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FILOSOFIA ­­ ARTIGOS DIVERSOS

SEGUNDO VOLUME

   OS IMPREVISÍVEIS ENCONTROS
  
     ­­­ Memórias de um "Museu Imaginário"
                                      
         "(...) O asfalto estava pejado de carros que buzinavam 
sem
     tréguas. As motos subiam para cima dos passeios e abriam 
caminho
     por entre os peões. eu pensei em Agnès. Havia dois anos, dia
por
     dia, que a imaginara pela primeira vez;estava então à espera
de
     Avenarius numa cadeira de repouso do clube. Fora por isso 
que hoje
     tinha pedido uma garrafa de vinho. O meu romance acabara e 
eu tinha
     querido festejá­lo no lugar onde nascera a sua primeira 
ideia.
         Os carros buzinavam, ouviam­se gritos de cólera. Numa 
mesma
     atmosfera, outrora, Agnès desejara comprar um miosótis, uma 
só flor
     de miosótis; desejara trazê­la diante dos olhos como último
     vestígio, mal chegando a ser visível, da beleza. ".
     
     
     Milan Kundera, "A Imortalidade".
     
   
   
   
   
   I ­ EXPOSIÇÃO TEMPORÁRIA ­ os "primitivivos".
   
   
   
       Há, na vida, incomensuráveis ironias! O mundo da Criação
   abriu­se­me de forma insólita, num antiquíssimo Natal já 
desfeito na
   bruma da infância quando, num amanhecer mágico e gelado, sobre
um
   fogão de lenha, num sapato sob a chaminé, estava um livro de 
colorir e
   uma caixa de lápis de côr, mesmo à beira dum "arremedo" de 
tanque de
   guerra, com lagartas em borracha, que cuspia umas vagas 
faíscas pelo
   canhão de "folheta", sempre que se fazia pressão no chão da 
cozinha...
       Claro que passei a manhã a gastar a pedra de isqueiro 
escondida
   por trás dessa artilharia, imaginando índios ferozes, como nos
filmes
   de Gary Cooper ou as bandas desenhadas de Roy Rogers, e eu a 
debitar
   metralha em todas as direcções dentro do monte de lata da 
imaginação.
       Acabados os "fulminantes", com fastio, dediquei­me a 
aguçar
   meticulosamente os lápis de côr, em caixinha de cartão, de 
aparência
   análoga aos maços de cigarros que então se vendiam. O bico era
mole e
   desfazia­se, a madeira que suportava o "crayon" esfarelava­se 
e o
   lápis só diminuia de tamanho na vertigem do aguçar, até se 
transformar
   num "coto" informe, mesmo para dedos infantis!
       Lá pintei como pude umas inconsequentes figuras sem 
relação entre
   si, um urso polar, uma galinha, uma margarida, um lago com 
nenúfares
   que logo me fez trazer gulosamente à memória o desejo dum jogo
de
   cartão da Majora, em opulenta exposição no "Bazar dos 3 
Vinténs" numa
   esquina da R. de Cedofeita (ainda hoje, degradado e doente, lá
   permanece!), onde num aquário de cartolina se deitavam vários 
peixes
   de papelão colorido, uma sardinha, um goraz, um linguado, uma 
espécie
   de baleia (para mim, nessa altura, classificada como "o maior 
peixe do
   Mundo"), fauna aquática essa que terminava numa argola 
metálica que
   lhes perfurava um local algures entre as guelras e os olhos.
       Então, com umas canas de madeira pintada a côr­de­rosa, aí
com 15
   cm. de comprido, descaía um pedaço de "fio do Norte" onde se 
suspendia
   um íman e os jogadores pescavam, um de cada vez, marcando­se a
   pontuação no fim!
       Quanto à pintura a lápis de côr, gastou­se nessa manhã de 
Natal e
   o livro perdeu­se nas mudanças de casa que entretanto se 
deram!
       As artes plásticas eram então coisa estranha, depositadas 
em
   museus onde se andava pé­ante­pé, com respeito e silêncio, 
como nos
   velórios, cochichando baixinho e, nunca por nunca, tocando em 
nada!
   Molduras enormes, de "torcidos e dourados", delimitavam esses
   incomensuráveis metros de telas, onde se presumia que estava 
"A Arte"
   e eu, indiferente, só pensava quando acabaria o martírio e ia 
jogar o
   pião com o Horácio, vender velhos livros a um alfarrabista, 
para tocar
   os proventos por bilhetes nas sessões de "2 filmes" no "Carlos
   Alberto", salão cinéfilo das "classes piolhosas" do Porto, bem
próximo
   daquela sala mágica do "Cinema Paraíso"!
       Arte, arte, eram as belas bandas desenhadas do "Príncipe 
Valente",
   do "Cavaleiro Andante", as aventuras de "Mortimer & Blake" em 
torno da
   "Marca Amarela", os irmãos Dupont de Hergé, a Castafiore e o 
foguetão
   de quadrados vermelhos e brancos na "Viagem à Lua" de Tintin e
Milou.
   Pegava em papel vegetal e "copiava por cima", pensando na 
divina
   injustiça que dava às minhas mãos um balancear canhestro, 
língua ao
   canto da boca para ajudar à concentração do plágio, mas nem 
"copiando
   por cima" saía Arte!...
       Aquilo era mistério profundo,talvez quando crescesse 
soubesse o
   "porquê"!
   
   
   
   II. PISO 2 ­ "Sala das Memórias"
   
   
       Cresci, como todos, nos dias intermináveis que antecedem 
os verdes
   anos, Liceus onde se "formava" para entrar nas aulas, 
corredores
   gélidos e marmóreos, contínuos com fardas azul e cinza, chefes
e
   sub­chefes de Turma, que marcavam a giz no quadro os "MC"
   (Mal­Comportados) antes do Professor entrar, tudo em pé, no 
bolso
   fisgas e canivetes, caramelos comprados a um pobre homem que 
aguardava
   pacientemente a saída das aulas junto ao "Largo do Priorado", 
mesmo ao
   pé da velha igreja românica de Cedofeita, com um tira de couro
luzidia
   por trás do pescoço, que agarrava uma caixa de madeira 
envernizada,
   com dois vidros­tampas por cima, sob os quais, embrulhados em 
papel
   celofane multicolor, espreitavam coisas açucaradas de 
mil­cores, do
   amarelo solar ao verde­bílis.
       Todas estas iguarias se "propunham", quais donzelas do 
"Bairro
   Vermelho" de Amsterdam, à nossa inescrutável ganância de 
"doce"!
   Aquilo partia­se nos dentes, parecia grude que nos impedia na 
próxima
   meia­hora de abrir os maxilares, um "crac­crac­crac" fazia 
estalar os
   ouvidos e tudo por cinco tostões..
       Arte era acertar com uma espingarda de setas nos alvos de 
papel da
   Feira Popular, o "Palácio", como então se chamava, em memória 
do velho
   "Palácio de Cristal", onde em miúdo alugava bicicletas com 
duas rodas
   de apoio atrás, nas manhãs de Domingo, e atravessava como uma 
bala as
   sombras frescas da "Avenida das Tílias", por entre barracas 
fechadas
   dos "Chocolates Regina", das tendas que faziam balões de 
açúcar, as
   "barbas­de­velho", e então já era o Alves Barbosa, o maior 
ciclista do
   mundo, só porque ganhava a "Volta a Portugal em Bicicleta"!
       Apareceram então no Porto os primeiros "arremedos" de 
"Galerias",
   onde gente estranha, vestida "à Artista", perorava em gesto 
largo e
   linguagem bizarra, sobre a "violência" dum azul, o onirismo
   surrealista duma paisagem onde não havia nem árvores, nem 
flores, nem
   pássaros, mas simplesmente uns objectos "espongiformes", que 
se
   derretiam na diagonal das obras, como aqueles relógios 
viscosos de
   Dali.
       Não, ali não entro! Que vou fazer junto daqueles olhares
   iluminados de "entendidos", ainda mais hostis aos de "fora do 
clã",
   que os guardiães caninos do "Soares dos Reis".
   
   
   
   III. SALA 3 ­ "Exposição bibliográfica"
   
   
   
       Arte era a Literatura, os "livros­só­de­ler", humildemente
   confesso que começaram por ser os da colecção "Búfalo" e 
"Bisonte",
   depois os policiais de Mickey Spillane, as aventuras 
extra­galácticas
   da colecção "Argonauta", o Júlio Verne entremeado pelo medonho
   facalhão de Sandokan, o Tigre da Malásia. Até que, um dia, 
numa
   promoção de livros, gastei 500$00, uma fortuna de 2 anos de 
mealheiro,
   e recebi em casa, pelo Correio, uma série de Romances, a 
verdadeira
   abertura da minha alma banal à Literatura. Como era normal na 
"geração
   de 60", comecei pelos "estrangeiros", que Portugal era uma 
"chumbada",
   e pronto...
       Que espanto ao encontrar "A Pérola" e "A um Deus 
Desconhecido" de
   Steinbeck, "O Velho e o Mar" e "Por quem os Sinos dobram" de
   Hemingway, "Um Certo Sorriso" de Françoise Sagan, "A Ponte", 
de
   Manfred Gregor, "A Peste", de Camus, os longos romances de 
Roger
   Martin du Gard.
       Corria para casa e, avaramente, quando o livro começava a 
chegar
   ao fim, lia cada vez mais devagar, para "poupar", para evitar 
que
   aquele sonho acabasse, que a vida regressasse à banalidade dos
   horários com Geografia, Físico­Químicas, Françês, Matemáticas,
   História, Guerra dos Cem Anos, Guerra dos Trinta Anos, 
coligações e
   batalhas, tratados diplomáticos, rios e Continentes onde nunca
iria,
   modelos em madeira de cristais que eram "arrumados" na 
estranha
   taxonomia de "monoclínico", "triclínico" e "ortorrômbico"!
       Então, na TV a preto e branco, o boletim meteorológico era
feito a
   giz num Portugal de papelão, no Natal as mensagens de Angola,
   Moçambique, Guiné:
       ­­­ "Daqui, Manuel António, falando para seus Pais, Irmãos
Amigos
   e noiva Maria do Céu, deseja Boas Festas e Novo Ano cheio de
   "propriedades"!
       Nos estádios, aos domingos, Eusébio marcava golos de 
meio­campo
   contra tudo que tinha a forma de baliza e, no Palácio de 
Belém,
   Américo Tomás recebia as "famílias numerosas" do Ano, uma 
galeria de
   desgraçados carregados de filhos, hierarquizados por alturas, 
posando
   para o "Diário de Notícias", uma condecoração, uma fita por 
cima do
   fatinho coçado e um "cabaz de Natal" com um bacalhau, uns 
azeites,
   umas latas de atum e uma garrafa de espumante.
       Fugia daquilo tudo para o calor do Café "Diu", onde estava
a
   "troupe" dos amigos, do "Diário de Lisboa", do bilhar "às três
   tabelas", das conversas pela noite fora, dos conhecidos que 
iam
   morrendo discretamente na Guiné, dos que desapareciam "a 
monte" para
   as Franças, as Bélgicas, as Alemanhas, assim escapando aos 
Editais
   trimestrais que decarregavam carne para canhão em Mafra, 
Tomar, Vendas
   Novas, Caldas da Rainha, quartéis onde se entrava para os 
próximos
   três anos e íamos parar aos barcos que partiam da "Gare de 
Alcântara",
   rodeados de familiares que nesse pedaço de pedra deixavam 
lágrimas que
   pesavam toneladas de amargura e silêncio.
       Mas a Literatura salvou­me desse insólito Portugal, graças
à
   "Cidade das Flores" do Augusto Abelaira, ao riso dos 
"Cotovelos de
   Vénus" de Santos Fernando, ao "Diário" de Sebastião da Gama, 
ao
   sarcasmo profundo das "Farpas", à melancolia irónica de 
"Fradique
   Mendes".
       Afinal, a Arte estava ali, naquelas palavras magistrais, 
nos
   livros em segunda mão, na perfeição inicial dum parágrafo, dum
   adjectivo, duma figura que sintetizava uma época que agora 
vislumbro
   com a nostalgia dos 50 anos, mas onde não gostaria de 
regressar.
       Descobri que estava "do lado dos Livros", das bibliotecas,
do
   prazer de abrir com faca as páginas fechadas que me levariam a
   Samarcanda, ao "Deserto dos Tártaros", à Indochina de Malraux,
aos
   quartos fechados de Sartre, à Alexandria turbilhonar de 
Lawrence
   Durrell.
       Andava em "Filosofia", porque "Direito" não era possível, 
era só
   Coimbra, era longe, era caro, não podia ser e acabei por amar 
o que
   tinha. Os pré­Socráticos, a História da Arte, as "Culturas"
   não­sei­quê, não­sei­que­mais, acabando com um diploma em 
Latim,
   manuscrito de pergaminho, onde se pendurava um selo de lacre 
envolto
   em caixinha vagamente prateada, presa a uma espécie de fita de
   comenda, com o azul­de­Letras.
   
   
   IV. PISO TÉRREO ­ "Fechado para obras".
   
   
   
       Tanta Filosofia deu em ser colocado como professor de 
"Língua
   Portuguesa" na "Ramalho Ortigão", 22 horas mais 6 
extraordinárias,
   três contos por mês, 10 meses ao ano até, nem sei como, 
aceitar ir
   para a Faculdade de Letras dar aulas, sempre pagavam doze 
meses ao ano
   o que, por acaso, era exactamente coincidente com o número de 
vezes
   que tínhamos de entregar a renda ao senhorio.
       Foi­me entregue, entre outras coisas, a "Estética".Então, 
a Arte,
   falar da Arte, transformou­se num ganha­pão, agora era eu o 
Professor
   e estava do lado de cá daqueles rostos que ainda ontem se 
sentavam ao
   meu lado, nas mesas de tampo verde do velho edifício junto ao
   "Hospital de Santo António". Li livros e mais livros, e 
encontrei
   nesse "Museu Imaginário" a pintura,a escultura,a arquitectura,
o
   urbanismo. Com eles me casei, como naqueles matrimónios 
contrariados
   da época feudal, decisão tomada por outros, viver com uma 
"estranha"
   e, miraculosamente, ano após ano, descobrir que nem sempre o 
Amor é um
   "coup­de­foudre", que se pode construir aprendendo diariamente
que um
   afecto também nasce com a lentidão que levou a levantar das 
areias do
   deserto o templo de Karnak!
       Bisontes de Altamira e Lascaux, frescos cretenses com o
   insuportável azul de golfinhos e princesas com tranças, as 
estatuetas
   de Tanagra e Mirina, o entrelaçado vertiginoso do Islão, os 
granitos
   comoventes do Românico, a luz de Giotto por entre névoas de 
ouro, as
   flores de Boticelli, o intimismo de Vermeer, os desenhos 
agrestes de
   Beardsley, as cabeleiras pré­rafaelitas de Rossetti, as noites
com
   estrelas­lírios de Van Gogh, as ancas doces da Polinésia de 
Gauguin,
   os circos azul e rosa de Picasso, a pureza branca, amarela,de
   Mondrian, os sonhos de Chagall, o esbracejar convulsivo de 
Pollock.
       E tudo aquilo me perseguia, o "daimon" que atravessava 
aqueles
   espaços, a indizível alegria, a calma, o sofrimento e a 
impotência das
   Palavras em "dizer" essas mil vozes que por aí andam desde o 
princípio
   do Mundo!
       Até que descobri e aceitei que há mistérios insondáveis 
dentro de
   nós, que a Razão não é tudo, que há murmúrios e lugares que 
ignoramos,
   que todo o Sol define o contraste duma Sombra, que essa sombra
varia
   com as horas, os anos e as gerações. Dessa Sombra irrompe uma 
espécie
   de Rumor, vindo de sítio­nenhum, algo que eternamente nos 
escapa e nos
   deslumbra.
       Hoje, perdidas as certezas dos verdes anos, sei que a 
imortalidade
   se perdeu na alvorada de todos os "Mitos da Criação". Para 
nossa
   consolação, em memória desse tempo perfeito, deixaram­nos o 
canto de
   Orfeu e a alegria de Pã. Nas nossas vidas, em hora 
imprevisível, qual
   "Aparição", seremos visitados, talvez, por uma inexplicável 
Alegria.
   
   
   Porto, Fevereiro de 1997
   
   A FRONTEIRA DA LUA 
       
   
   ­­­ Uma convicção cosmológica no Mundo Antigo. 
   
     "(...)Imaginemos um jardim, com centenas de árvores das mais
     variadas, milhares de flores das mais variadas, centenas de 
frutos,
     de ervas das mais variadas.Se se dá o caso de o jardineiro 
desse
     jardim não conhecer outra diferenciação botânica que não 
seja a de
     «comestível» e «erva daninha», então não saberá lidar com 
nove
     décimos do seu jardim, arrancará as flores mais 
encantadoras,
     abaterá as árvores mais nobres ou pelo menos há­de odiá­las 
e
     olhá­las de través.Assim age o Lobo das Estepes para com 
milhares
     de flores da sua alma.(...)"
     
     
     HERMAN HESSE,"O Lobo das Estepes".
     
   
   
   
   I ­ PARA ALÉM DAS NUVENS
   
         A aspiração de crescer é uma tentação a que mil vezes os
gregos
   escaparam. Habituados a espaços duma escala inteligível, que 
um olhar
   enquadrava, neles geriram o singular destino e estilo que foi 
o seu.
   Estados à escala de cidades, rodeados de objectos urbanos,
   instituições ou ideias, praças ou teatros, era aí que o caos 
do mundo
   se detinha, o sentido da cidadania e da política se 
confundiam.
        Uma paixão nunca abandonada pela procura duma "ordem 
humana" que
   trouxesse um pouco da perfeição dos céus ao "perpetuum mobile"
da
   História explica a minúcia, a quase obsessão com que 
desenharam os
   "mundos ideais", as cidades­como­devem­ser para que o 
pensamento se
   liberte e o filosofar, o governar, o criar deixem aberto o 
caminho
   superior da meditação e da contemplação. Esse almejado e 
prestigiado
   ócio, estrada real da liberdade.
        Mas o tempo raramente cumpre os desejos daqueles que o 
prendem
   com laços e fitas e nenhuma cultura inventa os seus sonhos sem
trilhar
   as sombras que o acaso ou o destino algures se comprazem em 
tecer. De
   Tales a Sócrates a filosofia descobre que a paixão da física 
celeste
   pode enredar­se nos assuntos da cidade, nas nuances sobre a 
"origem
   das ideias", a justeza das Leis, a retórica dos discursos.
        Em Platão, o vigor da eterna batalha da Filosofia já não 
esconde
   alguma amargura e desencanto, um não­sei­quê se desprende das 
lutas de
   Sócrates com os interlocutores e a frescura das ideias e do 
filosofar
   dos fundadores pouco mais é que a perdida inocência dum tempo 
que foi
   mas já não é. Lentamente se abre uma era de desconfiança, de 
pálidas
   certezas, confrangedoras, mas tão admiravelmente humanas.
        A Academia e o Liceu debatem­se com o presente e o 
passado e
   revelam mais dois "estilos" do que dois "mundos" 
incomunicantes. Nas
   suas salas ou jardins, na comunidade dos adeptos e aprendizes,
nos
   seus livros, nas suas colecções, a Filosofia complicou­se e 
reconhece
   que entre os homens e o mundo há muito mais que o cristal
   incorruptível do pensamento.
        Perca­se a Terra, solte­se o desencanto do "relativo", do
   "possível", do "talvez", do meio­termo, mas continua a 
persistir o
   intocável, o próximo­distante que é o reino dos Céus, essa 
máquina
   cósmica que nos cobre e protege, astros­deuses, desafiando­nos
desde
   os inícios do tempo. Tudo muda, tudo se transforma, mas para 
além das
   nuvens e dos meteoros, nesse local­fronteira imediatamente 
acima da
   Lua, a regra que perdura vem dos séculos dos séculos e o seu 
segredo
   escapará ainda ao claro­escuro que doravante se entretecerá 
nos jogos
   da razão.
        A partir duma certa altura todos são devedores dos 
Pitagóricos,
   no que à estrutura do Cosmos diz respeito. Após as hesitações 
da
   Escola de Mileto quanto à forma, localização e comportamento 
do
   insondável reino celestial, e se excluirmos a curiosíssima 
perspectiva
   de Anaximandro com a sua interpretação de natureza geométrica 
e com o
   seu quê de pré­gravitacional, são as leituras oriundas dessa 
singular
   comunidade para­filosófica que estabelecerão as regras do jogo
a que
   poucos escaparão.
        As regras são precisas, radicais e com reduzido número de
   variações na sua configuração. Astros esféricos, órbitas 
desenhando
   círculos perfeitos, a crença na natureza perfeita dos mundos 
para além
   da Terra, a aposta da escrita cósmica remeter para uma 
combinatória
   geométrica e matemática. Tudo o que reduz o alcance das 
aparências
   titubeantes dos movimentos planetários a ilusões que remetam 
para a
   perspectiva do observador ingénuo, vai na direcção da longa 
ascese que
   prepara o conhecimento verdadeiro, aquele que vislumbra as 
harmonias
   numéricas e assim trilha o caminho da contemplação e do 
pensamento
   feliz!
        As variações, como já se viu, são reduzidas, mas 
significativas.
   Lembre­se a posição de Filolao e o seu "fogo central", de 
simbologia
   estético­religiosa, mais a sua obscura "Anti­Terra" que 
harmonizava a
   cumplicidade da "tetractis" com a face do mundo, ao forçar o 
universo
   a cumprir a mística do "número 10". Mas sobretudo atente­se 
que esta
   deslocação e as honrosas motivações que a possibilitam, tolera
e exige
   que a Terra saia do centro e que ocupe, por conseguinte um 
lugar
   equivalente aos restantes planetas, eternamente singrando na 
esfera e
   trajectória circular que lhe compete em torno desse "trono de 
Zeus"
   que compensa e equilibra no centro cósmico esse outro "fogo 
exterior"
   que se estende para além do derradeiro limite inteligível das 
estrelas
   fixas.
        Digamos, pois que o essencial foi descoberto cedo. 
Platonismo e
   aristotelismo aceitam a lógica de tais princípios, ainda que
   utilizando universos conceptuais distintos, como são os que 
distinguem
   o registo alegórico do Timeu, da leitura mais inteligível e 
fria dos
   céus de Aristóteles. A solução encaminha­se em direcção do 
poder das
   matemáticas e das combinatórias geométricas em torno da 
pressão do
   "dogma do círculo". Daqui resultará uma solução complexa e 
habilidosa,
   um compromisso entre as "aparências" provenientes da 
observação e as
   Leis imutáveis que a condicionam.
        Tal caminho conduz a uma desmultiplicação das esferas
   planetárias, cujo número é condicionado por determinantes que 
não
   passam por qualquer verificação experimental, tratando­se 
somente de
   encontrar uma construção que enquadre as trajectórias errantes
numa
   série adequada de sucessivas esferas de dimensões pensadas 
para servir
   cada um dos astros conhecidos. Com Eudoxo e com Aristóteles 
esse
   número pode aproximar­se da escala das dezenas! Daqui para 
diante o
   modelo está estabelecido e o seu expoente superior irá 
confluir para a
   escola de Alexandria, na obra de Claudio Ptolomeu.
        Porém, não esqueçamos que até aí chegarmos alguns séculos
e
   significativos acontecimentos irão modelar o mundo antigo.
   
   
   II ­ O SONHO DE ALEXANDRE
   
   
        Um ponto de viragem será associado à figura de Alexandre,
o
   príncipe macedónio, cuja vocação de conquista levará os gregos
para
   além dos seus limites estratégicos. Educado em terrenos 
aristotélicos,
   aspira a uma civilização que rompa os limites da "polis" ou, 
melhor
   ainda, que estenda as suas regras a uma escala territorial que
nunca
   foi a sua. Digamos que Alexandre é um conquistador cosmopolita
no
   sentido etimológico da expressão. Mundo à imagem da Cidade. 
Cidade
   como resumo do Mundo. Ao modo grego, claro.
        Sabe­se a eficácia momentânea do seu projecto. A rapidez 
do seu
   triunfo, a amplitude que nos mapas do mundo se deixa colorir 
pelos
   sonhos de Alexandre. Da India ao Egipto um império se desenha.
        Mas o Império não é o modo grego de estar no mundo, pela 
lógica
   de confusão, mistura, essa escala das coisas para além do 
limiar do
   razoável. Tudo unir na amálgama de mil vozes, mil usos, mil 
deuses
   pode parecer um sonho digno, um desejo de modernidade, uma
   fraternidade universal. Mas é também uma paixão que ignora o 
possível
   e cada conquista dos generais de Alexandre é uma fissura 
irreparável
   nos mármores do Partenon, uma porta aberta à incerteza e ao 
caos nas
   ideias e nas almas.
        Falta aos gregos a dimensão de gestores dos grandes 
espaços, das
   redes de poder burocratizadas, do cimento de coesão que o 
Direito
   Romano admiravelmente saberá distribuir por entre a "pax" das 
legiões.
   A morte prematura de Alexandre, se parece ir ao encontro da 
máxima
   segundo a qual "aqueles que os deuses amam morrem jovens", 
deixa como
   primeiro legado um problema impensável à escala da "polis", 
isto é, a
   repartição dum imenso território, repetido orgulho e maldição 
de toda
   a conquista.
        É sobre os seus mais próximos amigos e chefes militares 
que recai
   o prosseguimento do sonho, agora mais condicionado por uma 
atitude
   defensiva e realista que visa a consolidação no terreno duma 
lógica do
   possível. No território egípcio, abre­se a porta à dinastia 
dos
   Ptolomeus. Para além da Lua, os astros perfeitos continuam por
   enquanto imunes aos jogos mutantes e corruptíveis a que se 
entregam os
   homens.
   
   
   III ­ ALEXANDRIA.CIDADE ABERTA
   
   
        É com Ptolomeu Sotero, o general coberto pela sombra 
protectora
   de Horus, que uma ideia grega vai ocupar um poder até então 
entregue
   aos "deuses vivos" que escolherem o Egipto como morada. 
Verdade seja
   dita, sempre os gregos olharam para esse lado do Mediterrâneo,
esse
   local simultaneamente acolhedor e ambíguo, como um espaço 
sedutor,
   onde um saber vindo dos confins do tempo se acumulava com uma
   espessura só possível num reino vocacionado para a eternidade.
        Desde a escola de Mileto até Platão muitos foram aqueles 
que,
   pressionados por uma ideia de conhecimento que visava uma 
abertura aos
   outros, introduziram o gosto da viagem como uma virtude da 
Filosofia.
   Entre outros, o Egipto era local de estadia quase obrigatório.
Muita
   coisa aí foi apreendida e reciclada pela cultura urbana 
subjacente ao
   filosofar, pois o "milagre grego" é mais uma ars combinatoria 
que um
   acto de rotura sem retorno face ao património de informação do
mundo
   antigo.
        Não se tratava de fazer do poderoso império agrário uma 
Grécia
   desproporcionada, missão em si mesma contraditória e 
impossível. Mas
   de criar um estilo híbrido, na intersecção de dois modos de 
vida que
   supõem uma bifurcação de caminhos civilizacionais e mentais. O
   compromisso abre portas à dimensão urbana, patamar mutuamente
   aceitável pelas duas culturas. Está aberto o projecto de 
Alexandria,
   obra desmesurada a que os novos poderes dedicarão atenção 
prioritária.
   O nome da cidade não engana. É a homenagem viva ao 
Conquistador que a
   possibilitou!Mas é mais do que isso.
        Contrariamente ao hábito corrente do desenvolvimento 
urbano das
   sociedades camponesas, mais dependente dum crescimento 
afectivo e
   desordenado do que duma demarcação no território das linhas de
razão,
   Alexandria visa um desejo de "ordem" cujas raízes mergulham na
"polis"
   e que só arquitectos e engenheiros são dignos de planear. É 
uma tarefa
   que mobilizará os recursos gregos sob o patrocínio dos 
primeiros
   Ptolomeus.
        Deste modo a Cidade cresce com um objectivo de fundo 
helenístico,
   esse grande desejo de mistura de muitas vozes, múltiplos 
encontros que
   o acaso tece. Cidade marítima, entreposto de projectos, de 
línguas, de
   deuses, mal sonha o milénio de grandeza e devastações que a 
aguarda.
   Duas instituições míticas com ela nascem e que se 
transformarão num
   dos grandes símbolos do mundo antigo. Ambos superiormente 
patrocinados
   pelo poder, concretizam o melhor dos sonhos gregos e da sua 
particular
   relação com a Teoria e a experiência. O Museu e a Biblioteca.
        Recolhem a experiência de instituições como a Academia 
platónica
   e o Liceu aristotélico e do gosto de convivência, de ensino e 
de
   Escola nelas suposto, mas dotadas de meios materiais 
manifestamente
   superiores, ao que tudo leva a crer. Talvez que o paradigma 
dominante
   seja o aristotélico, designadamente pela intensidade que nelas
   manifesta um saber experimental, empírico, prático, sempre 
olhado com
   alguma reserva por toda a tradição platónica.
        O Museu deve ser pensado num sentido muito amplo, a meio 
caminho
   entre o sentido mais estrito que hoje damos ao termo e a 
instituição
   multidisciplinar que abarca o essencial das áreas do saber, da
   Astronomia à Botânica, da Geografia e Matemática à Zoologia e
   Medicina. Verdadeiro centro de investigação e pesquisa, nele 
são
   previstos espaços para uma pleiade de estudiosos que nele 
operam em
   termos quase profissionais. Nem um Zoo faltará para ir de 
encontro à
   vocação englobante que o preside!
        Quanto à Biblioteca, que se julga ter recolhido um fundo
   bibliográfico pertencente ao próprio Aristóteles, acumula um
   património de informação invejável por muitos séculos. 
Patrocinada
   pelo poder real como centro de afirmação cultural, para ela 
foram
   recolhidos, arquivados e duplicados dezenas de milhar de 
livros, que
   atrairam estudiosos de toda a parte, e transformaram os 
bibliotecários
   de Alexandria numa das personalidades mais prestigiadas do 
mundo
   antigo, de tal forma que passam a ser encarregados da educação
do
   príncipe.
        O conjunto destas instituições permitiram que em 
Alexandria se
   atingisse o que hoje se designa como "massa crítica" de 
investigação,
   de tal forma que no seu período de máximo esplendor (séc. 
III­I a.C. )
   aí se encontram personalidades de inequívoco relevo. Entre 
outros,
   Euclides, o matemático, Eratóstenes, o geógrafo que pela 1ª 
vez
   sugeriu uma medida espantosamente precisa do diâmetro da 
Terra,
   Aristarco, o astrónomo, que propõe um sistema heliocêntrico, 
cuja
   precoce modernidade só será recuperada na obra de Copérnico.
        As observações astronómicas cada vez mais precisas e 
detalhadas,
   acentuavam uma questão que já tinha sido equacionada desde os
   primeiros pitagóricos até Platão e Aristóteles, isto é, a 
constatação
   dos movimentos "errantes" dos planetas, a variação periódica 
do seu
   tamanho aparente ao longo do ano, e a necessidade de 
compatibilizar
   estes dados sensitivos com a racionalidade meta­lunar do dogma
dos
   movimentos circulares e uniformes. A solução­tipo consistia em
   atribuir um papel fundamental à Astronomia Geométrica como via
de
   interpretação das peculiaridades da Astronomia de 
"observação".
        O resultado é irem­se constituindo modelos
   cosmológico­geométricos progressivamente complexos que 
explicam com
   crescente barroquismo a intocável precisão do reino dos Céus. 
A obra
   de Ptolomeu é o corolário final destes esforços, cujo sucesso 
é
   indesmentível, quanto mais não seja pelos quase 1. 400 anos em
que se
   manteve à tona da história do pensamento astronómico.
   
