Publicou uma "carta aberta" em defesa de
Galileu,
intitulada "Conversa com o Mensageiro das Estrelas", na qual
faz boa
fé nas afirmações por todos contestadas e onde traça
espantosos planos
para o futuro, bem típicos da sua alma agitada e genialmente
paradoxal. " (...) Não haverá falta de pioneiros humanos
quando
dominarmos a arte de voar. Quem teria pensado que a navegação
através
do vasto oceano era menos perigosa e mais calma do que nos
apertados e
ameaçadores golfos do Adriático, ou do Báltico, ou dos
estreitos
Britânicos ? Vamos criar navios e velas ajustados ao éter
celestial, e
haverá muitas pessoas sem medo das vastidões vazias.
Entretanto,
preparemos para os bravos viajantes dos céus, mapas dos corpos
celestiais. Eu fáloei para a Lua e tu, Galileu, para
Júpiter. (...)
".
Aproveita também Kepler para, pouco depois, em Agosto de
1610,
pedir a Galileu que lhe ceda uma luneta análoga à que este
usou, de
forma a que possa testemunhar de viva alma essas
extraordinárias
novidades, pelo que ficamos a saber que o seu depoimento na
"carta
aberta" não se apoia na observação, mas na convicção dos
afectos,
atitude bem pouco científica, no presente contexto. " (...)
Despertaste em mim um grande desejo de ver o vosso instrumento
de
forma a que, finalmente, eu possa usufruir como tu do
espectáculo dos
céus. Pois entre os instrumentos aqui à nossa disposição, o
melhor
amplia só dez vezes (...) Não quero esconder que cartas de
vários
Italianos chegaram a Praga negando que esses planetas possam
ser
vistos através do teu telescópio. (...) ".
Galileu aproveita para divulgar este providencial apoio,
apesar
de nunca enviar a Kepler a luneta que ele tanto desejava, com
a
desculpa de ter oferecido a melhor que possuia ao GrãoDuque
da
Toscânia e de, entretanto, estar a fabricar outras novas!
Finalmente, por alturas de Setembro, Kepler recebe,
emprestado
por alguns dias, um telescópio pertencente ao Duque da Bavária
que se
encontrava de visita a Praga, conseguindo então testemunhar
pessoalmente a veracidade das afirmações de Galileu. Também
astrónomos
Jesuítas, entre os quais o prestigiado Padre Clavius de Roma,
confirmam os factos, assim contribuindo para o crescente
triunfo de
Galileu nos meios intelectuais italianos, reforçado depois
pelas
observações das fases de Vénus e de duas luas em Saturno.
2 OS OVOS DOS BABILÓNIOS
Galileu sente que os tempos lhe são favoráveis e a hora
do
triunfo público se aproxima. A convite dos Médicis, instalase
em
Florença na qualidade de "Filósofo e Matemático Principal", é
recebido
em audiência pelo Papa Paulo V, eleito para a "Academia dos
Linces" e
publicamente homenageado pelo poderoso Colégio Jesuíta de
Roma.
" (...) passou em Roma a Primavera seguinte 1611 . A
visita foi
um triunfo. O Cardeal del Monte escreveu numa carta: «Se ainda
estivessemos a viver sob a antiga República Romana, creio
firmemente
que teria havido um obelisco erigido na capital em homenagem a
Galileu.». A selecta «Academia dos Linces», presidida pelo
Príncipe
Federico Cesi, elegeuo como seu membro e ofereceulhe um
banquete;
foi neste banquete que a palavra «telescópio» foi pela
primeira vez
aplicada à nova invenção. O Papa Paulo V recebeuo em
audiência
amigável, e o Colégio Jesuíta de Roma honrouo com várias
cerimónias
que duraram um dia inteiro. O astrónomo e matemático principal
do
Colégio, o venerável Padre Clavius, principal autor da reforma
gregoriana do calendário, que de início se tinha rido do
"Mensageiro
das Estrelas", estava agora inteiramente convencido; assim
acontecia
com os outros astrónomos do Colégio, os Padres Grienberger,
Van
Maelcote e Lembo. Não só aceitaram as descobertas de Galileu,
mas
melhoraram as suas observações, particularmente sobre Saturno
e as
fases de Vénus. Quando o director do Colégio, Cardeal
Belarmino, os
interrogou sobre as suas opiniões oficiais a propósito das
novas
descobertas, eles unanimemente confirmaramnas.(...)".
Até 1623, altura em que o Cardeal Barberini é eleito
Papa, sob o
nome de Urbano VIII, Galileu mantém uma actividade frenética e
uma
popularidade crescente, entremeada de polémicas, debates com
os
aristotélicos, bem como dos primeiros problemas com a
Inquisição que
terminam com o Decreto de 1616, que resultou duma denúncia
feita pelos
Dominicanos do Convento de S. Marcos.
Nesse decreto o nome de Galileu nunca é mencionado,
certamente
devido à interferência favorável dos seus inúmeros admiradores
situados nos mais altos escalões da hierarquia eclesiástica,
sendo a
principal vítima o pobre Copérnico, cuja imediata prisão foi
sugerida
pelo Bispo de Fiesole, que bem espantado ficou ao ser
informado que o
relapso astrónomo tinha cometido a inconveniência de morrer há
quase
setenta anos! !
O episódio que está subjacente a este incidente, contase
em
poucas palavras. Houve um jantar na Corte dos Médicis onde,
para além
de inúmeras personalidades, estava presente a mãe do
GrãoDuque,
Cristina de Lorraine, que era conhecida pelo seu temperamento
fogoso,
teimosia e gosto pela oratória. Presentes também vários
professores,
entre os quais o Padre Castelli, matemático em Pisa e o Doutor
Boscaglia, mestre de Filosofia. Foram estes os interlocutores
duma
conversa de salão liderada pela GrãDuquesa Cristina, desejosa
de
investigar a fundo o estranho caso dos "Planetas Mediceus", a
fim de
saber se eram algo de real ou uma obscura burla visando fins
inconfessáveis. . .
Acalmada a Duquesa com as considerações dos Professores
Castelli
e Boscaglia, favoráveis à realidade desses astros, mesmo assim
parece
que o Doutor Boscaglia teria deixado cair alguns comentários
venenosos
ao ouvido dessa singular senhora, sugerindo que apesar dos
Satélites
lá deverem andar pelos céus, certo seria que grossa asneira
era
sustentar que a Terra se movia em torno do Sol, contra o que
constava
das Santas Escrituras.
Galileu, que não estava presente no jantar, sabe das
novidades
por uma carta de Castelli. " (...) em primeiro lugar deve
saber que,
enquanto estávamos à mesa, o Doutor Boscaglia teve a atenção
de Madame
por algum tempo; e, concedendo como verdadeiras todas as novas
coisas
que descobriu nos céus, disse que só o movimento da Terra
tinha em si
algo de inacreditável, e não podia ter lugar, em particular
porque a
Santa Escritura era obviamente contrária a esta perspectiva.
(...) ".
Ciente do seu prestígio e com contas por ajustar face à
turbamulta que contra ele conspirava na sombra, resolve
contraatacar
na forma duma cartaaberta, primeiro dirigida a Castelli e,
mais
tarde, numa versão final intitulada "Carta à GrãDuquesa
Cristina". É
esta carta que motiva a denúncia ao Santo Ofício, feita pelos
Dominicanos de Florença. A 7 de Fevereiro de 1615, o Padre
Lorini faz
chegar ao Cardeal Sfondrati a seguinte queixa: " (...) Todos
os nossos
Padres deste devoto convento de S. Marcos são de opinião que a
carta
contém muitas proposições que parecem ser suspeitas ou
presunçosas,
como quando afirma que a linguagem da Santa Escritura não
significa o
que parece significar; que em discussões sobre fenómenos
naturais, o
último e mais baixo lugar deve ser dado à autoridade do texto
sagrado;
que os seus comentadores erraram muito frequentemente na sua
interpretação; que as Santas Escrituras não devem ser
associadas com
nada, excepto com assuntos de religião. (...) que falam em
termos
desdenhosos dos antigos Padres e de S. Tomás de Aquino; que
estavam a
espezinhar toda a filosofia de Aristóteles que tem sido de tão
grande
importância para a Teologia escolástica; (...) quando, digo,
me tornei
consciente de tudo isto, decidi dar conhecimento a Vossa
Senhoria do
estado das coisas, de forma a que o Senhor, no seu Santo zelo
pela Fé
possa, em conjunto com os seus muito ilustres colegas,
providenciar
soluções, conforme pareça aconselhável. Eu, que entendo que
aqueles
que se autoproclamam Galileicos são todos homens tranquilos e
bons
Cristãos, mas um pouco arrogantes e presunçosos nas suas
opiniões,
declaro que não sou movido por nada neste assunto, a não ser
por zelo
da sagrada causa. (...) ".
A "Carta à GrãDuquesa Cristina" manifesta o brilhante
estilo
literário de Galileu, a sua vertente irónica, argumentativa e
polemista, defendendo os postulados do "saber Moderno", ao
mesmo tempo
que entra no terreno perigoso do confronto da Ciência com a
Bíblia,
afirmando que esta não deve ser interpretada literalmente e
que, antes
de se condenar uma proposição da física, devese demonstrar
que não
está rigorosamente fundamentada, tarefa que cabe àqueles que
entendem
serem essas afirmações falsas. Isto é, numa manobra táctica de
grande
sagacidade, transporta o "ónus da prova" não para quem afirma,
mas
para quem nega!
" (...) Há alguns anos, como Vossa Serena Alteza sabe,
descobri
nos céus muitas coisas que não tinham sido vistas antes da
nossa
época. A novidade dessas coisas, assim como algumas
consequências que
delas se seguiram, contrariaram noções físicas usualmente
aceites
entre filósofos académicos e atiçaram contra mim um não
pequeno número
de professores como se eu tivesse colocado nos céus essas
coisas
com as minhas próprias mãos, a fim de aborrecer a natureza e
derrubar
as ciências.
Manifestando um apreço maior pelas suas próprias opiniões
que
pela verdade, pensaram negar e desaprovar as novas coisas que,
se
cuidassem de observar por eles mesmos, os próprios sentidos
lhes
teriam demonstrado. Para tal fim divulgaram várias acusações e
publicaram numerosos escritos cheios de vãos argumentos, e
cometeram o
grave erro de os misturarem com passagens tiradas de locais da
Bíblia
que não conseguiram compreender apropriadamente. (...) Não só
contradições e proposições distantes da verdade podem aparecer
na
Bíblia, mas também graves heresias e loucuras. Porventura
seria
necessário atribuir a Deus pés, mãos e olhos, assim como
outros
afectos corpóreos e humanos, como a ira, o arrependimento, o
ódio, e
até por vezes o esquecimento das coisas passadas e a
ignorância das
futuras. Por essa razão, parece que nada de físico que os
sentidos e a
experiência apresentem diante dos nossos olhos ou que
demonstrações
necessárias nos provem, deve ser posto em questão (muito menos
condenado) a partir do testemunho de passagens bíblicas que
podem ter
diferentes sentidos por trás das palavras. (...) Se conclusões
físicas
verdadeiramente demonstradas não precisam de ser subordinadas
a
passagens bíblicas, (...) então, antes que uma proposição
física seja
condenada, deve ser provado que não está rigorosamente
demonstrada
e isso deve ser feito não por aqueles que sustentam ser
verdadeira a
proposição, mas por aqueles que a julgam falsa. Isto parece
muito
razoável e natural, pois aqueles que entendem que um argumento
é falso
podem muito mais facilmente nele encontrar falácias que os
homens que
o consideram como verdadeiro e conclusivo. (...) ".
Apesar de Galileu ter saído incólume e aparentemente
triunfante
deste primeiro embate com a Inquisição, a verdade é que tinha
entrado
numa área de debate onde os seus adversários o pretendiam
colocar,
empurrandoo para uma escorregadia disputa teológica, a prazo
responsável por um processo que manifestamente desagradou a
significativos sectores da hierarquia da Igreja que muito o
admiravam.
Entre 1616 e 1623, altura em que chega ao papado Urbano
VIII,
Galileu trabalha com um objectivo determinado, no sentido de
provar a
veracidade do sistema coperniciano e a sua superioridade
teórica e
prática face ao modelo de Ptolomeu. Tal prova apoiarseia
numa
"teoria das marés" e seria um argumento objectivo que visava
demonstrar o movimento da Terra, quer em torno do seu eixo,
quer em
torno do Sol, assim garantindo a consistência do
heliocentrismo de
Copérnico.
Apoiavase na ideia segundo a qual, durante a noite, a
combinação
dos movimentos de rotação e translacção levaria a que a "terra
firme"
se movesse mais rapidamente que durante o dia. À noite, as
duas
velocidades (rotação e translacção) "somarseiam", pois
tinham o
mesmo sentido, enquanto que, de dia, "subtrairseiam", dado
terem
sentidos diferentes.
Resultado: à noite, a água do mar ficava "para trás",
explicandose a marébaixa e, de dia, avançava a água face à
terra,
resultando na maréalta. Ideia engenhosa, mas falsa que, para
além do
mais, não explicava o motivo que levava à existência de duas
marés
cheias diárias e destas variarem na hora em que atingem a sua
máxima
plenitude!
Galileu, consciente desta questão, explicava a segunda
marécheia
por causas secundárias, desvalorizandoa no conjunto da
teoria, com a
argúcia que lhe é usual. A incongruência desta linha de
pensamento em
alguém que é o grande teorizador das Leis do movimento é um
facto que
nos deixa perplexos, e só pode entenderse no contexto duma
militância
coperniciana que, por vezes, lhe tolda a lucidez necessária. E
talvez
também por uma desvalorização dos seus adversários a quem, com
algum
excessivo autoconvencimento, trata como se fossem sócios
permanentes
duma confraria de imbecis. . .
Nesta ordem de ideias, é muito certeiro o comentário de
Arthur
Koestler: " (...) a falácia do argumento reside no seguinte. O
movimento só pode ser definido relativamente a algum ponto de
referência. Se o movimento é referido ao eixo da Terra, então,
qualquer parte da sua superfície, terra ou água, movese dia e
noite
com velocidade uniforme, e não haveriam marés. Se o movimento
é
referido às estrelas fixas, então encontraremos as
modificações
periódicas do diagrama, que são as mesmas para a terra e o
mar, e não
podem produzir diferença de «momento» entre a terra e o mar.
Uma
diferença no «momento» , que provoque um «avanço do mar» só
poderia
acontecer se a Terra recebesse um impacto duma força externa
digamos, colidindo com outro corpo. Mas quer a rotação da
Terra, quer
a sua revolução anual são inerciais, isto é, autoperpetuamse
e,
desta forma, produzem idêntico «momento» no mar e na terra; e
uma
combinação dos dois movimentos continua a resultar no mesmo
«momento».
A falácia do raciocínio de Galileu consiste em ele referenciar
o
movimento do mar ao eixo da Terra e o movimento da Terra às
estrelas
fixas. (...) ".
Nos anos subsequentes, Galileu não abandonou esta
demonstração
viciada e continuou a atribuirlhe uma importância estratégica
decisiva, de tal forma que o seu famoso "Diálogo" esteve para
chamarse "Diálogo sobre o Fluxo e Refluxo das Marés" !
Mas antes da publicação desta obra, em preparação desde
há longo
tempo, vem a público, em 1623, "O Experimentador" ("Il
Saggiatore"). É
um ano de percas e ganhos, do ponto de vista da correlação de
forças
favoráveis e desfavoráveis. Do lado negativo, a morte de Cosme
II e do
Cardeal Belarmino, lider espiritual dos Jesuítas; do lado
positivo, a
substituição de Paulo V por Urbano VIII, a quem Galileu dedica
o seu
novo e polémico texto.
"O Experimentador" foi, em última estância, resposta a
uma
conferência publicada pelo Jesuíta Padre Horatio Grassi, sobre
a
natureza dos cometas, onde eram ditas coisas bem acertadas,
mas na
qual nunca era citado o nome de Galileu. Este prepara de
imediato uma
apropriada retaliação, presente no "Discurso sobre os
Cometas",
formalmente da autoria de Mario Guiducci, um antigo aluno, por
trás de
quem, na sombra, se sente a mão de Galileu. O Padre Grassi,
ciente
da origem do ataque, melifluamente responde ao livro de
Guiducci com
"Balanço Filosófico e Astronómico" (1619) onde, ignorando o
autor
formal do "Discurso sobre os Cometas", diz de Galileu o que
Maomé não
disse do toucinho!
Desta feita, "O Experimentador" não perdoa, desfazendo
com
requintes de ironia e malvadez, tudo aquilo que Grassi
sustentava
sobre cometas, projécteis ou alternativas às teses de
Copérnico,
designadamente o modelo cosmológico de Tycho Brahe. É, aliás,
a
propósito da "teoria dos projécteis" que se cita uma magistral
passagem, que referiremos sem mais comentários. O motivo da
disputa
radicava numa afirmação do Padre Grassi que sustentava que os
projécteis eram submetidos, quando voavam, à fricção do ar,
ficando a
sua temperatura mais elevada. Para argumentar a favor desta
tese,
citou um Grego do séc.X, um tal Suidas, que dizia serem os
Babilónios
capazes de cozer ovos, fazendoos rodar no ar muito
rapidamente numa
funda!
Naturalmente, Galileu defendia exactamente o contrário. "
(...)
Se Sarsi deseja que acredite, de acordo com Suidas, que os
Babilónios
cozem os seus ovos fazendoos girar em fundas, assim o farei;
mas devo
declarar que a causa deste efeito é muito diferente daquilo
que
sugere. Para descobrir a verdadeira causa, raciocino da forma
que se
segue: «Se não atingimos um resultado que outros efectivamente
conseguem, então deve acontecer que nas nossas operações nos
falta
alguma coisa que produz tais resultados. E se só houver uma
única
coisa que nos falta, então essa coisa pode ser a verdadeira
causa.
Neste momento não nos faltam ovos, nem fundas, nem gente
robusta para
os fazer rodar no ar; todavia, os nossos ovos não ficam
cozidos, mas
simplesmente arrefecem ainda mais depressa se acontece que
estejam
quentes. E uma vez que nada nos falta a não ser sermos
Babilónios,
então, ser Babilónio, é a causa da cozedura dos ovos e não a
fricção
do ar. » (...) ".
3 FORÇA DAS MARÉS
Naturalmente, com tudo isto, as relações com os Jesuítas
estão a
atingir o seu ponto mais baixo e a instituição que o teve como
antigo
aluno e onde mantinha inúmeros admiradores, dificilmente
esquecerá
este vendaval oriundo duma inteligência agressiva e brilhante.
Mais
uma razão para Galileu receber com dupla alegria uma carta em
que lhe
é sugerido que o novo Papa gostaria de o receber pessoalmente.
" (...)
Jurolhe que nada agrada mais a Sua Santidade que a menção do
seu
nome. Depois de falar a seu respeito durante algum tempo,
disselhe
que você, Estimado senhor, tinha um ardente desejo de o
visitar e de
lhe beijar o pé, se Sua Santidade o permitisse, ao que o Papa
respondeu que isso lhe daria grande prazer, se não fosse
inconveniente
para si. . . pois grandes homens como você devem pouparse, a
fim de
que possam viver o maior tempo possível. (...) " .
Em 1624, Galileu é recebido em sucessivas audiências por
Urbano
VIII, onde é carregado de elogios, presentes, medalhas,
terminando com
uma "carta de recomendação" que o deixa numa situação
favorável
perante as crescentes ameaças decorrentes de antigas e velhas
polémicas. Parece ter sido no decurso desta convivência que
Galileu
obtém o consentimento para levar a bom termo o projecto do
"Diálogo
sobre os dois grandes Sistemas do Mundo", onde se poriam em
confronto
as duas teses cosmológicas e se sustentaria a defesa de
Copérnico.
Lembrese que o seu pensamento e obra estavam em posição
muito
difícil desde a deliberação da Inquisição expressa no "Decreto
de
1616", mas tudo leva a crer que entre o Papa e Galileu se
tenha
estabelecido um "acordo de cavalheiros", sendolhe permitido
sustentar
as teses de Copérnico, desde que estas fossem abordadas como
uma
"hipótese matemática" que interpreta certos factos, mas sem
lhes dar
um perfil de verdade indiscutível, pois a omnipotência de Deus
pode
ter subjacente ao mundo leis e princípios jamais acessíveis à
mente
humana!
Digase que as relações entre estes dois homens têm muito
de
adulação mútua e gerarão equívocos entre personalidades tão
singulares, que atingirão um ponto de conflito dentro de
alguns anos.
São, a este propósito, interessantes as observações de Arthur
Koestler: " (...) Maffeo Barberini Urbano VIII era uma
espécie de
anacronismo: um Papa Renascentista transplantado para a época
da
Guerra dos Trinta Anos; um homem de letras que traduziu
passagens da
Bíblia para hexâmetros; cínico, arrogante, desejoso de poder
secular.
Conspirou com Gustavus Adolphus, o herético protestante,
contra o
Sacro Império Romano; e ao saber da morte de Richelieu,
observou: «Se
existir um Deus, o Cardeal Richelieu terá muito por que
responder; se
não existir, fez muitíssimo bem. ». Fortificou o Castelo de S.
Angeli,
e fundiu canhões a partir dos tectos de bronze do Panteão
que
deram origem ao epigrama: «O que os bárbaros não fizeram,
Barberini
fez. ». Fundou o «Gabinete da Propaganda» (para missionários),
construiu o Palácio Barberini, e foi o primeiro Papa a
consentir que
um monumento a si próprio fosse erigido durante a vida. (...)
A sua
famosa declaração de que «sabia mais que os Cardeais todos
juntos» só
era igualada por Galileu ao dizer que, por si mesmo, tinha
descoberto
tudo o que há de novo no céu. (...) Em 1620, tinha escrito uma
ode em
honra de Galileu, intitulada «Adulatio Perniciosa» (...) Tinha
ido ao
ponto de prestar homenagem à memória de Copérnico numa
audiência
com o Cardeal Hohenzollern em 1634, após terse tornado Papa
e
acrescentou a observação que «a Igreja nem condenou, nem nunca
condenará a sua doutrina como herética, mas somente como
negligente» .
