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HISTÓRIA, LITERATURA E RESISTÊNCIA EM ANGOLA:

As primeiras obras de Pepetela em perspectiva

Autor: Felipe Paiva Soares1


Orientador: Carlos Franco Liberato

Resumo: O presente trabalho visa analisar os romances do escritor angolano Artur Pestana
dos Santos (Pepetela) escritos durante a guerra de libertação de Angola, ocorrida entre 1961
e 1975. Tais romances – Muana Puó; As aventuras de Ngunga e Mayombe - prefiguram-se
dentre as mais significativas obras da moderna literatura angolana, tanto por seus valores
estéticos como por sua representatividade histórica. Dessa forma, para a plena compreensão
destas obras faz-se necessária sua articulação com o contexto histórico em que estavam
inseridas. Em igual medida, a análise destes textos ficcionais pode lançar nova luz sobre a
formação do nacionalismo revolucionário angolano bem como sobre a guerra de libertação
Nacional em si tendo-se como fio condutor analítico o conceito de Resistência. Para tanto
seguir-se-á um introdução geral ao contexto de libertação angolano, em seguida uma
discussão conceitual tocante à Resistência, desembocando para um tópico sobre as relações
entre literatura e história e, por fim, as conclusões possíveis.

Palavras-chaves: História de Angola, Resistência, Literatura Angolana, Nacionalismo


Angolano.

INTRODUÇÃO

O tema central deste artigo é o da trajetória da resistência angolana analisada a partir


da literatura, tendo-se como marco temporal os anos de conflito pela libertação nacional
entre 1961 e 1975. Da vasta bibliografia produzida por escritores angolanos durante estes
anos de conflito armado destacamos as três primeiras obras de Artur Pestana dos Santos, o
Pepetela. Sendo estas respectivamente Muana Puó (1969), Mayombe (1972) e As aventuras
de Ngunga (1973).
Discutimos a possibilidade de realizar uma análise da resistência anticolonial
angolana tendo como ponto de partida a literatura deste país, especialmente a ficção escrita
durante a guerra pela libertação nacional, tendo como eixo as obras de Pepetela, a Trilogia
da Guerra de Libertação conforme denominamos. Tal enfoque deve-se ao fato de estas
obras terem vindo à luz no desenrolar do processo libertador em que o autor participou

1
Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Apresenta este artigo como requisito
para obtenção do grau de Licenciado em História. E-mail: paiva.his@gmail.com.
ativamente, tanto como escritor como quanto guerrilheiro. Assim, estas obras evidenciam
de maneira mais direta a dinâmica interna da resistência anticolonial.
A escolha de enfoque acaba recaindo neste autor pela capacidade que sua obra tem
de catalisar tendências seja a nível estético ou ideológico e pela vivência do romancista na
resistência anticolonial fosse enquanto exilado político ou guerrilheiro. Por estes motivos
sua produção mostra-se um espaço privilegiado para o estudo da trajetória da resistência em
Angola.
Faz-se necessário, porém, atentar para o fato de que a guerra em si não será
analisada perdendo-se de vista a resistência ao regime colonial gerada desde o início da
colonização, em meados dos anos de 1800. A guerra de libertação nacional, mesmo que
tomada sincronicamente, deve ser inserida na diacronia maior da resistência angolana.
Dessa forma, se Pepetela é o autor focado, a resistência é o norte analítico. Não realizamos
somente um estudo sobre a guerra de libertação, ou a produção ficcional de Pepetela escrita
nos anos de conflito, ao invés disso intentamos: analisar a formação e os aspectos da
resistência anticolonial angolana a partir dos romances escritos por Pepetela durante a
guerra de libertação nacional. Isto implica tanto uma análise das resistências pré-liberação
nacional como também dos aspectos ideológicos que alicerçavam o então império colonial
português e suas ações imperialistas no território angolano.

DISCUSSÃO CONCEITUAL

Em uma vista panorâmica na bibliografia especializada sobre temas da resistência


africana se farão presentes considerações consagradas como as de Allen Isaacman que
considerava a retenção da produção de algodão pelos camponeses de Moçambique como
ato de resistência,i ou teses mais recentes como a de Achille Mbembe segundo a qual os
sonhos podem constituir resistência.ii Outro autor pertinente, Donald Crummey, sugeriu, de
maneira mais geral, que a resistência podia ser também silenciosa, sendo justamente o
sigilo uma de suas principais características, o que a diferenciaria de outra oposição
anticolonial, o protesto: “Protest studies, so far as we can distinguish them from resistance
studies, imply somewhat different contexts. Protest entails a higher degree of vocalization.
By contrast, resistance may appear mute, and stealth may be one of its essential features”
(CRUMMEY, 1986, p. 10).

1
A tese de Crummey ressoa na atual teoria dos “discursos ocultos” de James C.
Scott. Scott enfatiza a “resistência cotidiana” que transcorria muitas vezes de forma velada
e implícita no cotidiano através, por exemplo, de músicas e contos populares, seu
argumento se aproxima de uma “teoria geral da dominação e da resistência”:

(...) quiero decir que, al demostrarse que las estructuras de dominación operan de
manera similar, también podrá percibirse cómo estas mismas hacen surgir, si el
resto de las condiciones no cambia, reacciones y estrategias de resistencia
asimismo comparables a grandes rasgos. De esa manera, los esclavos y los siervos
- que normalmente no se atreven a rechazar de manera abierta las condiciones de
su subordinación - muy probablemente crearán y defenderán, a escondidas, un
espacio social en el cual se podrá expresar una disidencia marginal al discurso
oficial de las relaciones de poder.(SCOTT, 2000, pp. 19, 20).

Estes autores encontram-se na mesma tradição geral de teses sobre a resistência em


que qualquer reação ao colonialismo é levada em conta. Seja essa reação direta, como a
retenção de algodão analisada por Isaacman, ou indireta, como a teoria dos discursos
ocultos de Scott. Tende-se, por vezes, segundo Jon Abbink e Klass van Walraven, a “incluir
cualquier cosa, desde la disimulación al bandolerismo social, iii (…), el robo, los prófugos,
la deserción, la migración y los disturbios, es decir, ‘cualquier actividad que ayudara a
frustrar las operaciones del capitalismo’” (ABBINK, WALRAVEN, 2008, pp. 17, 18).
Se a maioria dos trabalhos referentes à resistência africana analisa os primeiros anos
da colonização (entre o final dos anos de 1800 e a primeira metade do século XX), não
estaria este trabalho cometendo um anacronismo ao propor o uso deste conceito para
analisar a fase final do colonialismo português em Angola? É na resposta a esta pergunta
que o debate historiográfico torna-se mais acirrado, havendo quem argumente que os
movimentos de resistência do início da colonização devem ser tratados separadamente às
posteriores guerras de independência, e também quem diga ser possível tratar ambos os
momentos como uma sequência.
Exemplos clássicos da primeira argumentação são os trabalhos de Henri Brunschwig
e Edward Steinhart. Apesar de diferenças argumentativas e ideológicas ambos concordam
que a resistência ao colonialismo ocorrida entre os anos de 1800 e início do séc. XX não
deve ser tratada em conjunto com as posteriores guerras de independência. Afirma
Brunschwig:
La filiation, que certains historiens etablissent entre la resistance et la liberation
nationale n'existe pas 'a notre avis.(...). On observe, au contraire, deux
mouvements paralleles l’un profondement enracine dans le passe, affaibli mais
encore capable de se manifester, l’autre issu de la collaboration, jeune, dynamique
et ambitieux. (BRUNSCHWIG, 1974, p. 63).
2
Assim, para Brunschwig a resistência estaria vinculada aos laços étnicos: “La
resistance, en effet, paralt intimement liee ‘a l’ethnie. Et cette ethnie, si difficile ‘a definir et
si constante, pourrait bien etre specifique de l’Afrique noire” de forma que os movimentos
independentistas estariam em outro plano organizativo em que as ideologias “importées
(sic) d’Occident, et assez souples elles-mêmes, assez ambigiües pour pouvoir s’adapter aux
peuples et aux circonstances” (BRUNSCHWIG, 1974, pp. 61, 64). Segundo Terence Ranger
tal linha argumentativa parte da premissa de que “o nacionalismo moderno e o pan-
africanismo são manifestações da tendência ao centralismo da inovação e à adoção de
grandes projetos, o que significa que pertencem a uma tradição diametralmente oposta à da
resistência” (RANGER, 2010, p. 66)
Edward Steinhart chegará a uma conclusão parecida. Para ele, tratar a resistência
como precursora das guerras de libertação nacional seria dar legitimidade aos numerosos
regimes comumente classificados de “autoritários” que se instalaram em vários países
africanos no pós-independência e consolidar uma espécie “de mito nacionalista”:

Instead of examining anti-colonial resistance, protest and liberation movements


through the distorting lens of nationalist mythology, we must create a better
“myth”, one better suited to interpreting the reality of African protest. (…). By
focusing on the leadership, the communicators, be they chiefs or political party
leaders, we have accepted an interpretation of anti-colonialism as African
nationalism, a movement to expel the aliens and restore “national” independence.
If instead we look within the protest movements, at leaders and followers alike,
we are apt to discover that the impulses which the leaders organize and interpret
are profoundly anti-authoritarian and revolutionary rather than anti-foreign and
“nationalist”. A “myth of popular insurrection” may lead us further and deeper in
our understanding of twentieth century movements of protest and liberation than
the failing “myth of nationalism” has brought us. Working out this interpretation
in detail is the arduous task facing historians and students of Africa who have
found nationalism a “false start.” (STEINHART,1993, pp. 362, 363)

Steinhart no fim das contas rechaça o vínculo entre guerras de libertação e


resistência anticolonial por conta do mito positivo desta última e dos vários aspectos
negativos que, segundo ele, decorreram da primeira. A associação entre os dois momentos
deformaria o “mito insurgente revolucionário” em detrimento de um “mito nacional”
tendencialmente autoritário. Steinhart parece querer, afirma Ranger, “reivindicar a herança
das resistências para a oposição radical ao autoritarismo nos novos Estados nacionais da
África” (RANGER, 2010, p. 66).
Em oposição a essas teses, Allen Isaacman argumenta, partindo do caso
moçambicano, que as lutas camponesas desse período acabaram por ser o germe da

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contestação que desembocaria na formação da FRELIMO (Frente de Libertação Nacional
de Moçambique), um moderno movimento nacionalista que encabeçou a guerra de
libertação:

A natureza do apelo, expressa em termos anticoloniais, e o alcance da aliança que


este apelo tornou possível, sugerem que a rebelião de 1917 ocupou uma posição
de transição entre as formas primitivas de resistência africana e as guerras de
libertação de meados do século XX. (...). A revolta de 1917 constitui a
culminação da longa tradição de resistência zambeziana e simultaneamente se
torna precursora da recente luta de libertação (ISAACMAN, 1979, pp. 288, 290)

