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Roberto Mangabeira Unger DEMOCRACIA REALIZADA a alternativa progressista Borremrs EDITORIAL Copyright © 1998 by Roberto Mangabeira Unger Titulo original em inglés Democracy Realized — The Progressive Alternative Copyright © 1999 da tradugio brasileira Boitempo Editorial ‘Traducéo Carlos Graieb Marcio Grandchamp Paulo César Castanheira Tradugio do Apéndice Caio Farah Rodriguez: Edigao de texto Elzira Arantes Capa Ivana Jinkings Revisao Daniela Jinkings de Oliveira Maria Corina Rocha Maria de Fatima C. Madeira Editoragio eletronica Set-up Time Artes Grdficas Produgao grafica Sirlei Augusta Chaves Fotolitos Village Imptessio e acabamento Bartira Grafica e Editora ISBN 85.85934.42.5 "Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem. expressa autorizagio da editora. BOITEMPO EDITORIAL Jinkings Editores Associados Ltda. Avenida Pompéia, 1991 ~ Perdizes Sao Paulo — SP — 05023-001 Telefax (11) 3865 6947 e 3872 6869 E-mail: boitempo @ ensino.net SUMARIO I UMA ARGUMENTACAO, 9 DIFICULDADES DO EXPERIMENTALISMO DEMOCRATICO, 11 O QUE E O EXPERIMENTALISMO DEMOCRATICO?, 13 Progresso pratico e emancipacao do individuo, 13 O experimentalismo democrdtico e as pessoas comuns: discernimento ¢ ago, 17 Inovagio institucional, 20 Falsa necessidade ¢ pluralismos alternativos, 24 Plano do livro, 29 VANGUARDAS E RETAGUARDAS, 32 A nogao de distribuigéo hierdrquica da produgio, 32 Definindo a produgao vanguardista, 34 Quatro situagées tipicas, 36 Compensar ou superar a distingdo entre vanguarda e retaguarda, 39 TRES PROJETOS PARA A REORGANIZACAO DAS EMPRESAS, 41 O projeto gerencial de renovagio industrial, 41 A solucdo social-democrata, 42 A alternativa radical-democrdtica, 46 ONEOLIBERALISMO E SEUS DESCONTENTES, 49 Definigao do neoliberalismo, 49 : Do micro ao macro; dos pafses ricos para o resto do mundo, 53 A falsa necessidade da vantagem comparativa, 56 As relagGes instaveis entre a economia ¢ a politica neoliberais, 60 A busca de alternativas ao neoliberalismo nos paises ricos, 63 A busca de alternativas ao neoliberalismo nos paises em desenvolvimento, 69 As sedes de resisténcia: os grandes paises marginalizados, 73 Rebeliéio nacional e organizagéo internacional, 73 Russia, 76 China, 88 Brasil, 93 UMA ALTERNATIVA PROGRESSISTA, 109 Dois estdgios de uma alternativa, 109 programa inicial: tributagio, poupanga e investimento, 113 Tributagito reformulada, 113 Reforma previdencidria, 120 Poupanca e produgéo, 121 O programa inicial: salétio ¢ bem-estar, 131 Politica social redistributiva ¢ inovagéo institucional, 131 A participagdo dos saldrios na renda nacional, 136 Capital livre e trabalho ndo-livre: 0 contexto internacional do compromisso de elevar a participagdo do saldrio na renda nacional, 140 Titularidades sociais e ago social, 146 O programa inicial: coordenagéo descentralizada, 149 Duas tarefas: a mobilizagdo das poupancas para investimento e a difustio das praticas vanguardistas, 149 Tlusées antiexperimentalistas, 150 Exemplos ¢ admoestagies: gouernos nacionais ¢ fazendas familiares, 152 Exemplos ¢ admoestagies: coordenagiio estratégica e Estados duros no nordeste asidtico, 153 Exemplos e admoestagies: reorganizagito industrial nos paises ricos, 156 O vanguardismo econbmico reorientado, 158 © programa inicial: da educagéo democtética & heranga social, 162 O programa avangado: redistribuigao ¢ antidualismo, 163 Os programas inicial e avangado redefinidos, 163 A proposta redistributiva, 164 O lado antidualista, 166 programa avangado: uma democracia aprofundada ¢ uma escola emancipatéria, 168 O constitucionalismo da politica acelerada, 169 Aumento da participagho politica, 172 A organizagéo independente da sociedade civil, 174 A escola, 180 O jogo triplo do experimentalismo democratico, 185 Programa e risco, 185 O risco de instabilidade: politica forte, grupos fracos, 187 O risco da falta de agio: a auséncia do agente da polttica inclusiva, 189 O risco do conflito entre a necessidade pessoal e as exigéncias da democracia: o ideal da personalidade, 193 PARA ALEM DAS INSTITUIGOES, 198 Nacionalismo ¢ mudanga institucional, 198 O politico ¢ 0 pessoal, 199 Il UM MANIFESTO, 205 A ORGANIZACAO CONSTITUCIONAL DO GOVERNO E A ESTRUTURA. LEGAL DA POLITICA ELEITORAL, 207 Primeira tese: da histéria das instituigées democrdticas, 207 Segunda tese: das estruturas constitucionais de governo, 208 Terceira tese: da reorganizacéo da politica eleitoral, 208 AORGANIZAGAO DA SOCIEDADE CIVIL EA PROTECGAO DOS DIREITOS, 210 Quarta tese: do conceito de direitos fundamentais, 210 Quinta tese: da proteg’o dos direitos fundamentais, 211 Sexta tese: da organizacao legal da sociedade civil, 211 AORGANIZACAO DAS FINANGAS PUBLICAS EDA ECONOMIA, 214 Sétima tese: das finangas ptiblicas e do sistema fiscal, 214 Oitava tese: da reforma do sistema produtivo e de sua relagéo com o Estado, 214 Nona tese: dos direitos de propriedade, 215 ADEMOCRACIA EA ESQUERDA, 217 Décima tese: do significado de ser progressista hoje em dia, 217 Décima primeira tese: da interpretacéo da causa democratica, 217 Décima segunda tese: da base social aos partidos progressistas, 218 Décima terceira tese: do foco da inovagao institucional e do conflito ideolégico no mundo, 218 UM APENDICE SOBRE POUPANCA E INVESTIMENTO, por Zhiyuan Cui, 221 I UMA ARGUMENTACAO DIFICULDADES DO EXPERIMENTALISMO DEMOCRATICO No mundo inteiro, o foco do conflito ideoldgico esté mudando. A antiga oposigao entre estatismo e privatismo, mercado ¢ dirigismo, est4 morren- do. Ela vem sendo substituida por uma rivalidade mais promissora entre formas institucionais alternativas de pluralismo econdmico, social e politi- co. A premissa bdsica desse novo conflito ¢ que as economias de mercado, as sociedades civis livres e as democracias representativas podem assumir diversas formas institucionais, com conseqiiéncias radicalmente diferentes para a sociedade. As instituigdes politicas e econémicas estabelecidas nos paises industrializados ricos representam uma pequena parcela de um espec- tro muito mais amplo de possibilidades. As disting6es existentes entre essas formas possiveis — por exemplo, a diferenga entre as instituigdes corporativas da Alemanha, do Japo e dos Estados Unidos — equivalem a instancias limitadas ¢ efémeras de variac6es potenciais muito mais amplas. No entanto, ha hoje por toda parte um sentimento de exaustio e de perplexidade na formulacao de alternativas confidveis ao programa neoliberal ea sua tpica crenga na convergéncia para um tnico sistema de institui- g6es democraticas e de mercado. Tendo abandonado compromissos esta- tistas e testemunhado o colapso dos regimes comunistas, os