(...) .
Sentindose apoiado ao mais alto nível, Galileu dedicase
afanosamente ao trabalho, que fica concluído em Janeiro de
1630, um
pouco antes de completar 66 anos. São inúmeras as peripécias
subjacentes à autorização de publicação, o indispensável
"Imprimatur",
a que todas as obras estavam sujeitas.
Os trabalhos tipográficos deviam ocorrer em Roma e, na
Primavera
de 1630, é novamente recebido pelo Papa, que lhe confirma não
haver
problemas em abordar Copérnico, desde que a argumentação se
mantenha
num plano estritamente hipotético, coisa de Filósofos e
Astrónomos,
tratada com a devida elevação!
A obra passa para as mãos do Censor Principal, o Padre
Niccolo
Riccardi, a quem o Rei de Espanha chamava "Padre Monstro"
devido à sua
enorme barriga. . . Era um homem que guardava afecto por
Galileu,
ainda que, no fundo do coração, achasse que essas disputas
cosmológicas eram coisa de loucos que não tinham mais que
fazer,
arrumando na mesma prateleira Aristóteles, Ptolomeu e
Copérnico,
confraria nebulosa cuja cegueira metafísica os impedia de ver
que "
(...) a derradeira verdade era que as estrelas são movidas por
anjos.
(...) ".
Leu o livro e achou que lá havia estranhos e bizarros
argumentos.
Apesar de consciente dos beneplácitos papais, tudo aquilo lhe
parecia
uma tortuosa e obstinada defesa de Copérnico. Para se
defender,
resolveu pedir parecer ao seu assistente, Padre Visconti,
insistindo
em que passasse a obra a pente fino e se fizessem alterações,
de forma
a cumprirse o disposto no "Decreto de 1616". Por sua vez, o
Padre
Visconti deve terse apercebido do grande imbróglio em que
estava
metido e, fazendo uma ou outra nota de menor importância,
devolve,
qual objecto pestífero, o livro à procedência!
O Padre Riccardi decide então meter mãos à tarefa e pede
uma
prorrogação do prazo para análise do texto, mas começa a ser
pressionado por Galileu e os amigos, alegando a urgência da
publicação. A partir deste momento e até Fevereiro de 1632 ,
altura em
que estão prontas as primeiras cópias impressas do "Diálogo",
os
factos são uma magistral operação de prestidigitação.
Diz Arthur Koestler: " (...) O resultado desta pressão
foi que
Riccardi consentiu num estranho acordo: para poupar tempo,
concedeu
provisoriamente o " Imprimatur " ao livro, na condição de que
ele
próprio faria a revisão, passando depois cada página revista
ao
tipógrafo. Devia ser assistido nesta tarefa pelo
universalmente
respeitado Príncipe Cesi, Presidente da Academia dos Linces.
Mal este acordo foi concluído, Galileu regressou a
Florença para
escapar ao calor de Roma, na convicção de que regressaria no
Outono.
Pouco depois da sua partida, o Príncipe Cesi morreu. Algumas
semanas
mais tarde, irrompeu a peste, e uma estreita quarentena tornou
difíceis as comunicações entre Roma e Florença. Isto
providenciou uma
óptima oportunidade para Galileu baralhar as condições sob as
quais
tinha sido concedido o "Imprimatur": pediu que o livro fosse
impresso
em Florença, fora do controlo de Riccardi. (...) A princípio
Riccardi
recusou permitir a impressão do livro em Florença sem o rever;
pediu
que Galileu lhe enviasse, para tal fim, o manuscrito até Roma.
Galileu
respondeu que os regulamentos da quarentena tornavam
impossível o
envio em segurança do manuscrito, e insistiu para que a
revisão final
fosse feita por um censor Florentino. Referiu o apoio do
GrãoDuque (a
quem Riccardi, como Florentino, devia obediência) . O
Embaixador da
Toscânia, Niccolini e o Secretário do Papa, Ciampoli, também
insistiram na pressão. O Padre " Monstro " era um convidado
permanente
em casa de Niccolini; finalmente, foi a sua bela prima
Catarina que o
fez ceder, à mesa de jantar e após uma garrafa de Chianti.
Concordou
que o trabalho fosse impresso e revisto em Florença, excepto
no
prefácio e parágrafos conclusivos, que lhe deviam ser
submetidos.
A revisão era para ser feita pelo Inquisidor Florentino,
Padre
Clemente Egidii. Mas isto não era do agrado de Galileu, que
propõe o
Padre Stefani em vez de Egidii. Riccardi concordou uma vez
mais.
Evidentemente, o Padre Stefani estava inteiramente sob a
influência de
Galileu, uma vez que «foi às lágrimas» durante muitas
passagens do
livro, devido à sua «humildade e reverente obediência».
Stefani fez
poucas correcções, para salvar as aparências, e a impressão
começou em
1631. (...) ".
Esta esclarecedora passagem revela que, no fundo, o livro
escapou
às malhas da Inquisição, apesar de, formalmente, se terem
cumprido os
requesitos legais!
Como se sabe, o texto desenvolvese em forma dum diálogo
que dura
quatro dias, entre três personagens, Salviati, Sagredo e
Simplicius,
tendo como tema central, como o próprio título explicita, um
debate em
torno dos dois grandes Sistemas do Mundo, o Ptolomeico e o
Coperniciano. Salviati é o "duplo" de Galileu e Sagredo
aparece como o
bom interlocutor, aquele que levanta dúvidas sensatas, mas que
responde positivamente aos argumentos de Salviati. Quanto a
Simplicius, estálhe reservado o papel de defensor das
concepções
clássicas e é sucessivamente ultrapassado pela brilhante mente
de
Salviati que, uma a uma, desmonta as suas teses, para maior
honra e
glória de Copérnico. O primeiro e segundo dias são dedicados à
refutação de Aristóteles, na generalidade e na especialidade,
respectivamente. O terceiro e quarto dias vivem do debate de
Copérnico
e, fundamentalmente, duma prova empírica da sua validade, a
famosa
"Teoria das Marés", guardada como arma final, para fechar o
quarto dia
e derrotar os derradeiros alentos do pobre Simplicius.
Apesar da argumentação brilhante e correcta de Salviati,
particularmente nas concepções da relatividade do movimento, é
verdade
que Kepler continua a ser ignorado e a "teoria das Marés"
mantémse
inconsistente como prova do movimento da Terra em torno do
Sol.
Aqui reside o ponto central da questão que vai
desencadear um
vendaval! Não só Galileu, subrepticiamente, deixa de tratar o
sistema
de Copérnico como uma hipótese, pois dálhe uma "prova"
(Teoria das
Marés), torneando o acordo com Urbano VIII, como este se julga
ver
retratado, em parte, nas posições de Simplicius, cuja figura é
uma
espécie de antepassado do "Bei de Túnis", de que nos falava
Eça de
Queiroz. . .
4 " VAE VICTIS "
Em Agosto o livro é confiscado e Galileu convocado para
se
apresentar à Inquisição de Roma, sendo nomeada uma Comissão
para
elaborar um relatório sobre o assunto, que faz uma listagem
das
prevaricações, mas não propõe nenhuma medida concreta. O
primeiro
interrogatório formal tem lugar a 12 de Abril de 1633 e, sem
lhe ser
revelada a acusação, melifluamente perguntamlhe se sabe por
que
motivo ali se encontra. Galileu admite que tudo se deve
relacionar com
os seus "Diálogos" e, perante o decorrer da conversa, vai
declarando
que não era sua intenção defender Copérnico em termos
absolutos.
Perante esta evasiva, são nomeados três peritos, que fazem um
2º
relatório de tonalidade muito perigosa para Galileu,
insistindo
detalhada e fundamentadamente nas linhas de acusação já
referidas.
Galileu, com quase setenta anos, sentese vulnerável e
abandonado! Já não são possíveis evasões retóricas ou
habilidades
palacianas. Os seus adversários estão ao mais alto nível do
Poder e,
desta feita, não lhe deixarão margem para recuar. Pretendem a
confissão pública e completa. O seu objectivo não é matar, ou
o pão e
água duma enxovia sórdida, mas a humilhação pura e simples.
Entre a primeira e segunda audiência, que tem lugar a 30
de
Abril, há uma iniciativa privada dum Comissário da Inquisição,
Frei
Vicenzo da Firenzuola, que vai junto de Galileu,
aconselhandoo a
mudar de estratégia, para seu próprio bem. . .
" (...) Finalmente, sugeri uma diligência, nomeadamente
que a
Santa Congregação me concedesse autorização para lidar com
Galileu
extrajudicialmente, de forma a tornálo sensível do seu erro
e a
leválo, se ele o reconhecer, a uma confissão do mesmo. (...)
Para que
nenhum tempo fosse perdido, ontem à tarde entrei em contacto
com
Galileu, e após muitos e muitos argumentos e objecções terem
sido
trocados entre nós, pela graça de Deus, atingi o meu
objectivo, pois
trouxeo à plena consciência do seu erro, de tal forma que ele
claramente reconheceu que tinha errado e tinha ido longe de
mais no
seu livro. E de tudo isto deu testemunho com palavras muito
sentidas,
como alguém que experimenta uma grande consolação com o
reconhecimento
do seu erro, e estando também com vontade de o confessar
judicialmente. Solicitou, contudo, um pouco de tempo de forma
a
ponderar o processo segundo o qual poderia mais adequadamente
fazer a
confissão que, no que diz respeito à sua substância, deve,
espero eu,
seguirse da maneira indicada. (...) ".
Na segunda audiência, Galileu lê a declaração entretanto
redigida, temperando as palavras com a argúcia que lhe resta
nestas
difíceis circunstâncias, indo ao encontro das pressões dos
Inquisidores. Aí admite que o seu livro pode ter ambiguidades
que
parecem contradizer as interdições à publicitação e defesa de
Copérnico, mas não era a sua intenção, mas sim o contrário.
Todo o
clima é de alguém que está francamente assustado com o decurso
dos
acontecimentos e tem a sua margem de manobra reduzida ao
mínimo.
" (...) No decurso de alguns dias de contínua e atenta
reflexão
sobre os interrogatórios que me foram feitos no dia doze do
presente
mês, e particularmente se, há dezasseis anos, uma ordem me
tinha sido
dirigida por determinação do Santo Ofício, proibindome de
sustentar,
defender, ou ensinar por qualquer forma a opinião que tinha
acabado de
ser condenada do movimento da Terra e da estabilidade do
Sol
ocorreume reler o meu " Diálogo " já publicado, que há três
anos não
via, de forma a cuidadosamente verificar se, contrariamente à
minha
muito sincera intenção, teria, por inadvertência, saído da
minha pena,
alguma coisa sobre a qual o leitor, ou as autoridades,
pudessem
inferir não só algum vestígio de desobediência da minha parte,
mas
também outros pormenores que pudessem induzir a convicção que
eu tinha
desobedecido às ordens da Santa Igreja. (...) E devido a não o
ter
visto desde há muito tempo, apresentouseme, tal como estava,
como um
novo texto dum outro autor. Confesso livremente que em vários
locais
pareceume desenvolverse de tal forma que um leitor ignorante
da
minha autêntica intenção, poderia ter razão para supôr que os
argumentos aduzidos para o lado falso, e que era minha
intenção
refutar, eram expressos de forma a serem calculados, mais para
recolher convicção pela força lógica do que pela facilidade de
solução. (...) O meu erro foi e confessoo de ambição
desmedida e de pura ignorância e inadvertência. (...)".
No final desse depoimento, Galileu sugere a possibilidade
de
acrescentar mais um ou dois dias aos "Diálogos" a fim de que a
sua
posição fique bem clara e todos se apercebam da bondade
subjacente às
suas explicações. Se este desejo era sincero ou mais um
estratagema,
nunca o saberemos. O Santo Ofício resolveu não dar seguimento
a esta
piedosa solicitação, pois quando a esmola é grande . . .
" (...) E em confirmação da minha afirmação de que não
mantive
nem mantenho como verdadeira a opinião que foi condenada, do
movimento
da Terra e estabilidade do Sol se me forem concedidos,
como
desejo, tempo e meios para fazer uma demonstração mais clara,
estou
pronto a fazêlo; e há uma oportunidade muito favorável para
isso,
dado que na obra já publicada os interlocutores concordam em
encontrarse de novo após algum tempo, para discutirem vários
outros
problemas da Natureza, não relacionados com o assunto debatido
nos
seus encontros.
Como isto me dá oportunidade de acrescentar um ou dois
dias,
prometo retomar os argumentos já expostos em favor da dita
opinião,
que é falsa e foi condenada, e refutálos da maneira mais
eficiente
que me seja concedida pela graça de Deus. Por conseguinte,
peço a este
anto Tribunal que me ajude nesta boa decisão e que me
possibilite
pôla em prática....) ".
Abatido e humilhado com este doloroso processo, Galileu,
com
setenta anos, apresenta a defesa numa audiência intercalar que
tem
lugar a 10 de Maio, apelando à magnanimidade do Tribunal,
solicitando
atenuantes decorrentes da sua particular situação pessoal. "
(...) Por
último, restame pedirvos para levarem em consideração o meu
triste
estado de mal estar físico, ao qual, com 70 anos, fui reduzido
por dez
meses de constante ansiedade mental. (...) para além da perca
de
grande parte dos anos que esperava usufruir, tendo em atenção
a minha
anterior condição de saúde. Estou persuadido e encorajado a
assim
fazer, pela fé na clemência e bondade dos muito Eminentes
Senhores,
meus juízes. (...) ".
Digase que a Inquisição não tinha usado com Galileu,
para seu
bem, dos aberrantes procedimentos que desencadeava para
situações
análogas. Mesmo nesta posição de elevado risco, Galileu é
tratado com
relativa consideração, pois " (...) não foi confinado às
masmorras da
Inquisição, mas permitemlhe permanecer como convidado da
Embaixada da
Toscânia na Villa Médicis, até depois do seu primeiro
interrogatório.
Depois, teve de entregarse formalmente à Inquisição, mas em
vez de
ser colocado numa cela, foilhe destinada uma zona com cinco
quartos
no próprio Santo Ofício, virada para S. Pedro e os jardins do
Vaticano, com o seu criado pessoal (...) Aqui permaneceu de 12
de
Abril até ao segundo interrogatório, em 10 de Maio. Então,
antes que o
seu julgamento terminasse, foi autorizado a regressar à
Embaixada da
Toscânia um procedimento muito invulgar, não só nos anais
da
Inquisição, mas de qualquer outro sistema judiciário.
Contrariamente à
lenda, Galileu nunca passou um dia de vida numa cela de
prisão. (...)
".
Os dados estão lançados. Após um terceiro interrogatório,
poucos
dias depois, em finais de Junho, élhe lida a sentença que "
(...)
estava assinada somente por sete dos dez juízes. Entre os três
que se
abstiveram estava o Cardeal Francesco Barberini, irmão de
Urbano. O
«Diálogo» foi proibido; Galileu devia abjurar a opinião
Coperniciana e
foi sentenciado a «prisão formal enquanto o Santo Ofício
entendesse» ;
e nos três anos seguintes, devia repetir uma vez por semana os
sete
salmos penitenciais. (...) ".
Após fazer uma síntese do historial do processo, a
sentença
conclui, afirmando:
"(...) Invocando (...) o muito Santo nome de Nosso Senhor
Jesus
Cristo e da Sua Gloriosa Mãe, sempre Virgem Maria (...) com o
conselho
e parecer dos Reverendos Mestres da Sagrada Teologia e
Doutores de
ambas as Leis, nossos assessores (...) Dizemos, pronunciamos,
sentenciamos e declaramos que tu, o dito Galileu, em função
dos
assuntos aduzidos em julgamento e por ti confessados, chegaste
ao
julgamento deste Santo Ofício veementemente suspeito de
heresia,
nomeadamente, de ter sustentado e acreditado na doutrina
que é
falsa e contrária às sagradas e divinas Escrituras segundo
a qual
o Sol é o centro do mundo e não se move de Este para Oeste e a
Terra
se move e não é o centro do mundo; e que consequentemente
incorreste
em todas as censuras e penalidades impostas e promulgadas nos
sagrados
cânones e outras constituições, gerais e particulares, contra
tais
delinquências. Das quais entendemos que sejas absolvido, desde
que,
primeiro, com coração sincero e inabalável fé, abjures,
maldigas e
detestes diante de nós as ditas heresias e erros e qualquer
outro erro
e heresia contrária à Igreja Católica Apostólica Romana, na
forma por
nós prescrita.
E, para que este teu grave e pernicioso erro e
transgressão não
fiquem impunes e para que sejas mais cauteloso no futuro e um
exemplo
para que outros se abstenham de delinquências similares,
determinamos que o livro «Diálogo de Galileu Galilei» seja
proibido
por édito público.
Condenamoste à prisão formal deste Santo Ofício durante
o tempo
que entendermos, e para fins de salutar penitência,
determinamos que
durante os três anos que se seguem, repitas uma vez por semana
os sete
salmos penitenciais.
Reservamonos a liberdade de moderar, comutar, ou
retirar, no
todo ou em parte, as ditas punições e penitência. (...) ".
Terminada a leitura da sentença, é apresentado a Galileu
o
documento de abjuração, que deve ser lido por ele próprio em
tribunal,
antes de se encerrar definitivamente o processo: " (...) Eu,
Galileu,
filho do falecido Vicenzo Galilei, Florentino, setenta anos de
idade,
arrolado pessoalmente diante deste tribunal e ajoelhandome
diante de
vós, Muito Eminentes e Reverentes Senhores Cardeais
InquisidoresGerais contra a desordem herética em toda a
comunidade
Cristã, tendo diante dos olhos e tocando com as minhas mãos as
Sagradas Escrituras, juro que sempre acreditei em tudo que é
defendido, pregado e ensinado pela Santa Igreja Católica e
Apostólica.
Mas, (...) após uma ordem me ter sido judicialmente dada por
este
Santo Ofício a fim de que abandonasse simultaneamente a falsa
opinião
de que o Sol é o centro do Mundo e inamovível e que a Terra
não é o
centro do mundo e se move e que não devo sustentar, defender
ou
ensinar por qualquer forma, verbalmente ou por escrito, a dita
falsa
opinião, e após ter sido notificado que a dita doutrina era
contrária
à Santa Escritura escrevi e imprimi um livro no qual
discutia a
nova doutrina já condenada e acrescentei argumentos de grande
força
lógica em seu favor, sem apresentar nenhuma solução para eles,
sendo
pronunciado pelo Santo Ofício por veementemente suspeito de
heresia,
isto é, de ter sustentado e acreditado que o Sol é o centro do
mundo e
inamovível e que a Terra não é o centro e movese:
Por isso, desejando remover dos espíritos de Vossas
Eminências e
de todos os fiéis cristãos esta veemente suspeita justamente
orientada
contra mim, com coração sincero e fé inamovível, eu abjuro,
maldigo e
detesto os ditos erros e heresias e em geral todo e qualquer
outro
erro, heresia e seita contrária à Santa Igreja, e juro que no
futuro
nunca mais direi ou afirmarei, verbalmente ou por escrito,
nada que
possa dar ocasião a uma similar suspeita relativamente a mim;
mas, se
souber de algum hereje ou pessoa suspeita de heresia,
denunciálaei a
este Santo Ofício ou ao Inquisidor ou Ordinário do local em
que me
encontrar. Mais ainda, juro e prometo cumprir e observar na
sua
integridade todas as penas que forem, ou venham a ser,
impostas contra
mim por este Santo Ofício. E, no caso de contravenção ( que
Deus o
proiba! ) de qualquer destas minhas promessas e juramentos,
submetome
a todos os sofrimentos e punições impostas e promulgadas nos
sagrados
cânones e outras constituições, gerais e particulares, contra
tais
delinquentes. Assim o queira Deus e estas Santas Escrituras,
que toco
com as minhas mãos. (...) ".
Concluído o ritual de humilhação, principal objectivo do
Tribunal, fechase um dos mais tristes capítulos da história
da
intolerância humana, com sérias consequências para o
desenvolvimento
do pensamento científico e experimental, quer na península
italiana,
quer em toda a Europa onde impera o espírito de vistas curtas
da
ContraReforma, deslocandose essas forças culturais para as
regiões
de dominância protestante, no norte e noroeste do Continente,
como bem
assinalou George Gusdorf.
Quanto a Galileu, recebe ainda uma certa complacência nas
punições que lhe são impostas, se atendermos que a " (...)
prisão
formal transformouse numa estadia na «villa» do GrãoDuque em
Trinita
del Monte, seguida por uma outra estadia no Palácio do
Arcebispo
Piccolamini em Siena onde, de acordo com um visitante françês,
Galileu
trabalhava «num apartamento coberto de seda e muito ricamente
mobilado» . Depois regressou à sua quinta em Arcetri e mais
tarde à
sua casa em Florença, onde passou o resto dos anos da sua
vida. A
oração dos salmos penitenciais foi delegada, por consentimento
eclesiástico, na sua filha, Irmã Maria Celeste, uma freira
Carmelita.
(...)".
Encerrado definitivamente o "dossier" cosmológico,
aproveita os
últimos anos para redigir um livro que o deixará famoso, os
"Discursos
e Demonstrações Matemáticas sobre as Duas Novas Ciências",
concluído
em 1636, no qual regressa à sua vocação magistral que sempre
foi a
Ciência da Dinâmica. " (...) Como não podia ter esperança
quanto a um
«Imprimatur» em Itália, o manuscrito foi sonegado para Leyden
e
publicado pelos Elzevirs; mas também podia ter sido impresso
em
Viena, onde foi autorizado, provavelmente com consentimento
Imperial,
pelo Jesuíta Padre Paulus. (...) ".
