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Enrico Bernt EsTRUTURA E SIGNIFICADO DA METAFISICA DE ARISTOTELES Colegio PHILOSOPHICA coordenndn por RACHEL GAZOWA : + Acted 60 mado moderne 4 ‘fred North Whitehead q Fass “nodes lah Anti: Prenies fielijs ots “eraments de abl" | ° tivo Rosset * Banca do conbecimento: Ensio de lesan la Medina! | Prémio Internacional de Filosofia Rosa Helena de Sora Pereira (org) Tania ee as cas = coum: Cinco ena bre Flo do Netra Rachel Gazola (org) 4 + Asebiidedes do pre ena bre provera loa de Pato Francisco Bravo Cioran aserano \ Oxganizado por + Pato rite ra dsr do Now de Peto Ianaaio YaRzn “Thomas Aerander Seles + Aarte 19 persment de Horie Uns dit des foment cam duo ecomenteo i ‘Charles Kahn j + prone Veer, manta na loo napintas ‘sara Horak + A sabedra Grego, - Dion, Aglare, Mae, Iperbod Eng orgie Colt | + Opensamenta de Gademer i Jean Grondin (org) + atures de Met de ites Enrico Ber + A ob do Sofios- mainte lca q a" rats Pontificia Universidade da Santa Cruz Tielo oviginal Stu esipifaa delle Metaica di Arial © Edusc stl - 2008-2" ediga0 ISBN 978-88.8333-192-3 Traducdo: Jost Bertolini Diregdo editorial: Zain Tonon Coordenagho editorial: Claudiono Avlina do Santos ‘Assisente editorial: Jaqueline Mendes Foner Revisto: Colo Perce Teale Berers Lopes: Diagramagio: Dilne Fangs Nobre da Sih Capa: Marlo Compan Impressio acabamenco: PAULUS Dados Incernacionss de Catalogasto na Publicagio (CIP) Brasileira do Livro, SP, Basil) Estruturae significado da Metaisiea de Avscteles / Envco Berti; organinad por Ignasio Yara; [(radust0 Jost Bortolii). ~ Sao Paulo: Paulus, 2012, ~ (Colegio Philosophica /coordenada por Rachel Gazola) “Tlo original: Stuttrae signifcato della metafiica diAristotele ISUN'978°-85-349-3404-6 1 Arsttcles - Mecaisica |. Yarza, Ignazio. I, Gazolla, Rachel. Il, Tho V. Séfe 12.07206 cop-1as Indices para catlogo sietemstco: {UMetasca: Flori arstocdlien 185 1 edigf0, 2012 © PAULUS - 2012 Run Francisco Cruz, 229 -04117-091 + Séo Paulo (Brasil) Fax (11) 5579-9627 “Tel (11) 5087-3700 w-paulus.com,br* editeraleipaulus.com.br ISBN 978-85-349-3404-6 19 27 53 87 "9 151 191 193 SUMARIO. Apresentagio ESTRUTURA E SIGNIFICADO DA METAFISICA DE ARISTOTELES Inurodugio Lvnos A,B 1 1 Lwmos 4, B=1V,¥, Vt Luvnos 2H, Vi, Vil, Luvaos I,K, AX, XII (caps. 15) Luvnos A, M, N-XIl (caps. 6-10), Xi, XIV Edigdes da Metafca ¢ obras de autores modernos cicadas Enrico Berti ~ Principais publicages APRESENTAGAO. A tarefa destas péginas, além de fornecer algumas 8 acerca da génese e do conteiido deste breve vo- notic lume, é basicamente uma s6 precisa ser logo mostrada: garantir ao leitor que tem em méos um daqueles livros que toda pessoa que deparou com a Metafisica de Arist6- teles teria desejado ler; quem ainda nao se aproximou da Metafisica, fato improvavel para todo aquele que tem de lidar com a filosofia, tiraré da sua leitura enorme proveito. Esta foi exatamente a razao, a utilidade destas aulas ~ va- lorizada pelo parecer unanime dos seus ouvintes -, que nos impeliu a preparar a publicagio. De fato, o texto que estou apresentando é a transcrigao escrita de dez aulas dadas em Roma pelo professor Enrico Berti sobre este tema: Estrutura e significado da Metafisica de Aristételes, entre os dias 27 de fevereiro e 3 de margo de 2006. O motivo ‘das aulas foi a entrega ao professor Enrico Berti por parte da Faculdade de Filosofia da Pontificia Univer- sidade da Santa Cruz do Prémio Internacional de Filo- sofia Antonio Jannone, no passado 25 de novembro de 2005, meméria de santa Catarina de Alexandria, patrona da Universidade de Padua e da Faculdade de Filosofia da {71 {rico Bern | Pontificia Universidade da Santa Cruz. Na ocasiio, Berti proferiu uma palestra intitulada O que subsiste hoje da Metafisica de Aristételes,! como preltidio do supracitado curso de dez sessdes que aconteceria alguns meses depois, na mesma universidade, Antes de voltar ao livro que estou apresentando, gostaria de dedicar alguma palavra e alguma lembranca a0 Prémio Internacional de Filosofia Antonio Jannone. A. primeira vez que ouvi falar de sua existéncia remonta 20 més de junho de 1996, data em que aconteceu em Roma, no Palazzo Firenze, uma convencio internacional sobre A sociedade civil ¢ a sociedade politica no pensamento de Aris- t6teles promovida pelo Centro Internacional de Filosofia Antiga “Antonio Jannone”, Foi naqueleencontro que co- nheci dom Jannone (Lauro, 1906 — Roma, 2007), criador € patrocinador do prémio, além de estudioso aristotéli- C0, professor emérito da Sorbonne conhecido princi- palmente por sua edigio critica do De anima publicada por Les Belles Lettres. Na ocasiéo, nao se podia imaginar que menos de dez anos depois dom Jannone ter-se-ia di- rigido 4 Pontificia Universidade