progressistas buscam em vao uma dire¢do mais afirmativa do que a defesa de retaguarda da social-democracia. A confusao ¢ 0 desapontamento nao se restringem a esquerda; transfor- maram-se em estigmas comuns dos que s4o politicamente conscientes. Mesmo nos Estados Unidos, pals hegeménico, que vive um momento triun- fal em suas relagdes com 0 resto do mundo, o cidadao trabalhador comum esta sujeito a se sentir um excluido irado, parte de uma maioria fragmen- tada e marginalizada, sem forgas para reformar as bases coletivas dos pro- blemas coletivos que enfrenta. Ele encontra bloqueadas as vias de mobili- dade social para si para seus filhos, em uma sociedade supostamente sem classes. Acredita que os responsdyeis pelo governo e pelos grandes negécios do pafs estio reunidos em uma conspiragdo predatéria. Desilude-se com a politica ¢ os politicos e busca uma escapatéria individual para as condigdes sociais. A intelligentsia piiblica do pals zomba da politica ideoldgica, dos proje- tos de reforma institucional em larga escala ¢ da mobilizagao politica po- pular, considerando-as roménticas e impraticdveis. Insiste na supremacia UMA ARGUMENTAGAO da andlise técnica das agdes politicas e na resolugio das questdes praticas por especialistas. No entanto, essa politica vazia de projeto e sem energia deixa de resolver os problemas préticos pelos quais renunciou as ambicdes maiores, Desliza, impotente ¢ a deriva, porque se permite degenerar em pactos episddicos, facciosos e de curto prazo, realizados contra um pano de fundo de instituigdes e concepgdes que permanecem incontestadas, ou até despercebidas. Enquanto isso, em todas as democracias industriais ricas, a comesar pelos Estados Unidos, um experimentalismo subterraneo vigoroso come- gou a mudar a produgo e o aprendizado, informando e inspirando em- presas ¢ escolas. O contraste entre a definigao ¢ a execugio de tarefas, entre empregos de supervisio e empregos executivos, se torna mais suave. Coo- pera¢’o e competi¢ao se misturam nas mesmas atividades. Nao sio mais relegadas a dominios separados. A inovaco permanente se transforma na pedra de toque do éxito; empresas bem-sucedidas precisam se parecer mais € mais com boas escolas. No entanto, esse experimentalismo no microcosmo da empresa e da escola colide no fim com os limites impostos pela esfera publica inalterada, ainda exausta e perplexa. Democracia realizada reinterpreta essa exaustéo e responde a essa per- plexidade. Cumpre a tarefa em dois passos: em primeiro lugar, por meio de uma dissertaco argumentativa; em segundo, pela enumeracio de teses que descrevem o contetido de uma possfvel alternativa. O QUE E O EXPERIMENTALISMO, DEMOCRATICO? Progresso pratico e emancipagio do individuo O conceito que inspira a argumentagao e a proposta deste livro ¢ 0 ex- perimentalismo democratico. O experimentalismo democrdtico é uma in- terpretagdo da causa democratica, o mais influente conjunto de idéias e compromissos em vigor no mundo de hoje. Ele une duas esperangas a uma pritica de pensamento de aio. A primeira esperanca de um democrata, segundo o experimentalismo democratico, é encontrar a area de coincidéncia entre as condigdes do pro- gresso pritico ¢ as exigéncias da emancipagao do individuo. Entre essas condigées e exigéncias se destacam as estruturas institucionais da socieda- de. O progresso prdtico ou material inclui o crescimento econémico e a inovacdo tecnoldgica ou médica, com apoio na descoberta cientifica. E a evo- lugdo de nossa capacidade de afastar a sujei¢Zo a escassez, 4 doenga, a fra- queza 4 ignorancia. Ea capacitagio da humanidade para agir sobre o mundo. A emancipagio do individuo se refere a libertacdo dos individuos da prisio de arraigados papéis sociais, divisdes e hierarquias, principal- mente quando esse aparato social extrai forgas de vantagens herdadas, moldando as oportunidades de vida dos individuos. Muitas das grandes doutrinas politicas e das teorias sociais evolucionistas do século 19 subscrevem a crenga otimista em uma harmonia preestabele- cida entre progresso prdtico e emancipagio do individuo. Tanto os pensa- dores liberais quanto os socialistas vislumbraram no projeto de reforma institucional que defendiam as bases necessdrias, ¢ até suficientes, para a liberdade ¢ a prosperidade. Nao podemos mais acreditar nos pressupostos funcionalistas e deterministas acerca da mudanga social que tornaram essa perspectiva inteligivel e convincente. A idéia de uma harmonia preestabelecida perdeu sua autoridade. Mui- tos, contudo, sao agora tentados a substituir esse dogma pelo dogma, igual- mente injustificavel, do conflito entre os beneficios da prosperidade e os da liberdade. Cada um deles se basearia em acordos e traria conseqiiéncias destrutivas para o outro. Mesmo aqueles que se recusam a abragar essa visdo trdgica podem sofrer sua influéncia. Eles podem reduzir a causa democrdtica a uma concepsao UMAARGUMENTAGAO, moral ¢ politica que justifica restrig6es as forgas préticas, sobre as quais a democracia nfo tem ingeréncia. Podem ver a vida econémica e o progresso tecnolégico ou cientifico como exteriores ao avango democratico, uma fonte de problemas mais que de solugées. Em sua primeira esperanga, o experimentalista democratico afirma que pode ocorrer uma intersec¢do entre as condigdes de progresso prético ¢ as de emancipacao do individuo. Um subconjunto das condigées institucio- nais de progresso prético também serve a0 propésito da emancipacao do individuo. Um subconjunto das condigdes institucionais de emancipacio do individuo também promove o objetivo do progresso pratico. O experi- mentalismo democrético quer encontrar essa zona de coincidéncia e avan- car dentro dela. O que torna plausivel essa esperanga de encontrar e utilizar a zona de coin- cidéncia? Tanto o progresso prético quanto a emancipacao do individuo dependem da capacidade de transformar o esforgo social em aprendizado coletivo e de agir sobre as ligées aprendidas, sem se deter pela necessidade de respeitar um plano preestabelecido de divisio social ¢ hierarquia, ou uma distribuigdo restritiva de papéis sociais. Tais restricdes subvertem espe- cialmente a descoberta e a invengio coletiva quando refletem prerrogativas herdadas, pois elas se impdem, como um destino cego e insuperavel, cer- ceando o empenho individual. A idéia intuitiva no cerne da conjectura acerca da posstvel coincidéncia € que tanto o experimentalismo prdtico quanto a emancipacao do indivi- duo exigem estruturas que minimizem as barreiras ao aprendizado coleti- vo. Minimizam tais barreiras ao combinar o fortalecimento da capacidade e da seguranga individuais com oportunidades mais amplas para testar novas