Apesar de ficar cego aos setenta e três anos, prossegue
os
estudos e é visitado por amigos e discípulos, transformando a
sua casa
num forum de diálogo e infinita curiosidade pelos segredos dum
mundo
que, para ele, lentamente se desvanece. É o que diz, numa
carta a
Diodati: " (...) o teu amigo e servidor, Galileu, ficou
durante o
último mês definitivamente cego; de tal forma que estes céus,
esta
terra, este universo que eu, por maravilhosas descobertas e
claras
demonstrações, alarguei cem mil vezes para além das convicções
dos
homens sábios dos tempos passados, daqui para diante
comprimese num
espaço tão minúsculo como aquele que se enche com as minhas
sensações
corpóreas. (...) ".
A larga caminhada termina em 1642, pois as leis do
movimento por
si descobertas têm uma singular aplicação na vida humana. "
(...) Os
seus ossos, contrariamente aos de Kepler, não foram espalhados
pelo
vento; repousam no Panteão dos Florentinos, na Igreja de
Santa Croce,
junto aos restos mortais de Miguel Ângelo e Maquiavel. (...)
".
Um homem vai, outro vem. Numa obscura aldeia inglesa, na
noite
de Natal deste mesmo ano, nasce Newton. Copérnico, Bruno,
Kepler,
Galileu, estão vingados. Nada a fazer. "Eppur si muove".
PORTO, Dezembro de 1993
© Levi António Malho
A ANATOMIA DOS CÉUS
Sobre "O MENSAGEIRO DAS ESTRELAS " de Galileu
Nota: este texto está baseado, no que diz respeito às
citações do
"Mensageiro das Estrelas" de Galileu, na edição francesa
de 1992,
traduzida do Latim por Fernand Hallyn.[GALILEO GALILEI,
«Le
Messager des Étoiles", Seuil, Paris, 1992].Traduzimos para
para
português as passagens da obra de Galileu que estão
presentes
neste artigo, respeitando tanto quanto possível o estilo,
a
pontuação e a construção da frase. Este artigo encontrase
publicado na "Revista da F.L.U.P.", série de Filosofia,
(2ª
série), nº 12, Porto, 1996.
(. . . ) Só de vez em quando os seus pensamentos perdiamse
num
nevoeiro de suave melancolia. Acontecia quando pensava no
culto
secreto ligado aos originais dos textos que tinha à sua
frente, nos
milagres que haviam emanado deles, emocionando milhares de
seres
humanos que, devido à grande distância que os separava dele,
lhe
pareciam seus irmãos, ao passo que as pessoas ao seu redor,
às
quais via com todos os pormenores, pareciamlhe
desprezíveis. (. .
. ) ".
ROBERT MUSIL, "O Jovem Torless"
1 O ANO DO MENSAGEIRO
Eisnos em 1610, o tempo em que Galileu começa a publicar
os
textos que ultrapassam o pequenogrande círculo de amigos e
adversários e que o lançam numa aventura de escrita que
praticamente,
só terminará com a morte. A personalidade está formada, o
essencial
dos objectivos apresentamse com suficiente clareza, os
defeitos e
virtudes prestamse a atingir o esplendor.
Posta em dúvida a formação aristotélica dos verdes anos,
já
contrariada pela aposta em Arquimedes e na admiração do
heliocentrismo
de Copérnico, tratase de dar um passo decisivo que derrubará,
a
prazo, a "Teoria dos 2 Mundos", tão pacientemente elaborada ao
longo
de quase dois milénios. Não será um tratado gigantesco que
disso se
encarregará, mas uma sucessão de admiráveis obras, quer do
ponto de
vista científico, quer literário, que abrirão as portas à
ciência
moderna.
É justo deixar aqui, desde já, uma ressalva no que à
matéria
astronómica e cosmológica diz respeito. Galileu é mais feliz e
acutilante nos assuntos de "física terrestre" do que em
"física
celeste", mantendo por enquanto uma divisão conceptual de
sabor
aristotélico que só desaparecerá completamente com o triunfo
de
Newton, século e meio mais tarde. É verdade que defende
Copérnico e
nisso é antiaristotélico e antiptolomeico. É verdade que
aceita e
descobre novidades nos céus, por essência imutáveis e
perfeitos. Mas é
verdade também, um pouco surpreendentemente, que não é
sensível à
brilhante argumentação de Kepler, cuja obra conhecia, mas sem
a
sagacidade de a valorizar como é devido e que, porventura, o
levou ao
seu maior erro cosmológico, na incapacidade de ultrapassar o
dogma do
movimento circular e uniforme dos astros copernicianos.
De certa maneira, esse último vestígio de "aristotelismo
celestial" foi sustentado por Galileu até ao fim. Neste
particular, as
portas da modernidade foram abertas por Kepler, um pouco
contra
vontade e na nostalgia das harmonias pitagóricas, sempre
presentes por
entre a alucinante perfeição das suas 3 Leis. Digamos,
portanto, que
Galileu ficou a um passo da unificação global da Física, mas
não
chegou nunca a encarar o movimento planetário como um caso
complexo da
"queda dos corpos".
Posto isto, regressemos ao primeiro livro de Galileu. Um
pouco em
oposição à lógica dos grandes tratados para eruditos,
carregados de
metáforas, redundâncias e circunlóquios, a obra atingenos na
pressão
fulgurante da escrita, na brevidade e precisão da
argumentação, na
ânsia de apresentar novidades, um estilo quase jornalístico,
novo,
alegre, dirseia mesmo, profundamente feliz por lhe ser dado
narrar
tantas e tão maravilhosas coisas!
Sentese, sem dúvida, o prazer duma inteligência na sua
plenitude,
o gosto de se saber ser o primeiro, um clima de euforia que
não deixa
de ser contagiante para o leitor contemporâneo. E também uma
certa
"pressa de dizer", de ser breve, de não perder tempo, talvez
devido ao
contentamento natural do mensageiro de boasnovas, mas também
porque
soubesse que outros lá poderiam chegar, se providos de meios
técnicos
análogos.
Esta hipótese deve ser doseada com a anterior, pois
Galileu não
gosta de deixar méritos próprios por mãos alheias e mantém
sempre no
seu perfil comportamental uma dimensão de autosatisfação e
autoelogio que nem sempre lhe consentiriam darnos o melhor
de si
próprio, e serão, em parte responsáveis pelas inúmeras
peripécias que
acompanham a sua biografia pessoal e científica.
"O Mensageiro das Estrelas" é, obra breve, 56 páginas e
pronto!
Para se ler dum fôlego, quase dos domínios dum artigo extenso
de
revista científica contemporânea, delimitando bem os temas,
dizendo o
que tem a dizer, acumulando provas, fazendo desenhos e
esquemas,
anunciando futuros desenvolvimentos. Estamos, no pleno sentido
do
tema, perante um "relatório científico", apoiado na
observação, na
repetição de experiências, revelando a construção e uso dos
meios
técnicos utilizados, um texto que "diz" sem ambiguidades e
reserva
lugar a novidades que se adivinham ao virar da esquina.
Se ainda hoje este clima é patente para o leitor actual,
imaginese o que seria o seu impacto na altura da publicação e
o
alvoroço que provocou nos espíritos ávidos de inovação na
alvorada
deste notável séc.XVII. Resultado: os quinhentos exemplares da
edição
foram imediatamente vendidos, bem ao contrário do fracasso
editorial
em que caiu o texto de Copérnico, editado 67 anos antes.
É, como já se disse, uma "obra de observação" que depende
dum
instrumento novo, ou quase novo, cuja invenção é, por vezes,
atribuida
a Galileu. "O Mensageiro das Estrelas" e a luneta astronómica
formam
um corpo único, disso não restam dúvidas. Em 1610, em matéria
astronómica, estas coisas são factos novos. Tanto mais se nos
lembrarmos que a famosa "revolução heliocêntrica" de Copérnico
é
produzida praticamente sem observações originais e inovadoras,
vivendo
cientificamente do património acumulado pela tradição
aristotélica,
ampliada e reformulada pelos astrónomos alexandrinos e pela
curiosidade árabe. É conhecida a reserva de Copérnico em
passar noites
a tiritar com as brumas e geadas bálticas, espreitando astros
que toda
a gente sabe onde estão, no desconforto gélido dum torreão
desabrigado
de Frauenburg!
A obra de Copérnico é uma reequacionação mais elegante
dos dados
préexistentes, de natureza geométricomatemática, sob a
inspiração de
Aristarco e bem menos simples que as imagens poéticas que dela
nos são
dadas.
Investigação que comporta observações novas é a de Kepler,
mas
esse património devese mais a Tycho Brahe que ao autor de
"Astronomia Nova", que estava financeiramente impedido de
construir os
espantosos instrumentos de observação precisa que a coroa
dinamarquesa
resolveu ceder ao seu singular astrónomo.
Mas mesmo estes instrumentos de Tycho Brahe, a que Kepler
teve
acesso, eram um prolongamento da precisão da vista humana,
visando a
medição de desvios nos movimentos dos astros, de ângulos e
graus
pacientemente anotados, noite após noite, no horizonte dos
céus. Mas
nem Copérnico, nem Tycho Brahe, nem Kepler, podiam "ver mais
ou mais
longe" que um sacerdote babilónio, um astrólogo egípcio,
ateniense,
alexandrino, árabe ou azteca.
É exactamente aqui que Galileu leva vantagem. A luneta
efectivamente amplificava as limitações naturais dos sentidos
humanos,
permitindo vislumbrar o "nunca visto", abrindo a
possibilidade, por
aumento de potência e resolução óptica, de tornar presente o
invisível
até escalas que, devido ao progresso tecnológico, é arriscado
antecipar.
A invenção da luneta não se deve a Galileu! Quando muito,
a sua
extraordinária habilidade técnica e os seus conhecimentos de
óptica e
geometria, permitemlhe desenvolver uma ideiabase de origem
italiana
(1590) ou holandesa (1604), de tal forma que o instrumento que
tem ao
seu dispôr permite capacidades de resolução manifestamente
superiores
que, todavia, não tardarão a ser divulgados pelos círculos
científicos
da época. Talvez esteja aqui a razão da urgência da
publicação, sob
pena de outros, possuindo tecnologia análoga ou superior,
virem a
obter o mesmo tipo de resultados!
Digase que a tecnologia dos "vidros de aumentar" tem um
longo
passado que remonta aos finais do séc. XIII, com utilizações
ligadas à
correcção de defeitos visuais, quer utilizando lentes convexas
como,
mais tarde, lentes côncavas, para compensações da miopia. A
combinação
dos dois tipos de lentes, por sobreposição, e com um correcto
distanciamento, é algo de vagamente conhecido, mas pouco
explorado,
antevendose maravilhosas potencialidades, mas que ficavam
mais no
domínio do sonho e da magia natural do que na sistemática
procura
teorética e prática que visasse a observação dos astros.
É verdade também que este instrumento foi, de início,
submetido a
uma pressão de mistério e segredo, nomeadamente por razões de
tipo
estratégico e militar, para além das conjuras de silêncio
explicáveis
por motivos comerciais da responsabilidade dos produtores
holandeses,
que pretendiam um monopólio de fabricação.
Contudo, não tardou muito que tal segredo fosse
desvendado, quer
por ofertas régias entre casas reais europeias, quer por
permuta entre
militares. Segundo os historiadores, em 1609, um ano antes da
publicação de "O Mensageiro das Estrelas", na altura em que
Galileu
ensinava em Pádua, a luneta está à venda em Paris, nas
oficinas
especializadas. Nesse mesmo ano, Galileu tem conhecimento do
facto e
decide lançarse à empresa de construção de modelos mais
aperfeiçoados, na sequência duma paixão mecânica que já o
tinha levado
à invenção dum antepassado do termómetro, o "termoscópio", e
do
"pulsilogium", instrumento clínico que servia para medir os
batimentos
cardíacos no pulso do paciente.
As tentativas sucedemse, desde uma primeira versão que
aumentava
"três vezes", até ao modelo acabado no Verão de 1609, que já
atinge um
poder de aumento de "nove vezes".
Com a habilidade estratégica e diplomática que o
caracterizam,
Galileu resolve fazer uma demonstração ao Senado de Veneza, a
partir
do campanário de S. Marcos, que originou grande espanto e
sucesso,
quer para fins terrestres, como para marítimos. Segundo as
palavras de
Fernand Hallyn, "(...) viase distintamente a cúpula e fachada
da
Igreja de S. Justino de Pádua, a trinta e cinco quilómetros, e
os
navios que se aproximavam do porto eram visíveis duas horas
mais cedo
que à vista desarmada. (...)".
Sabendo do interesse do GrãoDuque Cosme II de Médicis
pelo tema e
aproveitando a tecnologia sofisticada dos vidreiros de
Florença,
Galileu constrói uma versão ainda mais poderosa, com um poder
de
ampliação de "vinte vezes", com a qual, no Inverno de 1609, se
dedica
a uma exploração sistemática dos céus que o levará, em breve à
publicação de "O Mensageiro das Estrelas".
Uma carta de 7 de Janeiro de 1610, provavelmente enviada a
António
de Médicis, irmão do GrãoDuque, dá conta dos primeiros
resultados da
observação da Lua.
"(...) vêse que a Lua não tem uma superfície igual, lisa
e
polida, como muitas pessoas a julgam ser, assim como os outros
corpos
celestes, mas pelo contrário que ela é rugosa e desigual e
que, em
suma, se mostra tal que, com um raciocínio são, não se pode
concluir
doutra forma senão dizendo que está cheia de eminências e
cavidades,
parecidas, ainda que muito maiores, com os montes e vales que
estão
disseminados sobre a superfície da Terra. (...)".
O espanto das descobertas precipitase durante os
primeiros meses
de 1610, de tal forma que a autorização de publicação é dada a
1 de
Março, uns dias antes da última observação de Júpiter, que
data do dia
seguinte, 2 de Março. Por aqui se confirma a urgência de dar a
conhecer as novidades, nesta simultaneidade entre as
observações e os
usuais procedimentos burocráticos e inquisitoriais do
"Conselho dos
Dez", sob os auspícios do Senado de Veneza. Esta precipitação,
bem ao
estilo de Galileu, háde repetirse mais tarde, na altura da
edição do
"Diálogo sobre os dois Grandes Sistemas do Mundo" mas, desta
feita,
envolvida em peripécias que o levarão ao triste processo que o
espera!
2 GRANDES E ADMIRÁVEIS ESPECTÁCULOS
A obra tem título longo, descritivo, revelando o
entusiasmo e
autosatisfação de Galileu. Tem também fins estratégicos que
visam
directamente a família dos Médicis, junto da qual o prestígio
de
Galileu é crescente e que lhe permitirão uma autonomia de
"investigação livre" que o afaste dos compromissos mais duros
com a
república veneziana. Senão, vejamos:
O MENSAGEIRO
DAS ESTRELAS
QUE REVELA GRANDES E ADMIRÁVEIS ESPECTÁCULOS
E para os quais propõe se elevem os olhos
a cada um, mas sobretudo, em verdade,
aos FILÓSOFOS e aos ASTRÓNOMOS; por
GALILEU GALILEI
PATRÍCIO FLORENTINO
Matemático titular da Universidade de Pádua
EFECTUADOS GRAÇAS A UMA LUNETA
Por ele recentemente concebida,
estas observações dizem respeito à FACE DA LUA, a INUMERÁVEIS
ESTRELAS
FIXAS,
à VIA LÁCTEA, às ESTRELAS NEBULOSAS,
mas antes de mais sobre
QUATRO PLANETAS
voando à volta da Estrela de JUPITER a intervalos e
períodos
irregulares,
duma celeridade maravilhosa; estes planetas, até hoje de
nenhum homem
conhecidos,
ultimamente o autor descobriuos em primeiro lugar; por outro
lado,
ASTROS MEDICEUS
FOI O NOME QUE DECIDIU DARLHES.
Como frontispício de livro, não está mal! E como operação
de
"marketing", melhor ainda. . . Tão extensa designação foi
vulgarizada
sob duas referências essenciais: "Medicea Sidera" ("Astros
Mediceus")
e "Sidereus Nuncius" ("O Mensageiro das Estrelas"). As duas
versões de
título salientam dimensões dos aspectos mais importantes da
obra. A
primeira, recobre uma operação de "charme" junto do GrãoDuque
da
Toscana, Cosme II de Médicis, a quem a obra é dedicada num
prefácio de
tom laudatório e grandiloquente; a segunda, dá a Galileu um
papel
mediador de "mensageiro de novidades" sobre o mundo dos
astros,
acentuando a descoberta mais espantosa que o livro contém, ao
relatar
à comunidade científica, pela primeira vez, a existência dos
quatro
satélites de Júpiter.
Argumentando em linguagem encomiástica, Galileu refere no
"Prefácio" que os nomes das Estrelas e Planetas se reportam a
heróis e
deuses, que assim encontram no reino da Natureza "objectos"
dignos da
sua eternidade. Infelizmente, o número de astros temse
mantido
constante, nada havendo de equiparável para elogiar a bondade
e
magnificência dos Médicis. . .
"(. . . ) Emigrando para o céu, nos orbes assim marcados
para a
eternidade das mais brilhantes Estrelas, impôs como sinete o
nome
daqueles que, pelas seus feitos extraordinários e quase
divinos,
pareceram dignos de usufruir, em conjunto com os Astros, duma
vida
eterna. Eis a razão pela qual a glória de Júpiter, de Marte,
de
Mercúrio, de Hércules e dos outros heróis que dão os seus
nomes às
Estrelas, não será jamais obscurecida até que se extinga o
próprio
esplendor dos Astros. (. . . ) Nesta assembleia, em vão a
piedade de
Augusto tentou fazer admitir Júlio César; com efeito, uma
Estrela
nasceu na sua época, daquelas que os gregos designam
«cabeleiras» ; o
príncipe teria querido baptizála «Astro Juliano», mas ela
desvaneceuse bem depressa, frustrando a esperança duma tal
ambição.
Pois bem, pelo contrário, são de longe mais verdadeiras e mais
felizes, Príncipe Sereníssimo, os sucessos que podemos augurar
para a
tua Alteza, pois mal as imortais belezas do teu espírito
começam a
fulgurar sobre a Terra, eis que nos Céus se oferecem à vista
astros
brilhantes que, tais como vozes, poderão dizer e celebrar
para sempre
as tuas virtudes altamente eminentes. Eis pois quatro Astros
reservados para o teu glorioso nome; não sairam do rebanho nem
do
número menos insigne daqueles que não «erram», mas da ordem
ilustre
dos vagueantes ; estes Astros, vê tu, descrevem entre eles
movimentos
desiguais à volta da Estrela Júpiter, a mais nobre de todas,
como se
fossem a sua autêntica progenitura, realizando as suas
trajectórias e
seus círculos a uma velocidade maravilhosa, (. . . )".
Feito este exórdio, Galileu lembra as lições de Matemática
dadas
em Florença, durante o Verão, ao actual GrãoDuque Cosme II
e,
reivindicando o(. . .)direito de baptismo" que cabe àquele que
descobre novos objectos celestes, decide utilizálo para o
engrandecimento da família real Toscana. "(. . . ) Quis Deus,
Muito
Bom e Muito Grande, que eu não fosse julgado indigno pelos
teus
Sereníssimos Pais de consagrar o meu zelo a ensinar à tua
Alteza a
ciência Matemática, o que certamente fiz nos últimos quatro
anos que
acabam de passar, na estação do ano onde é costume repousar
dos
estudos mais severos. (. . . ) Pois se assim é, pois se é sob
o teu
Auspício, Cosme Sereníssimo, que explorei essas Estrelas
desconhecidas
de todos os Astrónomos precedentes, é de pleno direito que
decidi
imprimirlhes a marca do muito Augusto nome da tua Raça.
Porque, se
fui o primeiro a descobrilas, quem terá o direito de me
criticar se
lhes imponho um nome e as chamo ESTRELAS MEDICEIAS, na
esperança que
tanta glória recaia sobre estes Astros, como aquela que as
outras
trouxeram aos outros Heróis. (. . . ) Recebe pois, Príncipe
Muito
Clemente, esta glória gentílica que te reservaram os Astros, e
as
divinas mercês, que te chegam menos das Estrelas que do
artesão e
Moderador das Estrelas, Deus, e delas possas usufruir o maior
tempo
possível. (. . . )".
O prefácio termina com a delicadeza e formalidade usuais,
utilizando um processo de datação arcaico, ainda vigente
nestes
rituais de cerimónia. "(. . . ) Pádua, 4º dia antes dos Idos
de Março,
1610/De tua Alteza/o muito dedicado Servidor/Galileu Galilei.
(. . .
)".
Uma observação final, que creio ser notada pelo leitor
atento
destas passagens. Diz respeito ao tratamento por "tu",
dirigido ao
GrãoDuque Cosme II, bem contrário aos nossos hábitos
linguísticos na
abordagem da realeza, onde o normal seria a utilização da "2ª
pessoa
do plural". Segundo Fernand Hallyn, tal formulação é típica do
estilo
humanista partilhado por Galileu, por contraponto ao
relacionamento
distante e cerimonioso do período medieval. Claro que é um
pormenor
secundário, uma vez que, tirando essa aparência de
familariedade e
igualdade que tal escrita sugere, a verdade é que o prefácio
contém
explícita e implicitamente uma relação de desigualdade e
submissão,
que não escapa à consciência moderna!
3 A URGÊNCIA DE FALAR
Os primeiros seis parágrafos da obra fazem uma espécie de
resumo
das principais descobertas que serão posteriormente
desenvolvidas ao
longo do livro, sempre chamando a atenção para a importância
do
instrumento de observação que possibilitou tal feito. Os temas
são
quatro: observação da Lua, Estrelas Fixas, Galáxia e Nebulosas
e os 4
satélites de Júpiter.
Tudo isto é precedido do único título extenso do livro, para
além
daquele que consta da capa, que diz:
A MENSAGEM
ASTRONÓMICA
que contém e esclarece
OBSERVAÇÕES RECENTEMENTE EFECTUADAS
graças a uma Nova Luneta e dizendo respeito à face da
Lua,
à Via Láctea e às Nebulosas,
inumeráveis Estrelas fixas, assim como sobre
quatro Planetas baptizados
ESTRELAS MEDICEIAS
jamais apercebidos até hoje.
