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FEMPAR – FUNDAÇÃO ESCOLA DO MINISTÉRIO PÚBLICO

LUIZ HENRIQUE BIANCHI MADEIRA

PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO E DIREITO PENAL DO RISCO

CURITIBA

2016
LUIZ HENRIQUE BIANCHI MADEIRA

PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO E DIREITO PENAL DO RISCO

Monografia apresentada como requisito parcial


para a obtenção do grau de Especialista em
Ministério Público – Estado Democrático de
Direito, na área de concentração em Direito Penal,
pela Fundação Escola do Ministério Público do
Paraná – FEMPAR, Centro Universitário
Autônomo do Brasil – UNIBRASIL.

Orientador: Prof. Dr. Fábio André Guaragni

CURITIBA

2016
LUIZ HENRIQUE BIANCHI MADEIRA

PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO E DIREITO PENAL DO RISCO

Monografia apresentada como requisito parcial


para a obtenção do grau de Especialista em
Ministério Público – Estado Democrático de
Direito, na área de concentração em Direito Penal,
pela Fundação Escola do Ministério Público do
Paraná – FEMPAR, Centro Universitário
Autônomo do Brasil – UNIBRASIL.

Orientador: Prof. Dr. Fábio André Guaragni

Aprovado em: ___ de _______________ de 2016.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________

Prof. Dr. Fábio André Guaragni


DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho aos meus pais, que incondicionalmente se mantêm ao meu lado e
me apoiam em todos os momentos.
AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Professor Doutor Fábio André Guaragni, pelas brilhantes lições e
por todo o apoio, seja em sala de aula ou fora dela.
RESUMO

O avanço tecnológico e científico, iniciado principalmente com a Revolução Industrial, datada


dos séculos XVIII e XIX, trouxe inegáveis conforto e segurança à sociedade como um todo.
Contudo, o progresso também apresenta outra face, qual seja, a do desenvolvimento do risco
que, culminando em consequências catastróficas, produzem, paradoxalmente, uma sensação
de insegurança generalizada. Estes resultados desastrosos, muitas das vezes, não são
conhecidos pela ciência até que ocorram, o que conduz à uma necessidade de evita-los, ainda
que sejam desconhecidos. Nesta esteira ganha destaque o princípio da precaução, cuja função
é a de refrear estes eventos, munindo-se para tanto de medidas precautórias que atuem frente
aos riscos cientificamente não conhecidos e que, por sua vez, possam resultar em eventos
danosos de grande magnitude. Diante deste cenário, é preciso analisar se, no âmbito do
Direito Penal, o princípio da precaução pode assumir papel fundamentador e/ou justificador
das categorias dogmáticas que, adaptando-se ao novo modelo social – a sociedade do risco –,
resulta no chamado Direito Penal do Risco.

Palavras-chave: Princípio da precaução; sociedade de risco; Direito Penal do Risco.


ABSTRACT

The technological and scientific advance, mainly initiated with the Industrial Revolution,
dated to XVIII e XIX centuries, brought undeniable comfort and security to the society.
However, the progress shows its other face, that is, the growth of the risk that, resulting in
catastrophic consequences generates, paradoxically, a feeling of general insecurity. These
devastating results, many of the times, are unknown by the science until its occurrence, which
leads to a necessity to avoid them, even though they are ignored. On this track, the
precautionary principle is highlighted, whose function is to curb these events, using the
precautionary measures to block the scientifically unknown risks that can result in harmful
events of great magnitude. Towards that scenario, its required to analyze if, in the criminal
law area, the precautionary principle can assume a justifying role of the dogmatic categories
that, adapting to a new social model – the risk society –, results in the called Criminal Law of
Risk.

Keywords: Precautionary principle; Risk Society; Criminal Law of Risk.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.........................................................................................................................8

CAPÍTULO I – A SOCIEDADE DE RISCO.......................................................................10


1.1 RISCO: BREVES APONTAMENTOS..............................................................................10
1.2 O MODELO SOCIOLÓGICO DA SOCIEDADE DO RISCO..........................................12
1.2.1 A segunda modernidade: modernidade reflexiva.............................................................12
1.2.2 Mudança de paradigma: os riscos da modernidade reflexiva..........................................15

CAPÍTULO II – O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO...........................................................28


2.1 ORIGEM E EVOLUÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO.......................................28
2.2 CONTEÚDO E PRESSUPOSTOS DE APICAÇÃO.........................................................32
2.2.1 Pressupostos de aplicação................................................................................................36
2.2.1.1 A incerteza científica....................................................................................................37
2.3 CRÍTICAS AO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO...............................................................38

CAPÍTULO III – HÁ CAPACIDADE DE RENDIMENTO DO PRINCÍPIO DA


PRECAUÇÃO NO ÂMBITO DO DIREITO PENAL?.......................................................43
3.1 O MOVIMENTO DE COMPATIBILIZAÇÃO ENTRE O DIREITO PENAL E OS
NOVOS RISCOS......................................................................................................................43
3.2 O DIREITO PENAL DO RISCO.......................................................................................45
3.2.1 O conceito de bem jurídico e o Princípio da Lesividade.................................................48
3.2.2 A lesividade e os crimes de perigo abstrato.....................................................................52
3.2.3 Reflexos nos crimes culposos..........................................................................................56

CONCLUSÃO.........................................................................................................................59
REFERÊNCIAS......................................................................................................................62
8

INTRODUÇÃO

Riscos e perigos sempre estiveram presentes no cotidiano do ser humano,


independente da época em que viveu. É certo que algumas dessas situações, cujas
consequências se apresentaram – e se apresentam – catastróficas, culminando em doenças,
desastres e até mesmo mortes em massa, advêm do processo decisório humano. Frente a
possibilidades distintas de ação, se escolhem modos de agir que podem levar a estes
resultados, muitas das vezes não desejados.
Esta dinâmica “ação versus risco”, no entanto, mostrou-se mais acentuada com os
desdobramentos da Revolução Industrial, iniciada no século XVIII, atingindo seu ápice a
partir da metade do século XIX. O afã do homem em dominar a natureza e subjugá-la ao seu
interesse de progresso e desenvolvimento produziu, por um lado, conforto e segurança à
sociedade.
De outro lado, o avanço industrial, tecnológico e científico em geral, passou a trazer
consequências indesejadas, cujos efeitos, ainda hoje, mostram-se catastróficos e, em alguns
casos, desconhecidos. Pesquisas sobre mecanismos de geração de energia culminaram nas
bombas de Hiroshima e Nagazaki; experimentos envolvendo organismos geneticamente
modificados culminaram na existência de “super pragas”, que não respondem aos mais
avançados agrotóxicos, etc. Estes riscos oriundos do avanço científico-tecnológico, ao passo
que seus desdobramentos passaram a ser observáveis aos olhos do homem comum,
permearam o meio social, culminando no modelo social denominado sociedade de risco.
O presente trabalho, no primeiro capítulo, buscará expor e analisar os modelos
sociológicos propostos pelos principais expoentes da sociologia do risco, com especial
enfoque para o estudo de Ulrich Beck, publicado nos anos 80 e que coteja os chamados
“novos riscos” e seus reflexos no meio social. O capitulo introdutório também analisará os
argumentos trazidos por Anthony Giddens e Niklas Luhmann que, ao lado de Beck,
constroem a ideia de modernidade reflexiva, ou, nas palavras de Ulrich Beck, segunda
modernidade.
Uma vez constatado que os riscos modernos possuem, não raras vezes, consequências
que, ademais de catastróficas, são desconhecidas até mesmo pelos cientistas, adquire grande
importância os ideais postulados pelo princípio da precaução. Com isso, no segundo capítulo
se analisará o anunciado princípio, levando-se em conta seu conceito, surgimento e evolução,
principalmente no que tange sua aplicação no meio jurídico, cuja principal função se
desempenha no âmbito do direito ambiental.
9

Por fim, o terceiro e último capítulo, com base na análise a ser realizada sobre a
sociedade de risco e o princípio da precaução, buscará verificar se as premissas precautórias,
fio condutor dos riscos oriundos do avanço científico e tecnológico, podem adentrar o campo
do direito penal, fundamentando e/ou justificando o sistema criminal atual, que não se
mantém inerte ao novo modelo de sociedade, principalmente no que tange a vivida sociedade
do risco.
10

1 A SOCIEDADE DE RISCO

Eric Hobsbawn, em sua obra A Era dos Extremos, afirma que o século XX foi aquele
no qual a sociedade em geral esteve, cada vez mais, dependente das ciências, com especial
destaque às ciências naturais1. O historiador britânico constata ainda que essa relação de
dependência aumentou de forma proporcionalmente direta à sensação de insegurança
percebida pelo ser humano quanto a tais ciências. Indo além, afirmou que, apesar dos
inúmeros confortos e benefícios trazidos pela evolução científica, o homem do século XX

não se sentia à vontade com a ciência que fora a sua mais extraordinária
realização, e da qual dependia. O progresso das ciências naturais se deu
contra um fulgor, ao fundo, de desconfiança e medo, de vez em quando
explodindo em chamas de ódio e rejeição da razão e de todos os seus
produtos. (…) A desconfiança e o medo da ciência eram alimentados por
quatro sentimentos: o de que a ciência era incompreensível; o de que suas
consequências tanto práticas quanto morais eram imprevisíveis e
provavelmente catastróficas; o de que ela acentuava o desamparo do
indivíduo, e solapava a autoridade. Tampouco devemos ignorar o sentimento
de que, na medida em que a ciência interferia na ordem natural das coisas,
era inerentemente perigosa.2

É desta tensão entre a potencialização do uso da razão técnico-científica, iniciada


principalmente na Revolução Industrial, e os riscos contingenciais que dela surgiram, que a
sociedade tradicional, ou de industrialização primária, passa a ser considerada como uma
sociedade de riscos, pós-moderna, ou de segunda modernidade.

1.1 RISCO: BREVES APONTAMENTOS

Risco, do italiano rischio, significa “possibilidade de perigo, incerto mas previsível,


que ameaça de dano a pessoa ou a coisa.” 3. O termo, de fato, surge na Itália no início do
século XII, em estreita relação com o comércio marítimo, que à época começava a se
desenvolver. 4

1
HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: o breve século XX. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.
504.
2
Idem, p. 511.
3
Verbete consultado junto ao dicionário Michaelis da língua portuguesa, em sua versão on-line, disponível em:
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=risco. Acesso
em 09 mai. 2016.
4
RUSSO, Michelantonio Lo. L‟avventura del rischio. Catanzaro: Rubbentino, 2002, p. 13.
11

No relato de Michelantonio Lo Russo, a percepção sobre o risco advinha do mar. “Os


navios podiam afundar, a carga perecer, e os piratas estavam sempre a postos. Mas, apesar de
tudo, o comerciante se atreveu. Antigamente, ousar era „arriscar‟. Risco parece vir deste
contexto.”. 5
É bem verdade que, apesar do termo específico ter sido cunhado somente no século
XII, o risco sempre fez parte do mecanismo decisório do atuar humano e, inclusive, o meio
social aceita, em certos níveis, correr certos riscos. Um alpinista que decide escalar o monte
Everest ou o monte K2, antes de iniciar sua jornada, sabe que sua ação comporta riscos, sendo
que alguns deles podem custar até mesmo sua vida 6. Da mesma forma correm riscos as
pessoas que instalam sua moradia ou trabalho em regiões onde o nível de atividades sísmicas
é elevado, ou em locais que fenômenos naturais devastadores marcam presença quase que
anualmente, como é o caso da Falha de San Andreas – Califórnia ou do furacão Katrina,
respectivamente. 7
No entanto, o conceito de risco, acompanhando os novos rumos da sociedade, também
evoluiu. Com o passar do tempo, as circunstâncias e condutas consideradas arriscadas foram
se modificando. Já não se trata mais – ou tão somente – do risco oriundo do comércio
transatlântico ou dos fenômenos catastróficos naturais, mas, atualmente, se falam em riscos
biotecnológicos, nucleares, genéticos, etc.
Hodiernamente o ser humano depara-se, cada vez mais, com o surgimento de situações
consideradas arriscadas. A própria mídia e os meios culturais tornaram-se mecanismos de
propagação das situações onde o risco impera. Praticamente todos os dias, ao assistir um filme
ou um telejornal, o homem depara-se com estas situações 8. Nas palavras de John Adams,

Os noticiários e documentários de televisão [proporcionam uma] generosa


porção de fatos com os quais devemos nos preocupar, e filmes
acrescentaram relatos ficcionais de neuroses, angústias, assassinatos e

5
Idem. Tradução livre de: “Vivissíma era, all'epoca, la percezione del pericolo rappresentato dal mare. Le navi
potevano colare a picco, le merci de perire, i pirati sempre pronti all'arrembaggio. Ma, nonostante tutto il
mercante osa. Anticamente osare si diceva "risciare". Rischio sembra venire da lì.”
6
ADAMS, John. Risco. . Trad. Lenita Rimoli Esteves. São Paulo: Senac, 2009, p. 16. Trabalhando com dados
empíricos, o autor afirma que “o índice de mortes no K2, ou seja, o número de mortes versus o número de
pessoas que atingem o topo, é uma em quatro.”.
7
Ibidem, p. 18.
8
GARDNER, Dan. Risco: a ciência e a política do medo. Trad. Léa Viveiros de Castro e Eduard Süssekind. Rio
de Janeiro: Odisséia, 2009, p. 15.
12

confusão. Todos os dias nos defrontamos com um novo dilúvio de provas de


que neste mundo nada é certo. 9

Observa-se que riscos atuais, trazidos ao centro do debate, são aqueles oriundos,
principal e quase que exclusivamente, do progresso científico. São os riscos que advém da
evolução tecnológica, as pesquisas de ponta em relação à genética, à energia radioativa, à
manipulação do meio ambiente, etc. Estes riscos, denominados riscos objetivos, ou seja,
aqueles que integram a análise científica10, resultantes do processo de tomada de decisões
(muitas vezes de especialistas), saem do ambiente eminentemente técnico e passam a integrar
as construções sociológicas.
Ao analisar o impacto que estes riscos, cujas consequências muitas vezes ainda são
incertas ou não conhecidas, passam a fundamentar o concebido modelo da sociedade do risco.
Com isso, o próprio risco passa ser elemento central de análise e diagnose social, refletindo-se
nos moldes sociais atualmente verificáveis.

1.2 O MODELO SOCIOLÓGICO DA SOCIEDADE DO RISCO

1.2.1 A segunda modernidade: modernidade reflexiva

A principal teoria acerca da sociedade mundial de riscos foi cunhada por Ulrich
Beck. Em 1986, com a publicação de sua obra Risikogesellschaft: auf dem Weg in eine andere
Moderne, traduzida ao português como Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade,
o sociólogo alemão identificou e sistematizou os fundamentos e características da sociedade
hodierna, o fazendo sob a ótica de uma transição paradigmática: a passagem da primeira
modernidade para a denominada modernidade reflexiva, ou segunda modernidade11.
A primeira modernidade, ou modernização tradicional, “(…) se consumou contra o
pano de fundo de (…) um mundo tradicional e uma natureza que cabia conhecer e controlar.”

9
ADAMS, John. Risco…, p. 36.
10
Ibidem, p. 40.
11
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião do Nascimento. São
Paulo: Ed. 34, 2010, p. 13. Em suas próprias palavras, o autor aduz, quanto a este giro de paradigmas, que “Se
no século XIX foram os privilégios estamentais e as imagens religiosas do mundo que passaram por um
desencantamento, hoje é o entendimento científico e tecnológico da sociedade industrial clássica que passa pelo
mesmo processo (…). A modernização nos trilhos da sociedade industrial é substituída por uma modernização
das premissas da sociedade industrial (…). É essa iminente oposição entre modernidade e sociedade industrial
(em todas as suas variantes) que atualmente nos confunde em nosso sistema de coordenadas, a nós que
estávamos até a medula acostumados a conceber a modernidade nas categorias da sociedade industrial.”.
13

12
. Neste primeiro momento, temporalmente localizado após o fim da Era Medieval e
impulsionado principalmente pelos ideais iluministas do século XVIII13, o que se tem é uma
“(…) superioridade do modelo de industrialização que se estabelece a partir da estruturação
dos Estados nacionais, como elementos fomentadores do desenvolvimento industrial dentro
dos seus limites territoriais.”14. Este modelo industrial baseia-se na premissa de que o
homem, pautado pelos ideais antropocêntricos da época, conhece e controla a natureza e seus
elementos, orientando sua manipulação à solução – conforme se acreditava e, em certa
medida se almejava – de todos os problemas da convivência social. 15
Esta primeira modernidade, portanto – e nas palavras de Beck –, é estritamente
ligada ao modelo de sociedade do estado-nação, “(…) nas quais as relações e redes sociais e
as comunidades são compreendidas essencialmente em um sentido territorial.”16. A dinâmica
da sociedade industrial inicialmente concebida, exploradora por (e da) natureza, – ou
sociedade de classes, nas lições de Marx e Weber17 – girava em torno, principalmente, “(...)
da questão de como a riqueza socialmente produzida pode ser distribuída de forma
socialmente desigual e ao mesmo tempo „legítima‟.” 18.
De outro lado, contrapondo e, de certo modo, descontruindo e potencializando as
premissas da modernidade inicial, surge a segunda modernidade. O ponto em comum entre
estas formas é o de que ambas se prestaram à alteração da estrutura social em escala global. 19
À transição do modelo de sociedade industrial para o de sociedade de risco dá-se o
nome de modernização reflexiva. Como o apontado por Beck,

Não se trata mais, portanto, ou não se trata mais exclusivamente de uma


utilização econômica da natureza para libertar as pessoas de sujeições
tradicionais, mas também e sobretudo de problemas decorrentes do próprio

12
Idem.
13
ANDRADE, Guilherme Oliveira. O princípio da intervenção mínima e o Direito Penal do risco. 2009. 197 f.
Dissertação (Mestrado em Direito) – Centro Universitário Curitiba, Curitiba, 2009, p. 56.
14
BOZOLA, Túlio Arantes. Os crimes de Perigo Abstrato no Direito Penal Contemporâneo. Belo Horizonte:
Del Rey, 2015, p. 12-13.
15
Ibidem, p. 13. ANDRADE, Guilherme Oliveira. O princípio..., p. 56. No mesmo sentido, afirma que “a
primeira modernidade corresponde justamente ao período em que o antropocentrismo fundado na premissa
cartesiana de que o homem é o sujeito central do universo, e que por meio de sua razão poderia capturar a
natureza a seu proveito, atinge seu auge. Funda-se uma mentalidade que um maior conhecimento e controle
pelo homem do mundo natural possibilitariam maiores chances de sua utilização em prol de seus interesses.”.
16
BECK, Ulrich. La Sociedad del Riesgo Global. Trad. Jesús Alborés Rey. Madrid: Siglo Veintiuno de España,
2002, p. 02. Tradução livre de “(…) en las que las relaciones y redes sociales y las comunidades se entienden
esencialmente en un sentido territorial.”.
17
BECK, Ulrich. Sociedade de risco…, p. 23-24.
18
Ibidem, p. 24.
19
ANDRADE, Guilherme Oliveira. O princípio..., p. 60.
14

desenvolvimento técnico-econômico. O processo de modernização torna-se


„reflexivo, convertendo-se a si mesmo em tema e problema. 20

Destaca-se que antes de ser um rompimento ou superação da sociedade industrial


primária, a sociedade de risco, enquanto produto da modernização reflexiva, deriva de uma
superevolução das conquistas da primeira modernidade, elevando “(...) exponencialmente
21
suas premissas ao extremo, de forma que a sua própria estrutura se abala.” . No mesmo
sentido, Cláudio do Prado Amaral leciona que