Isaacman chega à conclusão de que as resistências anticoloniais gestadas entre os


anos de 1850 e 1921 constituem-se enquanto precursoras da guerra independentista,
afastando-se tanto de Brunschwig como de Steinhart.
Esse projeto afasta-se bastante de Brunschwig, pois, apesar de admitir que existam
deux mouvements paralleles creio que estes movimentos se encontram em vários momentos
e não são definitivamente intocáveis. Brunschwig parece não levar em conta as variadas e
incontáveis zonas de intersecção entre ambos. Admitir a existência destes deux mouvements
não significa admitir que sejam absolutamente indissociáveis e que não possam constituir-
se enquanto integrantes de um mesmo fenômeno. Ele acerta quando conclui que o primeiro
movimento é majoritariamente étnico com projetos locais e o segundo movimento traz um
projeto nacional (apesar de seu simplismo em creditar isso a uma cópia das ideologias
europeias), mas se equivoca ao ver tais linhas somente como paralelas. São também linhas
convergentes. Ambas as etapas não se excluem, pois muitas características dos movimentos
de resistência dos anos que vão de 1880 até a primeira metade do século XX continuarão
presentes nos movimentos nacionalistas e essa continuidade transparece na literatura da
guerra de libertação. Em síntese, Brunschwig ignora a “contemporaneidade do não
contemporâneo” (KOSELLECK, 2006, p. 317).
Entretando, continuidade deve ser encarada em perspectiva histórica e não político-
partidária, o rigor de análise que deve acompanhar a primeira não pode ficar à mercê das
flutuações da última. Nesse ponto Steinhart aponta um perigo a se ter em conta: o de tratar
esses movimentos de resistência como mitos fundadores de partidos nacionalistas que após
a independência mostraram práticas autoritárias. Nesse aspecto o MPLA não foi exceção. O
problema de se tomar a argumentação de Steinhart para o caso angolano é que parte-se do
pressuposto de que o MPLA era um todo homogêneo. Se por um lado várias facções do

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movimento irão fazer um uso negativo dos mitos de resistência, por outro lado outras
facções irão rechaçar tais usos justamente pelo seu anacronismo.
O MPLA não era um todo homogêneo, e que os aspectos dos romances de Pepetela
podem demonstrar isso, especialmente se os romances forem comparados com outras
fontes. Essa linha argumentativa longe de evidenciar análise anacrônica ajuda a constatar a
real mudança da resistência, no devir histórico angolano, sendo possível localizar suas
dissonâncias internas, pontos de continuidade e ruptura, o que ajuda a desmistificá-la.
Desmistificação esta tão cara ao próprio Steinhart.
Portanto, o equívoco de ambos é não notar o que José D’Assunção Barros designa
como “polifonia da realidade”:

Poderemos desenvolver um novo padrão de leitura do devir histórico se


considerarmos que a realidade é “polifônica”, isto é, que ela não avança em
blocos unificados, produzindo rupturas de tipo arqueológico (em camadas que se
sucedem). Ao contrário, poderíamos entender que o devir histórico (ou a
sensibilidade humana diante deste devir) apresenta na verdade uma natureza
musical, impulsionando-se a partir de melodias que se entrelaçam e que se
contraponteiam, umas convergindo com outras, em relação de divergência
(BARROS, 2012, p. 123)

Brunschwig e Steinhart tentam estabelecer “blocos” diferentes em uma mesma


experiência histórica. Esta experiência não precisa ser sempre uniforme para ser uma só,
justamente porque as modificações conjunturais fazem parte do devir histórico da
resistência.
Em contrapartida, Isaacman estabelece a resistência como sendo uma longa
tradição. A resistência africana só pode ser compreendida enquanto encarada como
sobreposições (e inter-relações) temporais dentro de uma mesma duração,iv manifestando-se
de formas variadas, tal como propuseram Abbink e Walraven. As resistências anticoloniais
do século XIX e da primeira metade do XX, devem estar inseridas no mesmo processo e na
mesma diacronia das lutas de emancipação nacional conduzidas por meios de expressão
modernos, pois, - seguindo a argumentação de Koselleck - : “É apenas por meio da
perspectiva diacrônica que se pode avaliar a duração e o impacto de um conceito social ou
político [como resistência], assim como das suas respectivas estruturas.” Isso não impede
que se analise sincronicamente um evento específico da resistência angolana, como é o
nosso caso com a guerra de libertação, mas é necessário integrar esse “ponto de vista
sincrônico” em torno das “suas alterações ao longo do eixo diacrônico” desembocando no

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estudo das “estruturas e suas alterações, como categorizado no âmbito da história social”
(KOSELLECK, 2006, pp. 105, 114, 115).
Nesse ponto nossa abordagem entra em consonância com a de René Pélissier para
quem após as primeiras experiências de resistência durante os anos de 1845 e 1941 se
elaboraria em Angola “um princípio de resistência política nacionalista” que deixava,

a sociedade tradicional para se lançar na conquista de um poder novo. Esse


princípio de nova resistência não se separou inteiramente da resistência inicial,
quanto mais não fosse pela impossibilidade de actuar no sertão analfabeto, sem
lhe descobrir elementos de enquadramento provenientes da etnia que se tentava
sublevar (PÉLISSIER, 1997, p. 288, 289).

A diferença entre nossa abordagem e a de Pélissier ou mesmo de Isaacman,


portanto, não está tanto na definição temporal da resistência africana, mas na fonte utilizada
para o estudo de sua formação. Nenhum dos dois faz uso da literatura em suas análises. O
uso de outra fonte implica olhar sob outra ótica para o mesmo objeto. Além disso, ao invés
de limitarmo-nos a uma narrativa da formação do nacionalismo angolano como herdeiro da
resistência anticolonial faremos um estudo da trajetória dessa resistência tomando a própria
guerra de libertação nacional como marco temporal atentando para os diversos modos que
essa resistência se dava. Dessa forma, a guerra de independência não é o nosso ponto de
chegada, como acontece com esses primeiros trabalhos em torno da resistência (Isaacman,
Pélissier, et al), mas é o nosso ponto de partida.
Sobre esses primeiros trabalhos afirmam Abbink e Walraven em um estudo recente:
“Un punto fundamental en la crítica a los primeros trabajos sobre el concepto de resistencia
es que se centran en las reacciones de los africanos contra el hombre blanco o el
colonialismo y no en su verdadero quehacer del desarrollo histórico” (ABBINK,
WALRAVEN, 2006, p. 16) Assim, estes autores tomam o conceito de resistência em
sentido amplo para falar de,

intenciones y de acciones por varias razones, siendo las más comunes la


percepción de acciones entendidas como injustas y los intentos de dominación
ilegítimos o intolerables. Los actos concretos de resistencia no tienen porqué ser
actos de violencia física, ampliándose también a otros círculos del
comportamiento humano. La resistencia debe definirse no tanto como un conjunto
de actos concretos sino por el intento de estos actos, con el objetivo de defender
situaciones sociopolíticas prexistentes, proteger y relanzar otros ideales de
civilización o, simplemente, defender estructuras de poder ya existentes, sean o
no elitistas (ABBINK, WALRAVEN, 2006, p. 16).

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Para a compreensão completa desse quehacer del desarrollo histórico da resistência
angolana é necessário ter a literatura inserida no contexto geral de libertação africana, como
forma de reação anticolonial. Coisa que a historiografia especializada não tem feito de
forma sistemática e em número considerável, mas é somente considerando esse legado
historiográfico em que a resistência aparece não como categoria abstrata ou estática, mas
enquanto realidade verossímil, que esse trabalho pode ganhar consistência analítica. Por
isso, Luandino, Pepetela e Santos Lima aparecem aqui não somente para que se aviste por
meio de uma representação ficcional as formas como as resistências se gestavam, mas sim
para compreender o surgimento dessas mesmas no devir histórico concreto angolano, o que
significa tratar, na trilha de Isaacman e Pélissier, a resistência como um longo processo, que
não só desemboca na luta independentista, mas se faz presente nela.
Tendo isso em vista, a fonte literária será analisada em uma dupla perspectiva:
enquanto universo ficcional em que são apresentadas as resistências anticoloniais (a
resistência étnica, a velada disseminada no cotidiano, a armada, etc.) e enquanto ele mesmo
como forma de contestação, portanto de resistência. Sendo a resistência encarada enquanto
fenômeno histórico que catalisa uma série de acontecimentos aparentemente desconectados
ou mesmo antagônicos tanto em se tratando de experiência literária como de consciência
histórica.
Dessa forma, os atos de resistência (realizados por pessoas reais, em contextos
igualmente reais, por mais que utilizemos uma fonte literária) localizados em um momento
histórico concreto e específico abarcam uma ampla gama do comportamento humano. Seja
pela violência física, seja pela intenção da mesma, ou por outras formas das mais variadas
como nos alerta a bibliografia especializada. Estas formas de resistência serão analisadas,
bem como o processo de sua formação partindo das três obras selecionadas: Muana Puó;
Mayombe e As Aventuras de Ngunga.

HISTÓRIA E LITERATURA

Em 1961, ano em que tem início a guerra pela libertação nacional, Angola era uma
das “províncias ultramarinas” portuguesas. Leia-se em “províncias” um eufemismo jurídico
para colônias. O território angolano estava inserido no então chamado “Terceiro Império
Português”. A configuração ideológica desse império é bastante tardia ganhando corpo

7
sistemático somente no final dos anos de 1920 e início de 1930 com a chegada de Salazar
ao poder.
O regime tinha como braço armado a Polícia Interna e de Defesa do Estado
(PIDE/DGS) e como cérebro a Igreja Católica, sendo ela que,

(...) difundia a ideologia da ordem, do status quo, da noção de dilatação da fé e do


império como fatos coligados indissociáveis; e num país camponês quase
economicamente estagnado, o salazarismo recorria frequentemente à sanção
religiosa do seu poder. (SECCO, 2004, p. 56).

Essa ideologia salazarista conferia as bases para o próprio colonialismo português.