A partir de agora, neste início do livro, a linguagem
utilizada
abandona o tom barroco do prefácio e encaminhase para um
clima
manifestamente mais objectivo e consentâneo com um relatório
científico. Mesmo assim, é manifesta a autosatisfação,
perfeitamente
compreensível quanto às novidades que descreve, na certeza de
estar a
abrir um novo mundo, no exacto local onde tudo levava a crer
que
estaríamos perante um heterónimo do imutável e eterno!
A alegria reflectese no uso de vocábulos afectivamente
significativos, como "grande", "magnífico", "agradável",
"belo",
"encantador", "maravilha", entre outros. "(. . . )Sim,
verdadeiramente grande é a tarefa de aumentar a numerosa
multidão de
Estrelas fixas, que por faculdade natural puderam ser
apercebidas até
hoje, e de expôr abertamente aos olhos astros inumeráveis,
jamais
antes apercebidos e que ultrapassam mais de dez vezes em
número
aqueles que são de há muito conhecidos. (. . . )".
Anotese a preocupação quantitativa sempre presente em
Galileu,
ao tentar dar a escala de grandeza dos acontecimentos,
contrapondo à
expressão "inumerável", um número tanto quanto possível
exacto, por
comparação com as anteriores observações e conhecimentos.
"(. . . ) É
magnífico, e muito agradável à vista, poder observar o corpo
lunar,
que está afastado de nós quase sessenta diâmetros terrestres,
como se
não fosse distante senão de duas dessas medidas; a tal ponto
que o
diâmetro desta mesma Lua aparece quase trinta vezes maior, a
superfície novecentas vezes maior, o volume vinte e sete mil
vezes
maior que quando se olha simplesmente a olho nú. Retirando daí
a
certeza da experiência sensível, qualquer um poderá
compreender que a
Lua não está de todo revestida por uma superfície lisa e
perfeitamente
polida, mas antes duma superfície acidentada e desigual, e que
ela é,
como a própria face da Terra, coberta por toda a parte com
enormes
protuberâncias, crateras profundas, e rugosidades. (. . . )".
Eis, em poucas linhas, pela via da observação,
completamente posta
em cheque a concepção aristotélica da diferenciação essencial
entre a
imperfeição terrestre e a imutabilidade geométrica das
perfeições
planetárias. Lua e Terra são seres convulsivos e
irregulares. . .
Seguese de imediato a referência ao tema das Galáxias e
Nebulosas, bem como ao facto central dos satélites de Júpiter,
sempre
dirigindo o discurso aos Astrónomos e Filósofos. "(. . . ) Por
outro
lado, ter eliminado as controvérsias que diziam respeito à
Galáxia ou
Via Láctea, ter revelado a sua natureza aos sentidos como à
inteligência, eis o que parece não dever ser considerado como
um acto
de pouco peso; e mais ainda, será agradável e muito belo
apontar com o
dedo a substância das Estrelas que até agora todos os
Astrónomos
chamaram Nebulosas, e mostrar que ela é muito diferente
daquilo que se
acreditava até ao presente.
Mas em verdade, o que de longe ultrapassa todo o tema de
encantamento, e que, em primeiro lugar, nos compeliu a
informar todos
os Astrónomos e Filósofos, é o facto, evidentemente, de ter
descoberto
quatro Estrelas errantes, que não foram conhecidas nem
observadas por
nenhum dos nossos predecessores; é à volta duma Estrela
notável dentre
aquelas que são conhecidas, que da mesma forma que Vénus e
Mercúrio em
torno do Sol, elas cumprem as suas revoluções e tanto a
precedem, como
a seguem, sem jamais se afastarem dela para lá de certos
limites.
Todos estes fenómenos, uma Luneta que concebi sob a iluminação
da
graça divina, permitiume, há poucos dias, descobrilos e
observálos.
(. . . )".
É conveniente notar que nesta passagem Galileu utiliza o
vocábulo
"Estrelas" em duas acepções completamente distintas, cuja
tradição
remonta à cosmologia grega. A primeira designação, "Estrela
errante",
deve entenderse como sinónimo de "Planeta" e, desta forma,
pode falar
nas revoluções de "quatro Estrelas errantes"; a segunda
designação,
"Estrela Fixa" ou, simplesmente, "Fixa", deve associarse ao
sentido
contemporâneo de "Estrela", entendida como astro relativamente
imóvel!
4 UM ESTRANHO TUBO DE CHUMBO
Galileu, de acordo com uma boa metodologia, pretende
informar o
leitor sobre os instrumentos e técnicas de observação que o
levaram à
obtenção dos resultados. Esta atitude manifestamente de acordo
com o
espírito científico moderno, visa não a utilização de
argumentos de
autoridade, mas a partilha de informações e meios tecnológicos
com a
comunidade dos investigadores que podem e devem reconstituir a
observação, de forma a confirmarem os resultados. De certa
maneira,
abrese aqui a ideia de "consenso da comunidade científica",
como
critério de aceitabilidade e veracidade das teorias e factos
sobre o
mundo natural.
Confirma, como já referimos, ter tido notícia da "luneta"
há menos
de um ano, por referências oriundas dos Países Baixos e de
Paris, o
que o levou a dedicarse à investigação necessária para a
construção
dum aparelho similar, através dum estudo apoiado na Teoria da
Refracção da luz. "(. . . ) Há volta de dez meses, chegou aos
nossos
ouvidos que um habitante das Províncias dos Países Baixos
tinha
fabricado uma Luneta graças à qual os objectos visíveis, mesmo
situados longe da vista do observador, podiam ser nitidamente
discernidos, como se estivessem próximos; deste facto
certamente
maravilhoso relatavamse alguns testemunhos, aos quais uns
davam fé,
mas que outros negavam. Esta notícia foime confirmada poucos
dias
depois, por uma carta enviada de Paris pelo fidalgo françês
Jacques
Badovere; isto teve como consequência que eu me dedicasse
inteiramente
à pesquisa dos princípios assim como à concepção dos meios
pelos quais
poderia chegar à invenção dum Instrumento semelhante; esta
invenção,
pouco depois, realizeia, apoiandome sobre a teoria da
refracção. (.
. . )".
Seguidamente, descreve esquematicamente a construção da
Luneta ,
as diferentes versões que foram produzidas, o tipo de lentes
utilizadas e o seu poder de aumento, bem como as correcções
necessárias para medir com rigor os tamanhos e intervalos
entre as
Estrelas fixas. Ficamos a saber que era constituida por um
tubo de
chumbo, na extremidade do qual foram adaptadas duas lentes de
vidro,
planas dum lado e, respectivamente, convexas e côncavas do
outro. A
vista era encostada à lente côncava, daí resultando uma
ampliação de
"três vezes", quanto à distância dos objectos, e "nove vezes",
quanto
ao seu volume, por comparação com observações análogas feitas
à vista
desarmada.
Verdade seja dita que tal descrição é muitíssimo sumária,
pois não
nos são dados quaisquer pormenores sobre polimento, construção
e
afinação das lentes, bem como das respectivas distâncias
focais e
técnicas de utilização! Galileu levanta exclusivamente uma
ponta do
véu, sem dar aos Astrónomos e Filósofos a quem tão
benignamente se
dirige a possibilidade de construirem um equipamento igual,
por mera
aplicação das instruções patentes no seu livro. . .
"(. . . ) Em primeiro lugar fabriquei um tubo de chumbo
nas
extremidades do qual adaptei duas lentes de vidro, ambas
planas dum
lado, mas uma esfericamente convexa e a outra côncava do lado
oposto;
em seguida, aproximando a minha vista da lente côncava, vi os
objectos
suficientemente grandes e próximos; de facto, apareciam três
vezes
mais próximos e nove vezes maiores do que se fossem somente
observados
a olho nú. Depois, construí um outro Instrumento, mais
preciso, que
representava os objectos mais de sessenta vezes aumentados.
Por fim,
não olhando nem ao trabalho, nem a despesas, cheguei a
construir um
Instrumento duma qualidade tão grande que as coisas vistas
através
dele apareciam quase mil vezes maiores, e mais de trinta vezes
mais
próximas do que se fossem olhadas pelos únicos meios naturais.
(. . .
)".
Informanos então sobre o processo de confirmar o poder de
resolução da luneta, isto é, de como saber com certeza qual a
capacidade de ampliação. Para o caso da observação dos astros,
é
necessário que seja capaz de ter um poder de "vinte vezes", o
que
levanta o problema de encontrar um teste empírico que assegure
tal
capacidade. Sugere um método simples que consiste em construir
dois
círculos ou dois quadrados de papel, em que um seja
quatrocentas vezes
maior que o outro, bastando para isso que o lado do 2º
quadrado ou o
diâmetro do 2º círculo seja vinte vezes maior que o lado do 1º
quadrado ou o diâmetro do 1º círculo.
Encostamse os dois quadrados ou círculos a um muro
situado a uma
distância razoável e, enquanto um dos olhos utiliza a luneta
para
observar o objecto mais pequeno, o outro observa o objecto
maior.
Quando a imagem através da luneta fôr igual à da vista
desarmada, isto
é, os objectos parecerem iguais, é porque a luneta
efectivamente tem a
resolução de "vinte vezes". É um teste simples, eficiente, e
elegante,
como o são quase sempre as boas ideias!
"(. . . ) Em primeiro lugar, com efeito, é necessário que
fabriquem uma Luneta de grande precisão, que possa representar
os
objectos brilhantes, distintos, e sem qualquer escurecimento;
é
necessário que esta mesma Luneta aumente pelo menos
quatrocentas
vezes, porque então mostrará os objectos vinte vezes mais
próximos;
com efeito, se o Instrumento assim não fôr, tentarseá em vão
a
observação sobre todos os fenómenos que apercebemos nos céus e
que
serão enumerados mais adiante. Para se assegurar sem grande
esforço do
poder de ampliação do Instrumento, traçarseão dois círculos
ou dois
quadrados de papel em que um seja quatrocentas vezes maior que
o
outro, o que será o caso quando o diâmetro do maior tiver
vinte vezes
o comprimento do diâmetro do outro. Em seguida, olharseão
simultaneamente de longe as duas superfícies fixadas na mesma
parede,
observando a mais pequena com uma vista aplicada à Luneta e a
maior
com o olho que ficou livre (isto pode fazerse facilmente, ao
mesmo
tempo, com os dois olhos abertos): então, com efeito, as duas
figuras
aparecerão com a mesma grandeza, se o Instrumento ampliar os
objectos
segundo a proporção desejada. (. . . )".
Finalmente, chama a atenção para o facto da refracção dos
raios
luminosos oriundos dos objectos muito distantes originarem
distorções
quanto ao seu tamanho real, que deve, por isso, ser compensado
através
duma tabela que corrija esse desvio. Galileu tem consciência
de não
ter revelado a totalidade dos dados relativamente à cabal
construção e
utilização da Luneta, anunciando para uma outra ocasião uma
explicação
mais detalhada. Por enquanto, aceitemos que não se revelem
todos os
trunfos. "(. . . ) Que seja suficiente, por agora, ter
abordado
ligeiramente estas questões, e delas ter saboreado como quem
aflora os
lábios; pois publicaremos numa outra ocasião a teoria completa
deste
Instrumento. (. . . )".
5 O ESPANTO DA LUA
A primeira série de observações diz respeito à Lua, uma
vez que é
o astro mais próximo da Terra e aquele que permite discernir
detalhes
cuja precisão é única com a utilização da Luneta. As novidades
que
relata são de excepcional relevância, não só pelas extensas
considerações feitas a tal propósito, que ocupam
aproximadamente 30%
de todo o livro, mas sobretudo porque até então a Lua era
considerada como fronteira dum mundo de "nobreza astral", tida
como
esfera perfeita, de superfície completamente lisa e totalmente
regular, compartilhando com os restantes planetas e estrelas
um
estatuto que impedia quaisquer ligações com as imperfeições,
movimentos e mudanças típicas da Terra.
De tudo isto nos dá conta nas primeiras linhas que tratam
da
questão lunar, logo após referir que, para além das conhecidas
"manchas" que a sua superfície apresenta e que eram conhecidas
desde
sempre, existem muitas outras, por ninguém antes observadas,
que se
encontram disseminadas na parte mais luminosa do astro.
"(. . . ) É da
face da Lua que está voltada para o nosso olhar que falaremos
em
primeiro lugar. Para facilitar a compreensão, distinguirei aí
duas
partes, uma mais clara e outra mais obscura. A mais clara
parece
rodear e infiltrar todo o hemisfério, enquanto que a mais
obscura,
como uma espécie de nuvem, sombreia a própria face e
impregnaa de
manchas. Estas manchas, são visíveis para todos, e todos os
tempos as
aperceberam; é por isso que as chamaremos de grandes ou
antigas
manchas, por oposição a outras, de menor grandeza, mas de tal
forma
numerosas que polvilham toda a superfície lunar, e sobretudo a
parte
mais brilhante. Estas, em verdade, não foram observadas por
ninguém
antes de nós. Do seu exame abundante vezes reiterado,
deduzimos que
podíamos discernir com certeza que a superfície da Lua não é
perfeitamente polida, uniforme e muito exactamente esférica,
como foi
sustentado por um exército de filósofos, quer sobre ela quer
sobre os
outros corpos celestes, mas pelo contrário desigual,
acidentada,
constituida por cavidades e protuberâncias, não diferentemente
da
própria face da Terra, que é marcada, dum lado e doutro, pelos
picos
das montanhas e as profundezas dos vales. (. . . )".
Num fôlego o essencial está dito em linguagem acessível,
objectiva, sem retórica, argumentos de autoridade, citações de
clássicos. Ver para crer é o lema do "Mensageiro das
Estrelas". E como
quem não deve, não teme, Galileu inclui na obra uma série de
desenhos
cuidadosamente elaborados que revelam ao leitor os pormenores
mais
inovadores das observações feitas. São cinco as representações
da Lua
que acompanham esta fase da investigação, explicitando
visualmente a
ruptura com as antigas concepções.
Daqui para diante, a argumentação visa demonstrar em
detalhe as
teses centrais desde logo inequivocamente expostas, começando
Galileu
por tornar claros dois factos. O primeiro diz respeito à
irregularidade da linha que separa a parte luminosa da parte
sombria
da Lua; o segundo pretende eliminar a distinção absoluta entre
a zona
clara e a zona escura, nelas estabelecendo cambiantes que
sugerem uma
interpenetração que carece de ser explicada.
Qual o interesse de insistir sobre a irregularidade da
linha que
separa a "parte clara" da "parte obscura"? Obviamente que, se
assim
fôr, a superfície lunar não é uma esfera absolutamente
regular, como
era suposto, pois nesse caso essa fronteira luzsombra teria
de ser
perfeitamente oval. Se a experiência desmentir essa convicção,
simultaneamente bloqueia a tese da esfericidade perfeita dos
astros!
"(. . . ) No quarto ou quinto dia após a conjunção, quando a
Lua se
nos oferece com os seus cornos brilhantes, o limite que separa
a sua
parte obscura da sua parte luminosa já não se estende
uniformemente
segundo uma linha oval, como aconteceria num sólido
perfeitamente
esférico; mas corresponde a uma linha desigual, acidentada e
sinuosa,
como é visível na figura ao lado. (. . . )".
Quanto ao pôr em questão a distinção absoluta entre as
duas zonas,
a obscura e a clara, revelando a existência de microregiões
luminosas
na parte escura e de análogos locais obscuros na zona
luminosa,
Galileu pretende relacionálos com a posição relativa da Lua
face ao
Sol dentro do modelo coperniciano e fazer uma analogia com
fenómenos
idênticos na Terra quando, ao nascer do Sol, há uma sucessão
de
cambiantes luzsombra, se observarmos tal fenómeno numa região
em que
existam montanhas e vales profundos.
Isto é, Terra e Lua têm natureza semelhante, e os factos
nelas
ocorridos implicam "causas" análogas, como convém à
consciência
universalizante da física moderna. "(...)Com efeito, várias
excrecências brilhantes, por assim dizer, estendemse para a
parte
obscura, para além da fronteira entre a luz e as trevas e, em
contraposição, partículas tenebrosas infiltramse por entre a
luz.
Mais ainda, uma grande abundância de pequenas manchas
sombrias,
inteiramente separadas da parte obscura, espalhamse por quase
toda a
extensão já inundada por todos os lados pela luz do Sol, com
excepção
daquela parte que tem as grandes e antigas manchas. Notamos,
por outro
lado, que as ditas pequenas manchas têm todas e sempre isto
exclusivamente em comum, a sua parte mais escura virada para o
Sol,
mas são coroadas, do lado oposto ao Sol, com extremidades mais
claras,
como arestas duma espantosa brancura. Ora, temos uma paisagem
inteiramente semelhante sobre a Terra, no momento do nascer do
Sol,
quando lançamos o nosso olhar sobre os vales que ainda não
estão
banhados pela luz, e sobre as montanhas que os rodeiam do lado
oposto
ao Sol e que, daí a um instante, resplandecerão com um
fulgurante
brilho; e, assim como as sombras das cavidades terrestres
diminuem à
medida que o Sol sobe, da mesma forma estas manchas lunares
perdem
também as suas trevas à medida que a parte luminosa aumente.
(...)".
Daqui para a frente, Galileu maravilhase com outros
pormenores
que, sem trazerem nada de essencialmente novo a estas
espantosas
afirmações iniciais, de qualquer forma confirmam os princípios
estabelecidos. A Lua tem montanhas, vales, golfos, crateras e
a sua
imagem varia com as horas do dia e com o ciclo das órbitas
copernicianas.
"(. . . ) Não deixarei em silêncio um facto digno de
atenção, que
observei quando a Lua de encaminha para a primeira quadratura
e de que
o nosso desenho da página precedente oferece igualmente uma
imagem. Um
enorme golfo tenebroso, com efeito, situado próximo do corno
inferior,
insinuase na parte luminosa. Este golfo sombrio, observeio
durante
muito tempo e vio inteiramente mergulhado na obscuridade.
Finalmente,
após à volta de duas horas, um pouco abaixo do meio da
cavidade, uma
espécie de pico luminoso começou a surgir. (. . . ) Há também
um facto
que não deixarei no esquecimento e que notei não sem grande
encantamento: quase no meio da Lua, um local é ocupado por uma
cavidade maior que todas as outras e duma forma perfeitamente
redonda.
Apercebia próximo das duas quadraturas e representeia tão
fielmente
quanto possível no segundo dos desenhos da página seguinte.
Oferece,
quanto ao obscurecimento e iluminação, o mesmo aspecto que
teria na
Terra uma região parecida com a Boémia, se estivesse fechada
por todos
os lados com altas montanhas, dispostas sobre a circunferência
dum
círculo perfeito. Sobre a Lua, com efeito, a cavidade está
fortificada
com picos tão elevados que o bordo exterior da parte tenebrosa
da Lua
aparece banhado com a luz do Sol, antes que a fronteira entre
luz e
sombra atinja o meio do diâmetro da própria figura. (. . . )".
Chegado a este ponto, perante a acumulação de factos de
observação, Galileu resolve levantar uma dificuldade teórica
eventualmente presente no espírito dos seus opositores para,
ao
resolvêla, antecipar por seu próprio mérito argumentativo uma
vitória
que sabe não lhe escapar.
Consiste no seguinte: se a Lua tem tão grandes vales e
montanhas,
se não é rigorosamente esférica e lisa, por que motivo a
circunferência luminosa que a delimita e que atinge o seu
esplendor na
altura da LuaCheia não é apercebida como irregular e sinuosa?
"(. . .
) Se, com efeito, esta parte da superfície lunar que reflecte
os raios
solares duma maneira mais esplendorosa está cheia de
irregularidades,
quer dizer de protuberâncias e fundos inumeráveis, por que
motivo,
quando a Lua cresce, a extremidade da circunferência virada
para
Ocidente e, quando ela diminui, a outra semicircunferência, a
oriental e, quando há luacheia, toda a periferia, por que
razão não
as apercebemos como desiguais, acidentadas e sinuosas, mas
perfeitamente redondas, traçadas a compasso, e em nada
devastadas por
protuberâncias e cavidades? (. . . )".
Galileu propõe de imediato uma dupla explicação. Por um
lado,
argumenta em termos analógicos sobre fenómenos semelhantes na
Lua e
na Terra; por outro, sugerindo uma curiosa teoria física sobre
certas
propriedades da Lua.
No primeiro caso, a justificação fundamental apoiase na
distância
enorme entre o observador e o objecto observado. Se na Terra,
um
observador situado numa zona montanhosa, contemplar ao longe
uma outra
cordilheira, não avista os vales que entre as montanhas
longínquas se
sucedem, dandolhe a ideia que os picos dessas serras
afastadas
parecem dispôrse de acordo com uma superfície plana. Fenómeno
análogo
acontece se observarmos à distância um mar tempestuoso, em que
as
cristas das ondas mais violentas, vistas de longe, parecem
organizarse segundo um plano horizontal, ainda que, entre
elas,
existam muitas outras ondas de menores dimensões e os
respectivos
desníveis, de tão grandes que são, poderem ocultar da vista
navios de
grande porte.
Ora, com a Lua, passase um fenómeno análogo e de efeito
ainda
mais potenciado, devido à enorme distância que nos separa
desse astro.
Como a nossa vista está aproximadamente no mesmo plano das
montanhas
mais elevadas da Lua, nada de espantar que a circunferência
luminosa
que as delimita nos apareça como uma linha perfeitamente
regular!
"(...)Com efeito, os intervalos entre os montes dispostos
sobre o
mesmo círculo, ou na mesma cordilheira, são ocultados pela
interposição doutras eminências colocadas noutras zonas,
sobretudo se
a vista do observador estiver situada no mesmo plano que os
cumes das
ditas eminências. Da mesma forma, sobre a Terra, os picos de
montanhas
numerosas e compactas aparecem dispostos numa superfície
plana, se o
observador estiver afastado e colocado a uma altitude igual.