A modernidade reflexiva representa uma época da modernidade que se


desvanece. Mas, também, significa o surgimento anônimo de um outro lapso
histórico. Esse nascer de um novo tempo não é gerado por eleições políticas,
nem pela queda de qualquer governo ou por meio de uma revolução; em
verdade, obedece aos efeitos colaterais latentes no processo de modernização
autônoma segundo o esquema da sociedade industrial ocidental. Não é a
crise que provoca essa destruição criadora, mas, sim, o triunfo da
modernização ocidental.22

Da continuidade do processo de modernização, começam a surgir, para além dos


conflitos sociais em torno da distribuição de riquezas – típicos das sociedades industriais e
capitalistas – as celeumas que partem de uma sociedade que passa a distribuir riscos. Estes
riscos, tidos como consequência da expansão industrial e científico-tecnológica, não sãomais
aqueles iniciais, oriundos da revolução industrial, de caráter territorial e pessoal.
Sintomaticamente, os novos riscos se produzem de forma imprevisível e involuntária,
transformando-se em verdadeiras armas de extermínio, elevando-se ao extremo de ameaçar a
própria existência da vida terrena. 23
Assim, os riscos oriundos da segunda modernidade, a sociedade de risco por
excelência,

(...) já não estão vinculados ao lugar em que foram gerados – a fábrica. De


acordo com seu efeito, eles ameaçam a vida no planeta, sob todas as suas

20
BECK, Ulrich. Sociedade de risco..., p. 24.
21
ANDRADE, Guilherme Oliveira. O Princípio..., p. 60.
22
AMARAL, Cláudio do Prado. Bases Teóricas da Ciência Penal Contemporânea. São Paulo: IBCCRIM, 2007,
p. 77-78.
23
BECK, Ulrich. Sociedade do risco..., p. 25. Apontando o contraste entre os riscos da primeira modernidade e
os novos riscos, consequências do fenômeno da modernização reflexiva, o autor diagnostica: “É certo que os
riscos não são uma invenção moderna. Quem –como Colombo – saiu em busca de novas terras e continentes por
descobrir assumiuriscos. Estes eram, porém, riscos pessoais, e não situações de ameaça global, como as que
surgem para toda a humanidade com a fissão nuclear ou com o acúmulo de lixo nuclear. A palavra „risco‟ tinha,
no contexto daquela época, um tom de ousadia e aventura, e não o da possível autodestruição da vida na Terra.”.
15

formas. Comparados com isto, os riscos profissionais de industrialização


primária pertencem a uma outra era.24

De forma gradual, os processos desenvolvimentistas da primeira modernidade,


pautados na exploração de recursos naturais, manejados de forma controlável e previsível, dão
lugar a uma nova forma de produção da qual decorre um verdadeiro colapso dos patamares de
“(...) controlabilidade e segurança”.25
Deste cenário, indaga-se: quais são estes riscos? Da onde vêm? De que forma se
permeiam objetiva e subjetivamente – quanto a sua percepção – na sociedade?

1.2.2 Mudança de paradigma: os riscos da modernidade reflexiva

É cediço que os meios de produção atuais se pautam pela busca de inovações. E não
somente para demonstrar a atuação em vanguarda de um ou outro produtor-empresário26, mas,
antes, para se obter uma maior produtividade em contrapartida do menor custo possível e do
maior lucro imaginável27. Contudo, esse afã pelo desenvolvimento se dá em uma velocidade
inversamente proporcional ao conhecimento, científico ou não, da totalidade dos efeitos e
potenciais perigos decorrentes destas novidades.Desta distorção derivam os riscos, que dão
ensejo a cursos causais danosos, no mais das vezes irreversíveis, mas que, de forma temerária,
permanecem, não raras vezes, invisíveis.
Apesar de sempre inseridos no contexto social, os riscos – em especial os oriundos
da modernidade tardia28– ganham posição de destaque no debate sócio-político e econômico.
Isto porque tais riscos possuem características próprias, muitas vezes não atribuíveis aos
riscos consequentes da revolução industrial e só observado nos novos riscos. Estas
características foram identificadas e sistematizadas por diversos autores, permeando as mais
variadas áreas do conhecimento. De forma breve e sucinta, é preciso expor os principais

24
Ibidem, p. 26.
25
BOZOLA, Túlio Arantes. Os Crimes..., p. 15.
26
É fato notório que a busca pelas mais altas tecnologias e os créditos do alcance desses avanços se
consubstanciam, não raras vezes, no seio das grandes corporações empresárias. Por isso, é possível afirmar que
os novos riscos, oriundos do sistema de produção da sociedade do risco, são atribuíveis a estas entidades.
27
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 3.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013,
p. 35. “A base do modelo de produção da sociedade atual é a busca por inovações. A estrutura das relações
econômicas exige o emprego de esforços constantes na modernização, na descoberta de novas tecnologias que
permitam maior produtividade a um custo menor. O desenvolvimento econômico é pautado e estruturado pela
rapidez com que as inovações são apresentadas, e a própria sobrevivência empresarial, em um sistema capitalista
de mercado, exige a adaptação constante, sob pena de obsolescência e perecimento.
28
BECK, Ulrich. Sociedade do risco..., p. 23.
16

atributos destas ameaças para, então, compreender quais seus reflexos diretos e indiretos na
sociedade em que estão insertos.
A primeira, e talvez mais emblemática característica dos riscos atuais é a de que,
diferentemente “(...) dos perigos que ameaçam com desastres naturais ou pragas de outras
épocas29, são artificiais, no sentido de que são produzidos pela atividade do homem e
30
vinculados a uma decisão deste.” . Assim, pode se dizer que os riscos surgidos da
manipulação do desenvolvimento tecnológico são artificialmente fabricados. 31
Observando a distinção semântica apresentada por Blanca Mendoza Buergo,
necessário se faz apontar a diferença entre os conceitos perigo e risco.
Quem melhor trata desta distinção é Niklas Luhmann ao apontar que por perigo se
configura quando o dano sofrido se vincula às causas externas, de ordem eminentemente
natural, muitas vezes não controláveis pelo ser humano. Do lado oposto, os riscos, e os danos
– concretos, potenciais ou até mesmo desconhecidos –são decorrentes de decisões racionais
do homem à frente da condução das tecnologias que lança mão. Em outras palavras, afirma
Luhmann, in verbis:

Esta distinção supõe (...) que há uma incerteza em relação a danos futuros.
Apresentam-se então duas possibilidades. Pode se considerar que o possível
dano é uma consequência da decisão, e então falamos de risco e, mais
precisamente, do risco da decisão. Ou bem se julga que o possível dano é
provocado externamente, é dizer, se atribui ao meio ambiente; e neste caso,
falamos de perigo.32

29
Por outras épocas entende-se o período histórico compreendido até – e logo após – a Revolução Industrial
primária. Quanto aos perigos que até então cercavam a sociedade, vide COSTA, José Francisco de Faria. O
perigo em Direito Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p. 321, para o qual “(...) o perigo que se desenvolvia
nas comunidades humanas até à 1ª Revolução Industrial tinha características muito próprias. Em termos
extraordinariamente simples e redutores poderá dizer-se que ele era sentido pela consciência ética comunitária e
experienciado por cada um dos seus membros como algo externo à própria comunidade. O perigo vinha sempre
de fora, perfilava-se como uma realidade baseada na heteronomia do poder externo. O perigo ou vinha dos
hostes, ou era desencadeado pelas forças da natureza.”.
30
MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la Sociedad del Riesgo. Madrid: Civitas, 2001, p. 26.
Tradução livre de “(…) los peligros que amenazan con desastres naturales o plagas de otras épocas son
artificiales, en el sentido de que son producidos por la actividad del hombre y vinculados a una decisión de
éste.”.
31
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal: uma avaliação de novas
tendências político-criminais. São Paulo: IBCCRIM, 2005, p. 38.
32
LUHMANN, Niklas. Sociología del riesgo. Guadalajara: Universidad Iberoamericana, 1991, p. 37. Tradução
livre de: “Esta distinción supone (…) que hay una incertidumbre en relación a daños futuros. Se presentan
entonces dos posibilidades. Puede considerarse que el posible daño es una consecuencia de la decisión, y
entonces hablamos de riesgo y, más precisamente, del riesgo de la decisión. O bien se juzga que el posible daño
es provocado externamente, es decir, se le atribuye al medio ambiente; y en este caso, hablamos de peligro.
17

Portanto, risco, sobre a ótica de Beck, de forma parecida à afirmada por Luhmann,
“(...) é o enfoque moderno da previsão e controle das consequências futuras da ação humana,
33
as diversas consequências não desejadas pela modernização radicalizada.” . Trata-se,
portanto, de incertezas racionalmente fabricadas.
Outra característica é a de que os riscos da segunda modernidade não asprincipais
consequências da atuação racional humana frente às novas – e cada vez mais desenvolvidas –
tecnologias.São, antes de tudo, consequências secundárias, não desejadas a priori. Nas
palavras de Blanca Mendoza Buergo,

“(...) estes riscos da modernização são consequências secundárias do


progresso tecnológico, constituem efeitos indesejados, frequentemente não
previstos e as vezes imprevisíveis de um atuar humano, inicialmente dirigido
a fins positivamente valorados.34

De forma clara, expõe ainda Guilherme Andrade Oliveira que “esta característica de
acessoriedade dos novos riscos revela a falibilidade da razão técnico-científica, uma vez que
os riscos tratam-se, sempre, de efeitos colaterais de decisões humanas inicialmente voltadas a
fins positivamente valorados.”. 35
Deste atributo aferível dos riscos, decorre também o fato de que, sendo oriundos do
manejo de tecnologias altamente complexas e avançadas, provenientes da indústria,
biotecnologia, energia nuclear ou química, etc., são aptos a causarem danos imediatos e de
forma sistemática, mas que, em alguns casos – e não de forma isolada – permanecem
“incubados” por um longo período de tempo36. É neste sentido a lição de Beck:

Muitos dos novos riscos (contaminações nucleares ou químicas, substâncias


tóxicas nos alimentos, enfermidades civilizacionais) escapam inteiramente à
capacidade perceptiva humana imediata. Cada vez mais estão no centro das
atenções ameaças que com frequência não são nem invisíveis nem
perceptíveis para os afetados, ameaças que, possivelmente, sequer

33
BECK, Ulrich. La Sociedad..., p. 05. Tradução livre de “(...) es el enfoque moderno de la previsión y control
de las consecuencias futuras de la acción humana, las diversas consecuencias no deseadas de la modernización
radicalizada.”.
34
MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal…, p. 27. Traduçãolivre de: “(…) estos riesgos de la
modernización son consecuencias secundarias del progreso tecnológico, constituyen siempre efectos indeseados,
a menudo no previstos y a veces imprevisibles de un actuar humano, inicialmente dirigido a fines positivamente
valorados.
35
ANDRADE, Guilherme Oliveira. O Princípio..., p. 75.
36
Idem. MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade de risco..., p. 39. “(...) na maior parte dos casos, os
novos riscos à saúde e à natureza subtraem-se por completo da percepção e do conhecimento comum. São
eventos que, para se tornarem visíveis e serem interpretados como riscos, demandam a constatação objetiva dos
experts e de suas teorias, experimentos, instrumentos de medição, etc.”.
18

produzirão efeitos durante a vida dos afetados, e sim na vida de seus


descendentes, em todo caso ameaças que exigem „órgãos sensoriais‟ da
ciência – teorias, experimentos, instrumentos de medição – para que possam
chegar a ser „visíveis‟ e interpretáveis como ameaças.37

É de grande destaque a constatação que estes riscos podem se originar através da


reiteração de condutas que se tomadas isoladamente não levam a situações arriscadas. Não
obstante, estas práticas, no mais das vezes, seguem estritamente os enunciados técnicos da
área da ciência na qual estão inseridas, “(...) o que torna a produção dos riscos invisível e
incontrolada.”.38
Marta Rodriguez de Assis Machado observa ainda que o conhecimento destes riscos
pelo público é condicionado, anteriormente, à constatação e análise por parte de especialistas,
não podendo se descartar a possível manipulação dos resultados através de influências
políticas, sociais ou econômicasque almejematingir outros fins alheios à simples – mas de
grande valia – divulgação da potencialidade dos mencionados riscos.
Em outras palavras, para Beck, os riscos

(...) apresentam-se portanto tão somente no conhecimento (científico ou


anticientífico) que se tenha deles, podem ser alterados, diminuídos ou
aumentados, dramatizados ou minimizados no âmbito do conhecimento e
estão, assim, em certa medida abertos a processos sociais de definição. 39

Além de latentes, os riscos da segunda modernidade rompem ainda com o paradigma


espaço-tempo, bem como se distanciam, quanto ao seu potencial lesivo, daqueles riscos pré-
industriais ou dos industriais de primeira geração. Acertadamente, a lição de Beck é no
sentido de que

Os riscos e ameaças atuais diferenciam-se, portanto, de seus equivalentes


medievais, com frequência semelhantes por fora, fundamentalmente por
conta da globalidade de seu alcance (ser humano, fauna, flora) e de suas
causas modernas. São riscos da modernização. São um produto de série do
maquinário industrial do progresso, sendo sistematicamente agravados com
seu desenvolvimento ulterior.40

É de se concluir, então, que

37
BECK, Ulrich. Sociedade do risco..., p. 27 e 32.
38
ANDRADE, Guilherme Oliveira. O Princípio..., p. 76.
39
BECK, Ulrich. Sociedade do risco..., p. 27.
40
Ibidem, p. 26.
19

Os perigos das forças produtivas químicas e atômicas altamente


desenvolvidas suspendem os fundamentos e categorias nos quais nos
apoiávamos até então para pensar e agir – espaço e tempo, trabalho e ócio,
empresa e Estado Nacional, até mesmo as fronteiras entre blocos militares e
continentes.41

O típico exemplo de novo risco, nos moldes delineados, é o da encefalopatia


42
espongiforme bovina (EEB) , vulgarmente conhecida como a doença da vaca louca.
Inicialmente constatou-se no Reino Unido a presença de animais contaminados, porém a
enfermidade não se manteve restrita ao seu território. Não é possível mensurar quantos – e
quais – países foram – e serão – atingidos pela disseminação da doença. Além disso, as
consequências oriundas desta doença ainda não foram completamente desveladas, podendo
haver danos de magnitude imensurável à saúde humana a longo prazo. É o que constata Beck
ao analisar este exemplo específico:

(...) no momento de escrever estas linhas (...), esta crise está longe de se
resolver. Nada se sabe quantos outros países possam estar afetados pela
enfermidade, ou quais podem ser suas consequências a longo prazo. Deste
modo, a EEB põe em destaque a crescente importância da “inconsciência
consciente” da produção do risco e da definição do risco, porque é um
mistério como exatamente se transmite de espécie a espécie e porque pode
ter um longo período de incubação.43

Com isso, é possível afirmar que os riscos hodiernos não se manifestam de imediato,
subvertendo a lógica causa-efeito, uma vez que, tratando-se de consequências acessórias do
manejo tecnológico, científico e industrial moderno, podem permanecer no anonimato por um
longo período de tempo44. Como já dito, é bem provável que muitos destes riscos se
manifestem, apesar de já “existentes”, somente em um futuro às vezes não tão próximo.
Sendo imprevisíveis e, quase sempre, impassíveis de mensuração, estas incertezas
fabricadas não são asseguradas por nenhum meio tradicional. Daí deriva a característica da
insegurabilidade dos novos riscos. Marta Rodriguez de Assis Machado observa que, ao

41
Ibidem, p. 26-27.
42
BECK, Ulrich. La Sociedad..., p. 76; MACHADO, Marta Rodriguez Assis. Sociedade do Risco..., p. 41.
43
BECK, Ulrich. La Sociedad..., p. 76. Tradução livre de “(...) en el momento de escribir estas líneas, (…) esta
crisis está lejos de resolverse. Nadie sabe cuántos otros países pueden estar afectados por la enfermedad, o cuáles
pueden ser sus consecuencias a largo plazo. De este modo, la EEB pone de relieve la creciente importancia de la
„inconsciencia consciente‟ de la producción del riesgo y de la definición del riesgo, porque es un misterio cómo
se transmite exactamente de especie a especie y porque puede tener un largo período de incubación.”
44
ANDRADE, Guilherme Oliveira. O Princípio..., p. 77.
20

contrário dos perigos vivenciados até a primeira modernidade, os quais – não raramente –
eram imputados aos deuses, ao destino ou à natureza45,

(...) os novos riscos não são delimitáveis nem no tempo nem no espaço, não
podem ser tratados segundo as regras estabelecidas da causalidade e da culpa
e, além disso, dificilmente podem ser compensados ou indenizados, quer
porque suas conseqüências não podem ser delimitadas, quer porque o
desastre atinge dimensões tão grandes que nenhuma companhia de seguros
seria capaz de arcar com o custo indenizatório.46

Ulrich Beck arremata esta ideia constatando que

Tudo isto se faz muito evidente com as com as companhias de seguro


privadas, quiçá o maior símbolo do cálculo e da segurança alternativa, que
não cobrem os desastres nucleares, nem a mudança climática e suas
consequências, nem o colapso das economias asiáticas, nem os riscos de
baixa probabilidade e graves consequências de diversos tipos de tecnologia
futura. De fato, os seguros privados não cobrem a maioria das tecnológicas
controvertidas, como a engenharia genética. 47

É por serem observados em notória dissonância dos critérios espaciais ou temporais,


podendo atingir – ao mesmo tempo – todo o globo terrestre, que os novos riscos não seguem
claros e identificáveis critérios de causalidade, motivo pelo qual “(...) não seriam imputáveis
segundo as regras vigentes de (...) culpabilidade e de responsabilidade, nem seriam suscetíveis
de serem objetos de seguro.” 48
Como afirmado anteriormente, a esta altura retoma-se o alto potencial destrutivo dos
novos riscos enquanto uma de suas características mais marcantes. Em alta medida, isto
decorre do fato de que os riscos atuais, não respeitando os limites territoriais e temporais, se