   
   IV ­ PTOLOMEU.A MÁQUINA CÓSMICA
   
   
        Não se julgue que a teoria de Ptolomeu (séc. II) só deva 
ser
   vista como uma "velharia", o resultado exemplar dum bloqueio
   epistemológico, uma incapacidade de ver as coisas como são, 
por
   carência de espírito objectivo­experimental, característico da
Ciência
   moderna pós­renascentista. Que é um acumular de erros e 
perversões que
   só a cegueira da razão permitiu manter durante séculos e 
séculos.
        O sistema ptolomeico permite prever factos astronómicos 
com
   suficiente precisão, medir distâncias, elaborar cálculos com 
eficácia
   prática e os seus modelos e abordagem geométrica, apesar de
   ultrapassados pelo binómio Kepler­Newton, estão ainda bem 
presentes
   nas considerações de Copérnico, cujo sistema é bem menos 
simples do
   que as imagens redutoras que, por vezes, dele nos são dadas.
        De Claudio Ptolomeu pouco se sabe da sua vida a das datas
exactas
   de nascimento e morte, presumindo­se que tenha vivido no 
séc.II
   (100­170), por dedução feita a partir de alguns fenómenos 
astronómicos
   por ele observados e referidos nas suas obras. A Alexandria 
que
   Ptolomeu conheceu estava já distante do período de máximo 
esplendor
   dos séculos passados e vivia agora sob o ascendente dos 
conquistadores
   romanos, no tempo de Trajano, Adriano, Antonino Pio e Marco 
Aurélio.
   Os grandes investimentos culturais do tempo dos Ptolomeus 
tinham
   passado à história, apesar do continuado prestígio da cidade 
junto da
   elite culta, que continuava a usar o grego como meio de 
comunicação
   preferencial.
        Ptolomeu, apesar de ser conhecido como astrónomo, não 
deixou de
   configurar o ideal eclético da cultura helenística ao cultivar
a
   Geografia, a Óptica, a Música e a Astrologia. A sobrevivência 
quase
   integral das suas obras mais importantes, bem ao contrário do 
que é
   usual em tantos trabalhos desta época que estão reduzidos a
   fragmentos, citações indirectas, às vezes pouco mais que 
títulos,
   deve­se a circunstâncias afortunadas, onde se destaca o grande
   prestígio que o suas ideias adquiriram junto dos pensadores 
árabes,
   responsáveis em boa parte pela recuperação dos seus textos. 
Foi,
   aliás, a admiração destes intelectuais pelo trabalho 
intitulado
   "Grande Composição Matemática da Astronomia", que originou a
   designação de "Almagesto", provavelmente introduzida no 
vocabulário
   actual por astrónomos cristãos da Idade Média. A este tratado,
escrito
   por volta de 142, segue­se um 2º livro de temática 
astronómica,
   intitulado "Hipóteses dos Planetas", provavelmente datado de 
146.
        Nestes textos, mais do que absoluta inovação, faz­se uma 
síntese
   bem organizada dos inúmeros predecessores, visando uma unidade
teórica
   de acordo com princípios bem estabelecidos, resultando numa 
versão
   final da cosmologia antiga, cuja solidez só será posta em 
causa muitos
   séculos mais tarde.
        A associação entre Matemática e Astronomia patente no 
título,
   resulta da divisão aristotélica entre "filosofia teórica" e 
"filosofia
   prática", interessando particularmente a Ptolomeu a razão 
científica,
   isto é, teórica, na boa tradição grega. Os patamares desta 
"filosofia
   teórica" iam da Física à Teologia, passando pela Matemática, 
cumprindo
   a via de "purificação" dum conhecimento que vai do sensível ao
   imutável. Neste quadro classificativo, a Astronomia é um 
sub­campo das
   Matemáticas, a par da Geometria e Aritmética.
        Desta forma, ganha consistência um modelo cosmológico 
apoiado em
   princípios, que compatibiliza a observação e as suas 
estruturas
   mutantes e erráticas com uma cobertura de racionalidade e 
eternidade
   que convém à perfeição dos objectos celestes. Tal é o 
objectivo visado
   pela "Grande Composição Matemática" e "Hipóteses dos 
Planetas".
        As proposições da Física que sustentam a astronomia visam
"(. . .
   ) Antes de mais, admitir que o céu é esférico e que se move da
maneira
   que convém a uma esfera;que, pela sua forma, a Terra, 
considerada no
   conjunto das suas partes é, ela também, sensivelmente 
esférica;que
   pela sua posição, está situada no meio de todo o Céu, e que 
ela aí
   está como que no centro;que quanto ao assunto do tamanho e da
   distância, ela está para a esfera das estrelas fixas na mesma 
relação
   que um ponto;que ela não executa qualquer movimento que a faça
mudar
   de lugar. (. . . )".
        Não iremos aduzir os argumentos de Ptolomeu em favor 
destes
   princípios, mas somente salientar que tais proposições exigem 
que se
   transite duma Astronomia Física a uma Astronomia Matemática, 
espécie
   de modelo computacional cujas exigências de precisão levarão a
propor
   soluções duma mecânica abstracta, na sequência dos caminhos já
abertos
   por Eudoxo, Hiparco e Calipo.
        Daqui resultam duas ideias fundamentais em que se apoia a
   construção de Ptolomeu. Por um lado, distinguir o "centro 
geométrico"
   do Mundo do seu "centro físico", que é ocupado pela Terra;por 
outro,
   imaginar que a revolução dos astros em torno do "centro" se 
faz em
   função dum "epiciclo", deslocação perfeita dum orbe no qual o 
planeta
   ocupa uma zona da circunferência que é arrastada pelo 
movimento
   circular e uniforme.
        É naturalmente complexo apercebermo­nos das soluções
   geométrico­matemáticas subjacentes a esta engrenagem cósmica, 
cujo
   principal objectivo era "salvar as aparências", isto é, fazer 
reduzir
   a inconstância dos planetas a uma sucessão em cadeia de 
movimentos
   racionalmente aceitáveis que, vistos do centro do Mundo (a 
Terra)
   efectivamente seriam observados pelos "sentidos" como estando 
de
   acordo com princípios imutáveis.
        Como a variação do movimento planetário obedece a padrões
   individualizados para cada um dos astros conhecidos, a solução
   genérica dos epiciclos terá de ser adaptada a cada caso 
particular.
   Haverá uma teoria do Sol, da Lua, de Mercúrio, de Vénus, de 
Marte, de
   Júpiter e de Saturno, obrigando a soluções "ad hoc" que acabam
por
   desmultiplicar o número de orbes para o conjunto dos planetas,
de tal
   maneira que o sistema ptolomeico ganha dimensões
   cabalístico­estéticas!
        Mantém­se a "Teoria dos 2 Mundos" de proveniência 
aristotélica,
   distinguindo bem o reino do movimento, transformação, 
corrupção, vida
   e morte que habita a Terra, onde perpetuamente se transmutam 
ar, água,
   terra e fogo, duma região para lá das nuvens, onde se desenha 
a régua
   e esquadro a fronteira da Lua. É um Universo pequeno, 
controlável,
   inteligível, um Mundo à escala humana donde, bem vistas as 
coisas, se
   desprende uma certa doçura, bem distante do frenesim dos 
"pulsars",
   "quasars", super­novas, super­enxames de galáxias, "big­bangs"
e
   radiações isotrópicas a 3º Kelvin.
        Será pecado, em certas horas cinzentas, ter­se saudades 
dum erro
   ?!
   
   PORTO, Setembro de 1993
       Levi António Malho   
   "INCOMENSURÁVEL AFECTO"
       
   ­­­ Sobre livros, livros e mais livros
   
     "(. . . ) Assim fiquei só com Fradique ­­­ que me convidou a
subir
     aos seus quartos, e esperar Vidigal, bebendo uma «soda e 
limão».
         Pela escada, o poeta das «Lapidárias» aludiu ao tórrido 
calor
     de Agosto. E eu que nesse instante, defronte do espelho no 
patamar,
     revistava, com um olhar furtivo, a linha da minha 
sobrecasaca e a
     frescura da minha rosa ­­­ deixei estouvadamente escapar 
esta coisa
     hedionda:
         ­­­ Sim, está de escachar!
         E ainda o torpe som não morrera, já uma aflição me 
lacerava,
     por esta chulice de esquina de tabacaria, assim 
atabalhoadamente
     lançada como um pingo de sebo sobre o supremo artista das
     «Lapidárias», o homem que conversara com Hugo à beira­mar! .
. .
     Entrei no quarto atordoado, com bagas de suor na face. E 
debalde
     rebuscava desesperadamente uma outra frase sobre o calor, 
bem
     trabalhada, toda cintilante e nova! Nada! Só me acudiam 
sordidezes
     paralelas, em calão teimoso: ­­­ «é de rachar»! «está de 
ananases»!
     «derrete os untos»! ... atravessei ali uma dessas angústias
     atrozes, grotescas, que, aos vinte anos, quando se começa a 
vida e
     a literatura, vincam a alma e jamais esquecem. (. . . )". 
     
         
     
     Eça de Queiroz, "A Correspondência de Fradique Mendes" 
     
   
   
   «Gasparzinho, o Às da Sorte, foi parar ao Polo Norte!». Tanto 
quanto
   me lembro foi assim, numa manhã de 25 de Dezembro, em cima dum
sapato
   deixado sobre um fogão de lenha, que o Pai Natal me entregou o

   livro da minha vida, acompanhado duma caixa de lápis de côr 
Viarco e
   dum 'aguça', nesses já distantes anos da década de 50, tempos 
da
   Guerra da Coreia e da gente pequena que, pela magia da 
infância, era
   incapaz de ver que o negócio tinha sido consumado aos balcões 
do
   "Bazar dos Três Vinténs" da Rua de Cedofeita!
       Primeiro livro, primeiro amor. Aquilo era uma vaga 
história para
   colorir, que metia ursos das neves árcticas, 'igloos', 
pinguins e
   peixes que saíam de buracos no gelo, esquimós com casacos de 
peles
   fofas e felpudas, que hoje seriam 'politicamente incorrectos' 
e
   desencadeariam a fúria de organizações ecologistas. Mas que 
sabia eu
   disso, então, num Portugal pacato, rural, mesmo numa cidade 
como o
   Porto, onde as luzes municipais eram acesas 'à mão' por um 
pobre diabo
   que, ao cair das tardes, chave em punho, ia ligando 
interruptores que
   vagamente emitiam uma claridade mortiça, sob um 'abat­jour' de
   esmalte, não escondendo a ferrugem e incúria da passagem de 
imemoriais
   solstícios e equinócios.
       Que pena não ter já esse livro, embora confesse que a 
maior
   animação foi aguçar até à exaustão os lápis Viarco, actividade
de
   nível metafísico incomensuravelmente superior ao tédio de 
pintar os
   peixes, os pinguins e o mais que para lá existia.
       Desde então, a verdade é que os meus dias estão sempre 
próximos de
   livros!
       Livro de 'Leituras', da 3ª ou 4ª Classe, com desenhos 
pálidos e
   moralistas, fábulas, "O Corvo e a Raposa", "O Milagre das 
Rosas", "O
   Alfageme de Santarém", "Egas Moniz com corda ao pescoço", mais
mulher
   e filhos que pareciam saídos dum orfanato dirigido por um 
descendente
   do Scrugges de Dickens, a Pátria do 'Minho a Timor', os 
Missionários
   comidos por antropófagos ateus, livros de 'História' com 
dinastias
   inteiras a decorar, reis e cognomes, D. Sancho, o Gordo, D. 
Manuel, o
   Venturoso, D. João II, o Príncipe Perfeito, a Ínclita Geração!
Ou
   ainda os malditos 'Livros de Exercícios' de Matemática, o 
'Palma
   Fernandes', capas cor­de­rosa, soluções no fim, sempre 
obstinadamente
   diferentes da conclusão a que chegávamos após safar, raspar,
   multiplicar, prova dos nove, coisas sinistras, tanques com 
torneiras
   que debitavam 50 litros/hora e tinham de se reduzir a 
hectolitros.
       Montões de coisas úteis, tanto elas contribuiram para a 
minha
   felicidade que até me vêm as lágrimas aos olhos! Como, por 
exemplo,
   orientar 'modelos de cristais', espécie de cruzetas de 
madeira, nomes
   terríveis, sistema monoclínico, triclínico, ortorrômbico.
      Que me interessa a mim o sistema ortorrômbico? ! E a 
sexualidade
   das plantas, a única sexualidade dos Liceus do tempo 
modorrento de
   Américo Tomás e Salazar, os estames e as corolas, os 
cotilédones dos
   feijões e das favas, as infrutescências e inflorescências, as 
raízes
   aprumadas ou fasciculadas? !
       Então, 'livros bons' eram as colecções do "Condor 
Popular", onde
   pontificavam os músculos de Luís Euripo, o pugilista 
português, o
   "Cavaleiro Andante" com o Príncipe Valente e mais o sua espada
   purificadora, o Flash Gordon e o Doutor Zarkov, ou as 
peripécias do
   'Marca Amarela' e de Mortimore na Atlântida, nas vésperas da 
submersão
   nas águas onde, quiçá, espreitava no Nautilus o olhar 
alucinado do
   Capitão Nemo das "Vinte Mil Léguas Submarinas". . .
       Ah! E os «livros só­de­ler», sem figuras! A gente a 
sonhar, a
   inventar ventos, climas, amantes implacáveis, venenos, feras
   esfomeadas, o som e a fúria dos tufões das Caraíbas, o enorme 
facalhão
   de Sandokan, o Tigre da Malásia, os execráveis Governadores 
corruptos
   ao serviço das Espanhas e das Inglaterras, os amores eternos e
fatais.
       Como quem não quer a coisa, 'ia­os' juntando, primeiro 
numa pilha,
   depois numa estante, sem saber que, como um 'zombie', estava a
   construir uma Biblioteca. Quem me dera regressar a essas horas
   apontadas ao prazer de começar certos livros, sentir o mundo
   apagar­se. Vir a correr da Escola, meter­me no quarto que 
ficava do
   tamanho do Universo inteiro, até à chegada, aos gritos, da Mãe
e Tia:
       ­­­ Apaga a luz, que é tarde! Amanhã é que vão ser elas!
           O destino fez­me professor. De Filosofia. Tenho quase 
50 anos
   e os livros cercam­me por toda a parte, falam­me, quase os 
sinto
   murmurar:
       ­­­ A mim não me vais ler! Cabrão! Traidor! Para que me 
compraste!
       ­­­ Se não me querias, por que não me deixaste em paz?
       Tantas memórias, tantos livros me passam pela vida. 
'Livros de
   Sumários', marcando o ritmo pendular do ano lectivo. 'Livros 
de
   cheques', as malditas contas, o supermercado, as rendas, os 
médicos,
   os picheleiros, electricistas que sempre dizem:
       ­­­ Isto está 'p'rá qui' um sarilho!
       ­­­ É que é mesmo um bico­de­obra!
       Eu, crucificado no purgatório das obras, resmungo:
       ­­­ Está visto! Vais­me tirar a pele, e depois, não 
satisfeito,
   talvez esperes rapar o tutano de um ou outro osso mais à mão!
       Tantos livros, tantos. Livros de Cavalaria que levaram a 
loucura
   de Quixote a correr a secura de Espanha, livros que acenderam
   fogueiras, como os de Giordano Bruno, livros que enlouquecem
   multidões, as Bíblias, os Corões, os 'livros­vermelhos' dos 
Guardas do
   Camarada Mao, da 'Grande Revolução Cultural' e do 'Grande 
Salto em
   Frente'! Livros queimados em hecatombes de estupidez, 
arrogância
   iluminada nas noites germânicas dos anos 30, livros que levam 
a
   sentença de morte como os "Versículos Satânicos", livros 
escritos nas
   masmorras da Bastilha, como os de Sade. Livros que escorriam 
pelas
   mãos brancas de tédio de Madame Bovary, livros intermináveis 
como as
   "Memórias de um Átomo", do tão querido João da Ega dos 
"Maias", livros
   com névoa, como no castelo do "Deserto dos Tártaros" de Dino 
Buzatti,
   livros terríveis como aqueles que pretendem explicar como se 
programa
   um video­gravador com 4 semanas de antecedência.
       E as colecções de livros? Os livros comprados 'a metro' 
para
   efeitos decorativos? E ter de arrumar os livros? E limpar o pó
aos
   livros? E saber onde está um dado livro? E emprestar livros? E
encapar
   livros? E, em segredo e com vergonha, vender livros? !
       E saber, como no "Fahreneit 451" do Bradbury que é 
possível um
   mundo horroroso, onde todos os livros desapareceram? E as 
descobertas
   dentro de livros, uma carta perdida, um bilhete de eléctrico 
de 8
   tostões que ficou para ali, a servir de marca? E encontrar uma
   dedicatória num livro em 2ª mão, dum amor que foi o maior do 
mundo,
   com nomes que não nos dizem nada, hoje velhos, mortos?
           E o que pesam os livros, quando se tem de fazer 
mudanças? E as
   promessas de que se vão oferecer os livros que jamais 
abriremos outra
   vez, para arranjar espaço para meter mais livros?
       E encontrar 'algo' que é mais próximo de nós que a vizinha
do lado
   e que tanto pode ser o Ulisses da 'Odisseia", o 'Zadig' de 
Voltaire, o
   Salviati de Galileu, a perfeição das horas brancas na Évora da
   "Aparição", a bondade filantropa de Gog de G. Papini, as 
flores
   argelinas das colinas de Tipasa que vão dar ao Mediterrâneo, 
nas
   "Noces" de Camus, o bulício da Alexandria de Lawrence Durrell,
o amor
   louco da "Espuma dos Dias" de Boris Vian, os aromas da 
Arrábida de
   Sebastião da Gama, as nortadas, anémonas e lubrinas de Luísa 
DaCosta,
   a indizível inquietação duma adolescente que encontrou "Um 
certo
   Sorriso" da Françoise Sagan, ou a imensa paz do "Sidharta" de 
Herman
   Hesse.
       Tantos livros, tantas vidas! Tudo isto uma Biblioteca 
guarda para
   nós, para os vindouros. Biblioteca de Alexandria três vezes 
queimada,
   por acidente no tempo de Cleópatra, por estupidez no tempo de 
Hipatia,
   a bibliotecária­astrónoma, delapidada pela populaça em fúria 
contra o
   saber 'pagão' e finalmente derrubada pelo vendaval rubro dos
   estandartes do Islão.
       Biblioteca mítica de Jorge Luis Borges, biblioteca que 
escondia o
   texto perdido da "Poética" de Aristóteles, elogio da comédia e
do
   riso, no "Nome da Rosa" de Umberto Eco, biblioteca onde se 
desvenda,
   finalmente, o criminoso nos romances de Agatha Christie!
       Estranha é a nossa vida que, tudo passado, se reduz a duas
páginas
   num Livro, a 'Folhas Tantas', frente ou verso, perdidas nas
   prateleiras duma Conservatória de Registo Civil, até que mais 
ninguém
   se lembre de nós, nem na data do nascimento, nem na data da 
morte,
   como tão perfeitamente, também num livro, o profetizou o 
grande Álvaro
   de Campos.
   
   Outubro/1996
   
     Levi António Malho   
   
   "EPPUR SI MUOVE "
       
     ­­­ Sobre uma biografia de Galileu. 
     
       
        Nota: este texto está baseado, no que diz respeito à 
maioria das
       citações de Galileu, na obra de Arthur Koestler, "The
       Sleepwalkers. A History of Man's changing view of the 
Universe"
       (Arkana, London, 1989, 1ª edição. Hutchinson, London, 
1959). A
       tradução é da responsabilidade do autor e encontram­se 
publicadas
       na separata da Revista da F.L.U.P., série de Filosofia, 
(2ª
       série), nº 11, Porto, 1995.
       
     " Acordo. Que disseram os outros? Aurora que, cada manhã,
     reconstróis o mundo; integral nos braços nús que conténs o
     universo; juventude, aurora do homem. Que me importa o que 
os
     outros disseram, o que pensaram, o que acreditaram. Sou Febo
del
     Poggio, um bobo. Os que falam de mim dizem que sou pobre de
     espírito; talvez nem tenha espírito. Existo como um fruto, 
como um
     copo de vinho, como uma árvore. Quando vem o Inverno, as 
pessoas
     afastam­se da árvore que não dá sombra; comido o fruto, 
deitam fora
     o caroço; vazio o copo, vão buscar outro. Eu aceito. Verão, 
água
     lustral da manhã sobre membros ágeis; ó alegria, orvalho do
     coração. . .
          Acordo. Tenho diante, atrás de mim, a noite eterna. Eu 
dormi
     milhões de idades; milhões de idades eu vou dormir. . . Só 
tenho
     uma hora. Havia de estragá­la com explicações e com máximas?
     Estendo­me ao Sol, sobre o travesseiro do prazer, numa manhã
que
     não voltará mais. " 
     
      
     
     
   MARGUERITE YOURCENAR, " Febo del Poggio "
   [narule.gif]
   
   1 ­ A ALEGRIA DE OLHAR
   
   
   
   Quando, em 1642, Galileu morre, com 78 anos, apesar da 
condenação que
   pesava sobre o grande tratado " Diálogo sobre os dois Grandes 
Sistemas
   do Mundo ", os seus trabalhos não entraram num longo 
interregno de
   apagamento e silêncio, como seria usual esperar por comparação
com
   casos semelhantes, designadamente Giordano Bruno, cuja vida e 
obra
   foram devoradas durante séculos nas cinzas da fogueira acesa 
no "Campo
   das Flores", em Roma, quando se anunciava a Primavera do ano 
da graça
   de 1600.
        Após a sentença que o obrigou a abjurar das convicções
   copernicianas e lhe ter sido confiscada a obra em que se 
confrontavam
   as teses cosmológicas de " antigos " e " modernos " , Galileu,
com
   quase 70 anos, ainda tem lucidez para publicar a Ciência da 
Dinâmica,
   mantendo prestígio e amigos, alimentando até ao fim a 
capacidade de
   provocar afectos excessivos, flutuando entre o rancor e a 
admiração,
   numa biografia pessoal e científica que marcou a alvorada da 
Ciência
   Moderna. Não nos devemos espantar, portanto, que após a sua 
morte, os
   amigos pretendam erguer­lhe de imediato um monumento e que o 
livro
   proibido em 1633, circule clandestinamente na Europa culta, 
dois anos
   depois do decreto que o pretendia banir da face da Terra.
        Esta trajectória de controvérsia e paixão, que acompanhou
toda a
   sua vida e se mantém na tona da história há quase quatrocentos
anos,
   tem dado origem a um dos mais estimulantes debates que 
atravessaram as
   ideias filosóficas e científicas, isto é, a conhecida polémica
da
   Razão e da Fé! Galileu tem sido esgrimido pelas partes em 
polémica com
   uma paradoxal virulência, oscilando entre uma angélica 
inocência e um
   heterónimo sulfuroso de Belzebú em pessoa. . .
        O que acontece é que estes estereótipos radicais não dão 
uma
   justa ponderação aos factos pois, apoiando­se em pormenores
   autênticos, esquecem deliberadamente outras dimensões tão 
reais como
   essas, susceptíveis de serem esgrimidas em sentido contrário.
   Portanto, nem mártir nem santo, mas homem complexo, 
temperamental,
   habitado por um extraordinário " daimon " que leva à 
coexistência das
   grandezas e misérias que, às vezes, devastam certas vidas!
        O seu primeiro livro, "O Mensageiro das Estrelas", vem a 
público
   quando Galileu tem 46 anos, numa altura em que o essencial da 
sua
   personalidade está formada, os projectos se encontram numa 
fase
   avançada, as grandes intuições tomam forma. E se bem que a 
validade
   duma obra não deva ser julgada pelo quotidiano de quem a fez, 
assim
   como a veracidade duma lei científica não impede que o seu 
autor seja
   assaltante de caminhos, nada impede que relacionemos Galileu 
com o seu
   tempo, deixando ao leitor o critério da ponderação destes 
elementos.
        Filho de Vincenzo Galilei, homem culto originário da 
baixa
   nobreza empobrecida, Galileu Galilei nasce em Pisa, em 1564, 
numa
   família com vagos investimentos comerciais, bem diferente da
   desvairada e louca constelação de afectos do seu admirador e
   contemporâneo, J. Kepler.   Sobre o pai de Galileu, afirma 
Arthur
   Koestler: " (...) foi um homem de notável cultura, com 
consideráveis
   sucessos como escritor e compositor de música, um desprezo 
pela
   autoridade e tendências radicais. Escreveu, por exemplo, (num 
estudo
   sobre o contraponto) : «Parece­me que aqueles que tentam 
provar uma
   afirmação confiando simplesmente no peso da autoridade, agem 
muito
   absurdamente» . (...) ".
        Frequentou a escola jesuíta do Mosteiro de Vallombrosa, 
perto de
   Florença, mas acabou por voltar a casa, a fim de se dedicar a 
assuntos
   comerciais, como era desejo do pai. Diga­se que a Companhia de
Jesus
   vai exercer uma forte influência no destino de Galileu, quer 
no
   sentido positivo, quer no negativo, pois guarda inúmeros 
amigos nesta
   ordem religiosa, cujo espírito aberto e disponível para os 
temas
   culturais e científicos manifesta uma das mais curiosas 
vertentes do
   movimento da Contra­Reforma. As dificuldades económicas 
crescentes da
   família levam­no a abandonar a Universidade de Pisa, para onde
tinha
   entrado aos 17 anos, após lhe ter sido recusada uma bolsa para
   prosseguir os estudos.
        Este facto deve explicar­se mais pelo temperamento 
pessoal de
   Galileu, pela tendência polemista que tinha como alvo 
preferencial os
   professores de formação aristotélica, a quem devia fazer a 
vida num
   inferno, do que a qualquer falta de capacidades intelectuais 
pois, com
   20 anos, já tinha inventado o "pulsilogium" e intuído as leis 
do
   pêndulo.
        Regressado a casa, mantém um espírito autodidacta e 
potencia as
   suas notáveis aptidões experimentais no campo da mecânica 
aplicada e
   na produção de instrumentos especializados, entre os quais uma
balança
   hidrostática, que dá origem à publicação dum tratado que 
circula
   particularmente entre personalidades amadoras destas áreas. 
Não tarda
   a ser recomendado a Fernando de Médicis, Duque da Toscânia, 
através
   dos bons ofícios do Cardeal del Monte, e a ser nomeado 
Professor de
   Matemática em Pisa, na mesma Universidade que, há quatro anos,
através
   de manobras mil, tinha julgado lançá­lo para o anonimato 
eterno!
        Com 25 anos, Galileu entra pela porta grande do meio
   universitário, sob patrocínio real e em 1592, com 28 anos, é 
promovido
   a "titular" da cadeira de Matemática em Pádua, onde se manterá
durante
   quase vinte anos. Podemos facilmente imaginar a alegria dos 
seus
   colegas docentes ao verem a fulgurante carreira de Galileu, 
ainda por
   cima sob os auspícios e o alto patrocínio de cardeais e 
príncipes.
   Galileu tem uma particular sensibilidade para ponderar a 
correlação de
   forças e não deixará de utilizar estes factores favoráveis 
para alguns
   ajustes de contas, que pacientemente irão alimentar o 
caldeirão de
   sentimentos em que a sua vida se move.
        Este longo período em Pádua é o mais fértil da sua 
existência, do
   ponto de vista da estruturação das descobertas e princípios 
que, a
   partir de 1610 e da publicação do "Mensageiro das Estrelas", 
irão dar
   origem a uma sucessão de obras­chave para a Ciência Moderna. 
Enquanto
   isto não acontece, o seu prestígio aumenta, os negócios correm
   razoavelmente, pois mantém uma oficina de produção de 
equipamentos
   sofisticados e começa a ser conhecido além­fronteiras, se 
atendermos a
   que Kepler se dá ao trabalho de lhe oferecer uma cópia do seu
   "Mistério Cosmográfico", vindo a público em 1597.
        Apesar de sabermos das suas convicções íntimas em defesa 
de
   Copérnico, nesta altura, nas suas aulas, continuava 
prudentemente a
   não sustentar essa posição, preferindo divulgar as ideias 
astronómicas
   e cosmológicas aristotélico­ptolomeicas. É isso que se 
expressa numa
   carta de Agosto de 1597, dirigida a Kepler, em agradecimento 
ao livro
   que este lhe enviou: " (...) Resta­me acrescentar que lerei o 
seu
   livro com tranquilidade, certo de nele encontrar as mais 
admiráveis
   coisas, e farei isso com a maior alegria já que adoptei a 
mensagem de
   Copérnico há muitos anos, e o seu ponto de vista permite­me 
explicar
   muitos fenómenos da natureza que certamente ficariam 
inexplicáveis, de
   acordo com as hipóteses mais correntes. Escrevi muitos 
argumentos a
   favor dele e em refutação da perspectiva oposta ­­­ que, 
todavia, até
   agora não me atrevi a trazer a público, assustado pelo próprio
destino
   de Copérnico, nosso professor que, apesar de ter adquirido 
fama
   imortal junto de alguns, é ainda para uma multidão infinita de
outros
   ( pois tal é o número dos loucos ), objecto ridículo e 
desprezível.
   Certamente, atrever­me­ia a publicar de imediato as minhas 
reflexões
   se existissem mais pessoas iguais a si; como não há, 
suster­me­ei de
   tal fazer. (...) ".
        Este receio de Galileu não tem ainda suficiente 
justificação
   pois, por enquanto, a Igreja católica, designadamente a sua 
hierarquia
   mais esclarecida, apoia e discute Copérnico, mantendo a 
política que
   tinha seguido ao estimular, durante longos anos, a publicação 
desse
   texto que será causa remota de tanta controvérsia.  O motivo
   fundamental da prudência de Galileu deve procurar­se mais do 
lado das
   reacções oriundas dos meios aristotélicos universitários, que
   aguardavam o mínimo deslize para desferirem ataques, do que 
dos
   círculos afectos à Igreja. " (...) Até ao ano fatal de 1616, a
   discussão do sistema de Copérnico era não só permitida, mas 
estimulada
   por eles ­­­ sob a única limitação, que consistia em 
confiná­la à
   linguagem da ciência, e não tergivesar para assuntos 
teológicos. A
   situação foi claramente sintetizada numa carta do Cardeal Dini
para
   Galileu, em 1615: «Pode escrever­se livremente enquanto nos
   mantivermos fora da Sacristia. ». (...) ".
        Nos próximos dez anos, até à altura da publicação do 
primeiro
   livro, Galileu continua as investigações de física, prossegue 
a
   docência e desenvolve o telescópio  que está na origem das
   extraordinárias observações relatadas nesse texto.
        Após a vinda a público do "Mensageiro das Estrelas" e da
   abundante argumentação de natureza experimental sobre os 
factos
   astronómicos, onde se destaca, sem dúvida, a descoberta dos 
quatro
   Satélites de Júpiter, as discussões vão aumentar de 
intensidade, pois
   não faltaram aqueles que negavam a existência dessas 
"monstruosidades"
   celestiais. Galileu está no seu terreno favorito, convencido 
da razão
   que lhe assiste e detendo uma vantagem estratégica face aos 
seus
   adversários, não perde nenhuma oportunidade para fazer vingar 
as suas
   teses e ajustar contas com um mundo académico que jamais o 
tinha
   aceite de boa vontade!
        Eram então levadas a efeito demonstrações da Luneta que
   abrilhantavam serões de convívio e debate sobre assuntos 
filosóficos e
   astronómicos. Era frequente que nenhum dos convidados 
conseguisse ver
   coisa alguma através de tão estranho "tubo", quer devido à 
falta de
   treino de observação, quer pelo facto da sua construção ser 
ainda
   relativamente rudimentar. Claro que havia sempre duas atitudes
   possíveis: a primeira, a daqueles que se consideravam 
"modernos" e de
   espírito aberto às novidades da Ciência, sempre haveriam de 
murmurar
   um comentário laudatório, mesmo que só tivessem visto umas 
vagas luzes
   nos céus; a segunda, situada no campo oposto, vociferava aos 
sete
   ventos o infame logro, atribuindo­o a motivos de ilusão de 
óptica e
   aberrações oriundas de tão ordinário instrumento!
        Foi o que aconteceu num convívio­demonstração que teve 
lugar em
   Bolonha, por fins de Abril de 1610, poucas semanas após a 
publicação
   do livro, onde ocorre o famoso episódio atribuido a Cremonini 
e Libri,
   professores de Filosofia em Pádua, que se recusaram a olhar 
pela
   Luneta, pois tal facto seria por si mesmo uma forma de admitir
que
   "alguma coisa de novo" pudesse ser visto através dela...
        Ora, dado que uma das facetas do temperamento de Galileu 
o leva a
   entender que a vingança é um prato que se serve frio, não é de
admirar
   que, aproveitando­se do facto da morte do Professor Libri, 
tenha feito
   constar a seguinte opinião: " (...) Libri não optou pela 
observação
   das minhas ninharias celestiais enquanto estava na Terra; 
talvez neste
   instante o faça, agora que foi para os Céus. (...) ".
        A controvérsia arrasta­se durante meses e o único apoio 
recebido
   vem­lhe de Kepler, com quem mantinha uma vaga correspondência 
que
   remontava a 1597 e que, na altura, era um matemático e 
astrónomo de
   grande prestígio. Publicou uma "carta aberta" em defesa de 
Galileu,
   intitulada "Conversa com o Mensageiro das Estrelas", na qual 
faz boa
   fé nas afirmações por todos contestadas e onde traça 
espantosos planos
   para o futuro, bem típicos da sua alma agitada e genialmente
   paradoxal. " (...) Não haverá falta de pioneiros humanos 
quando
   dominarmos a arte de voar. Quem teria pensado que a navegação 
através
   do vasto oceano era menos perigosa e mais calma do que nos 
apertados e
   ameaçadores golfos do Adriático, ou do Báltico, ou dos 
estreitos
   Britânicos ? Vamos criar navios e velas ajustados ao éter 
celestial, e
   haverá muitas pessoas sem medo das vastidões vazias. 
Entretanto,
   preparemos para os bravos viajantes dos céus, mapas dos corpos
   celestiais. Eu fá­lo­ei para a Lua e tu, Galileu, para 
Júpiter. (...)
   ".
        Aproveita também Kepler para, pouco depois, em Agosto de 
1610,
   pedir a Galileu que lhe ceda uma luneta análoga à que este 
usou, de
   forma a que possa testemunhar de viva alma essas 
extraordinárias
   novidades, pelo que ficamos a saber que o seu depoimento na 
"carta
   aberta" não se apoia na observação, mas na convicção dos 
afectos,
   atitude bem pouco científica, no presente contexto. " (...)
   Despertaste em mim um grande desejo de ver o vosso instrumento
de
   forma a que, finalmente, eu possa usufruir como tu do 
espectáculo dos
   céus. Pois entre os instrumentos aqui à nossa disposição, o 
melhor
   amplia só dez vezes (...) Não quero esconder que cartas de 
vários
   Italianos chegaram a Praga negando que esses planetas possam 
ser
   vistos através do teu telescópio. (...) ".
        Galileu aproveita para divulgar este providencial apoio, 
apesar
   de nunca enviar a Kepler a luneta que ele tanto desejava, com 
a
   desculpa de ter oferecido a melhor que possuia ao Grão­Duque 
da
   Toscânia e de, entretanto, estar a fabricar outras novas!
        Finalmente, por alturas de Setembro, Kepler recebe, 
emprestado
   por alguns dias, um telescópio pertencente ao Duque da Bavária
que se
   encontrava de visita a Praga, conseguindo então testemunhar
   pessoalmente a veracidade das afirmações de Galileu. Também 
astrónomos
   Jesuítas, entre os quais o prestigiado Padre Clavius de Roma,
   confirmam os factos, assim contribuindo para o crescente 
triunfo de
   Galileu nos meios intelectuais italianos, reforçado depois 
pelas
   observações das fases de Vénus e de duas luas em Saturno.
   