Da mesma
forma, quando o mar está agitado, as cristas mais elevadas das
ondas
parecem estenderse sobre o mesmo plano, ainda que, entre as
vagas, se
acumulem em grande número abismos e cavidades tão profundas
que os
navios mais altos vêem não somente as suas quilhas, mas também
as
popas e velas aí desaparecerem. Portanto, uma vez que existe
sobre a
própria Lua, e à volta do seu perímetro, uma combinação
complexa de
eminências e cavidades, e uma vez que a vista, olhando duma
grande
distância, está colocada aproximadamente sobre o mesmo plano
que os
seus cimos, ninguém deve espantarse que estes se ofereçam, ao
raio
visual que os rasa, segundo uma linha igual e nada tortuosa.
(. . .
)".
O segundo argumento é particularmente curioso pois supõe
que à
volta da Lua existiria um "orbe vaporoso", feito duma
substância mais
densa que o éter e que actuaria como uma espécie de filtro
cuja
natureza seria simultaneamente "amplificadora" das largas
escalas e
"atenuadora" dos pequenos pormenores.
Galileu devaneia sobre um modelo físico de acordo com a
Teoria do
Éter de fundo clássico, acentuando uma argumentação mais
qualitativa
que quantitativa, bem característica da fase de fronteira em
que se
encontra actualmente o seu pensamento.
Tal "orbe vaporoso" seria não só parcialmente
transparente, para
absorver e reflectir os raios solares, mas actuaria também de
modo
análogo a uma lente que daria à Lua um aspecto maior que
aquele que
efectivamente tem, impedindo que se observem as montanhas
situadas na
periferia da circunferência lunar. Digamos que é uma
ferramenta à
escala dos desejos, que não deixa de lançar aos olhos dos seus
espantados leitores alguns dos "vapores" remanescentes desta
singular
engenharia lunar. . .
" (...) existiria à volta do corpo lunar, como à volta da
Terra,
uma espécie de orbe duma substância mais densa que o resto do
éter,
capaz de receber e reflectir a irradiação solar, ainda que não
esteja
provido duma opacidade tal que possa impedir ( sobretudo
quando não
está iluminado ) a passagem à vista. Iluminado pelos raios
solares,
este orbe restitui e reproduz a imagem do corpo lunar sob o
aspecto
duma esfera maior; poderia mesmo limitar a nossa acuidade
visual,
impedindoa de atingir o corpo sólido da Lua, se fosse duma
espessura
mais profunda; ora, ele é efectivamente mais profundo à volta
da
periferia da Lua, mais profundo, digo eu, não de maneira
absoluta, mas
relativamente, por relação aos nossos raios visuais, que o
cortam
obliquamente. Pode, por consequência, sobretudo quando está
luminoso,
obstruir a nossa percepção e esconder a periferia da Lua
exposta ao
Sol. (...)".
Ao aproximarse do final das páginas que dedica à Lua,
Galileu
ainda relata dois factos particularmente interessantes. O
primeiro diz
respeito a uma derradeira observação sobre as montanhas da
Lua, cuja
existência acabou de revelar, e que entende serem
irregularidades
geológicas duma escala bem superior à da Terra, assim se
reforçando o
parentesco entre os dois planetas. Tal tarefa é conseguida com
uma
argumentação de natureza geométrica, muito do agrado da sua
formação
platónica, entrando em linha de conta com o diâmetro da Terra,
da Lua,
e o Teorema de Pitágoras. Daí resulta um cálculo que
contabiliza em
mais de quatro milhas italianas a altura das montanhas
lunares, isto
é, aproximadamente 6.000 metros. Segundo ele, nada existe na
Terra que
possa ser comparável a tal magnificência de escala!
" (. . . ) Seguese que, sobre a Lua, a altura AD, que
designa um
cume qualquer erguendose até à altura do raio solar GCD e
afastado
do ponto C pela distância CD, elevase a mais de 4 milhas
italianas.
Mas sobre a Terra não existem montes que atinjam a altura
perpendicular de sequer uma milha. Resulta, pois,
manifestamente, que
as eminências lunares são mais altas que as da Terra. "
O outro facto que espanta Galileu, vem ao encontro do
reforço do
parentesco entre Lua e Terra e a respectiva observação
tornouse mais
fácil com o uso da luneta, apesar de anteriormente à sua
utilização,
nos confessar o autor já o ter revelado a um círculo restrito
de
discípulos.
Que se passa, então? Na altura imediatamente anterior ou
seguinte
à LuaNova, nos dias em que nos encontramos nos limites do
"quartominguante" ou "quartocrescente", é possivel observar
uma
espécie de halo luminoso que circunscreve a parte obscura da
Lua, de
tal maneira que se distingue uma zona de transição entre a
superfície
do astro e a região mais obscura do éter exterior.
"(. . . ) Desejo aqui fornecer uma explicação para um
outro
fenómeno lunar digno de espanto. O qual, é verdade, foi
observado por
nós não recentemente, mas há vários anos, e mostramolo a
alguns
íntimos e discípulos, explicandoo e esclarecendo a causa.
( . . . )
Enquanto que a Lua, tanto antes como depois da conjunção, se
encontra
não longe do Sol, não somente o seu globo se oferece à nossa
vista do
lado em que está ornamentado por cornos brilhantes, mas, para
além do
mais, uma periferia ténue, ligeiramente luminosa, parece
desenhar o
limite da parte tenebrosa, isto é, desviada do Sol, e
separála do
campo mais obscuro do próprio éter. (. . . )".
Se melhor observado, este fenómeno estendese não só aos
limites
da circunferência da parte obscura, mas à própria superfície
contida
para aquém dessa fronteira. Isto é, Galileu afirma que mesmo a
parte
escura da superfície da Lua, reflecte uma certa quantidade de
luz que
não pode ser originária do Sol, bastando para tal escolher um
ponto
para a observação, de tal forma que um obstáculo natural
oculte a
parte luminosa típica do "quartocrescente" ou
"quartominguante".
"(. . . ) Na verdade, se considerarmos a coisa com mais
atenção,
veremos não somente o bordo extremo da parte tenebrosa luzir
com uma
claridade incerta, mas também a face inteira da Lua quero
dizer,
aquela que ainda não recebe o brilho do Sol clarearse de
forma
não negligenciável. (. . . ) Mas se escolhessemos uma posição
tal que
um telhado, ou uma chaminé, ou qualquer outro obstáculo entre
a vista
e a Lua (mas colocado longe da vista) oculte os próprios
cornos
luminosos, e se a parte restante do globo lunar se mantiver
exposta à
nossa vista, então descobrirseá que também esta zona da Lua
resplandece com uma luz considerável, ainda que esteja privada
da luz
do Sol, e isso sobretudo se já, na falta do Sol, o horror
nocturno
aumentou. (. . . )".
Assinalado o facto, Galileu parte para a explicação das
suas
causas, não sem antes assinalar brevemente outras teses que
visavam
interpretar tais dados, declarando de imediato que as refutará
sem
apelo nem agravo e, ainda por cima, sem grande esforço! Tais
teses
agrupavamse segundo duas vertentes: a primeira, entendia que
existia
um "esplendor próprio da Lua", e a segunda considerava que tal
luminosidade era secundária e derivava da reflexão pela Lua da
luz
proveniente doutros astros, que tanto podiam ser Vénus, como o
Sol, ou
como o somatório condensado da luz de todas as Estrelas.
" (...) Este maravilhoso brilho suscitou nos filósofos uma
grande
admiração; para atribuir uma causa a este fenómeno, uns e
outros
avançaram diferentes explicações. Com efeito, alguns
pretenderam que
se tratava dum esplendor próprio e natural da Lua; outros, que
lhe era
comunicado por Vénus, ou que lhe vinha de todas as Estrelas;
outros
ainda atribuiramno ao Sol, que penetraria com os seus raios a
profundeza do corpo sólido da Lua.(...)".
Refutadas as posições contrárias, seguindo uma estratégia
que
consiste em aceitar as teses opostas e confrontálas com a
observação,
de forma a fazêlas ir ao encontro de paradoxos, espécie de
método de
"redução ao absurdo", Galileu está em condições de fazer
entrar em
cena a sua Teoria.
Em que consiste ela? Num sistema de permuta analógica e
compensatória de factos aparentados. Assim como a Lua, por
reflexão da
luz solar, ilumina a Terra com o luar, assim também a Terra
devolve à
Lua um facto equivalente de sentido contrário, emitindo para a
Lua uma
luz reflectida na sua superfície, luz essa que é, obviamente,
proveniente do Sol. "(. . . ) Uma vez que, uma luz secundária
deste
género não é nem intrínseca e própria da Lua, nem originária
das
Estrelas ou do Sol, e dado que, na imensidade do Mundo não
resta
nenhum outro corpo a não ser a Terra, pergunto eu, que
deveremos
pensar? Que é preciso dizer? Não é verdade que é devido à
Terra que o
próprio corpo da Lua ou qualquer outro corpo opaco e tenebroso
são
inundados de luz? Porquê espantarmonos? Numa permuta justa e
amigável, a Terra dá precisamente à Lua uma iluminação igual à
que ela
própria recebe da Lua, durante quase todo o tempo, no mais
profundo
das trevas nocturnas. (. . . )".
Galileu tem consciência que estas teses têm subjacente um
modelo
cosmológico não geocêntrico e anuncia que melhor as
desenvolverá em
obra posterior, claramente orientada contra aqueles que
sustentam não
só a imobilidade da Terra, como a sua posição degradante e
inferiorizada relativamente aos astros perfeitos.
Este comportamento é típico do seu génio polemista, ao
sugerir aos
adversários a quem acaba de demonstrar argumentos de peso, que
já
estão no prelo mais umas dúzias de razões que arrasarão sem dó
nem
piedade qualquer arremedo de contraargumentação oriunda da
parte
contrária. . . "(. . . ) Estas breves palavras sobre tal
matéria devem
bastar neste local, uma vez que trataremos disso de forma mais
ampla
no nosso «Sistema do Mundo», onde, em múltiplos raciocínios e
experiências, a reflexão da luz solar a partir da Terra será
muito
eficazmente mostrada, para aqueles que pretendem excluíla do
coro das
Estrelas, principalmente porque seria desprovida de movimento
e de
luz. Ora, que a Terra seja errante, e que ultrapasse a Lua em
esplendor, longe de ser a latrina dos lixos e excrementos do
mundo,
nós demonstráloemos e confirmáloemos também por meio de
inumeráveis razões naturais. (. . . )".
6 ESTRELAS AOS MILHARES
Concluídas as considerações sobre a Lua, é altura de
Galileu se
debruçar sobre um outro assunto, duma grandeza e escala
manifestamente
maior, perante o qual a Astronomia e Cosmologia clássica tinha
tomado
posições bem determinadas, com uma ou outra excepção. Tratase
do tema
das Estrelas e da natureza das Nebulosas e da Via Láctea.
As teses fundamentais sobre estes assuntos
estabilizaramse nos
modelos cosmológicos de raíz aristotélicoptolomeica e
entendiam serem
estes astros desprovidos de movimento real, fixados que
estavam ao
último dos orbes cósmicos, usualmente designado como "esfera
das
fixas". O seu movimento diário de Oriente para Ocidente era
tido como
aparente, pois resultava da rotação da esfera onde se
encontravam
imóveis as Estrelas. O seu número seria constante, a sua
natureza
perfeita, a substância que os formava era incorruptível, em
contraposição às mutações e cambiantes das substâncias
terrestres, Ar,
Água, Terra e Fogo. A esfera das fixas marcava, para todos os
efeitos,
o "fim" do espaço físico, o limite para além do qual só o
sagrado e o
divino se estendiam incomensuravelmente.
A primeira observação de Galileu revela a consciência da
escala de
distâncias com que se confronta ao observar estes astros, pois
diznos
que a Luneta não permite um poder análogo de ampliação ao da
Lua,
quando é apontada para as Estrelas Fixas ou "errantes". É tal
o
desfasamento, que nos sugere de imediato uma explicação que
atenue
este facto.
A visão que naturalmente temos das Estrelas é distorcida
pelo
brilho que emitem, sendo esse halo cintilante o responsável
parcial
pela ilusão visual da sua grandeza, halo esse que é
francamente
reduzido quando se utiliza a Luneta. "(. . . ) exporemos
brevemente o
que até agora examinamos a respeito das Estrelas Fixas. E
antes de
mais, é digno de atenção o facto que as Estrelas, tanto as
Fixas como
as Errantes, quando são vistas por meio duma Luneta, não
parecem de
todo aumentar em grandeza na mesma proporção em que os outros
objectos, e também a própria Lua, são ampliados. Na verdade,
no caso
das Estrelas, esta ampliação parece bem menor, a tal ponto,
pensamos
nós, que uma Luneta capaz, por exemplo, de aumentar cem vezes
os
outros objectos, não ampliaria as Estrelas senão quatro ou
cinco
vezes. A razão é que os Astros, quando se observam com a vista
natural, não se nos oferecem segundo a sua grandeza simples e,
por
assim dizer, nua, mas irradiados com um clarão brilhante e
rodeados
duma cintilação em forma de crina, sobretudo quando a noite é
já
profunda. (. . . )".
Galileu acrescenta ainda que tal redução de proporções se
pode
explicar também devido ao facto das lentes da luneta actuarem
como um
filtro que reduz a reverberação luminosa das Estrelas, assim
compactando a sua dimensão a escalas mais realistas.
Após este apontamento inicial, revela uma importante
distinção
entre Planetas ("errantes") e Estrelas Fixas, no que à sua
forma se
refere. Enquanto que os Planetas aparecem sempre como
esféricos, como
se fossem luas rodeadas de luz, as Estrelas não conseguem
nunca ser
vistas como delimitadas por uma linha circular, pois o seu
brilho
intrínseco impede que nos possamos aperceber com exactidão
sobre qual
será a sua forma. "(. . . ) Digna de atenção também me parece
a
diferença de aspecto entre os Planetas e as Estrelas Fixas. Os
Planetas, com efeito, apresentam os seus globos exactamente
redondos e
circulares e, semelhantes a pequenas luas inundadas de luz por
todos
os lados, aparecem como orbiculares; todavia, jamais se
apercebem as
Estrelas Fixas delimitadas por uma periferia circular, mas
tomando a
forma de luares que dardejam raios por toda a parte à sua
volta e
cintilam intensamente; (. . . )".
É então que, apesar destas limitações, a linguagem cresce
em
entusiasmo e espanto ao dar a conhecer uma multidão de
Estrelas até
então invisíveis e que desmultiplicam o Universo conhecido
para além
de tudo o que se podia imaginar. Não se trata de mais duas ou
três
estrelas, mas de centenas, milhares, que parecer nascer por
toda a
parte, rompendo para sempre a pequenez e conforto dum Mundo
que se
encaminha para dimensões transfinitas.
Diznos que, às seis escalas de grandeza acessíveis à
vista
desarmada, se podem acrescentar mais outras seis com o uso da
Luneta,
de tal forma que a sétima escala, a que Galileu chama a
"primeira das
invisíveis", aparece como mais clara e mais brilhante que uma
Estrela
de "grandeza dois", observada sem meios de ampliação. Por
outro lado,
se utilizarmos a Luneta para as mais pequenas das Estrelas
visíveis
(6ª grandeza), o seu aspecto é equivalente a Sirius, a mais
brilhante
e espectacular de todas as estrelas do hemisfério Norte.
" (. . . ) são ampliadas ao ponto que uma pequena Estrela
de
quinta ou sexta grandeza parece igualar o Cão, quer dizer, a
maior de
todas as Fixas. Na verdade, para além das Estrelas de sexta
grandeza,
levarás o teu olhar, através da Luneta, junto duma multidão
tão
numerosa de outras Estrelas que escapam ao olhar natural, que
isso mal
é concebível: poderás ver, com efeito, mais de seis outras
escalas de
grandeza. As maiores dentre elas, que podemos chamar de sétima
grandeza, ou as primeiras das invisíveis, aparecem, graças à
Luneta,
maiores e mais claras que os Astros de segunda grandeza vistos
a olho
nú. (. . .) ".
As revelações são de tal forma espantosas que Galileu
decide
acrescentar dois desenhos, onde representa as Estrelas
desconhecidas
num enquadramento relativo a outras que faziam parte do
património da
Astronomia clássica. Diznos que a sua ideia inicial seria
representar
toda a constelação de Orion, mas a urgência da publicação e a
complexidade da tarefa levamno a reservar tal objectivo para
uma
outra altura, uma vez que em torno das Estrelas visíveis de
Orion e
num "arco de céu" muito reduzido, da ordem dos dois graus de
extensão,
foi possível detectar mais de 500 novas Estrelas. "(. . . )
Mas, para
que vejas um ou outro testemunho da sua densidade quase
inconcebível,
pretendi juntar duas ilustrações, de forma a que faças uma
ideia das
outras, graças a este exemplo. Na primeira, decidi representar
toda a
constelação de Orion; mas, ultrapassado pela imensa abundância
das
Estrelas e, por outro lado, pela falta de tempo, protelei este
trabalho para uma outra ocasião. Porque, em torno das antigas
Estrelas, existem, disseminadas no espaço de um ou dois graus,
mais de
quinhentas outras. (. . . )".
O segundo exemplo diz respeito ao conhecido agrupamento
estelar
das Pleiades, junto das quais Galileu descobre mais de 40
novas
Estrelas, nenhuma delas distando mais de meio grau de qualquer
das
Pleiades já conhecidas. O desenho é particularmente cuidadoso
e tem a
preocupação de distinguir graficamente as antigas e as novas
Estrelas,
representando as primeiras com um duplo traço e as segundas
com traço
simples, respeitando a respectiva escala de grandeza relativa
no
conjunto da ilustração. Seguese uma reflexão sobre a natureza
da Via
Láctea e sobre a composição das Nebulosas. Um e outro assunto
tinham
merecido amplas considerações da Astronomia clássica, que
tendia a
considerar tais fenómenos como consequência de diferenças de
densidade
no éter cósmico, que resultava em serem apercebidos como
manchas duma
claridade difusa, quando observados à vista desarmada. A Via
Láctea ou
Galáxia, uma vez que tais designações eram nesta altura
equivalentes,
pois não se admitia que a constituição cósmica pudesse conter
uma
pluralidade de Galáxias, era entendida como uma entidade
exterior ao
sistema solar, o que é, sabemolo hoje, manifestamente falso.
Galileu não tem,por enquanto, consciência de tais factos,
mas a
utilização da Luneta permitelhe sustentar sem margem para
dúvida que
a Via Láctea é um aglomerado imenso de Estrelas de diferentes
escalas
de grandeza, qualquer que seja a região do céu para que o
telescópio
se aponte. Uma vez mais, com a satisfação que lhe é peculiar,
contrapõe as opiniões retóricas da tradição com as evidências
frias e
neutrais da observação. "(...) O que observamos em terceiro
lugar, foi
a essência ou a matéria da própria Via Láctea; graças à
Luneta,
podese contemplála tão bem, que todas as disputas que,
durante
séculos, torturaram os filósofos, são destruidas pela
evidência da
percepção, e eisnos libertos de discussões orais. A Galáxia
não é,
com efeito, nada mais que um conjunto de inumeráveis Estrelas
aglomeradas em pequenos grupos: qualquer que seja, com efeito,
a
região para a qual se oriente a Luneta, de imediato uma enorme
multidão de Estrelas se oferece à vista, entre as quais várias
parecem
bastante grandes e bem visíveis; mas uma multiplicidade de
muito
pequenas Estrelas escapa absolutamente à exploração.
(. . . )".
Quanto às Nebulosas, a interpretação é análoga,
baseandose no
mesmo princípio da acumulação de Estrelas, cuja pequenez ou
enorme
distância por relação a nós, implica um agrupamento de
luminosidades
individuais de tal forma que só são apercebidas como
superfícies de
fronteiras difusas, espécie de "nuvens cósmicas", irradiando
um ténue
clarão. Destas observações resultam mais duas ilustrações,
uma
relativa à Nebulosa da constelação de Orion e outra à Nebulosa
da
constelação de Câncer. Vejamos as suas palavras: " (...)
várias
auréolas duma côr idêntica brilham com um ténue fulgor, aqui e
além no
éter, e se orientares a Luneta para qualquer uma dentre elas,
encontrarás um conjunto de Estrelas que se comprimem em
conjunto.Por
outro lado ( o que é mais maravilhoso ainda ), as Estrelas até
hoje
chamadas de Nebulosas por todos os Astrónomos, são rebanhos de
pequenas Estrelas semeados de forma admirável.Dado que cada
uma delas,
por causa da sua pequenez ou do grande distanciamento de nós,
escapa à
acuidade do nosso olhar, da união dos seus raios luminosos
surge esta
claridade branca que até hoje foi tomada como uma parte mais
densa do
Céu, capaz de reflectir os raios luminosas das Estrelas ou do
Sol.Observamos algumas, e decidimos inserir a representação de
duas
dentre elas.(...)".
Quanto a Galáxias, Estrelas e Nebulosas, nada mais é dito!
Temos
de compreender que é um tema por enquanto controverso, muito
além dos
meios tecnológicos disponíveis e que obriga, a prazo, a
considerar o
problema da infinitude do Universo, questão por enquanto
impensável no
interior dos quadros de referência em que se move "O
Mensageiro das
Estrelas".
7 A PRODIGIOSA SEMANA
Galileu guarda para o fim aquilo que considera ser a mais
espantosa das descobertas a que teve acesso, isto é, a
revelação dos
quatro satélites de Júpiter, os primeiros planetas "novos" a
que o
conhecimento humano chegou desde que os astrónomos começaram a
olhar
os céus. Esta parte da sua obra é, talvez, a mais
significativa no que
diz respeito à objectividade das observações, à metodologia
seguida,
aos pormenores quantitativos fornecidos ao leitor, que vão
desde as
datas e horas, às representações gráficas, cuidadosamente
acompanhadas
das medições de ângulos de desvio dos satélites relativamente
a
Júpiter.