45
BECK, Ulrich. La Sociedad..., p. 78.
46
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco..., p. 41.
47
BECK, Ulrich. La Sociedad..., p. 05. Tradução livre de: “Todo esto se hace muy evidente con las compañías
de seguros privadas, quizá el mayor símbolo del cálculo y la seguridad alternativa, que no cubren los desastres
nucleares, ni el cambio climático y sus consecuencias, ni el colapso de las economías asiáticas, ni los riesgos de
baja probabilidad y graves consecuencias de diversos tipos de tecnología futura. De hecho, los seguros privados
no cubren la mayoría de las tecnologías controvertidas, como la ingeniería genética.”
48
MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal..., p. 28. Tradução livre de: “(…) no serían imputables
según las reglas vigentes de la (…) culpabilidad y la responsabilidad, ni serían susceptibles de ser objeto de
seguros.”. No mesmo sentido leciona MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco..., p. 41: “(...)
durante a vigência da sociedade industrial, era possível estabelecer um padrão de regularidade e normalidade, o
que permitia construir conexões entre os acontecimentos, imputar causalidades e elaborar descrições que tornam
manifesta a cadeia de conexões entre os acontecimentos. Entretanto, na época da sociedade do risco, esses
padrões de normalidade são fragmentados: não são mais confiáveis como vetores de previsibilidade e
calculabilidade, pois se reconhece a existência de contingências e indeterminações, não mais possíveis de serem
controladas.”.
21

disseminam para além do seu epicentro, podendo atingir locais e seres que estejam a milhares
de quilômetros de distância, tudo em níveis danosos de ordem catastrófica.
Contudo, e principalmente apontado por Beck, não se pode deixar de comparar o
fator distribuição dos riscos com a distribuição de riquezas e a situação de classes como um
todo. O mencionado autor afirma que “a história da distribuição de riscos mostra que estes se
atêm, assim como as riquezas, ao esquema de classe – mas de modo inverso: as riquezas
49
acumulam-se em cima, os riscos em baixo.” . De forma objetiva, os riscos – apesar de
universais em sentido amplo – continuam respeitando, em certa medida, a clássica divisão de
classes sociais. Em patamares extremos: “(...) existe uma sistemática „força de atração‟ entre
pobreza extrema e riscos extremos.” 50.
De forma imediata, esta dinâmica se engendra principalmente com a seguinte
situação: na tentativa de se verem livres das potenciais situações arriscadas, os complexos de
produção no bojo dos quais surgem os riscos transferem suas indústrias, plantações, usinas,
laboratórios, etc., para países periféricos de terceiro mundo, que apesar da lógica igualitária de
distribuição dos riscos modernos, acabam sendo atingidos de forma qualitativamente
desigual51.
O primeiro fator colaborativo dessa transferência relaciona-se diretamente com a
abundante mão de obra barata, que inclusive aceita a instalação daqueles complexos de forma
ampla e irrestrita – até porque, via de regra, estes países periféricos possuem altíssimos níveis
de desemprego52. Além disso, nota-se que, nestes locais,

Regulamentos de proteção e segurança não foram suficientemente


desenvolvidos, sendo que, quando existem, são com frequência letra morta.
A „ingenuidade industrial‟ da população local, que no mais das vezes é
incapaz de ler ou escrever, quanto mais de usar adequadamente roupas de
proteção, oferece aos administradores das empresas possibilidades
insuspeitas (...): sabendo da impossibilidade de que se façam adotar
regulamentos de segurança, podem-se isentar de cumpri-los. Dessa forma,
eles podem “lavar as mãos” e, com a consequência tranquila e com baixos
49
BECK, Ulrich. Sociedade de risco..., p. 41.
50
Ibidem, p. 49.
51
Neste sentido, é a conclusão de ANDRADE, Guilherme Oliveira. O Princípio..., p. 80: “Esta desigualdade se
dá em decorrência de que as atividades industriais com maiores riscos, propositadamente ou por questões de
contingência, progressivamente migraram e migram para as regiões mais pobres do globo, expondo tais regiões
aos riscos mais imediatos de suas atividades, como os riscos decorrentes da emissão de gases poluentes e
resíduos tóxicos. Ademais, em virtude de uma globalização voraz e excludente, tais regiões enfrentam ainda o
problema de não possuírem o acesso às mais avançadas tecnologias, de forma que sua tardia industrialização se
dá através da implantação conjunta de atividades industriais altamente arriscadas e de tecnologias ultrapassadas e
com altos índices de riscos, tudo isso somado a um sistema técnico-burocrático de segurança e controle
altamente ineficiente.”.
52
BECK, Ulrich. Sociedade de risco..., p. 50-51.
22

custos, transferir a responsabilidade pelos acidentes e casos de morte à


“cegueira” cultural da população em relação aos riscos. 53

Não obstante, os governos dessas regiões se mostram, mais e mais, abertos à chegada
destes complexos, concedendo – não raras vezes – incentivos tributários, técnicos, etc., tudo
em nome do desenvolvimento tão almejado pelos países mais pobres. Esta lógica perversa,
contudo, se mantém “somente” de forma direta. Isto porque, como já dito, os riscos – e sua
distribuição –, ao contrário das riquezas, “(...) possuem uma tendência imanente à
54
globalização.” . Em outras palavras: não conhecendo fronteiras, as consequências da
sociedade de risco torna-se democrática.
Assim, ainda que de forma inicial – e, não por isso, menos gravosa – a pauperização
material acompanhe a afetação primária pelos riscos produzidos, nota-se que estes são
dotados do que Beck chama de efeito bumerangue. Este efeito se traduz na constatação de que
os riscos alcançam – cedo ou tarde – seus produtores e aqueles que deles obtêm lucro, ou seja:
“os atores da modernização acabam, inevitável e bastante concretamente, entrando na ciranda
dos perigos que eles próprios desencadeiam e com os quais lucram.” 55
Nestes termos,

(...) a pauperização dos riscos no Terceiro Mundo é contagiosa para os ricos


(...). As extremas desigualdades internacionais e as interdependências do
mercado global lançam os bairros pobres dos países periféricos às portas dos
ricos centros industriais. Eles convertem-se em incubadoras de uma
contaminação de alcance mundial, que – semelhante às doenças contagiosas
dos pobres na densidade das cidades medievais – tampouco preservam os
distritos ricos da aldeia global. 56

Com essas características, ainda que brevemente delineadas, é preciso analisar quais
os impactos que estes novos riscos causam quando transportados ao conhecimento da
sociedade em geral. Em efeito, a tensão causada pelo surgimento dos riscos da segunda
modernidade é que delimita a passagem da sociedade industrial para a sociedade mundial de
risco. 57

53
Idem.
54
BECK, Ulrich. Sociedade de risco..., p. 43.
55
Ibidem, p. 44.
56
Ibidem, p. 53.
57
ANDRADE, Guilherme Oliveira. O Princípio..., p. 87. “A aparição dos novos riscos como conseqüências
indesejadas e não-perseguidas do processo de modernização traz uma série de crises para a sociedade moderna.
São justamente estas crises que vão significar a extinção da sociedade industrial e sua transformação em uma
sociedade de risco. A sociedade de risco, assim, não tem sua característica essencial no surgimento dos novos
riscos globais, mas nas conseqüências que este surgimento provoca na sociedade humana.
23

Para Ulrich Beck, a sociedade industrial e a sociedade de risco se diferem,


principalmente, quanto ao conhecimento e a capacidade de autorreflexão, pelo corpo social,
dos perigos advindos da potencialização industrial da segunda modernidade58. Assim,
abandonando-se a confiança cega na modernização e em sua mensagem de que a exploração
da razão instrumental somente traria benefícios ao convívio social, destaca Anthony Giddens
que umas das principais características da modernização reflexiva, enquanto fundamentadora
da própria sociedade de risco, é a quebra da confiança na ciência.
Para este autor, a fim de se compreender estes novos riscos, é preciso que se analise a
dinamicidade que permeia este período final da modernidade59, o qual é resultado de uma

(...) separação do tempo e do espaço e de sua recombinação em formas que


permitem o „zoneamento‟ tempo-espacial preciso da vida social; do
desencaixe dos sistemas sociais (um fenômeno intimamente vinculado aos
fatores envolvidos na separação tempo-espaço); e da ordenação e
reordenação reflexiva das relações sociais à luz das contínuas entradas
(inputs) de conhecimento afetando as ações de indivíduos e grupos.60

Assim, entendendo o desencaixe dos sistemas sociais enquanto o “(...) deslocamento


das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões
indefinidas de tempo-espaço (...)”61, Giddens destaca que os dois principais instrumentos
aptos a promovê-lo são a criação das fichas simbólicas, dentre as quais se destaca o dinheiro,
e o estabelecimento dos sistemas peritos. Estes, concebidos enquanto “(...) sistemas de
excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes
material e social em que vivemos hoje (...)” 62, “(...) removem as relações sociais do contexto
em que vivemos. É o caso, por exemplo, do ato de dirigir pelas vias públicas, onde o piloto
não participou da construção daquele sistema viário, mas dele participa freqüentemente como
usuário.” 63.

58
BECK, Ulrich. La Sociedad..., p. 127.
59
Expondo de forma sistematizada, mas não menos acertada, AMARAL, Cláudio do Prado. Bases teóricas..., p.
81, informa que “para Giddens o momento atual não deve ser denominado de pós-modernidade, pois ainda
estamos na modernidade, numa fase final, em que as conseqüências estão radicalizadas e universalizadas como
nunca antes. A tendência a denominar de pós-moderno o atual período de organização social é fruto de uma
insuficiente análise da natureza da própria modernidade. Através de uma investigação institucional do
desenvolvimento social moderno, Giddens apresenta os contornos de uma ordem social nova e diferente, que
chama de „pós-moderna‟, mas que não se confunde com o que é atualmente chamado por muitos de pós-
modernidade.”.
60
GIDDENS, Anthony. As Consequências da Modernidade. Trad. Raul Fiker. São Paulo: Unesp, 1991, p. 26-27.
61
Ibidem, p. 31.
62
GIDDENS, Anthony. As Consequências..., p. 38-39.
63
AMARAL, Cláudio do Prado. Bases teóricas..., p. 82. Ainda, veja-se o que afirma GUARAGNI, Fábio André.
A função do Direito Penal e os “sistemas peritos”. In: GUARAGNI, Fábio André. CÃMARA, Luiz Antônio
24

Desta maneira, tanto as chamadas fichas simbólicas quanto os sistemas peritos


implementados na modernidade tardia dependem da confiança neles depositada pelo corpo
social. Nas palavras de Cláudio do Prado Amaral,

Tanto as fichas simbólicas como os sistemas peritos da modernidade


dependem (...) da confiança: quando se usa o dinheiro, confia-se,
simplesmente, que os outros honrem seu valor; o motorista desconhece os
sistemas mecânicos do veículo, bem como o conhecimento empregado na
construção de estradas e semáforos, mas confia no seu funcionamento
eficiente. Daí, conclui-se que as instituições da modernidade estão
essencialmente penetradas pela confiança e todos os mecanismos de
desencaixa estão relacionados a uma atitude de confiança. (...) é a própria
natureza das instituições modernas que está ligada – enraizadamente – ao
mecanismo da confiança em sistemas abstratos. 64

Foram nestes sistemas peritos, principalmente, que o cidadão comum depositou – e


deposita – sua confiança. É necessário observar que ele não o faz, muitas vezes, porque assim
escolhe. Isto porque, nas palavras de Guilherme Andrade Oliveira,

(...) durante a modernidade, o homem esteve e está em permanente contato


com os sistemas nos quais estão integrados uma série de conhecimentos
técnicos especializados, sistemas estes sobre os quais o cidadão não possui
nenhum conhecimento perito, e em cujo funcionamento deposita essa
confiança. 65

Com isso, delineia-se o seguinte cenário: de um lado, estes sistemas – enquanto parte
do desenvolvimento técnico-científico da modernidade tardia – trouxeram consigo inúmeras
benesses ao ser humano e à própria convivência social, enquanto que de outro lado, verifica-
se a produção e o surgimento de um outro leque – não menos extenso – de incertezas
fabricadas, as quais, por sua vez, escapam totalmente das instâncias de controle da ciência
atual.66

(Org.). Crimes contra a ordem econômica: temas atuais de processo e direito penal. Curitiba: Juruá, 2011, p. 77,
ao exemplificar e conceituar os sistemas peritos: “Recorro ao exemplo de uma embalagem longa-vida de leite,
consumido pela manhã. Não estive no local em que foi produzida a embalagem; tampouco presenciei o momento
em que foi produzida. Ausente o local e alheio ao momento da produção, nada testemunhei acerca da fabricação.
Desconheço a técnica, quem fez, como e quando. Tampouco entendo da engenharia empenhada no processo
fabril da embalagem. Porém, consumo o leite nela embalado, há semanas, confiando na capacidade que possui
de preservar um alimento altamente perecível e cujo consumo, acaso arruinado, pode gerar-me grave
consequência para a saúde. Consumo porque confio não em quem fez (...), mas no conjunto de conhecimentos
que o processo fabril sintetiza. Firma-se uma curiosa relação de confiança não entre homem e homem, mas entre
homem e objeto.”
64
Idem.
65
ANDRADE, Guilherme Oliveira. O Princípio..., p. 90.
66
Ibidem, p. 94.
25

Ao analisar o crescente descrédito dado pelo homem moderno ao desenvolvimento


técnico-científico, Anthony Giddens afirma que “a ciência perdeu boa parte da aura de
autoridade que um dia possuiu. De certa forma, isso provavelmente é resultado da desilusão
com os benefícios que, associados à tecnologia, ela alega ter trazido para a humanidade.” 67
A quebra de confiança nos sistemas científicos modernos, quando aliada à
constatação de que sua altíssima complexidade resulta na falência dos sistemas de seguro e
leva a um cenário de irresponsabilidade organizada68, resulta em uma sensação social de
insegurança69, ligada estreitamente à percepção e reflexão destes riscos pela própria
sociedade do risco.
Nas palavras de Jesús-María Silva Sánchez, (...) um dos traços mais significativos
das sociedades da era pós-industrial é a sensação geral de insegurança, isto é, o aparecimento
de uma forma especialmente aguda de viver os riscos.70
Para este autor, mais importante que a existência objetiva dos novos riscos – isto é,
por mais incalculáveis ou imprevisíveis que o sejam, eles existem71 -, o que caracteriza a
sociedade pós-industrial (de risco), é percepção subjetiva destas incertezas: a já citada
sensação geral de insegurança72.
Neste sentido, afirma Blanca Mendoza Buergo que um “(...) dos traços definidores
da sociedade do risco (...)” seria “(...) uma sensação de insegurança subjetiva que, (...)

67
GIDDENS, Anthony. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: BECK, Ulrich. GIDDENS, Anthony.
LASH, Scott. Modernização Reflexiva. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 2015, p. 137.
68
Estes três pressupostos, quais sejam: i) a quebra de confiança nos sistemas peritos e a perda de credibilidade
pela ciência; ii) a falência dos sistemas clássicos de cálculo e de seguro; e iii) o desenvolvimento de um cenário
de irresponsabilidade organizada, (...) onde em que pese a percepção dos novos riscos esteja cada vez mais em
evidência, as instituições modernas de imputação se tornam cada vez mais amarradas e impossibilitadas de
efetuar tais responsabilizações, em um paradoxo sem tamanho.”, são identificados em ANDRADE, Guilherme
Oliveira. O Princípio..., p. 87 e ss..
69
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades
pós-industriais. 3. Ed. rev. e atual. Trad. Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2013, p. 40.
70
Idem.
71
Ibidem, p. 37. “A sociedade pós-industrial é, além da „sociedade de risco‟ tecnológico, uma sociedade com
outras características (...) que contribuem à sua caracterização como uma sociedade de „objetiva‟ insegurança.
(...) deve ficar claro que o emprego de meios técnicos, a comercialização de produtos ou a utilização de
substâncias cujos possíveis efeitos nocivos são ainda desconhecidos e, em última análise, manifestar-se-ão anos
depois da realização da conduta, introduzem um importante fator de incerteza na vida social. O cidadão anônimo
diz: „estão nos „matando‟, mas não conseguimos ainda saber com certeza nem quem, nem como, nem a que
ritmo‟. Em realidade, faz tempo que os especialistas descartaram a excessivamente remota possibilidade de
neutralizar os novos riscos (...).”.
72
Neste ponto não se pode deixar de mencionar a posição de ADAMS, John. Risco..., p. 14, que, em resumo,
aponta que “a maioria da literatura sobre o risco insiste na distinção entre o risco „real‟ e „objetivo‟ e o risco
„percebido‟. O risco objetivo é o de domínio dos especialistas (...), ao passo que o risco percebido é aquilo em
que o resto da população acredita. Mas „risco‟ é uma palavra que se refere ao futuro, e este só existe em nossa
imaginação. Todo risco é percebido, e a percepção se baseia em crenças. O que estatísticos e atuários dominam é
história, transmutada em risco quando passa pelo filtro das crenças.”.
26

73
inclusive pode existir independentemente da presença de perigos reais.” . E continua,
dizendo que “(...) se diz que uma sociedade de risco, se por algo se caracteriza, é por ter uma
necessidade de segurança sempre em crescimento, assim como o de procurar sensações ou
impressões de segurança.” 74.
É natural que dessa insegurança sentida, conforme afirma Mendoza Buergo, a
sociedade recorra, cada vez mais, às instâncias formais de controle, exigindo que elas –
enquanto legitimadas pelo Estado – apresentem soluções e respostas à angústia sofrida frente
aos novos riscos surgidos, principalmente, na segunda modernidade. Posto de outra forma,

“o binômio risco-insegurança e, por tanto, a aversão ao risco com a


conseguinte aspiração à segurança, faz com que os indivíduos reclamem de
maneira crescente, ao Estado, a prevenção frente ao risco e a providência de
segurança.” 75

Desta forma, ante a impotência frente aos riscos demasiadamente complexos e com
altíssimo caráter danoso, a sociedade recorre não somente ao Estado de forma genérica, mas
aos setores mais gravosos de controle que dele fazem parte. É assim com a recorrente
chamada, pela sociedade, ao Direito Penal para que atue no papel de gestor dos novos riscos.
Este diagnóstico é feito, principalmente, por Silva Sánchez:

A solução para a insegurança, ademais, não se busca em seu, digamos „lugar


natural‟ clássico – o direito de polícia –, senão no Direito Penal. Assim,
pode-se afirmar que, ante os movimentos sociais clássicos de restrição do
Direito Penal, aparecem, cada vez com maior claridade demandas de uma
ampliação da proteção penal que ponha fim, ao menos nominalmente, à
angústia derivada da insegurança.” 76

73
MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal…, p. 30. Tradução livre de “(…) rasgos definitorios de la
sociedad del riesgo, esto es, una sensación de inseguridad subjetiva que, como se ha destacado, incluso puede
existir independientemente de la presencia de peligros reales.”.
74
Ibidem, p. 31. Tradução livre de “Se dice que una sociedad del riesgo si por algo se caracteriza es por tener
una necesidad de seguridad siempre en aumento, así como de procurar sensaciones o impresiones de seguridad.”.
75
Idem. Tradução livre de: “El binomio riesgo-inseguridad y, por tanto, la aversión al riesgo con la consiguiente
aspiración a la seguridad, hace que los individuos reclamen de manera creciente del Estado la prevención frente
al riesgo y la provisión de seguridad.”.
76
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão..., p. 51. Não se pode deixar, ainda, de apontar a observação
feita por GRACIA MARTIN, Luis. Prolegômenos para a luta pela modernização e expansão do direito penal e
para a crítica do discurso de resistência. Trad. Érika Mendes de Carvalho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris:
2005, p. 48-49: “Como conseqüência do desenvolvimento e do progresso científico e tecnológico, industrial e
econômico, na sociedade moderna realiza-se uma pluralidade de atividades que gozam da propriedade comum de
originar uma pluralidade de „novos‟ riscos, geralmente como conseqüências ou efeitos „secundários‟ não
desejados, a respeito dos quais, em princípio, não se pode afirmar que sejam naturais, mas que devam ser
reconhecidos como artificiais na medida em que são reconduzíveis a decisões e atividades humanas. (...)
Características desses novos riscos são tanto suas grandes dimensões como a indeterminação do número de
pessoas potencialmente ameaçadas. Essa realidade própria da dinâmica da sociedade moderna, permitira
compreender esta mesma sociedade como uma sociedade de insegurança objetiva, dimensão objetiva que ao se
27

Desta constatação surge o problema: o Direito Penal, nos moldes clássicos em que se
desenvolveu, não surgiu para fazer frente a riscos como os que são experimentados pela
sociedade do risco global. Desta forma, nascem impasses de cunho dogmático à adaptação do
sistema penal à nova realidade social. Desta adequação surge o movimento da modernização
do Direito Penal, que passa a ser objeto de análise a partir de agora. 77

combinar com a subjetiva da „insegurança sentida‟ pelos cidadãos daria lugar, finalmente, a uma situação de
„sensação geral de insegurança‟ que levaria a sociedade a uma forte demanda de segurança por parte do Estado e
que a este respondesse tal exigência com o recurso ao Direito penal mediante a criminalização de
comportamentos que se desenvolvem nas novas esferas de risco.”.
77
Mesmo que ainda não se tenha adentrado na discussão acerca de qual seria a missão do Direito Penal na
sociedade de risco, é importante consignar o alerta ligado por MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho
Penal..., p. 32: “Sin embargo se convierte em algo problemático cuando el destinatario de todas las exigencias de
seguridad por parte de la opinión pública, de los medios y de las propias autoridades es, sobre todo, el Derecho
Penal, incluyendo aquí también el Derecho procesal penal, que se ven así forzados, en un continuo proceso de
expansión destinado al control de nuevos peligros. Asumir ese papel que no les pertenece de modo prioritario ni
menos aún exclusivo, puede suponer, sin embargo, una intervención penal excesiva que abocaría, según algunos,
al desarrollo de un Estado de prevención o Estado preventivo (…). Este, frente al modelo clásico liberal, muestra
una inclinación que, partiendo de la seguridad jurídica, tiende más bien hacia la seguridad de los bienes
jurídicos, convirtiéndose así en un Estado de la seguridad (…). Con ello, se abriría un frente por el que pueden
surgir fisuras en aspectos garantistas del Derecho Penal.”.
28

2 O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

O princípio da precaução, em suas origens, remonta às premissas que balizam o


Direito Ambiental, desde seu surgimento, orientado à adoção de medidas de precaução que
visem a evitação de danos – muitas das vezes irreparáveis – ao meio ambiente. Com o
advento da sociedade de risco, e das novas situações de perigo que dela decorrem, o citado
princípio passa a se imiscuir em outros ramos do ordenamento jurídico, dentre eles, o direito
penal.
É preciso, nesta senda, uma análise da origem, evolução e dos fundamentos que
norteiam este princípio, tão caro à sociedade contemporânea que, cada vez mais, se vê
desconcertada diante das catástrofes – consumadas ou latentes – causadas pelos avanços
técnico-científicos.