vatiantes de associago com outras pessoas, em todos os dominios de nossa experiéncia prdtica e moral. Esse ponto de vista, por sua vez, vinculado a uma tese sobre nossa relago com as estruturas institucionais e discursivas que constru{mos e ocupa- mos. Desenvolyemos nossas faculdades e capacidades ao nos movermos dentro dessas estruturas, mas também ao resistir a elas, superd-las e revisd- las. Podemos até mesmo tornd-las mais convidativas para o exercicio e 0 fortalecimento de nossa capacidade de desafiar os limites de nossos con- textos sociais ¢ culturais. A melhor maneira de elaborar a idéia de uma afinidade entre progresso pratico e emancipagao do individuo é desenvolver nossa compreensao da estrutura interna de cada um desses dois grupos de interesse. No coragao de cada um deles jaz um conflito de exigéncias. Ao modificar e moderar esse conflito, acentuamos o alcance e a forga das capacidades humanas, aprofundando nossa experiéncia fundamental de liberdade. © QUE E EXPERIMENTALISMO DEMOCRATICO? O progresso pratico, no qual o crescimento econémico ¢ a inovacéo tecnoldgica sio as espécies mais importantes, conta para um experimenta- lista democrdtico de mais de uma forma. O crescimento econémico, com seu brago fortalecedor do desenvolvimento tecnolégico, alivia a vida hu- mana dos pesos da labuta escorchante e da debilidade. Nao podemos ser livres quando estamos fracos. A perversdéo do crescimento econémico ¢ de seus frutos comega quando tentamos compensar a escassez de bens publi- cos produzindo mais bens privados, e encontrar no consumo privado um consolo estéril para a frustragao social. Os beneficios materiais do progresso econémico e tecnolégico sao, con- tudo, apenas parte da histéria. Também nos importa abrir 0 mundo dos negécios mais completamente as experiéncias morais que tanto a demo- cracia quanto 0 experimentalismo devem utilizar. As pessoas passam gran- de parte de suas vidas no trabalho, entregues a atividades econdmicas pra- ticas. Faz diferenca se as vidas cotidianas das pessoas sio moldadas de for- ma a extrair e manter o elemento comum da democracia e do experimen- talismo. Crucial a todos os aspectos do progresso material é a relago entre coope- ragio € inovagio. Inovacao exige cooperacao. Nao obstante, toda forma real de cooperacao permanece incrustada em estruturas que geram expec- tativas estabelecidas e direitos adquiridos de diferentes grupos, uns em relagio aos outros. As pessoas em geral resistem 4 inovacdo porque temem, acertadamente, que ela ameace tais direitos e expectativas. Algumas formas de organizar a cooperacéo convidam mais que outras & inovagao. Elas baseiam a seguranga mais em qualidades individuais que em privilégios de grupo. Ao preferir ¢ desenvolver tais formas de coopera- go — no local de trabalho, em cada setor de produgao e na economia como um todo — moderamos a tensio entre a cooperagao € a inova¢ao, e as torna- mos capazes de se reforcar mutuamente. Desse modo, ‘ampliamos o alcance da inovagdo experimental na ativida~ de econémica. Alimentamos também algumas das experiéncias centrais que sustentam uma cultura democrdtica: o predominio de qualidades e capacidades individuais sobre privilégios de grupo, assim como a aptiddo para cooperar além dos limites de divisdes ¢ hierarquias sociais prees- tabelecidas, principalmente aquelas herdadas. Consideremos agora a estrutura interna da vantagem da emancipagao do individuo. O desenvolvimento da individualidade exige um fortaleci- mento cumulativo de nossos lagos praticos, cognitivos e emocionais. Tal fortalecimento, contudo, nos ameaga perpetuamente com o duplo risco da subjugagao a outras pessoas e da despersonalizagao sob o peso de papéis sociais congelados. Aprofundamos a liberdade — a forma mais basica de UMAARGUMENTAGAO dos. O resultado da mudanga das estruturas ao longo do tempo € revisar 0 contetido, bem como o contexto, dos interesses reconhecidos e dos ideais professados. Os ideais e os interesses extraem sua esséncia, em boa parte, de seu cenério institucional implicito. Ao deslocar o terreno institucional subja- cente a cles, pressionamos nossa compreensio de seu contetido. Expomos ambigiiidades de significado ¢ alternativas de desenvolvimento que jaziam ocultas ¢ invisfveis enquanto esse terreno permanecia inabalado. As estratégias conservadoras ¢ excludentes na definigao ¢ na defesa de interesses de grupo podem com freqiiéncia ser autodefensivas, mas quase sempre parecem seguras. Elas apresentam a vantagem de ser tangiveis. Em contraste, as abordagens transformadoras e soliddrias podem parecer um salto no escuro. A alegacio de que uma estratégia soliddria ¢ mais susten- tavel a longo prazo pode normalmente se revelar insuficiente para superar a forca do imediatismo de que desfruta a estratégia excludente. E por isso que 0 argumento favoravel a um projeto transformador e solidario precisa de ajuda adicional. © elemento visiondrio na politica proporciona tal ajuda. A insinuagéo de um mundo diferente, em que nos tornariamos pessoas (ligeiramente) diferentes, com compreensdes de nossos interesses € ideais (ligeiramente) revi- sadas, suplementa o apelo frio a interesses de grupo ¢ a convicgdes bem conhecidas. Assim, na politica transformadora devemos falar nas duas lin- guas, de célculo de interesses ¢ de profecia politica. A disponibilidade de modos solidérios ¢ transformadores de defesa de interesses reconhecidos e de ideais professados é a premissa bdsica que jus- tifica a segunda esperanga do democrata. Correspondéncia ¢ assimetria complementam o dualismo, como caracteristicas da agio, na compreensao da mudanga social da qual depende o experimentalismo democratico. De acordo com a tese da correspondéncia, aliangas ¢ antagonismos en- tre grupos s4o sempre apenas 0 outro lado de um conjunto de estruturas institucionais e de uma seqiiéncia de reformas institucionais. A possibili- dade de que uma determinada alianga entre grupos sociais possa ser de- senvolvida e sustentada ao longo do tempo depende da existéncia de uma circunstancia institucional, ou de uma trajetéria de reforma institucional, que torne posstvel a convergéncia de interesses ¢ ideais dos grupos participan- tes. Quanto mais amplo o programa de reforma, mais estreita e mais eviden- te se torna a ligacdo entre a légica de aliangas ¢ a diregao da mudanga insti- tucional. Por exemplo, se faz ou nao sentido para os trabalhadores organizados na indiistria intensiva de capital se aliar aos trabalhadores tempordrios e ter- ceirizados, depende da existéncia de um projeto de reforma institucional ¢ O QUE £ EXPERIMENTALISMO DEMOCRATICO? de polftica econémica que alimente sua unido. Na medida