   
   
   2 ­ OS OVOS DOS BABILÓNIOS
   
   
   
        Galileu sente que os tempos lhe são favoráveis e a hora 
do
   triunfo público se aproxima. A convite dos Médicis, instala­se
em
   Florença na qualidade de "Filósofo e Matemático Principal", é 
recebido
   em audiência pelo Papa Paulo V, eleito para a "Academia dos 
Linces"  e
   publicamente homenageado pelo poderoso Colégio Jesuíta de 
Roma.
        " (...) passou em Roma a Primavera seguinte  1611  . A 
visita foi
   um triunfo. O Cardeal del Monte escreveu numa carta: «Se ainda
   estivessemos a viver sob a antiga República Romana, creio 
firmemente
   que teria havido um obelisco erigido na capital em homenagem a
   Galileu.». A selecta «Academia dos Linces», presidida pelo 
Príncipe
   Federico Cesi, elegeu­o como seu membro e ofereceu­lhe um 
banquete;
   foi neste banquete que a palavra «telescópio» foi pela 
primeira vez
   aplicada à nova invenção. O Papa Paulo V recebeu­o em 
audiência
   amigável, e o Colégio Jesuíta de Roma honrou­o com várias 
cerimónias
   que duraram um dia inteiro. O astrónomo e matemático principal
do
   Colégio, o venerável Padre Clavius, principal autor da reforma
   gregoriana do calendário, que de início se tinha rido do 
"Mensageiro
   das Estrelas", estava agora inteiramente convencido; assim 
acontecia
   com os outros astrónomos do Colégio, os Padres Grienberger, 
Van
   Maelcote e Lembo. Não só aceitaram as descobertas de Galileu, 
mas
   melhoraram as suas observações, particularmente sobre Saturno 
e as
   fases de Vénus. Quando o director do Colégio, Cardeal 
Belarmino, os
   interrogou sobre as suas opiniões oficiais a propósito das 
novas
   descobertas, eles unanimemente confirmaram­nas.(...)".
        Até 1623, altura em que o Cardeal Barberini é eleito 
Papa, sob o
   nome de Urbano VIII, Galileu mantém uma actividade frenética e
uma
   popularidade crescente, entremeada de polémicas, debates com 
os
   aristotélicos, bem como dos primeiros problemas com a 
Inquisição que
   terminam com o Decreto de 1616, que resultou duma denúncia 
feita pelos
   Dominicanos do Convento de S. Marcos.
        Nesse decreto o nome de Galileu nunca é mencionado,  
certamente
   devido à interferência favorável dos seus inúmeros admiradores
   situados nos mais altos escalões da hierarquia eclesiástica, 
sendo a
   principal vítima o pobre Copérnico, cuja imediata prisão foi 
sugerida
   pelo Bispo de Fiesole, que bem espantado ficou ao ser 
informado que o
   relapso astrónomo tinha cometido a inconveniência de morrer há
quase
   setenta anos! !
        O episódio que está subjacente a este incidente, conta­se
em
   poucas palavras. Houve um jantar na Corte dos Médicis onde, 
para além
   de inúmeras personalidades, estava presente a mãe do 
Grão­Duque,
   Cristina de Lorraine, que era conhecida pelo seu temperamento 
fogoso,
   teimosia e gosto pela oratória. Presentes também vários 
professores,
   entre os quais o Padre Castelli, matemático em Pisa e o Doutor
   Boscaglia, mestre de Filosofia. Foram estes os interlocutores 
duma
   conversa de salão liderada pela Grã­Duquesa Cristina, desejosa
de
   investigar a fundo o estranho caso dos "Planetas Mediceus", a 
fim de
   saber se eram algo de real ou uma obscura burla visando fins
   inconfessáveis. . .
        Acalmada a Duquesa com as considerações dos Professores 
Castelli
   e Boscaglia, favoráveis à realidade desses astros, mesmo assim
parece
   que o Doutor Boscaglia teria deixado cair alguns comentários 
venenosos
   ao ouvido dessa singular senhora, sugerindo que apesar dos 
Satélites
   lá deverem andar pelos céus, certo seria que grossa asneira 
era
   sustentar que a Terra se movia em torno do Sol, contra o que 
constava
   das Santas Escrituras.
        Galileu, que não estava presente no jantar, sabe das 
novidades
   por uma carta de Castelli. " (...) em primeiro lugar deve 
saber que,
   enquanto estávamos à mesa, o Doutor Boscaglia teve a atenção 
de Madame
   por algum tempo; e, concedendo como verdadeiras todas as novas
coisas
   que descobriu nos céus, disse que só o movimento da Terra 
tinha em si
   algo de inacreditável, e não podia ter lugar, em particular 
porque a
   Santa Escritura era obviamente contrária a esta perspectiva. 
(...) ".
        Ciente do seu prestígio e com contas por ajustar face à
   turbamulta que contra ele conspirava na sombra, resolve 
contra­atacar
   na forma duma carta­aberta, primeiro dirigida a Castelli e, 
mais
   tarde, numa versão final intitulada "Carta à Grã­Duquesa 
Cristina". É
   esta carta que motiva a denúncia ao Santo Ofício, feita pelos
   Dominicanos de Florença. A 7 de Fevereiro de 1615, o Padre 
Lorini faz
   chegar ao Cardeal Sfondrati a seguinte queixa: " (...) Todos 
os nossos
   Padres deste devoto convento de S. Marcos são de opinião que a
carta
   contém muitas proposições que parecem ser suspeitas ou 
presunçosas,
   como quando afirma que a linguagem da Santa Escritura não 
significa o
   que parece significar; que em discussões sobre fenómenos 
naturais, o
   último e mais baixo lugar deve ser dado à autoridade do texto 
sagrado;
   que os seus comentadores erraram muito frequentemente na sua
   interpretação; que as Santas Escrituras não devem ser 
associadas com
   nada, excepto com assuntos de religião. (...) que falam em 
termos
   desdenhosos dos antigos Padres e de S. Tomás de Aquino; que 
estavam a
   espezinhar toda a filosofia de Aristóteles que tem sido de tão
grande
   importância para a Teologia escolástica; (...) quando, digo, 
me tornei
   consciente de tudo isto, decidi dar conhecimento a Vossa 
Senhoria do
   estado das coisas, de forma a que o Senhor, no seu Santo zelo 
pela Fé
   possa, em conjunto com os seus muito ilustres colegas, 
providenciar
   soluções, conforme pareça aconselhável. Eu, que entendo que 
aqueles
   que se auto­proclamam Galileicos são todos homens tranquilos e
bons
   Cristãos, mas um pouco arrogantes e presunçosos nas suas 
opiniões,
   declaro que não sou movido por nada neste assunto, a não ser 
por zelo
   da sagrada causa. (...) ".
        A "Carta à Grã­Duquesa Cristina" manifesta o brilhante 
estilo
   literário de Galileu, a sua vertente irónica, argumentativa e
   polemista, defendendo os postulados do "saber Moderno", ao 
mesmo tempo
   que entra no terreno perigoso do confronto da Ciência com a 
Bíblia,
   afirmando que esta não deve ser interpretada literalmente e 
que, antes
   de se condenar uma proposição da física, deve­se demonstrar 
que não
   está rigorosamente fundamentada, tarefa que cabe àqueles que 
entendem
   serem essas afirmações falsas. Isto é, numa manobra táctica de
grande
   sagacidade, transporta o "ónus da prova" não para quem afirma,
mas
   para quem nega!
        " (...) Há alguns anos, como Vossa Serena Alteza sabe, 
descobri
   nos céus muitas coisas que não tinham sido vistas antes da 
nossa
   época. A novidade dessas coisas, assim como algumas 
consequências que
   delas se seguiram, contrariaram noções físicas usualmente 
aceites
   entre filósofos académicos e atiçaram contra mim um não 
pequeno número
   de professores ­­­ como se eu tivesse colocado nos céus essas 
coisas
   com as minhas próprias mãos, a fim de aborrecer a natureza e 
derrubar
   as ciências.
        Manifestando um apreço maior pelas suas próprias opiniões
que
   pela verdade, pensaram negar e desaprovar as novas coisas que,
se
   cuidassem de observar por eles mesmos, os próprios sentidos 
lhes
   teriam demonstrado. Para tal fim divulgaram várias acusações e
   publicaram numerosos escritos cheios de vãos argumentos, e 
cometeram o
   grave erro de os misturarem com passagens tiradas de locais da
Bíblia
   que não conseguiram compreender apropriadamente. (...) Não só
   contradições e proposições distantes da verdade podem aparecer
na
   Bíblia, mas também graves heresias e loucuras. Porventura 
seria
   necessário atribuir a Deus pés, mãos e olhos, assim como 
outros
   afectos corpóreos e humanos, como a ira, o arrependimento, o 
ódio, e
   até por vezes o esquecimento das coisas passadas e a 
ignorância das
   futuras. Por essa razão, parece que nada de físico que os 
sentidos e a
   experiência apresentem diante dos nossos olhos ou que 
demonstrações
   necessárias nos provem, deve ser posto em questão (muito menos
   condenado) a partir do testemunho de passagens bíblicas que 
podem ter
   diferentes sentidos por trás das palavras. (...) Se conclusões
físicas
   verdadeiramente demonstradas não precisam de ser subordinadas 
a
   passagens bíblicas, (...) então, antes que uma proposição 
física seja
   condenada, deve ser provado que não está rigorosamente 
demonstrada ­­­
   e isso deve ser feito não por aqueles que sustentam ser 
verdadeira a
   proposição, mas por aqueles que a julgam falsa. Isto parece 
muito
   razoável e natural, pois aqueles que entendem que um argumento
é falso
   podem muito mais facilmente nele encontrar falácias que os 
homens que
   o consideram como verdadeiro e conclusivo. (...) ".
        Apesar de Galileu ter saído incólume e aparentemente 
triunfante
   deste primeiro embate com a Inquisição, a verdade é que tinha 
entrado
   numa área de debate onde os seus adversários o pretendiam 
colocar,
   empurrando­o para uma escorregadia disputa teológica, a prazo
   responsável por um processo que manifestamente desagradou a
   significativos sectores da hierarquia da Igreja que muito o 
admiravam.
        Entre 1616 e 1623, altura em que chega ao papado Urbano 
VIII,
   Galileu trabalha com um objectivo determinado, no sentido de 
provar a
   veracidade do sistema coperniciano e a sua superioridade 
teórica e
   prática face ao modelo de Ptolomeu. Tal prova apoiar­se­ia 
numa
   "teoria das marés" e seria um argumento objectivo que visava
   demonstrar o movimento da Terra,  quer em torno do seu eixo, 
quer em
   torno do Sol, assim garantindo a consistência do 
heliocentrismo de
   Copérnico.
        Apoiava­se na ideia segundo a qual, durante a noite, a 
combinação
   dos movimentos de rotação e translacção levaria a que a "terra
firme"
   se movesse mais rapidamente que durante o dia. À noite, as 
duas
   velocidades (rotação e translacção) "somar­se­iam", pois 
tinham o
   mesmo sentido, enquanto que, de dia, "subtrair­se­iam", dado 
terem
   sentidos diferentes.
        Resultado: à noite, a água do mar ficava "para trás",
   explicando­se a maré­baixa e, de dia, avançava a água face à 
terra,
   resultando na maré­alta. Ideia engenhosa, mas falsa que, para 
além do
   mais, não explicava o motivo que levava à existência de duas 
marés
   cheias diárias e destas variarem na hora em que atingem a sua 
máxima
   plenitude!
        Galileu, consciente desta questão, explicava a segunda 
maré­cheia
   por causas secundárias, desvalorizando­a no conjunto da 
teoria, com a
   argúcia que lhe é usual. A incongruência desta linha de 
pensamento em
   alguém que é o grande teorizador das Leis do movimento é um 
facto que
   nos deixa perplexos, e só pode entender­se no contexto duma 
militância
   coperniciana que, por vezes, lhe tolda a lucidez necessária. E
talvez
   também por uma desvalorização dos seus adversários a quem, com
algum
   excessivo auto­convencimento, trata como se fossem sócios 
permanentes
   duma confraria de imbecis. . .
        Nesta ordem de ideias, é muito certeiro o comentário de 
Arthur
   Koestler: " (...) a falácia do argumento reside no seguinte. O
   movimento só pode ser definido relativamente a algum ponto de
   referência. Se o movimento é referido ao eixo da Terra, então,
   qualquer parte da sua superfície, terra ou água, move­se dia e
noite
   com velocidade uniforme, e não haveriam marés. Se o movimento 
é
   referido às estrelas fixas, então encontraremos as 
modificações
   periódicas do diagrama, que são as mesmas para a terra e o 
mar, e não
   podem produzir diferença de «momento» entre a terra e o mar. 
Uma
   diferença no «momento» , que provoque um «avanço do mar» só 
poderia
   acontecer se a Terra recebesse um impacto duma força externa
­­­
   digamos, colidindo com outro corpo. Mas quer a rotação da 
Terra, quer
   a sua revolução anual são inerciais, isto é, auto­perpetuam­se
e,
   desta forma, produzem idêntico «momento» no mar e na terra; e 
uma
   combinação dos dois movimentos continua a resultar no mesmo 
«momento».
   A falácia do raciocínio de Galileu consiste em ele referenciar
o
   movimento do mar ao eixo da Terra e o movimento da Terra às 
estrelas
   fixas. (...) ".
        Nos anos subsequentes, Galileu não abandonou esta 
demonstração
   viciada e continuou a atribuir­lhe uma importância estratégica
   decisiva, de tal forma que o seu famoso "Diálogo" esteve para
   chamar­se "Diálogo sobre o Fluxo e Refluxo das Marés" !
        Mas antes da publicação desta obra, em preparação desde 
há longo
   tempo, vem a público, em 1623, "O Experimentador" ("Il 
Saggiatore"). É
   um ano de percas e ganhos, do ponto de vista da correlação de 
forças
   favoráveis e desfavoráveis. Do lado negativo, a morte de Cosme
II e do
   Cardeal Belarmino, lider espiritual dos Jesuítas; do lado 
positivo, a
   substituição de Paulo V por Urbano VIII, a quem Galileu dedica
o seu
   novo e polémico texto.
        "O Experimentador" foi, em última estância, resposta a 
uma
   conferência publicada pelo Jesuíta Padre Horatio Grassi, sobre
a
   natureza dos cometas, onde eram ditas coisas bem acertadas, 
mas na
   qual nunca era citado o nome de Galileu. Este prepara de 
imediato uma
   apropriada retaliação, presente no "Discurso sobre os 
Cometas",
   formalmente da autoria de Mario Guiducci, um antigo aluno, por
trás de
   quem, na sombra, se sente a mão de Galileu.  O Padre Grassi,  
ciente
   da origem do ataque, melifluamente responde ao livro de 
Guiducci com
   "Balanço Filosófico e Astronómico" (1619) onde, ignorando o 
autor
   formal do "Discurso sobre os Cometas", diz de Galileu o que 
Maomé não
   disse do toucinho!
        Desta feita, "O Experimentador" não perdoa, desfazendo 
com
   requintes de ironia e malvadez, tudo aquilo que Grassi 
sustentava
   sobre cometas, projécteis ou alternativas às teses de 
Copérnico,
   designadamente o modelo cosmológico de Tycho Brahe. É, aliás, 
a
   propósito da "teoria dos projécteis" que se cita uma magistral
   passagem, que referiremos sem mais comentários. O motivo da 
disputa
   radicava numa afirmação do Padre Grassi que sustentava que os
   projécteis eram submetidos, quando voavam, à fricção do ar, 
ficando a
   sua temperatura mais elevada. Para argumentar a favor desta 
tese,
   citou um Grego do séc.X, um tal Suidas, que dizia serem os 
Babilónios
   capazes de cozer ovos, fazendo­os rodar no ar muito 
rapidamente numa
   funda!
        Naturalmente, Galileu defendia exactamente o contrário. "
(...)
   Se Sarsi deseja que acredite, de acordo com Suidas, que os 
Babilónios
   cozem os seus ovos fazendo­os girar em fundas, assim o farei; 
mas devo
   declarar que a causa deste efeito é muito diferente daquilo 
que
   sugere. Para descobrir a verdadeira causa, raciocino da forma 
que se
   segue: «Se não atingimos um resultado que outros efectivamente
   conseguem, então deve acontecer que nas nossas operações nos 
falta
   alguma coisa que produz tais resultados. E se só houver uma 
única
   coisa que nos falta, então essa coisa pode ser a verdadeira 
causa.
   Neste momento não nos faltam ovos, nem fundas, nem gente 
robusta para
   os fazer rodar no ar; todavia, os nossos ovos não ficam 
cozidos, mas
   simplesmente arrefecem ainda mais depressa se acontece que 
estejam
   quentes. E uma vez que nada nos falta a não ser sermos 
Babilónios,
   então, ser Babilónio, é a causa da cozedura dos ovos e não a 
fricção
   do ar. » (...) ".
   
   
   3 ­ FORÇA DAS MARÉS
   
   
   
        Naturalmente, com tudo isto, as relações com os Jesuítas 
estão a
   atingir o seu ponto mais baixo e a instituição que o teve como
antigo
   aluno e onde mantinha inúmeros admiradores, dificilmente 
esquecerá
   este vendaval oriundo duma inteligência agressiva e brilhante.
Mais
   uma razão para Galileu receber com dupla alegria uma carta em 
que lhe
   é sugerido que o novo Papa gostaria de o receber pessoalmente.
" (...)
   Juro­lhe que nada agrada mais a Sua Santidade que a menção do 
seu
   nome. Depois de falar a seu respeito durante algum tempo, 
disse­lhe
   que você, Estimado senhor, tinha um ardente desejo de o 
visitar e de
   lhe beijar o pé, se Sua Santidade o permitisse, ao que o Papa
   respondeu que isso lhe daria grande prazer, se não fosse 
inconveniente
   para si. . . pois grandes homens como você devem poupar­se, a 
fim de
   que possam viver o maior tempo possível. (...) " .
        Em 1624, Galileu é recebido em sucessivas audiências por 
Urbano
   VIII, onde é carregado de elogios, presentes, medalhas, 
terminando com
   uma "carta de recomendação" que o deixa numa situação 
favorável
   perante as crescentes ameaças decorrentes de antigas e velhas
   polémicas. Parece ter sido no decurso desta convivência que 
Galileu
   obtém o consentimento para levar a bom termo o projecto do 
"Diálogo
   sobre os dois grandes Sistemas do Mundo", onde se poriam em 
confronto
   as duas teses cosmológicas e se sustentaria a defesa de 
Copérnico.
        Lembre­se que o seu pensamento e obra estavam em posição 
muito
   difícil desde a deliberação da Inquisição expressa no "Decreto
de
   1616", mas tudo leva a crer que entre o Papa e Galileu se 
tenha
   estabelecido um "acordo de cavalheiros", sendo­lhe permitido 
sustentar
   as teses de Copérnico, desde que estas fossem abordadas como 
uma
   "hipótese matemática" que interpreta certos factos, mas sem 
lhes dar
   um perfil de verdade indiscutível, pois a omnipotência de Deus
pode
   ter subjacente ao mundo leis e princípios jamais acessíveis à 
mente
   humana!
        Diga­se que as relações entre estes dois homens têm muito
de
   adulação mútua e gerarão equívocos entre personalidades tão
   singulares, que atingirão um ponto de conflito dentro de 
alguns anos.
   São, a este propósito, interessantes as observações de Arthur
   Koestler: " (...) Maffeo Barberini  Urbano VIII  era uma 
espécie de
   anacronismo: um Papa Renascentista transplantado para a época 
da
   Guerra dos Trinta Anos; um homem de letras que traduziu 
passagens da
   Bíblia para hexâmetros; cínico, arrogante, desejoso de poder 
secular.
   Conspirou com Gustavus Adolphus, o herético protestante, 
contra o
   Sacro Império Romano; e ao saber da morte de Richelieu, 
observou: «Se
   existir um Deus, o Cardeal Richelieu terá muito por que 
responder; se
   não existir, fez muitíssimo bem. ». Fortificou o Castelo de S.
Angeli,
   e fundiu canhões a partir dos tectos de bronze do Panteão ­­­ 
que
   deram origem ao epigrama: «O que os bárbaros não fizeram, 
Barberini
   fez. ». Fundou o «Gabinete da Propaganda» (para missionários),
   construiu o Palácio Barberini, e foi o primeiro Papa a 
consentir que
   um monumento a si próprio fosse erigido durante a vida. (...) 
A sua
   famosa declaração de que «sabia mais que os Cardeais todos 
juntos» só
   era igualada por Galileu ao dizer que, por si mesmo, tinha 
descoberto
   tudo o que há de novo no céu. (...) Em 1620, tinha escrito uma
ode em
   honra de Galileu, intitulada «Adulatio Perniciosa» (...) Tinha
ido ao
   ponto de prestar homenagem à memória de Copérnico ­­­ numa 
audiência
   com o Cardeal Hohenzollern em 1634, após ter­se tornado Papa
­­­ e
   acrescentou a observação que «a Igreja nem condenou, nem nunca
   condenará a sua doutrina como herética, mas somente como 
negligente» .
   (...) .
        Sentindo­se apoiado ao mais alto nível, Galileu dedica­se
   afanosamente ao trabalho, que fica concluído em Janeiro de 
1630, um
   pouco antes de completar 66 anos. São inúmeras as peripécias
   subjacentes à autorização de publicação, o indispensável 
"Imprimatur",
   a que todas as obras estavam sujeitas.
        Os trabalhos tipográficos deviam ocorrer em Roma e, na 
Primavera
   de 1630, é novamente recebido pelo Papa, que lhe confirma não 
haver
   problemas em abordar Copérnico, desde que a argumentação se 
mantenha
   num plano estritamente hipotético, coisa de Filósofos e 
Astrónomos,
   tratada com a devida elevação!
        A obra passa para as mãos do Censor Principal, o Padre 
Niccolo
   Riccardi, a quem o Rei de Espanha chamava "Padre Monstro" 
devido à sua
   enorme barriga. . . Era um homem que guardava afecto por 
Galileu,
   ainda que, no fundo do coração, achasse que essas disputas
   cosmológicas eram coisa de loucos que não tinham mais que 
fazer,
   arrumando na mesma prateleira Aristóteles, Ptolomeu e 
Copérnico,
   confraria nebulosa cuja cegueira metafísica os impedia de ver 
que "
   (...) a derradeira verdade era que as estrelas são movidas por
anjos.
   (...) ".
        Leu o livro e achou que lá havia estranhos e bizarros 
argumentos.
   Apesar de consciente dos beneplácitos papais, tudo aquilo lhe 
parecia
   uma tortuosa e obstinada defesa de Copérnico. Para se 
defender,
   resolveu pedir parecer ao seu assistente, Padre Visconti, 
insistindo
   em que passasse a obra a pente fino e se fizessem alterações, 
de forma
   a cumprir­se o disposto no "Decreto de 1616". Por sua vez, o 
Padre
   Visconti deve ter­se apercebido do grande imbróglio em que 
estava
   metido e, fazendo uma ou outra nota de menor importância, 
devolve,
   qual objecto pestífero, o livro à procedência!
        O Padre Riccardi decide então meter mãos à tarefa e pede 
uma
   prorrogação do prazo para análise do texto, mas começa a ser
   pressionado por Galileu e os amigos, alegando a urgência da
   publicação. A partir deste momento e até Fevereiro de 1632 , 
altura em
   que estão prontas as primeiras cópias impressas do "Diálogo", 
os
   factos são uma magistral operação de prestidigitação.
        Diz Arthur Koestler: " (...) O resultado desta pressão 
foi que
   Riccardi consentiu num estranho acordo: para poupar tempo, 
concedeu
   provisoriamente o " Imprimatur " ao livro, na condição de que 
ele
   próprio faria a revisão, passando depois cada página revista 
ao
   tipógrafo. Devia ser assistido nesta tarefa pelo 
universalmente
   respeitado Príncipe Cesi, Presidente da Academia dos Linces.
        Mal este acordo foi concluído, Galileu regressou a 
Florença para
   escapar ao calor de Roma, na convicção de que regressaria no 
Outono.
   Pouco depois da sua partida, o Príncipe Cesi morreu. Algumas 
semanas
   mais tarde, irrompeu a peste, e uma estreita quarentena tornou
   difíceis as comunicações entre Roma e Florença. Isto 
providenciou uma
   óptima oportunidade para Galileu baralhar as condições sob as 
quais
   tinha sido concedido o "Imprimatur": pediu que o livro fosse 
impresso
   em Florença, fora do controlo de Riccardi. (...) A princípio 
Riccardi
   recusou permitir a impressão do livro em Florença sem o rever;
pediu
   que Galileu lhe enviasse, para tal fim, o manuscrito até Roma.
Galileu
   respondeu que os regulamentos da quarentena tornavam 
impossível o
   envio em segurança do manuscrito, e insistiu para que a 
revisão final
   fosse feita por um censor Florentino. Referiu o apoio do 
Grão­Duque (a
   quem Riccardi, como Florentino, devia obediência) . O 
Embaixador da
   Toscânia, Niccolini e o Secretário do Papa, Ciampoli, também
   insistiram na pressão. O Padre " Monstro " era um convidado 
permanente
   em casa de Niccolini; finalmente, foi a sua bela prima 
Catarina que o
   fez ceder, à mesa de jantar e após uma garrafa de Chianti. 
Concordou
   que o trabalho fosse impresso e revisto em Florença, excepto 
no
   prefácio e parágrafos conclusivos, que lhe deviam ser 
submetidos.
        A revisão era para ser feita pelo Inquisidor Florentino, 
Padre
   Clemente Egidii. Mas isto não era do agrado de Galileu, que 
propõe o
   Padre Stefani em vez de Egidii. Riccardi concordou uma vez 
mais.
   Evidentemente, o Padre Stefani estava inteiramente sob a 
influência de
   Galileu, uma vez que «foi às lágrimas» durante muitas 
passagens do
   livro, devido à sua «humildade e reverente obediência». 
Stefani fez
   poucas correcções, para salvar as aparências, e a impressão 
começou em
   1631. (...) ".
        Esta esclarecedora passagem revela que, no fundo, o livro
escapou
   às malhas da Inquisição, apesar de, formalmente, se terem 
cumprido os
   requesitos legais!
        Como se sabe, o texto desenvolve­se em forma dum diálogo 
que dura
   quatro dias, entre três personagens, Salviati,  Sagredo  e 
Simplicius,
   tendo como tema central, como o próprio título explicita, um 
debate em
   torno dos dois grandes Sistemas do Mundo, o Ptolomeico e o
   Coperniciano. Salviati é o "duplo" de Galileu e Sagredo 
aparece como o
   bom interlocutor, aquele que levanta dúvidas sensatas, mas que
   responde positivamente aos argumentos de Salviati. Quanto a
   Simplicius, está­lhe reservado o papel de defensor das 
concepções
   clássicas e é sucessivamente ultrapassado pela brilhante mente
de
   Salviati que, uma a uma, desmonta as suas teses, para maior 
honra e
   glória de Copérnico. O primeiro e segundo dias são dedicados à
   refutação de Aristóteles, na generalidade e na especialidade,
   respectivamente. O terceiro e quarto dias vivem do debate de 
Copérnico
   e, fundamentalmente, duma prova empírica da sua validade, a 
famosa
   "Teoria das Marés", guardada como arma final, para fechar o 
quarto dia
   e derrotar os derradeiros alentos do pobre Simplicius.
        Apesar da argumentação brilhante e correcta de Salviati,
   particularmente nas concepções da relatividade do movimento, é
verdade
   que Kepler continua a ser ignorado e a "teoria das Marés" 
mantém­se
   inconsistente como prova do movimento da Terra em torno do 
Sol.
        Aqui reside o ponto central da questão que vai 
desencadear um
   vendaval! Não só Galileu, sub­repticiamente, deixa de tratar o
sistema
   de Copérnico como uma hipótese, pois dá­lhe uma "prova" 
(Teoria das
   Marés), torneando o acordo com Urbano VIII, como este se julga
ver
   retratado, em parte, nas posições de Simplicius, cuja figura é
uma
   espécie de antepassado do "Bei de Túnis", de que nos falava 
Eça de
   Queiroz. . .
   