2.1 ORIGEM E EVOLUÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

As ideias precautórias – ainda que não estruturadas sob as bases sólidas da


principiologia que hoje existem – precede o princípio da precaução. É o que se observa, por
exemplo, da sistemática social e política alemã dos anos 30, que trazia como uma de suas
bases fundamentais a noção de “bom manejo doméstico”, uma forma de integração entre
cidadão, economia e Estado formada para conformar a relação entre a sociedade e a natureza.
Nas palavras de Adriana Bestani, na base inicial do princípio da precaução “(...) estava
a crença de que a sociedade deve esforçar-se em evitar o dano ambiental mediante uma
cuidadosa planificação das ações futuras, paralisando o fluxo de atividades potencialmente
danosas.” 78
Na raiz semântica, o princípio da precaução decorre do vorsorgeprinzip, sua
denominação alemã. Vorsorge, na tradução, diz respeito às medidas de preparação em face de
um período futuro complicado. 79

78
BESTANI, Adriana. Principio de precaución. Buenos Aires – Bogotá: Astrea, 2012, p. 08. Tradução livre de:
“(…) en la base de las primeras concepciones de este principio estaba la creencia de que la sociedad debe
esforzarse en evitar el daño ambiental mediante una cuidadosa planificación de las acciones futuras, paralizando
el flujo de actividades potencialmente dañinas.”.
79
Ibidem, p. 09. No mesmo viés, analisa ROMEO CASABONA, Carlos Maria (Org). Principio de precaución,
bioseguridad y Derecho europeo. In: Estudios de Derecho Judicial: Genética y Derecho II. Madrid: Consejo
General del Poder Judicial, 2003, p. 169, afirmando que “neste sentido, a Vorsorge implica a constatação
precoce de todo perigo para a saúde e o meio ambiente através de uma investigação multifacetada e
sincronizada, que preste especial atenção nas relações de causa-efeito.”. Tradução livre de: “En este sentido, la
29

O princípio da precaução, como atualmente é delineado, surge na Alemanha, em 1970,


previsto em um projeto legislativo que almejava a manutenção do “ar puro”, tendo sido
positivado no artigo 5º da lei federal sobre o controle de emissões de poluentes80 . Este projeto
previa expressamente a prevenção de efeitos danosos ao meio ambiente. 81
A partir de então, ainda na Alemanha, este princípio passa a integrar outras inúmeras
leis, como é o caso da lei de ”(...) proteção contra a contaminação (1974); na lei de produtos
químicos (1980), na lei de uso da energia atômica (1980) e na lei de provas de tolerância do
meio ambiente (1985)” 82, etc.
Ainda que surgido de forma espacialmente restrita, ligando-se de forma estreita ao
direito ambiental alemão, o princípio precautório expande-se, restando previsto em um
extenso rol de declarações, conferências, tratados e convenções internacionais.
A Carta Mundial para a Natureza, elaborada em 1982 pela Organização das Nações
Unidas, marca o início deste cenário. Em seu princípio 11, item “b”, ainda que de forma
embrionária, encontra-se exarado o princípio da precaução. Veja-se:

As atividades que possam representar um risco significativo para a natureza


devem ser precedidas de uma análise exaustiva, seus proponentes devem
demonstrar que os benefícios esperados superam possíveis danos à natureza,
e onde os potenciais efeitos adversos não são completamente
compreendidos, as atividades não devem prosseguir.83

Da mesma forma ocorre na Convenção sobre o Direito do Mar, também em 1982; na


Conferência da ONU sobre a Proteção da Camada de Ozônio, em 1985; na 1ª, 2ª, 3ª e 4ª
Conferências para a Proteção do Mar do Norte, em 1984, 1987, 1990 e 1995,
respectivamente; dentre outras.
Não obstante, o princípio da precaução ganha papel de destaque internacional quando,
em 1992, insere-se como um dos princípios da declaração da Conferência das Nações Unidas
sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada na cidade do Rio de Janeiro. O
princípio 15 deste documento consignou que

Vorsorge implica la detección precoz de todo peligro para la salud y el medio ambiente una investigación
multicomprensiva y sincronizada, que preste uma especial atenção a las relaciones de causa-efecto.”.
80
WOLFRUM, Rüdiger. O Princípio da Precaução. In: VARELLA, Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia
Barros (org.). Princípio da Precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 24-25.
81
Idem.
82
BESTANI, Adriana. Principio..., p. 09.
83
ONU. Carta Mundial para a Natureza, 28/10/1982. Disponível em:
<http://www.meioambiente.pr.gov.br/arquivos/File/agenda21/Carta_Mundial_para_Natureza.pdf>. Acesso em
19 abr. 2016.
30

“(...) com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução


deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas
capacidades. Quando houver ameaças de danos graves ou irreversíveis, a
ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o
adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação
ambiental.”. 84

Na mesma oportunidade, os contornos do princípio da precaução foram adicionados ao


documento produzido na Convenção-Quadro da ONU sobre a Mudança Climática e no
Convênio Sobre a Diversidade Biológica, realizados paralelamente à Rio-92. 85
Na Europa, o princípio da precaução – ao lado do princípio do poluidor-pagador – foi
expressamente mencionado no artigo 174 do Tratado de Amsterdam, firmado em 1997, que
alterou o Tratado de Maastricht (Tratado da União Europeia). Neste dispositivo, restou
previsto que

A política da Comunidade no âmbito do ambiente terá como objetivo


alcançar um nível de proteção elevado, levando-se em conta a diversidade de
situações existentes nas distintas regiões da Comunidade. Basear-se-á nos
princípios de cautela e de ação preventiva, no princípio de correção dos
atentados ao meio ambiente, preferencialmente em sua própria fonte, e no
princípio de quem contamina paga.86

Três anos depois, em 1º de fevereiro de 2000, a União Europeia aprovou a edição da


Comunicação da Comissão das Comunidades Europeias sobre o recurso ao Princípio da
Precaução. Tal tratativa foi o primeiro texto específico sobre o princípio precautório,
84
ONU. Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, junho de 1992. Disponível em:
<http://www.meioambiente.pr.gov.br/arquivos/File/agenda21/Declaracao_Rio_Meio_Ambiente_Desenvolvimen
to.pdf>. Acesso em 19. abr. 2016.
85
ROMEO CASABONA, Carlos Maria. Principio..., p. 173. BESTANI, Adriana. Principio..., p. 11. ONU.
Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança Climática, jun. 1992. Disponível em <
http://unfccc.int/files/essential_background/background_publications_htmlpdf/application/pdf/convsp.pdf>.
Acesso em 19 abr. 2016. Em seu artigo 3, item 3, p. 08-09, a mencionada convenção previu que “as partes
deverão tomar medidas de precaução para prever, prevenir ou reduzir ao mínimo as causas da mudança climática
e mitigar seus efeitos adversos. Quando houver ameaça de dano grave e irreversível, não deverão utilizar a falta
de total certeza científica como razão para postergar tais medidas, tendo em conta que as políticas e medidas para
fazer frente ao cambio climático deverão ser economicamente viáveis a fim de assegurar benefícios mundiais ao
menor custo possível (...).” Tradução livre de “las partes deberían tomar medidas de precaución para prever,
prevenir o reducir Al mínimo las causas del cambio climático y mitigar sus efectos adversos. Cuando haya
amenaza de total certidumbre científica como razón para posponer tales medidas, teniendo en cuenta que las
políticas y medidas para hacer frente al cambio climático deberían ser eficaces en función de los costos a fin de
asegurar beneficios mundiales al menor costo posible (…).”
86
BESTANI, Adriana. Principio..., p. 12. Tradução livre de: “La política de la Comunidad en el ámbito del
ambiente tendrá como objetivo alcanzar un nivel de protección elevado, teniendo presente la diversidad de
situaciones existentes en las distintas regiones de la Comunidad. Se basará en los principios de cautela y de
acción preventiva, en el principio de corrección de los atentados al medio ambiente, preferentemente en la fuente
misma, y en el principio de quien contamina paga.”.
31

possuindo conteúdo mais amplo e profundo sobre os ideais de precaução dos quais os Estados
integrantes deveriam lançar mão. 87
Esta Comunicação entendeu o princípio da precaução, basicamente, como “(...) um
instrumento de gestão de riscos destinados apenas a situações de incerteza científica, que se
expressa na adoção de medidas orientadas a alijar as consequências potencialmente nocivas
de uma atividade, mesmo antes de se determinar cientificamente as relações de causa-efeito.”
88
.
No âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, é possível verificar que o legislador
constituinte, em 1988, não se mostrou resistente à adoção do princípio da precaução,
conferindo-lhe posição de norma constitucional, conforme se extrai do art. 225, §1º, inciso
IV, da Constituição Federal. Nas palavras de Luís Augusto Brodt e Pedro Paulo da Cunha
Ferreira,

desde uma perspectiva hermenêutica, àquele dispositivo prevê


implicitamente o princípio da precaução, o que nem de longe desprestigia a
sua afirmação política na ordem jurídica brasileira. Infere-se da norma
anunciada uma franca inclinação aos ideais de desenvolvimento sustentável,
posto que impõe a obrigatoriedade de promoção de estudos técnicos e
prévios de impacto ambiental, sempre quando se busque instalar obra ou
atividade „potencialmente causadora de significativa degradação do meio
ambiente.89

Assim sendo, os conhecidos Estudos de Impacto Ambiental, obedecendo o mandado


constitucional de proteção ao meio ambientem, se transformam em verdadeiros instrumentos
de precaução, vez que contribuem para o estabelecimento de diretrizes que são impostas aos
que desenvolvem atividades que se inserem em um “(...) espaço de incerteza científica em
relação as prováveis lesões e riscos que possam ocasionar ao meio ambiente, ainda que em
perspectiva.” 90.
De certo que o legislador não ficou adstrito ao âmbito constitucional, uma vez que o
princípio da precaução espraiou-se pela legislação infraconstitucional. É o que se extrai, por
exemplo, do art. 54, §3º, da Lei nº. 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais), que prevê punição

87
BESTANI, Adriana. Principio..., p. 12.
88
CARVALHO, Érika Mendes de. ÁVILA, Gustavo Noronha de. Princípio da Precaução e Responsabilidade
Penal em Matéria Ambiental. In: SANTIAGO, Nestor Eduardo Araruna; SANTOS, Nivaldo dos; GUARAGNI,
Fábio André (orgs.). Direito Penal e criminologia. Florianópolis: FUNJAB, 2013. vol. 1, p. 182.
89
FERREIRA, Pedro Paulo da Cunha; BRODT, Luís Augusto Sanzo. O Princípio da Precaução e o Direito
Penal. Revista dos Tribunais (São Paulo. Impresso), v. 956, p. 119-167, 2015, p. 127.
90
FERREIRA, Pedro Paulo da Cunha; BRODT, Luís Augusto Sanzo. O Princípio..., p. 127.
32

àquele que, quando exigido da autoridade competente, deixa de observar as “(...) medidas de
precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível.”91.
No mesmo sentido se observa quanto ao disposto na Lei 11.105/2005 (Lei de
Biossegurança), que se dedicou à regulamentação do art. 225, §1º, incisos II, IV e V, da
Constituição Federal. Indo além, esta legislação previu regras securitárias e mecanismos de
verificação de atividades envolvidas no manejo de organismos geneticamente modificados e
de seus insumos, bem como reestruturou a própria Comissão Técnica Nacional de
Biossegurança (CNTBio). Percebe-se que

A afinidade da referida legislação para com o princípio da precaução é


tamanha, que o legislador reservou, logo ao art. 1º um espaço para sua
manifesta expressão. Segundo seu preceito, as diretrizes do princípio servem
de estímulo “ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia,
a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal”, demais de sua
observância “para a proteção do meio ambiente. 92

Conclui-se, nesta senda, que o princípio da precaução, ainda que surgido inicialmente
de forma restrita ao Estado alemão, na década de 70, emprestou seus ideais precautórios às
mais diversas legislações e tratativas de caráter internacional, adentrando, com isso, em
inúmeros ordenamentos jurídicos, dentre eles, o brasileiro.

2.2 CONTEÚDO E PRESSUPOSTOS DE APLICAÇÃO

O princípio da precaução liga-se intimamente ao contexto da sociedade de risco, com


ênfase à ideia de modernização reflexiva, onde a sociedade se vê diante dos riscos que foram
produzidos anos a fio e que, na atualidade, passam a demonstrar seu caráter contingencial,
podendo se converter em verdadeiros danos de magnitude inimaginável93.

91
Idem.
92
Idem.
93
ANDRADE, Guilherme Oliveira. O Princípio..., p. 112. No mesmo sentido, BESTANI, Adriana. Principio...,
p. 01-02, observa que “a biotecnologia, a experimentação genética, o impacto ambiental derivado de atividades
que envolvem diversas classes de energia, etc., têm aumentado imensamente a potencialidade de sofrer danos.
Estes se particularizam por serem graves, irreversíveis, coletivos, com uma projeção espaço-temporal de uma
magnitude até agora desconhecida e, quando envolvem bens fora do comércio, não quantificáveis
economicamente.”. Tradução livre de: “La biotecnología, la experimentación genética, el impacto ambiental
derivado de actividades que involucran distintas clases de energía, etc., han acrecentado inmensamente La
potencialidad de sufrir daños. Éstos se particularizan por ser graves, irreversibles, colectivos, con una proyección
espacio-temporal de una magnitud hasta ahora desconocida y, cuando involucra bienes fuera del comercio, no
evaluables económicamente.”
33

Fábio André Guaragni, analisando este cenário, observa que, até o fim do século XIX,
“a fé na ciência impeliu a humanidade a apostar num promissor mundo de conforto para
todos. A perspectiva de tornarmo-nos homens cercados de bens e serviços facilitadores do
dia-a-dia (...) gerava fascínio (...).” 94. No entanto, aponta o autor,

a fé na razão escondia (...) tanto a potência letal destes mesmos instrumentos


tecnológicos, que seria dada a conhecer nos conflitos armados que
pontuaram o transcurso do século XX, como os riscos que portavam como
efeitos colaterais, capazes, v.g., de tornar temerária a preservação de
ecossistemas (...) ou ameaçar coletivamente a saúde humana (...). 95

Dentre esta gama de danos potenciais,

(...) se encontram riscos que apresentam novos contornos; são riscos cuja
característica diferencial é a de não serem mensuráveis, cientificamente
verificáveis, detectáveis através de bases de cálculos probabilísticos ou
estatísticos; riscos cuja existência não pode ainda ser provada
cientificamente, mas que se suspeita, com boas razões, que podem chegar a
existir. 96

Assim, é possível afirmar que caiu por terra a crença típica da sociedade industrial
primária, de fins de século XIX, a qual se baseava na ideia de que os danos ocorridos seriam
reparáveis. Neste sentido, notou-se que com

(...) o advento dos riscos tecnológicos demonstrou justamente o contrário, ou


seja, que nem todos os danos podem ser reparados, de forma que tal
paradigma vem a ser substituído por outro, qual seja o paradigma da
proteção antecipada contra eventuais danos futuros.97

É desta constatação, qual seja, a de que os danos que advêm do uso indiscriminado das
modernas tecnologias demonstram-se, em sua essência, irremediáveis e, no mais das vezes,

94
GUARAGNI, Fábio André. A Função..., p. 74.
95
Ibidem, p. 75.
96
BESTANI, Adriana. Principio..., p. 02. Tradução livre de: “(...) se encuentran riesgos que presentan nuevos
ribetes; son riesgos cuya característica diferencial es la de no ser mensurables, científicamente verificables,
detectables sobre la base de cálculos de probabilidades o estadísticas; riesgos cuya misma existencia no puede
aún probarse científicamente pero que se sospecha, con buenas razones, que pueden llegar a existir.”
97
ANDRADE, Guilherme Oliveira. O Princípio..., p. 112-113. Ainda, o autor aduz que, “de fato, se durante
muito tempo eventuais medidas apenas eram tomadas após a concretização de um dano, a partir da década de
oitenta esta atitude passa a ser substituída por outra mais cautelosa, que leva em conta as incertezas que
envolvem as premissas científicas e os potenciais danos, muitas vezes irreparáveis, qu podem resultar da atuação
negligente e imprudente frente aos avanços tecnológicos.”
34

imprevisíveis sob a ótica da ciência, que se abre espaço para a adoção do princípio da
precaução. Este princípio, como bem define Adriana Bestani,