Como Secco (SECCO, 2004, p. 67) observou a dilatação da fé estava intimamente
associada com a expansão do império. Dessa maneira a chegada de Salazar ao poder marca
uma nova fase no colonialismo português. Todavia, por trás da dilatação do império e da fé
havia, sem impropriedade ou exagero terminológico, um ato etnocidário levado a cabo por
uma civilização da barbárie. v
Na base desta civilização da barbárie duas ideias centrais se faziam presentes: o
Fardo do Homem Branco e o Darwinismo Social. Essas duas pontas do mesmo arco
colonial foram retomadas por Portugal quando já caiam em pleno descrédito no restante da
Europa. Defendia-se a conquista do que se chamava de “raças sujeitas”, ou “não evoluídas”,
pela “raça superior”, invocando o “sucesso inelutável da seleção natural presente em
Darwin em sua obra A origem das espécies” (UZOIGWE, 2010, p. 25).vi
O racismo, eticamente justificado pelo Fardo do Homem Branco e cientificamente
comprovado pelo Darwinismo Social tornava-se socialmente aceito, o que levou Frantz
Fanon a afirmar que “estudar as relações entre racismo e cultura é levantar a questão de
uma ação recíproca” (FANON, 2011, p. 274).vii O racismo (ou a inferiorização do outro, de
maneira mais geral) era o resultado a nível concreto da “cultura imperial”. Para colonizar
era preciso coisificar, criar esse “homem-objecto, sem meios de existir, sem razão de ser”
destruindo-o no “mais profundo da sua existência” (FANON, 2011, p. 277). Ou seja, o
colonizado é criação imposta do colonizador, conforme a conhecida tese de Memmi: “(...) a
existência do colonizador demanda e impõe uma imagem do colonizado” (MEMMI, 2007,
p.117). Mário Pinto de Andrade por sua vez afirmou que essa criação (sempre mistificada e
estereotipada) do homem e da mulher colonizados desembocava no “binómio branco/negro
e a ação comando/obediência e, como seu corolário o paternalismo tutelar” (ANDRADE,
1997, p. 26).
8
Enquanto em Portugal passava-se por essa consolidação do salazarismo e
radicalização do argumento colonial, em Angola evidencia-se a perseguição aos opositores
do regime. Durante esse período, entre finais dos anos 1920 e início de 1930, jornais de
oposição como O Angolense, A Verdade e O Independente foram fechados e seus
apoiadores tratados a ferro e fogo pela administração colonial.viii Essa geração teve durante
esses anos a voz calada em uma perseguição tão implacável que seria necessário esperar
uma geração inteira - até os anos de 1950 - para reaparecerem vozes opositoras organizadas.
Segundo Douglas Wheeler: “Portugal nesse período, instaurado o Estado Novo, começava a
impor uma política de unidade sob o pretexto de necessidade patriótica, (...) e; aqueles que
já não aplaudiam foram silenciados.” (WHEELER, PÉLISSIER, 2011, p. 188). Em síntese
afirma o historiador estadunidense:

A primeira republica morreu em 1926. A sua extinção marcou o fim de uma fase
importante da história de Angola e do nacionalismo angolano. Uma geração
inteira de assimilados moderados foi neutralizada ou purgada no período de 1923-
30, e o nacionalismo angolano entrou em fase de silêncio e inactividade. Seria
preciso esperar mais 20 anos para que ressurgisse uma geração de activistas
rebeldes, ao passo que os assimilados, já mais velhos, cujas esperanças tinham
sido inflacionadas pela república, tentaram salvar o que podiam dos seus
empregos e posições. (WHEELER, PÉLISSIER, 2011, p. 188).

Essa primeira experiência de oposição ao regime colonial levada a cabo pelos


assimilados pode ser definida como protonacionalista. Nesse contexto juridicamente
chamava-se “assimilado” ao “negro ou mestiço que obteve a cidadania portuguesa. Por
extensão: um ‘evoluído’, um ‘não-indígena’” (PÉLISSIER, 1997, p. 353). Contudo, a
oposição não se dava somente entre os assimilados citadinos. Tínhamos também o
fenômeno ao qual denominamos etno-resistência, principalmente ao sul de Angola
expressa, sobretudo, pelos Ovambo. De maneira bastante simples esse tipo de resistência se
caracterizava pela ação armada e pela defesa do território invadido. Comumente essa defesa
se deu no interior de Angola em zonas rurais. Na prática tentava-se fazer permanecer as
estruturas sociais pré-coloniais. A consciência contestatória era étnica e não nacional. A
etno-resistência terá sua última grande expressão em 1941 com a revolta dos Cuvales.
Os protonacionalistas em oposição constituíam-se como já dito em um grupo
bastante reduzido e específico de assimilados, mestiços ou negros, com acesso à redação de
jornais. Não havia movimentação armada e a concentração era urbana e não rural. Essa
resistência é protonacionalista por não ter necessariamente um caráter independentista
radical. Sobre isso afirma Mário de Andrade:
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Levámos anteriormente enunciado que as elites letradas nas sociedades africanas
emergiram entre as camadas sociais privilegiadas, pelo jogo da mobilidade
vertical induzida pela necessidade de quadros subalternos para o exercício da vida
administrativa, no âmbito do sistema político e económico vigente. (...).
Encarados no seu conjunto, trata-se de autodidactas que desempenham o papel de
reprodutores de um saber essencialmente humanista. (ANDRADE, 1997, p.39).

Ainda segundo Andrade: “Naquele devir histórico, competiria aos letrados


materializar (...) a capacidade dos ‘filhos da terra’ ascenderem social e culturalmente e de
comparticiparem na direção do poder colonial” (ANDRADE, 1997, p. 55). Justamente por
possuir essas características é que o protonacionalismo apesar de exercer papel
contestatório não pode ser identificado com a resistência nacionalista posterior. Nesse
primeiro momento as reivindicações eram, em geral, de comparticipação na administração
colonial, e não de extirpação da mesma. O nacionalismo revolucionário angolano foi na
prática e na teoria a espécie de síntese acrescida de tons bastante originais dessas duas
resistências anticoloniais tão diferentes entre si. Por um lado seus participantes eram
provenientes das áreas urbanas, tal como os protonacionalistas. Ao contrário destes, porém,
se traziam a insígnia de assimilado não buscavam comparticipar na administração colonial e
sua educação europeia não excluía a herança africana. O que leva alguns autores a adorarem
a designação de crioulos para estes designar estes novos nacionalistas:

O assimilado corresponde, no colonialismo português, a um estatuto jurídico com


pretensões de legislar sobre fenômenos culturais, o crioulo, conforme o
encaramos, é um termo que está ligado a uma perspectiva tão comente cultural.
(...). A crioulidade implica síntese e a assimilação, da forma como era entendida,
opção. Evidentemente, o facto de muitos crioulos terem alcançado tal estatuto –
assimilação – não significou a sua submissão à cultura portuguesa em detrimento
da vertente africana” (BITTENCOURT, 1999, p. 95, 96).

Por outro lado apesar de assimilados estes insurgentes traziam para si as dores das
populações rurais e da etno-resistência anterior.
Os novos nacionalistas irão se abrigar sob a revista literária Mensagem. Fundada por
um grupo de intelectuais angolanos em Luanda em 1948 e tendo na linha de frente Viriato
da Cruz essa revista é o marco do regresso à resistência por meio da imprensa. Esse
momento caracterizou-se pela retomada do interesse pelos costumes, pela história e cultura
tradicionais de Angola. Esse movimento de “regresso às fontes” foi sintetizado na palavra
de ordem “Vamos descobrir Angola” também estabelecida por Cruz. Em síntese
Mensagem, era dedicada à poesia em português de cunho não diretamente político-
partidário, o que não significa que tenha passado despercebida pelos censores coloniais,

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pois a poesia apesar de não expressar “pontos de vista directamente políticos” a tudo atingia
“através da força poética”. Força esta de caráter “indirectamente subversivo para o conjunto
da ordem estabelecida”. (DAVIDSON apud FERREIRA, 1977, p.152).
Nas palavras do próprio Viriato da Cruz:

O movimento (...) deveria retomar, mas sobretudo com outros métodos, o espírito
combativo dos escritores africanos dos fins do século XIX e dos princípios do
actual. Esse movimento combatia o respeito exagerado pelos valores culturais do
ocidente (muitos dos quais caducos); incitava os jovens a redescobrir Angola em
todos os seus aspectos através dum trabalho colectivo e organizado; exortava a
produzir-se para o povo; solicitava o estudo das modernas correntes culturais
estrangeiras, mas com o fim de repensar e nacionalizar as suas criações positivas
e válidas; exigia a expressão dos interesses populares e da autêntica natureza
africana, mas sem que se fizesse nenhuma concessão à sede de exotismo
colonialista. Tudo deveria basear-se no senso estético, na inteligência, na vontade
e na razão africanas. (CRUZ apud ANDRADE, 2011, p. 189).

Não se tratava, portanto, de repensar um caso particular de determinado grupo


étnico, mas sim da nação inteira. De maneira que a forma literária fosse a “expressão dos
sentimentos do homem angolano”, contudo não se restringindo a um círculo de assimilados,
mas “descendo a rua”, identificando-se com os anseios populares (ANDRADE, 2011, p.
193). Assim, o “homem-objeto” criado pelo colonialismo dava lugar ao colonizado
revoltado. O substrato cultural africano até então negado era retomado e usado como
justificativa para a contestação. Figuras como o negro, o africano, o mestiço, aparecem na
literatura não mais em caráter estereotipado e mistificado, mas sim enquanto “elementos de
ligação fraternal para com a comunidade dos oprimidos, confrontando as dores e as
esperanças, (...).” (ANDRADE, 2011, p. 193).ix
Literatura e resistência se consubstanciam de maneira a uma ser medida exata do
desenvolvimento da outra. Quanto mais patente o conflito mais intervencionista a temática
se tornava de maneira que,

a maturação ideológica concomitante com a radicalização das formas de luta, o


próprio instrumento linguístico tendendo a uma independência semântica, e
sobretudo o comprometimento do sujeito-poeta nas batalhas populares permitiram
lançar as bases da identificação do autor com o seu público. (ANDRADE, 2011,
p. 192).

Nasce assim a resistência literária angolana em sua face nacionalista revolucionária.