em que esse projeto é bem-sucedido, o que se iniciou como uma parceria tética pode se tornar uma convergéncia duradoura. Pode, em tiltima instancia, se tornar uma unido de identidades coletivas, bem como de interesses de grupo. A tese da correspondéncia inverte um dogma tipico da teoria marxista. De acordo com 0 marxismo ortodoxo, existe uma légica objetiva dos inte- resses de classe, enraizada nas posigoes institucionais de cada modo de producao ¢ nas leis inexordveis que governam a crise € a sucessio desses sistemas de produgdo. Quanto mais amplo o alcance e maior a intensidade da luta de classes, mais transparente se tornard a Idgica dos interesses de classe, das aliancas de classe e das rivalidades de classe. Aqueles que se en- ganam quanto ao contetido dessa ldgica sofrem a punigio da derrota polf- tica, que os faz rememorar aquilo que tentavam esquecer. A luz da tese da correspondéncia, a clareza e a rigidez dos interesses de grupo sao enganadoras e condicionais. Elas dependem da falha em desafiar abalar as estruturas que fazem parecer evidente a compreenso dos interes- ses estabelecidos. O conflito social e ideolégico despe a aparéncia de na- turalidade e necessidade que envolve nossas visées de ago ¢ alianga. A medida que tal conflito amplia seu escopo ¢ aumenta sua intensidade, a pergunta — quais séo meus interesses? — comega a se combinar com outras indagagées. Que mundos sociais podem surgir a partir desse? A que grupos eu perten- ceria nesses mundos subseqiientes? Quais seriam entéo meus interesses ¢ minha identidade? De acordo com a tese da assimetria, a relagdo entre aliangas politicas e aliangas sociais ou de grupos € assimétrica. Um conjunto de aliangas de grupo pressup6e uma alianga politica, no sentido amplo de um projeto compartilhado para o desenvolvimento e a sustentagao das estruturas ins- titucionais que apoiariam a convergéncia de interesses de grupo. Nenhu- ma alianga de interesses de grupo é natural ou necessdria, exceto em rela- Gao as estruturas que a sustentam. O embate para estabelecer tais estruturas, seguido de sua realizacio gradual, séo os requisitos bdsicos para o avango de uma alianga social. A disputa acerca do dominio e da utilizagao do poder estatal nao é a tinica ferramenta para tal esforco. E simplesmente sua forma mais proeminente e conhecida, ao lado de todos os outros modos pelos quais, fora do Estado, as pessoas podem tentar mudar a forma de se relacionar com as outras. Aliangas politicas, contudo, nao pressupdem aliangas sociais no mesmo sentido. Elas tomam a construgio de aliangas sociais como tarefa ¢ hori- zonte, e nfo como condi¢ao antecedente. O projeto de reforma e alianga deve viver no pensamento € na a¢do antes que possa ser experimentado como uma jungao reconhecida de interesses. UMAARGUMENTAGAO ‘A tese da assimetria pode parecer contréria & intuigéo. Contudo, se ela nao fosse vdlida, seria impossivel a mudanga estrutural, deliberada e descontinua na histéria. Divis6es de forca e opiniao politica simplesmente refletiriam e reforcariam as subjacentes divisoes de classe ¢ comunidade, estas por sua vez baseadas nas estruturas institucionais estabelecidas. As teses de dualidade, correspondéncia e assimetria certamente repou- sam em certos pressupostos a respeito de como a sociedade se transforma. Na verdade, elas sfio incompativeis com grande parte das principais tradi- ges da teoria social européia, bem como com muitos modos de pensar correntes nas ciéncias sociais positivas contempordneas. Nao obstante, nao pressupdem qualquer teoria social rigida e bem-definida. Sao compativeis com uma familia de pontos de vista que explorei em outros livros.’ Nao podemos esperar até ficarmos de acordo com relac&o as verdades de uma nova teoria social para pensar e agir como experimentalistas democr4- ticos. Devemos encontrar as idéias exigidas por nossos esforgos e compro- missos e tentar nao fazer qualquer pressuposicdo que seja invalidada pelos fatos da realidade social e da experiéncia histérica. O experimentalismo democrético precisa das ferramentas da imagina- fo institucional. Ele repousa particularmente sobre uma prdtica de andlise jurfdica e econdmica que leva a sério as coagGes ¢ alternativas institucio- nais.? Exige também uma percep mais ampla da sociedade da histéria, que possa ajudar a informar e inspirar seu trabalho. No entanto, nao pode parar até conseguir aquilo de que precisa, Hé de encontrar, justificar desenvolver seus prdprios pressupostos, forgando a auto-reflexao sobre seus experimentos imaginados ou reais para ficar frente do discernimento tedrico sistematico. Inovagéo institucional O experimentalismo democrético combina as duas esperangas que 0 definem com uma pritica: 0 ajuste motivado, sustentado e cumulativo das estruturas da sociedade. Uma premissa dessa pratica ¢ a relagdo interna entre entender ideais ou interesses € pensar a respeito de praticas ow instituiges. Nao devemos 1 Ver Roberto Mangabeira Unger, Politis: The Central Texts. Organizado e apresentado por Zhiyuan Cui, Verso, Londres, 1997. (A ser publicado no Brasil pela Editora Revan: Politica: 0s textos centrais.) 2 V/Roberto Mangabeira Unger, What Should Legal Anabpis Become? Verso, Londres, 1996. (A set publicado no Brasil pela Boitempo, em 2000, com o titulo: O Direitoe o futuro da democracia.) © QUE E EXPERIMENTALISMO DEMOCRATICO? considerar a reforma das estruturas institucionais como um exercicio de engenharia social, anexado como instrumento apés a definicao de interes- ses ou ideais, ou a formulacao de principios de justiga. Nossos interesses ¢ ideais adquirem significado a partir de uma dupla referéncia. Eles se reportam a aspiragées ¢ ansiedades que a linguagem ptosaica da descricéo econdmica e a lealdade usual ao discurso politico nado conseguem explorar completamente. Contudo, eles também se reportam, no minimo com a mesma forga, as estruturas que aceitamos tacitamente como sua expresso mais ou menos natural. Quando, por exemplo, invo- camos nossos ideais de democracia, é provavel que confiemos, no minimo, tanto na imagem recebida do que parecem ser as democracias industriais do Atlantico Norte quanto na retérica fértil e ambigua de nossa religiao constitucional, A dupla referéncia empresta emogo ¢ movimento & linguagem da poli- tica. Logo que comecamos a questionar os pressupostos institucionais de nossos interesses ¢ ideais, expomos neles falhas que anteriormente perma- neciam ocultas. Por exemplo, o que é mais importante a respeito da propriedade priva- da quando comecamos a experimentar com suas formas jur{dico-institucio- nais? O carter irrestrito do poder que cada proprietdrio desfruta sobre os