(...) supõe que, quando existam suspeitas fundadas acerca de que algum
produto ou atividade possa constituir um perigo de dano grave e irreversível,
ainda que não se tenha à mão uma prova definitiva ou contundente da
existência do próprio risco, esta falta de certeza científica não deverá ser
utilizada como razão para postergar a adoção de medidas eficazes para
impedir que o dano se produza. Ele ordena tomar as medidas permitidas,
sobre a base de um custo econômico e social aceitáveis, detectar e avaliar o
risco, reduzi-lo a um nível aceitável e, se for possível, eliminá-lo, assim
como informar as pessoas implicadas acerca deste risco.98

A irreversibilidade e a imprevisibilidade dos danos oriundos das incertezas fabricadas


na sociedade de risco são exatamente as características que fundamentam e possibilitam a
aplicação do princípio da precaução. É inclusive neste ponto que a precaução de diferencia da
prevenção.
Erroneamente utilizados como sinônimos, os princípios da precaução e da prevenção,
apesar de conceitualmente muito próximos, diferenciam-se pontualmente. Em relação às suas
semelhanças, Adriana Bestani observa que

Ambos [os princípios] tendem ao cuidado e evitação de danos irreversíveis


(...); em sua aplicação prática, ambos implicam impor restrições-proibições
às atividades arriscadas com bases científicas e avaliações “preliminares”
para assegurar a proteção ambiental – ainda que postergando benefícios
econômicos e de desenvolvimento –, dado que a alteração ou dano
ambiental, se acontecer, pode chegar a ser irreversível; ambos supõem uma
atuação com a devida diligência no bom governo da coisa pública
salvaguardando interesses públicos e privados; ambos supõem que o
causador ou provável causador do dano tenha, a seu cargo, que provar a
inocuidade do produto, processo ou atividade (inversão da carga probatória
ou princípio da carga probatória dinâmica) e ambos se interrelacionam com
outros princípios ambientais tais como o da sustentabilidade, da
solidariedade inter-geracional, da informação pública e supõem sua
aplicação e respeito.99

98
BESTANI, Adriana. Principio..., p. 03. Tradução livre de: “(...) supone que, cuando existan sospechas
fundadas acerca de que algún producto o actividad pueda constituir un peligro de daño grave e irreversible, aun
cuando no se tenga a mano una prueba definitiva o contundente de la existencia misma de tal riesgo, esta falta de
certidumbre científica no deberá utilizarse como razón para postergar la adopción de medidas eficaces para
impedir que el daño se produzca. Él ordena tomar las medidas que permitan, sobre la base de un costo
económico y social aceptable, detectar y evaluar el riesgo, reducirlo a un nivel aceptable y, si es posible,
eliminarlo, así como informa a las personas implicadas acerca del riesgo mismo.”
99
BESTANI, Adriana. Principio..., p. 18. Tradução livre de: “Ambos tienden al cuidado y evitación de daños
irreversibles en el patrimonio ambiental público; en su aplicación práctica, ambos implican imponer
restricciones-prohibiciones a las actividades riesgosas sobre bases científicas y evaluaciones “preliminares” para
35

Já com vistas às suas diferenças, nota-se que o princípio da prevenção relaciona-se


com ações e decisões humanas que buscam evitar um dano antes de tentar repará-lo ou
diminuir seus impactos. O atuar preventivo pressupõe o conhecimento científico em níveis de
suficiência que possibilite a constatação precisa de quais serão as consequências derivadas
pela opção de uma ou outra forma de agir ou decidir. Em outras palavras: “(...) a própria
análise do risco é, em si mesma, uma ferramenta preventiva, já que o que se pretende é lidar
com riscos que foram previamente mensurados.” 100
A seu turno, a aplicação do princípio da precaução, nas palavras de Hannot Rodríguez,

não denota um conhecimento, nem sequer probabilista, acerca das possíveis


consequências de nossas ações [e decisões], uma vez que atua sobre um
contexto de incerteza. Isto é, precaução significa aqui prevenção ante uma
ameaça ou conjunto de ameaças cuja possibilidade é incerta.101

Assim, o terreno sobre o qual se move o princípio da precaução, para além da


gravidade do dano – quase sempre irreversível –, é fundado sobre um dos pilares da sociedade
de risco: a falibilidade da ciência e das novas tecnologias. Isto porque, a razão técnico-
científica, até pouco tempo exaltada, não consegue mais acompanhar a produção dos riscos
oriundos de sua evolução. Mais: não consegue, sequer, prever a ocorrência de tais danos,
gerando uma enorme e concreta onda de incertezas científicas.
Sobre estas diferenças conceituais, Adriana Bestani afirma, de forma direta, mas nem
por isso menos criteriosa, que “(...) o princípio da prevenção se da em relação com o perigo
concreto; no PP [princípio da precaução], a prevenção dirige-se ao perigo abstrato.” 102

asegurar la protección ambiental – aun posponiendo beneficios económicos y de desarrollo –, dado que la
alteración o daño ambiental, de acontecer, puede llegar a ser irreversible; ambos suponen actuar con debida
diligencia en el buen gobierno de la cosa pública salvaguardando intereses públicos y privados; ambos suponen
que el dañador o probable dañador tenga a su cargo probar la inocuidad del producto, proceso o actividad
(inversión de la carga probatoria o principio de la carga probatoria dinámica) y ambos se interrelacionan con
otros principios ambientales tales como el de sustentabilidad, el de solidaridad intergeneracional, el de
información pública y suponen su aplicación y respeto.”
100
RODRÍGUEZ, Hannot. Riesgo y principio de precaución: hacia una cultura de la incertidumbre. Revista
Catalana de Seguretat Pública. n. 13, 2003. p. 139-161, p. 149. Tradução livre de: “(...) el próprio análisis Del
riesgo ES ya por sí mismo una herramienta preventiva, ya que aquí lo que se pretende es tratar con unos riesgos
que previamente han sido medidos.” BESTANI, Adriana. Principio…, p. 19, por sua vez, afirma que “a
prevenção é uma conduta racional frente a um mal que a ciência pode objetivar e mensurar, ou seja, que se move
dentro das certezas da ciência.”. Tradução livre de: “La prevención es una conducta racional frente a un mal que
la ciencia puede objetivar y mensurar, o sea que se mueve dentro de las certidumbres de la ciencia.”
101
RODRÍGUEZ, Hannot. Riesgo y principio..., p. 149.
102
BESTANI, Adriana. Principio..., p. 21.
36

Com estas considerações, e a fim de se compreender de forma clara o campo de


atuação do princípio da precaução, é preciso delimitar as condições que, caso presentes,
franqueiam o recuso ao mencionado princípio.

2.2.1 Pressupostos de aplicação

O princípio da precaução, e as medidas de que dele decorrem, não se aplica a toda e


qualquer situação de risco, mas tão somente àquelas que são frutos de decisões e condutas
realizadas em um âmbito de incerteza científica, cujos danos potenciais sejam graves e
irreversíveis. Em efeito, aponta Carlos Maria Romeo Casabona que

O princípio da precaução toma como ponto de partida a concatenação destes


pressupostos: a possibilidade de que condutas humanas causem danos
coletivos vinculados a situações catastróficas que possam afetar um conjunto
de seres vivos – por um lado –, e a falta de evidência científica (incerteza) a
respeito da existência do dano temido, por outro. 103

Apesar das divergências doutrinárias acerca da caracterização do dito princípio104,


emergem, de forma mais completa que a veiculada por Carlos Maria Romeo Casabona, três
principais características do princípio da precaução. Assim, para Adriana Bestani, este
princípio traz, enquanto elementos caracterizadores, a incerteza científica, a avaliação
científica quanto ao risco de ocorrência do dano, e o nível de gravidade deste dano, que deve
ser – como apontado – grave e irreversível.105
Do exposto, é possível reduzir as características do princípio da precaução a duas
categorias principais: a incerteza científica e a gravidade (e/ou irreversibilidade) do dano.
103
ROMEO CASABONA, Carlos Maria. Principio..., p. 163. Tradução livre de: “(...) el principio de precaución
toma como punto de partida la concatenación de esos dos presupuestos: la posibilidad de que conductas humanas
causen daños colectivos vinculados a situaciones catastróficas que puedan afectar un conjunto de seres vivos –
por una parte –, y la falta de evidencia científica (incertidumbre) respecto a la existencia misma del daño temido
– por otra –.”.
104
Sobre a multiplicidade – nem sempre consensual – acerca da conceituação e caracterização do princípio da
precaução, cf. BESTANI, Adriana. Principio..., p. 22-25.
105
BESTANI, Adriana. Principio..., p. 29. “Em efeito, apesar das divergências sobre suas diversas formulações,
existem vários elementos que a maioria destas definições têm em comum. Entre eles, há um consenso sobre
aqueles tidos como típicos ou específicos do princípio analisado: 1) a incerteza científica, característica
fundamental do princípio que o difere da prevenção; 2) a avaliação (científica) do risco de produção de um dano,
e 3) o nível de gravidade do dano (o dano deve ser grave e irreversível, pois do contrário de paralisariam
indiscriminadamente o desenvolvimento).”. Tradução livre de: “En efecto, a pesar de las divergencias sobre sus
diversas formulaciones, hay varios elementos que la mayoría de las definiciones tienen en común. Entre ellos,
hay consenso sobre unos que han sido concebidos como típicos o específicos del principio analizado: 1) la
incertidumbre científica, carácter fundamental del principio que lo diferencia de la prevención; 2) la evaluación
(científica) del riesgo de producción de un daño, y 3) el nivel de gravedad del daño (el daño debe ser grave e
irreversible, pues de lo contrario de paralizaría indiscriminadamente el desarrollo).”.
37

2.2.1.1 A incerteza científica

A fim de limitar o âmbito de alcance da incerteza sobre a qual se orienta o princípio da


precaução, observa-se que este não deve ser aplicado quando for possível conhecer os perigos
latentes de um produto ou técnica – ainda que não se tenha ciência da sua exata medida – ou
quando houver uma probabilidade da ocorrência de um determinado risco. Em verdade, o
princípio precautório atua em face de uma “(...) incerteza verdadeira, na qual um evento não
pode ser antevisto por uma probabilidade empírica, seja por falta de estudos a respeito, ou
porque a complexidade da situação pode tornar o evento único.” 106
Carlos Maria Romeo Casabona, ao tratar do assunto, observa que a incerteza científica
que rege o princípio da precaução relaciona-se com várias situações “(...) que vão desde a
relação de causalidade entre o ato e seus efeitos, passando pela própria realidade do dano,
assim como sua medida e quantificação do risco ou do dano.” 107.
Com isso, constata-se que o nível de incerteza sobre o qual se constrói o princípio da
precaução é científico, ou seja, fundado em paradigmas e práticas protocolares dominantes e
aceitas pela comunidade científica como válidas. Nesta senda, “(...) para que possa aventar a
aplicação do Princípio da Precaução, é necessário que a suspeita acerca da periculosidade vá
além de um mero “palpite”, ou seja, que tenha base científica.” 108.
Nas palavras de Pierpaolo Cruz Bottini, portanto,

a incerteza científica é caracterizada pelo não reconhecimento da validade de


uma tese por diversos motivos, dentre os quais a falta de consenso sobre uma
variável que a compõe, sobre as medidas utilizadas para comprová-la, sobre
as amostras tomadas para testá-la, ou sobre os modelos utilizados para sua
elaboração.109

106
BESTANI, Adriana. Principio..., p. 65. Tradução livre de: “(...) incertidumbre verdadera, en la que a un
suceso no se le puede asignar una probabilidad empírica, bien sea por falta de estudios al respecto, o porque la
complejidad de la situación puede convertir al suceso en único.”
107
ROMEO CASABONA, Carlos Maria. Principio..., p. 163. Tradução livre de: “(...) que van desde la relación
de causalidad entre el acto y sus efectos, pasando por la realidad misma del daño, así como la medida, la
cuantificación del riesgo o del daño.”.
108
ANDRADE, Guilherme Oliveira. O Princípio..., p. 120. No mesmo sentido preleciona BESTANI, Adriana.
Principio..., p. 69, ao afirmar que o princípio da precaução não se aplica “em casos de especulações vagas a
respeito dos possíveis efeitos danosos, sem – ao menos – poder expressá-las de forma científica como cenários
possíveis, baseadas em alguma evidência empírica, em alguma hipótese plausível (...).”. Tradução livre de: “en
casos de vagas especulaciones respecto de los posibles efectos dañosos, sin – por lo menos – poder expresarlos
de modo científico como escenarios posibles, basados en alguna evidencia empírica, en alguna hipótesis
plausible (…).”
109
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Princípio da Precaução, Direito Penal e Sociedade de Risco. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, São Paulo, 2006, v. 61, p. 44-121, p. 57.
38

Desta maneira, quando os métodos e consensos científicos dominantes – ao menos em


110
regra – não forem capazes de determinarem a periculosidade ou a inocuidade da tecnologia,
produto ou técnica em análise, afirma-se que se está diante de uma situação de incerteza
científica e, neste caso, é possível que as medidas de precaução possam ser aplicadas a fim de
evitar que o dano seja consumado.

2.2.1.2 A gravidade do dano

A seu turno, a veiculação do princípio da precaução é estritamente relacionada à


natureza do dano que possa advir do risco produzido pelo manejo das novas técnicas,
produtos ou tecnologias. Com isto, note-se que “(..) a aplicação do princípio e de suas bases
está condicionada a presença de um risco cuja potencialidade comporte condições de se
desdobrar em danos graves, efetivos e irreparáveis ao ambiente e aos seus recursos naturais.”
111

A necessidade de que o dano seja grave serve, ainda, como fator limitador à aplicação
do princípio de comento. Isto porque, acaso o dano oriundo da decisão humana produtora do
risco não fosse grave, descaberia a aplicação de medidas precaucionais, haja vista que estas
possuem um alto caráter limitador de liberdades e direitos individuais, trabalhistas, comerciais
e industriais. 112
Como ressalta Adriana Bestani, não há atualmente um consenso sobre a gravidade,
enquanto característica do dano que enseje a chamada ao princípio da precaução. Para
fundamentar esta afirmação, a autora afirma que

Não há consenso quanto a esta qualificadora “grave” nas distintas


formulações que se têm feito sobre o princípio. Assim, algumas se referem a
“efeitos danosos ou perigosos”, a danos “sérios” ou “sérios e irreversíveis”, a
“danos globais, irreversíveis e transgeracionais”, ou à “magnitude” dos
danos potenciais. 113

110
BESTANI, Adriana. Principio..., p. 85, constatando que nem sempre serão os paradigmas científicos
majoritariamente dominantes que determinarão a presença da incerteza cientifica, afirma que “(...) ainda que a
posição científica adversa seja sustentada por uma fração minoritária da comunidade científica, esta deve ser
considerada quando essa fração goze de credibilidade e reputação.”. Tradução livre de: “(...) aunque la posición
científica adversa sea sostenida por una fracción minoritaria de la comunidad científica, debe ser considerada
cuando esa fracción goce de credibilidad y reputación.”.
111
FERREIRA, Pedro Paulo da Cunha; BRODT, Luís Augusto Sanzo. O princípio..., p. 128.
112
BESTANI, Adriana. Principio..., p. 37.
113
Ibidem, p. 38. Tradução livre de: “No hay consenso en apelar a este calificativo de “grave” em las distintas
formulaciones que se han dado del principio. Así, algunas se refieren a “efectos dañosos o peligrosos”, a daños
39

Apesar das diversas qualificações que possam ser complementares à noção de dano
grave, é interessante a conclusão exarada no Informe da Unesco sobre o Princípio da
Precaução, produzido em 2005 pela Comissão Mundial de Ética, Conhecimento Científico e
Tecnologia (COMEST). O mencionado documento informa que o dano será grave quando for
“(...) suficientemente sério, irreversível para as presentes ou futuras gerações ou ainda
moralmente inaceitável.” 114
Por moralmente inaceitável, o enunciado relatório entende o dano apto a ameaçar a
vida ou saúde humana; ou que seja sério e efetivamente irreversível; ou injusto às presentes
ou futuras gerações; ou, por fim, que seja imposto sem que se leve em conta os direitos
humanos daqueles que possam ser afetados. 115
De qualquer forma, consolida-se a opinião de que o dano que possibilite a intervenção
com medidas precautórias deve ser, portanto, nas palavras de Carlos Maria Romeo Casabona,
abstratamente grave, levando-se em conta sua aptidão de atingir uma coletividade – local ou
globalmente considerada – assumindo dimensões catastróficas. 116
Além disso, o dano, além de grave, deve ser – como já firmado – irreversível. Sobre
esta característica, as lições de Pedro Paulo da Cunha Ferreira e Luís Augusto Sanzo Brodt:

A degradação resultante de uma fonte perigosa in casu deve denunciar uma


magnitude e apresentar um conteúdo irreversível. Apenas desde essas bases
(...) se pode cogitar uma medida de cuidado consentânea à legalidade da
precaução. (...) O elevado (...) grau de lesividade da conduta, substância ou
produto é o elemento primordial para aferir sob todas as possíveis
perspectivas, os efeitos (in)diretos e (i)mediatos que circundam a concreta
impossibilidade (ou dificuldade) de se regressar (...) ao status quo ante à real
lesão (...). 117

Uma vez delimitadas, ainda que brevemente, as características fundamentadoras do


princípio da precaução, nesta altura é preciso observar que tais elementos – a incerteza

“serios e irreversibles”, a “daños globales, irreversibles y transgeracionales”, o a “la magnitud” de los daños
potenciales.”.
114
UNESCO – World Comission on the Ethics of Scientific Knowledge and Technology. The Precautionary
Principle. Paris, mar. 2005, p. 31. Disponível em: <unesdoc.unesco.org/images/0013/001395/139578e.pdf>.
Acesso em 23 abr. 2016. Tradução livre de: “(...) sufficiently serious or even irreversible for present or future
generations or otherwise morally unacceptable.”
115
Ibidem, p. 14.
116
ROMEO CASABONA, Carlos Maria. Principio..., p. 163. A gravidade, como ditam FERREIRA, Pedro
Paulo da Cunha; BRODT, Luís Augusto Sanzo. O princípio..., p. 128, não se constitui “(...) um mero indício,
despido de qualquer fundamentação relevante, alude-se, sim a uma potencialidade tal, cuja dimensão não
justifica, tampouco exige maiores certezas de seus efeitos para a adoção de medidas corretivas.”
117
FERREIRA, Pedro Paulo da Cunha; BRODT, Luís Augusto Sanzo. O princípio..., p. 128-129.
40

científica e a gravidade do dano – não só servem de base para a aplicação das medidas
precaucionais, mas também fomentam as criticas dirigidas ao princípio em comento.