Não mais reformista como os protonacionalistas, mas também não mais focal como a etno-
resistência. A partir do empreendimento literário retomado com “outros métodos”, (nas

11
palavras de Cruz) e do retorno à tradição tipicamente angolano-africana estabelecia-se um
projeto a nível nacional e revolucionário.
O moderno nacionalismo angolano que tem sua semente em Mensagem é a síntese
desses dois modelos insurgentes tão diferentes entre si. Isso reforça nossa argumentação de
que tal nacionalismo é continuidade das resistências anticoloniais dos períodos anteriores.
Se por um lado estes poetas irão propor a libertação (e construção de fato) da nação por
outro irão catalisar os elementos pré-nacionais. Argumentos estes postos à prova com o
início da guerra pela libertação nacional em 1961. Muana Puó de Pepetela expressa bem
esse diálogo entre por um lado a narrativa da nova nação e do outro os elementos
tradicionais herdados do passado pré-colonial bem como a resistência libertária do período.
Escrita no exílio em Argel esta obra é protagonizada por dois personagens coletivos,
os Morcegos e os Corvos:

Deus criara o Mundo, os corvos e os morcegos. Moviam-se em ciclos de vida e de


morte. Os morcegos criavam o mel para os corvos e alimentavam-se dos
excrementos destes. Os corvos grasnavam, a função deles era grasnar. (...). Deus
criara o Mundo oval, coerente, perfeito. Uma única lei fizera: ninguém deveria
subir à montanha, mais alta que o céu, onde o Sol era azul e lançava dardos da cor
das rosas.
Os corvos eram livres naquele mundo oval. Grasnavam se quisessem. De qualquer
modo, os morcegos teceriam o mel de que se alimentavam. Esse mel dava-lhes
forças para melhor chicotearem os morcegos, exigindo maior rendimento. Deus
era justo, grasnavam os corvos. E faziam os morcegos recitar esses preceitos
divinos. (...).
Religiosamente, os corvos rodavam em círculo, sem ousar subir à montanha, e
impedindo os morcegos de o fazer. (PEPETELA, 1995, p. 22, 23).

Parece ficar patente mesmo na leitura mais superficial a ligação entre o Deus dos
corvos e as justificativas do Estado Novo. Deus remeteria tanto ao cérebro do regime, A
Igreja Católica, como às justificativas da colonização, o Fardo do Homem Branco e o
Darwinismo Social. Através desse tripé a metrópole levaria a civilização à colônia.
Contudo, segundo Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus afora as justificativas imperiais e
do ideário civilizatório a quase totalidade dos angolanos, “permaneciam à margem da
escola.” (CABRITA MATEUS, MATEUS, 2011, p. 36). Essa era uma das maneiras de
impedir que os morcegos alcançassem a montanha.
Em finais dos anos 1950 somente 8% das crianças em idade escolar frequentavam a
escola, isso em se tratando do ensino primário. Dos poucos que conseguiam chegar ao
ensino secundário era-lhes permitido apenas cursos técnicos e profissionalizantes, sendo a
cor da pele determinante para os estudos. Em Angola em meados de 1948 “nos dois liceus
12
existentes, em Luanda e no Lubango, estavam matriculados apenas cinco estudantes
negros” (CABRITA MATEUS, MATEUS, 2011, p. 37). x Não era de se estranhar que no
início da guerra de libertação, quando vem à luz Muana Puó os motivos fossem mais raciais
do que políticos como afirmou em certa ocasião Pepetela.xi
Outro elemento importante é a metáfora do mel. Apesar de fabricado pelos
morcegos era consumido pelos corvos e a estes restavam os excrementos. A metáfora
remete à exploração econômica, seja da terra e seus recursos minerais, ou do homem e
mulher angolanos e sua força de trabalho.xii Em suma os morcegos estavam sujeitos à
mesma “exploração desenfreada a que estavam submetidos os povos coloniais e o caráter
profundamente parasitário da colonização portuguesa” (CABRITA MATEUS, MATEUS,
2011, p. 37).
Diante desse estado de coisas não seria improvável uma revolta dos morcegos:

Os morcegos procuravam a luz. E aproximavam-se, vindos dos dois lados da base


da montanha.
Sem o saberem, ele dum lado, ela do outro, aproximavam-se, no meio das hordas,
da base da montanha.
Os corvos grasnavam ao sacrilégio. Desciam em voo picado contra eles. O
irreparável ia dar-se.
(...)
E lutaram. Os corvos bateram em retirada e eles atingiram o alto da montanha.
Não se tinham enganado. O sonho era verdadeiro. Pela primeira vez, os morcegos
viram a luz do Sol. Ao lado, muito longe, as fronteiras de arame farpado que
delimitavam o mundo oval. (PEPETELA, 1995, p.35-42).

A tomada da montanha pelos morcegos pode entrar em consonância com os eventos


do limiar da luta de libertação, no início dos anos 1960 quando aparecem as primeiras ações
armadas depois de um intervalo de vinte anos (desde a revolta dos Cuvales de 1941). Nesse
momento aparecem núcleos de resistência armada bastante significativos em pontos
diferentes de Angola.
O primeiro ato de resistência em grandes proporções nesse período é o episódio
ocorrido na região da Baixa do Cassange. A revolta aconteceu nos meses de janeiro e
fevereiro de 1961 e contou com greves de trabalhadores e ataques armados. Na maioria
armas brancas (majoritariamente facões) ou mesmo objetos de trabalho. Esse ato de
resistência foi substancialmente espontânea e vinculada à insatisfação popular frente às
condições de vida que o lugar ofertava. xiii
Outra rebelião a se ter em conta é a sublevação ocorrida em fevereiro do mesmo ano
em Luanda. O mais significativo desta revolta é que colocou efetivamente por terra o

13
argumento colonial da “harmonia racial” mantida na colônia em especial nas áreas urbanas.
A partir desses episódios a luta anticolonial iria continuar a desenvolver-se, o que corrobora
a “tese de que a harmonia racial não passava de uma fachada construída pelo colonialismo
português, já que a frustração com tal situação será um dos principais combustíveis para a
luta” (BITTENCOURT, 1999, p. 22).
Ao chegarem à montanha, após expulsarem os corvos, os morcegos “compreendem
então que Deus era uma invenção dos corvos, com que tinham desde sempre subjugado, pra
terem o mel sem trabalhar”. Daí em diante o conflito fica mais acirrado e os morcegos
“desceram das montanhas, agora lúcidos, atacando os corvos nas suas guaritas. Combates
sangrentos e desiguais. Os morcegos eram numerosos, mas os corvos tinham garras e bicos
pontiagudos, mortais.” Para ultrapassar as desvantagens os morcegos “escondidos,
esperavam um corvo solitário e caíam aos bandos sobre ele” (PEPETELA, 1995, p. 44, 47,
48). Basicamente tem-se aqui de maneira alegórica tanto os confrontos pós-61 em que a
ação começava a ganhar corpo sistêmico, pois os morcegos já estavam “lúcidos” e tentavam
desvencilhar-se da alienação imposta pelo colonizador. De morcegos tentavam
transformarem-se em homens. Ao final o objetivo é alcançado.
A representação alegórica e a linguagem extremamente metafórica e simbólica
deste primeiro romance irão, contudo, dar lugar paulatinamente a tons mais realistas
proseados. Tanto o processo de tomada de consciência como o conflito aparecerão nos
outros dois romances não mais como universo poético inefável, mas como realidade
pujante. Essa transformação estética é perceptível, sobretudo se Muana Puó for comparada
com a terceira narrativa da Trilogia pepeteliana, As aventuras de Ngunga.
A metamorfose narrativa (do poético-metafórico para o narrado-direto) deve-se,
sobretudo, à diferença de dois momentos. Se em 1969 Pepetela ainda se encontrava exilado
em Argel seria compreensível se sua percepção do conflito fosse, por mais que apoiasse a
causa, distante e sua participação indireta. Também para o MPLA, Movimento Popular Pela
Libertação de Angola, ao qual Pepetela estava vinculado os anos de 1968-69 são centrais,
pois se trata de um período de transição em que o MPLA toma realmente um corpo
sistêmico de guerrilha. Já em quando As aventuras de Ngunga vem à luz Pepetela esta na
frente de combate, sua vivência da guerrilha é direta sem as mediações proporcionadas pelo
exílio, daí resultando seu aspecto mais direto.

14
Sabemos que não é preciso estar na guerra para descrevê-la ficcionalmente, se assim
fosse os escritos de Luandino Vieira não teriam valor documental para a análise da
guerrilha visto que o autor descreve - ainda que parcamente – cenas de batalha (como em
Nós, os do Makulusso, ou A vida verdadeira de Domingos Xavier) estando, porém, preso e
não empunhando armas. Entretanto, a vivência de Luandino na prisão faz com que a imensa
maioria de suas estórias tenha o cadafalso como espaço narrativo privilegiado.
Comprovação disso é que Luandino passa a privilegiar a guerrilha somente em seus escritos
mais recentes (O Livro dos Rios e O Livro dos Guerrilheiros). Tal também ocorre com
Uanhenga Xitu, ou o moçambicano José Craveirinha, ambos escrevendo em cadeias, ou
com o queniano Ngugi Wa Thiongo, por vezes escrevendo a partir do exílio por vezes da
prisão. A imaginação do autor tem grande peso, mas certamente a posição em que se
encontra no momento histórico em que escreve também. Podendo variar a perspectiva,
nesse caso da literatura de resistência africana, entre guerrilha, prisão e o exílio.
Por sua posição de guerrilheiro Pepetela escreve as As aventuras de Ngunga (AVN)
em formato de folheto em que se conta a formação e a tomada de consciência da
personagem que intitula a obra. As dimensões da obra (59 páginas somente) e sua estrutura
muito mais simples, especialmente se comparada com as duas anteriores (Muana Puó e
Mayombe), pode ser explicada pela necessidade pragmática do momento, a mobilização
política urgente da massa camponesa analfabeta ou com parco domínio da leitura. Nisso
este romance não se afasta dos primeiros poemas da geração Mensagem. Tanto AVN como
seus predecessores (Viriato da Cruz e Agostinho Neto, etc.) buscavam não só resistir pelas
letras, mas especialmente mobilizar através dela.xiv Se AVN mostra-se mais direto que
Muana Puó isto se deve ao recrudescimento do combate e a necessidade pragmática, e nisso
Angola não foi exceção para com a “lei geral” da formação da literatura africana de
resistência tal como propôs Fanon: “Parece existir una especie de organizácion interna, uma
ley de la expresión que quiere que las manifestaciones poéticas escaseen a medida que se
precisam los objetivos y los métodos de lucha de liberación”, de forma que AVN seria não
só uma literatura de resistência mas também de combate ao contrário de Muana Puó pois
informaria “a la conciencia nacional”, lhe dando “forma y contornos” enquanto abriria
“nuevas perspectivas. Literatura de combate, porque se responsabiliza, porque es voluntad
temporalizada” (FANON, 2001, p. 219, 220). O tempo mítico de Muana Puó é agora
plenamente humanizado.