   
   
   
   4 ­ " VAE VICTIS "
   
   
   
        Em Agosto o livro é confiscado e Galileu convocado para 
se
   apresentar à Inquisição de Roma,   sendo nomeada uma Comissão 
para
   elaborar um relatório sobre o assunto, que faz uma listagem 
das
   prevaricações, mas não propõe nenhuma medida concreta. O 
primeiro
   interrogatório formal tem lugar a 12 de Abril de 1633 e, sem 
lhe ser
   revelada a acusação, melifluamente perguntam­lhe se sabe por 
que
   motivo ali se encontra. Galileu admite que tudo se deve 
relacionar com
   os seus "Diálogos" e, perante o decorrer da conversa, vai 
declarando
   que não era sua intenção defender Copérnico em termos 
absolutos.
   Perante esta evasiva, são nomeados três peritos, que fazem um 

   relatório de tonalidade muito perigosa para Galileu, 
insistindo
   detalhada e fundamentadamente nas linhas de acusação já 
referidas.
        Galileu, com quase setenta anos, sente­se vulnerável e
   abandonado! Já não são possíveis evasões retóricas ou 
habilidades
   palacianas. Os seus adversários estão ao mais alto nível do 
Poder e,
   desta feita, não lhe deixarão margem para recuar. Pretendem a
   confissão pública e completa. O seu objectivo não é matar, ou 
o pão e
   água duma enxovia sórdida, mas a humilhação pura e simples.
        Entre a primeira e segunda audiência, que tem lugar a 30 
de
   Abril, há uma iniciativa privada dum Comissário da Inquisição,
Frei
   Vicenzo da Firenzuola, que vai junto de Galileu, 
aconselhando­o a
   mudar de estratégia, para seu próprio bem. . .
        " (...) Finalmente, sugeri uma diligência, nomeadamente 
que a
   Santa Congregação me concedesse autorização para lidar com 
Galileu
   extra­judicialmente, de forma a torná­lo sensível do seu erro 
e a
   levá­lo, se ele o reconhecer, a uma confissão do mesmo. (...) 
Para que
   nenhum tempo fosse perdido, ontem à tarde entrei em contacto 
com
   Galileu, e após muitos e muitos argumentos e objecções terem 
sido
   trocados entre nós, pela graça de Deus, atingi o meu 
objectivo, pois
   trouxe­o à plena consciência do seu erro, de tal forma que ele
   claramente reconheceu que tinha errado e tinha ido longe de 
mais no
   seu livro. E de tudo isto deu testemunho com palavras muito 
sentidas,
   como alguém que experimenta uma grande consolação com o 
reconhecimento
   do seu erro, e estando também com vontade de o confessar
   judicialmente. Solicitou, contudo, um pouco de tempo de forma 
a
   ponderar o processo segundo o qual poderia mais adequadamente 
fazer a
   confissão que, no que diz respeito à sua substância, deve, 
espero eu,
   seguir­se da maneira indicada. (...) ".
        Na segunda audiência, Galileu lê a declaração entretanto
   redigida, temperando as palavras com a argúcia que lhe resta 
nestas
   difíceis circunstâncias, indo ao encontro das pressões dos
   Inquisidores. Aí admite que o seu livro pode ter ambiguidades 
que
   parecem contradizer as interdições à publicitação e defesa de
   Copérnico, mas não era a sua intenção, mas sim o contrário. 
Todo o
   clima é de alguém que está francamente assustado com o decurso
dos
   acontecimentos e tem a sua margem de manobra reduzida ao 
mínimo.
        " (...) No decurso de alguns dias de contínua e atenta 
reflexão
   sobre os interrogatórios que me foram feitos no dia doze do 
presente
   mês, e particularmente se, há dezasseis anos, uma ordem me 
tinha sido
   dirigida por determinação do Santo Ofício, proibindo­me de 
sustentar,
   defender, ou ensinar por qualquer forma a opinião que tinha 
acabado de
   ser condenada ­­­ do movimento da Terra e da estabilidade do 
Sol ­­­
   ocorreu­me reler o meu " Diálogo " já publicado, que há três 
anos não
   via, de forma a cuidadosamente verificar se, contrariamente à 
minha
   muito sincera intenção, teria, por inadvertência, saído da 
minha pena,
   alguma coisa sobre a qual o leitor, ou as autoridades, 
pudessem
   inferir não só algum vestígio de desobediência da minha parte,
mas
   também outros pormenores que pudessem induzir a convicção que 
eu tinha
   desobedecido às ordens da Santa Igreja. (...) E devido a não o
ter
   visto desde há muito tempo, apresentou­se­me, tal como estava,
como um
   novo texto dum outro autor. Confesso livremente que em vários 
locais
   pareceu­me desenvolver­se de tal forma que um leitor ignorante
da
   minha autêntica intenção, poderia ter razão para supôr que os
   argumentos aduzidos para o lado falso, e que era minha 
intenção
   refutar, eram expressos de forma a serem calculados, mais para
   recolher convicção pela força lógica do que pela facilidade de
   solução. (...) O meu erro foi ­­­ e confesso­o ­­­ de ambição
   desmedida e de pura ignorância e inadvertência. (...)".
        No final desse depoimento, Galileu sugere a possibilidade
de
   acrescentar mais um ou dois dias aos "Diálogos" a fim de que a
sua
   posição fique bem clara e todos se apercebam da bondade 
subjacente às
   suas explicações. Se este desejo era sincero ou mais um 
estratagema,
   nunca o saberemos. O Santo Ofício resolveu não dar seguimento 
a esta
   piedosa solicitação, pois quando a esmola é grande . . .
        " (...) E em confirmação da minha afirmação de que não 
mantive
   nem mantenho como verdadeira a opinião que foi condenada, do 
movimento
   da Terra e estabilidade do Sol ­­­ se me forem concedidos, 
como
   desejo, tempo e meios para fazer uma demonstração mais clara, 
estou
   pronto a fazê­lo; e há uma oportunidade muito favorável para 
isso,
   dado que na obra já publicada os interlocutores concordam em
   encontrar­se de novo após algum tempo, para discutirem vários 
outros
   problemas da Natureza, não relacionados com o assunto debatido
nos
   seus encontros.
        Como isto me dá oportunidade de acrescentar um ou dois 
dias,
   prometo retomar os argumentos já expostos em favor da dita 
opinião,
   que é falsa e foi condenada, e refutá­los da maneira mais 
eficiente
   que me seja concedida pela graça de Deus. Por conseguinte, 
peço a este
   anto Tribunal que me ajude nesta boa decisão e que me 
possibilite
   pô­la em prática....) ".
        Abatido e humilhado com este doloroso processo, Galileu, 
com
   setenta anos, apresenta a defesa numa audiência intercalar que
tem
   lugar a 10 de Maio, apelando à magnanimidade do Tribunal, 
solicitando
   atenuantes decorrentes da sua particular situação pessoal. " 
(...) Por
   último, resta­me pedir­vos para levarem em consideração o meu 
triste
   estado de mal estar físico, ao qual, com 70 anos, fui reduzido
por dez
   meses de constante ansiedade mental. (...) para além da perca 
de
   grande parte dos anos que esperava usufruir, tendo em atenção 
a minha
   anterior condição de saúde. Estou persuadido e encorajado a 
assim
   fazer, pela fé na clemência e bondade dos muito Eminentes 
Senhores,
   meus juízes. (...) ".
        Diga­se que a Inquisição não tinha usado com Galileu, 
para seu
   bem, dos aberrantes procedimentos que desencadeava para 
situações
   análogas. Mesmo nesta posição de elevado risco, Galileu é 
tratado com
   relativa consideração, pois " (...) não foi confinado às 
masmorras da
   Inquisição, mas permitem­lhe permanecer como convidado da 
Embaixada da
   Toscânia na Villa Médicis, até depois do seu primeiro 
interrogatório.
   Depois, teve de entregar­se formalmente à Inquisição, mas em 
vez de
   ser colocado numa cela, foi­lhe destinada uma zona com cinco 
quartos
   no próprio Santo Ofício, virada para S. Pedro e os jardins do
   Vaticano, com o seu criado pessoal (...) Aqui permaneceu de 12
de
   Abril até ao segundo interrogatório, em 10 de Maio. Então, 
antes que o
   seu julgamento terminasse, foi autorizado a regressar à 
Embaixada da
   Toscânia ­­­ um procedimento muito invulgar, não só nos anais 
da
   Inquisição, mas de qualquer outro sistema judiciário. 
Contrariamente à
   lenda, Galileu nunca passou um dia de vida numa cela de 
prisão. (...)
   ".
        Os dados estão lançados. Após um terceiro interrogatório,
poucos
   dias depois, em finais de Junho, é­lhe lida a sentença que " 
(...)
   estava assinada somente por sete dos dez juízes. Entre os três
que se
   abstiveram estava o Cardeal Francesco Barberini, irmão de 
Urbano. O
   «Diálogo» foi proibido; Galileu devia abjurar a opinião 
Coperniciana e
   foi sentenciado a «prisão formal enquanto o Santo Ofício 
entendesse» ;
   e nos três anos seguintes, devia repetir uma vez por semana os
sete
   salmos penitenciais. (...) ".
        Após fazer uma síntese do historial do processo, a 
sentença
   conclui, afirmando:
        "(...) Invocando (...) o muito Santo nome de Nosso Senhor
Jesus
   Cristo e da Sua Gloriosa Mãe, sempre Virgem Maria (...) com o 
conselho
   e parecer dos Reverendos Mestres da Sagrada Teologia e 
Doutores de
   ambas as Leis, nossos assessores (...) Dizemos, pronunciamos,
   sentenciamos e declaramos que tu, o dito Galileu, em função 
dos
   assuntos aduzidos em julgamento e por ti confessados, chegaste
ao
   julgamento deste Santo Ofício veementemente suspeito de 
heresia,
   nomeadamente, de ter sustentado e acreditado na doutrina ­­­ 
que é
   falsa e contrária às sagradas e divinas Escrituras ­­­ segundo
a qual
   o Sol é o centro do mundo e não se move de Este para Oeste e a
Terra
   se move e não é o centro do mundo; e que consequentemente 
incorreste
   em todas as censuras e penalidades impostas e promulgadas nos 
sagrados
   cânones e outras constituições, gerais e particulares, contra 
tais
   delinquências. Das quais entendemos que sejas absolvido, desde
que,
   primeiro, com coração sincero e inabalável fé, abjures, 
maldigas e
   detestes diante de nós as ditas heresias e erros e qualquer 
outro erro
   e heresia contrária à Igreja Católica Apostólica Romana, na 
forma por
   nós prescrita.
        E, para que este teu grave e pernicioso erro e 
transgressão não
   fiquem impunes e para que sejas mais cauteloso no futuro e um 
exemplo
   para que outros se abstenham de delinquências similares,
   determinamos que o livro «Diálogo de Galileu Galilei» seja 
proibido
   por édito público.
        Condenamos­te à prisão formal deste Santo Ofício durante 
o tempo
   que entendermos, e para fins de salutar penitência, 
determinamos que
   durante os três anos que se seguem, repitas uma vez por semana
os sete
   salmos penitenciais.
        Reservamo­nos a liberdade de moderar, comutar, ou 
retirar, no
   todo ou em parte, as ditas punições e penitência. (...) ".
        Terminada a leitura da sentença, é apresentado a Galileu 
o
   documento de abjuração, que deve ser lido por ele próprio em 
tribunal,
   antes de se encerrar definitivamente o processo: " (...) Eu, 
Galileu,
   filho do falecido Vicenzo Galilei, Florentino, setenta anos de
idade,
   arrolado pessoalmente diante deste tribunal e ajoelhando­me 
diante de
   vós, Muito Eminentes e Reverentes Senhores Cardeais
   Inquisidores­Gerais contra a desordem herética em toda a 
comunidade
   Cristã, tendo diante dos olhos e tocando com as minhas mãos as
   Sagradas Escrituras, juro que sempre acreditei em tudo que é
   defendido, pregado e ensinado pela Santa Igreja Católica e 
Apostólica.
   Mas, (...) após uma ordem me ter sido judicialmente dada por 
este
   Santo Ofício a fim de que abandonasse simultaneamente a falsa 
opinião
   de que o Sol é o centro do Mundo e inamovível e que a Terra 
não é o
   centro do mundo e se move e que não devo sustentar, defender 
ou
   ensinar por qualquer forma, verbalmente ou por escrito, a dita
falsa
   opinião, e após ter sido notificado que a dita doutrina era 
contrária
   à Santa Escritura ­­­ escrevi e imprimi um livro no qual 
discutia a
   nova doutrina já condenada e acrescentei argumentos de grande 
força
   lógica em seu favor, sem apresentar nenhuma solução para eles,
sendo
   pronunciado pelo Santo Ofício por veementemente suspeito de 
heresia,
   isto é, de ter sustentado e acreditado que o Sol é o centro do
mundo e
   inamovível e que a Terra não é o centro e move­se:
        Por isso, desejando remover dos espíritos de Vossas 
Eminências e
   de todos os fiéis cristãos esta veemente suspeita justamente 
orientada
   contra mim, com coração sincero e fé inamovível, eu abjuro, 
maldigo e
   detesto os ditos erros e heresias e em geral todo e qualquer 
outro
   erro, heresia e seita contrária à Santa Igreja, e juro que no 
futuro
   nunca mais direi ou afirmarei, verbalmente ou por escrito, 
nada que
   possa dar ocasião a uma similar suspeita relativamente a mim; 
mas, se
   souber de algum hereje ou pessoa suspeita de heresia, 
denunciá­la­ei a
   este Santo Ofício ou ao Inquisidor ou Ordinário do local em 
que me
   encontrar. Mais ainda, juro e prometo cumprir e observar na 
sua
   integridade todas as penas que forem, ou venham a ser, 
impostas contra
   mim por este Santo Ofício. E, no caso de contravenção ( que 
Deus o
   proiba! ) de qualquer destas minhas promessas e juramentos, 
submeto­me
   a todos os sofrimentos e punições impostas e promulgadas nos 
sagrados
   cânones e outras constituições, gerais e particulares, contra 
tais
   delinquentes. Assim o queira Deus e estas Santas Escrituras, 
que toco
   com as minhas mãos. (...) ".
        Concluído o ritual de humilhação, principal objectivo do
   Tribunal, fecha­se um dos mais tristes capítulos da história 
da
   intolerância humana, com sérias consequências para o 
desenvolvimento
   do pensamento científico e experimental, quer na península 
italiana,
   quer em toda a Europa onde impera o espírito de vistas curtas 
da
   Contra­Reforma, deslocando­se essas forças culturais para as 
regiões
   de dominância protestante, no norte e noroeste do Continente, 
como bem
   assinalou George Gusdorf.
        Quanto a Galileu, recebe ainda uma certa complacência nas
   punições que lhe são impostas, se atendermos que a " (...) 
prisão
   formal transformou­se numa estadia na «villa» do Grão­Duque em
Trinita
   del Monte, seguida por uma outra estadia no Palácio do 
Arcebispo
   Piccolamini em Siena onde, de acordo com um visitante françês,
Galileu
   trabalhava «num apartamento coberto de seda e muito ricamente
   mobilado» . Depois regressou à sua quinta em Arcetri e mais 
tarde à
   sua casa em Florença, onde passou o resto dos anos da sua 
vida. A
   oração dos salmos penitenciais foi delegada, por consentimento
   eclesiástico, na sua filha, Irmã Maria Celeste, uma freira 
Carmelita.
   (...)".
        Encerrado definitivamente o "dossier" cosmológico, 
aproveita os
   últimos anos para redigir um livro que o deixará famoso, os 
"Discursos
   e Demonstrações Matemáticas sobre as Duas Novas Ciências", 
concluído
   em 1636, no qual regressa à sua vocação magistral que sempre 
foi a
   Ciência da Dinâmica. " (...) Como não podia ter esperança 
quanto a um
   «Imprimatur» em Itália, o manuscrito foi sonegado para Leyden 
e
   publicado pelos Elzevirs;  mas também podia ter sido impresso 
em
   Viena, onde foi autorizado, provavelmente com consentimento 
Imperial,
   pelo Jesuíta Padre Paulus. (...) ".
        Apesar de ficar cego aos setenta e três anos, prossegue 
os
   estudos e é visitado por amigos e discípulos, transformando a 
sua casa
   num forum de diálogo e infinita curiosidade pelos segredos dum
mundo
   que, para ele, lentamente se desvanece. É o que diz, numa 
carta a
   Diodati: " (...) o teu amigo e servidor, Galileu, ficou 
durante o
   último mês definitivamente cego; de tal forma que estes céus, 
esta
   terra, este universo que eu, por maravilhosas descobertas e 
claras
   demonstrações, alarguei cem mil vezes para além das convicções
dos
   homens sábios dos tempos passados, daqui para diante 
comprime­se num
   espaço tão minúsculo como aquele que se enche com as minhas 
sensações
   corpóreas. (...) ".
        A larga caminhada termina em 1642, pois as leis do 
movimento por
   si descobertas têm uma singular aplicação na vida humana. " 
(...) Os
   seus ossos, contrariamente aos de Kepler, não foram espalhados
pelo
   vento;  repousam no Panteão dos Florentinos, na Igreja de 
Santa Croce,
   junto aos restos mortais de Miguel Ângelo e Maquiavel. (...) 
".
        Um homem vai, outro vem. Numa obscura aldeia inglesa,  na
noite
   de Natal deste mesmo ano, nasce Newton. Copérnico, Bruno, 
Kepler,
   Galileu, estão vingados. Nada a fazer. "Eppur si muove".
   
   PORTO, Dezembro de 1993
     © Levi António Malho   
                                      
                            A ANATOMIA DOS CÉUS
                                      
     ­­­Sobre "O MENSAGEIRO DAS ESTRELAS " de Galileu
   
     Nota: este texto está baseado, no que diz respeito às 
citações do
       "Mensageiro das Estrelas" de Galileu, na edição francesa 
de 1992,
       traduzida do Latim por Fernand Hallyn.[GALILEO GALILEI, 
«Le
       Messager des Étoiles", Seuil, Paris, 1992].Traduzimos para
para
       português as passagens da obra de Galileu que estão 
presentes
       neste artigo, respeitando tanto quanto possível o estilo, 
a
       pontuação e a construção da frase. Este artigo encontra­se
       publicado na "Revista da F.L.U.P.", série de Filosofia, 
(2ª
       série), nº 12, Porto, 1996.
     
     (. . . ) Só de vez em quando os seus pensamentos perdiam­se 
num
     nevoeiro de suave melancolia. Acontecia quando pensava no 
culto
     secreto ligado aos originais dos textos que tinha à sua 
frente, nos
     milagres que haviam emanado deles, emocionando milhares de 
seres
     humanos que, devido à grande distância que os separava dele,
lhe
     pareciam seus irmãos, ao passo que as pessoas ao seu redor, 
às
     quais via com todos os pormenores, pareciam­lhe 
desprezíveis. (. .
     . ) ".
     
     
     ROBERT MUSIL, "O Jovem Torless"
     
   
   
   
   1 ­ O ANO DO MENSAGEIRO
   
   
   
       Eis­nos em 1610, o tempo em que Galileu começa a publicar 
os
   textos que ultrapassam o pequeno­grande círculo de amigos e
   adversários e que o lançam numa aventura de escrita que 
praticamente,
   só terminará com a morte. A personalidade está formada, o 
essencial
   dos objectivos apresentam­se com suficiente clareza, os 
defeitos e
   virtudes prestam­se a atingir o esplendor.
       Posta em dúvida a formação aristotélica dos verdes anos, 

   contrariada pela aposta em Arquimedes e na admiração do 
heliocentrismo
   de Copérnico, trata­se de dar um passo decisivo que derrubará,
a
   prazo, a "Teoria dos 2 Mundos", tão pacientemente elaborada ao
longo
   de quase dois milénios. Não será um tratado gigantesco que 
disso se
   encarregará, mas uma sucessão de admiráveis obras, quer do 
ponto de
   vista científico, quer literário, que abrirão as portas à 
ciência
   moderna.
        É justo deixar aqui, desde já, uma ressalva no que à 
matéria
   astronómica e cosmológica diz respeito. Galileu é mais feliz e
   acutilante nos assuntos de "física terrestre" do que em 
"física
   celeste", mantendo por enquanto uma divisão conceptual de 
sabor
   aristotélico que só desaparecerá completamente com o triunfo 
de
   Newton, século e meio mais tarde. É verdade que defende 
Copérnico e
   nisso é anti­aristotélico e anti­ptolomeico. É verdade que 
aceita e
   descobre novidades nos céus, por essência imutáveis e 
perfeitos. Mas é
   verdade também, um pouco surpreendentemente, que não é 
sensível à
   brilhante argumentação de Kepler, cuja obra conhecia, mas sem 
a
   sagacidade de a valorizar como é devido e que, porventura, o 
levou ao
   seu maior erro cosmológico, na incapacidade de ultrapassar o 
dogma do
   movimento circular e uniforme dos astros copernicianos.
       De certa maneira, esse último vestígio de "aristotelismo
   celestial" foi sustentado por Galileu até ao fim. Neste 
particular, as
   portas da modernidade foram abertas por Kepler, um pouco 
contra
   vontade e na nostalgia das harmonias pitagóricas, sempre 
presentes por
   entre a alucinante perfeição das suas 3 Leis. Digamos, 
portanto, que
   Galileu ficou a um passo da unificação global da Física, mas 
não
   chegou nunca a encarar o movimento planetário como um caso 
complexo da
   "queda dos corpos".
       Posto isto, regressemos ao primeiro livro de Galileu. Um 
pouco em
   oposição à lógica dos grandes tratados para eruditos, 
carregados de
   metáforas, redundâncias e circunlóquios, a obra atinge­nos na 
pressão
   fulgurante da escrita, na brevidade e precisão da 
argumentação, na
   ânsia de apresentar novidades, um estilo quase jornalístico, 
novo,
   alegre, dir­se­ia mesmo, profundamente feliz por lhe ser dado 
narrar
   tantas e tão maravilhosas coisas!
       Sente­se, sem dúvida, o prazer duma inteligência na sua 
plenitude,
   o gosto de se saber ser o primeiro, um clima de euforia que 
não deixa
   de ser contagiante para o leitor contemporâneo. E também uma 
certa
   "pressa de dizer", de ser breve, de não perder tempo, talvez 
devido ao
   contentamento natural do mensageiro de boas­novas, mas também 
porque
   soubesse que outros lá poderiam chegar, se providos de meios 
técnicos
   análogos.
       Esta hipótese deve ser doseada com a anterior, pois 
Galileu não
   gosta de deixar méritos próprios por mãos alheias e mantém 
sempre no
   seu perfil comportamental uma dimensão de auto­satisfação e
   auto­elogio que nem sempre lhe consentiriam dar­nos o melhor 
de si
   próprio, e serão, em parte responsáveis pelas inúmeras 
peripécias que
   acompanham a sua biografia pessoal e científica.
       "O Mensageiro das Estrelas" é, obra breve, 56 páginas e 
pronto!
   Para se ler dum fôlego, quase dos domínios dum artigo extenso 
de
   revista científica contemporânea, delimitando bem os temas, 
dizendo o
   que tem a dizer, acumulando provas, fazendo desenhos e 
esquemas,
   anunciando futuros desenvolvimentos. Estamos, no pleno sentido
do
   tema, perante um "relatório científico", apoiado na 
observação, na
   repetição de experiências, revelando a construção e uso dos 
meios
   técnicos utilizados, um texto que "diz" sem ambiguidades e 
reserva
   lugar a novidades que se adivinham ao virar da esquina.
       Se ainda hoje este clima é patente para o leitor actual,
   imagine­se o que seria o seu impacto na altura da publicação e
o
   alvoroço que provocou nos espíritos ávidos de inovação na 
alvorada
   deste notável séc.XVII. Resultado: os quinhentos exemplares da
edição
   foram imediatamente vendidos, bem ao contrário do fracasso 
editorial
   em que caiu o texto de Copérnico, editado 67 anos antes.
       É, como já se disse, uma "obra de observação" que depende 
dum
   instrumento novo, ou quase novo, cuja invenção é, por vezes, 
atribuida
   a Galileu. "O Mensageiro das Estrelas" e a luneta astronómica 
formam
   um corpo único, disso não restam dúvidas. Em 1610, em matéria
   astronómica, estas coisas são factos novos. Tanto mais se nos
   lembrarmos que a famosa "revolução heliocêntrica" de Copérnico
é
   produzida praticamente sem observações originais e inovadoras,
vivendo
   cientificamente do património acumulado pela tradição 
aristotélica,
   ampliada e reformulada pelos astrónomos alexandrinos e pela
   curiosidade árabe. É conhecida a reserva de Copérnico em 
passar noites
   a tiritar com as brumas e geadas bálticas, espreitando astros 
que toda
   a gente sabe onde estão, no desconforto gélido dum torreão 
desabrigado
   de Frauenburg!
       A obra de Copérnico é uma re­equacionação mais elegante 
dos dados
   pré­existentes, de natureza geométrico­matemática, sob a 
inspiração de
   Aristarco e bem menos simples que as imagens poéticas que dela
nos são
   dadas.
       Investigação que comporta observações novas é a de Kepler,
mas
   esse património deve­se mais a Tycho Brahe  que ao autor de
   "Astronomia Nova", que estava financeiramente impedido de 
construir os
   espantosos instrumentos de observação precisa que a coroa 
dinamarquesa
   resolveu ceder ao seu singular astrónomo.
       Mas mesmo estes instrumentos de Tycho Brahe, a que Kepler 
teve
   acesso, eram um prolongamento da precisão da vista humana, 
visando a
   medição de desvios nos movimentos dos astros, de ângulos e 
graus
   pacientemente anotados, noite após noite, no horizonte dos 
céus. Mas
   nem Copérnico, nem Tycho Brahe, nem Kepler, podiam "ver mais 
ou mais
   longe" que um sacerdote babilónio, um astrólogo egípcio, 
ateniense,
   alexandrino, árabe ou azteca.
       É exactamente aqui que Galileu leva vantagem. A luneta
   efectivamente amplificava as limitações naturais dos sentidos 
humanos,
   permitindo vislumbrar o "nunca visto", abrindo a 
possibilidade, por
   aumento de potência e resolução óptica, de tornar presente o 
invisível
   até escalas que, devido ao progresso tecnológico, é arriscado
   antecipar.
       A invenção da luneta não se deve a Galileu! Quando muito, 
a sua
   extraordinária habilidade técnica e os seus conhecimentos de 
óptica e
   geometria, permitem­lhe desenvolver uma ideia­base de origem 
italiana
   (1590) ou holandesa (1604), de tal forma que o instrumento que
tem ao
   seu dispôr permite capacidades de resolução manifestamente 
superiores
   que, todavia, não tardarão a ser divulgados pelos círculos 
científicos
   da época. Talvez esteja aqui a razão da urgência da 
publicação, sob
   pena de outros, possuindo tecnologia análoga ou superior, 
virem a
   obter o mesmo tipo de resultados!
       Diga­se que a tecnologia dos "vidros de aumentar" tem um 
longo
   passado que remonta aos finais do séc. XIII, com utilizações 
ligadas à
   correcção de defeitos visuais, quer utilizando lentes convexas
como,
   mais tarde, lentes côncavas, para compensações da miopia. A 
combinação
   dos dois tipos de lentes, por sobreposição, e com um correcto
   distanciamento, é algo de vagamente conhecido, mas pouco 
explorado,
   antevendo­se maravilhosas potencialidades, mas que ficavam 
mais no
   domínio do sonho e da magia natural do que na sistemática 
procura
   teorética e prática que visasse a observação dos astros.
       É verdade também que este instrumento foi, de início, 
submetido a
   uma pressão de mistério e segredo, nomeadamente por razões de 
tipo
   estratégico e militar, para além das conjuras de silêncio 
explicáveis
   por motivos comerciais da responsabilidade dos produtores 
holandeses,
   que pretendiam um monopólio de fabricação.
       Contudo, não tardou muito que tal segredo fosse 
desvendado, quer
   por ofertas régias entre casas reais europeias, quer por 
permuta entre
   militares. Segundo os historiadores, em 1609, um ano antes da
   publicação de "O Mensageiro das Estrelas", na altura em que 
Galileu
   ensinava em Pádua, a luneta está à venda em Paris, nas 
oficinas
   especializadas. Nesse mesmo ano, Galileu tem conhecimento do 
facto e
   decide lançar­se à empresa de construção de modelos mais
   aperfeiçoados, na sequência duma paixão mecânica que já o 
tinha levado
   à invenção dum antepassado do termómetro, o "termoscópio", e 
do
   "pulsilogium", instrumento clínico que servia para medir os 
batimentos
   cardíacos no pulso do paciente.
       As tentativas sucedem­se, desde uma primeira versão que 
aumentava
   "três vezes", até ao modelo acabado no Verão de 1609, que já 
atinge um
   poder de aumento de "nove vezes".
       Com a habilidade estratégica e diplomática que o 
caracterizam,
   Galileu resolve fazer uma demonstração ao Senado de Veneza, a 
partir
   do campanário de S. Marcos, que originou grande espanto e 
sucesso,
   quer para fins terrestres, como para marítimos. Segundo as 
palavras de
   Fernand Hallyn, "(...) via­se distintamente a cúpula e fachada
da
   Igreja de S. Justino de Pádua, a trinta e cinco quilómetros, e
os
   navios que se aproximavam do porto eram visíveis duas horas 
mais cedo
   que à vista desarmada. (...)".
       Sabendo do interesse do Grão­Duque Cosme II de Médicis 
pelo tema e
   aproveitando a tecnologia sofisticada dos vidreiros de 
Florença,
   Galileu constrói uma versão ainda mais poderosa, com um poder 
de
   ampliação de "vinte vezes", com a qual, no Inverno de 1609, se
dedica
   a uma exploração sistemática dos céus que o levará, em breve à
   publicação de "O Mensageiro das Estrelas".
       Uma carta de 7 de Janeiro de 1610, provavelmente enviada a
António
   de Médicis, irmão do Grão­Duque, dá conta dos primeiros 
resultados da
   observação da Lua.
       "(...) vê­se que a Lua não tem uma superfície igual, lisa 
e
   polida, como muitas pessoas a julgam ser, assim como os outros
corpos
   celestes, mas pelo contrário que ela é rugosa e desigual e 
que, em
   suma, se mostra tal que, com um raciocínio são, não se pode 
concluir
   doutra forma senão dizendo que está cheia de eminências e 
cavidades,
   parecidas, ainda que muito maiores, com os montes e vales que 
estão
   disseminados sobre a superfície da Terra. (...)".
       O espanto das descobertas precipita­se durante os 
primeiros meses
   de 1610, de tal forma que a autorização de publicação é dada a
1 de
   Março, uns dias antes da última observação de Júpiter, que 
data do dia
   seguinte, 2 de Março. Por aqui se confirma a urgência de dar a
   conhecer as novidades, nesta simultaneidade entre as 
observações e os
   usuais procedimentos burocráticos e inquisitoriais do 
"Conselho dos
   Dez", sob os auspícios do Senado de Veneza. Esta precipitação,
bem ao
   estilo de Galileu, há­de repetir­se mais tarde, na altura da 
edição do
   "Diálogo sobre os dois Grandes Sistemas do Mundo" mas, desta 
feita,
   envolvida em peripécias que o levarão ao triste processo que o
espera!
   