2.3 CRÍTICAS AO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

A multiplicidade de definições e a falta de consenso sobre seus pressupostos de


aplicação, rendeu ao princípio da precaução a crítica que reputa seu conteúdo – e, por
conseguinte, as medidas precautórias como um todo – como vago e impreciso, estando eivado
de altos níveis de ambiguidade 118. Em sua obra, Adriana Bestani elenca algumas das dúvidas
conceituais que embasam estas críticas. A título de exemplo, “os autores se perguntam ao que
se refere a falta de certeza (se à relação de causalidade ou a possibilidade de existência do
dano) e se é necessário que o dano seja grave e irreversível ou se basta simplesmente a ideia
geral de dano.” 119
Tais críticas, no entanto, não merecem guarida. E os argumentos para tanto são
trazidos, principalmente, pelas lições de Adriana Bestani.
Em primeiro lugar, é fato que o princípio da precaução insere-se no direito
consuetudinário internacional, de onde surgiu e no âmbito do qual se desenvolveu. Neste
meio, é muito comum que um mesmo termo seja definido de formas diferentes nos bojo dos
mais variados documentos internacionais, inclusive no tocante aos seus elementos
fundamentadores. Dito isto, anota-se que o princípio precautório não foge a regra. 120
Esta dificultosa delimitação conceitual, no entanto, não pode servir de óbice para alijar
o princípio da precaução das situações em que os riscos produzidos possam tornar-se danos
efetivos de proporções imensuráveis e irreversíveis. É o que informa Adriana Bestani,
baseando-se no já mencionado Informe da Unesco sobre o princípio da precaução:

(...) a aplicação do PP [princípio da precaução] ocorre em distintas áreas do


conhecimento e está se aperfeiçoando e se transformando em uma norma
consuetudinária (...) [sendo que] dentre os princípios derivados das
declarações internacionais, o PP [princípio da precaução] é juridicamente
pertinente e não pode ser menosprezado pelos países em um plano
internacional, nem pelos legisladores, os responsáveis pela elaboração de
políticas públicas, nem tampouco pelos tribunais na esfera intera. 121

118
BESTANI, Adriana. Principio..., p. 25.
119
Idem.
120
Ibidem, p. 25-26.
121
BESTANI, Adriana. Principio..., p. 26-27. Tradução livre de: “(...) la aplicación del PP ocurre en distintas
áreas del saber y se está perfeccionando y transformando en una norma consuetudinaria (…) entre los principios
dimanantes de las declaraciones internacionales, el PP es jurídicamente pertinente y no puede ser desestimado
41

Além disso, não se pode olvidar que a precaução é, em verdade, de um princípio, e


como tal, aplica-se de maneira casuística, ou seja, de acordo com o caso concreto analisado.
Nas palavras de Adriana Bestani,

se trata (...) de um princípio que, como tal, não é vago; é uma norma geral
que tem como qualidade a sua aplicabilidade a diferentes situações, o que,
longe de ser um defeito, é a característica típica dos princípios. Como todo e
qualquer princípio, o da precaução não é uma decisão matemática (...); não
se pode garantir a coerência entre casos, e cada situação terá um resultado
segundo suas específicas circunstâncias.122

Por fim, e de certo modo decorrente da própria natureza casuística dos princípios, é
preciso observar que as medidas precaucionais e dos fins buscados pelo princípio da
precaução como um todo podem variar – e variam – de acordo com o contexto ao qual são
aplicados.
Assim, “ainda que os Estados possam aderir ao PP [princípio da precaução] como um
princípio comum ao gerenciamento de incertezas e riscos, o PP [princípio da precaução] pode
123
ser aplicado de forma diferente nos limites de cada cultura.” . Somente desta forma será
possível atingir os objetivos buscados pela precaução - em última instância, evitar a
ocorrência de danos graves e irreversíveis –, haja vista que “(...) o PP [princípio da precaução]
propõe-se assistir o risco tolerável, aceitável pela sociedade, e tais riscos ou seu nível de
tolerância ou aceitabilidade podem não ser os mesmos ao longo das diversas culturas e
sociedades.” 124
Além disso, cabe aqui a análise do binômio frequência x magnitude, aferível no bojo
da observação dos riscos que, em particular, são tratados pelo princípio da precaução. É

por los países en el plano internacional, ni por los legisladores, los responsables de la elaboración de políticas, ni
tampoco por los tribunales en la esfera interna.”.
122
BESTANI, Adriana. Principio..., p. 27-28. Tradução livre de: “Se trata (...) de un principio que, como tal, no
es vago; es uma norma general que tiene por cualidad su aplicabilidad a distintas situaciones, lo que, lejos de ser
un defecto, es la característica típica de los principios. Como todo otro principio, el de precaución no es una
decisión de algoritmo (…); no puede garantizar la coherencia entre casos, y casa caso será resuelto según sus
especificas circunstancias.”.
123
UNESCO – World Comission on the Ethics of Scientific Knowledge and Technology. The Precautionary
Principle. Paris, mar. 2005, p. 42. Disponível em: <unesdoc.unesco.org/images/0013/001395/139578e.pdf>.
Acesso em 23 abr. 2016. Tradução livre de: “Even though States may adhere to the PP as a common principle
for the management of uncertainty and risks, the PP may be administered differently within the bounds of
different cultures.”
124
BESTANI, Adriana. Principio..., p. 28. Tradução livre de: “(...) el PP supone atender al riesgo tolerable,
aceptable por la sociedad, y pueden no resultar similares los riesgos o los niveles de tolerancia o aceptabilidad en
las distintas culturas y sociedades.”.
42

possível que um evento arriscado traga consigo uma elevada magnitude – até mesmo
imensurável pelo saber nomológico atual – e baixa incidência, como é o caso de um acidente
nuclear. De outro lado, a situação danosa advinda de um risco pode possuir baixa ou
baixíssima magnitude e, em contrapartida, ocorrer em elevada quantidade, como se percebe,
v.g., dos acidentes de trânsito.
A um primeiro olhar, os eventos que ensejam a aplicação do princípio da precaução
parecem ser aqueles que, a despeito da baixa ocorrência, podem causar danos de magnitude
imensurável, até mesmo desconhecida sob a ótica científica. E considerando esta hipótese,
indaga-se se os ideais precautórios não poderiam, também, se estender aos eventos cotidianos,
quase diários, mas que não possuem a magnitude suficiente à chamada do anunciado
princípio. De qualquer sorte, ainda que não tão danosos quanto os acidentes nucleares, os
acidentes de trânsito, também trazem consigo condutas de risco cujas consequências, algumas
vezes, não são claramente conhecidas e que, apesar disso, ocorrem quase todo dia.
Não obstante as elencadas críticas, conclui-se que o princípio da precaução, ainda que
se encontre – a certo nível – em fase de construção teórica, se põe à frente como instrumento
apto a identificar, gerenciar e, o mais importante, nulificar ou reduzir a um patamar aceitável
os riscos oriundos do manejo de técnicas e produtos técnico-científicos. Somente lançando
mão das medidas precautórias é possível falar-se em um verdadeiro enfrentamento de tais
riscos, que, acaso não controlados, podem resultar em danos de gravíssima magnitude,
afetando de forma irreversível bens jurídicos asseguradores do regular e saudável convívio
humano em sociedade.
43

3 HÁ CAPACIDADE DE RENDIMENTO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO NO


ÂMBITO DO DIREITO PENAL?

3.1 O MOVIMENTO DE COMPATIBILIZAÇÃO ENTRE O DIREITO PENAL E OS


“NOVOS RISCOS”

A partir do momento em que a sociedade de risco, da insegurança subjetivamente


sentida, lança mão do Direito Penal como instrumento elegido para o combate dos novos
riscos e das situações problemáticas que deles decorram, coloca-se em xeque todo o
arcabouço dogmático-penal. Indaga-se: é possível que os institutos atuais do direito penal
continuem adequados para o enfrentamento destas situações excepcionais? Os bens jurídicos
individuais, identificados principalmente no âmbito de um direito penal liberal típico dos
séculos XVIII e XIX, continuam sendo os únicos passíveis de proteção penal?
O processo de modernização pelo qual passa o direito penal atual liga-se, desta forma,
intimamente com os modelos sociológicos desenvolvidos, dentre eles o da sociedade de risco.
Isto porque, “é impossível dar tratamento penal aos atuais fatos sem um devido diálogo
sociológico.” 125.
Para Luis Gracia Martin, este processo modernizante deve ser analisado sob uma
perspectiva histórica, assim como foi feito com o direito penal “tradicional”, arraigado em
matrizes liberais do século XVIII. Para este autor,

até bem pouco tempo a denominação „Direito penal moderno‟ fazia remissão
de imediato e com precisão ao modelo penal derivado, em seus traços
fundamentais, das invenções políticas e jurídicas formais do movimento da
Ilustração de fins do século XVIII e princípios do XIX. O Direito penal da
ilustração mereceu, sem dúvida, a qualificação de „moderno‟ na medida em
que o mesmo implicou na ruptura com o Direito Penal do Ancien Régime,
da Monarquia Absoluta, em todos os seus aspectos substanciais, ou seja, na
legitimação e limitação tanto do conteúdo do ius poenale como do exercício
do ius puniendi, assim como também dispositivos institucionais e
instrumentais para a realização daqueles.126

Desta maneira, é preciso compreender que o Direito Penal hodierno possui sua
adequação e sua validade intimamente ligadas com o modelo social no qual se insere. Na

125
ANDRADE, Andressa Paula de. FERREIRA, Pedro Paulo da Cunha. Modernização do Direito Penal:
diálogos interdisciplinares. Revista dos Tribunais Sul. v. 4. São Paulo, mar-abr. 2014, p. 305.
126
GRACIA MARTIN, Luis. Prolegômenos..., p. 38.
44

medida em que este modelo se altera, sua dogmática também deve se modificar. Isto porque,
desde o discurso iluminista clássico, cabia – e ainda cabe – ao direito penal

(...) a proteção das condições básicas de subsistência da sociedade, e, em


segundo lugar porque, sobretudo, a maior parte destas condições de
subsistência não constituem nenhum material com validez a priori
atemporal porque só podem ser definidas como formações e invenções
históricas resultantes das condições de possibilidade – e, nesse sentido, sim
constituem um a priori, mas histórico – de um determinado modelo de
sociedade unicamente histórico e de nenhum outro. 127

Com isso, não seria de todo mal afirmar que o Direito penal moderno pode ser
concebido como o “conjunto integrado pelas novas figurar delitivas acrescentadas às
legislações penais e pelas modificações (...) das tradicionais, com o fim (...) de estender a
intervenção penal a condutas e âmbitos da realidade social presente que estavam isentos de
punição no sistema penal tradicional (...)” 128.
Como uma das teorias emblemáticas da modernização penal, ilustrando esta
interdependência entre o Direito penal e o modelo social no qual ele se insere, bem como a
necessidade de revestir seus institutos dogmáticos com nova roupagem quando diante, v.g.,
dos novos riscos, Jesús-María Silva Sánchez sugere, em sua obra, um modelo de Direito penal
de velocidades. De forma muito breve, para o autor, haveria, basicamente, um direito penal de
duas velocidades129:
a) A primeira velocidade permaneceria restrita a um núcleo rígido, voltado à proteção
dos tradicionais bens jurídicos individuais, respeitando-se os critérios clássicos de imputação
e todas as garantias individuais. Em consequência, seria plenamente admitida a imposição de
uma pena privativa de liberdade, a sanção penal por excelência.
b) De outro lado, um direito penal de segunda velocidade, orientado – aí sim - à
proteção preventiva de bens jurídicos supraindividuais, poderia se operar nas bases
relativizadas dos critérios de imputação clássicos e dos princípios penais de garantia
(legalidade, v.g.). Contudo, ante esta relativização dogmática, a pena cominada aos delitos

127
Ibidem, p. 42.
128
Ibidem, p. 45-46.
129
Sobre a necessidade desta divisão, SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão..., p. 189-190, afirma que
“com efeito, não parece que a sociedade atual esteja disposta a admitir um Direito Penal orientado ao paradigma
do „Direito Penal mínimo‟. Mas isso não significa que a situação nos conduza a um modelo de Direito Penal
máximo. A função racionalizadora do Estado sobre a demanda social de punição pode dar lugar a um produto
que seja, por um lado, funcional e, por outro lado, suficientemente garantista.”
45

típicos da modernidade não poderia ser a de prisão, mas tão somente as restritivas de direito
ou pecuniárias.
Desta forma, não parece improvável afirmar que a modernização do Direito penal na
sociedade de risco é quase que um “caminho natural” a ser traçado pela dogmática jurídico-
penal. Alteram-se os riscos e o âmbito de lesão – ou de perigo – e, com isso, devem se alterar
também os meios de proteção aos bem jurídicos passíveis de resguardo penal, bem como os
modos de repressão às condutas que os menoscabem. Isto porque, como dito, no âmbito da
sociedade de risco, ante a demonstração plena – quase diária – da falibilidade da ciência e de
suas contingências, existe um grande movimento de resistência em admitir que os novos
riscos possam ser imputados ao acaso ou ao azar, o que culmina na tendência de se
“transformar o caso fortuito em injusto.” 130.
Não obstante até aqui exposto, Luis Gracia Martin também afirma que

(...) dentro desse marco geral do risco, a orientação tradicional do Direito


penal à prevenção de riscos calculáveis e, por isso, previsíveis, experimenta
também uma variação que toma uma direção encaminhada à precaução ante
a incerteza e a impossibilidade de cálculo dos riscos que, conforme
estimativas meramente estatísticas, podem se produzir como maior ou menor
probabilidade em conseqüência de determinadas atividades, como por
exemplo aquelas de caráter científico cujo conhecimento é ainda incerto. 131

É exatamente neste contexto de incerteza científica que ganha destaque o princípio da


precaução, que permeia cada vez mais os âmbitos de construção dos tipos penais modernos,
voltados à proteção contra os novos riscos, sendo necessária, então, uma análise mais detida
quanto ao seu conteúdo.

3.2 O DIREITO PENAL DO RISCO132

O movimento de modernização do Direito Penal, brevemente delineado no primeiro


capítulo, segue – e assim deve ser – os novos rumos pelos quais caminha a sociedade atual.
No âmbito da sociedade de risco, onde os danos que possam derivar de condutas, técnicas ou

130
GRACIA MARTIN, Luis. Prolegômenos…, p. 97.
131
Ibidem, p. 50.
132
É preciso esclarecer, de partida, que a nomenclatura Direito Penal do Risco sofre críticas. Isto porque, nas
palavras de AMARAL, Cláudio do Prado. Bases..., p. 123, não se vislumbra “(...) uma distinção entre um direito
penal „comum‟ e um direito penal „do risco‟ (como se houvesse dois direitos penais), o que autorizaria
concepções distintas do direito penal conforme cada uma das marcantes características da sociedade
contemporânea, como, por exemplo, - pode-se imaginar – num futuro próximo admitir um direito penal „da
informação‟.”.
46

produtos, todos oriundos do manejo exacerbado das novas tecnologias, admitem proporções
que o ser humano não é capaz de conhecer, chegando ao ponto de, em alguns casos, situação
danosa ser imprevisível.
Frente a estes riscos, e para que tais danos não se consumem, busca-se cada vez mais a
supressão das situações de insegurança, ganhando espaço, neste cenário, o Direito Penal.
Assim,

(...) no marco da sociedade mundial do risco, o surgimento de novas


situações arriscadas, as incertezas e inseguranças criadas pelos riscos
tecnológicos determinam uma crescente demanda social por segurança, que
se revela normativa e substancialmente direcionada ao sistema penal.133

Blanca Mendoza Buergo, analisando o movimento de adequação da política criminal à


sociedade de risco, afirma que em um primeiro momento, o que se tem é um giro de
orientação do Direito Penal que se volta à prevenção, adiantando de forma ampla a
134
intervenção protetiva da norma penal . Com isso, a função preventiva, até então
excepcional no âmbito do Direito Penal135, ganha importante destaque na dogmática jurídico-
penal moderna, superando – muitas das vezes – o modelo de direito penal “do dano”. De
forma concisa, a autora preleciona que

(...) a mais importante diferença entre o “velho” e o “novo” Direito


preventivo é que o novo Direito penal do “controle global” protege um
número maior e mais distinto de bens e, ademais, os protege antes, é dizer,
em um estágio prévio à lesão do bem jurídico. 136

133
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco..., p. 93. A autora ainda destaca que este recurso
ao Direito Penal para fazer frente aos novos riscos se embasa em dois fatores primordiais. Com isso “(...) aduz-se
que a gravidade e a dimensão dos novos riscos, capazes de causar ondas de destruição massiva, justificam que se
recorra ao mais grave instrumento de tutela jurídica, qual seja, o direito penal. (...) Em segundo lugar, identifica-
se que a relação de desconfiança estabelecida no que se refere à ciência, responsável pela criação de novos
riscos, legitima o abandono das soluções para festão dos riscos ligados a ela, para se reivindicar a intervenção
punitiva do Estado nessa seara.”.
134
MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho penal…, p. 44. No mesmo sentido, vide MACHADO, Marta
Rodriguez de Assis. Sociedade do risco..., p. 96: “(...) tendo em vista que os riscos de que se trata na sociedade
contemporânea têm dimensões gigantescas, tendentes à destruição da humanidade, a idéia que permeia os
anseios por tutela é a de que a materialização desses fenômenos deve ser evitada e prevenida a qualquer custo.
Daí porque se rejeita o modelo de direito penal de resultados, que atua, repressivamente, após a conformação do
dano, sendo mais conveniente a antecipação da proteção penal a esferas anteriores ao dano e ao próprio perigo.”.
135
Aponta-se que essa atuação preventiva excepcional do Direito Penal vincula-se com as noções de
previsibilidade e de riscos calculáveis, ao passo que o Direito Penal do Risco passa a mover-se sobre um terreno
de incertezas e de riscos imprevisíveis. Vide, por todos, BESTANI, Adriana. Principio..., p. 261-262.
136
MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho penal…, p. 44-45. Tradução livre de: “(…) la más importante
diferencia entre el “viejo” y el “nuevo” Derecho preventivo es que el nuevo Derecho penal del “control global”
protege más bienes y distintos y, además, los protege antes, es decir, en un estadio previo a la lesión del bien
jurídico.”.
47

O Direito Penal do Risco, na lição de Cornelius Prittwitz, então, pode ser considerado
etimologicamente sob uma ótica tridimensional. Para ele, este modelo, que não deixa de ser
uma das manifestações expansivas do moderno Direito Penal, caracteriza-se pela admissão de
“novos candidatos no círculo dos direitos (como o meio ambienta, a saúde da população e o
mercado de capitais)”; pelo deslocamento “para a frente [da] fronteira entre comportamentos
puníveis e não puníveis – deslocamento este considerado em geral, um pouco
precipitadamente, como um avanço na proteção exercida pelo direito penal”; e, finalmente,
pela redução das “exigências de censurabilidade, redução esta que se expressa na mudança de
paradigmas, transformando lesão aos bens jurídicos em perigo aos bens jurídicos.”. 137
Do exposto identifica-se que o chamado Direito Penal do Risco, voltado à prevenção
dos danos que possam resultar dos novos riscos tecnológicos atua, principalmente, baseando-
se em duas premissas: a ampliação da esfera de proteção e o adiantamento da intervenção
jurídico-penal. Estas premissas, quando trazidas ao encaixe das categorias dogmáticas, levam
à constatação de que o Direito Penal passa, então, a proteger novos bens jurídicos,
notadamente os de caráter supraindividual, mediante – não exclusivamente, mas de forma
crescente – a tipificação de crimes de perigo – em sua maioria, de perigo abstrato.
Estas novas formas de proteção jurídico-penal em muito se relacionam com os ideais
do princípio da precaução, cuja aplicação, como já assinalado, ocorre quando há a incerteza
científica acerca de um dano que – ainda em níveis probabilísticos –, uma vez conformado,
pode gerar consequências desastrosas e irreversíveis ao meio ambiente, à saúde humana, etc.
Podem ser identificadas na doutrina três correntes de pensamento que tratam do
traslado dos ideais de precaução ao direito penal. Destacam-se: 1) a corrente do “risco zero”,
que encampa uma postura radical para a qual, havendo a incerteza científica acerca de danos
que possam ser graves e irreversíveis, deve imperar a abstenção, invertendo-se ainda o ônus
da prova (a prova acerca da inocuidade total de determinada conduta, técnica ou produto,
corre por parte de quem pretende executá-la, aplicá-la ou utilizá-lo); 2) uma linha de
pensamento conservadora que admite o acolhimento de novos riscos, desde que em um
patamar aceitável, limitando a aplicação da precaução àquelas situações arriscadas de alta
gravidade e irreversíveis, rechaçando a todo custo a inversão da carga probatória; e 3) uma
posição intermediária, que fraqueia a aplicação do princípio precautório somente com a

137
PRITTWITZ, Cornelius. O direito penal entre o direito penal do risco e o direito penal do inimigo: tendências
atuais em direito penal e política criminal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, n. 47, 2004, p. 34.
48

liberação por parte de um grupo científico confiável e que embase sua possibilidade de
aplicação, havendo não a inversão ou manutenção, mas sim a distribuição da carga probatória
de acordo com critérios de oportunidade e que levem em conta critérios econômicos,
políticos, sociais e culturais. 138
O princípio da precaução, no Direito Penal, desempenha sua função em um contexto
de insuficiência ou limitação das construções dogmáticas voltadas à previsibilidade acerca da
periculosidade de certas condutas, motivo pelo qual é necessário analisar – ainda que
pontualmente – estes âmbitos de atuação e suas (im)possibilidades. Destacar-se-ão, nesta via,
as questões relacionadas à manutenção de lesividade do bem jurídico, aos crimes de perigo
abstrato e aos delitos culposos.