É também esta análise a mais extensa de todas, pois ocupa
aproximadamente 40% do "Mensageiro das Estrelas". Se
atendermos ao
espírito sucinto que demarca toda a investigação, é
significativo o
cuidado nos detalhes e a extensão das observações. Galileu
está
efectivamente convencido, e com razão, de ter descoberto
fenómenos de
extraordinário impacto, não só pela novidade absoluta que em
si mesmos
encerram, mas também pelas virtualidades que contêm numa
futura
demonstração da validade dos modelos cosmológicos
heliocêntricos de
raíz coperniciana.
"(. . . ) Relatamos brevemente até agora os fenómenos
observados a
propósito da Lua, das estrelas Fixas e da Galáxia. Restanos
tratar o
assunto que parece mais considerável na presente matéria:
revelar e
dar a conhecer quatro planetas que, desde os começos do mundo
até aos
nossos dias, jamais foram apercebidos, sem esquecer as suas
posições e
as observações, mantidas durante quase dois meses, dos seus
comportamentos e das suas mutações. (. . . )".
Imediatamente após ter dado conhecimento da descoberta,
Galileu,
um pouco contra o seu costume, faz um apelo a todos os
Astrónomos para
se dedicarem ao assunto, tendo em vista a formulação dos
períodos
orbitais de cada um dos satélites de Júpiter, já que motivos
imperiosos relacionados com a falta de tempo e a urgência da
publicação o teriam impedido de reservar para si próprio a
apresentação desses números. Claro que adverte a comunidade
científica
para nem sequer se atrever a iniciar tais estudos se não tiver
uma
Luneta, pelo menos tão precisa como aquela que habilidosamente
descreve nas primeiras páginas do seu livro. "(. . . )
Apelamos a
todos os astrónomos, para que colaborem na pesquisa e a
estabelecer a
duração das suas revoluções, o que nos não foi possível
realizar até
hoje devido ao pouco tempo de que dispusemos. Advertimolos,
apesar de
tudo, novamente, a fim de que se não lancem em vão num tal
exame, que
é necessária uma Luneta muito precisa, tal como aquela que
descrevemos
no início deste trabalho. (. . . )".
Feito este aviso prévio, Galileu dá início ao relato
detalhado da
sua descoberta, começando por revelar que no dia 7 de Janeiro
de 1610
se lhe deparou à observação um fenómeno estranho, na altura em
que
analisava o planeta Júpiter. Junto a este planeta pareceulhe
descortinar três Estrelas, pequenas e claras, que muito o
maravilharam
devido ao alinhamento horizontal que mantinham com Júpiter.
Não se
preocupou neste dia em quantificar as distâncias que as
separavam do
planeta, pelo que a noite de 7 de Janeiro se pode considerar
como o
primeiro momento da observação dum facto que flutua entre o
normal e o
bizarro, dado que Galileu admite, por enquanto, que tais
astros se
tratam de estrelas Fixas e não de Planetas. Não nos devemos
surpreender que assim seja, pois como já observamos na altura
em que
se abordou o problema das Estrelas, era muito frequente a
descoberta
de novas Estrelas Fixas ao apontarse a Luneta para qualquer
região
dos céus!
"(. . . ) Então, no dia 7 de Janeiro do presente ano de
1610, na
primeira hora da noite, quando observava as Estrelas celestes
através
da Luneta, Júpiter apresentouse; e como tinha fabricado um
instrumento absolutamente excelente, reconheci (o que antes
não tinha
podido conseguir devido à fraqueza da outra Luneta) que havia
três
Estrelas, bem pequenas, é verdade, mas todavia muito claras,
situadas
próximo dele. Acreditei, em primeiro lugar, serem do número
das Fixas.
Seja como fôr, causaramme um certo encantamento, devido ao
facto de
aparecerem dispostas segundo uma linha exactamente recta e
paralela à
Eclíptica e, ainda que iguais às outras Fixas em grandeza,
mais
brilhantes. (. . . )".
No dia seguinte, 8 de Janeiro, retomando como que por
acaso as
mesmas observações da véspera, reparou que a posição dessas
três
Estrelas, relativamente a Júpiter, se tinha alterado. No dia
anterior,
duas deles encontravamse a Oriente e outra a Ocidente,
enquanto que
neste dia lá se encontravam as três Estrelas, mas desta feita
todas
posicionadas a Ocidente do planeta conhecido. Galileu,
escrevendo
retrospectivamente, confessanos que admitiu estar perante um
erro
relativamente à trajectória de Júpiter, pois sendo o seu
movimento
perspectivado face ao território de fundo das Estrelas fixas,
poderia
ter observado simplesmente novos dados que levariam à
correcção dos
conhecimentos sobre a sua órbita.
Qualquer que seja o motivo, está levantada a suspeita! A
observação revela um fenómeno insólito. Agora tratase de
analisar
melhor em que consiste e quais as suas causas. É com
impaciência que
espera pelo dia seguinte, 9 de Janeiro, para continuar as
observações,
mas tal expectativa foi frustrada, pois nessa noite o céu
estava
coberto de nuvens!!
"(. . . ) Não me ocupei das distâncias entre elas e
Júpiter,
porque as tinha tomado, como já disse no início, por fixas.
Ora, como
no dia oito, guiado por não sei que Fatalidade, regressei à
mesma
observação, encontrei uma disposição bem diferente: com
efeito, as
três pequenas Estrelas encontravamse a Oeste de Júpiter, mais
próximas umas das outras que na noite precedente, separadas
por
intervalos iguais, como demonstra o seguinte desenho (. . . )
Nesta
altura, ainda que não tivesse consagrado a mínima reflexão aos
movimentos de aproximação mútua das Estrelas, comecei a ficar
embaraçado e a procurar como seria possível descobrir Júpiter
a Este
de todas as Fixas mencionadas, dado que na véspera ele tinha
estado a
Oeste de duas delas. Temi, por consequência, que a sua
trajectória não
fosse directa, contrariamente aos cálculos astronómicos e que,
por
essa razão, com o seu próprio movimento, não tivesse
ultrapassado
essas Estrelas. Consequentemente, esperei com muita
impaciência a
noite seguinte; mas a minha esperança foi frustrada, porque o
céu
encontravase coberto de nuvens por todos os lados. (. . . )".
Chega finalmente a noite de 10 de Janeiro, que vai ser
decisiva
por dois motivos. Por um lado, em vez de três Estrelas próximo
de
Júpiter, aparecem somente duas, situadas a Este e não a Oeste,
como na
véspera; por outro, conclui que não há qualquer anomalia no
movimento
de Júpiter e que todas as mudanças de posição deviam ser da
responsabilidade de tão estranhas Estrelas.
"(. . . ) Mas no dia dez, as Estrelas apareceram, situadas
por
relação a Júpiter da seguinte maneira (. . . ) Não havia
senão duas,
ambas a este, a terceira estando escondida, como presumia, por
trás de
Jupiter. Estavam juntas, como anteriormente, sobre o mesmo
plano que
Júpiter e alinhadas na linha ao longo do Zodíaco. Perante esta
observação, como compreendia que alterações análogas não
podiam de
nenhuma maneira serem imputadas a Júpiter e que, para além do
mais,
sabia que tinha observado sempre as mesmas Estrelas (não havia
outras,
com efeito, quer atrás quer adiante de Júpiter, dentro duma
grande
distância, ao longo do Zodíaco), modificando a partir de então
a minha
perplexidade em encantamento, descobri que a modificação
apercebida
era imputável não a Júpiter, mas às estrelas que tinha
assinalado. Em
função disto, decidi continuar, daqui para a frente, as minhas
observações com mais exactidão e rigor. (. . . )".
No dia seguinte, 11 de Janeiro, posta de parte a hipótese
dos
movimentos anormais da órbita de Júpiter, Galileu estabelece
uma
hipótese interpretativa que o leva á sua grande descoberta.
Verifica
de início que são somente visíveis duas Estrelas junto a
Júpiter, mas
mais distantes deste que na véspera, pelo que,
acrescentandolhe uma
terceira actualmente não visível, considera sem margem para
dúvida que
há três Estrelas errantes em torno do Planeta, movimentandose
em sua
volta de forma análoga à de Vénus e Mercúrio em torno do Sol.
Quanto
ao quarto satélite, diznos que só foi referenciado ao fim de
muitas
outras observações subsequentes, pelo que na ordem cronológica
dos
factos descritos, os quatro Planetas foram descobertos em duas
fases!
"(. . . ) No dia onze, então, vi uma disposição desta
ordem. (. .
. ) Não existiam senão duas Estrelas a este; a do meio estava
três
vezes mais distante de Júpiter que a mais Oriental, e a mais
Oriental
era à volta de duas vezes maior que a outra, enquanto que, na
noite
anterior, apareceram mais ou menos iguais. Foi por isso que
estabeleci
e decretei sem qualquer dúvida que havia no céu três Estrelas
errando
à volta de Júpiter, da mesma forma que Vénus e Mercúrio em
torno do
Sol. Isso foi, finalmente, confirmado com mais clareza do que
a luz do
dia, ao longo de outras numerosas observações posteriormente
feitas.
(. . . )".
Estabelecida uma hipótese consistente decorrente da
observação,
Galileu dedicase a uma sucessão de pormenorizadas e pacientes
investigações, tendo em vista a confirmação dos factos e,
eventualmente, das leis que presidem ao seu funcionamento.
Encontramos
aqui um evidente exemplo da prática duma metodologia típica da
alvorada da Ciência Moderna, a um passo das clássicas quatro
fases do
método experimental ( observação, hipótese, experimentação e
indução
).
Compreenderseá, por conseguinte, que as observações dos
satélites de Júpiter feitas nas próximas semanas, revelem uma
preocupação de rigor e detalhe que não encontramos nos
primeiros cinco
dias, de 7 a 11 de Janeiro de 1610. Sãonos dados os tamanhos
e
brilhos aparentes, a sua posição relativa face a Júpiter, as
coordenadas de orientação no eixo OrienteOcidente e o
distanciamento
dos satélites entre si, tudo isto enquadrado, na medida do
possível,
com dados quantitativos, onde se destacam as datas e horas em
que as
observações são feitas, bem como a medição de distâncias,
apontadas
com uma precisão da ordem dos "minutos de grau" e "segundos de
grau".
" (...) A descrição que se segue dará a conhecer as suas
permutações, observadas da maneira mais exacta. Medi também os
intervalos que os separavam por meio da Luneta, segundo o
método já
exposto. Por outro lado, acrescentei as horas das observações,
sobretudo quando existiram várias durante a mesma noite;as
revoluções
destes Planetas são, com efeito, tão rápidas que a maior
parte das
vezes podem notarse diferenças de hora a hora. (. . . )".
Nos dois dias seguintes, 12 e 13 de Janeiro, os
comentários de
Galileu passam a obedecer a esta nova estratégia, a linguagem
é
objectiva, sem adjectivação afectiva, fria e neutral, como
convém a
quem entende que, a partir de agora, a "força dos factos" é
tão grande
que bastará deixar que falem por si próprios!
Os dias que completam esta espantosa semana para a
astronomia e
Cosmologia Moderna, merecem somente dois comentários finais. O
primeiro é ficarmos a saber que foi nesta altura que pela
primeira vez
foi avistado o quarto satélite de Júpiter, e o segundo
assinala que
Galileu passa a distinguir sem hesitação os novos planetas
afirmandonos, inclusivé, que o seu brilho é superior ao das
Estrelas
Fixas da mesma grandeza.
Ouçamos as suas palavras: "(. . . ) No dia doze, na
primeira hora
da noite, vi as Estrelas dispostas desta maneira: (. . . ) A
Estrela
mais oriental era maior que a mais ocidental, mas ambas eram
bem
visíveis e resplandecentes; cada uma estava afastada de
Júpiter cerca
de 2 minutos. A terceira Estrela começou a aparecer igualmente
na
terceira hora, de início muito pouco visível; quase que tocava
Júpiter
do lado oriental e era verdadeiramente muito pequena. Todas se
encontravam sobre o mesmo plano, alinhadas ao longo da
Eclíptica.
No dia treze, pela primeira vez, quatro pequenas Estrelas
ofereceramse à minha vista, segundo a seguinte disposição por
relação
a Júpiter: (. . . ) Três eram ocidentais e uma oriental;
formavam uma
linha quase recta; a mediana das Ocidentais, todavia,
desviavase
ligeiramente da recta, em direcção ao norte. A Oriental estava
a uma
distância de 2 minutos de Júpiter; os intervalos que separavam
as
outras de Júpiter eram, cada um, de somente 1 minuto. Todas as
Estrelas se mostravam de igual grandeza e, apesar do seu
tamanho ser
pequeno, eram todavia muito brilhantes, mais esplendorosas que
as
Fixas da mesma grandeza. (. . . )".
Seguemse seis semanas de observações persistentes, noite
após
noite, só interrompidas por limitações meteorológicas, quando
o céu se
encontrava completamente coberto de nuvens. De 13 a 25 de
Fevereiro de
1610, a leitura, para um leigo, tornase monótona. Galileu é
duma
extrema economia no discurso. Não mais de 15/20 linhas, 1/2
desenhos,
horas, ângulos, distâncias, grandezas aparentes. A rede está
lançada e
a Ciência, de facto, é também uma longa paciência!
A fim de bem demarcar esta vertente, vejamos o que consta
do
"Mensageiro das Estrelas", com intervalos de uma semana, no
mês e
meio que se segue:
"(. . . ) A catorze, o tempo esteve com nuvens. (. . .
)".
"(. . . ) A vinte e um, às 0 horas, 30 minutos, três
pequenas
Estrelas apresentaramse a Oriente, igualmente distantes entre
elas e
por relação a Júpiter: (. . . ) Os intervalos eram, segundo a
minha
estimativa, de 50 segundos de minuto. Havia também uma Estrela
a
Ocidente, distante de Júpiter 4 minutos. A Oriental mais
próxima de
Júpiter era de todas a mais pequena; as outras, pelo
contrário, eram
um pouco maiores e mais ou menos iguais entre elas. (. . . )".
"(. . . ) A vinte e oito e vinte e nove, nenhuma
observação
foi possível, por causa da interposição de nuvens. (. . . )".
"(. . . ) A quatro, na segunda hora, quatro Estrelas
rodearam
Júpiter, duas a Oriente e uma a Ocidente, dispostas
exactamente sobre
a mesma linha recta, como na seguinte figura: (. . . ) A
Estrela mais
Oriental estava a uma distância de 3 minutos da seguinte,
enquanto que
esta estava distante 0 minutos e 40 segundos de Júpiter;
Júpiter
estava a 4 minutos da mais próxima a Ocidente, e esta a 6
minutos da
mais Ocidental. Eram aproximadamente iguais em grandeza; a
mais
próxima de Júpiter aparecia ligeiramente mais pequena que as
outras.
Posteriormente, na sétima hora, as Estrelas Orientais não
estavam
separadas senão por 0 minutos, 30 segundos: (. . . ) Júpiter
encontravase a 2 minutos da Estrela oriental mais próxima,
enquanto
que estava a 4 minutos daquela que o seguia a Ocidente e esta
a 3
minutos da mais Ocidental de todas. (. . . )".
"(. . . ) A onze, na primeira hora, duas Estrelas
apresentavamse do lado de Oriente e uma do lado do poente: (.
. . )
A Ocidental estava a 4 minutos de Júpiter; a Oriental mais
vizinha
estava, também, a 4 minutos, enquanto que a mais Oriental
encontravase a uma distância de 8 minutos desta última.
Estavam
bastante nítidas e situadas sobre o mesmo plano. Mas, à quarta
hora,
uma quarta Estrela tornouse visível, a mais próxima, a
Oriente de
Júpiter, mais pequena que as outras, distante de Júpiter de 0
minutos,
30 segundos, e desviandose da linha que atravessava as
outras, um
pouco deslocada para o norte. (. . . )".
"(. . . ) A dezoito, à uma hora, havia três Estrelas,
das
quais duas ocidentais e uma oriental. A Oriental estava
distante 3
minutos de Júpiter, a Ocidental mais próxima, 2 minutos (. . .
) e a
outra, a mais Ocidental de todas, estava afastada 8 minutos da
que se
encontrava no meio. Todas se encontravam sobre o mesmo plano,
e
aproximadamente com a mesma grandeza. (. . . )".
"(. . . ) A vinte e cinco, à 1 hora, 30 minutos, (pois
nas
três noites anteriores o Céu tinha estado coberto de nuvens)
três
Estrelas apareceram: (. . . ) Duas estavam a Oriente, sendo
iguais as
distâncias entre elas e relativamente a Júpiter, isto é, de 4
minutos;
a única Estrela situada a Ocidente estava a uma distância de 2
minutos
de Júpiter; encontravamse exactamente sobre o mesmo plano,
que
prolongava a Eclíptica. (. . . )".
Esta extensa citação pretende sugerir o clima que rodeia
esta
parte do livro, a dimensão paciente e monótona da série de
observações
que permitirão um dia o salto qualitativo que determinará as
reais
órbitas dos satélites de Júpiter.
Os derradeiros cinco dias, de 26 de Fevereiro a 2 de
Março,
mantendo o tom e o estilo objectivo das anteriores semanas,
introduzem
uma novidade que consiste em referenciar o conjunto dos
movimentos de
Júpiter e seus quatro satélites a uma Estrela Fixa, que se
tinha
tornado visível nesta altura. Tal estratagema permite tornar
mais
nítidas as séries orbitais examinadas, uma vez que essa
Estrela Fixa
serve de marco imóvel que contribui para a exactidão das
medições
feitas.
"(. . . ) A vinte e seis, às 0 horas, 30 minutos,
apresentavamse
somente duas Estrelas: (. . . ) Uma, a Oriente, era distante
de
Júpiter 10 minutos; outra, a Ocidente, encontravase a 6
minutos; a
Oriental era consideravelmente mais pequena que a Ocidental.
Mas à
quinta hora três Estrelas eram visíveis. (. . . ) Para além
das duas
já assinaladas, com efeito, viase uma terceira, do lado do
Ocidente,
perto de Júpiter, bem pequena, anteriormente escondida por
trás de
Júpiter, a uma distância dele de 1 minuto. (. . . )Essa noite,
pela
primeira vez, decidi observar o percurso de Júpiter e dos
Planetas que
o acompanhavam seguindo a linha do Zodíaco, em função da sua
relação a
uma Fixa; com efeito, uma Estrela Fixa ofereciase ao olhar, a
Oriente, distante 11 minutos do Planeta oriental e
ligeiramente
desviada para o sul, da seguinte maneira: (. . . )".
Concluídas as observações a 2 de Março de 1610, Galileu
expressamente refere que estes últimos dias, em que teve a
preocupação
de assinalar a Estrela Fixa nos seus desenhos, visam todos
aqueles que
pretendem comparar tais trajectórias com os dados presentes
nas Tábuas
Astronómicas então reconhecidas como válidas. Isto é, vaise
ao
encontro da concordância com um património de conhecimentos
astronómicos, de forma a enquadrar o desconhecido e a novidade
num
corpo teórico consensualmente aceite. É um exemplo curioso da
forma
peculiar em que o pensamento de Galileu articula momentos de
"ruptura"
com fases de "continuidade", perante o sistema de
conhecimentos que
simultaneamente prolongou e ultrapassou.
"(. . . ) Estas confrontações de Júpiter e dos Planetas
que o
rodeiam, com a Estrela Fixa, pretendi acrescentálas a fim de
que,
graças a elas, todos possam compreender que os percursos
destes
Planetas, em longitude como em latitude, concordam exactamente
com os
movimentos que derivam das tábuas. (. . . )".
8 O ORBE DE CRISTAL
Terminado o diário destes alucinantes dois meses, Galileu
propõe
uma série de considerações finais, que fazem uma espécie de
balanço
das suas dúvidas, convicções e prognósticos relativamente ao
futuro.
Em primeiro lugar, uma dupla confissão, simultaneamente de
sucesso
e impotência. Isto é, sabe que há quatro satélites em torno de
Júpiter, que as suas órbitas são individualizadas, que o
acompanham
num movimento conjunto em torno do sol, mas não foi ainda
capaz de
calcular o período orbital de cada um destes planetas, cuja
existência
acabou de nos revelar! "
"(...) A partir destas observações, ainda que não tenha
sido por
enquanto possível calcular os períodos dos Planetas, podese
no mínimo
enunciar algumas afirmações dignas de atenção. E, antes de
mais, uma
vez que segundo intervalos semelhantes, tanto seguem, como
precedem
Júpiter, uma vez que não se afastam dele, tanto em direcção ao
levante
como ao poente, senão segundo desvios muito estreitos, e uma
vez que o
acompanham de forma parecida no seu movimento retrógado e no
seu
movimento directo, ninguém pode duvidar que descrevem à sua
volta as
suas próprias revoluções, realizando, durante esse tempo,
todos em
conjunto, um movimento giratório de doze anos em torno do
centro do
mundo. (...)".
Após esta síntese, Galileu entende que tais dados podem
ser
mobilizados para um duplo fim, que visa não só uma defesa das
teses
copernicianas, mas também um confronto teórico com outros
modelos
cosmológicos então em vigor. Não nos referimos exclusivamente
ao
modelo geocêntrico, de raíz aristotélicoptolomeica, que era
sem
dúvida o adversário principal, mas a variações mais complexas
então em
vigor, como era o caso da concepção de Tycho Brahe.
Este astrónomo dinamarquês (15461601), de origem nobre,
contemporâneo de Galileu e Kepler, é uma das mais
interessantes
personalidades desta época de transição. Desde muito cedo
vocacionado
para a Astronomia, obtém o apoio da coroa dinamarquesa para se
dedicar
à investigação, tendo acesso a meios verdadeiramente
invulgares,
dentro desta área de estudos. Consegue que lhe seja doada uma
ilha
pelo rei Frederico II, situada entre Copenhague e o Castelo de
Elsinor, em cujas muralhas longamente cismou o príncipe
Hamlet!