recursos, em seus dominios? Ou o ntimero absoluto de agentes econdmi- cos aptos a utilizar parte desses recursos por sua prépria iniciativa e por sua prépria conta? Algumas estruturas alternativas para a distribuicdo des- centralizada do acesso a recursos produtivos podem ampliar a propriedade no segundo sentido, enquanto a limitam no primeiro sentido. Nossas escolhas institucionais nao apenas executam o projeto predefinido de nossos interesses ¢ ideais, Elas aperfeigoam aquele projeto. Em grande parte, é enriquecendo as possibilidades institucionais, e conduzindo-as em uma diregdo e ndo em outra, que as tornamos — e portanto, nos torna- mos — certo tipo de humanidade, e nZo outro. Os estilos hoje dominantes de filosofia politica normativa, particular- mente em pajses de lingua inglesa, tratam a formulagio de ideais e princ{- pios normativos como uma atividade separada de, e anterior a, projetos de estruturas institucionais. Em primeiro lugar, estabelecemos os princ{pios da justa distribuigao de direitos e recursos. Depois, projetamos as estrutu- ras que na prética realizam com maior eficiéncia esses princ{pios. As partes da engenharia social continuam externas ¢ subsididrias ao esforgo de defi- ir regras € ideais. Da mesma forma, essa prdtica dominante de filosofia politica trata ne- cessidades, intuigdes morais e percepgées de interesse individual ou de grupo como a matéria-prima de que se vale a teoria normativa. Os elemen- tos desse material podem ser continuamente refinados a luz da reflexao UMAARGUMENTAGAO, tedrica. Podem, pelo menos na margem, ser corrigidos & medida que rejei- tamos, por exemplo, intuigdes morais que nao se ajustam a outras dentro do esquema de principio. Entretanto tém certa independéncia, tanto de crengas quanto de intuigées. Os tedricos geralmente supdem que a separacao do projeto institucio- nal dos principios normativos de um lado, e das necessidades e intuigdes cruas de outro, seja necessdria para assegurar a transcendéncia da teoria normativa sobre o contexto histérico. Ainda assim, por nao reconhecer adequadamente a formagio de ideais, por preconceito institucional, esses filésofos politicos racionalistas se entregam completamente nas maos de sua situagao histérica, Nao é de admirar que parte tao significativa de sua especulagao continue a ser apenas um polimento filoséfico das praticas caracteristicas tanto da redistribuigao por meio de impostos e transferén- cias quanto da protecao dos direitos individuais nas democracias indus- triais do pés-guerra. Temos de conquistar nossa independéncia do contex- to, ¢ ndo assumi-la por um ato de prestidigitagao. Uma forma pela qual podemos ganhd-la ¢ mediante a pesquisa das diferentes diregSes em que podemos desenvolver nossos ideais, interesses, intuiges, e até mesmo nossas caréncias, 2 medida que comegamos a dar forma nova a seu ambiente institu- cional ¢ ideolégico conhecido, Portanto, uma imaginacio programética util para o experimentalismo democratico tem também de evitar as divis6es falsas a que ainda se prende a filosofia politica especulativa. Os debates institucionais ¢ os experimen- tos ndo constituem um exercicio separado e subsididrio; representam o meio mais importante de definir e redefinir 0 contetido de nossos ideais interesses. Nessa atividade, as questées filoséficas basicas so qual o nivel de orien- tagdo que temos direito de esperar e onde podemos esperar encontré-la. Na busca dessa orientagdo, nunca poderemos passar de algo que € apenas contextual — os ideais ¢ as instituigdes, as intuigées e as prdticas de nossa situagio — para outra coisa que esta além desses contextos. Podemos ape- nas aumentar a gama de experiéncias e aprofundar a distancia de julga- mento a partir de onde avaliamos as possibilidades vivas do presente. Um pressuposto factual mais definido da prética do experimentalismo institucional ¢ a nogio de primazia da reforma radical como espécie de politica transformadora.’ A reforma é radical quando direciona e transfor- 3 V, Roberto Mangabeira Unger, Social Theory: Its Situation and its Task, Cambridge University Press, Cambridge, 1987, pp. 163-5. E também: False Necessity: Anti-Necesitarian Social Theory in the Service of Radical Democracy. Cambridge University Press, Cambridge, 1987, pp. 172-246. (© QUE E EXPERIMENTALISMO DEMOCRATICO? ma as estruturas bdsicas da sociedade: sua estrutura formadora de institui- goes e de crencas validas. E reforma, porque lida com uma parte separada dessa estrutura por vez. A nogao de ajuste institucional, ou de mudanga parte por parte, tem sido com freqiiéncia associada ao abandono do desafio as instituigées fun- damentais de uma sociedade, ou mesmo ao reptidio de qualquer tentativa de distinguir a estrutura formadora de rotinas j4 estabelecidas. Inversa- mente, a concepgao de um tal desafio foi com a mesma freqiiéncia vincu- lada & nogdo de que nossas estruturas institucionais existem como sistemas indivisiveis, que se conservam ou se destroem juntos. A vantagem de reconhecer que a reforma radical € 0 modo preponde- rante da politica transformadora est4 em associat a nogio de mudanga estrutural descontinua com as atitudes prdticas da pessoa que sempre per- gunta: qual é o prdximo passo? Existem tanto instituigdes quanto crengas que desempenham papel formador em uma sociedade. Elas demonstram sua forga especial por sua capacidade de moldar as rotinas recorrentes de conflito polftico, econédmico e discursivo, os limites dentro dos quais os recursos da sociedade para gerar poder politico, capital econdmico e auto- ridade cultural sdo postos a funcionar, bem como os pressupostos acerca da sociedade tomados ¢omo certos pelos agentes coletivos na compreensio € na perseguicéo de seus interesses. Embora essas instituig6es formadoras estejam vinculadas, e embora algumas nao possam se combinar a outras de maneira estdvel, a ordem institucional da sociedade se transforma parte por parte e passo a passo. E a combinagio de partes ¢ a sucesso de passos, indo muito além do ponto de partida, e mudando pelo caminho nossa compreensio acerca de nossos interesses, ideais e identidades, que torna um projeto de reforma relativamente mais radical. A diregdo em que nos levam os passos é que torna 0 projeto mais, ou menos, democratico. A nogao de revolugao, quando utilizada para denotar a substituicio total de um sistema indivisivel por outro, nada descreve sendo um perigo- so caso-limite da politica transformadora, visto através da lente de uma ilusdo a respeito do funcionamento da histéria. Quando a realidade resiste 4 ilusao, os pretensos revoluciondrios podem recorrer 4 violéncia, buscan- do na forga fisica os meios para fazer