   
   
   2 ­ GRANDES E ADMIRÁVEIS ESPECTÁCULOS
   
   
   
       A obra tem título longo, descritivo, revelando o 
entusiasmo e
   auto­satisfação de Galileu. Tem também fins estratégicos que 
visam
   directamente a família dos Médicis, junto da qual o prestígio 
de
   Galileu é crescente e que lhe permitirão uma autonomia de
   "investigação livre" que o afaste dos compromissos mais duros 
com a
   república veneziana. Senão, vejamos:
   
                               O MENSAGEIRO 
                                      
                                DAS ESTRELAS
                                      
                QUE REVELA GRANDES E ADMIRÁVEIS ESPECTÁCULOS
                                      
                 E para os quais propõe se elevem os olhos
                                      
                   a cada um, mas sobretudo, em verdade, 
                                      
                    aos FILÓSOFOS e aos ASTRÓNOMOS; por
                                      
                              GALILEU GALILEI
                                      
                            PATRÍCIO FLORENTINO
                                      
                Matemático titular da Universidade de Pádua
                                      
                       EFECTUADOS GRAÇAS A UMA LUNETA
                                      
                      Por ele recentemente concebida, 
                                      
   estas observações dizem respeito à FACE DA LUA, a INUMERÁVEIS 
ESTRELAS
                                  FIXAS, 
                                      
                   à VIA LÁCTEA, às ESTRELAS NEBULOSAS, 
                                      
                          mas antes de mais sobre
                                      
                              QUATRO PLANETAS
                                      
        voando à volta da Estrela de JUPITER a intervalos e 
períodos
                                irregulares,
                                      
   duma celeridade maravilhosa; estes planetas, até hoje de 
nenhum homem
                                conhecidos, 
                                      
    ultimamente o autor descobriu­os em primeiro lugar; por outro
lado, 
                                      
                              ASTROS MEDICEUS
                                      
                     FOI O NOME QUE DECIDIU DAR­LHES. 
                                      
   
       Como frontispício de livro, não está mal! E como operação 
de
   "marketing", melhor ainda. . . Tão extensa designação foi 
vulgarizada
   sob duas referências essenciais: "Medicea Sidera"  ("Astros 
Mediceus")
   e "Sidereus Nuncius" ("O Mensageiro das Estrelas"). As duas 
versões de
   título salientam dimensões dos aspectos mais importantes da 
obra. A
   primeira, recobre uma operação de "charme" junto do Grão­Duque
da
   Toscana, Cosme II de Médicis, a quem a obra é dedicada num 
prefácio de
   tom laudatório e grandiloquente; a segunda, dá a Galileu um 
papel
   mediador de "mensageiro de novidades" sobre o mundo dos 
astros,
   acentuando a descoberta mais espantosa que o livro contém, ao 
relatar
   à comunidade científica, pela primeira vez, a existência dos 
quatro
   satélites de Júpiter.
       Argumentando em linguagem encomiástica, Galileu refere no
   "Prefácio" que os nomes das Estrelas e Planetas se reportam a 
heróis e
   deuses, que assim encontram no reino da Natureza "objectos" 
dignos da
   sua eternidade. Infelizmente, o número de astros tem­se 
mantido
   constante, nada havendo de equiparável para elogiar a bondade 
e
   magnificência dos Médicis. . .
       "(. . . ) Emigrando para o céu, nos orbes assim marcados 
para a
   eternidade das mais brilhantes Estrelas, impôs como sinete o 
nome
   daqueles que, pelas seus feitos extraordinários e quase 
divinos,
   pareceram dignos de usufruir, em conjunto com os Astros, duma 
vida
   eterna. Eis a razão pela qual a glória de Júpiter, de Marte, 
de
   Mercúrio, de Hércules e dos outros heróis que dão os seus 
nomes às
   Estrelas, não será jamais obscurecida até que se extinga o 
próprio
   esplendor dos Astros. (. . . ) Nesta assembleia, em vão a 
piedade de
   Augusto tentou fazer admitir Júlio César; com efeito, uma 
Estrela
   nasceu na sua época, daquelas que os gregos designam 
«cabeleiras» ; o
   príncipe teria querido baptizá­la «Astro Juliano», mas ela
   desvaneceu­se bem depressa, frustrando a esperança duma tal 
ambição.
   Pois bem, pelo contrário, são de longe mais verdadeiras e mais
   felizes, Príncipe Sereníssimo, os sucessos que podemos augurar
para a
   tua Alteza, pois mal as imortais belezas do teu espírito 
começam a
   fulgurar sobre a Terra, eis que nos Céus se oferecem à vista 
astros
   brilhantes  que, tais como vozes, poderão dizer e celebrar 
para sempre
   as tuas virtudes altamente eminentes. Eis pois quatro Astros
   reservados para o teu glorioso nome; não sairam do rebanho nem
do
   número menos insigne daqueles que não «erram», mas da ordem 
ilustre
   dos vagueantes ; estes Astros, vê tu, descrevem entre eles 
movimentos
   desiguais à volta da Estrela Júpiter, a mais nobre de todas, 
como se
   fossem a sua autêntica progenitura, realizando as suas 
trajectórias e
   seus círculos a uma velocidade maravilhosa, (. . . )".
       Feito este exórdio, Galileu lembra as lições de Matemática
dadas
   em Florença, durante o Verão,  ao actual Grão­Duque Cosme II 
e,
   reivindicando o(. . .)direito de baptismo" que cabe àquele que
   descobre novos objectos celestes, decide utilizá­lo para o
   engrandecimento da família real Toscana. "(. . . ) Quis Deus, 
Muito
   Bom e Muito Grande, que eu não fosse julgado indigno pelos 
teus
   Sereníssimos Pais de consagrar o meu zelo a ensinar à tua 
Alteza a
   ciência Matemática, o que certamente fiz nos últimos quatro 
anos que
   acabam de passar, na estação do ano onde é costume repousar 
dos
   estudos mais severos. (. . . ) Pois se assim é, pois se é sob 
o teu
   Auspício, Cosme Sereníssimo, que explorei essas Estrelas 
desconhecidas
   de todos os Astrónomos precedentes, é de pleno direito que 
decidi
   imprimir­lhes a marca do muito Augusto nome da tua Raça. 
Porque, se
   fui o primeiro a descobri­las, quem terá o direito de me 
criticar se
   lhes imponho um nome e as chamo ESTRELAS MEDICEIAS, na 
esperança que
   tanta glória recaia sobre estes Astros, como aquela que as 
outras
   trouxeram aos outros Heróis. (. . . ) Recebe pois, Príncipe 
Muito
   Clemente, esta glória gentílica que te reservaram os Astros, e
as
   divinas mercês, que te chegam menos das Estrelas que do 
artesão e
   Moderador das Estrelas, Deus, e delas possas usufruir o maior 
tempo
   possível. (. . . )".
       O prefácio termina com a delicadeza e formalidade usuais,
   utilizando um processo de datação arcaico, ainda vigente 
nestes
   rituais de cerimónia. "(. . . ) Pádua, 4º dia antes dos Idos 
de Março,
   1610/De tua Alteza/o muito dedicado Servidor/Galileu Galilei. 
(. . .
   )".
       Uma observação final, que creio ser notada pelo leitor 
atento
   destas passagens. Diz respeito ao tratamento por "tu", 
dirigido ao
   Grão­Duque Cosme II, bem contrário aos nossos hábitos 
linguísticos na
   abordagem da realeza, onde o normal seria a utilização da "2ª 
pessoa
   do plural". Segundo Fernand Hallyn, tal formulação é típica do
estilo
   humanista partilhado por Galileu, por contraponto ao 
relacionamento
   distante e cerimonioso do período medieval. Claro que é um 
pormenor
   secundário, uma vez que, tirando essa aparência de 
familariedade e
   igualdade que tal escrita sugere, a verdade é que o prefácio 
contém
   explícita e implicitamente uma relação de desigualdade e 
submissão,
   que não escapa à consciência moderna!
   
   
   3 ­ A URGÊNCIA DE FALAR
   
   
   
       Os primeiros seis parágrafos da obra fazem uma espécie de 
resumo
   das principais descobertas que serão posteriormente 
desenvolvidas ao
   longo do livro, sempre chamando a atenção para a importância 
do
   instrumento de observação que possibilitou tal feito. Os temas
são
   quatro: observação da Lua, Estrelas Fixas, Galáxia e Nebulosas
e os 4
   satélites de Júpiter.
   Tudo isto é precedido do único título extenso do livro, para 
além
   daquele que consta da capa, que diz:
   
   
                                 A MENSAGEM
                                      
                                ASTRONÓMICA
                                      
                           que contém e esclarece
                                      
                    OBSERVAÇÕES RECENTEMENTE EFECTUADAS
                                      
        graças a uma Nova Luneta e dizendo respeito à face da 
Lua, 
                                      
                       à Via Láctea e às Nebulosas, 
                                      
                inumeráveis Estrelas fixas, assim como sobre
                                      
                         quatro Planetas baptizados
                                      
                             ESTRELAS MEDICEIAS
                                      
                       jamais apercebidos até hoje. 
                                      
   
       A partir de agora, neste início do livro, a linguagem 
utilizada
   abandona o tom barroco do prefácio e encaminha­se para um 
clima
   manifestamente mais objectivo e consentâneo com um relatório
   científico. Mesmo assim, é manifesta a auto­satisfação, 
perfeitamente
   compreensível quanto às novidades que descreve, na certeza de 
estar a
   abrir um novo mundo, no exacto local onde tudo levava a crer 
que
   estaríamos perante um heterónimo do imutável e eterno!
       A alegria reflecte­se no uso de vocábulos afectivamente
   significativos, como "grande", "magnífico", "agradável", 
"belo",
   "encantador", "maravilha", entre outros.   "(. . . )Sim,
   verdadeiramente grande é a tarefa de aumentar a numerosa 
multidão de
   Estrelas fixas, que por faculdade natural puderam ser 
apercebidas até
   hoje, e de expôr abertamente aos olhos astros inumeráveis, 
jamais
   antes apercebidos e que ultrapassam mais de dez vezes em 
número
   aqueles que são de há muito conhecidos. (. . . )".
       Anote­se a preocupação quantitativa  sempre presente em 
Galileu,
   ao tentar dar a escala de grandeza dos acontecimentos, 
contrapondo à
   expressão "inumerável", um número tanto quanto possível 
exacto, por
   comparação com as anteriores observações e conhecimentos. 
"(. . . ) É
   magnífico, e muito agradável à vista, poder observar o corpo 
lunar,
   que está afastado de nós quase sessenta diâmetros terrestres, 
como se
   não fosse distante senão de duas dessas medidas; a tal ponto 
que o
   diâmetro desta mesma Lua aparece quase trinta vezes maior, a
   superfície novecentas vezes maior, o volume vinte e sete mil 
vezes
   maior que quando se olha simplesmente a olho nú. Retirando daí
a
   certeza da experiência sensível, qualquer um poderá 
compreender que a
   Lua não está de todo revestida por uma superfície lisa e 
perfeitamente
   polida, mas antes duma superfície acidentada e desigual, e que
ela é,
   como a própria face da Terra, coberta por toda a parte com 
enormes
   protuberâncias, crateras profundas, e rugosidades. (. . . )".
       Eis, em poucas linhas, pela via da observação, 
completamente posta
   em cheque a concepção aristotélica da diferenciação essencial 
entre a
   imperfeição terrestre e a imutabilidade geométrica das 
perfeições
   planetárias. Lua e Terra são seres convulsivos e 
irregulares. . .
       Segue­se de imediato a referência ao tema das Galáxias e
   Nebulosas, bem como ao facto central dos satélites de Júpiter,
sempre
   dirigindo o discurso aos Astrónomos e Filósofos. "(. . . ) Por
outro
   lado, ter eliminado as controvérsias que diziam respeito à 
Galáxia ou
   Via Láctea, ter revelado a sua natureza aos sentidos como à
   inteligência, eis o que parece não dever ser considerado como 
um acto
   de pouco peso; e mais ainda, será agradável e muito belo 
apontar com o
   dedo a substância das Estrelas que até agora todos os 
Astrónomos
   chamaram Nebulosas, e mostrar que ela é muito diferente 
daquilo que se
   acreditava até ao presente.
       Mas em verdade, o que de longe ultrapassa todo o tema de
   encantamento, e que, em primeiro lugar, nos compeliu a 
informar todos
   os Astrónomos e Filósofos, é o facto, evidentemente, de ter 
descoberto
   quatro Estrelas errantes, que não foram conhecidas nem 
observadas por
   nenhum dos nossos predecessores; é à volta duma Estrela 
notável dentre
   aquelas que são conhecidas, que da mesma forma que Vénus e 
Mercúrio em
   torno do Sol, elas cumprem as suas revoluções e tanto a 
precedem, como
   a seguem, sem jamais se afastarem dela para lá de certos 
limites.
   Todos estes fenómenos, uma Luneta que concebi sob a iluminação
da
   graça divina, permitiu­me, há poucos dias, descobri­los e 
observá­los.
   (. . . )".
       É conveniente notar que nesta passagem  Galileu utiliza o 
vocábulo
   "Estrelas" em duas acepções completamente distintas, cuja 
tradição
   remonta à cosmologia grega. A primeira designação, "Estrela 
errante",
   deve entender­se como sinónimo de "Planeta" e, desta forma, 
pode falar
   nas revoluções de "quatro Estrelas errantes"; a segunda 
designação,
   "Estrela Fixa" ou, simplesmente, "Fixa", deve associar­se ao 
sentido
   contemporâneo de "Estrela", entendida como astro relativamente
imóvel!
   
   
   
   4 ­ UM ESTRANHO TUBO DE CHUMBO
   
   
   
       Galileu, de acordo com uma boa metodologia, pretende 
informar o
   leitor sobre os instrumentos e técnicas de observação que o 
levaram à
   obtenção dos resultados. Esta atitude manifestamente de acordo
com o
   espírito científico moderno, visa não a utilização de 
argumentos de
   autoridade, mas a partilha de informações e meios tecnológicos
com a
   comunidade dos investigadores que podem e devem reconstituir a
   observação, de forma a confirmarem os resultados.  De certa 
maneira,
   abre­se aqui a ideia de "consenso da comunidade científica", 
como
   critério de aceitabilidade e veracidade das teorias e factos 
sobre o
   mundo natural.
       Confirma, como já referimos, ter tido notícia da "luneta" 
há menos
   de um ano, por referências oriundas dos Países Baixos e de 
Paris, o
   que o levou a dedicar­se à investigação necessária para a 
construção
   dum aparelho similar, através dum estudo apoiado na Teoria da
   Refracção da luz. "(. . . ) Há volta de dez meses, chegou aos 
nossos
   ouvidos que um habitante das Províncias dos Países Baixos 
tinha
   fabricado uma Luneta graças à qual os objectos visíveis, mesmo
   situados longe da vista do observador, podiam ser nitidamente
   discernidos, como se estivessem próximos; deste facto 
certamente
   maravilhoso relatavam­se alguns testemunhos, aos quais uns 
davam fé,
   mas que outros negavam. Esta notícia foi­me confirmada poucos 
dias
   depois, por uma carta enviada de Paris pelo fidalgo françês 
Jacques
   Badovere; isto teve como consequência que eu me dedicasse 
inteiramente
   à pesquisa dos princípios assim como à concepção dos meios 
pelos quais
   poderia chegar à invenção dum Instrumento semelhante; esta 
invenção,
   pouco depois, realizei­a, apoiando­me sobre a teoria da 
refracção. (.
   . . )".
       Seguidamente, descreve esquematicamente a construção da 
Luneta ,
   as diferentes versões que foram produzidas, o tipo de lentes
   utilizadas e o seu poder de aumento, bem como as correcções
   necessárias para medir com rigor os tamanhos e intervalos 
entre as
   Estrelas fixas. Ficamos a saber que era constituida por um 
tubo de
   chumbo, na extremidade do qual foram adaptadas duas lentes de 
vidro,
   planas dum lado e, respectivamente, convexas e côncavas do 
outro. A
   vista era encostada à lente côncava, daí resultando uma 
ampliação de
   "três vezes", quanto à distância dos objectos, e "nove vezes",
quanto
   ao seu volume, por comparação com observações análogas feitas 
à vista
   desarmada.
       Verdade seja dita que tal descrição é muitíssimo sumária, 
pois não
   nos são dados quaisquer pormenores sobre polimento, construção
e
   afinação das lentes, bem como das respectivas distâncias 
focais e
   técnicas de utilização! Galileu levanta exclusivamente uma 
ponta do
   véu, sem dar aos Astrónomos e Filósofos a quem tão 
benignamente se
   dirige a possibilidade de construirem um equipamento igual, 
por mera
   aplicação das instruções patentes no seu livro. . .
       "(. . . ) Em primeiro lugar fabriquei um tubo de chumbo 
nas
   extremidades do qual adaptei duas lentes de vidro, ambas 
planas dum
   lado, mas uma esfericamente convexa e a outra côncava do lado 
oposto;
   em seguida, aproximando a minha vista da lente côncava, vi os 
objectos
   suficientemente grandes e próximos; de facto, apareciam três 
vezes
   mais próximos e nove vezes maiores do que se fossem somente 
observados
   a olho nú. Depois, construí um outro Instrumento, mais 
preciso, que
   representava os objectos mais de sessenta vezes aumentados. 
Por fim,
   não olhando nem ao trabalho, nem a despesas, cheguei a 
construir um
   Instrumento duma qualidade tão grande que as coisas vistas 
através
   dele apareciam quase mil vezes maiores, e mais de trinta vezes
mais
   próximas do que se fossem olhadas pelos únicos meios naturais.
(. . .
   )".
       Informa­nos então sobre o processo de confirmar o poder de
   resolução da luneta, isto é, de como saber com certeza qual a
   capacidade de ampliação. Para o caso da observação dos astros,
é
   necessário que seja capaz de ter um poder de "vinte vezes", o 
que
   levanta o problema de encontrar um teste empírico que assegure
tal
   capacidade. Sugere um método simples que consiste em construir
dois
   círculos ou dois quadrados de papel, em que um seja 
quatrocentas vezes
   maior que o outro, bastando para isso que o lado do 2º 
quadrado ou o
   diâmetro do 2º círculo seja vinte vezes maior que o lado do 1º
   quadrado ou o diâmetro do 1º círculo.
       Encostam­se os dois quadrados ou círculos a um muro 
situado a uma
   distância razoável e, enquanto um dos olhos utiliza a luneta 
para
   observar o objecto mais pequeno, o outro observa o objecto 
maior.
   Quando a imagem através da luneta fôr igual à da vista 
desarmada, isto
   é, os objectos parecerem iguais, é porque a luneta 
efectivamente tem a
   resolução de "vinte vezes". É um teste simples, eficiente, e 
elegante,
   como o são quase sempre as boas ideias!
       "(. . . ) Em primeiro lugar, com efeito, é necessário que
   fabriquem uma Luneta de grande precisão, que possa representar
os
   objectos brilhantes, distintos, e sem qualquer escurecimento; 
é
   necessário que esta mesma Luneta aumente pelo menos 
quatrocentas
   vezes, porque então mostrará os objectos vinte vezes mais 
próximos;
   com efeito, se o Instrumento assim não fôr, tentar­se­á em vão
a
   observação sobre todos os fenómenos que apercebemos nos céus e
que
   serão enumerados mais adiante. Para se assegurar sem grande 
esforço do
   poder de ampliação do Instrumento, traçar­se­ão dois círculos 
ou dois
   quadrados de papel em que um seja quatrocentas vezes maior que
o
   outro, o que será o caso quando o diâmetro do maior tiver 
vinte vezes
   o comprimento do diâmetro do outro. Em seguida, olhar­se­ão
   simultaneamente de longe as duas superfícies fixadas na mesma 
parede,
   observando a mais pequena com uma vista aplicada à Luneta e a 
maior
   com o olho que ficou livre (isto pode fazer­se facilmente, ao 
mesmo
   tempo, com os dois olhos abertos): então, com efeito, as duas 
figuras
   aparecerão com a mesma grandeza, se o Instrumento ampliar os 
objectos
   segundo a proporção desejada. (. . . )".
       Finalmente, chama a atenção para o facto da refracção dos 
raios
   luminosos oriundos dos objectos muito distantes originarem 
distorções
   quanto ao seu tamanho real, que deve, por isso, ser compensado
através
   duma tabela que corrija esse desvio. Galileu tem consciência 
de não
   ter revelado a totalidade dos dados relativamente à cabal 
construção e
   utilização da Luneta, anunciando para uma outra ocasião uma 
explicação
   mais detalhada. Por enquanto, aceitemos que não se revelem 
todos os
   trunfos. "(. . . ) Que seja suficiente, por agora, ter 
abordado
   ligeiramente estas questões, e delas ter saboreado como quem 
aflora os
   lábios; pois publicaremos numa outra ocasião a teoria completa
deste
   Instrumento. (. . . )".
   
   
   5 ­ O ESPANTO DA LUA
   
   
   