15
Daí também que não se estranha que AVN tenha sido publicado logo após sua
escrita. Foi imediatamente policopiado e distribuído nas frentes de batalha. Enquanto MP
só conheceu publicação nos anos de 1980. Isso não torna Muana Puó uma narrativa menos
insurgente, pois como propôs Crummey a resistência também pode ser silenciosa ao
contrário de outras formas de oposição anticolonial como o protesto: “Protest studies, so far
as we can distinguish them from resistance studies, imply somewhat different contexts.
Protest entails a higher degree of vocalization. By contrast, resistance may appear mute, and
stealth may be one of its essential features.” (CRUMMEY, 1986, p. 10). Assim a obra final
da Trilogia pepeteliana mostra características que a primeira obra não possuía a necessidade
pragmática de organização, a mobilização ideológica, daí ser ela uma narrativa de
resistência bem como de combate ou de protesto
A linguagem simples e direta era naquele momento a melhor maneira de se fazer
compreender pelaa população rural que por vezes desconhecia a língua portuguesa. Ngunga
é ele próprio um garoto de 14 anos analfabeto e conhecedor do Kimbundo, mas não do
português. A libertação é sempre associada com a educação e esta por sua ver com a
conscientização política, pois com a chegada da escola o povo do qual Ngunga fazia parte
“começava a ser livre” e,

O Movimento, que era de todos, criava a liberdade com armas. A escola era uma
grande vitória sobre o colonialismo. O povo devia ajudar o MPLA e o professor
em tudo. Assim, o seu trabalho seria útil. As crianças deveriam aprender a ler e a
escrever e, acima de tudo, a defender a Revolução. Para bem defender a
Revolução, que era para o bem de todos, tinham de estudar e ser disciplinados.
(PEPETELA, 1983, p. 24).

O impacto da filiação libertação-educação-conscientização em Ngunga é perceptível


em sua tomada de consciência revolucionária, quando é preso pela policia política
salazarista (PIDE/DGS), nesse momento, “Pela primeira vez Ngunga deu razão ao
professor, que lhe dizia que um homem só pode ser livre se deixar de ser ignorante.”
(PEPETELA, 1983, p. 37). Deduzimos que esse mesmo impacto experimentado por
Ngunga também o foi pela massa campesina com acesso ao escritos mobilizadores da
época, fossem poéticos e ficcionais ou não. A esses escritos pode-se atribuir a mesma
argumentação de Christopher Hill para o caráter político da Bíblia nas revoluções ocorridas
na Inglaterra do séc. XVII. Para Hill o novo testamento, bem como para nós AVN, estava
“repleto de ideias libertárias que poderiam causar grande impressão sobre pessoas que o
viam como um guia em tempos de opressão política e social.” de maneira que “homens e
16
mulheres iletrados” que alfabetizavam-se com o folheto de Ngunga, podiam ver nesse texto
uma “relevância política imediata.” (HILL, 2003, p. 256). Afinal o que poderia ser mais
urgente e imediato que a correta distribuição da colheita? Como era o caso do soba (chefe
tradicional) Kafuxi que escondia parte da lavra para não dividi-la com os guerrilheiros e
com os demais membros da aldeia:

Quando chegava um grupo de guerrilheiros ao kimbo, Kafuxi mandava esconder a


fuba. Dizia às visitas que não tinha comida nenhuma. Se alguma visita trouxesse
tecido, então propunha a troca. (...). Se a visita não tivesse nada para trocar, então
partia d kimbo com a fome que trouxera. (PEPETELA, 1983, p. 15).

A isso Ngunga se indagava: “Todos os adultos eram assim egoístas? (...) Até um
chefe do povo – como Kafuxi – escolhido pelo Movimento para dirigir o povo. Estava
certo?” (PEPETELA, 1983, p. 15). Por maior que fosse o caráter imediato do texto ele não
poupava elementos de autocrítica ao movimento. É pouco provável que os camponeses ao
lerem ou ouvirem a história de Ngunga se identificassem menos com a personagem por
conta de suas reservas a alguns lideres. Pelo contrário concluímos que é pela autocrítica que
o autor reforça a resistência bem como a autonomia do leitor/ouvinte a partir do momento
mostra ao a este leitor (ou ouvinte) que é infrutífero um “retorno à tradição” de forma
acrítica, como seria o caso se Ngunga justificasse a retenção de fuba do Soba usando como
argumento a autoridade tradicional deste.
Dessa forma, os elementos da tradição não são mais somente recursos poéticos
como em Muana Puó, mas são antes formas de criar o novo. Por onde quer que a estória de
Ngunga tenha viajado no interior de Angola modificou a paisagem ideológica dos lugares,
pois a chegada de “um porta voz do MPLA” como este folheto romanceado evidenciava a
capacidade do MPLA apontada por Basil Davidson para integrar os camponeses “num
movimento de resistência que continuava a ser simultaneamente modernizante e tradicional,
mas em que os elementos de modernização se iriam sobrepor cada vez mais” (DAVIDSON,
1977, p. 26). Claro que Ngunga não convenceu a todos visto que, ainda segundo Davidson
“os ‘intelectuais e homens da cidade’ aceitaram a necessidade da resistência armada” sendo,
contudo, “seguidos pelos camponeses (...) com graus variados de apoio ou de participação.”
(DAVIDSON, 1977, p. 15).
Na narrativa Ngunga torna-se portador da consciência revolucionária. Ao fim fecha-
se o ciclo de maturação ideológica da personagem: “Um homem tinha nascido dentro do
pequeno Ngunga” (PEPETELA, 1983, p. 57). Só que o final da história de Ngunga é o

17
início de outra, e nas páginas finais do epílogo o escritor faz às vezes de pedagogo e
ideólogo se dirigindo diretamente ao leitor:

Vê bem, camarada.
Não serás, afinal, tu? Não será numa parte desconhecida de ti próprio que se
esconde modestamente o pequeno Ngunga?
Ou talvez Ngunga tivesse um poder misterioso e esteja agora em todos nós, nós os
que recusamos viver no arame farpado, nós os que queremos o mel para todos.
Se Ngunga está em nós, que esperamos então para o fazer crescer?
Como as árvores, como o massango e o milho, ele crescerá dentro de nós se o
regarmos. Não com água do rio, mas com a que Uassamba em sonhos oferecia a
Ngunga: a ternura. (PEPETELA, 1983, p. 59).

Ngunga pode ser sintetizado na unidade forjada através da resistência. O romance


constitui-se dessa forma enquanto “un outil efficace pour la transmission tout à la fois
clandestine et didactique de valeurs ideólogiques, particulièrement dans un contexte
historique marque par la guerre coloniale et la censure”. (PEREIRA, 2010, p. 137).
Contudo, para se chegar à unidade seria necessário catalisar o coro das vozes guerrilheiras.
Todos poderiam ser Ngunga, mas cada um o era a sua maneira. E essa polifonia ideológica
que influenciou as formas de expressão da resistência nos é dada pelo segundo romance da
Trilogia, Mayombe.
De acordo com as conclusões expostas sobre os dois romances até o momento
trabalhados concluímos que no caso angolano a resistência anticolonial expressava-se tanto
através da literatura, sendo esta o meio de vincular o passado insurgente (ou em outros
casos os vínculos da tradição) com o combate pela libertação nacional, ou mesmo era a
própria literatura forma de mobilização pragmática. Do primeiro caso Muana Puó mostra-
se como um exemplo, As aventuras de Ngunga por sua vez apresenta-se como a narrativa
da intervenção em sentido mais direto. Mas entre essas duas narrativas curtas, a primeira
datando do início do conflito e a segunda de seu período final há a narrativa de maior fôlego
que exerce o papel de mediadora entre a retrospectiva da tradição e a construção da nova
nação e do novo homem. Mayombe escrito em 1972 quando o escritor se encontrava em
combate na frente leste.
Mayombe é um romance de tipo polifônico e dialógico. Com isso afirmamos que a
obra se encaixa na conhecida definição bakhtiniana pensada para os romances de
Doistoiévski. Tal ocorre, pois nesse romance notamos aquela “independência psicológica e
intelectual” das personagens de maneira que suas individualidades são destacadas, mas
sempre enquanto submersas em um “universo social plural” o que faz com que tais

18
personagens tornem-se “dotados de consciência e igualmente plurais” (BEZERRA, 2011, p.
X). Nenhum personagem se aliena perante os outros, isto é, em nenhum momento um
personagem torna-se objeto da narrativa do outro. As narrativas são plurais, intercaladas
umas nas outras. Isso torna o romance dialógico, pois os conflitos de ideias da narração
particular de cada personagem se chocam com a narrativa que vem em seguida explicitando
bem o que Bakhtin chamou de “multiplicidade de posições ideológicas equicompetentes”
desembocando na extrema “heterogeneidade da matéria” (BAKHTIN, 2011, p. 19).
Além de polifônico e dialógico, Mayombe é também um épico. Não em sentido
vulgar de mero conjunto de aventuras, mas sim enquanto remetendo esteticamente ao épico
homérico. Tomamos a assertiva de Bernard Knox, para quem geralmente o épico “anuncia
o ponto da história em que ela começa e prossegue em ordem cronológica até o fim”
(KNOX, 2011, p. 17). É exatamente essa a estrutura básica do romance pepeteliano. No
incipit temos: “Aos guerrilheiros do Mayombe,/que ousaram desafiar os deuses/ abrindo um
caminho na floresta obscura,/Vou contar a história de Ogun,/o Prometeu africano.” E na
última linha do romance: “Tal é o destino de Ogun, o Prometeu africano.” (PEPETELA,
2009, p. 9, 252). Nessa estrutura épico-polifônica (visivelmente mais complexa que as
outras duas narrativas) Mayombe só é ombreado na literatura angolana por As lágrimas e o
vento, de Manuel dos Santos Lima. É essa polifonia dialógica que nos remete ao
background ideológico do momento enquanto seu caráter épico resguarda a experiência de
resistência tomada em longa tradição.
Do ponto de vista ficcional tal longa tradição faz com que as fronteiras entre o
tempo do mito conviva com o tempo dos homens. Se Ogum abre e encerra a narrativa é,
porém, as personagens com feições humanas, os guerrilheiros predominantemente, que
preenchem o núcleo do romance. O romance é narrado respectivamente por Teoria,
Milagre, Mundo Novo, Muatiânvua, André, Chefe do Depósito, Chefe de Operações,
Lutamos, Comissário. Cada um expressa uma forma de vivência da resistência. Em nossa
abordagem identificamos respectivamente a personagens Comissário e Sem Medo e
Muatiânvua por outro – que em momento algum narra o romance, apesar de mostrar-se
como personagem como possível protagonista – como sendo os mais próximos do
“arquétipo de Ogum”, isto é o guerrilheiro ideal tipo, o homem novo a ser encarnado
posteriormente em Ngunga no romance de 1973.