valer a hipertrofia da vontade. Que- rem tomar & realidade social o que ela obstinadamente se recusa a lhes entregar. A idéia de revolugao se tornou hoje um pretexto para seu oposto. Jé que a mudanga real seria uma mudanga revoluciondtia, e a mudanga revolucio- naria ndo estd dispontvel, e seria muito perigosa se fosse possivel, somos levados a humanizar o inevitdvel. Tal é 0 projeto de um reformismo pessi- mista conformado em suavizar, especialmente por meio da redistribuigio UMAARGUMENTAGAO compensatéria por recursos fiscais, algo sem esperangas de desafio e de mudanga. Tal € 0 projeto do ajuste gradual, em vez da “terapia de choque”, de um pouco de proteco social auxiliada pelo enfraquecimento inevitdvel dos direitos dos trabalhadores, de uma versio mais suave do projeto polf- tico do outro lado. Assim, 0 ex-marxista desiludido se tornou o social-democrata institucio- nalmente conservador. Ele jogou fora a parte boa do marxismo, as aspira- G6es transformadoras, e manteve sua parte ruim, o determinismo estrutural, mudando seu significado politico. A falta de idéias logo criou espaco para a falta de carater. Ele se prostituiu ao destino, ¢ traiu seu pafs por sua for- ma de aceitd-lo. Falsa necessidade e pluralismos alternativos Os ptessupostos de mudanga social requeridos por essas idéias so mi- nimos, mas nao sao triviais. Eles excluem bastante: muito nas noges acer- ca dos limites & transformagio politica da sociedade que so aceitos na politica prética; € muito nas mais famosas tradig6es de teoria social ¢ nas mais influentes vers6es de ciéncia social positiva. A imaginagio pratica de alternativas institucionais nos permite reconhe- cer a oportunidade de iransformagdo e agir sobre ela. Ficamos imobiliza- dos em nossa capacidade de defender a causa do experimentalismo pela pobreza de nossas idéias institucionais, especialmente nossas idéias acerca das formas institucionais alternativas de democracia representativa, de eco- nomia de mercado e de uma sociedade civil livre. Em todo o mundo, pessoas educadas e politizadas se pretendem inte- ressadas em alternativas, e criticam os partidos e polfticos por sua incapa- cidade de geré-las. Parece portanto surpreendente que essa declaracao tio difundida de interesse por propostas programdticas tenha gerado téo pou- cas idéias, abrangentes ou fragmentérias, especulativas ou praticas. As res- trigdes praticas nao bastam para explicar esse vazio. Estilos dominantes de pensamento ajudam a barrar o caminho. Para desenvolver alternativas como a que se delineia aqui, um modo de pensar a sociedade ¢ a politica precisa ter dois conjuntos de caracteristicas minimas. © minimalismo desses atributos deixa aberta uma vasta gama de possibilidades, tanto na forma quanto no contetido das idéias progra- maticas e explicativas. E, portanto, ainda mais impressionante que esses dois padrées minimalistas excluam muitos dos mais influentes discursos contemporaneos que tratam de ciéncia social, economia politica ¢ filosofia politica. Também excluem grande parte da abordagem de realidades ideais sociais que est4 implicita na linguagem comum do debate politico ¢ O QUE E EXPERIMENTALISMO DEMOCRATICO? da aco politica, Algum trabalho — trabalho intelectual e prdtico — serd necessdrio para quebrar o silencio programético que essas narrativas impor- tantes ajudaram a induzir. O pensamento necessdrio para informar a imaginagao da transformacao institucional precisa reconhecer o significado crucial, em qualquer socie- dade, de seu contexto formador de instituicBes ¢ crencas. Esse reconheci- mento se ope 4 idéia, dominante nas ciéncias sociais positivistas, de que as praticas € as instituigées nao exigem explicagao especial nem represen- tam problema a parte. Ou representam o resfduo de atos passados de solugao de problemas ¢ de acomodagio de interesses (a monotonia da cién- cia social empirica), ou oferecem aproximagées melhores ou piores da es- trutura democrdtica e de mercado, supostamente neutra com respeito as escolhas feitas por agentes politicos e econdmicos (a ciéncia politica de direita, ideologicamente agressiva, e a economia politica). Contudo, o estilo de pensamento social de que necessitamos tem tam- bém de repudiar as premissas deterministas que tradicionalmente acom- panham um enfoque estructural. Trés dessas premissas desempenharam pa- pel especialmente importante no desenvolvimento da teoria social clssica européia, A primeira dessas premissas foi a idéia de uma lista fechada. De acordo com essa idéia, existe uma lista pequena e fechada de sistemas institucionais possiveis, tais como feudalismo, capitalismo ¢ socialismo, ou a economia regulada de mercado e a economia centralizada. Cada um desses sistemas tem condigées predefinidas de realizagdo. Geralmente se considera que os constituintes dessa lista fechada formam uma seqiiéncia evolutiva prede- finida. A segunda premissa é a idéia da indivisibilidade: os sistemas institucio- nais que compéem a lista fechada formam, de acordo com essa premissa, conjuntos indivisfveis. Cada um se sustenta ou cai como um todo tnico. Conseqiientemente, qualquer politica pode ser revoluciondria, e substituir um sistema indivisfvel por outro, ou ser meramente reformista e apenas humanizar e reconfigurar um sistema que deixou de contestat. A terceira premissa é a idéia determinista, Condigées necessdrias e sufi- cientes determinam a concretizagao dos sistemas institucionais indivistveis. Forgas determinam sua evolugao. Um pensamento que nega o significado fundamental das estruturas for- madoras da descontinuidade estrutural rouba ao pensamento programd- tico o alvo certo. Em algumas versdes, tais formas de pensamento apdiam a idéia de que estruturas institucionais tendem a convergir, por um pro- cesso de tentativa e erro, para um conjunto das melhores prdticas existentes. Em outras versdes, inspiram a idéia fetichista de que conceitos institucio- nais abstratos, como economia de mercado ou democracia representativa, UMAARGUMENTAGAO. tém um contetido tinico € necessétio, relegando as variagdes a condicio subalterna. Por sua parte, as formas tradicionais de pensamento orientadas para a estrutura, com sua bagagem de premissas deterministas acerca de uma histéria com aparéncia de lei de sistemas institucionais indivisfveis, limi- tam drasticamente o terreno sobre o qual opera 0 pensamento programd- tico, ao mesmo tempo que convertem em mito o assunto de seu interesse, O modo padrao de politica transformadora, e portanto também de pensa- mento programético — reforma revoluciondria, entendida como a substi- tuicdo, componente a componente, do contexto formador de instituigdes e crengas de uma