       A primeira série de observações diz respeito à Lua, uma 
vez que é
   o astro mais próximo da Terra e aquele que permite discernir 
detalhes
   cuja precisão é única com a utilização da Luneta. As novidades
que
   relata são de excepcional relevância, não só pelas extensas
   considerações feitas a tal propósito, que ocupam 
aproximadamente 30%
   de todo o livro,   mas sobretudo porque até então a Lua era
   considerada como fronteira dum mundo de "nobreza astral", tida
como
   esfera perfeita, de superfície completamente lisa e totalmente
   regular, compartilhando com os restantes planetas e estrelas 
um
   estatuto que impedia quaisquer ligações com as imperfeições,
   movimentos e mudanças típicas da Terra.
       De tudo isto nos dá conta nas primeiras linhas que tratam 
da
   questão lunar, logo após referir que, para além das conhecidas
   "manchas" que a sua superfície apresenta e que eram conhecidas
desde
   sempre, existem muitas outras, por ninguém antes observadas, 
que se
   encontram disseminadas na parte mais luminosa do astro. 
"(. . . ) É da
   face da Lua que está voltada para o nosso olhar que falaremos 
em
   primeiro lugar. Para facilitar a compreensão, distinguirei aí 
duas
   partes, uma mais clara e outra mais obscura. A mais clara 
parece
   rodear e infiltrar todo o hemisfério, enquanto que a mais 
obscura,
   como uma espécie de nuvem, sombreia a própria face e 
impregna­a de
   manchas. Estas manchas, são visíveis para todos, e todos os 
tempos as
   aperceberam; é por isso que as chamaremos de grandes ou 
antigas
   manchas, por oposição a outras, de menor grandeza, mas de tal 
forma
   numerosas que polvilham toda a superfície lunar, e sobretudo a
parte
   mais brilhante. Estas, em verdade, não foram observadas por 
ninguém
   antes de nós. Do seu exame abundante vezes reiterado, 
deduzimos que
   podíamos discernir com certeza que a superfície da Lua não é
   perfeitamente polida, uniforme e muito exactamente esférica, 
como foi
   sustentado por um exército de filósofos, quer sobre ela quer 
sobre os
   outros corpos celestes, mas pelo contrário desigual, 
acidentada,
   constituida por cavidades e protuberâncias, não diferentemente
da
   própria face da Terra, que é marcada, dum lado e doutro, pelos
picos
   das montanhas e as profundezas dos vales. (. . . )".
       Num fôlego o essencial está dito em linguagem acessível,
   objectiva, sem retórica, argumentos de autoridade, citações de
   clássicos. Ver para crer é o lema do "Mensageiro das 
Estrelas". E como
   quem não deve, não teme, Galileu inclui na obra uma série de 
desenhos
   cuidadosamente elaborados que revelam ao leitor os pormenores 
mais
   inovadores das observações feitas. São cinco as representações
da Lua
   que acompanham esta fase da investigação,  explicitando 
visualmente a
   ruptura com as antigas concepções.
       Daqui para diante, a argumentação visa demonstrar em 
detalhe as
   teses centrais desde logo inequivocamente expostas, começando 
Galileu
   por tornar claros dois factos. O primeiro diz respeito à
   irregularidade da linha que separa a parte luminosa da parte 
sombria
   da Lua; o segundo pretende eliminar a distinção absoluta entre
a zona
   clara e a zona escura, nelas estabelecendo cambiantes que 
sugerem uma
   interpenetração que carece de ser explicada.
       Qual o interesse de insistir sobre a irregularidade da 
linha que
   separa a "parte clara" da "parte obscura"? Obviamente que, se 
assim
   fôr, a superfície lunar não é uma esfera absolutamente 
regular, como
   era suposto, pois nesse caso essa fronteira luz­sombra teria 
de ser
   perfeitamente oval. Se a experiência desmentir essa convicção,
   simultaneamente bloqueia a tese da esfericidade perfeita dos 
astros!
   "(. . . ) No quarto ou quinto dia após a conjunção,  quando a 
Lua se
   nos oferece com os seus cornos brilhantes, o limite que separa
a sua
   parte obscura da sua parte luminosa já não se estende 
uniformemente
   segundo uma linha oval, como aconteceria num sólido 
perfeitamente
   esférico; mas corresponde a uma linha desigual, acidentada e 
sinuosa,
   como é visível na figura ao lado. (. . . )".
       Quanto ao pôr em questão a distinção absoluta entre as 
duas zonas,
   a obscura e a clara, revelando a existência de micro­regiões 
luminosas
   na parte escura e de análogos locais obscuros na zona 
luminosa,
   Galileu pretende relacioná­los com a posição relativa da Lua 
face ao
   Sol dentro do modelo coperniciano e fazer uma analogia com 
fenómenos
   idênticos na Terra quando, ao nascer do Sol, há uma sucessão 
de
   cambiantes luz­sombra, se observarmos tal fenómeno numa região
em que
   existam montanhas e vales profundos.
       Isto é, Terra e Lua têm natureza semelhante, e os factos 
nelas
   ocorridos implicam "causas" análogas, como convém à 
consciência
   universalizante da física moderna. "(...)Com efeito, várias
   excrecências brilhantes, por assim dizer, estendem­se para a 
parte
   obscura, para além da fronteira entre a luz e as trevas e, em
   contraposição, partículas tenebrosas infiltram­se por entre a 
luz.
   Mais ainda, uma grande abundância de pequenas manchas 
sombrias,
   inteiramente separadas da parte obscura, espalham­se por quase
toda a
   extensão já inundada por todos os lados pela luz do Sol, com 
excepção
   daquela parte que tem as grandes e antigas manchas. Notamos, 
por outro
   lado, que as ditas pequenas manchas têm todas e sempre isto
   exclusivamente em comum, a sua parte mais escura virada para o
Sol,
   mas são coroadas, do lado oposto ao Sol, com extremidades mais
claras,
   como arestas duma espantosa brancura. Ora, temos uma paisagem
   inteiramente semelhante sobre a Terra, no momento do nascer do
Sol,
   quando lançamos o nosso olhar sobre os vales que ainda não 
estão
   banhados pela luz, e sobre as montanhas que os rodeiam do lado
oposto
   ao Sol e que, daí a um instante, resplandecerão com um 
fulgurante
   brilho; e, assim como as sombras das cavidades terrestres 
diminuem à
   medida que o Sol sobe, da mesma forma estas manchas lunares 
perdem
   também as suas trevas à medida que a parte luminosa aumente. 
(...)".
       Daqui para a frente, Galileu maravilha­se com outros 
pormenores
   que, sem trazerem nada de essencialmente novo a estas 
espantosas
   afirmações iniciais, de qualquer forma confirmam os princípios
   estabelecidos. A Lua tem montanhas, vales, golfos, crateras e 
a sua
   imagem varia com as horas do dia e com o ciclo das órbitas
   copernicianas.
       "(. . . ) Não deixarei em silêncio um facto digno de 
atenção, que
   observei quando a Lua de encaminha para a primeira quadratura 
e de que
   o nosso desenho da página precedente oferece igualmente uma 
imagem. Um
   enorme golfo tenebroso, com efeito, situado próximo do corno 
inferior,
   insinua­se na parte luminosa.   Este golfo sombrio, observei­o
durante
   muito tempo e vi­o inteiramente mergulhado na obscuridade. 
Finalmente,
   após à volta de duas horas, um pouco abaixo do meio da 
cavidade, uma
   espécie de pico luminoso começou a surgir. (. . . ) Há também 
um facto
   que não deixarei no esquecimento e que notei não sem grande
   encantamento: quase no meio da Lua, um local é ocupado por uma
   cavidade maior que todas as outras e duma forma perfeitamente 
redonda.
   Apercebi­a próximo das duas quadraturas e representei­a tão 
fielmente
   quanto possível no segundo dos desenhos da página seguinte. 
Oferece,
   quanto ao obscurecimento e iluminação, o mesmo aspecto que 
teria na
   Terra uma região parecida com a Boémia, se estivesse fechada 
por todos
   os lados com altas montanhas, dispostas sobre a circunferência
dum
   círculo perfeito. Sobre a Lua, com efeito, a cavidade está 
fortificada
   com picos tão elevados que o bordo exterior da parte tenebrosa
da Lua
   aparece banhado com a luz do Sol, antes que a fronteira entre 
luz e
   sombra atinja o meio do diâmetro da própria figura. (. . . )".
       Chegado a este ponto, perante a acumulação de factos de
   observação, Galileu resolve levantar uma dificuldade teórica
   eventualmente presente no espírito dos seus opositores para, 
ao
   resolvê­la, antecipar por seu próprio mérito argumentativo uma
vitória
   que sabe não lhe escapar.
       Consiste no seguinte: se a Lua tem tão grandes vales e 
montanhas,
   se não é rigorosamente esférica e lisa, por que motivo a
   circunferência luminosa que a delimita e que atinge o seu 
esplendor na
   altura da Lua­Cheia não é apercebida como irregular e sinuosa?
"(. . .
   ) Se, com efeito, esta parte da superfície lunar que reflecte 
os raios
   solares duma maneira mais esplendorosa está cheia de 
irregularidades,
   quer dizer de protuberâncias e fundos inumeráveis, por que 
motivo,
   quando a Lua cresce, a extremidade da circunferência virada 
para
   Ocidente e, quando ela diminui, a outra semi­circunferência, a
   oriental e, quando há lua­cheia, toda a periferia, por que 
razão não
   as apercebemos como desiguais, acidentadas e sinuosas, mas
   perfeitamente redondas, traçadas a compasso, e em nada 
devastadas por
   protuberâncias e cavidades? (. . . )".
       Galileu propõe de imediato uma dupla explicação. Por um 
lado,
   argumenta em termos analógicos  sobre fenómenos semelhantes na
Lua e
   na Terra; por outro, sugerindo uma curiosa teoria física sobre
certas
   propriedades da Lua.
       No primeiro caso, a justificação fundamental apoia­se na 
distância
   enorme entre o observador e o objecto observado. Se na Terra, 
um
   observador situado numa zona montanhosa, contemplar ao longe 
uma outra
   cordilheira, não avista os vales que entre as montanhas 
longínquas se
   sucedem, dando­lhe a ideia que os picos dessas serras 
afastadas
   parecem dispôr­se de acordo com uma superfície plana. Fenómeno
análogo
   acontece se observarmos à distância um mar tempestuoso, em que
as
   cristas das ondas mais violentas, vistas de longe, parecem
   organizar­se segundo um plano horizontal, ainda que, entre 
elas,
   existam muitas outras ondas de menores dimensões e os 
respectivos
   desníveis, de tão grandes que são, poderem ocultar da vista 
navios de
   grande porte.
       Ora, com a Lua, passa­se um fenómeno análogo e de efeito 
ainda
   mais potenciado, devido à enorme distância que nos separa 
desse astro.
   Como a nossa vista está aproximadamente no mesmo plano das 
montanhas
   mais elevadas da Lua, nada de espantar que a circunferência 
luminosa
   que as delimita nos apareça como uma linha perfeitamente 
regular!
   "(...)Com efeito, os intervalos entre os montes dispostos 
sobre o
   mesmo círculo, ou na mesma cordilheira, são ocultados pela
   interposição doutras eminências colocadas noutras zonas, 
sobretudo se
   a vista do observador estiver situada no mesmo plano que os 
cumes das
   ditas eminências. Da mesma forma, sobre a Terra, os picos de 
montanhas
   numerosas e compactas aparecem dispostos numa superfície 
plana, se o
   observador estiver afastado e colocado a uma altitude igual. 
Da mesma
   forma, quando o mar está agitado, as cristas mais elevadas das
ondas
   parecem estender­se sobre o mesmo plano, ainda que, entre as 
vagas, se
   acumulem em grande número abismos e cavidades tão profundas 
que os
   navios mais altos vêem não somente as suas quilhas, mas também
as
   popas e velas aí desaparecerem. Portanto, uma vez que existe 
sobre a
   própria Lua, e à volta do seu perímetro, uma combinação 
complexa de
   eminências e cavidades, e uma vez que a vista, olhando duma 
grande
   distância, está colocada aproximadamente sobre o mesmo plano 
que os
   seus cimos, ninguém deve espantar­se que estes se ofereçam, ao
raio
   visual que os rasa, segundo uma linha igual e nada tortuosa. 
(. . .
   )".
       O segundo argumento é particularmente curioso pois supõe 
que à
   volta da Lua existiria um "orbe vaporoso",  feito duma 
substância mais
   densa que o éter e que actuaria como uma espécie de filtro 
cuja
   natureza seria simultaneamente "amplificadora" das largas 
escalas e
   "atenuadora" dos pequenos pormenores.
       Galileu devaneia sobre um modelo físico de acordo com a 
Teoria do
   Éter de fundo clássico, acentuando uma argumentação mais 
qualitativa
   que quantitativa, bem característica da fase de fronteira em 
que se
   encontra actualmente o seu pensamento.
       Tal "orbe vaporoso" seria não só parcialmente 
transparente, para
   absorver e reflectir os raios solares, mas actuaria também de 
modo
   análogo a uma lente que daria à Lua um aspecto maior que 
aquele que
   efectivamente tem, impedindo que se observem as montanhas 
situadas na
   periferia da circunferência lunar. Digamos que é uma 
ferramenta à
   escala dos desejos, que não deixa de lançar aos olhos dos seus
   espantados leitores alguns dos "vapores" remanescentes desta 
singular
   engenharia lunar. . .
       " (...) existiria à volta do corpo lunar, como à volta da 
Terra,
   uma espécie de orbe duma substância mais densa que o resto do 
éter,
   capaz de receber e reflectir a irradiação solar, ainda que não
esteja
   provido duma opacidade tal que possa impedir ( sobretudo 
quando não
   está iluminado ) a passagem à vista. Iluminado pelos raios 
solares,
   este orbe restitui e reproduz a imagem do corpo lunar sob o 
aspecto
   duma esfera maior; poderia mesmo limitar a nossa acuidade 
visual,
   impedindo­a de atingir o corpo sólido da Lua, se fosse duma 
espessura
   mais profunda; ora, ele é efectivamente mais profundo à volta 
da
   periferia da Lua, mais profundo, digo eu, não de maneira 
absoluta, mas
   relativamente, por relação aos nossos raios visuais, que o 
cortam
   obliquamente. Pode, por consequência, sobretudo quando está 
luminoso,
   obstruir a nossa percepção e esconder a periferia da Lua 
exposta ao
   Sol. (...)".
       Ao aproximar­se do final das páginas que dedica à Lua, 
Galileu
   ainda relata dois factos particularmente interessantes. O 
primeiro diz
   respeito a uma derradeira observação sobre as montanhas da 
Lua, cuja
   existência acabou de revelar, e que entende serem 
irregularidades
   geológicas duma escala bem superior à da Terra, assim se 
reforçando o
   parentesco entre os dois planetas. Tal tarefa é conseguida com
uma
   argumentação de natureza geométrica, muito do agrado da sua 
formação
   platónica, entrando em linha de conta com o diâmetro da Terra,
da Lua,
   e o Teorema de Pitágoras. Daí resulta um cálculo que 
contabiliza em
   mais de quatro milhas italianas a altura das montanhas 
lunares,  isto
   é, aproximadamente 6.000 metros. Segundo ele, nada existe na 
Terra que
   possa ser comparável a tal magnificência de escala!
       " (. . . ) Segue­se que, sobre a Lua, a altura AD, que 
designa um
   cume qualquer erguendo­se até à altura do raio solar G­C­D e 
afastado
   do ponto C pela distância CD, eleva­se a mais de 4 milhas 
italianas.
   Mas sobre a Terra não existem montes que atinjam a altura
   perpendicular de sequer uma milha. Resulta, pois, 
manifestamente, que
   as eminências lunares são mais altas que as da Terra. "
       O outro facto que espanta Galileu, vem ao encontro do 
reforço do
   parentesco entre Lua e Terra e a respectiva observação 
tornou­se mais
   fácil com o uso da luneta, apesar de anteriormente à sua 
utilização,
   nos confessar o autor já o ter revelado a um círculo restrito 
de
   discípulos.
       Que se passa, então? Na altura imediatamente anterior ou 
seguinte
   à Lua­Nova, nos dias em que nos encontramos nos limites do
   "quarto­minguante" ou "quarto­crescente", é possivel observar 
uma
   espécie de halo luminoso que circunscreve a parte obscura da 
Lua, de
   tal maneira que se distingue uma zona de transição entre a 
superfície
   do astro e a região mais obscura do éter exterior.
       "(. . . ) Desejo aqui fornecer uma explicação para um 
outro
   fenómeno lunar digno de espanto. O qual, é verdade, foi 
observado por
   nós não recentemente, mas há vários anos, e mostramo­lo a 
alguns
   íntimos e discípulos, explicando­o e esclarecendo a causa.  
( . . . )
   Enquanto que a Lua, tanto antes como depois da conjunção, se 
encontra
   não longe do Sol, não somente o seu globo se oferece à nossa 
vista do
   lado em que está ornamentado por cornos brilhantes, mas, para 
além do
   mais, uma periferia ténue, ligeiramente luminosa, parece 
desenhar o
   limite da parte tenebrosa, isto é, desviada do Sol, e 
separá­la do
   campo mais obscuro do próprio éter. (. . . )".
       Se melhor observado, este fenómeno estende­se não só aos 
limites
   da circunferência da parte obscura, mas à própria superfície 
contida
   para aquém dessa fronteira. Isto é, Galileu afirma que mesmo a
parte
   escura da superfície da Lua, reflecte uma certa quantidade de 
luz que
   não pode ser originária do Sol, bastando para tal escolher um 
ponto
   para a observação, de tal forma que um obstáculo natural 
oculte a
   parte luminosa típica do "quarto­crescente" ou 
"quarto­minguante".
       "(. . . ) Na verdade, se considerarmos a coisa com mais 
atenção,
   veremos não somente o bordo extremo da parte tenebrosa luzir 
com uma
   claridade incerta, mas também a face inteira da Lua ­­­ quero 
dizer,
   aquela que ainda não recebe o brilho do Sol ­­­ clarear­se de 
forma
   não negligenciável. (. . . ) Mas se escolhessemos uma posição 
tal que
   um telhado, ou uma chaminé, ou qualquer outro obstáculo entre 
a vista
   e a Lua (mas colocado longe da vista) oculte os próprios 
cornos
   luminosos, e se a parte restante do globo lunar se mantiver 
exposta à
   nossa vista, então descobrir­se­á que também esta zona da Lua
   resplandece com uma luz considerável, ainda que esteja privada
da luz
   do Sol, e isso sobretudo se já, na falta do Sol, o horror 
nocturno
   aumentou. (. . . )".
       Assinalado o facto, Galileu parte para a explicação das 
suas
   causas, não sem antes assinalar brevemente outras teses que 
visavam
   interpretar tais dados, declarando de imediato que as refutará
sem
   apelo nem agravo e, ainda por cima, sem grande esforço! Tais 
teses
   agrupavam­se segundo duas vertentes: a primeira, entendia que 
existia
   um "esplendor próprio da Lua", e a segunda considerava que tal
   luminosidade era secundária e derivava da reflexão pela Lua da
luz
   proveniente doutros astros, que tanto podiam ser Vénus, como o
Sol, ou
   como o somatório condensado da luz de todas as Estrelas.
       " (...) Este maravilhoso brilho suscitou nos filósofos uma
grande
   admiração; para atribuir uma causa a este fenómeno, uns e 
outros
   avançaram diferentes explicações. Com efeito, alguns 
pretenderam que
   se tratava dum esplendor próprio e natural da Lua; outros, que
lhe era
   comunicado por Vénus, ou que lhe vinha de todas as Estrelas; 
outros
   ainda atribuiram­no ao Sol, que penetraria com os seus raios a
   profundeza do corpo sólido da Lua.(...)".
       Refutadas as posições contrárias, seguindo uma estratégia 
que
   consiste em aceitar as teses opostas e confrontá­las com a 
observação,
   de forma a fazê­las ir ao encontro de paradoxos, espécie de 
método de
   "redução ao absurdo", Galileu está em condições de fazer 
entrar em
   cena a sua Teoria.
       Em que consiste ela? Num sistema de permuta analógica e
   compensatória de factos aparentados. Assim como a Lua, por 
reflexão da
   luz solar, ilumina a Terra com o luar, assim também a Terra 
devolve à
   Lua um facto equivalente de sentido contrário, emitindo para a
Lua uma
   luz reflectida na sua superfície, luz essa que é, obviamente,
   proveniente do Sol. "(. . . ) Uma vez que, uma luz secundária 
deste
   género não é nem intrínseca e própria da Lua, nem originária 
das
   Estrelas ou do Sol, e dado que, na imensidade do Mundo não 
resta
   nenhum outro corpo a não ser a Terra, pergunto eu, que 
deveremos
   pensar? Que é preciso dizer? Não é verdade que é devido à 
Terra que o
   próprio corpo da Lua ou qualquer outro corpo opaco e tenebroso
são
   inundados de luz? Porquê espantarmo­nos? Numa permuta justa e
   amigável, a Terra dá precisamente à Lua uma iluminação igual à
que ela
   própria recebe da Lua, durante quase todo o tempo, no mais 
profundo
   das trevas nocturnas. (. . . )".
       Galileu tem consciência que estas teses têm subjacente um 
modelo
   cosmológico não geocêntrico e anuncia que melhor as 
desenvolverá em
   obra posterior, claramente orientada contra aqueles que 
sustentam não
   só a imobilidade da Terra, como a sua posição degradante e
   inferiorizada relativamente aos astros perfeitos.
       Este comportamento é típico do seu génio polemista, ao 
sugerir aos
   adversários a quem acaba de demonstrar argumentos de peso, que

   estão no prelo mais umas dúzias de razões que arrasarão sem dó
nem
   piedade qualquer arremedo de contra­argumentação oriunda da 
parte
   contrária. . . "(. . . ) Estas breves palavras sobre tal 
matéria devem
   bastar neste local, uma vez que trataremos disso de forma mais
ampla
   no nosso «Sistema do Mundo», onde, em múltiplos raciocínios e
   experiências, a reflexão da luz solar a partir da Terra será 
muito
   eficazmente mostrada, para aqueles que pretendem excluí­la do 
coro das
   Estrelas, principalmente porque seria desprovida de movimento 
e de
   luz. Ora, que a Terra seja errante, e que ultrapasse a Lua em
   esplendor, longe de ser a latrina dos lixos e excrementos do 
mundo,
   nós demonstrá­lo­emos e confirmá­lo­emos também por meio de
   inumeráveis razões naturais. (. . . )".
   
   
   
   
   
   6 ­ ESTRELAS AOS MILHARES
   
   
   
       Concluídas as considerações sobre a Lua, é altura de 
Galileu se
   debruçar sobre um outro assunto, duma grandeza e escala 
manifestamente
   maior, perante o qual a Astronomia e Cosmologia clássica tinha
tomado
   posições bem determinadas, com uma ou outra excepção. Trata­se
do tema
   das Estrelas e da natureza das Nebulosas e da Via Láctea.
       As teses fundamentais sobre estes assuntos 
estabilizaram­se nos
   modelos cosmológicos de raíz aristotélico­ptolomeica e 
entendiam serem
   estes astros desprovidos de movimento real, fixados que 
estavam ao
   último dos orbes cósmicos, usualmente designado como "esfera 
das
   fixas". O seu movimento diário de Oriente para Ocidente era 
tido como
   aparente, pois resultava da rotação da esfera onde se 
encontravam
   imóveis as Estrelas. O seu número seria constante, a sua 
natureza
   perfeita, a substância que os formava era incorruptível, em
   contraposição às mutações e cambiantes das substâncias 
terrestres, Ar,
   Água, Terra e Fogo. A esfera das fixas marcava, para todos os 
efeitos,
   o "fim" do espaço físico, o limite para além do qual só o 
sagrado e o
   divino se estendiam incomensuravelmente.
       A primeira observação de Galileu revela a consciência da 
escala de
   distâncias com que se confronta ao observar estes astros, pois
diz­nos
   que a Luneta não permite um poder análogo de ampliação ao da 
Lua,
   quando é apontada para as Estrelas Fixas ou "errantes". É tal 
o
   desfasamento, que nos sugere de imediato uma explicação que 
atenue
   este facto.
       A visão que naturalmente temos das Estrelas é distorcida 
pelo
   brilho que emitem, sendo esse halo cintilante o responsável 
parcial
   pela ilusão visual da sua grandeza, halo esse que é 
francamente
   reduzido quando se utiliza a Luneta. "(. . . ) exporemos 
brevemente o
   que até agora examinamos a respeito das Estrelas Fixas. E 
antes de
   mais, é digno de atenção o facto que as Estrelas, tanto as 
Fixas como
   as Errantes, quando são vistas por meio duma Luneta, não 
parecem de
   todo aumentar em grandeza na mesma proporção em que os outros
   objectos, e também a própria Lua, são ampliados. Na verdade, 
no caso
   das Estrelas, esta ampliação parece bem menor, a tal ponto, 
pensamos
   nós, que uma Luneta capaz, por exemplo, de aumentar cem vezes 
os
   outros objectos, não ampliaria as Estrelas senão quatro ou 
cinco
   vezes. A razão é que os Astros, quando se observam com a vista
   natural, não se nos oferecem segundo a sua grandeza simples e,
por
   assim dizer, nua, mas irradiados com um clarão brilhante e 
rodeados
   duma cintilação em forma de crina, sobretudo quando a noite é 

   profunda. (. . . )".
       Galileu acrescenta ainda que tal redução de proporções se 
pode
   explicar também devido ao facto das lentes da luneta actuarem 
como um
   filtro que reduz a reverberação luminosa das Estrelas, assim
   compactando a sua dimensão a escalas mais realistas.
       Após este apontamento inicial, revela uma importante 
distinção
   entre Planetas ("errantes") e Estrelas Fixas, no que à sua 
forma se
   refere. Enquanto que os Planetas aparecem sempre como 
esféricos, como
   se fossem luas rodeadas de luz, as Estrelas não conseguem 
nunca ser
   vistas como delimitadas por uma linha circular, pois o seu 
brilho
   intrínseco impede que nos possamos aperceber com exactidão 
sobre qual
   será a sua forma. "(. . . ) Digna de atenção também me parece 
a
   diferença de aspecto entre os Planetas e as Estrelas Fixas. Os
   Planetas, com efeito, apresentam os seus globos exactamente 
redondos e
   circulares e, semelhantes a pequenas luas inundadas de luz por
todos
   os lados, aparecem como orbiculares; todavia, jamais se 
apercebem as
   Estrelas Fixas delimitadas por uma periferia circular, mas 
tomando a
   forma de luares que dardejam raios por toda a parte à sua 
volta e
   cintilam intensamente; (. . . )".
       É então que, apesar destas limitações, a linguagem cresce 
em
   entusiasmo e espanto ao dar a conhecer uma multidão de 
Estrelas até
   então invisíveis e que desmultiplicam o Universo conhecido 
para além
   de tudo o que se podia imaginar. Não se trata de mais duas ou 
três
   estrelas, mas de centenas, milhares, que parecer nascer por 
toda a
   parte, rompendo para sempre a pequenez e conforto dum Mundo 
que se
   encaminha para dimensões transfinitas.
       Diz­nos que, às seis escalas de grandeza acessíveis à 
vista
   desarmada, se podem acrescentar mais outras seis com o uso da 
Luneta,
   de tal forma que a sétima escala, a que Galileu chama a 
"primeira das
   invisíveis", aparece como mais clara e mais brilhante que uma 
Estrela
   de "grandeza dois", observada sem meios de ampliação. Por 
outro lado,
   se utilizarmos a Luneta para as mais pequenas das Estrelas 
visíveis
   (6ª grandeza), o seu aspecto é equivalente a Sirius, a mais 
brilhante
   e espectacular de todas as estrelas do hemisfério Norte.
       " (. . . ) são ampliadas ao ponto que uma pequena Estrela 
de
   quinta ou sexta grandeza parece igualar o Cão, quer dizer, a 
maior de
   todas as Fixas. Na verdade, para além das Estrelas de sexta 
grandeza,
   levarás o teu olhar, através da Luneta, junto duma multidão 
tão
   numerosa de outras Estrelas que escapam ao olhar natural, que 
isso mal
   é concebível: poderás ver, com efeito, mais de seis outras 
escalas de
   grandeza. As maiores dentre elas, que podemos chamar de sétima
   grandeza, ou as primeiras das invisíveis, aparecem, graças à 
Luneta,
   maiores e mais claras que os Astros de segunda grandeza vistos
a olho
   nú. (. . .) ".
       As revelações são de tal forma espantosas que Galileu 
decide
   acrescentar dois desenhos, onde representa as Estrelas 
desconhecidas
   num enquadramento relativo a outras que faziam parte do 
património da
   Astronomia clássica. Diz­nos que a sua ideia inicial seria 
representar
   toda a constelação de Orion, mas a urgência da publicação e a
   complexidade da tarefa levam­no a reservar tal objectivo para 
uma
   outra altura, uma vez que em torno das Estrelas visíveis de 
Orion e
   num "arco de céu" muito reduzido, da ordem dos dois graus de 
extensão,
   foi possível detectar mais de 500 novas Estrelas. "(. . . ) 
Mas, para
   que vejas um ou outro testemunho da sua densidade quase 
inconcebível,
   pretendi juntar duas ilustrações, de forma a que faças uma 
ideia das
   outras, graças a este exemplo. Na primeira, decidi representar
toda a
   constelação de Orion; mas, ultrapassado pela imensa abundância
das
   Estrelas e, por outro lado, pela falta de tempo, protelei este
   trabalho para uma outra ocasião. Porque, em torno das antigas
   Estrelas, existem, disseminadas no espaço de um ou dois graus,
mais de
   quinhentas outras. (. . . )".
       O segundo exemplo diz respeito ao conhecido agrupamento 
estelar
   das Pleiades, junto das quais Galileu descobre mais de 40 
novas
   Estrelas, nenhuma delas distando mais de meio grau de qualquer
das
   Pleiades já conhecidas. O desenho é particularmente cuidadoso 
e tem a
   preocupação de distinguir graficamente as antigas e as novas 
Estrelas,
   representando as primeiras com um duplo traço e as segundas 
com traço
   simples, respeitando a respectiva escala de grandeza relativa 
no
   conjunto da ilustração. Segue­se uma reflexão sobre a natureza
da Via
   Láctea e sobre a composição das Nebulosas. Um e outro assunto 
tinham
   merecido amplas considerações da Astronomia clássica, que 
tendia a
   considerar tais fenómenos como consequência de diferenças de 
densidade
   no éter cósmico, que resultava em serem apercebidos como 
manchas duma
   claridade difusa, quando observados à vista desarmada. A Via 
Láctea ou
   Galáxia, uma vez que tais designações eram nesta altura 
equivalentes,
   pois não se admitia que a constituição cósmica pudesse conter 
uma
   pluralidade de Galáxias,  era entendida como uma entidade 
exterior ao
   sistema solar, o que é, sabemo­lo hoje, manifestamente falso.
       Galileu não tem,por enquanto, consciência de tais factos, 
mas a
   utilização da Luneta permite­lhe sustentar sem margem para 
dúvida que
   a Via Láctea é um aglomerado imenso de Estrelas de diferentes 
escalas
   de grandeza, qualquer que seja a região do céu para que o 
telescópio
   se aponte. Uma vez mais, com a satisfação que lhe é peculiar,
   contrapõe as opiniões retóricas da tradição com as evidências 
frias e
   neutrais da observação. "(...) O que observamos em terceiro 
lugar, foi
   a essência ou a matéria da própria Via Láctea; graças à 
Luneta,
   pode­se contemplá­la tão bem, que todas as disputas que, 
durante
   séculos, torturaram os filósofos, são destruidas pela 
evidência da
   percepção, e eis­nos libertos de discussões orais. A Galáxia 
não é,
   com efeito, nada mais que um conjunto de inumeráveis Estrelas
   aglomeradas em pequenos grupos: qualquer que seja, com efeito,
a
   região para a qual se oriente a Luneta, de imediato uma enorme
   multidão de Estrelas se oferece à vista, entre as quais várias
parecem
   bastante grandes e bem visíveis; mas uma multiplicidade de 
muito
   pequenas Estrelas escapa absolutamente à exploração. 
(. . . )".
       Quanto às Nebulosas, a interpretação é análoga, 
baseando­se no
   mesmo princípio da acumulação de Estrelas, cuja pequenez ou 
enorme
   distância por relação a nós, implica um agrupamento de 
luminosidades
   individuais de tal forma que só são apercebidas como 
superfícies de
   fronteiras difusas, espécie de "nuvens cósmicas", irradiando 
um ténue
   clarão. Destas observações resultam mais duas ilustrações,  
uma
   relativa à Nebulosa da constelação de Orion e outra à Nebulosa
da
   constelação de Câncer. Vejamos as suas palavras: " (...) 
várias
   auréolas duma côr idêntica brilham com um ténue fulgor, aqui e
além no
   éter, e se orientares a Luneta para qualquer uma dentre elas,
   encontrarás um conjunto de Estrelas que se comprimem em 
conjunto.Por
   outro lado ( o que é mais maravilhoso ainda ), as Estrelas até
hoje
   chamadas de Nebulosas por todos os Astrónomos, são rebanhos de
   pequenas Estrelas semeados de forma admirável.Dado que cada 
uma delas,
   por causa da sua pequenez ou do grande distanciamento de nós, 
escapa à
   acuidade do nosso olhar, da união dos seus raios luminosos 
surge esta
   claridade branca que até hoje foi tomada como uma parte mais 
densa do
   Céu, capaz de reflectir os raios luminosas das Estrelas ou do
   Sol.Observamos algumas, e decidimos inserir a representação de
duas
   dentre elas.(...)".
       Quanto a Galáxias, Estrelas e Nebulosas, nada mais é dito!
Temos
   de compreender que é um tema por enquanto controverso, muito 
além dos
   meios tecnológicos disponíveis e que obriga, a prazo, a 
considerar o
   problema da infinitude do Universo, questão por enquanto 
impensável no
   interior dos quadros de referência em que se move "O 
Mensageiro das
   Estrelas".
   
   
   
   7 ­ A PRODIGIOSA SEMANA
   
   
   