19
É como se o autor, tal como afirmou Salinas Portugal, “ao contrário da tendência
dominante nos métodos de interpretação mítica” queira “integrar a interpretação sócio-
ideólogica na sua análise mítica”. (PORTUGAL, 2001, p. 71). Mas o mito do qual Salinas
Portugal trata é o “mito” enquanto abstração imaginária desvinculada do contexto histórico
humana, intrinsicamente ligado às análises do inconsciente coletivo e das relações do
xv
homem com o sagrado tal como teorizou Jung e Girard. O nosso “mito”, porém, é o
histórico.
Não estaria Pepetela incorrendo na fundação de um mito nacionalista
tendencialmente autoritário utilizando para isso o capital simbólico da tradição africana que
remete por sua vez a uma tradição de resistência localizada em um espaço-tempo que foge
ao da narrativa? Ou, em outras palavras: Ao se valer de figurações imagéticas como Ogum,
personagem mítica não angolana bem como de Muatiânvua, lendário rei africano, para
nomear uma de suas personagens Pepetela não estaria aproximando-se da tradição pan-
africanista de unidade intrínseca do continente africano, ao mesmo tempo em que se vale de
um passado insurgente longínquo localizado já no tempo do mito para legitimar a guerrilha
então corrente, fazendo assim o uso equivocado desse passado para legitimar facções
políticas modernas tal como sugeriu Steinhart?
A resposta a esta pergunta nos leva a considerar que existem duas formas de uso do
mito para o fomento da resistência africana, tal como a própria análise de Steinhart deixa
entrever. Steinhart alega que os movimentos nacionalistas (como o MPLA) utilizariam o
capital simbólico do passado insurgente para criação do mito nacionalista a fim de legitimar
práticas por vezes autoritárias por parte destes movimentos (STEINHART, 1993, p. 362). A
essa “mitificação da resistência” chamamos de negativa. O uso negativo das tradições
insurgentes é perceptível em, por exemplo, Sekou Touré. Este líder político da Guiné-
Conacri, “mandiga de etnia, reclamava-se, por parte da sua mãe, descendente de Almy
Samory – parentesco não poucas vezes posto em causa – chefe de guerra africano do século
XIX, fundador de um efémero reinado (1882-1898). (…)” de forma que Touré, em vários
momentos evocou a memória de seu suposto antepassado “para criar consenso nacional”
(TOMÁS, 2011, p. 278). Touré capitalizava para si o uso de determinada memória
insurgente, assim assegurava-se no poder e legitimava suas ambições políticas. Este é o uso
condenado por Steinhart. Chamamos de negativo, pois ao se valer de uma tradição libertária
para ações autoritárias acaba simplesmente negando essa mesma tradição.

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Contudo, afirma Steinhart que se faz necessário o estabelecimento de outro mito:
“we must create a better ‘myth’, one better suited to interpreting the reality of African
protest”. (STEINHART, 1993, p. 363). Essa outra forma de utilização do mito insurgente –
a qual denominamos de positiva – se dá não mais na pragmática da política partidária, mas
sim enquanto catalizador de anseios e aspirações coletivas de libertação. É este o Ogum de
Pepetela; um corte transversal na narrativa ocupada interiormente por uma pluralidade de
vozes que mesmo dissonantes entre si atuavam dentro do mesmo ideal revolucionário, isto
é, resistente. É positivo, pois mesmo que não reclame para si a herança direta, como no caso
de Ogum ou Muatiânvua figuras que teriam vivido em territórios não angolanos, faz um uso
desse mito com vias a libertação presente sem contornos chauvinistas.
Prova dessa utilização positiva e não romantizada do guerrilheiro/Ogum é a
passagem em que Muatiânvua, perdido em campo de batalha, precisa ser resgatado:

- Ninguém se queria oferecer, porque Muatiânvua é um destribalizado. Fosse ele


quicongo ou quimbundo e logo quatro ou cinco se ofereceriam. Quem foi?
Lutamos, que é cabinda, e Ekuikui, que é umbundo. Uns destribalizados como
ele, pois aqui não há outros cabindas ou umbundos. É assim que vamos ganhar a
guerra? (PEPETELA, 2009, p. 53).

A indagação repreensiva parte do comandante Sem Medo. Nela há a problemática


da constituição da nação em Angola, ao que a maioria dos autores chama de busca da
angolanidade. Sobre esta procura na constituição nacional, argumenta Benjamin Abdala Jr.:

É assim que podemos ler a obra de Pepetela em sua trajetória artística, quer
focalizemos as atitudes dos personagens, quer o conjunto de sua obra. Em suas
primeiras produções, embalado por um sonho equivalente ao de Ícaro, Pepepela
constrói imagens literárias, que podem ser situadas como materialização de um
sonho prospectivo, certamente latente na própria realidade. Como imagem dessa
realidade humana em forma de amanhã, (...). (...). Estava latente nessa imagem a
ideia de um Estado-nação que comtemplasse dialogicamente a diversidade dos
povos angolanos e também a ideia de que o próprio processo de luta pela
independência pudesse aplainar as diferenças entre eles, menos através do
perverso deslocamento das populações acarretado pela guerra e mais pelo
desenvolvimento de uma práxis entre os revolucionários que relevasse a
humanidade latente nos indivíduos. (ABDALA JR, 2003, p. 242).

À tese de Abdala coloca-se em consonância todo o restante dos críticos que se


debruçaram sobre a obra pepeteliana. Basicamente o argumento da crítica coloca como
ponto comum que o autor angolano narra a nação como utopia, ou Heimat como sugeriu
Venâncio,xvi como prospectiva do amanhã. Não só Venâncio, mas também Inocência Mata
(MATA, 2010) coloca-se de acordo com essa ideia. No geral como a própria passagem

21
transcrita de Mayombe deixa claro que a tese destes autores é correta. O fator que eles não
apontaram e que trazemos à tona é que a utopia e a angolanidade só são possíveis de
realizados e compreendidos enquanto remetendo à resistência.
Chegamos a esta conclusão, pois Mayombe possui uma estrutura narrativa temporal
de épico de formação. Se por um lado aparece o guerrilheiro formado, personificado no
Comandante Sem Medo que ordena o resgate de Muatiânvua, por outro lado temos os
vários guerrilheiros em maturação, em vias de tornarem-se os homens novos. Dentre estes
destaca-se na narrativa o Comissário. Mas todos os demais personagens expressam, se não
para os fins da crítica, mas para fins históricos, a formação da plural da guerrilha, sua
maturação e variação interna. Se ninguém foi buscar Muatiânvua, isso transfere-nos para a
pluralidade de posições internas do MPLA. Por outro lado ao fim do romance: “Lutamos
que era cabinda, morreu para salvar um quimbundo. Sem medo, que era kicongo, morreu
para salvar um quimbundo. É uma grande lição para nós, camaradas.” Disse o Chefe de
Operações, ao que foi respondido por Milagre: “Foi um grande comandante! E Lutamos um
bom combatente!” (PEPETELA, 2009, p. 247).
Só que este mesmo Milagre é o que se recusa de início a resgatar Muatiânvua por
conta de sua origem étnica e que ao longo de todo romance olha com desconfiança Lutamos
por este ser cabinda. Ao fim, porém, ele forma-se homem novo integrado definitivamente
na ideologia nacionalista revolucionária do movimento. Mas diz Milagre antes de formar-se
e de assumir a competência de Lutamos: “Eu, o narrador, sou Milagre, o homem da
bakuza. Viram como o Comandante (i.e Sem Medo) se preocupou tanto com os cem
escudos desse traidor Cabinda (i.e Lutamos)? Não perguntaram porquê, não se admiram?
Pois eu vou explicar-vos” (PEPETELA, 2009, p. 47). E em sua explicação Milagre, homem
da “Bazuka”, tece as argumentações mais preconceituosas possíveis a respeito dos cabindas
e dos kicongos. Milagre é somente um personagem praticante da etno-resistência tão típica
do séc. XIX inicio do XX. É Milagre que demonstra que a separação simples e direta que
põe em oposição a guerra de libertação e as resistências anticoloniais passadas no séc. XIX
é simplória.
A isto Pepetela faz ecoar de forma ficcional aquela que foi uma das grandes
preocupações dos teóricos da libertação africana. Talvez o melhor exemplo disso sejam as
considerações de Amílcar Cabral sobre as formas e métodos da resistência.xvii “A nossa
resistência desenvolve-se sob várias formas, camaradas. Primeiro de tudo e no fim de tudo:

22
Resistência Política. Por isso nós começamos por criar o nosso partido, um instrumento
político.” (CABRAL, 1975, p. 15). Segundo Cabral, uma das condições sem as quais a
resistência não pode acontecer é, a unidade nacional. Diz ele:

A primeira condição para a resistência política, camaradas, é unir as pessoas. (...)


Unir, criar a pouco e pouco a consciência nacional, porque nós partimos de um
ponto em que não tínhamos uma consciência nacional, em que tanto pela nossa
história como pelo trabalho dos tugas,xviii estávamos divididos em grupos.
Civilizados e indígenas, gentes do mato, balantas, papéis, manjacos, mandingas,
etc., etc. O nosso primeiro trabalho é criar num certo número da nossa gente, a
consciência nacional, a idéia da unidade nacional, (...). (CABRAL, 1975, p. 17).

O processo de formação dos guerrilheiros de Mayombe remete para esta unidade


política essencial e necessária para a consolidação da resistência nacionalista. As pessoas
em que a consciência nacional já havia sido assimilada, esse “certo número da nossa gente”
que fala Cabral. O grande problema é que essa formação não abarcava o grosso da
guerrilha. Consolidava-se em plena guerrilha, portanto, a diferença colonial entre
“assimilados” ou crioulos por um lado e “indígenas”, ou “os do mato” por outro. Por mais
que essa diferença aparecesse agora, de acordo com as diretrizes do MPLA, como sendo
entre os com sólida “formação política” e entre os que não a tem: “Não é por fraqueza,
acredita.” – diz Sem Medo ao condenar o fuzilamento da personagem Ingratidão do Tuga,
pelo furto de uma pequena quantia de dinheiro:

Mas a indisciplina que reina lá fora leva à indisciplina aqui. Os exemplos de fora,
do exterior, dos refugiados fardados de militantes, vêm influenciar os
combatentes, enfraquecer-lhes o moral. Isto não sucederia se a Região
funcionasse bem. Vê o Ingratidão! Combatente no Norte de 61 até 65.
Combatente em Cabinda desde essa data. Há dez anos que combate o inimigo.
Tem pouca formação política? Certamente. Mas a culpa não é dele. Quem a tem?
Ele vê os exemplos que vêm de cima. A culpa também não é tua. Tu tomas este
facto como uma ofensa pessoal, porque és o Comissário, o responsável pela
formação política. Não podes fazer mais do que fazes para convencer o Ingratidão
que o povo de Cabinda é como o de resto de Angola. Ingratidão também não pode
ser convencido só por suas palavras. Só a prática o levará a essa constatação. Não
é justo fuzilar um combatente com dez anos de luta, quando outros criminosos
ficam indemnes, embora o seu crime teoricamente mereça castigo. Não, não se
pode. Noutras circunstâncias, Ingratidão não teria feito o que fez e seria
permeável à formação que lhe tentámos dar. Mas nesse contexto é impossível.
(PEPETELA, 2009, p. 62).