Aí constrói um gigantesco laboratóriocidade, a partir de
1576,
que sintomaticamente nomeou Uraniburg, e para o qual não
poupou nem
esforços, nem despesas, a fim de fundar uma comunidade
científica
exclusivamente dedicada à observação dos céus. Tudo foi
cuidadosamente
desenhado com esse fim, sendo de destacar os gigantescos
instrumentos
de observação dos astros, cuja precisão é inexcedível na era
anterior
ao desenvolvimento dos telescópios.
Dirigindo tiranicamente Uraniburg, com temperamento
simultaneamente irascível e folgazão, Tycho Brahe vai
acumulando ao
longo dos anos séries de anotações numéricas (ângulos, datas,
horas,
desvios) relativos a todos os planetas conhecidos, a estrelas
e
constelações, bem como a cometas e supernovas.
O seu sonho era construir um sistema cosmológico
alternativo a
Ptolomeu e Copérnico, recuperando, em parte, a antiga tradição
de
Heráclides. Modelo híbrido, aglutinava em si aspectos
geocêntricos e
heliocêntricos. A Terra era o centro do Mundo e em seu torno
orbitavam
a Lua e o Sol. Mas, por sua vez, à volta do Sol, giravam os
cinco
planetas conhecidos (Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e
Saturno). Tendo
conhecimento da publicação, em 1596, da obra de Kepler
"Mysterium
Cosmographicum", onde se desenvolviam ideias que recuperavam
estranhas
combinatórias de Copérnico com convicções pitagóricas e
devaneios
geométricoplatónicos, resolve convidar o tímido Kepler para
uma
estadia junto a si, de forma a trocarem opiniões e pontos de
vista.
O convite é aceite, mas com intenções dúbias de parte a
parte,
pois enquanto Tycho Brahe reconhecia a vocação
matemáticogeométrica
de Kepler, este necessitava desesperadamente de ter acesso aos
dados
quantitativos na mão do dinamarquês, resultantes dos anos de
trabalho
forçado de Uraniburg. As relações entre estas duas
personalidades tão
diferentes estão recheadas de peripécias, que não é oportuno
agora
relatar, bastando referir que Kepler fica herdeiro dessa
informação,
após 1601, altura em que Tycho Brahe morre. Na posse desses
elementos,
designadamente dos dados referentes a Marte, Kepler vem a
publicar,
em 1609, a sua "Astronomia Nova", um ano antes de Galileu
trazer a
público "O Mensageiro das Estrelas".
Nessa obra ("Astronomia Nova") são correctamente expostas
as duas
Leis que rompem com o dogma do movimento circular e uniforme.
Galileu
conhece este texto mas, espantosamente, não tira as devidas
consequências, pois continuará a sustentar até ao fim da sua
vida
concepções que não entram em linha de conta nem com a forma
elíptica
das órbitas planetárias (1ª Lei de Kepler), nem com o
movimento não
uniforme das translacções em torno do Sol (2ª Lei de Kepler).
Seja como fôr, em 1610, o sistema de Tycho Brahe era
conhecido,
e Galileu deve estar a pensar que as suas descobertas podem
ser um
argumento contra tais teses dum Universo bicêntrico (Terra e
Sol), em
defesa dum modelo coperniciano "puro", que nunca foi capaz de
abandonar!
Ouçamos as suas palavras: "(. . . ) Por outro lado, temos
um
argumento excelente e luminoso para retirar qualquer escrúpulo
àqueles
que, ainda que aceitando tranquilamente a revolução dos
Planetas à
volta do Sol no sistema coperniciano, ficam de tal maneira
perturbados
pela órbita que a Lua faz em torno da Terra enquanto que
estes
Planetas cumprem uma revolução anual em torno do Sol , que
julgam
que esta organização do mundo deve ser rejeitada como uma
impossibilidade. (. . . )".
Referido o argumento de estranheza que resultava da Lua
ser o
único planeta simultaneamente orbitando em torno da Terra e do
Sol,
Galileu afirma que esta excepção deixa de ser incomodatícia e
paradoxal, uma vez que se detectaram 4 planetas (satélites) em
torno
de Júpiter, de forma análoga à das relações TerraLua.
Portanto, já
não é um caso (Lua), mas cinco (satélites de Júpiter e Lua), e
a
excepção passa a normalidade! Só o sistema de Copérnico é
capaz de
integrar, de forma não contraditória, tais irrecusáveis
factos.
"(. . . ) Agora, com efeito, já não temos mais um único
Planeta
rodando à volta de um outro, enquanto que ambos percorrem um
grande
orbe à volta do sol, mas a nossa percepção oferecenos quatro
Estrelas
errantes, rodando em torno de Júpiter, como a Lua o faz à
volta da
Terra, enquanto que todos executam em conjunto com Júpiter, no
espaço
de doze anos, um grande orbe à volta do Sol. (. . . )".
É interessante salientar que Galileu ao referir o facto
dos
Satélites de Júpiter aparecerem por vezes à observação com
grandezas
aparentes que chegam a variar em 100%, reconhecer que não
basta a
explicação radicada num efeito de aberração óptica da
responsabilidade
dos "vapores terrestres". " (. . . ) Todavia, não se deve
silenciar a
razão pela qual acontece que os Astros Mediceus, enquanto
realizam
pequeníssimas rotações em torno de Júpiter, parecem por vezes
mais de
duas vezes maiores. Não podemos de forma alguma procurar a
causa nos
vapores terrestres, porque as Estrelas satélites aparecem
aumentados
ou diminuidos enquanto que, visivelmente, a massa de Júpiter e
das
Fixas mais próximas em nada é modificada. ( . . . )".
Acrescenta também que não basta como explicação referir
que, na
sua órbita em torno de Júpiter, na altura do perigeu, os
Satélites se
aproximam de tal modo da Terra que o seu tamanho aparece
maior,
enquanto que fenómeno oposto se daria no momento do apogeu.
"(. . . )
Que, por outro lado, estas Estrelas se aproximem e afastem de
tal modo
da Terra no momento do perigeu ou do apogeu da sua revolução,
(. . .
)parece absolutamente inconcebível; (. . . )".
É exactamente nesta altura que Galileu nos deixa uma
curiosa e
significativa hipótese, para imediatamente a abandonar como
algo de
absurdo e incompatível com os factos, ao sugerir que as
órbitas dos
Satélites pudessem ser "ovais". Isto é, no momento em que
Kepler tinha
demonstrado nas suas duas Leis da "Astronomia Nova", a forma
elíptica
das órbitas planetárias, Galileu concebe por momentos um
cenário
análogo, através dum "movimento oval". Mas é verdade que lhe
não
atribui qualquer importância, a não ser pela negativa,
lançandose
precipitadamente na sua refutação liminar!
"(. . . ) uma estreita rotação circular não pode de
nenhuma forma
produzir isso e um movimento oval (. . . ) parece ser
simultaneamente
inconcebível e de nenhuma maneira compatível com as
aparências. (. . .
)".
Assim deixando escapar um facto absolutamente vital para a
Ciência
Moderna, Galileu insiste numa explicação baseada na tese dos
"orbes
vaporosos", já utilizada para a Lua e Terra, mas agora
extensível a
Júpiter. Tal orbe seria o responsável pelo aumento da grandeza
aparente dos Satélites no momento do perigeu, altura em que
seria mais
atenuado. Inversamente, no instante do apogeu, porque mais
denso e
extenso, levaria a que os satélites fossem vistos como
francamente
mais pequenos.
"(. . . ) É certo, para além do mais, que não somente a
Terra, mas
igualmente a Lua possuem o seu próprio orbe vaporoso espalhado
à sua
volta, seja devido ao que dissemos mais atrás, seja,
sobretudo, por
causa daquilo que será mais longamente desenvolvido no nosso
SISTEMA.
(. . . ) não parece nada inconcebível colocar um orbe mais
denso que o
resto do éter em torno de Júpiter; à sua volta, como a Lua em
torno da
esfera dos elementos, giram os Planetas MEDICEUS, e devido à
interposição deste orbe quando estão no apogeu, aparecem mais
pequenos, enquanto que no perigeu, por causa do
desaparecimento ou
atenuação deste mesmo orbe, aparecem maiores. A falta de tempo
impedeme de ir mais longe. Que o Leitor benevolente aguarde
mais
factos sobre estes assuntos dentro de pouco tempo. (. . . )".
São estas as últimas palavras escritas no "Mensageiro das
Estrelas", altamente significativas do momento de transição
que
percorre toda a obra de Galileu no que à Física Celeste diz
respeito.
Vivendo entre dois mundos, a sua extraordinária perspicácia
não
impediu que deixasse em torno do seu espírito um derradeiro
orbe de
cristal onde, qual bela adormecida, se sonha a doçura
imemorial duma
perfeição que eternamente nos foge e nos chama.
Porto, Janeiro 1995
Levi António Malho
AS ORIGENS DO SILÊNCIO
Sobre o que não sabemos.
" (...) Vou passar a noite a Sintra por não poder passála em
Lisboa,
Mas, quando chegar a Lisboa, terei pena de não ter estado em
Sintra.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem
consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da
vida... (...)"
Fernando Pessoa, "Poesias de Álvaro de Campos"
I) UM GRANDE FRIO DO ESPÍRITO
O imprevisto percorre as nossas vidas, uma mão vinda sei lá
donde "dá
e tira", sem que saibamos os porquês de certos ventos que nos
levam
para longe, como aquele pássaro que atravessou uma gélida
noite de
orações de Beda, o Venerável Beda.
Singular coincidência esta em que o "ser individual" se
assemelha
à "espécie", em que o sentido que preenche o destino dos
homens se
abre face aos imponderáveis da nossa ignorância sobre
infinitos seres,
infelizmente os mais importantes.
Como aqueles personagens de Pirandello "à procura de um
Autor", o
nosso "Eu", essa coisa óbvia que nos faz reconhecer como Corpo
distinto do Mundo, aquele olhar, sorriso, ruga, que os
espelhos nos
devolvem, é uma "entidade múltipla", uma "arte combinatória",
onde se
cruzam os genes, as culturas, as paisagens, as vozes amigas
que
circundavam a infância, os livros, os sonhos, o caleidoscópio
insondável da Natureza.
O "Eu" é, por conseguinte, uma multidão anónima que se
esconde sob
o nosso nome, um gelo fino sobre o grande Oceano subjacente e
um
ilimitado Céu.
Sabemos o "instante", o aqui, o agora. Flutuamos no Tempo
com uma
displicência de turista, mapa na mão, todas as ruas
assinaladas,
afinal de contas nunca nos perdemos, há sempre um Norte, uma
estrada
donde se vem, um caminho para onde se vai, o Universo não tem
buracos,
"quem tem boca vai a Roma"!
E, todavia, tanta certeza levanos a desconfiar.
Sei que o Tempo nem sempre se apropria como nós queremos,
nós os
que vivemos ao ritmo dos noticiários de trinta em trinta
minutos, da
"síntese do dia", da análise profunda do semanário, dos
balanços de
fimdeano, ou de década.
Mas que sentido faz "1 semana" ou "1 ano" para o
"SapiensSapiens"
(designação que não revela grande modéstia nem falta de
autoestima,
admitase ...), que por aqui anda há 40.000 anos?
"Conhecete a ti próprio!", dizia a máxima socrática.
Mas não está lá dito que basta um retrato "tipopasse",
frenteperfil, o necessário para o Arquivo de Identificação e
Bilhete
de Identidade.
O que afirmo é que ignoramos o essencial, de nós sabemos a
sombra
duma sombra, o nosso Eu é centrífugo, lançanos para a rua,
põenos cá
fora a vêr quem passa, detesta companhia, não por misantropia,
mas por
incapacidade de se escutar.
Em fim de século, a consciência humana está saturada de
"interpretações", de "interpretações de interpretações",
abafada por
signos, ausente do despojamento duma "nudez" que lhe é
insuportável!
Porque há, no mais fundo de nós, um Enigma não resolvido,
quer na
vertente social e histórica, quer na dimensão individual, quer
na
"espécie" a que pertencemos.
Como figuras de banda desenhada, ou personagens de
parábolas
milagrosas, julgamos caminhar sobre as águas e desafiar o
Vazio, só
porque nos recusamos a olhar "para baixo" e nos agarramos uns
aos
outros, não necessariamente por razões de afecto, mas
simplesmente
porque estamos aqui, "apertados" na barca da História, porque
não há
outro local a não ser esse...
Mas o Tempo contém uma opacidade para além da nitidez do
presente, do "instante que faz sentido", mas resiste
pouco aos
espíritos claustrófobos, aos que afastam as estátuas dos
egrégios
avós, arrancam as amarras e se perguntam se o Mundo é um
teatro ou o
Teatro é que é o Mundo, o encenador nunca pode atender, o
guião não
está disponível, "talvez mais logo", como nas palavras do
Senhor Godot
de Brecht.
O nosso "presente" é, fundamentalmente, urbano, citadino,
mediático, aldeiaglobal, "good news, no news...". Porque
estamos à
tona da História, os ritmos das Sociedades Industriais
avançadas
confundemse com a aparência do único mododeestar possível,
a
fugaemfrente é o caminho óbvio, parar é morrer, os
acontecimentos
precipitamse e nós, pobres humanos, passamos uma "vista de
olhos"
para "estarapar", entender, mediatizados por profissionais
da
interpretação dos factos económicos, do agregado monetário
"M3" do
"BundesBank", das declarações do Presidente da Reserva
Federal, das
imagens do telescópio espacial Hubble, das matanças
inenarráveis do
"Ramadão" argelino.
Como se pode ver e falar disto tudo sem perplexidade e sem
espanto?!
Drogados pelos "acontecimentos", caminhamos para uma certa
insensibilidade face ao mundo, agarramonos aos nossos dias,
recusamos
o "nonsens" duma época convulsiva e turbulenta.
Que o processo histórico não obedece às regras da
Geometria
Euclidiana, já o deveríamos saber. Que não há "fundamento
último", a
não ser por consenso de vontades precárias, isso é que se
revela mais
custoso de admitir.
O que afirmo é simples. Avaliemse as "temporalidades
longas",
escavemse os "subsolos da Civilização", metase a mão e a
consciência bem fundo na História e então, no centro da "Luz",
pressentese um entardecer, uma ameaça de despojamento, um
grande
silêncio, uma espécie de "coisa nenhuma, um grande frio do
Espírito.
A consciência do Tempo arrefece em direcção ao "zero
absoluto" se,
duma certa maneira, olharmos e pensarmos o "social", o
"individual", o
"humano", o "biológico" e o "material".
Tal como um "puzzle", estes conceitos parecem encaixarse
bem uns
nos outros e, no seu conjunto, produzem um
"Objectocomsentido". Mas
o que pretendo é chamar a atenção para as "arestas" de encaixe
entre
as várias "peças" e constatar se essa superfície
tridimensional
desejada como "sólido perfeito", não é um cenário de
Hollywood, preso
por arames...
II " AS TIME GOES BY "
Se partirmos das evidências primárias, dos fenómenos banais,
ninguém
contesta que a condição humana é uma combinatória entre o
individual e
o social, sendo bem difíceis de estabelecer fronteiras nítidas
entre
estes dois conceitos.
Aceite este pressuposto, comecemos pelo "objecto" mais
próximo,
aceitando que nada há "mais próximo de nós", que o "Eu" de
cada um de
nós.
Esse "Eu" tem um nome, um sexo, uma data de nascimento, um
território, uma comunidade com a qual interage. A sua "Forma"
resulta
desse ajustamento que teve de fazer em função de "formas" que
lhe
préexistiam ou que com ele coexistiam.
Aparentemente, sabemos quem somos, respondemos pelo "Nome"
quando
nos chamam, orientamonos nas cidades, fazemos compras,
cumprimentamos
com delicadeza ausente o vizinho de cima! Isto é, sedimentamos
a nossa
Vida numa constelação de referentes com nexo aparente,
distinguimos as
ilusões e sonhos das "horas despertas", ajustamos as rotinas
do
quotidiano entre limites tidos como razoáveis.
Mas se tentarmos mergulhar na nossa identidade, naquilo
que faz
com que sejamos esse "Eu", rapidamente seremos confrontados
com
algumas surpresas. O essencial de nós repousa numa espécie de
"treva
primordial", bastando para tal um exercício imaginário
rudimentar.
Claro que sabemos o "Hoje", talvez o "Ontem,", provavelmente a
véspera
da véspera. Mas, à medida que nos afastamos do "Presente", uma
bruma
levantase sobre os nossos dias passados, sabemos que
"estivemos lá" (
senão, não estávamos "aqui" ...), mas algo de desconfortável
irrompe,
nos lapsos de Tempo esvaziados, nas horas, semanas, meses,
anos, que
não reconstituímos a não ser por uma síntese do
"maisoumenos", "não
me lembro bem", pareceme que foi "nessa altura", mas não
tenho a
certeza!
É verdade. As certezas diminuem, não porque sejamos
inseguros,
tímidos, mas porque a consciência é amnésica, deita fora,
recalca,
volatiliza os instantes, para erguer um edifício sintético
autoproduzido onde nos protejemos das ondulações informes do
Oceano
antiquíssimo.
A verdade é que, quando procuramos, individualmente, as
primeiras
"imagens" da presença de "nós em nós", esse local do Tempo em
que nos
vemos como um "Eu", deparamos com um acontecimento
interactivo,
espécie de "flash" dificilmente datável, algo como um rosto de
mãe que
nos olha e afaga, uma sensação tépida, um balão colorido na
nossa mão,
um dia de chuva, um brinquedo, um rumor, um aroma, uma vaga
percepção
táctil.
E antes?!...
Esse "antes", para nós, é inexistente.
No nexo causal, a Razão diznos que "teve de lá estar", e
nós com
"ele", claro. Mas, por mais que nos esforcemos, "ele"
desapareceu para
sempre. Um desmaio hipnótico da nossa Memória é tudo o que
resta e
ninguém se lembra de ter nascido, do desconforto da primeira
respiração, do momento em que o nosso corpo se "separou", para
sempre,
em direcção aos limites de si próprio.
Descobrimos então que não somos autónomos, que não "nos
pertencemos" senão por um acto de Vontade, que dependemos
totalmente
dos outros, daqueles que nos dizem que "aquiloaqueleaquela"
éramos
nós, aí está um retrato amarelecido pelo tempo e a gente
acredita, não
há outro remédio!
Tenhamos, por conseguinte, consciência que não estamos a
fazer
outra coisa senão "acreditar", "ter fé", "crer", jamais nos
sentiremos
como "presentes" a tudo "isso", ninguém nos peça
responsabilidades,
declarações, compromissos de honra. Moral da história: na
nossa
"autopsicogénese" somos estruturalmente passivos,[]
flutuamos numa
espécie de vento que jamais saberemos donde veio.
Restanos admitir que esse "testemunho" é credível, que
tudo isto
é normal, sempre foi assim, é nossa condição, um pormenor
insignificante, um detalhe neurótico, nem vale a pena pensar
nisso. Só
um espírito desconfiado se lembraria de tão bizarras
divagações. Só
nos faltava mais esta. Ora! Ora!
Dirseá, todavia, que talvez tenhamos seguido um caminho
excessivamente particularizado. O "Indivíduo" é
insignificante, o que
conta é o "Eu" no contexto social, isto é, as Civilizações e a
História "longa", pois essas colmatarão as lacunas das
"histórias
individuais".
Mas também esta tese nos revela algumas surpresas, quando
nos
movemos em direcção ao "equivalente social" da
autoconsciência
individual.
Todas as "Histórias Universais" são uma espécie de triângulo
equilátero invertido, do ponto da vista dos dados
informativos. Tanto
faz serem em três volumes, como em vinte volumes, a proporção
mantémse. Para o mais remoto "Passado", a distância
vertiginosa do
"Presente", na "PréHistória" (designação altamente
discutível...)[]
os assuntos arrumamse, com aparente lógica, mas em "espaços
expositivos" curtos. Nos dez volumes hipotéticos da nossa
imaginária
"História Universal", Grécia e Roma aparecem lá para os fins
do 2º
tomo, na melhor das hipóteses. Depois, um/dois volumes para o
"Período
Medieval" às vezes o "Renascimento" ainda cabe aqui e
os
restantes cinco volumes para os últimos cinco séculos e em
proporções
inversas de páginas relativamente à distância que nos aproxima
dos
séculos XIX e XX.
Esta análise tem excepções, mas creio representar uma
realidade de
fundo, que não é culpa de qualquer "avareza" dos editores, mas
do
simples facto da pulverização e extinção de
"documentosmonumentos", à
medida em que nos encaminhamos das Sociedades Industriais para
o
"Mundo Camponês", e deste para a sua origem, no MédioOriente,
há
aproximadamente 4.000 anos. Para "trás", ficam 36.000 anos de
Caça e
Recolecção, as coisas tratamse já não na escala do "século",
mas do
"milénio", a imprecisão cresce de forma logarítmica, não há
livros, os
papiros desfazemse em pó, as pedras partiramse, as estações
arqueológicas procuram fragmentos de plâncton no oceano do
Tempo.
Algumas "inscrições", um maxilar, uma rótula, nos dias bons,
um
crâneo, temperados pela ajuda da paleobotânica mais o
"carbono 14",
são o melhor que a nossa Ciência prestigiada consegue
arregimentar ao
gigantesco vazio de Informação.
E nem sequer podemos ter esperança no progresso dum
"Conhecimento
Futuro", pois estamos perante fenómenos irreversíveis em que,
quando
muito, preencheremos mais algumas lacunas, produziremos mais
alguns
modelos teóricointerpretativos, mas a verdade que se impõe é
a duma
ignorância de fundo face ao nosso "nascimento social", do
ponto de
vista da Espécie.
Para trás dos 40.000 anos, a cegueira aumenta e os dados
diminuem.
100.000 Anos para o "SapiensNeandertal", três a dez milhões
de anos
para a Antropogénese, a passagem da floresta à savana,
"Erectus",
"Habilis", "Ramapitecus", pequenas luzes na grande noite. Só
memória
de palavras talvez ditas, só crescimento do Silêncio!