       Galileu guarda para o fim aquilo que considera ser a mais
   espantosa das descobertas a que teve acesso, isto é, a 
revelação dos
   quatro satélites de Júpiter,  os primeiros planetas "novos" a 
que o
   conhecimento humano chegou desde que os astrónomos começaram a
olhar
   os céus. Esta parte da sua obra é, talvez, a mais 
significativa no que
   diz respeito à objectividade das observações, à metodologia 
seguida,
   aos pormenores quantitativos fornecidos ao leitor, que vão 
desde as
   datas e horas, às representações gráficas, cuidadosamente 
acompanhadas
   das medições de ângulos de desvio dos satélites relativamente 
a
   Júpiter.
       É também esta análise a mais extensa de todas, pois ocupa
   aproximadamente 40% do "Mensageiro das Estrelas".  Se 
atendermos ao
   espírito sucinto que demarca toda a investigação, é 
significativo o
   cuidado nos detalhes e a extensão das observações. Galileu 
está
   efectivamente convencido, e com razão, de ter descoberto 
fenómenos de
   extraordinário impacto, não só pela novidade absoluta que em 
si mesmos
   encerram, mas também pelas virtualidades que contêm numa 
futura
   demonstração da validade dos modelos cosmológicos 
heliocêntricos de
   raíz coperniciana.
       "(. . . ) Relatamos brevemente até agora os fenómenos 
observados a
   propósito da Lua, das estrelas Fixas e da Galáxia. Resta­nos 
tratar o
   assunto que parece mais considerável na presente matéria: 
revelar e
   dar a conhecer quatro planetas que, desde os começos do mundo 
até aos
   nossos dias, jamais foram apercebidos, sem esquecer as suas 
posições e
   as observações, mantidas durante quase dois meses, dos seus
   comportamentos e das suas mutações. (. . . )".
       Imediatamente após ter dado conhecimento da descoberta, 
Galileu,
   um pouco contra o seu costume, faz um apelo a todos os 
Astrónomos para
   se dedicarem ao assunto, tendo em vista a formulação dos 
períodos
   orbitais de cada um dos satélites de Júpiter,  já que motivos
   imperiosos relacionados com a falta de tempo e a urgência da
   publicação o teriam impedido de reservar para si próprio a
   apresentação desses números. Claro que adverte a comunidade 
científica
   para nem sequer se atrever a iniciar tais estudos se não tiver
uma
   Luneta, pelo menos tão precisa como aquela que habilidosamente
   descreve nas primeiras páginas do seu livro. "(. . . ) 
Apelamos a
   todos os astrónomos, para que colaborem na pesquisa e a 
estabelecer a
   duração das suas revoluções, o que nos não foi possível 
realizar até
   hoje devido ao pouco tempo de que dispusemos. Advertimo­los, 
apesar de
   tudo, novamente, a fim de que se não lancem em vão num tal 
exame, que
   é necessária uma Luneta muito precisa, tal como aquela que 
descrevemos
   no início deste trabalho. (. . . )".
       Feito este aviso prévio, Galileu dá início ao relato 
detalhado da
   sua descoberta, começando por revelar que no dia 7 de Janeiro 
de 1610
   se lhe deparou à observação um fenómeno estranho, na altura em
que
   analisava o planeta Júpiter. Junto a este planeta pareceu­lhe
   descortinar três Estrelas, pequenas e claras, que muito o 
maravilharam
   devido ao alinhamento horizontal que mantinham com Júpiter. 
Não se
   preocupou neste dia em quantificar as distâncias que as 
separavam do
   planeta, pelo que a noite de 7 de Janeiro se pode considerar 
como o
   primeiro momento da observação dum facto que flutua entre o 
normal e o
   bizarro, dado que Galileu admite, por enquanto, que tais 
astros se
   tratam de estrelas Fixas e não de Planetas. Não nos devemos
   surpreender que assim seja, pois como já observamos na altura 
em que
   se abordou o problema das Estrelas, era muito frequente a 
descoberta
   de novas Estrelas Fixas ao apontar­se a Luneta para qualquer 
região
   dos céus!
       "(. . . ) Então, no dia 7 de Janeiro do presente ano de 
1610, na
   primeira hora da noite, quando observava as Estrelas celestes 
através
   da Luneta, Júpiter apresentou­se; e como tinha fabricado um
   instrumento absolutamente excelente, reconheci (o que antes 
não tinha
   podido conseguir devido à fraqueza da outra Luneta) que havia 
três
   Estrelas, bem pequenas, é verdade, mas todavia muito claras, 
situadas
   próximo dele. Acreditei, em primeiro lugar, serem do número 
das Fixas.
   Seja como fôr, causaram­me um certo encantamento, devido ao 
facto de
   aparecerem dispostas segundo uma linha exactamente recta e 
paralela à
   Eclíptica e, ainda que iguais às outras Fixas em grandeza, 
mais
   brilhantes. (. . . )".
       No dia seguinte, 8 de Janeiro, retomando como que por 
acaso as
   mesmas observações da véspera, reparou que a posição dessas 
três
   Estrelas, relativamente a Júpiter, se tinha alterado. No dia 
anterior,
   duas deles encontravam­se a Oriente e outra a Ocidente, 
enquanto que
   neste dia lá se encontravam as três Estrelas, mas desta feita 
todas
   posicionadas a Ocidente do planeta conhecido. Galileu, 
escrevendo
   retrospectivamente, confessa­nos que admitiu estar perante um 
erro
   relativamente à trajectória de Júpiter, pois sendo o seu 
movimento
   perspectivado face ao território de fundo das Estrelas fixas, 
poderia
   ter observado simplesmente novos dados que levariam à 
correcção dos
   conhecimentos sobre a sua órbita.
       Qualquer que seja o motivo, está levantada a suspeita! A
   observação revela um fenómeno insólito. Agora trata­se de 
analisar
   melhor em que consiste e quais as suas causas. É com 
impaciência que
   espera pelo dia seguinte, 9 de Janeiro, para continuar as 
observações,
   mas tal expectativa foi frustrada, pois nessa noite o céu 
estava
   coberto de nuvens!!
       "(. . . ) Não me ocupei das distâncias entre elas e 
Júpiter,
   porque as tinha tomado, como já disse no início, por fixas. 
Ora, como
   no dia oito, guiado por não sei que Fatalidade, regressei à 
mesma
   observação, encontrei uma disposição bem diferente: com 
efeito, as
   três pequenas Estrelas encontravam­se a Oeste de Júpiter, mais
   próximas umas das outras que na noite precedente, separadas 
por
   intervalos iguais, como demonstra o seguinte desenho (. . . ) 
Nesta
   altura, ainda que não tivesse consagrado a mínima reflexão aos
   movimentos de aproximação mútua das Estrelas, comecei a ficar
   embaraçado e a procurar como seria possível descobrir Júpiter 
a Este
   de todas as Fixas mencionadas, dado que na véspera ele tinha 
estado a
   Oeste de duas delas. Temi, por consequência, que a sua 
trajectória não
   fosse directa, contrariamente aos cálculos astronómicos e que,
por
   essa razão, com o seu próprio movimento, não tivesse 
ultrapassado
   essas Estrelas. Consequentemente, esperei com muita 
impaciência a
   noite seguinte; mas a minha esperança foi frustrada, porque o 
céu
   encontrava­se coberto de nuvens por todos os lados. (. . . )".
       Chega finalmente a noite de 10 de Janeiro, que vai ser 
decisiva
   por dois motivos. Por um lado, em vez de três Estrelas próximo
de
   Júpiter, aparecem somente duas, situadas a Este e não a Oeste,
como na
   véspera; por outro, conclui que não há qualquer anomalia no 
movimento
   de Júpiter e que todas as mudanças de posição deviam ser da
   responsabilidade de tão estranhas Estrelas.
       "(. . . ) Mas no dia dez, as Estrelas apareceram, situadas
por
   relação a Júpiter da seguinte maneira (. . . )  Não havia 
senão duas,
   ambas a este, a terceira estando escondida, como presumia, por
trás de
   Jupiter. Estavam juntas, como anteriormente, sobre o mesmo 
plano que
   Júpiter e alinhadas na linha ao longo do Zodíaco. Perante esta
   observação, como compreendia que alterações análogas não 
podiam de
   nenhuma maneira serem imputadas a Júpiter e que, para além do 
mais,
   sabia que tinha observado sempre as mesmas Estrelas (não havia
outras,
   com efeito, quer atrás quer adiante de Júpiter, dentro duma 
grande
   distância, ao longo do Zodíaco), modificando a partir de então
a minha
   perplexidade em encantamento, descobri que a modificação 
apercebida
   era imputável não a Júpiter, mas às estrelas que tinha 
assinalado. Em
   função disto, decidi continuar, daqui para a frente, as minhas
   observações com mais exactidão e rigor. (. . . )".
       No dia seguinte, 11 de Janeiro, posta de parte a hipótese 
dos
   movimentos anormais da órbita de Júpiter, Galileu estabelece 
uma
   hipótese interpretativa que o leva á sua grande descoberta. 
Verifica
   de início que são somente visíveis duas Estrelas junto a 
Júpiter, mas
   mais distantes deste que na véspera, pelo que, 
acrescentando­lhe uma
   terceira actualmente não visível, considera sem margem para 
dúvida que
   há três Estrelas errantes em torno do Planeta, movimentando­se
em sua
   volta de forma análoga à de Vénus e Mercúrio em torno do Sol. 
Quanto
   ao quarto satélite, diz­nos que só foi referenciado ao fim de 
muitas
   outras observações subsequentes, pelo que na ordem cronológica
dos
   factos descritos, os quatro Planetas foram descobertos em duas
fases!
       "(. . . ) No dia onze, então, vi uma disposição desta 
ordem. (. .
   . )  Não existiam senão duas Estrelas a este; a do meio estava
três
   vezes mais distante de Júpiter que a mais Oriental, e a mais 
Oriental
   era à volta de duas vezes maior que a outra, enquanto que, na 
noite
   anterior, apareceram mais ou menos iguais. Foi por isso que 
estabeleci
   e decretei sem qualquer dúvida que havia no céu três Estrelas 
errando
   à volta de Júpiter, da mesma forma que Vénus e Mercúrio em 
torno do
   Sol. Isso foi, finalmente, confirmado com mais clareza do que 
a luz do
   dia, ao longo de outras numerosas observações posteriormente 
feitas.
   (. . . )".
       Estabelecida uma hipótese consistente decorrente da 
observação,
   Galileu dedica­se a uma sucessão de pormenorizadas e pacientes
   investigações, tendo em vista a confirmação dos factos e,
   eventualmente, das leis que presidem ao seu funcionamento. 
Encontramos
   aqui um evidente exemplo da prática duma metodologia típica da
   alvorada da Ciência Moderna, a um passo das clássicas quatro 
fases do
   método experimental ( observação, hipótese, experimentação e 
indução
   ).
       Compreender­se­á, por conseguinte, que as observações dos
   satélites de Júpiter feitas nas próximas semanas, revelem uma
   preocupação de rigor e detalhe que não encontramos nos 
primeiros cinco
   dias, de 7 a 11 de Janeiro de 1610. São­nos dados os tamanhos 
e
   brilhos aparentes, a sua posição relativa face a Júpiter, as
   coordenadas de orientação no eixo Oriente­Ocidente e o 
distanciamento
   dos satélites entre si, tudo isto enquadrado, na medida do 
possível,
   com dados quantitativos, onde se destacam as datas e horas em 
que as
   observações são feitas, bem como a medição de distâncias, 
apontadas
   com uma precisão da ordem dos "minutos de grau" e "segundos de
grau".
       " (...) A descrição que se segue dará a conhecer as suas
   permutações, observadas da maneira mais exacta. Medi também os
   intervalos que os separavam por meio da Luneta, segundo o 
método já
   exposto. Por outro lado, acrescentei as horas das observações,
   sobretudo quando existiram várias durante a mesma noite;as 
revoluções
   destes Planetas  são, com efeito, tão rápidas que a maior 
parte das
   vezes podem notar­se diferenças de hora a hora. (. . . )".
       Nos dois dias seguintes, 12 e 13 de Janeiro, os 
comentários de
   Galileu passam a obedecer a esta nova estratégia, a linguagem 
é
   objectiva, sem adjectivação afectiva, fria e neutral, como 
convém a
   quem entende que, a partir de agora, a "força dos factos" é 
tão grande
   que bastará deixar que falem por si próprios!
       Os dias que completam esta espantosa semana para a 
astronomia e
   Cosmologia Moderna, merecem somente dois comentários finais. O
   primeiro é ficarmos a saber que foi nesta altura que pela 
primeira vez
   foi avistado o quarto satélite de Júpiter, e o segundo 
assinala que
   Galileu passa a distinguir sem hesitação os novos planetas
   afirmando­nos, inclusivé, que o seu brilho é superior ao das 
Estrelas
   Fixas da mesma grandeza.
       Ouçamos as suas palavras: "(. . . ) No dia doze, na 
primeira hora
   da noite, vi as Estrelas dispostas desta maneira: (. . . )  A 
Estrela
   mais oriental era maior que a mais ocidental, mas ambas eram 
bem
   visíveis e resplandecentes; cada uma estava afastada de 
Júpiter cerca
   de 2 minutos. A terceira Estrela começou a aparecer igualmente
na
   terceira hora, de início muito pouco visível; quase que tocava
Júpiter
   do lado oriental e era verdadeiramente muito pequena. Todas se
   encontravam sobre o mesmo plano, alinhadas ao longo da 
Eclíptica.
       No dia treze, pela primeira vez, quatro pequenas Estrelas
   ofereceram­se à minha vista, segundo a seguinte disposição por
relação
   a Júpiter: (. . . )  Três eram ocidentais e uma oriental; 
formavam uma
   linha quase recta; a mediana das Ocidentais, todavia, 
desviava­se
   ligeiramente da recta, em direcção ao norte. A Oriental estava
a uma
   distância de 2 minutos de Júpiter; os intervalos que separavam
as
   outras de Júpiter eram, cada um, de somente 1 minuto. Todas as
   Estrelas se mostravam de igual grandeza e, apesar do seu 
tamanho ser
   pequeno, eram todavia muito brilhantes, mais esplendorosas que
as
   Fixas da mesma grandeza. (. . . )".
       Seguem­se seis semanas de observações persistentes, noite 
após
   noite, só interrompidas por limitações meteorológicas, quando 
o céu se
   encontrava completamente coberto de nuvens. De 13 a 25 de 
Fevereiro de
   1610, a leitura, para um leigo, torna­se monótona. Galileu é 
duma
   extrema economia no discurso. Não mais de 15/20 linhas, 1/2 
desenhos,
   horas, ângulos, distâncias, grandezas aparentes. A rede está 
lançada e
   a Ciência, de facto, é também uma longa paciência!
       A fim de bem demarcar esta vertente, vejamos o que consta 
do
   "Mensageiro das Estrelas", com intervalos de uma semana,  no 
mês e
   meio que se segue:
       ­­­ "(. . . ) A catorze, o tempo esteve com nuvens. (. . .
)".
       ­­­ "(. . . ) A vinte e um, às 0 horas, 30 minutos, três 
pequenas
   Estrelas apresentaram­se a Oriente, igualmente distantes entre
elas e
   por relação a Júpiter: (. . . )  Os intervalos eram, segundo a
minha
   estimativa, de 50 segundos de minuto. Havia também uma Estrela
a
   Ocidente, distante de Júpiter 4 minutos. A Oriental mais 
próxima de
   Júpiter era de todas a mais pequena; as outras, pelo 
contrário, eram
   um pouco maiores e mais ou menos iguais entre elas. (. . . )".
       ­­­ "(. . . ) A vinte e oito e vinte e nove, nenhuma 
observação
   foi possível, por causa da interposição de nuvens. (. . . )".
       ­­­ "(. . . ) A quatro, na segunda hora, quatro Estrelas 
rodearam
   Júpiter, duas a Oriente e uma a Ocidente, dispostas 
exactamente sobre
   a mesma linha recta, como na seguinte figura: (. . . )  A 
Estrela mais
   Oriental estava a uma distância de 3 minutos da seguinte, 
enquanto que
   esta estava distante 0 minutos e 40 segundos de Júpiter; 
Júpiter
   estava a 4 minutos da mais próxima a Ocidente, e esta a 6 
minutos da
   mais Ocidental. Eram aproximadamente iguais em grandeza; a 
mais
   próxima de Júpiter aparecia ligeiramente mais pequena que as 
outras.
   Posteriormente, na sétima hora, as Estrelas Orientais não 
estavam
   separadas senão por 0 minutos, 30 segundos: (. . . )  Júpiter
   encontrava­se a 2 minutos da Estrela oriental mais próxima, 
enquanto
   que estava a 4 minutos daquela que o seguia a Ocidente e esta 
a 3
   minutos da mais Ocidental de todas. (. . . )".
       ­­­ "(. . . ) A onze, na primeira hora, duas Estrelas
   apresentavam­se do lado de Oriente e uma do lado do poente: (.
. . )
   A Ocidental estava a 4 minutos de Júpiter; a Oriental mais 
vizinha
   estava, também, a 4 minutos, enquanto que a mais Oriental
   encontrava­se a uma distância de 8 minutos desta última. 
Estavam
   bastante nítidas e situadas sobre o mesmo plano. Mas, à quarta
hora,
   uma quarta Estrela tornou­se visível, a mais próxima, a 
Oriente de
   Júpiter, mais pequena que as outras, distante de Júpiter de 0 
minutos,
   30 segundos, e desviando­se da linha que atravessava as 
outras, um
   pouco deslocada para o norte. (. . . )".
       ­­­ "(. . . ) A dezoito, à uma hora, havia três Estrelas, 
das
   quais duas ocidentais e uma oriental. A Oriental estava 
distante 3
   minutos de Júpiter, a Ocidental mais próxima, 2 minutos (. . .
)  e a
   outra, a mais Ocidental de todas, estava afastada 8 minutos da
que se
   encontrava no meio. Todas se encontravam sobre o mesmo plano, 
e
   aproximadamente com a mesma grandeza. (. . . )".
       ­­­ "(. . . ) A vinte e cinco, à 1 hora, 30 minutos, (pois
nas
   três noites anteriores o Céu tinha estado coberto de nuvens) 
três
   Estrelas apareceram: (. . . )  Duas estavam a Oriente, sendo 
iguais as
   distâncias entre elas e relativamente a Júpiter, isto é, de 4 
minutos;
   a única Estrela situada a Ocidente estava a uma distância de 2
minutos
   de Júpiter; encontravam­se exactamente sobre o mesmo plano, 
que
   prolongava a Eclíptica. (. . . )".
       Esta extensa citação pretende sugerir o clima que rodeia 
esta
   parte do livro, a dimensão paciente e monótona da série de 
observações
   que permitirão um dia o salto qualitativo que determinará as 
reais
   órbitas dos satélites de Júpiter.
       Os derradeiros cinco dias, de 26 de Fevereiro a 2 de 
Março,
   mantendo o tom e o estilo objectivo das anteriores semanas, 
introduzem
   uma novidade que consiste em referenciar o conjunto dos 
movimentos de
   Júpiter e seus quatro satélites a uma Estrela Fixa, que se 
tinha
   tornado visível nesta altura. Tal estratagema permite tornar 
mais
   nítidas as séries orbitais examinadas, uma vez que essa 
Estrela Fixa
   serve de marco imóvel que contribui para a exactidão das 
medições
   feitas.
       "(. . . ) A vinte e seis, às 0 horas, 30 minutos, 
apresentavam­se
   somente duas Estrelas: (. . . )  Uma, a Oriente, era distante 
de
   Júpiter 10 minutos; outra, a Ocidente, encontrava­se a 6 
minutos; a
   Oriental era consideravelmente mais pequena que a Ocidental. 
Mas à
   quinta hora três Estrelas eram visíveis. (. . . )  Para além 
das duas
   já assinaladas, com efeito, via­se uma terceira, do lado do 
Ocidente,
   perto de Júpiter, bem pequena, anteriormente escondida por 
trás de
   Júpiter, a uma distância dele de 1 minuto. (. . . )Essa noite,
pela
   primeira vez, decidi observar o percurso de Júpiter e dos 
Planetas que
   o acompanhavam seguindo a linha do Zodíaco, em função da sua 
relação a
   uma Fixa; com efeito, uma Estrela Fixa oferecia­se ao olhar, a
   Oriente, distante 11 minutos do Planeta oriental e 
ligeiramente
   desviada para o sul, da seguinte maneira:  (. . . )".
       Concluídas as observações a 2 de Março de 1610, Galileu
   expressamente refere que estes últimos dias, em que teve a 
preocupação
   de assinalar a Estrela Fixa nos seus desenhos, visam todos 
aqueles que
   pretendem comparar tais trajectórias com os dados presentes 
nas Tábuas
   Astronómicas então reconhecidas como válidas. Isto é, vai­se 
ao
   encontro da concordância com um património de conhecimentos
   astronómicos, de forma a enquadrar o desconhecido e a novidade
num
   corpo teórico consensualmente aceite. É um exemplo curioso da 
forma
   peculiar em que o pensamento de Galileu articula momentos de 
"ruptura"
   com fases de "continuidade", perante o sistema de 
conhecimentos que
   simultaneamente prolongou e ultrapassou.
       "(. . . ) Estas confrontações de Júpiter e dos Planetas 
que o
   rodeiam, com a Estrela Fixa, pretendi acrescentá­las a fim de 
que,
   graças a elas, todos possam compreender que os percursos 
destes
   Planetas, em longitude como em latitude, concordam exactamente
com os
   movimentos que derivam das tábuas. (. . . )".
   
   
   
   8 ­ O ORBE DE CRISTAL
   
   
   
       Terminado o diário destes alucinantes dois meses, Galileu 
propõe
   uma série de considerações finais, que fazem uma espécie de 
balanço
   das suas dúvidas, convicções e prognósticos relativamente ao 
futuro.
       Em primeiro lugar, uma dupla confissão, simultaneamente de
sucesso
   e impotência. Isto é, sabe que há quatro satélites em torno de
   Júpiter, que as suas órbitas são individualizadas, que o 
acompanham
   num movimento conjunto em torno do sol, mas não foi ainda 
capaz de
   calcular o período orbital de cada um destes planetas, cuja 
existência
   acabou de nos revelar! "
       "(...) A partir destas observações, ainda que não tenha 
sido por
   enquanto possível calcular os períodos dos Planetas, pode­se 
no mínimo
   enunciar algumas afirmações dignas de atenção. E, antes de 
mais, uma
   vez que segundo intervalos semelhantes, tanto seguem, como 
precedem
   Júpiter, uma vez que não se afastam dele, tanto em direcção ao
levante
   como ao poente, senão segundo desvios muito estreitos, e uma 
vez que o
   acompanham de forma parecida no seu movimento retrógado e no 
seu
   movimento directo, ninguém pode duvidar que descrevem à sua 
volta as
   suas próprias revoluções, realizando, durante esse tempo, 
todos em
   conjunto, um movimento giratório de doze anos  em torno do 
centro do
   mundo. (...)".
       Após esta síntese, Galileu entende que tais dados podem 
ser
   mobilizados para um duplo fim, que visa não só uma defesa das 
teses
   copernicianas, mas também um confronto teórico com outros 
modelos
   cosmológicos então em vigor. Não nos referimos exclusivamente 
ao
   modelo geocêntrico, de raíz aristotélico­ptolomeica, que era 
sem
   dúvida o adversário principal, mas a variações mais complexas 
então em
   vigor, como era o caso da concepção de Tycho Brahe.
       Este astrónomo dinamarquês (1546­1601), de origem nobre,
   contemporâneo de Galileu e Kepler, é uma das mais 
interessantes
   personalidades desta época de transição. Desde muito cedo 
vocacionado
   para a Astronomia, obtém o apoio da coroa dinamarquesa para se
dedicar
   à investigação, tendo acesso a meios verdadeiramente 
invulgares,
   dentro desta área de estudos. Consegue que lhe seja doada uma 
ilha
   pelo rei Frederico II, situada entre Copenhague e o Castelo de
   Elsinor, em cujas muralhas longamente cismou o príncipe 
Hamlet!
       Aí constrói um gigantesco laboratório­cidade, a partir de 
1576,
   que sintomaticamente nomeou Uraniburg, e para o qual não 
poupou nem
   esforços, nem despesas, a fim de fundar uma comunidade 
científica
   exclusivamente dedicada à observação dos céus. Tudo foi 
cuidadosamente
   desenhado com esse fim, sendo de destacar os gigantescos 
instrumentos
   de observação dos astros, cuja precisão é inexcedível na era 
anterior
   ao desenvolvimento dos telescópios.
       Dirigindo tiranicamente Uraniburg, com temperamento
   simultaneamente irascível e folgazão, Tycho Brahe vai 
acumulando ao
   longo dos anos séries de anotações numéricas (ângulos, datas, 
horas,
   desvios) relativos a todos os planetas conhecidos, a estrelas 
e
   constelações, bem como a cometas e super­novas.
       O seu sonho era construir um sistema cosmológico 
alternativo a
   Ptolomeu e Copérnico, recuperando, em parte, a antiga tradição
de
   Heráclides.   Modelo híbrido, aglutinava em si aspectos 
geocêntricos e
   heliocêntricos. A Terra era o centro do Mundo e em seu torno 
orbitavam
   a Lua e o Sol. Mas, por sua vez, à volta do Sol, giravam os 
cinco
   planetas conhecidos (Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e 
Saturno). Tendo
   conhecimento da publicação, em 1596, da obra de Kepler 
"Mysterium
   Cosmographicum", onde se desenvolviam ideias que recuperavam 
estranhas
   combinatórias de Copérnico com convicções pitagóricas e 
devaneios
   geométrico­platónicos, resolve convidar o tímido Kepler para 
uma
   estadia junto a si,   de forma a trocarem opiniões e pontos de
vista.
       O convite é aceite, mas com intenções dúbias de parte a 
parte,
   pois enquanto Tycho Brahe reconhecia a vocação 
matemático­geométrica
   de Kepler, este necessitava desesperadamente de ter acesso aos
dados
   quantitativos na mão do dinamarquês, resultantes dos anos de 
trabalho
   forçado de Uraniburg. As relações entre estas duas 
personalidades tão
   diferentes estão recheadas de peripécias, que não é oportuno 
agora
   relatar, bastando referir que Kepler fica herdeiro dessa 
informação,
   após 1601, altura em que Tycho Brahe morre. Na posse desses 
elementos,
   designadamente dos dados referentes a Marte,  Kepler vem a 
publicar,
   em 1609, a sua "Astronomia Nova", um ano antes de Galileu 
trazer a
   público "O Mensageiro das Estrelas".
       Nessa obra ("Astronomia Nova") são correctamente expostas 
as duas
   Leis que rompem com o dogma do movimento circular e uniforme. 
Galileu
   conhece este texto mas, espantosamente, não tira as devidas
   consequências, pois continuará a sustentar até ao fim da sua 
vida
   concepções que não entram em linha de conta nem com a forma 
elíptica
   das órbitas planetárias (1ª Lei de Kepler), nem com o 
movimento não
   uniforme das translacções em torno do Sol (2ª Lei de Kepler).
       Seja como fôr, em 1610, o sistema de Tycho Brahe era 
conhecido,
   e Galileu deve estar a pensar que as suas descobertas podem 
ser um
   argumento contra tais teses dum Universo bi­cêntrico (Terra e 
Sol), em
   defesa dum modelo coperniciano "puro", que nunca foi capaz de
   abandonar!
       Ouçamos as suas palavras: "(. . . ) Por outro lado, temos 
um
   argumento excelente e luminoso para retirar qualquer escrúpulo
àqueles
   que, ainda que aceitando tranquilamente a revolução dos 
Planetas à
   volta do Sol no sistema coperniciano, ficam de tal maneira 
perturbados
   pela órbita que a Lua faz em torno da Terra ­­­ enquanto que 
estes
   Planetas cumprem uma revolução anual em torno do Sol ­­­, que 
julgam
   que esta organização do mundo deve ser rejeitada como uma
   impossibilidade. (. . . )".
       Referido o argumento de estranheza que resultava da Lua 
ser o
   único planeta simultaneamente orbitando em torno da Terra e do
Sol,
   Galileu afirma que esta excepção deixa de ser incomodatícia e
   paradoxal, uma vez que se detectaram 4 planetas (satélites) em
torno
   de Júpiter, de forma análoga à das relações Terra­Lua. 
Portanto, já
   não é um caso (Lua), mas cinco (satélites de Júpiter e Lua), e
a
   excepção passa a normalidade! Só o sistema de Copérnico é 
capaz de
   integrar, de forma não contraditória, tais irrecusáveis 
factos.
       "(. . . ) Agora, com efeito, já não temos mais um único 
Planeta
   rodando à volta de um outro, enquanto que ambos percorrem um 
grande
   orbe à volta do sol, mas a nossa percepção oferece­nos quatro 
Estrelas
   errantes, rodando em torno de Júpiter, como a Lua o faz à 
volta da
   Terra, enquanto que todos executam em conjunto com Júpiter, no
espaço
   de doze anos, um grande orbe à volta do Sol. (. . . )".
       É interessante salientar que Galileu ao referir o facto 
dos
   Satélites de Júpiter aparecerem por vezes à observação com 
grandezas
   aparentes que chegam a variar em 100%, reconhecer que não 
basta a
   explicação radicada num efeito de aberração óptica da 
responsabilidade
   dos "vapores terrestres". " (. . . ) Todavia, não se deve 
silenciar a
   razão pela qual acontece que os Astros Mediceus, enquanto 
realizam
   pequeníssimas rotações em torno de Júpiter, parecem por vezes 
mais de
   duas vezes maiores. Não podemos de forma alguma procurar a 
causa nos
   vapores terrestres, porque as Estrelas  satélites  aparecem 
aumentados
   ou diminuidos enquanto que, visivelmente, a massa de Júpiter e
das
   Fixas mais próximas em nada é modificada. ( . . . )".
       Acrescenta também que não basta como explicação referir 
que, na
   sua órbita em torno de Júpiter, na altura do perigeu, os 
Satélites se
   aproximam de tal modo da Terra que o seu tamanho aparece 
maior,
   enquanto que fenómeno oposto se daria no momento do apogeu. 
"(. . . )
   Que, por outro lado, estas Estrelas se aproximem e afastem de 
tal modo
   da Terra no momento do perigeu ou do apogeu da sua revolução, 
(. . .
   )parece absolutamente inconcebível; (. . . )".
       É exactamente nesta altura que Galileu nos deixa uma 
curiosa e
   significativa hipótese, para imediatamente a abandonar como 
algo de
   absurdo e incompatível com os factos, ao sugerir que as 
órbitas dos
   Satélites pudessem ser "ovais". Isto é, no momento em que 
Kepler tinha
   demonstrado nas suas duas Leis da "Astronomia Nova", a forma 
elíptica
   das órbitas planetárias, Galileu concebe por momentos um 
cenário
   análogo, através dum "movimento oval". Mas é verdade que lhe 
não
   atribui qualquer importância, a não ser pela negativa, 
lançando­se
   precipitadamente na sua refutação liminar!
       "(. . . ) uma estreita rotação circular não pode de 
nenhuma forma
   produzir isso e um movimento oval (. . . ) parece ser 
simultaneamente
   inconcebível e de nenhuma maneira compatível com as 
aparências. (. . .
   )".
       Assim deixando escapar um facto absolutamente vital para a
Ciência
   Moderna, Galileu insiste numa explicação baseada na tese dos 
"orbes
   vaporosos", já utilizada para a Lua e Terra, mas agora 
extensível a
   Júpiter. Tal orbe seria o responsável pelo aumento da grandeza
   aparente dos Satélites no momento do perigeu, altura em que 
seria mais
   atenuado. Inversamente, no instante do apogeu, porque mais 
denso e
   extenso, levaria a que os satélites fossem vistos como 
francamente
   mais pequenos.
       "(. . . ) É certo, para além do mais, que não somente a 
Terra, mas
   igualmente a Lua possuem o seu próprio orbe vaporoso espalhado
à sua
   volta, seja devido ao que dissemos mais atrás, seja, 
sobretudo, por
   causa daquilo que será mais longamente desenvolvido no nosso 
SISTEMA.
   (. . . ) não parece nada inconcebível colocar um orbe mais 
denso que o
   resto do éter em torno de Júpiter; à sua volta, como a Lua em 
torno da
   esfera dos elementos, giram os Planetas MEDICEUS, e devido à
   interposição deste orbe quando estão no apogeu, aparecem mais
   pequenos, enquanto que no perigeu, por causa do 
desaparecimento ou
   atenuação deste mesmo orbe, aparecem maiores. A falta de tempo
   impede­me de ir mais longe. Que o Leitor benevolente aguarde 
mais
   factos sobre estes assuntos dentro de pouco tempo. (. . . )".
       São estas as últimas palavras escritas no "Mensageiro das
   Estrelas", altamente significativas do momento de transição 
que
   percorre toda a obra de Galileu no que à Física Celeste diz 
respeito.
   Vivendo entre dois mundos, a sua extraordinária perspicácia 
não
   impediu que deixasse em torno do seu espírito um derradeiro 
orbe de
   cristal onde, qual bela adormecida, se sonha a doçura 
imemorial duma
   perfeição que eternamente nos foge e nos chama.
      
   Porto, Janeiro 1995
                                     
 Levi António Malho   
                                      
                           AS ORIGENS DO SILÊNCIO
  
      ­­­ Sobre o que não sabemos.
   
    " (...) Vou passar a noite a Sintra por não poder passá­la em
Lisboa,
   
   Mas, quando chegar a Lisboa, terei pena de não ter estado em 
Sintra.
   
   Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem 
consequência,
   
   Sempre, sempre, sempre,
   
   Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma
   
   Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da
   
   vida... (...)"
   
   
   
   Fernando Pessoa, "Poesias de Álvaro de Campos"
   
   
   
   I) ­ UM GRANDE FRIO DO ESPÍRITO 
   
   
   
   O imprevisto percorre as nossas vidas, uma mão vinda sei lá 
donde "dá
   e tira", sem que saibamos os porquês de certos ventos que nos 
levam
   para longe, como aquele pássaro que atravessou uma gélida 
noite de
   orações de Beda, o Venerável Beda.
       Singular coincidência esta em que o "ser individual" se 
assemelha
   à "espécie", em que o sentido que preenche o destino dos 
homens se
   abre face aos imponderáveis da nossa ignorância sobre 
infinitos seres,
   infelizmente os mais importantes.
       Como aqueles personagens de Pirandello "à procura de um 
Autor", o
   nosso "Eu", essa coisa óbvia que nos faz reconhecer como Corpo
   distinto do Mundo, aquele olhar, sorriso, ruga, que os 
espelhos nos
   devolvem, é uma "entidade múltipla", uma "arte combinatória", 
onde se
   cruzam os genes, as culturas, as paisagens, as vozes amigas 
que
   circundavam a infância, os livros, os sonhos, o caleidoscópio
   insondável da Natureza.
       O "Eu" é, por conseguinte, uma multidão anónima que se 
esconde sob
   o nosso nome, um gelo fino sobre o grande Oceano subjacente e 
um
   ilimitado Céu.
       Sabemos o "instante", o aqui, o agora. Flutuamos no Tempo 
com uma
   displicência de turista, mapa na mão, todas as ruas 
assinaladas,
   afinal de contas nunca nos perdemos, há sempre um Norte, uma 
estrada
   donde se vem, um caminho para onde se vai, o Universo não tem 
buracos,
   "quem tem boca vai a Roma"!
       E, todavia, tanta certeza leva­nos a desconfiar.
       Sei que o Tempo nem sempre se apropria como nós queremos, 
nós os
   que vivemos ao ritmo dos noticiários de trinta em trinta 
minutos, da
   "síntese do dia", da análise profunda do semanário, dos 
balanços de
   fim­de­ano, ou de década.
       Mas que sentido faz "1 semana" ou "1 ano" para o 
"Sapiens­Sapiens"
   (designação que não revela grande modéstia nem falta de 
auto­estima,
   admita­se ...), que por aqui anda há 40.000 anos?
       "Conhece­te a ti próprio!", dizia a máxima socrática.
       Mas não está lá dito que basta um retrato "tipo­passe",
   frente­perfil, o necessário para o Arquivo de Identificação e 
Bilhete
   de Identidade.
       O que afirmo é que ignoramos o essencial, de nós sabemos a
sombra
   duma sombra, o nosso Eu é centrífugo, lança­nos para a rua, 
põe­nos cá
   fora a vêr quem passa, detesta companhia, não por misantropia,
mas por
   incapacidade de se escutar.
       Em fim de século, a consciência humana está saturada de
   "interpretações", de "interpretações de interpretações", 
abafada por
   signos, ausente do despojamento duma "nudez" que lhe é 
insuportável!
       Porque há, no mais fundo de nós, um Enigma não resolvido, 
quer na
   vertente social e histórica, quer na dimensão individual, quer
na
   "espécie" a que pertencemos.
       Como figuras de banda desenhada, ou personagens de 
parábolas
   milagrosas, julgamos caminhar sobre as águas e desafiar o 
Vazio, só
   porque nos recusamos a olhar "para baixo" e nos agarramos uns 
aos
   outros, não necessariamente por razões de afecto, mas 
simplesmente
   porque estamos aqui, "apertados" na barca da História, porque 
não há
   outro local a não ser esse...
        Mas o Tempo contém uma opacidade para além da nitidez do
   presente, do "instante ­ que ­ faz ­ sentido", mas resiste 
pouco aos
   espíritos claustrófobos, aos que afastam as estátuas dos 
egrégios
   avós, arrancam as amarras e se perguntam se o Mundo é um 
teatro ou o
   Teatro é que é o Mundo, o encenador nunca pode atender, o 
guião não
   está disponível, "talvez mais logo", como nas palavras do 
Senhor Godot
   de Brecht.
       O nosso "presente" é, fundamentalmente, urbano, citadino,
   mediático, aldeia­global, "good news, no news...". Porque 
estamos à
   tona da História, os ritmos das Sociedades Industriais 
avançadas
   confundem­se com a aparência do único modo­de­estar possível, 
a
   fuga­em­frente é o caminho óbvio, parar é morrer, os 
acontecimentos
   precipitam­se e nós, pobres humanos, passamos uma "vista de 
olhos"
   para "estar­a­par", entender, mediatizados por profissionais 
da
   interpretação dos factos económicos, do agregado monetário 
"M3" do
   "BundesBank", das declarações do Presidente da Reserva 
Federal, das
   imagens do telescópio espacial Hubble, das matanças 
inenarráveis do
   "Ramadão" argelino.
       Como se pode ver e falar disto tudo sem perplexidade e sem
   espanto?!
       Drogados pelos "acontecimentos", caminhamos para uma certa
   insensibilidade face ao mundo, agarramo­nos aos nossos dias, 
recusamos
   o "non­sens" duma época convulsiva e turbulenta.
       Que o processo histórico não obedece às regras da 
Geometria
   Euclidiana, já o deveríamos saber. Que não há "fundamento 
último", a
   não ser por consenso de vontades precárias, isso é que se 
revela mais
   custoso de admitir.
       O que afirmo é simples. Avaliem­se as "temporalidades 
longas",
   escavem­se os "sub­solos da Civilização", meta­se a mão e a
   consciência bem fundo na História e então, no centro da "Luz",
   pressente­se um entardecer, uma ameaça de despojamento, um 
grande
   silêncio, uma espécie de "coisa nenhuma, um grande frio do 
Espírito.
       A consciência do Tempo arrefece em direcção ao "zero 
absoluto" se,
   duma certa maneira, olharmos e pensarmos o "social", o 
"individual", o
   "humano", o "biológico" e o "material".
       Tal como um "puzzle", estes conceitos parecem encaixar­se 
bem uns
   nos outros e, no seu conjunto, produzem um 
"Objecto­com­sentido". Mas
   o que pretendo é chamar a atenção para as "arestas" de encaixe
entre
   as várias "peças" e constatar se essa superfície 
tridimensional
   desejada como "sólido perfeito", não é um cenário de 
Hollywood, preso
   por arames...
   