sociedade — se torna impossivel. A necessidade histérica preenche 0 espaco da aco intencional. O exercicio efetivo da imaginacdo programatica exige de nés a retencao da idéia de mudanga estrutural, ao mesmo tempo que afirma a contingén- cia basica das histérias institucionais, a divisibilidade e a possibilidade de substituigado gradual dos sistemas institucionais, e a indeterminac’o legal — as mtiltiplas formas possiveis — de conceitos institucionais abstratos, como economia de mercado e democracia representativa. Uma pratica de explicacao histérica ¢ social como essa tem condigées de reconhecer completamente a tenacidade das ordens institucionais; nao pre- cisa degenerar em uma fantasia voluntarista acerca da maleabilidade ilimi- tada das estruturas sociais. Pois, mesmo quando afirmamos o cardter pou- co firme das estruturas institucionais, reconhecemos também como, uma ver estabelecidas, elas ganham uma necessidade de segunda ordem. Os conceitos de identidade e de interesse de grupo que elas sustentam passam a reconfirmé-las. Estilos organizacionais e tecnolégicos se sobrepdem a essas estruturas e, uma vez atraigados, sé se deixam alterar com grandes riscos e custos. Doutrinas importantes, apresentadas como visées cientifi- cas nas universidades das principais poténcias, Ihes dao uma aparéncia de naturalidade e necessidade. Nao sdo, porém, nem naturais, nem necess4- rias. O problema é que ainda nao existe uma pritica de explicagio histérica ¢ social como essa que invoquei, sensfvel A estrutura, mas consciente da contingéncia. Temos de construi-la 4 medida que avancamos, reconstruin- do os instrumentos disponiveis da ciéncia e da teoria sociais. Sua falta nos deixa desprovidos de um entendimento de como sao mudadas as socie- dades. A essas pressuposigées da imaginacao programdtica darei o nome de falsa necessidade. Elas ensinam que as estruturas institucionais da socie- dade contemporanea s4o o resultado de muitas seqiiéncias frouxamente interligadas de conflito social e ideolégico, e nio imperativos funcionais insuperdveis ¢ determinados, que dirigem uma sucessao de sistemas insti- tucionais indivisiveis. © QUE Ef EXPERIMENTALISMO DEMOCRATICO? Nao obstante, certas qualidades das estruturas institucionais combina- das podem de fato apoiar o desenvolvimento de nossas capacidades prdti- cas coletivas, sejam produtivas ou destrutivas, mais que outras. As capaci- dades priticas precisam se desenvolver em um cendtio favordvel 20 apren- dizado coletivo. O aprendizado coletivo exige liberdade para recombinar pessoas, praticas e recursos, sem ser restringido pelos ditames de sistemas rigidos de papéis sociais ¢ de divisdes e hierarquias sociais arraigadas, so- bretudo quando reproduzidos pela transmissio hereditéria do privilégio social. Existe forte relagao causal entre a capacidade de estruturas institucio- nais gerarem tais divisdes, hierarquias e papéis ¢ a resisténcia que as estru- turas imp6em a prdticas que as desafiem e transformem, O favorecimento do experimentalismo anda junto com a hostilidade as hierarquias rigidas e as divisdes estanques. Instituig6es e discursos que facilitam sua propria revisdo tiram de tais hierarquias e divisores a camada protetora de que pre- cisam para perdurar. A posse de tais qualidades, em um grau mais alto que o das estruturas imediatamente concorrentes, pode assim ajudar a explicar a emergéncia, a difusdo e a sobrevivéncia de certas prdticas e instituigées. Nesse sentido, existe algo na nogdo de imperativos funcionais que ajuda a dar conta das instituigdes que temos agora, ou que podemos estabelecer. Contudo, tais imperativos nao fazem uma selegao a partir de uma lista fechada de possibilidades institucionais. As possibilidades néo surgem na forma de sistemas indivisiveis, que se constroem ou se destroem juntos. Sempre existem conjuntos alternativos de estruturas capazes de satisfazer, com sucesso, os mesmos testes praticos.* A selecdo e a concorréncia ope- ram com o fundo contingente de estruturas e concepgées institucionais que esto por acaso a disposi¢ao, em um lugar ou no mundo. Esse fundo é por sua vez o produto de muitas histérias, frouxamente ligadas, de confli- to ¢ invengao. Constrangimento funcional e contingéncia histérica traba- lham juntos. Contra esse pano de fundo, podemos entender melhor as caracteristicas da agdo transformadora e de seus agentes que antes enume- rei: dualidade, correspondéncia e assimetria. O experimentalismo democrético quer colocar tanto o constrangimen- to funcional quanto a contingéncia histérica a seu lado. Ele quer ampliar 0 estoque disponfvel de instituigdes e idéias institucionais para facilitar o avango pela zona em que se reconciliam as condigées de progresso pratico ¢ as exigencias de emancipagao do individuo. 4 V. Roberto Mangabeira Unger, Plasticity into Power: Comparasive-Historical Studies on the Institutional Conditions of Economic and Military Success, Cambridge University Press, Cambridge, 1987. UMAARGUMENTACAO Pela falsa necessidade, aprendemos a ver além do fetichismo institu- cional e do fetichismo de estrutura, dois limites a nossa capacidade de ima- ginar e mudar a sociedade. O fetichismo institucional ¢ a identificagao de concepgées institucio- nais, tais como democracia representativa, economia de mercado e socie- dade civil livre, com um conjunto tinico de estruturas institucionais. Fal- tam a tais concepgées institucionais abstratas expressdes institucionais na- turais e necessdrias. Podemos desenvolvé-las em diferentes direcdes, de acordo com a relacao interna entre nossa forma de pensar a respeito de praticas ou instituigdes e nossa forma de pensar sobre interesses ou ideais. O fetichismo de estrutura apresenta, em grau mais clevado, 0 mesmo defeito do fetichismo institucional. Ele nega nossa capacidade de mudar a qualidade e 0 contetido de nossas praticas e instituigdes: 0 modo pelo qual elas se relacionam com nossa liberdade desafiadora e transformadora da ordem social que habitamos. O fetichismo de estrutura encontra expres- sao e defesa em uma concepgio, consagrada na histéria do pensamento social, que opde interlidios de efervescéncia, carisma, mobilizagdo e¢ ener- gia ao reinado ordindrio da rotina institucionalizada, quando, sonolentos, continuamos a atuar segundo um roteiro escrito nos intervalos criativos. Uma versao extrema de fetichismo de estrutura € a via negativa politica que celebra a rebeliao contra a vida institucional rotinizada como aber- tura indispensdvel & liberdade auténtica, enquanto espera que as insti- tuigdes sempre cairao, como Midas, sobre o espirito insubordinado. Da mesma forma que o fetichismo institucional, o fetichismo