A tentativa de criar a partir de uma resistência ancorada em teorizações modernas


um contexto pós-colonial esbarra por sua vez com as cicatrizes do colonial. O que o próprio
Cabral considerou como sendo as divisões internas. Isso nos remete a própria formação do
MPLA. Para Marcelo Bittencourt o MPLA seria formado, “a partir de duas frentes de luta:

23
luandense e outra no exílio – esta última, numa etapa posterior, concentrar-se-ia fora do
território português -, ambas clandestinas. No caso da vertente externa contaria com o apoio
da esquerda portuguesa e europeia” (BITTENCOURT, 1999, p. 20). Essas camadas urbanas
influenciadas pelas esquerdas europeias irão formar o grupo de personagens encabeçado
pelo Comissário, Sem Medo e Mundo Novo. Todavia, a semelhança de origem não queria
dizer consonância quanto ao método de resistência, o que fica patente na chacota de Sem
Medo para com Mundo Novo para quem este devia sempre “estar a pensar na Europa e nos
seus marxistas-leninistas” (PEPETELA, 2009, p. 25).
Mundo Novo serve como ponto de tensão em que a tradição é colocada para
segundo plano, estando sempre em prioridade a organização política moderna de esquerda,
fazendo ao fim das contas uma caricatura das ideologias leninistas. Para este grupo de
combatentes (e somente para estes, insistimos), a critica de Brunschiwig se faz acertada
quando fala das ideologias “importées (sic) d’Occident, et assez souples elles-mêmes, assez
ambigiües pour pouvoir s’adapter aux peuples et aux circonstances” (BRUNSCHWIG,
1974, p. 64) Seu equívoco é tomar este argumento como generalização. Os teóricos da
libertação citados por nós até o momento, Fanon e Cabral, estavam longe de serem somente
meros importadores.
Se os “Mundo Novos” buscavam se valer dos dogmas revolucionários ocidentais os
Sem Medo criticaram este aspecto religioso da resistência revolucionária: “É um aspecto
religioso – dirá a personagem – uma concepção religiosa da política. Infelizmente, é a
maneira de pensar de muitos revolucionários.” (PEPETELA, 2009, p. 77). Apesar das
diferenças de método, Mundos Novos e Sem Medos teriam em comum a origem a
“urbanidade e a influência do pensamento de esquerda” que levou a facilitar a “agregação
de mestiços e brancos” dentro do MPLA visto que, “esses grupos se concentravam, na sua
maioria, nas cidades, principalmente em Luanda, além de constituírem boa parte dos
estudantes que foram frequentar o ensino universitário em Portugal”, some-se a isso “o
facto de o ideário de esquerda criar obstáculos às restrições de cunho racial”
(BITTENCOURT, 1999, p. 20, 21).
Em contraposição a estas personagens tem-se o grupo formado especialmente por
Milagre e Muatiânvua. Ambos fazem parte de uma facção que, na falta de melhor
expressão, chamamos de “não-assimilada”. Diz, por exemplo, Milagre: “São os que estão
mais avançados que devem governar os outros, são eles que sabem. É como as tribos: as

24
mais avançadas devem dirigir as outras e fazer com que estas avancem, até se poderem
governar” (PEPETELA, 2009, p.48). Estranhamente são palavras de um guerrilheiro e não
de um apoiador do regime colonialista. Milagre (e voltamos a ele) é, antes de tudo, a figura
do não-assimilado que insurge-se, mas repete pelo sinal oposto o mesmo discurso
colonialista: “A minha terra é rica em café, mas o meu pai sempre foi um pobre camponês.
E eu só fiz a Primeira Classe, o resto aprendi aqui, na Revolução” e mais adiante demonstra
o que pensa do intelectual assimilado, ou seja, daqueles compunham o grupo dos Sem
Medo: “Os intelectuais têm a mania de que somos nós, os camponeses, os tribalistas. Mas
eles também o são. O problema é que há tribalismo e tribalismo. (...). Foi o que Lenine quis
dizer, quando falava de guerras justas e injustas.” (PEPETELA, 2009, p. 47).
A longa tradição da resistência aparece aqui não como capital simbólico ou teórico,
disposto a criar o homem novo. Nesse sentido encontra-se próximo do que propuseram
Abbink e Walraven quando afirmaram que se deve considerar como resistência tanto
aqueles atos que buscam defender situações sociopolíticas pré-coloniais, nesse caso as
oposições entre vários povos reforçada pela ação colonialista, como também deve ser
levado em conta os intentos de lançar novos ideais de civilização, como é o exemplo do
grupo de Sem Medo, Mundo Novo e Comissário (ABBINK, WALRAVEN, 2008, p. 22).
Milagre encarna no fim das contas os argumentos da UPA (União das Populações de
Angola). Organização que apesar do nome,

acabou por se apresentar como um movimento tribal e pouco credível, dadas as


contradições entre o que dizia e o que, depois, apareceram a fazer os africanos
que mobilizara. Era, afinal, uma organização dirigida e integrada por bacongos,
sendo sobre eles que exercia influência significativa (CABRITA MATEUS,
MATEUS, 2011, p. 145).

Justamente por isso possuía a UPA uma estratégia “tribal” e não nacional, bem
como os movimentos do séc. XIX. Trata-se do mesmo uso negativo do passado do qual
tratamos anteriormente na esteira de Steinhart.
Segundo René Pélissier o abismo existente entre assimilados e indígenas não
assimilados introduziu um novo fator divisório, pois seus objetivos nem sempre eram os
mesmos (WHEELER, PÉLISSIER, 2011, p. 234). Dessa maneira, Milagre identifica não só
a contradição pessoal de um tribalista em um movimento chefiado por intelectuais
cosmopolitas, mas sim a contradição do próprio MPLA. Indagado sobre essas relações entre
etno-insurgentes e assimilados citadinos Pepetela afirma:

25
De facto houve choques. Mesmo no aspecto rácico, pois os puramente
nacionalistas viam com alguma dificuldade gente não negra como participante no
Movimento de Libertação (mesmo no próprio MPLA, muito mais avançado nesse
aspecto). Pouco a pouco, certas barreiras foram sendo ultrapassadas. Mas os ditos
socialistas consideravam osmeramente nacionalistas como camponeses atrasados,
e estes consideravam aqueles como elitistas citadinos. (PEPETELA, 2011).

Além disso, a percepção de Milagre é decorrência do “estigma da violência”


fanoniano segundo o qual:

La tensión muscular del colonizado – causada pelo colonialismo - se libera


periódicamente en explosiones sanguinarias: luchas tribales, luchas de çofs,
luchas entre individuos. (…). Porque el último recurso del colonizado es defender
su personalidad frente a su igual. Las luchas tribales no hacen sino perpetuar los
viejos rancores arraigados en la memoria (FANON, 2001, p. 47).

Dessa maneira, a etno-resistência “milagrista” seria uma das respostas possíveis ao


colonialismo. Por outro lado ainda no grupo dos “não-assimilados”, existe a personagem
Muatiânvua:

Querem hoje que eu seja tribalista! De que tribo?, pergunto eu. De que tribo, se
eu sou de todas as tribos, não só em Angola, como de África? não falo eu o
swahili, não aprendi eu o haussa com um nigeriano? Qual é a minha língua, eu,
que não dizia uma frase sem empregar palavras de línguas diferentes? E agora,
que utilizo para falar com os camaradas, para deles ser compreendido? O
português. A que tribo angolana pertence a língua portuguesa? (...). Eu,
Muatiânvua, de nome de rei, eu que escolhi a minha rota no meio dos caminhos
do Mundo, eu, ladrão, marinheiro, contrabandista, guerrilheiro, sempre à margem
de tudo (mas não é a praia uma margem?), eu não preciso de me apoiar numa
tribo para sentir a minha força. A minha força vem da terra que chupou a força de
outros homens, a minha força vem do esforço de puxar cabos e dar à manivela e
dar murros na mesa duma taberna situada algures no Mundo, à margem da rota
dos grandes transatlânticos que passam, indiferentes, sem nada compreenderem
do que é o brilho-diamante da areia duma praia. (PEPETELA, 2009, p. 123, 124).

Muatiânvua é a personificação do cosmopolitismo. A personagem remete de certa


forma ao pan-africanismo e, sendo Pepetela militante político angolano nos anos de 1960-
70 seria extremamente estranho se ficasse alheio a essa ideologia. Até mesmo porque, como
argumenta Ohadike (OHADIKE, 2002) a tradição de resistência em África só pode ser
corretamente entendida se colocada em perspectiva pan-africana. O que implica ao estudar
o caso de determinado país em específico associa-lo com os demais do continente e
inclusive com os países da diáspora africana.
Dessa forma, o núcleo local presente nos Milagres cedia lugar a uma identidade
substancialmente diaspórica e não dogmático-partidária como é o caso de Muatiânvua e
Sem Medo trata-se, por esta perspectiva pan-africana heterodoxa de uma afiliação com a

26
África “menos como regresso às origens do que como identificação diaspórica, (...), assim
criando uma ligação mais a um lugar imaginado, com a consequente desterritorialização, do
que a um território real”, contudo, essas características transcontinentais e transnacionais
“não podem ser, contudo, dissociados de uma forte componente nacionalista que também as
caracterizará”. (SANCHES, 2011, p. 17, 28). Essa abordagem ao mesmo nacionalista e
cosmopolita da procura de um lugar imaginado remete à própria formação do nacionalismo
como proposto por Benedict Anderson para quem uma nação é “uma comunidade política
imaginada - e imaginada como sendo intrinsecamente limitada, e ao mesmo tempo
soberana.” (ANDERSON, 2008, p. 32).
Dessa forma, se o fato de Pepetela “imaginar” a nação, e assim embasar a
constituição de uma identidade pós-colonial já é ponto comum entre os pesquisadores da
sua, obra é preciso somar a esse ato de imaginar o fato histórico que lhe está subjacente, isto
é o da resistência angolana em sua face nacionalista e revolucionária.