   
   
   II ­ " AS TIME GOES BY "
   
   
   
   Se partirmos das evidências primárias, dos fenómenos banais, 
ninguém
   contesta que a condição humana é uma combinatória entre o 
individual e
   o social, sendo bem difíceis de estabelecer fronteiras nítidas
entre
   estes dois conceitos.
       Aceite este pressuposto, comecemos pelo "objecto" mais 
próximo,
   aceitando que nada há "mais próximo de nós", que o "Eu" de 
cada um de
   nós.
       Esse "Eu" tem um nome, um sexo, uma data de nascimento, um
   território, uma comunidade com a qual inter­age. A sua "Forma"
resulta
   desse ajustamento que teve de fazer em função de "formas" que 
lhe
   pré­existiam ou que com ele co­existiam.
       Aparentemente, sabemos quem somos, respondemos pelo "Nome"
quando
   nos chamam, orientamo­nos nas cidades, fazemos compras, 
cumprimentamos
   com delicadeza ausente o vizinho de cima! Isto é, sedimentamos
a nossa
   Vida numa constelação de referentes com nexo aparente, 
distinguimos as
   ilusões e sonhos das "horas despertas", ajustamos as rotinas 
do
   quotidiano entre limites tidos como razoáveis.
       Mas se tentarmos mergulhar na nossa identidade, naquilo 
que faz
   com que sejamos esse "Eu", rapidamente seremos confrontados 
com
   algumas surpresas. O essencial de nós repousa numa espécie de 
"treva
   primordial", bastando para tal um exercício imaginário 
rudimentar.
   Claro que sabemos o "Hoje", talvez o "Ontem,", provavelmente a
véspera
   da véspera. Mas, à medida que nos afastamos do "Presente", uma
bruma
   levanta­se sobre os nossos dias passados, sabemos que 
"estivemos lá" (
   senão, não estávamos "aqui" ...), mas algo de desconfortável 
irrompe,
   nos lapsos de Tempo esvaziados, nas horas, semanas, meses, 
anos, que
   não reconstituímos a não ser por uma síntese do 
"mais­ou­menos", "não
   me lembro bem", parece­me que foi "nessa altura", mas não 
tenho a
   certeza!
       É verdade. As certezas diminuem, não porque sejamos 
inseguros,
   tímidos, mas porque a consciência é amnésica, deita fora, 
recalca,
   volatiliza os instantes, para erguer um edifício sintético
   auto­produzido onde nos protejemos das ondulações in­formes do
Oceano
   antiquíssimo.
       A verdade é que, quando procuramos, individualmente, as 
primeiras
   "imagens" da presença de "nós em nós", esse local do Tempo em 
que nos
   vemos como um "Eu", deparamos com um acontecimento 
interactivo,
   espécie de "flash" dificilmente datável, algo como um rosto de
mãe que
   nos olha e afaga, uma sensação tépida, um balão colorido na 
nossa mão,
   um dia de chuva, um brinquedo, um rumor, um aroma, uma vaga 
percepção
   táctil.
       E antes?!...
       Esse "antes", para nós, é inexistente.
       No nexo causal, a Razão diz­nos que "teve de lá estar", e 
nós com
   "ele", claro. Mas, por mais que nos esforcemos, "ele" 
desapareceu para
   sempre. Um desmaio hipnótico da nossa Memória é tudo o que 
resta e
   ninguém se lembra de ter nascido, do desconforto da primeira
   respiração, do momento em que o nosso corpo se "separou", para
sempre,
   em direcção aos limites de si próprio.
       Descobrimos então que não somos autónomos, que não "nos
   pertencemos" senão por um acto de Vontade, que dependemos 
totalmente
   dos outros, daqueles que nos dizem que "aquilo­aquele­aquela" 
éramos
   nós, aí está um retrato amarelecido pelo tempo e a gente 
acredita, não
   há outro remédio!
       Tenhamos, por conseguinte, consciência que não estamos a 
fazer
   outra coisa senão "acreditar", "ter fé", "crer", jamais nos 
sentiremos
   como "presentes" a tudo "isso", ninguém nos peça 
responsabilidades,
   declarações, compromissos de honra. Moral da história: na 
nossa
   "auto­psico­génese" somos estruturalmente passivos,[] 
flutuamos numa
   espécie de vento que jamais saberemos donde veio.
       Resta­nos admitir que esse "testemunho" é credível, que 
tudo isto
   é normal, sempre foi assim, é nossa condição, um pormenor
   insignificante, um detalhe neurótico, nem vale a pena pensar 
nisso. Só
   um espírito desconfiado se lembraria de tão bizarras 
divagações. Só
   nos faltava mais esta. Ora! Ora!
       Dir­se­á, todavia, que talvez tenhamos seguido um caminho
   excessivamente particularizado. O "Indivíduo" é 
in­significante, o que
   conta é o "Eu" no contexto social, isto é, as Civilizações e a
   História "longa", pois essas colmatarão as lacunas das 
"histórias
   individuais".
       Mas também esta tese nos revela algumas surpresas, quando 
nos
   movemos em direcção ao "equivalente social" da 
auto­consciência
   individual.
   
   Todas as "Histórias Universais" são uma espécie de triângulo
   equilátero invertido, do ponto da vista dos dados 
informativos. Tanto
   faz serem em três volumes, como em vinte volumes, a proporção
   mantém­se. Para o mais remoto "Passado", a distância 
vertiginosa do
   "Presente", na "Pré­História" (designação altamente 
discutível...)[]
   os assuntos arrumam­se, com aparente lógica, mas em "espaços
   expositivos" curtos. Nos dez volumes hipotéticos da nossa 
imaginária
   "História Universal", Grécia e Roma aparecem lá para os fins 
do 2º
   tomo, na melhor das hipóteses. Depois, um/dois volumes para o 
"Período
   Medieval" ­­­ às vezes o "Renascimento" ainda cabe aqui ­­­ e 
os
   restantes cinco volumes para os últimos cinco séculos e em 
proporções
   inversas de páginas relativamente à distância que nos aproxima
dos
   séculos XIX e XX.
       Esta análise tem excepções, mas creio representar uma 
realidade de
   fundo, que não é culpa de qualquer "avareza" dos editores, mas
do
   simples facto da pulverização e extinção de 
"documentos­monumentos", à
   medida em que nos encaminhamos das Sociedades Industriais para
o
   "Mundo Camponês", e deste para a sua origem, no Médio­Oriente,

   aproximadamente 4.000 anos. Para "trás", ficam 36.000 anos de 
Caça e
   Recolecção, as coisas tratam­se já não na escala do "século", 
mas do
   "milénio", a imprecisão cresce de forma logarítmica, não há 
livros, os
   papiros desfazem­se em pó, as pedras partiram­se, as estações
   arqueológicas procuram fragmentos de plâncton no oceano do 
Tempo.
   Algumas "inscrições", um maxilar, uma rótula, nos dias bons, 
um
   crâneo, temperados pela ajuda da paleo­botânica mais o 
"carbono 14",
   são o melhor que a nossa Ciência prestigiada consegue 
arregimentar ao
   gigantesco vazio de Informação.
       E nem sequer podemos ter esperança no progresso dum 
"Conhecimento
   Futuro", pois estamos perante fenómenos irreversíveis em que, 
quando
   muito, preencheremos mais algumas lacunas, produziremos mais 
alguns
   modelos teórico­interpretativos, mas a verdade que se impõe é 
a duma
   ignorância de fundo face ao nosso "nascimento social", do 
ponto de
   vista da Espécie.
       Para trás dos 40.000 anos, a cegueira aumenta e os dados 
diminuem.
   100.000 Anos para o "Sapiens­Neandertal", três a dez milhões 
de anos
   para a Antropogénese, a passagem da floresta à savana, 
"Erectus",
   "Habilis", "Ramapitecus", pequenas luzes na grande noite. Só 
memória
   de palavras talvez ditas, só crescimento do Silêncio!
   
   
   
   III ­ " O FEITICEIRO DE OZ "
   
   
   
   Sem sustentar, de forma alguma, a inexistência de efectivo 
progresso
   na consciência que vamos construindo sobre o Mundo, pois é 
óbvio o
   extraordinário desenvolvimento da informação que sobre ele
   conquistamos, pretende­se chamar a atenção, no presente texto,
não
   para "aquilo que se sabe", mas para o que se "continua a não 
saber".
       Nesta matéria há duas posições paradigmáticas a 
considerar, que se
   sustentam num pressuposto de base diferente. A primeira, 
admite a
   total "transparência potencial da Natureza" e a adequação 
essencial da
   consciência humana para a descoberta dos seus limites, tudo 
dependendo
   duma questão de Tempo, em que o Futuro ocupa um papel 
sistematicamente
   positivo, em direcção a uma espécie de "Teoria­do Tudo" 
("TOE").
       Uma outra atitude, apesar de com esta compartilhar uma 
dimensão de
   racionalidade do "Real", admite a possibilidade de "limites
   ontológicos" à total desvelação do Universo, por não estar 
provado que
   a Natureza foi "construída" como um "puzzle" para o "Homo 
Sapiens"
   pacientemente colar e pendurar na parede, no "final" da 
História...
       Repõe­se aqui, num contexto amplo, a questão do 
"antropocentrismo"
   e duma espécie de boa­consciência quanto ao facto do Universo 
estar
   dimensionado para se adaptar preferencialmente às espécies
   "cerebralizadas", no conjunto das quais o "Sapiens­Sapiens" se
   apresentaria como predestinado à conquista do "segredo final".
       Não digo que não desejaria que tal se verificasse, mas 
tenho de
   reconhecer que tal "voluntarismo" pode não se adequar à 
"estrutura
   profunda do Mundo", se é que este conceito é viável!
       Nesta ordem de ideias,uma breve reflexão sobre a Biogénese
e
   Cosmogénese, pode revelar alguns elementos curiosos.
       Não discutirei aqui a hipótese da existência duma "unidade
de
   fundo" no interior daquilo a que se chama a "Vida", conceito 
bem mais
   complexo do que parece, se atendermos ao que se tem passado 
nos
   últimos 30 anos. A separação abissal entre o "vivo" e o 
"não­vivo"
   (matéria/vida), é actualmente um reino de sombras, em que o 
limiar é
   guardado pela insólita estrutura dos "vírus".
       Perante estes, é bem difícil de responder se são ou não 
"seres
   vivos" pois, apesar de partilharem com a "vida normal" o facto
de
   serem possuidores dum código genético, essa longa sequência de
"ADN"
   desvelado na 2ª metade deste século por Watson e Crick, a 
verdade é
   que, na ausência de outras células que "parasitem", os vírus
   comportam­se como entidades inertes, sem autonomia 
replicativa,
   incapazes, portanto, de se "multiplicarem".
       Na hierarquia da biogénese, apresentam­se como uma 
entidade
   "minimalista", mas onde o essencial, "menos qualquer­coisa", 
está
   presente.
       A verdadeira dificuldade está em compreender como "se 
passa do
   "não­vivo" ao "vivo", pois apesar da experiência de Stanley 
Miller[]
   revelar a possibilidade de complexificação dum meio químico 
rudimentar
   poder originar macro­moléculas duma grande complexidade, 
através duma
   "ars combinatoria" já suficientemente provada, a verdade é que
tal
   experiência nos leva somente à "ante­véspera" da Vida e à 
síntese de
   alguns "compostos" constituintes do futuro código genético.
       Mas não nos iludamos, dado que ainda não foi possível 
"criar e/ou
   sintetizar" laboratorialmente um ser vivo "pleno", por mais 
simples
   que seja...
       A biogénese lança­nos para estratos cronométricos de 
duração
   extremamente longa, pois, em vez dos 12 milhões de anos que 
nos levam
   dos "Ramapitecos" ao "Sapiens/Neandertal", necessitamos de
   enquadramentos temporais que remetem para as "eras geológicas"
e a
   formação do planeta Terra.
       Admitindo 4.600 milhões de anos, como um tempo consensual 
para a
   idade da Terra, a biogénese pode ser um fenómeno arcaico, que
   remontará há 4.000 milhões de anos.
       Apesar da inexistência de fósseis que sustentem uma tal
   antiguidade, a probabilidade destas datações é verosímil, se
   atendermos a que os "vestígios efectivos" já apresentam uma
   complexidade que implica a eventual pré­existência de 
"organismos" que
   lhes são anteriores. Nesta ordem de ideias, é bem mais difícil
   entender "como se passa" do "não­vivo" ao "vivo" que aceitar, 
com
   alguma lógica, a transição das primeiras entidades dotadas de 
vida até
   à incomensurável diversificação das espécies e colonização 
biológica
   da Terra.
       A profunda diversidade orgânica que a evolução nos revela,
   assentando sempre na plataforma básica do "código genético" e 
da
   monótona universalidade dos seus componentes básicos, 
sugere­nos que a
   "lógica da Vida" vai na direcção da "diversificação", nunca 
apostando
   tudo num único organismo/espécie, por mais eficaz que ele 
pareça nas
   suas correlações adaptativas com o respectivo biótopo.
       Se no "darwinismo" e "neo­darwinismo", o Tempo e o Acaso, 
são os
   verdadeiros obreiros da "evolução­transformação" das espécies,
não
   deixa de ser curiosa uma reflexão sobre um eventual "Sentido" 
que
   presidiria à biogénese. Há uma tendência usual de 
sobrevalorizar a
   "cerebralização" como a verdadeira chave da evolução, espécie 
de força
   motriz que "empurra" as Espécies em direcção à grande linha 
dos
   Mamíferos e destes à Antropogénese, no topo da qual o "Homo 
Sapiens"
   representaria a "saída" por excelência.
       Sem negar que esta análise, aparentemente, é convincente e
até
   "lisongeira", não podemos esquecer que a consciência e as 
informações
   que actualmente dispomos sobre a evolução das espécies, não 
justificam
   a total transparência desta interpretação.
       A lógica da Vida, "se lógica tem", é "manter­se viva"! 
Nela não
   está inscrita a necessidade irreversível duma hierarquia 
"progressiva"
   em direcção aos "grandes cérebros" que, apesar de actualmente
   triunfantes, só podem reivindicar alguns milhões de anos de
   existência.[] Deveria servir­nos de exemplo qualquer visita a 
um Museu
   de "História Natural", onde jazem às dezenas, fragmentos e 
painéis
   sobre comunidades biológicas bem "sucedidas" e de duração 
prolongada,
   e que actualmente se reduzem à poeira das prateleiras...
       Se os sistemas nervosos centrais complexos constituem uma 
vantagem
   adaptativa face a eco­sistemas em rápida mudança, pois não 
necessitam
   de "esperar" pelas mutações dos genes para se adequarem às 
rápidas
   transformações do biótopo, também é possível reconhecer que há
uma
   espécie de "excesso" nessas "redes neuronais finas",[] sobre o
   funcionamento das quais "o que sabemos" é incomensuravelmente 
inferior
   ao que "ignoramos".
       Numa outra perspectiva, há algo de "monstruoso" na 
maravilha que,
   de facto, é um cérebro "Sapiens"! É como se algo de 
"excessivo",
   teratológico quase, fosse entregue a seres instáveis, frágeis,
   sub­dimensionados para efectivamente "controlarem" esse 
instrumento
   evolutivo verdadeiramente excepcional.
       Digo, por conseguinte, que um grande Enigma nos habita.
       E um enorme "Silêncio" está dentro de nós, zona obscura, 
campo
   cego, presença indizível. Nada está escrito em sítio nenhum,
   garantindo­nos o "cume da Criação". A estrada do "humano" pode
   dirigir­se a "sítio­nenhum". Tal será lastimável, mas sei que 
esta
   afirmação é simplesmente um desabafo piedoso dum "cérebro 
Sapiens".
       Tal como os corais que produzem os grandes recifes, no 
interior
   dos quais uma espantosa diversidade biológica inter­age e 
sobrevive,
   esquecendo que tal sobrevivência se deve à "Fronteira" que o 
próprio
   recife é, convém lembrar que o micro­mundo que aí existe é uma
pequena
   "bolha" preciosa, cercada pelo incomensurável Oceano que, dia 
e noite,
   pressiona essa região excepcional.
       Da mesma forma que não se "podem fazer omoletes sem se 
partir
   ovos", não se pode entender um "sistema vivo" sem pensar o 
"não­vivo"
   que o constitui. Apesar de não sabermos o que faz com que um 
"agregado
   molecular" seja um "ser vivo", a verdade é que sem "ele", sem 
esse
   conjunto inerte de componentes "materiais", nunca esse 
"sistema vivo"
   seria possível.
       É natural que pensemos as "dependências materiais" da 
Biogénese,
   levando­nos tal meditação à paradoxal "infinita distância" e 
"infinita
   proximidade" de nós próprios. Neste derradeiro cenário, está 
prestes a
   entrar em cena, utilizando uma linguagem mecanicista e 
desactualizada,
   a execrável "Matéria"!
       As perguntas sobre a natureza da "Matéria" são talvez as 
mais
   antigas da História cultural daquilo a que se chama o 
"Pensamento
   Ocidental", cujas origens remontam à aparição do pensamento
   filosófico, nas cidades gregas da Ásia Menor, por volta do 
séc. VI
   A.C.
       Se é um lugar­comum afirmar que a Filosofia instituiu uma 
passagem
   do "Mito" ao "Logos", talvez seja mais importante salientar a 
névoa
   que cobre este "local de passagem", acentuando que todos os 
grandes
   Mitos de Criação, anteriores no Tempo e deslocados no Espaço, 
por
   relação às origens da Filosofia, se posicionaram face à
   "matéria­prima" do Mundo, o que é outra forma de dizer a 
"Substância
   básica" que lhe está subjacente. Esta questão é a "nascente" 
de todos
   os Deuses e de todas as Religiões, uma vez que é bem difícil 
encontrar
   um "Mito de Fundação" que não tente responder ao problema da 
origem do
   mundo e das "redes causais" que presidem a uma historicidade 
que vai
   das "Origens" até ao "Quotidiano" da comunidade antropológica 
que
   sustenta, transporta, actualiza e vivifica o Mito.
       O que o pensamento filosófico faz, nas suas origens 
gregas, é
   "naturalizar" progressivamente o problema, fazendo um esforço 
para
   separar o domínio do "Logos", do espaço das "Divindades", que 
se
   desloca para o domínio das convicções íntimas de cada um, 
assim
   permitindo a discussão construtiva sobre a natureza dos 1ºs
   princípios. Os Gregos debateram exaustivamente o problema da
   "substância primordial" ("arquê") e admitiram soluções 
monistas e
   "mono­substanciais" tais como a "Água" de Tales, o "Ar" de 
Anaximenes,
   o "Fogo" de Heraclito, o "Apeiron" de Anaximandro, os 
"Números" dos
   Pitagóricos, a partir dos quais por uma dialéctica descendente
de
   cariz naturalista se partia da "Unidade Inicial" para a 
"Pluralidade
   Final" que actualmente contemplamos.
       Este novo tipo de pensamento instaura uma "fractura" nas
   Consciências, pois a pluralidade das respostas sugere aos 
indivíduos
   um "campo de insegurança" e incerteza, dado ser óbvio que não 
podem
   ser todas Verdadeiras, mas podem ser, em última estância, 
todas
   Falsas, ou então, apenas delimitam fragmentos de Verdade que 
deverão
   ser postos à prova da Razão e da Experiência.
       O pensamento grego percorreu quase todas as veredas 
possíveis
   deste "universo de dúvidas" e, à medida que a História da 
Filosofia se
   encaminha para o período áureo de Platão e Aristóteles, o 
problema da
   "Substância Primordial" complexifica­se, não se tratando agora
de
   escolher A e/ou B, isto é, Ar, Água, Terra e Fogo coexistem[] 
numa
   vasta teia de relações que dão origem à "Física Antiga", nas 
suas
   diferentes versões.
       O problema da "Matéria" é abordado de duas grandes 
maneiras, que
   divergem entre si, não quanto ao facto da sua "existência" no 
plano do
   Mundo, mas quanto à sua "natureza íntima".
       Platão entende o Mundo como um "Ser Vivo" ("Zoon") dotado 
de
   "Alma", cuja "autoria" remete para o projecto de Bondade dum
   "Deus­Demiurgo" que deseja criar "algo" ( o Mundo) que se lhe
   assemelhe. Se tal Mundo deve ser Visível e Tangível, e por 
isso será
   composto de "Fogo" para o "iluminar" e de "Terra", para ser 
"tocável",
   não deixa de ser verdade que este mesmo platonismo tem sobre a
   "Matéria" uma posição de desvalorização e desconfiança quanto 
ao seu
   poder auto­subsistente, uma vez que a considera uma "prisão da
Alma",
   um "simulacro" a ser ultrapassado, sob pena de habitarmos para
sempre
   um reino de trevas e de sensações espúrias, que não levam a 
parte
   alguma. É esse o sentido do "Mito da Caverna"!
       O verdadeiro Mundo apenas é acessível ao Espírito humano 
por uma
   espécie de "Psicanálise das Memórias arcaicas", em que a 
"Alma"
   recorda um "Tempo Primordial" durante o qual "contemplou" a 
verdadeira
   natureza das coisas, que reside, de facto, num "Mundo de 
Ideias e
   Arquétipos", sinónimos de perfeição absoluta, onde nada muda e
nada se
   transforma. O Platonismo abre caminho a um "Conhecimento" 
entendido
   como depuração de sensações, consciência aguda das máscaras e
   simulacros da experiência empírica, via de despojamento
   mítico­religioso, processo ascético da Filosofia em direcção a
um
   "Mundo Ideal".
       Nos bancos da Academia, oriundo da Macedónia, um aluno 
atento
   tomava notas, bebia estas ideias e estaria predestinado a 
suceder a
   Platão na direcção da Escola, como o mais qualificado 
representante do
   núcleo duro do Platonismo. Mas Aristóteles acabou por virar o 
Mundo (
   "platónico" ) do avesso, expurgando para o "Nada" esse "Mundo 
das
   Ideias", substituindo­o por um empirismo dinâmico, de natureza
   experimental, considerando que a consciência humana encontrará
as
   "Leis" ("Universais") através duma análise das "coisas 
particulares",
   dos entes individuais que a percepção nos fornece. Constrói um
   pensamento indutivo, antepassado directo da "estrada real" da 
Ciência
   Moderna, nascida no século XVII. A "Matéria" é indestrutível 
e,
   infelizmente, nebulosa e inacessível " em­si­mesma". Existe 
nas
   "Coisas­com­Forma" que têm em si, no presente, na actualidade
   ("Acto"), um determinado rosto e uma certa configuração, mas 
que estão
   abertas à "Mudança" e às "Transformações", isto é, à 
Temporalidade e à
   possibilidade de serem "Outras­Coisas" ("Potência"), por meio 
da
   incorporação doutras "Formas" na sua materialidade própria.
       Com Aristóteles desaparece a eternidade perfeita de um 
"Mundo de
   Arquétipos" pré­existente, substituido pelo poder das Leis 
Universais
   descobertas pela inteligência humana por "abstracção" e
   "generalização".
       A estas duas atitudes (Platónica e Aristotélica) deve 
juntar­se a
   ideologia "Atomista", esse materialismo antigo que vai de 
Leucipo e
   Demócrito até ao "De Rerum Natura" de Lucrécio, no qual o 
mundo é um
   conjunto de Átomos e de Vazio, infinita inter­penetração de 
elementos
   "simples", a que sabiamente presidem as Leis oriundas dum 
"Acaso"
   probabilístico, um perpétuo fazer­desfazer, que dá à Natureza 
um
   sentido de "realidade" e "precaridade", que abrirá portas ao
   Cepticismo Antigo e às Escolas de tipo "Ético", corporizadas 
nos
   Estóicos e Epicuristas.
       O debate futuro em torno do problema da "Matéria" vem, em 
parte,
   destas posições e das combinações que entre elas se podem 
fazer.
       A Revolução Científica do século XVII, articula duma forma
   singular as perspectivas atomistas, o espírito aristotélico e 
o
   "Realismo Intuitivo" do "Mundo dos Arquétipos" de Platão.
      Admitamos que a linha mais "dura" das Ciências 
Físico­Matemáticas,
   está mais do lado duma síntese do "Atomismo" ( quanto à 
natureza da
   Matéria) e do "Empirismo sensitivo" de Aristóteles, do que do 
lado de
   Platão. Mas se pensarmos que esta posição se socorre de 
formalismos
   Geométricos e Matemáticos, que não "decorrem" de qualquer 
experiência
   indutiva, mas duma Intuição de axiomas auto­evidentes, então
   redescobrimos uma nova versão do "Mundo das Ideias" de Platão,
sob a
   epiderme mutante duma Natureza aristotélico­atomista.
       É exactamente aqui, neste local de "convergência 
paradoxal", que
   se ergue a obra e o pensamento de Newton, tornado o paradigma 
por
   excelência da Ciência e da Racionalidade dominante nos séculos
XVIII e
   XIX, onde triunfam epistemologicamente as concepções 
"Iluministas" e
   "Positivistas".
       As perspectivas neo­atomistas da "Matéria" encaminham­se 
para a
   ideia duma "simplicidade final" e irredutível do Mundo, tudo 
parecia
   "funcionar" bem e adaptar­se a este modelo, consentindo até 
algumas
   posições extremadas de optimismo arrogante quando, nos finais 
do
   século passado, alguns Físicos se lamentavam da "vida triste" 
que
   aguardaria os seus "futuros" colegas, pois o segredo do Mundo 
estava
   revelado para todo o sempre!
       Mas a verdade é que, "sob o atomismo", uma "bomba" se 
escondia,
   abrindo portas ao renascimento das contradições e paradoxos 
que
   atravessam o pensamento científico do século XX.
       A aparente "simplicidade" do Atomismo desdobrava­se numa
   incomensurável região "intra­atómica", onde "partículas 
elementares"
   emergem de todo o lado, fazendo reaparecer o "Reino do 
Múltiplo" no
   exacto território onde pareceria ter­se estabelecido para 
sempre o
   "Triunfo do Uno"!
       A "trindade" electrão­protão­neutrão esvai­se num 
panteísmo
   infindável de novas "entidades", fazendo surgir a ameaça dum 
"Caos"
   fervilhante, onde antes um "Cosmos" parecia garantido para 
sempre.
       Vive­se actualmente, quanto ao conceito de "Matéria", com 
a
   dualidade "corpúsculo­onda", pois a experiência ensina­nos que
uma
   "partícula elementar" não possui uma "configuração" 
globalmemte bem
   delimitada no "Espaço­Tempo", apresentando­se com dupla face 
em função
   da manipulação experimental que sobre "ela" façamos.
       Não se entenda esta "Indeterminação" como um mal, mas 
simplesmente
   como um facto paradoxal, experimentalmente demonstrado durante
o
   século XX.
       O debate aberto sobre o "Indeterminismo Quântico" remonta 
aos
   "anos 20/30", onde se salienta a posição de Albert Einstein, 
que
   jamais aceitou a "efectiva realidade" desse Indeterminismo,
   explicando­o como um "facto provisório", uma vez que 
existiriam
   "variáveis escondidas", que acabariam por clarificar esse 
paradoxo,
   uma vez detectadas através de meios teóricos e experimentais.
       Einstein é um "filho" de Newton e, como tal, sustenta que 
há um
   "Absoluto" nas Leis da Natureza, não só porque "(...)o bom 
Deus não
   joga aos dados(...)", mas porque há um equívoco na opinião 
pública
   ácerca da expressão "Teoria da Relatividade". Tal Teoria, 
desenvolvida
   por Einstein entre 1905 ( "Relatividade Restrita" ) e 1915/20 
(
   "Relatividade Geral"), não é "Relativista" no sentido 
filosófico e
   epistemológico do termo, mas sim, pelo contrário, 
"Absolutista". A sua
   designação decorre duma espécie de homenagem a Galileu e ao 
seu
   "Princípio da Relatividade", um dos dois postulados 
fundamentais da
   "Teoria da Relatividade Restrita". É curioso saber que, por 
vontade de
   Einstein, a sua "Teoria" deveria designar­se por "Teoria do
   Absoluto"...
       Os verdadeiros "relativistas", no sentido 
filosófico­matemático do
   termo, são os defensores da "Física/Mecânica Quântica", que 
assume uma
   Indeterminação de fundo na constituição íntima da "Matéria", 
que não
   resulta de qualquer "atraso" da Ciência, mas duma "propriedade
   essencial" do universo em que vivemos.
       Apesar do debate continuar em aberto até hoje, é 
interessante
   salientar que, até à data, não puderam ser desmentidas as 
teses
   sustentadas pelo "Indeterminismo Quântico".
       Nunca, como durante o século XX, se avançou tanto no 
conhecimento
   da "Matéria" e dos seus "constituintes". Os dados adquiridos 
levam­nos
   a romper o ciclo "presente e local" em direcção a um 
alargamento
   cósmico das questões levantadas sobre a natureza "atomista" da
   "Matéria".
       Na verdade, nenhuma das moléculas e átomos que a "compõe" 
é, se
   assim se pode dizer, "deste Mundo"! A origem dos átomos 
leva­nos
   necessariamente para fora da Terra, em direcção às Estrelas, 
único
   local de "síntese" atómica actualmente conhecido. É no seu 
interior
   caótico e fervilhante que se preparam, durante séculos de 
séculos, os
   ingredientes que, um dia, fabricarão planetas, oceanos, algas,
   répteis, aves, a infinita diversidade da Vida.
       Porém, um Enigma se resolve e outro irrompe, lançando­nos 
para o
   verdadeiro "princípio de Tudo". Sendo as Estrelas compostas
   fundamentalmente por Hidrogénio e Hélio, os 2 elementos mais 
simples e
   abundantes da cadeia atómica, a verdade é que não os produzem!
       Assim sendo, a origem destes dois tipos de átomos 
transporta­nos
   para a antecâmara das origens do universo, em direcção ao 
instante em
   que se sintetizaram as "partículas elementares" (electrões, 
protões,
   neutrões, entre outras), a partir dum incomensurável "local" 
de
   instabilidade térmica, espécie de "barreira luminosa", que 
pouco mais
   nos permite que a construção de modelos físico­matemáticos 
compatíveis
   com uma razoável racionalidade, viabilizada em parte pela 
"prática"
   insólita dos grandes "aceleradores de partículas", onde se 
tenta
   recriar a fronteira para além da qual a nossa ignorância é 
quase
   total.
       Os actuais modelos cosmológicos, apoiados na "Teoria do
   «Big­Bang»", dizem­nos que há 15 biliões de anos, do "Vazio 
Quântico",
   emergiu o "contínuo Espaço­Tempo", em condições de natureza
   explosiva­dispersiva, caos térmico, no interior do qual todos 
os dados
   se jogaram nos primeiros três minutos.
       Isto ouvem as nossas pobres almas e, no limiar do espanto,
   reencontramos o mistério do Mundo e de nós próprios. A viagem 
do
   Pensamento ainda mal começou. Pode ser que, lá longe, o 
"Feiticeiro de
   Oz", nos consinta percorrer, com alegria, esta "Yellow brick 
Road"!
      
   Porto, Março de 1988
   
   (Levi António Malho)
   

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