de estru- tura representa uma negagao de nossa capacidade de mudar a sociedade e, portanto, a néds mesmos. Nao € sé o contetido das estruturas que estd aberto 4 mudanga; ¢ sua prépria natureza. Jé vimos que a relacdo varidvel entre nossas instituigdes e nossa liberdade experimental, inclusive nossa liberdade para realizar experimentos com nossas instituig6es, é de grande interesse prdtico. Na economia, alguns conjuntos de estruturas podem favorecer, mais do que outros, a conciliagao entre cooperagao € inovacdo, em parte porque eles nos capacitam mais prontamente a compreender e mudar, pouco a Ppouco, o contexto organizacional de produgdo e comércio. Na politica, algumas combinagGes de préticas e instituigdes podem ser, mais do que outras, favorecedoras de mobilizagao pol{tica sustentada. Ao contrario dos preconceitos da ciéncia politica conservadora e de sua imagem contrdria, as ilusdes do romantismo politico, nao existe uma relagio inversa € r(gida entre institucionalizag4o prdtica e mobilizagao politica. Nao precisamos escolher entre polftica institucionalizada de baixa energia e politicas extra- institucionais ou antiinstitucionais de alta energia, com suas liderangas inspi- radas e suas massas ardorosas. O pensamento politico do experimentalismo © QUE # EXPERIMENTALISMO DEMOCRATICO? democratico comega na rejei¢ao dessa escolha entre o frio das instituigdes eo quente da ago fora das instituigdes. ‘A visio da falsa necessidade informa a prdtica do experimentalismo de- mocrético e resulta no conceito de pluralismos alternativos. Esse conceito aplica a critica contra o fetichismo institucional ao diagnéstico de nossa situagao atual. A velha disputa ideoldgica entre estatismo e privatismo, comando e mercado, est4 morta ou morrendo. Ela est4 em processo de substituigéo por um novo conflito sobre as formas institucionais alternati- vas de pluralismo polftico, econdmico e social. As versées da democracia representativa, da economia de mercado e da sociedade civil livre estabele- cidas agora nas democracias do Atlantico Norte representam parte de uma gama maior de possibilidades institucionais. Cada diregdo para o aproveitamento dessas oportunidades produziria uma civilizagdo diferente, desenvolvendo as capacidades € possibilidades da humanidade de um modo distinto. O papel das nagdes em um mundo de democracias ¢ representar uma especializagao moral dentro da humani- dade. A liberdade do trabalho para superar fronteiras nacionais é uma das exigéncias préticas para remodelar a diferenca nacional. As pessoas nao devem estar vinculadas pelo acidente do nascimento & sociedade em que, por acaso, elas nasceram. Elas devem estar livres para encontrar suas afini- dades, mesmo que poucas escolham procuré-las. Os grandes paises marginalizados do mundo de hoje - China, [ndia, Russia, Indonésia e Brasil — representam terrenos férteis para a exploracao dessas possibilidades, embora cada um deles se encontre agora inibido para realizar o potencial de divergéncia. O experimentalismo institucio- nal, amplamente involuntdrio, ou em parte consciente, que pode ocorrer nesses paises langa luz sobre as oportunidades ocultas para a transforma- ¢40 institucional nas democracias ricas. Plano do livro Este livro desenvolve as concepgées e 0 projeto do experimentalismo democratico em dois teatros: 0 contexto das democracias do Atlantico Norte a situagao dos paises em desenvolvimento, especialmente as grandes so- ciedades marginalizadas. O mundo todo esté agora unido por uma cor- rente de analogias: nao existe diferenga fundamental entre problemas e possibilidades nas economias mais ricas e nas mais pobres. As pessoas falam de “democracia radical”, ou de reinvengao da politica pfogressista, mas normalmente nao conseguem dar contetido detalhado a esses conceitos. Aqui, eu tento isso. Quero mostrar que podemos ter a esperanca de algo melhor do que a humanizacao do inevitdvel e, particu- UMAARGUMENTACAO larmente, de algo melhor — melhor para os interesses materiais e morais perseguidos pelo experimentalismo democrético — do que a conciliagao das tradigdes européias de protegao social com a flexibilidade de mercado de estilo americano. A seco seguinte deste livro discute um problema e uma oportunidade importantes para o experimentalismo democrdtico: as divisdes sociais e econémicas entre vanguardas produtivas e retaguardas produtivas, ¢ a trans- formagao de uma confederacao de vanguardas produtivas na forca motriz da economia mundial. Discuto, entéo, contra esse pano de fundo, trés projetos de renovacdo industrial nas democracias industriais présperas. O experimentalismo democrdtico nao pode se satisfazer nem com 0 projeto conservador de reforma administrativa nem com a convencional resposta social-democrata a ele. O raciocfnio se volta, entéo, com maior profundidade, para um segun- do campo no qual se pode forjar as concepgdes e propostas do experimen- talismo democratico hoje: 0 embate acerca do projeto neoliberal — 0 pro- jeto ortodoxo de reforma e convergéncia institucional — nos paises em desenvolvimento e pés-comunistas. A discussio a respeito de diferentes abordagens & renovagao industrial nas economias ricas ¢ de alternativas ao ncoliberalismo nos paises em de- senyolvimento prepara o terreno para a elaboracéo de um programa. Esse programa oferece uma alternativa A social-democracia institucionalmente conservadora e ao neoliberalismo. Ele interpreta, para o presente, o que significaria aprofundar e radicalizar a democracia, levando um passo adian- te o trabalho do experimentalismo democratico. O programa nao é um plano. E um conjunto de concepgées e propostas interligadas, nao definitivas em espirito e adaptaveis ao contexto. Optei por explorar essa diregio programatica em questées a um sé tempo relati- vamente préximas e relativamente distantes das estruturas atuais. A dire- go € o que importa. Se eu propuser algo distante, o leitor pode dizer: interessante, porém utépico. Se eu propuser algo préximo, o leitor pode responder: possivel, porém trivial. Nas tentativas contemporneas de pensar e falar programa- ticamente, todas propostas s4o feitas para parecer ou utépicas ou triviais. Perdemos a confianga em nossa capacidade de imaginar a mudanga estru- tural na sociedade e recuamos para um critério substituto: uma proposta é realista quando se aproxima do que jé existe. E facil ser realista quando se aceita tudo. Tentei solucionar esse problema de uma forma rudimentar, porém util. O livro explora, a diferentes distancias das solug6es atuais, 0 projeto que oferece. Ele também repousa em uma invocagdo e em um desenvolvimen-

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