III " O FEITICEIRO DE OZ "
Sem sustentar, de forma alguma, a inexistência de efectivo
progresso
na consciência que vamos construindo sobre o Mundo, pois é
óbvio o
extraordinário desenvolvimento da informação que sobre ele
conquistamos, pretendese chamar a atenção, no presente texto,
não
para "aquilo que se sabe", mas para o que se "continua a não
saber".
Nesta matéria há duas posições paradigmáticas a
considerar, que se
sustentam num pressuposto de base diferente. A primeira,
admite a
total "transparência potencial da Natureza" e a adequação
essencial da
consciência humana para a descoberta dos seus limites, tudo
dependendo
duma questão de Tempo, em que o Futuro ocupa um papel
sistematicamente
positivo, em direcção a uma espécie de "Teoriado Tudo"
("TOE").
Uma outra atitude, apesar de com esta compartilhar uma
dimensão de
racionalidade do "Real", admite a possibilidade de "limites
ontológicos" à total desvelação do Universo, por não estar
provado que
a Natureza foi "construída" como um "puzzle" para o "Homo
Sapiens"
pacientemente colar e pendurar na parede, no "final" da
História...
Repõese aqui, num contexto amplo, a questão do
"antropocentrismo"
e duma espécie de boaconsciência quanto ao facto do Universo
estar
dimensionado para se adaptar preferencialmente às espécies
"cerebralizadas", no conjunto das quais o "SapiensSapiens" se
apresentaria como predestinado à conquista do "segredo final".
Não digo que não desejaria que tal se verificasse, mas
tenho de
reconhecer que tal "voluntarismo" pode não se adequar à
"estrutura
profunda do Mundo", se é que este conceito é viável!
Nesta ordem de ideias,uma breve reflexão sobre a Biogénese
e
Cosmogénese, pode revelar alguns elementos curiosos.
Não discutirei aqui a hipótese da existência duma "unidade
de
fundo" no interior daquilo a que se chama a "Vida", conceito
bem mais
complexo do que parece, se atendermos ao que se tem passado
nos
últimos 30 anos. A separação abissal entre o "vivo" e o
"nãovivo"
(matéria/vida), é actualmente um reino de sombras, em que o
limiar é
guardado pela insólita estrutura dos "vírus".
Perante estes, é bem difícil de responder se são ou não
"seres
vivos" pois, apesar de partilharem com a "vida normal" o facto
de
serem possuidores dum código genético, essa longa sequência de
"ADN"
desvelado na 2ª metade deste século por Watson e Crick, a
verdade é
que, na ausência de outras células que "parasitem", os vírus
comportamse como entidades inertes, sem autonomia
replicativa,
incapazes, portanto, de se "multiplicarem".
Na hierarquia da biogénese, apresentamse como uma
entidade
"minimalista", mas onde o essencial, "menos qualquercoisa",
está
presente.
A verdadeira dificuldade está em compreender como "se
passa do
"nãovivo" ao "vivo", pois apesar da experiência de Stanley
Miller[]
revelar a possibilidade de complexificação dum meio químico
rudimentar
poder originar macromoléculas duma grande complexidade,
através duma
"ars combinatoria" já suficientemente provada, a verdade é que
tal
experiência nos leva somente à "antevéspera" da Vida e à
síntese de
alguns "compostos" constituintes do futuro código genético.
Mas não nos iludamos, dado que ainda não foi possível
"criar e/ou
sintetizar" laboratorialmente um ser vivo "pleno", por mais
simples
que seja...
A biogénese lançanos para estratos cronométricos de
duração
extremamente longa, pois, em vez dos 12 milhões de anos que
nos levam
dos "Ramapitecos" ao "Sapiens/Neandertal", necessitamos de
enquadramentos temporais que remetem para as "eras geológicas"
e a
formação do planeta Terra.
Admitindo 4.600 milhões de anos, como um tempo consensual
para a
idade da Terra, a biogénese pode ser um fenómeno arcaico, que
remontará há 4.000 milhões de anos.
Apesar da inexistência de fósseis que sustentem uma tal
antiguidade, a probabilidade destas datações é verosímil, se
atendermos a que os "vestígios efectivos" já apresentam uma
complexidade que implica a eventual préexistência de
"organismos" que
lhes são anteriores. Nesta ordem de ideias, é bem mais difícil
entender "como se passa" do "nãovivo" ao "vivo" que aceitar,
com
alguma lógica, a transição das primeiras entidades dotadas de
vida até
à incomensurável diversificação das espécies e colonização
biológica
da Terra.
A profunda diversidade orgânica que a evolução nos revela,
assentando sempre na plataforma básica do "código genético" e
da
monótona universalidade dos seus componentes básicos,
sugerenos que a
"lógica da Vida" vai na direcção da "diversificação", nunca
apostando
tudo num único organismo/espécie, por mais eficaz que ele
pareça nas
suas correlações adaptativas com o respectivo biótopo.
Se no "darwinismo" e "neodarwinismo", o Tempo e o Acaso,
são os
verdadeiros obreiros da "evoluçãotransformação" das espécies,
não
deixa de ser curiosa uma reflexão sobre um eventual "Sentido"
que
presidiria à biogénese. Há uma tendência usual de
sobrevalorizar a
"cerebralização" como a verdadeira chave da evolução, espécie
de força
motriz que "empurra" as Espécies em direcção à grande linha
dos
Mamíferos e destes à Antropogénese, no topo da qual o "Homo
Sapiens"
representaria a "saída" por excelência.
Sem negar que esta análise, aparentemente, é convincente e
até
"lisongeira", não podemos esquecer que a consciência e as
informações
que actualmente dispomos sobre a evolução das espécies, não
justificam
a total transparência desta interpretação.
A lógica da Vida, "se lógica tem", é "manterse viva"!
Nela não
está inscrita a necessidade irreversível duma hierarquia
"progressiva"
em direcção aos "grandes cérebros" que, apesar de actualmente
triunfantes, só podem reivindicar alguns milhões de anos de
existência.[] Deveria servirnos de exemplo qualquer visita a
um Museu
de "História Natural", onde jazem às dezenas, fragmentos e
painéis
sobre comunidades biológicas bem "sucedidas" e de duração
prolongada,
e que actualmente se reduzem à poeira das prateleiras...
Se os sistemas nervosos centrais complexos constituem uma
vantagem
adaptativa face a ecosistemas em rápida mudança, pois não
necessitam
de "esperar" pelas mutações dos genes para se adequarem às
rápidas
transformações do biótopo, também é possível reconhecer que há
uma
espécie de "excesso" nessas "redes neuronais finas",[] sobre o
funcionamento das quais "o que sabemos" é incomensuravelmente
inferior
ao que "ignoramos".
Numa outra perspectiva, há algo de "monstruoso" na
maravilha que,
de facto, é um cérebro "Sapiens"! É como se algo de
"excessivo",
teratológico quase, fosse entregue a seres instáveis, frágeis,
subdimensionados para efectivamente "controlarem" esse
instrumento
evolutivo verdadeiramente excepcional.
Digo, por conseguinte, que um grande Enigma nos habita.
E um enorme "Silêncio" está dentro de nós, zona obscura,
campo
cego, presença indizível. Nada está escrito em sítio nenhum,
garantindonos o "cume da Criação". A estrada do "humano" pode
dirigirse a "sítionenhum". Tal será lastimável, mas sei que
esta
afirmação é simplesmente um desabafo piedoso dum "cérebro
Sapiens".
Tal como os corais que produzem os grandes recifes, no
interior
dos quais uma espantosa diversidade biológica interage e
sobrevive,
esquecendo que tal sobrevivência se deve à "Fronteira" que o
próprio
recife é, convém lembrar que o micromundo que aí existe é uma
pequena
"bolha" preciosa, cercada pelo incomensurável Oceano que, dia
e noite,
pressiona essa região excepcional.
Da mesma forma que não se "podem fazer omoletes sem se
partir
ovos", não se pode entender um "sistema vivo" sem pensar o
"nãovivo"
que o constitui. Apesar de não sabermos o que faz com que um
"agregado
molecular" seja um "ser vivo", a verdade é que sem "ele", sem
esse
conjunto inerte de componentes "materiais", nunca esse
"sistema vivo"
seria possível.
É natural que pensemos as "dependências materiais" da
Biogénese,
levandonos tal meditação à paradoxal "infinita distância" e
"infinita
proximidade" de nós próprios. Neste derradeiro cenário, está
prestes a
entrar em cena, utilizando uma linguagem mecanicista e
desactualizada,
a execrável "Matéria"!
As perguntas sobre a natureza da "Matéria" são talvez as
mais
antigas da História cultural daquilo a que se chama o
"Pensamento
Ocidental", cujas origens remontam à aparição do pensamento
filosófico, nas cidades gregas da Ásia Menor, por volta do
séc. VI
A.C.
Se é um lugarcomum afirmar que a Filosofia instituiu uma
passagem
do "Mito" ao "Logos", talvez seja mais importante salientar a
névoa
que cobre este "local de passagem", acentuando que todos os
grandes
Mitos de Criação, anteriores no Tempo e deslocados no Espaço,
por
relação às origens da Filosofia, se posicionaram face à
"matériaprima" do Mundo, o que é outra forma de dizer a
"Substância
básica" que lhe está subjacente. Esta questão é a "nascente"
de todos
os Deuses e de todas as Religiões, uma vez que é bem difícil
encontrar
um "Mito de Fundação" que não tente responder ao problema da
origem do
mundo e das "redes causais" que presidem a uma historicidade
que vai
das "Origens" até ao "Quotidiano" da comunidade antropológica
que
sustenta, transporta, actualiza e vivifica o Mito.
O que o pensamento filosófico faz, nas suas origens
gregas, é
"naturalizar" progressivamente o problema, fazendo um esforço
para
separar o domínio do "Logos", do espaço das "Divindades", que
se
desloca para o domínio das convicções íntimas de cada um,
assim
permitindo a discussão construtiva sobre a natureza dos 1ºs
princípios. Os Gregos debateram exaustivamente o problema da
"substância primordial" ("arquê") e admitiram soluções
monistas e
"monosubstanciais" tais como a "Água" de Tales, o "Ar" de
Anaximenes,
o "Fogo" de Heraclito, o "Apeiron" de Anaximandro, os
"Números" dos
Pitagóricos, a partir dos quais por uma dialéctica descendente
de
cariz naturalista se partia da "Unidade Inicial" para a
"Pluralidade
Final" que actualmente contemplamos.
Este novo tipo de pensamento instaura uma "fractura" nas
Consciências, pois a pluralidade das respostas sugere aos
indivíduos
um "campo de insegurança" e incerteza, dado ser óbvio que não
podem
ser todas Verdadeiras, mas podem ser, em última estância,
todas
Falsas, ou então, apenas delimitam fragmentos de Verdade que
deverão
ser postos à prova da Razão e da Experiência.
O pensamento grego percorreu quase todas as veredas
possíveis
deste "universo de dúvidas" e, à medida que a História da
Filosofia se
encaminha para o período áureo de Platão e Aristóteles, o
problema da
"Substância Primordial" complexificase, não se tratando agora
de
escolher A e/ou B, isto é, Ar, Água, Terra e Fogo coexistem[]
numa
vasta teia de relações que dão origem à "Física Antiga", nas
suas
diferentes versões.
O problema da "Matéria" é abordado de duas grandes
maneiras, que
divergem entre si, não quanto ao facto da sua "existência" no
plano do
Mundo, mas quanto à sua "natureza íntima".
Platão entende o Mundo como um "Ser Vivo" ("Zoon") dotado
de
"Alma", cuja "autoria" remete para o projecto de Bondade dum
"DeusDemiurgo" que deseja criar "algo" ( o Mundo) que se lhe
assemelhe. Se tal Mundo deve ser Visível e Tangível, e por
isso será
composto de "Fogo" para o "iluminar" e de "Terra", para ser
"tocável",
não deixa de ser verdade que este mesmo platonismo tem sobre a
"Matéria" uma posição de desvalorização e desconfiança quanto
ao seu
poder autosubsistente, uma vez que a considera uma "prisão da
Alma",
um "simulacro" a ser ultrapassado, sob pena de habitarmos para
sempre
um reino de trevas e de sensações espúrias, que não levam a
parte
alguma. É esse o sentido do "Mito da Caverna"!
O verdadeiro Mundo apenas é acessível ao Espírito humano
por uma
espécie de "Psicanálise das Memórias arcaicas", em que a
"Alma"
recorda um "Tempo Primordial" durante o qual "contemplou" a
verdadeira
natureza das coisas, que reside, de facto, num "Mundo de
Ideias e
Arquétipos", sinónimos de perfeição absoluta, onde nada muda e
nada se
transforma. O Platonismo abre caminho a um "Conhecimento"
entendido
como depuração de sensações, consciência aguda das máscaras e
simulacros da experiência empírica, via de despojamento
míticoreligioso, processo ascético da Filosofia em direcção a
um
"Mundo Ideal".
Nos bancos da Academia, oriundo da Macedónia, um aluno
atento
tomava notas, bebia estas ideias e estaria predestinado a
suceder a
Platão na direcção da Escola, como o mais qualificado
representante do
núcleo duro do Platonismo. Mas Aristóteles acabou por virar o
Mundo (
"platónico" ) do avesso, expurgando para o "Nada" esse "Mundo
das
Ideias", substituindoo por um empirismo dinâmico, de natureza
experimental, considerando que a consciência humana encontrará
as
"Leis" ("Universais") através duma análise das "coisas
particulares",
dos entes individuais que a percepção nos fornece. Constrói um
pensamento indutivo, antepassado directo da "estrada real" da
Ciência
Moderna, nascida no século XVII. A "Matéria" é indestrutível
e,
infelizmente, nebulosa e inacessível " emsimesma". Existe
nas
"CoisascomForma" que têm em si, no presente, na actualidade
("Acto"), um determinado rosto e uma certa configuração, mas
que estão
abertas à "Mudança" e às "Transformações", isto é, à
Temporalidade e à
possibilidade de serem "OutrasCoisas" ("Potência"), por meio
da
incorporação doutras "Formas" na sua materialidade própria.
Com Aristóteles desaparece a eternidade perfeita de um
"Mundo de
Arquétipos" préexistente, substituido pelo poder das Leis
Universais
descobertas pela inteligência humana por "abstracção" e
"generalização".
A estas duas atitudes (Platónica e Aristotélica) deve
juntarse a
ideologia "Atomista", esse materialismo antigo que vai de
Leucipo e
Demócrito até ao "De Rerum Natura" de Lucrécio, no qual o
mundo é um
conjunto de Átomos e de Vazio, infinita interpenetração de
elementos
"simples", a que sabiamente presidem as Leis oriundas dum
"Acaso"
probabilístico, um perpétuo fazerdesfazer, que dá à Natureza
um
sentido de "realidade" e "precaridade", que abrirá portas ao
Cepticismo Antigo e às Escolas de tipo "Ético", corporizadas
nos
Estóicos e Epicuristas.
O debate futuro em torno do problema da "Matéria" vem, em
parte,
destas posições e das combinações que entre elas se podem
fazer.
A Revolução Científica do século XVII, articula duma forma
singular as perspectivas atomistas, o espírito aristotélico e
o
"Realismo Intuitivo" do "Mundo dos Arquétipos" de Platão.
Admitamos que a linha mais "dura" das Ciências
FísicoMatemáticas,
está mais do lado duma síntese do "Atomismo" ( quanto à
natureza da
Matéria) e do "Empirismo sensitivo" de Aristóteles, do que do
lado de
Platão. Mas se pensarmos que esta posição se socorre de
formalismos
Geométricos e Matemáticos, que não "decorrem" de qualquer
experiência
indutiva, mas duma Intuição de axiomas autoevidentes, então
redescobrimos uma nova versão do "Mundo das Ideias" de Platão,
sob a
epiderme mutante duma Natureza aristotélicoatomista.
É exactamente aqui, neste local de "convergência
paradoxal", que
se ergue a obra e o pensamento de Newton, tornado o paradigma
por
excelência da Ciência e da Racionalidade dominante nos séculos
XVIII e
XIX, onde triunfam epistemologicamente as concepções
"Iluministas" e
"Positivistas".
As perspectivas neoatomistas da "Matéria" encaminhamse
para a
ideia duma "simplicidade final" e irredutível do Mundo, tudo
parecia
"funcionar" bem e adaptarse a este modelo, consentindo até
algumas
posições extremadas de optimismo arrogante quando, nos finais
do
século passado, alguns Físicos se lamentavam da "vida triste"
que
aguardaria os seus "futuros" colegas, pois o segredo do Mundo
estava
revelado para todo o sempre!
Mas a verdade é que, "sob o atomismo", uma "bomba" se
escondia,
abrindo portas ao renascimento das contradições e paradoxos
que
atravessam o pensamento científico do século XX.
A aparente "simplicidade" do Atomismo desdobravase numa
incomensurável região "intraatómica", onde "partículas
elementares"
emergem de todo o lado, fazendo reaparecer o "Reino do
Múltiplo" no
exacto território onde pareceria terse estabelecido para
sempre o
"Triunfo do Uno"!
A "trindade" electrãoprotãoneutrão esvaise num
panteísmo
infindável de novas "entidades", fazendo surgir a ameaça dum
"Caos"
fervilhante, onde antes um "Cosmos" parecia garantido para
sempre.
Vivese actualmente, quanto ao conceito de "Matéria", com
a
dualidade "corpúsculoonda", pois a experiência ensinanos que
uma
"partícula elementar" não possui uma "configuração"
globalmemte bem
delimitada no "EspaçoTempo", apresentandose com dupla face
em função
da manipulação experimental que sobre "ela" façamos.
Não se entenda esta "Indeterminação" como um mal, mas
simplesmente
como um facto paradoxal, experimentalmente demonstrado durante
o
século XX.
O debate aberto sobre o "Indeterminismo Quântico" remonta
aos
"anos 20/30", onde se salienta a posição de Albert Einstein,
que
jamais aceitou a "efectiva realidade" desse Indeterminismo,
explicandoo como um "facto provisório", uma vez que
existiriam
"variáveis escondidas", que acabariam por clarificar esse
paradoxo,
uma vez detectadas através de meios teóricos e experimentais.
Einstein é um "filho" de Newton e, como tal, sustenta que
há um
"Absoluto" nas Leis da Natureza, não só porque "(...)o bom
Deus não
joga aos dados(...)", mas porque há um equívoco na opinião
pública
ácerca da expressão "Teoria da Relatividade". Tal Teoria,
desenvolvida
por Einstein entre 1905 ( "Relatividade Restrita" ) e 1915/20
(
"Relatividade Geral"), não é "Relativista" no sentido
filosófico e
epistemológico do termo, mas sim, pelo contrário,
"Absolutista". A sua
designação decorre duma espécie de homenagem a Galileu e ao
seu
"Princípio da Relatividade", um dos dois postulados
fundamentais da
"Teoria da Relatividade Restrita". É curioso saber que, por
vontade de
Einstein, a sua "Teoria" deveria designarse por "Teoria do
Absoluto"...
Os verdadeiros "relativistas", no sentido
filosóficomatemático do
termo, são os defensores da "Física/Mecânica Quântica", que
assume uma
Indeterminação de fundo na constituição íntima da "Matéria",
que não
resulta de qualquer "atraso" da Ciência, mas duma "propriedade
essencial" do universo em que vivemos.
Apesar do debate continuar em aberto até hoje, é
interessante
salientar que, até à data, não puderam ser desmentidas as
teses
sustentadas pelo "Indeterminismo Quântico".
Nunca, como durante o século XX, se avançou tanto no
conhecimento
da "Matéria" e dos seus "constituintes". Os dados adquiridos
levamnos
a romper o ciclo "presente e local" em direcção a um
alargamento
cósmico das questões levantadas sobre a natureza "atomista" da
"Matéria".
Na verdade, nenhuma das moléculas e átomos que a "compõe"
é, se
assim se pode dizer, "deste Mundo"! A origem dos átomos
levanos
necessariamente para fora da Terra, em direcção às Estrelas,
único
local de "síntese" atómica actualmente conhecido. É no seu
interior
caótico e fervilhante que se preparam, durante séculos de
séculos, os
ingredientes que, um dia, fabricarão planetas, oceanos, algas,
répteis, aves, a infinita diversidade da Vida.
Porém, um Enigma se resolve e outro irrompe, lançandonos
para o
verdadeiro "princípio de Tudo". Sendo as Estrelas compostas
fundamentalmente por Hidrogénio e Hélio, os 2 elementos mais
simples e
abundantes da cadeia atómica, a verdade é que não os produzem!
Assim sendo, a origem destes dois tipos de átomos
transportanos
para a antecâmara das origens do universo, em direcção ao
instante em
que se sintetizaram as "partículas elementares" (electrões,
protões,
neutrões, entre outras), a partir dum incomensurável "local"
de
instabilidade térmica, espécie de "barreira luminosa", que
pouco mais
nos permite que a construção de modelos físicomatemáticos
compatíveis
com uma razoável racionalidade, viabilizada em parte pela
"prática"
insólita dos grandes "aceleradores de partículas", onde se
tenta
recriar a fronteira para além da qual a nossa ignorância é
quase
total.
Os actuais modelos cosmológicos, apoiados na "Teoria do
«BigBang»", dizemnos que há 15 biliões de anos, do "Vazio
Quântico",
emergiu o "contínuo EspaçoTempo", em condições de natureza
explosivadispersiva, caos térmico, no interior do qual todos
os dados
se jogaram nos primeiros três minutos.
Isto ouvem as nossas pobres almas e, no limiar do espanto,
reencontramos o mistério do Mundo e de nós próprios. A viagem
do
Pensamento ainda mal começou. Pode ser que, lá longe, o
"Feiticeiro de
Oz", nos consinta percorrer, com alegria, esta "Yellow brick
Road"!
Porto, Março de 1988
(Levi António Malho)