CONCLUSÕES

Portanto concluímos que se o fato de Pepetela imaginar a nação em seus romances


já se tornou ponto comum na crítica, é preciso assomar-se a isso que ao imaginar por meio
de uma manifestação cultural (a literatura) essa comunidade política – a nação -, ele forja
uma contra-narrativa à narrativa imperial comumente estabelecida pautada no racismo. Esta
contra-narrativa buscava restituir o passado espoliado pelo colonizador ao presente em
libertação, ao mesmo tempo em que tentava estabelecer perspectivas práticas para um
futuro em que o homem colonizado já não fosse alienado, mas fosse o homem novo, não
mais coisificado. Tudo isso faz, conforme acreditamos, com seja possível estabelecer esta
narrativa como sendo um ato de resistência, enquanto nos mostra a dinâmica interna do
próprio processo insurreto angolano.
Tal processo insurreto só pode ser entendido como sendo uma longa tradição de
resistência ao colonialismo. Nessa longa tradição a literatura mostra-se como ferramenta de
análise indispensável para compreensão da fase nacionalista e revolucionária da resistência
africana. A vantagem da literatura é que ela deixa transparecer todos os meios possíveis de
resistência, seja a calada ou seu extremo oposto: a armada, seja a étnica ou a mais
cosmopolita, aquela encabeçada pelos letrados ou pelos não-letrados.

27
Nesse sentido, Muana Puó, As aventuras de Ngunga e Mayombe são fontes
indispensáveis para o correto entendimento do processo de libertação angolano. A primeira
obra por mostrar em metáforas a exploração colonial, a segunda por estabelecer o projeto
do nascimento do homem novo forjado na resistência, e por ser usado – o próprio romance
– como meio de transgredir a ordem colonial, e a terceira por evidenciar as oposições entre
os diferentes projetos de resistência.

History, Literature and Resistance in Angola: The earliest works of Pepetela in


perspective
Abstract: This study aims to analyze the novels of Angolan writer Artur Pestana dos
Santos (Pepetela) written during the war of liberation of Angola, which occurred between
1961 and 1975. Such novels – Muana Puó, As aventuras de Ngunga and Mayombe -
prefigure is among the most significant works of modern Angolan literature, both for its
aesthetic value as for their historical representation. Thus, for the full understanding of
these works is necessary articulation with the historical context in which they were entered.
In equal measure, the analysis of fictional texts may shed new light on the formation of
revolutionary nationalism as well as the Angolan war of national liberation itself having as
analytical thread the concept of resistance. For this follow-up will be a general introduction
to the context of Angolan liberation, then a conceptual discussion regarding the resistance,
leading to a topic on the relationship between literature and history, and finally, the possible
conclusions.

Keywords: History of Angola, Resistance, Angolan Literature, Angolan Nacionalism.

i
Especialmente em seu trabalho mais completo: ISAACMAN, Allen. Tradição de Resistência em
Moçambique. Porto: Afrontamento, 1979. Voltaremos à argumentação de Isaacman mais adiante
ii
Ver MBEMBE, Achille. “Domaines de la Nuit et Autorité Onirique dans lês Maquis Du Sud-Cameron
(1955-1958)”. The Journal of African History, nº 31. London: Cambridge University Press, 1991.
iii
A influência da obra de Eric Hobsbawm nesses primeiros trabalhos sobre a resistência é algo a se ter em
consideração. Sinteticamente a definição de banditismo social e sua relação com a resistência, esta última
tomada de forma genérica: “Os bandidos, por definição, resistem a obedecer, estão fora do alcance do poder,
são eles próprios possíveis detentores do poder e, portanto, rebeldes potenciais” (HOBSBAWM, 2010, p. 26).
iv
Trabalho com a conhecida estratificação temporal de Braudel: “La historia se sitúa en diferentes niveles,
casi diría que en tres niveles, si no fuera simplificar en exceso (…). En la superficie, una historia episódica, de
los acontecimientos, que se inscribe en el tiempo corto (…). A media profundidad, una historia coyuntural de
ritmo más amplio y más lento; ha sido estudiada hasta ahora, sobre todo, en el plano de la vida material, de los
ciclos económicos. (...). Más allá del ‘recitativo’ coyuntural, la historia estructural o de larga duración,
encausa siglos enteros: se encuentra en el límite de lo inmóvil; y, por sus valores muy prolongadamente fijos,
aparece como un invariante frente a las otras historias, más raudas en transcurrir y en realizarse y que, en
suma, gravitan en torno a ella.” (BRAUDEL, 1970, pp.122, 123). A resistência é o núcleo que permanece por
mais tempo, sendo suas formas de expressão que se modificam durante a colonização e a luta de libertação.
Não há nisso “sincronia perfeita” ou uma estrutura fantasmagórica, pois como argumenta Ricoeur em
concordância com Braudel: “Para o historiador, porém, a duração muito longa é a duração ‘longa demais’, que
não poderia fazer esquecer o ‘jogo múltiplo da vida, todos os seus movimentos, todas as suas durações, todas
as suas rupturas, todas as suas variações’” (RICOEUR, 2010, p. 175).

28
v
Conceitos do intelectual e nacionalista angolano Mário Pinto de Andrade que cito a partir do crítico literário
moçambicano Francisco Noa: “Mário Pinto de Andrade é outro exemplo de quem recusa qualquer espécie de
transigência e para quem a colonização é um ‘odioso empreendimento etnocidário’ (Andrade 1978: 5) e que
‘não passa de testa de ponto numa civilização da barbárie donde pode, em qualquer momento, desembocar a
negação pura e simples da civilização’” (NOA, 2002, p. 25).
vi
O próprio Darwin não manteve ligação alguma com esses movimentos de ideias e sua obra dizia respeito à
biologia ou “história natural” e não à sociedade. Essa mudança de vetor da ideia darwiniana (transpondo-a do
biológico para o social) nada mais era do que a tentativa de naturalizar atos de exploração, tornando-os assim
incontestáveis, pois passíveis de comprovação “científica” e inerentes à natureza.
vii
Texto de Fanon disponível na coletânea organizada por Manuela Ribeiro Sanches: Malhas que os Impérios
Tecem, citada na bibliografia.
viii
Durante esse período o governador geral da colônia era Norton de Matos, figura central para a história do
colonialismo português em Angola. Matos e outros governadores da mesma estirpe eram comumente
chamados de Cirurgiões de Ferro, referência ao caráter efusivo e autoritário de suas atitudes administrativas.
ix
Prefácio de Mário de Andrade à Antologia Temática de Poesia Africana originalmente em ANDRADE,
Mário (Org.). Antologia temática de poesia africana (vol.1): na noite gravida de punhais. Lisboa: Editora Sá
da Costa, 1977. Cito, porém, a partir da coletânea já citada de Sanches; Malhas que os impérios tecem.
x
O ensino português em Angola mereceu, inclusive, a atenção do então presidente estadunidense John
Kennedy, este afirmou ironicamente em certa ocasião: “Os portugueses, tendo dado a três angolanos uma
educação na Universidade, vão agora iniciar o segundo plano de 500 anos.” (KENNEDY apud CABRITA
MATEUS, MATEUS, 2011, p. 37).
xi
“(...) no iniciar da luta pela libertação de Angola, quando os motivos eram fortemente raciais e menos
políticos, em primeiro lugar, e perfilava-se a descoberta de outra maneira de apreciar o que parecia acontece.
Também o autor era jovem e aprendia” (PEPETELA, 2008, p.15).
xii
A importância do imperialismo econômico é tanta que para alguns autores, como é o caso de José Capela,
durante a última fase do colonialismo português em África “o que esteve de facto, em causa, foram as
tentativas directas ou indirectas de implantação do modo de produção tipicamente capitalista. E as
disparidades com que depararam em África, socorrendo-se de relações de produção peculiares. Peculiares
quando referidas às que, então, já se processavam nas sociedades desenvolvidas da Europa. De qualquer
maneira, lançando na direção africana as infraestruturas viabilizadoras do imperialismo econômico.”
(CAPELA, 1977, p. 5). As formas “peculiares de produção” referem-se ao uso do trabalho forçado ou
compelido, que na prática era uma forma de exploração de mão de obra semelhante à escravidão.
xiii
O responsável por desmantelar a revolta, major Rebocho Vaz, solicitou que se fizesse um inquérito para
apurar o ocorrido. No relatório final do inquérito afirmava-se, dentre outras coisas que “‘o indígena na Baixa
de Cassange vive em condições de absoluta miséria moral e material’ e que ‘só aprende a não ser roubado ou
espancado. ’ (...). ‘São os povos mais enfezados’ de Angola e, por vezes, o aspecto físico nem dá para
reconhecer se é ‘homem ou mulher’, ‘novo ou velho’.” (CABRITA MATEUS, 2011, p.53).
xiv
Esta informação foi retirada da comunicação de Manuel Muanza; Trabalho forçado documentado pelos
escritores angolanos, apresentada no Colóquio Internacional Trabalho Forçado Africano, realizado na
Universidade do Porto. Na ocasião o crítico angolano usou como exemplo o poema de Agostinho Neto
Caminho do Mato e argumentou que era um poema escrito para ser cantado em coro por camponeses
difundindo assim a ideologia da libertação pelo interior angolano.
xv
Logo no prefácio Salinas afirma que seu método de análise para Mayombe pressupõe “(...) uma unidade
essencial entre todos os mitos de qualquer latitude e em qualquer contexto temporal, uma acronia que situa o
mito fora do que contexto histórico.” grifos meus. Contudo, Portugal tem o grande mérito de mesmo não
focalizando a história não lhe retirar importância: “Isso não significa que nos situemos numa posição a-
histórica, pois consideramos que as variáveis econômicas, políticas ou culturais, em definitivo ideológicas, em
que o autor e receptor se colocam, condicionam não só a formulação literária do mito como também a sua
interpretação, ou, o que é o mesmo, a sua, produtividade” (PORTUGAL, 2001, p. 21, 25).
xvi
“Em estudo anterior (1987:121 e segs.) chamei atenção para a coincidência que existe entre a angolanidade,
como eu a entendo, e o conceito de pátria ou mátria (die Heimat), como ela aparece na obra do filósofo
alemão Ernst Bloch. Para este autor o encontro com a Heimat pressupunha uma dupla desalienação: a
desalienação do sujeito em relação a si próprio e a desalineação que é feita entre o, sujeito e o seu meio
ambiente. Ao contrário da tese clássica do marxismo, para Bloch é no dia a dia que pátria, a utopia, se
constrói. Há como que a antecipação da vivência da utopia. É na entrega do dia a dia que a pátria ganha
expressão em nós. Confesso que esta identificação da angolanidade com a filosofia de Bloch foi crescendo em
mim à medida que me ia inteirando da obra de Pepetela”. (VENÂNCIO, 1992, p. 36).

29
xvii
A importância de Cabral para a formação de Pepetela é dada pelo próprio escritor quando indagado sobre
suas influências ideológicas: “Será talvez difícil citar nomes. Mas os clássicos Agostinho Neto, Viriato da
Cruz, Amílcar Cabral, Franz Fanon (não africano, mas como se fosse…), Cheik Anta Diop têm, certamente, a
sua responsabilidade”. (PEPETELA, 2011). Para mais ver a entrevista em anexo.
xviii
Por “tugas” Cabral designa os colonizadores portugueses.

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