3.2.1 O conceito de bem jurídico e o Princípio da Lesividade

É lugar-comum a constatação de que o Direito Penal, atuando sobre as bases da ultima


ratio, deve intervir visando à repressão das condutas consideradas socialmente danosas
quando as outras instâncias (formais ou informais) de controle falharem. Contudo, esta
atuação não se opera de forma amplíssima e irrestrita, havendo limitações a serem observadas
no que diz respeito à aplicação do sistema penal como um todo.
Vide, por todos, o posicionamento de Claus Roxin no sentido que o conceito material
de Direito Penal antecede seu conteúdo formal, e é o que impõe ao legislador as balizas
político-criminais que limitam sua atuação voltada à incriminação de condutas. O arcabouço
penal, materialmente concebido, portanto, visa à proteção subsidiária de bens jurídicos e,
desta maneira, ficam além dos limites de alcance do jus puniendi a tutela de condutas
meramente imorais. 139
O conceito de bem jurídico, nesta esteira, desempenha importante papel na dinâmica
operacional do Direito Penal, sobretudo no âmbito da sociedade de riscos, onde se vê uma
alteração no padrão de proteção desses bens: passa-se da tutela de bens eminentemente
individuais para a salvaguarda de bens jurídicos de cunho supraindividuais, ampliando-se o
alcance das tipificações penais.

138
AMARAL, Cláudio do Prado. Bases teóricas..., p. 217.
139
ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General. t. I. Trad. Da 2. ed. Alemã. Madrid: Civitas, 2003, p. 51-53.
49

A ideia de bem jurídico remonta à obra de Paul Johann Anselm Von Feuerbach,
datada de 1801, na qual afirmava que todo delito seria o menoscabo de um direito subjetivo
de outrem 140. Esta concepção, de raízes iluministas,

tinha por objetivo precípuo a limitação do arbítrio punitivo por parte do


Estado, na medida em que afirmava que nem toda conduta seria passível de
imposição de pena, mas sim e apenas aquelas (...) que efetivamente violavam
o sentido último do Estado – a convivência entre os direitos subjetivos de
liberdade dos indivíduos.141

Em 1834, Birnbaum, de forma oposta à teoria preconizada por Feuerbach, aponta que
não caberia ao Direito Penal a tutela de meros direitos subjetivos, mas sim de bens jurídicos.
É desta concepção que nasce a moderna formulação teórica acerca do bem jurídico. Para tal
teoria, toda lei incriminadora teria como substrato uma valoração positiva acerca de bens
vitais e imprescindíveis para o ser humano e para a sua convivência em sociedade,
merecendo, portanto, proteção estatal. 142
Já no século XX, com especial destaque à obra do penalista alemão Hans Welzel, tem-
se o conceito de bem jurídico enquanto “um bem vital do grupo ou do indivíduo, que, em
143
razão se sua significação social, é amparado juridicamente.” . Contudo, esta proteção se dá
em um segundo plano, com base no desvalor do resultado. Isto porque, para o autor,

O direito penal cumpre sua missão de defesa dos bens jurídicos, proibindo
ou impondo ações de determinada índole. Na retaguarda dessas proibições
ou ordens estão os elementares deveres ético-sociais (valores do ato), cuja
vigência assegura, ameaçando com pena as atitudes ou ações que os
lesionam. Com isso obtém, por um lado, um amplo e duradouro amparo dos

140
FEUERBACH, Paul Johann Anselm von. Tratado de Derecho Penal. Trad. Da 14ª ed. alemã por Eugenio
Raúl Zaffaroni. Buenos Aires: Hammburabi, 1989, p. 63-64. Nas palavras do autor, “(...) toda pena jurídica no
âmbito do Estado é a consequência jurídica, fundada na necessidade de preservar os direitos externos, de uma
lesão jurídica e de uma lei que comine um mal sensível. (...) Então, crime é, em seu mais amplo sentido, uma
injúria contida em uma lei penal, ou uma ação contrária ao direito do outro, cominada em uma lei penal.”.
Tradução livre de “(...) toda pena jurídica dentro del Estado es la consecuencia jurídica, fundada en la necesidad
de preservar los derechos externos, de una lesión jurídica y de una ley que conmine un mal sensible. (…) Por
ende, crimen es, en el más amplio sentido, una injuria contenida en una ley penal, o una acción contraria al
derecho del otro, conminada en una ley penal.”.
141
LUZ, Yuri Corrêa da. Entre bens jurídicos e deveres normativos: um estudo sobre os fundamentos do direito
penal contemporâneo. São Paulo: IBCCRIM, 2013, p. 40. A tese de Feuerbach é considerada um dos mais
importantes marcos do Direito Penal moderno, haja vista que foi o primeiro modelo teórico opositor ao
amplíssimo arbítrio estatal que até então imperava no bojo das relações sociais.
142
JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal: Parte General. 5. ed. Trad.
Miguel Olmedo Cardenete. Granada: Comares, 2002, p. 07-08.
143
WELZEL, Hans. Direito Penal. Trad. Afonso Celso Rezende. Campinas: Romana, 2003, p. 32.
50

bens, e por outro, limita as formas de acometimentos ético-socialmente


reprováveis. 144

Neste breve escorço histórico, merece destaque ainda as formulações


constitucionalistas acerca do bem jurídico. Um dos principais expoentes destas teorias é Claus
Roxin, para quem o conceito de bem jurídico, elemento limitador do jus puniendi que é, só
pode derivar da constituição e de seus princípios reitores 145. Em suas palavras, “(...) bens
jurídicos são circunstâncias dadas ou finalidades que são úteis para o indivíduo e seu livre
desenvolvimento no marco de um sistema social global (...).” 146
O que, de certa forma, se mantém comum a todas estas construções teóricas, é a
constatação de que o bem jurídico, na esmagadora maioria das vezes, assume característica
individual, sendo que a proteção penal tradicional volta-se à vida humana, patrimônio, a
honra, etc..
Sem embargo, identifica-se que a adaptação do sistema penal ao paradigma da
sociedade de risco traz consigo mudanças significativas de cunho dogmático, dentre elas, o
que se acordou chamar de desmaterialização do bem jurídico. Este fenômeno, como bem
conceitua Marta Rodriguez de Assis Machado, refere-se

(...) a uma significativa mudança na compreensão do conceito de bem


jurídico, consistente no seu distanciamento da objetividade natural, bem
como do eixo individual, para focar a intervenção penal na proteção de bens
jurídicos universais ou coletivos, de perfis cada vez mais vagos e abstratos –
o que visivelmente destoa das premissas clássicas que dão o caráter concreto
e antropocêntrico do bem a ser protegido. 147

Vêm ao centro do debate, então, as questões relacionadas à proteção penal de bens


jurídicos de natureza suprainvididual, como ocorre no caso do meio ambiente, ordem
econômica, patrimônio genético, dentre outros. Amplia-se, desta forma, o alcance da pena
estatal, de forma que o bem jurídico deixa de figurar como elemento minimizador da
intervenção penal, passando a fomentar e a fundamentar uma verdadeira expansão do Direito
Penal. Tal dinâmica se dá pelo fato de que, frente aos novos riscos e suas catastróficas

144
Ibidem, p. 33.
145
ROXIN, Claus. Derecho Penal..., p. 55.
146
ROXIN, Claus. Derecho Penal…, p. 56. Tradução livre de “(...) bienes jurídicos son circunstancias dadas o
finalidades que son útiles para el individuo y su libre desarrollo en el marco de un sistema social global (…).”.
147
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco..., p. 107.
51

projeções, o Direito Penal assume uma “(...) função promocional de valores orientadores da
ação humana na vida comunitária, uma função de garantidor das gerações futuras (...).” 148.
Tal formulação não escapa às críticas, motivo pelo qual não se pode deixar de constar
aquela formulada pelo alemão Winfred Hassemer. Para ele, no âmbito do Direito Penal típico
da sociedade de riscos, “a proteção de bens jurídicos se transforma (...) em um mandado de
criminalização, no lugar de ser uma proibição condicionada de penalização; em um fator
positivo para conseguir uma correta criminalização, em vez de ser um critério negativo para a
mesma.”. 149
A principal questão a ser enfrentada neste âmbito de proteção dos bens jurídicos
supraindividuais diz respeito ao princípio da lesividade. É assim porque, com o surgimento de
novos riscos, cujos danos que possam se conformar assumem alto nível de gravidade e se
operam de maneira irreversível, “(...) renuncia-se ao modelo estruturado em torno da punição
de ações que se orientam imediatamente ao ataque de um bem (...).” 150
Com isso, a premissa de que não haveria crime sem lesão ou perigo concreto ao bem
jurídico151, apesar de válido para incriminações como o homicídio, o furto, o aborto, etc., não
se aplica às tipificações que visem proteger bens de natureza coletiva e supraindividual.
Baseando-se na lição de Yuri Corrêa da Luz, nota-se que a efetiva lesão de bens jurídicos
difusos não ocorre, muitas vezes, de forma altamente sensível. A título de exemplo, o autor
afirma que “(...) apenas de forma muito indireta poderia se admitir que a derrubada de um
tonel de petróleo atingiria o bem jurídico meio ambiente nos mesmos termos que faz o crime
de homicídio em relação ao homicídio.” 152. Com isso, torna-se muito difícil a fundamentação
das tipificações desta ordem com base no conceito de delito pautado, estritamente, pelo ideal
da lesividade.
Esta “crise” do princípio da ofensividade torna-se mais latente quando se nota que nas
condutas incriminadas visando à tutela de bens jurídicos como o meio ambiente, a saúde
148
Ibidem, p. 95.
149
HASSEMER, Winfred. Persona, mundo y responsabilidad: bases para una teoría de la imputación en
Derecho Penal. Trad. Francisco Muñoz Conde e Maria del Mar Díaz Pita. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p.
48. Tradição livre de: “La protección de bienes jurídicos se transforma así en un mandato para penalizar, en
lugar de ser una prohibición condicionada de penalización; en un factor positivo para conseguir una correcta
criminalización, en vez de ser un criterio negativo para la misma.”.
150
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco..., p. 107.
151
É esta a posição predominante na doutrina. Veja-se, por todos, as lições de SANTOS, Juarez Cirino dos.
Direito Penal: Parte Geral. 6. ed. Curitiba: ICPC, 2014, p. 15; BRUNO, Aníbal. Direito Penal: Parte Geral. t. I.
Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 28-29; REALE JR., Miguel. Instituições de Direito Penal: Parte Geral. 4. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 21-25; BUSATO, Paulo César. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Atlas,
2013, p. 17; PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. v. 1. 10. ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 65.
152
LUZ, Yuri Corrêa da. Entre bens jurídicos..., p. 108.
52

pública, as relações de consumo, etc., os resultados lesivos – quando ocorrem – não se dão de
forma imediata e não seguem padrões de previsibilidade, operando-se a relação causa-efeito
sobre um território de incerteza científica. Daí abre-se espaço para o aporte dos ideais de
precaução a um Direito Penal que se paute pela proteção dos bens jurídicos que, ademais de
interessarem à coletividade em geral, se mostram essenciais para o regular desenvolvimento e
autodeterminação dos membros da sociedade, possuindo, inclusive, proteção jurídica de
ordem constitucional. 153
O argumento de que os tipos penais construídos sobre lacunas de previsibilidade
acerca da causalidade, cenário típico de aplicação das medidas precaucionais, ao
abandonarem a ideia de necessária lesividade ao bem jurídico não pode servir de óbice ao
avanço da tutela penal nesta área. Isto porque “(...) o recurso à precaução não compromete
essa função de garantia do Direito Penal, (...) mas sim otimiza o sistema de salvaguarda de
bens jurídicos em um cenário cujas peculiaridades aconselham como mais razoável a
assunção de medidas acautelatórias.”. 154

3.2.2 A lesividade e os crimes de perigo abstrato

Talvez a característica mais marcante da inserção dos ideais de precaução no Direito


Penal contemporâneo é o recurso, cada vez maior, à incriminação de condutas mediante tipos
de perigo abstrato155. Mediante esta técnica legislativa jurídico-penal, o que se busca é evitar a
produção de certos resultados naturalísticos antes que, efetivamente, se tornem irreversíveis,
baseando-se a pena à mera realização da atividade de risco.
Em termos dogmáticos, sinalizam Érika Mendes de Carvalho e Gustavo Noronha de
Ávila que “(...) nos delitos de perigo abstrato a conduta típica é em si perigosa, isto é, o perigo

153
Veja-se, nesta seara, a proteção despedida pela Constituição Federal de 1988 ao meio ambiente, em seu art.
225, que se opera, inclusive, como cláusula expressa criminalizadora (art. 225, §3º).
154
ANDRADE, Andressa Paula de. FERREIRA, Pedro Paulo da Cunha; CARVALHO, Érika Mendes de. A
recepção político-criminal da precaução e os rumos do direito penal contemporâneo. Ciências Penais. v. 15. São
Paulo, jul-dez, 2011, p. 399.
155
Destaca-se aqui a postura teórica de HIRSCH, Hans-Joachin. Peligro y peligrosidad. Trad. Esteban Sola
Reche. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales. Madrid: Ministerio de Justicia, 1996, p. 514, para o qual
os delitos de perigo abstrato seriam, em verdade, delitos de perigosidade (ou de risco). Em suas palavras, define
que “exposição a perigo significa algo transitivo, isto é, a causação de uma situação de perigo para um objeto.
Somente os delitos de perigo concreto são, por isso, autênticos delitos de perigo. Frente à eles temos os delitos
de perigosidade (ou de risco), (...) os quais não se caracterizam por um resultado de perigo, se não pela
periculosidade da conduta.”. Tradução livre de: “Puesta en peligro significa algo transitivo, esto es, la causación
de una situación de peligro para un objeto. Sólo los delitos de peligro concreto son, por eso, auténticos delitos de
peligro. Frente a éstos tenemos los delitos de peligrosidad (o de riesgo), en los que como ya se ha dicho, los que
les caracteriza no es un resultado de peligro sino la peligrosidad de una conducta.”.
53

é inerente à conduta. A periculosidade da conduta típica é determinada ex ante, através de um


156
juízo hipotético do legislador” . O perigo, desta forma, é aventado somente como ratio
legis da tipificação, não se inserindo como elemento do injusto.
Estes delitos abrangem, portanto, ações que não se traduzem na produção de um
resultado, seja ele a efetiva lesão ou a exposição do bem jurídico a um perigo concreto. Com
isso, os delitos de perigo abstrato se conformam com a mera comprovação da realização da
conduta, motivo pelo qual é desnecessário, no caso concreto, a verificação do perigo de
maneira ex post a ser realizada pelo julgador.
Não sendo exigido, portanto, um resultado de menoscabo ao bem jurídico (lesão ou
perigo concreto de lesão), os tipos de perigo abstrato limitam-se à descrição da conduta
157
arriscada, portadora de uma periculosidade a ela inerente . Desta maneira, conclui-se que
“(...) o ilícito assume uma configuração monista, esgotando-se no desvalor da ação.”.
Neste âmbito, um papel atribuível aos ideais do princípio da precaução seria,
exatamente, o de auxiliar na determinação da periculosidade da conduta incriminada e, no
caso concreto, realizada. De maneira ampla, uma conduta pode ser considerada perigosa
quando, analisada ex ante, “(...) não se apresenta como absolutamente improvável a produção
de um dano à incolumidade do objeto jurídico.” 158
A atividade valorativa, de cunho objetivo, destas condutas deve levar em conta tanto
critérios ontológicos, quanto patamares de caráter nomológico. Os primeiros relacionam-se
aos dados e particularidades do caso concreto que sejam cognoscíveis pelo autor
(conhecimentos especiais do autor acerca do risco da conduta) ou que possam ser apreensíveis
pelo julgador-intérprete (observador externo). Já os patamares nomológicos dizem respeito
aos conhecimentos e experiências – notadamente de cunho científico – sobre os cursos causais
que envolvam o agir arriscado à época de sua realização159. Em suma, “(...) exige-se que o
intérprete se transporte ao passado e avalie o ato praticado e sua periculosidade diante das
regras de experiência geral e o normal acontecer dos fatos.” 160

156
CARVALHO, Érika Mendes de. ÁVILA, Gustavo Noronha de. Princípio da Precaução..., p. 196.
157
Idem.
158
FERREIRA, Pedro Paulo da Cunha; BRODT, Luís Augusto Sanzo. O Princípio..., p.
159
É o que se extrai da lição de BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato..., p. 172, através da qual
afirma que “a constatação desta periculosidade se faz por um juízo ex ante, que compreende uma perspectiva
ontológica, realizada por meio de um observador externo que incorpore os conhecimentos especiais do autor
sobre o contexto do risco, e sob uma perspectiva nomológica, que agrega a experiência e o conhecimento geral
da época sobre os cursos causais e projeções futuras do risco criado.”.
160
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato..., p. 172.
54

O problema central se opera quando se procede à verificação de perigosidade da


conduta mediante observância do princípio da precaução, haja vista que a aplicação das
circunstâncias precautórias só é possível quando ausentes os dados de certeza científica, ou
seja, quando não há a perspectiva nomológica acerca do risco criado. Nestes casos, sob uma
análise preliminar, a conduta não pode ser considerada perigosa, uma vez que ausente a
previsibilidade objetiva dos cursos causais que delam possam advir. 161
É exatamente com base no apontado que surge uma saída ao problema das tipificações
que envolvam o princípio da precaução: o divórcio entre os conceitos de conduta perigosa e
previsibilidade objetiva. Com isso, o desvalor de ação, consistente na criação do risco não-
permitido162, passaria a ser considerado sob a ótica precautória.163
A saída comum apresentada pela doutrina se mostra através da construção típica das
condutas arriscadas mediante o reenvio a normativas de cunho extrapenal, característica
marcante do movimento de acessoriedade administrativa do injusto164. Seria esta uma das
formas de impor limites ao desenvolvimento de condutas arriscadas, introduzindo no âmbito
típico os conteúdos próprios do princípio da precaução sem que, com isso, se prejudique a
conformação típico-material do injusto.
Esta técnica, já introduzida no ordenamento jurídico-penal brasileiro, pode ser
observada, v.g., no crime tipificado no art. 27, da Lei nº. 11.105/2005 (Lei de Biossegurança).
O tipo penal define condutas consideradas pelo legislador como arriscadas, portadoras de
periculosidade, consistentes em “liberar ou descartar OMG no meio ambiente”, fazendo em
seguida a remissão à normativa administrativa que regula atividades que envolvem a
manipulação de organismos geneticamente modificados nos seguintes termos: “sem

161
CARVALHO, Érika Mendes de. ÁVILA, Gustavo Noronha de. Princípio da Precaução..., p. 196
162
Para BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato..., p. 182, “(...) a materialidade dos delitos de
perigo abstrato é composta pela periculosidade típica da conduta, verificada pela criação de um risco, ex ante,
para bens jurídicos dignos de proteção penal, e não afastada pela tolerância social ao risco, diante da realidade
concreta em que a ação é perpetrada.”.
163
CARVALHO, Érika Mendes de. ÁVILA, Gustavo Noronha de. Princípio da Precaução..., p. 197. Vale
ressaltar, aqui, o completo rechaço de hipóteses nas quais a tipicidade material dos delitos de perigo abstrato se
conforme nos casos em que haja a diminuição do risco para o bem jurídico tutelado. Nas palavras de BOTTINI,
Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato..., p. 178, “(...) o injusto penal nos tipos em análise faz-se presente
apenas diante da criação ou do aumento de um risco relevante e típico e, evidentemente, fica afastado quando
constatada a diminuição do perigo a que estaria submetido o objeto da tutela.”.
164
Sobre a questão da acessoriedade administrativa dos injustos penais, vide CARVALHO, Érika Mendes de.
Limites e alternativas à administrativização do Direito Penal do Ambiente. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, São Paulo, 2011, v. 92, p. 299-335. Em especial, destaca-se: “Por vezes, o próprio legislador penal,
na elaboração das normas incriminadoras ambientais, faz referência explícita ou implícita à normativa
administrativa ou a determinados atos administrativos. Nessa perspectiva, condiciona, por exemplo, a plena
realização do injusto penal à inobservância da referida normativa ou à infração dos limites impostos por um
determinado ato administrativo individual.”.
55

autorização ou em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e pelos órgãos e


entidades de registros e fiscalização.”. Esta norma penal afirma que será perigosa a conduta
descrita que se realize com infração das normas disciplinares administrativas ou que
ultrapassem os comandos exarados em atos administrativos individuais (autorizações ou
concessões de licenças, por exemplo). Estas normativas extrapenais, por sua vez, regulatórias
de atividades típicas de uma sociedade de riscos – haja vista que se realizam em territórios
científicos cujo saber nomológico, não raras vezes, é ausente –, baseiam-se eminentemente
em ideais precaucionais. Com isso, inserem “(...) na descrição típica, um conteúdo específico
e próprio do princípio da precaução, que a um só tempo permite fundamentar e limitar a
imputação penal.”. 165
A mesma sistemática de construção do injusto pode ser observada, v.g., na Lei nº.
9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais) – arts. 54, §3º, 55, 56 e 60 – e na Lei nº. 6.453/77
(Responsabilidade civil por danos nucleares e responsabilidade criminal por atos relacionados
com atividades nucleares) – arts. 21 e 25.
De qualquer sorte,

“em todas as hipóteses legais mencionadas, o conteúdo do princípio da


precaução contribuirá para fundamentar a responsabilidade penal pela
realização de conduta de risco (nos delitos de perigo abstrato) (...) do ponto
de vista ex ante, adicionando ao desvalor da ação dados objetivos capazes de
auxiliar o juiz na captação da periculosidade da conduta e na interpretação
dos tipos penais.” 166

É preciso observar, de qualquer modo, que a utilização do princípio da precaução


como forma de – a certo nível – substituir o saber nomológico na constatação da
periculosidade da conduta arriscada não é totalmente aceita pela doutrina. A exemplificar tal
afirmação, nota-se que Pierpaolo Cruz Bottini, por exemplo, rechaça tal ideia afirmando – em
resumo – que

(...) a materialidade dos tipos de precaução não é evidente e sua aplicação


aproxima-se da compreensão dos crimes de perigo abstrato como crimes
formais, cuja simples prática da ação descrita na lei acarreta a tipicidade,
pois não há, nestas hipóteses, conhecimento científico ou estatístico
suficiente sobre os riscos envolvidos. Isso impede a constatação da
periculosidade do comportamento, mesmo sob uma ótica ex ante. 167

165
FERREIRA, Pedro Paulo da Cunha; BRODT, Luís Augusto Sanzo. O Princípio..., p.
166
CARVALHO, Érika Mendes de. ÁVILA, Gustavo Noronha de. Princípio da Precaução..., p. 197.
167
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato..., p. 229.
56

Tal conclusão, no entanto, não deve ser acolhida. Isto porque, conforme destacado, o
recurso ao princípio da precaução, aplicável nos casos em que impera a incerteza científica,
não se fundamenta em meras conjecturas ou vagas hipóteses. Ao contrário, recorde-se que sua
aplicação às mencionadas situações de incerteza exige a realização “(...) de pesquisas
interdisciplinares e atuais, que avalie cientificamente a situação, identificando-lhe a condição
arriscada, e caracterizando os seus eventuais desdobramentos danosos.” 168
Não obstante o diagnóstico científico que resvale em um cenário de incertezas, não se
pode – de pronto – reputar como ausente de periculosidade as condutas avaliadas. Até porque
a humanidade já vivenciou situações que, apesar de não constatada a efetiva existência do
perigo, foram causados danos efetivos cujos desdobramentos – para além dos catastróficos já
conhecidos –, em alguns casos, sequer foram experimentados em sua totalidade (v.g., o caso
da encefalopatia espongiforme bovina, o caso Talidomida, etc.). É inegável, portanto, que as
condutas de risco, analisadas sob os estudos precautórios, podem causar danos de magnitude
extrema e de caráter irreversível a bens jurídicos coletivos essenciais à própria existência da
humanidade (como é o caso do meio ambiente) e, por isso, ao menos em um primeiro olhar,
legitimam a chamada do Direito Penal para atuar.
Por fim, importa mencionar que a aferição da periculosidade das condutas arriscadas
no âmbito das tipificações de perigo abstrato, ao se basear nas remissões a normativas
extrapenais (notadamente as administrativas), remonta ao processo decisório do administrador
estatal, gestor dos riscos da modernidade por excelência, buscando implementá-lo de maneira
efetiva, antes que os riscos se tornem perigos e, por fim, danos irremediáveis.

3.2.3 Reflexos nos crimes culposos

Vislumbra-se, ainda, qual seria a capacidade de rendimento do princípio da precaução


quando analisados em cotejo com os delitos culposos. Do questionamento emergem duas
soluções iniciais: a precaução poderia auxiliar na fixação de standards de comportamento às
condutas arriscadas cujo dano potencial demonstre-se grave e irreversível e, ainda, serviria
como instrumento de relativização dos critérios de previsibilidade objetiva, estes necessários à
consubstanciação dos delitos culposos. 169
A ideia sobre os padrões de conduta quanto aos tipos culposos pode ser extraída das
lições de Claus Roxin, que de forma resumida, porém completa, aduz que
168
FERREIRA, Pedro Paulo da Cunha; BRODT, Luís Augusto Sanzo. O Princípio..., p.
169
CARVALHO, Érika Mendes de. ÁVILA, Gustavo Noronha de. Princípio da Precaução..., p. 198.
57

quem se dispõe a realizar uma conduta cujo risco para bens jurídicos
penalmente protegidos não pode valorar, deve informar-se; se não é possível
ou aparenta que informa-se em nada adiantará, deve se abster da conduta. E
quem pretende empreender algo que provavelmente coloque em perigo bens
jurídicos e não é capaz de fazer frente aos perigos devido a insuficiências
físicas ou por falta de prática ou habilidade, deve omitir sua conduta; caso
contrário, já existe no empreendimento ou na assunção da atividade uma
imprudência. 170

Com isso, e sem maiores segredos, os ideais de precaução podem servir à fixação de
regras e patamares limitadores que orientem a realização de condutas potencialmente
arriscadas e que, por isso, coloque em jogo a incolumidade de bens jurídico-penais. Este papel
pode ser conformar na edição de regulamentos, normas ou documentos técnicos que se
baseiem nas investigações científicas conclusivas pela incerteza e, consequentemente, pelo
caráter arriscado de determinados setores de atividade.
O ponto mais polêmico acerca do aporte da precaução aos delitos negligentes,
contudo, reside na possibilidade do dito princípio servir como alternativa à exigência formal
de conformação da previsibilidade objetiva. Daí surge o problema.
A previsibilidade objetiva pressupõe que o autor, no momento de sua conduta, possa
antever a possibilidade da ocorrência de uma lesão ou exposição a perigo concreto de um bem
171
jurídico . De forma diametralmente oposta, as situações fundamentadoras do princípio da
precaução nascem, como já exaustivamente apontado, da incerteza científica acerca dos
cursos causais danosos que acompanhem uma determinada conduta. Ou seja: quando diante
de contextos fáticos regidos pela precaução, o agente não tem como antecipar que, de sua
conduta, possa ocorrer uma lesão ou exposição a perigo concreto do objeto tutelado
penalmente. Com isso, como bem advertem Érika Mendes de Carvalho e Gustavo Noronha de
Ávila, “prescindir da previsibilidade objetiva na imputação de resultados nos delitos culposos
em nome do princípio da precaução pode acarretar uma dose de inadmissível insegurança

170
ROXIN, Claus. Derecho Penal..., p. 1009-1010. Tradução livre de: “(…) quien se dispone a realizar una
conducta cuyo riesgo para bienes jurídicopenalmente protegidos no puede valorar, debe informarse; si no es
posible o parece que no servirá para nada informarse, se debe abstener de la conducta. Y quien pretende
emprender algo que probablemente ponga en peligro bienes jurídicos y no es capaz de hacer frente a los peligros
debido a insuficiencias físicas o por falta de práctica o habilidad, debe omitir la conducta; en caso contrario
existe ya en el emprendimiento o asunción de la actividad una imprudencia.
171
Para PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal..., p. 346, “O resultado deve ser objetivamente previsível.
O aferimento da ação típica deve obedecer „as condições concretas, existentes no momento do fato, e da
necessidade objetiva, naquele instante, de proteger o bem jurídico‟.”
58

jurídica.” 172. É descabida, desta forma, qualquer tentativa de imiscuir a precaução ao conceito
de previsibilidade objetiva.
De outro lado, uma via de aproximação do princípio em estudo aos tipos culposos
seria vinculá-lo ao dever objetivo de cuidado, enquanto “(...) necessário para o
173
desenvolvimento de uma atividade social determinada.”. . Assim sendo, o autor, antes de
sua ação, deve se informar acerca da atividade que pretende desenvolver e, para isso, recorre
às normativas das mais variadas espécies que vão desde a lei até portarias e protocolos
internos. Ocorre que estes instrumentos podem estar fundados nos ideais de precaução,
motivo pelo qual, se previrem determinadas balizas de cunho cautelar – de observação
obrigatória – para a realização da conduta no âmbito de um determinado setor de atividade
(nuclear, por exemplo), a infração destas normativas importa na transgressão do dever
objetivo de cuidado, conformando-se a tipicidade negligente174.
Para ilustrar tal conclusão, podem se elencar como exemplos do dever de cuidado
arraigado na precaução:

a) indicar a retirada de um produto sobre o qual recaia séria suspeita de


produção de danos irreversíveis à saúde ou ao ambiente; b) exigir exaustivas
preparação e informação, prévias à realização de atividades de risco, a fim
de elevar o nível de conhecimento e a capacidade técnica para sua execução;
c) recomendar a omissão de condutas perigosas, quando não se dispõe dos
conhecimentos técnicos ou da capacitação necessária para empreendê-las,
mesmo sem saber exatamente quais efeitos prejudiciais podem advir de sua
realização. 175

A contrario sensu, portanto, nos casos em que o resultado típico tenha ocorrido, o
mesmo não poderá ser imputado àquele que agiu amparado pela observância do dever
objetivo de cuidado determinado pelas normativas fundadas no princípio da precaução. E é
assim, pois, nos delitos culposos, “entre o desvalor de ação e o desvalor de resultado deve
existir uma conexão interna, quer dizer, que o resultado decorra justamente da inobservância
176
do cuidado devido (...).” . Em outras palavras: onde não houver desvalor de ação, não
haverá desvalor de resultado e, por isso, restaria afastada a conformação típica ao sujeito que
praticou a conduta.

172
CARVALHO, Érika Mendes de. ÁVILA, Gustavo Noronha de. Princípio da Precaução..., p. 198.
173
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal..., p. 346.
174
FERREIRA, Pedro Paulo da Cunha; BRODT, Luís Augusto Sanzo. O Princípio..., p.
175
CARVALHO, Érika Mendes de. ÁVILA, Gustavo Noronha de. Princípio da Precaução..., p. 199.
176
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal..., p. 346.
59

CONCLUSÃO

1. A sociedade de risco, na ótica de Ulrich Beck, é produto de uma modernidade


reflexiva, ou segunda modernidade. A primeira modernidade, temporalmente localizada entre
o fim da Era Medieval e impulsionada pelos ideais iluministas do século XVIII, atinge seu
ápice com a Revolução Industrial, que se baseou na premissa de que o homem, pautado pela
ideia de dominação da natureza, buscava com o modelo de industrialização, sanar todos os
problemas sociais. Em contrapartida, a segunda modernidade traz à superfície da discussão, a
questão do risco, uma vez que o rápido desenvolvimento e a busca incessante por novas
tecnológicas se apresenta de forma inversamente proporcional à evolução científica.
2. Os riscos oriundos dessa segunda modernidade deixam de ser essencialmente
territoriais e pessoais, uma vez que suas consequências, muitas vezes indesejadas e até mesmo
desconhecidas, podem desencadear um processo destrutivo que chega a ameaçar a própria
existência da vida terrestre. Essas incertezas racionalmente fabricadas, apesar de
demonstrarem consequências imediatas, são resultado do manejo de tecnologias altamente
avançadas (biotecnologias, tecnologias nucleares, químicas, etc.) e, por tal motivo, podem
resultar em efeitos nocivos de alta magnitude cuja real ocorrência, apesar de provável, não se
pode comprovar.
3. Estes riscos, desconhecidos e até mesmo imensuráveis, dão espaço à aplicação do
princípio da precaução, cujo objetivo é evitar a ocorrência destes eventos. Tal princípio, cuja
origem remonta ao direito alemão dos anos setenta, baliza, principalmente, as diretrizes do
Direito Ambiental, ainda que hodiernamente seja possível afirmar que os ideais precautórios
possam também integrar outros ramos jurídicos, dentre eles, o Direito Penal.
4. O princípio da precaução liga-se intimamente ao contexto da segunda
modernidade, onde a sociedade se para com riscos produzidos anos a fio e que, na atualidade,
passam a demonstrar seu caráter contingencial, podendo se converter em verdadeiros danos de
magnitude inimaginável. Para tanto, a aplicação do dito princípio se dá em um cenário no qual
impere a incerteza científica sobre os riscos, bem como se verifique a gravidade
(irreversibilidade) do dano potencial.
5. No contexto da sociedade de riscos, de incertezas fabricadas, o Direito Penal se
desenvolve a fim de que a efetiva proteção de bens jurídicos abarque os novos contextos
sociais. Desta forma, surge um movimento de compatibilização das categorias dogmático-
penais com os chamados “novos riscos”, haja vista que estes alteram substancialmente o
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âmbito de lesão ou de perigo aos quais são expostos os bens jurídicos, dentre eles – e
principalmente –, os de caráter supraindividual.
6. Uma vez que algumas situações danosas não são conhecidas – parcial ou
totalmente – nem mesmo pela comunidade científica, e seus desdobramentos lesivos são, não
raras vezes, irreversíveis, o princípio da precaução é chamado a integrar o campo penal. Com
isso, observa-se um giro da política criminal à prevenção, que ganha destaque no âmbito da
tipificação criminal. Delineia-se, com isto, o chamado Direito Penal do Risco.
7. Em um primeiro aspecto, vêm ao centro a questão da “crise” do princípio da
lesividade frente à proteção dos bens jurídicos de caráter supraindividual. Certos setores da
dogmática penal, capitaneada principalmente por Winfred Hassemer, afirmam que a
tipificação penal baseada nos ideais de precaução, onde predomina a incerteza científica
acerca da lesão ou do perigo de lesão, abandonam o critério garantista da lesividade e tornam
o sistema penal como um todo falho e autoritário. Contudo, observa-se que os tipos penais
construídos sobre as lacunas de previsibilidade acerca da causalidade, ainda que se distanciem
do núcleo do princípio da lesividade, não pode servir de óbice ao avanço da tutela penal nesta
área. Isto porque o recurso à precaução na seara criminal não põe em xeque a função de
garantia do Direito Penal, mas sim aperfeiçoa todo o sistema de proteção de bens jurídicos em
um contexto no qual é mais prudente a adoção de medidas acautelatórias, haja vista o caráter
irreversível e de alta magnitude que possam advir das situações de incerteza.
8. Especificamente no campo dos crimes de perigo abstrato, o princípio da precaução
serviria como instrumento de avaliação da periculosidade da conduta. Essa análise, composta
por critérios ontológicos (conhecimento especial do autor acerca do risco de sua conduta) e
nomológicos (conhecimento de cunho cientificista e eminentemente objetivo acerca dos
desdobramentos da ação), quando verificada sob a ótica precautória, exclui o saber científico
que atestaria o caráter perigoso da conduta, o que leva à concluir pela inocuidade desta.
Contudo, a solução mais acertada apresentada pela doutrina se mostra através da construção
típica das condutas arriscadas mediante o reenvio a normativas de cunho extrapenal. Assim, o
desvalor da ação , consistente na criação de um risco não permitido, seria construído sobre os
pilares precautórios. É o que ocorre, no ordenamento jurídico brasileiro, v.g., nos tipos penais
da Lei 9.605/98 (Crimes Ambientais) e da Lei 11.105/05 (Lei de Biossegurança).
9. Por fim, cabe ao princípio da precaução, no âmbito dos crimes culposos, fixar os
patamares limitadores de condutas potencialmente arriscadas, as quais coloquem em xeque a
incolumidade de bens jurídicos. Esta função pode ser consubstanciada na edição de
regulamentos, normas ou documentos técnicos baseados em análises científicas sobre a
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incerteza constatada e, por isso, conclusivas quanto ao caráter arriscado de determinadas


condutas. Além disso, é possível vincular os ideais precautórios ao dever objetivo de cuidado,
motivando o agente, antes de realizar determinada conduta, verificar nas mais variadas
normativas relacionadas ao seu âmbito de execução. Isto porque tais normativas podem estar
baseadas no princípio da precaução, motivo pelo qual a ação fora dos limites a serem
observados importa transgressão ao dever objetivo de cuidado, conformando-se a tipicidade
negligente.
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