da Santa Cruz a fim de confiar & sua Faculdade de Filosofia, mediante um comité cientifico, a diregéo do prémio que ele criou. Até aquele momento, a honra ao mérito, criada como reconhecimen- to pelos méritos académicos no ambito do. pensamento cléssico, havia sido conferida a trés insignes professor Renato Laurenti, Jacques Brunschvig ¢ Klaus Oehler. Su- cgssivamente, receberam 0 prémio, consignado a cada trés anos, 0 professor Giovanni Reale (2002) e, como disse- mos, o professor Enrico Berti. *CE. “Acta Philosophica” I, 15 (2006), p. 273-286, lel ls ities ; ] | Apaesewragto | Tendo informado a ocasiéo em que essas aulas foram. proferidas, desejo acrescentar alguma consideragio que possa ajudar na melhor apreciagao do texto e na sinali- zacio dos critérios que adotei para preparar a publicagio. Em primeiro lugar, é"ébvio que dez aulas so insu- ficientes para expor 0 contetido de um dos livros mais importantes ¢ mais dificeis de toda a historia do pensa- mento filoséfico. Além disso, o publico ao qual as aulas se destinavam nao era composto exclusivamente de peritos. Em certo sentido, foi uma agradével surpresa tanto para © relator quanto para os organizadores ver um publico sempre numeroso e sempre atento, apesar de, ao mesmo tempo, ser tim piiblico muito diversificado, composto de docentes e estudantes de varias Faculdades e de varias instituigdes universitérias. Consciente disso, 0 professor Berti sublinhou desde o comego sua intengio de tornar suas aulas compreensiveis para todos, bem como a ne- cessidade de deter-se exclusivamente nos problemas cen- trais da obra aristotélica ~ mais especificamente em sua natureza e em sua estrutura ~, deixando de lado muitas questées ou simplesmente fazendo aceno a elas, Embora essas circunstancias delimitem, sem dtivi- da, o alcance do texto que estou apresentando, considero que constituam notavel mérito, porque, em certo sentido, obrigaram Berti a dar o melhor de si, a tornar disponivel de forma simples ¢ sintética 0 saber adquirido apés longos anos de pesquisas ¢ de reflexio, de discussdes e de con- fronto com outros estudiosos e intérpretes aristotélicos. Em minha opinido, mais do que nas discussées técnicas, na exposigao da solugao de problemas circunscritos e limita- dos que interessam sobretudo aos académicos, um mestre demonstra sua maestria sobretudo nas exposicdes sintéti- Io [ Enmico Bean | as, nas visbes de conjunto, obtidas apés prévio e paciente trabalho de exame dos textos, de didlogo e de confronto com outros estudiosos ¢, sobretudo, no nosso caso, com 0 proprio Aristételes. Tomas de Aquino, héspede frequente destas paginas, na 11* questio do De veritate, explica que 0 verdadeiro mestre é aquele que possui “explicite et perfecte” © saber que transmite2 Nao se alcanga meta elevada de onde poder dominar amplo horizonte sem antes percorrer longo caminho, superar passagens dificeis, tomar decisdes, discutir com aqueles que anteriormente se encaminharam, rumo & mesma meta, bem como com os préprios compa- nheiros de viagem... Sem sombra de diivida, a compreen- sio da Metafisica do professor Berti é aquela de quem a es- tas alturas atingiu o vértice e pode fazer uma apresentagio de conjunto, assinalando a quem deseja seguir seus passos 0s pontos mais controvertidos, as solugdes mais originais, ‘os caminhos alternativos que outros seguiram. E isso que oferece o presente volume, uma visio panorimica cons- truida sobre profundo conhecimento da Metafisica, da sua historia, das suas interpretagdes dos seus problemas. Em suas aulas, hé uma passagem na qual Berti manifesta certa impaciéncia diante da atitude daqueles filosofos contem- poraneos que preferem a pesquisa como fim em si mesma, em vez de querer alcangar a verdade; ele afirma que esta nao tem sido uma postura aristotélica, e nés acrescenta- ‘mos que também nio é a posigio do professor Berti. No pretende que a sua seja a tinica reconstrucio possivel da Metafisica aristotélica; pelo contrério, o autor néo esconde as dificuldades e os pontos ainda obscuros; todavia, esta convencido de que suas pesquisas atingiram alguns pontos 7 CE. Deveritate, q. 11 a2 co. |10| | Amnesercracio | firmes, algumas verdades, que ele propée de modo autori- zado e com clareza singular. Na Etica a Nicémaco, Aristételes aponta a necessida- de de iniiciar a exposigao de um tema, realizando antes um esbogo, apresentando as linhas gerais que, num segundo momento, deverio ser completadas com os detalhes.3 Po- demos afirmar que foi isso que Berti fez, nestas dez aulas: desenhar o esbogo, o esquema, as linhas mestras da Meta- fisica aristotélica, delegando a nés ouvintes - leitores ~ tarefa de continuar o trabalho, de levar a termo com a re- flexéo pessoal a compreensio aprofundada da obra-prima aristotélica. Por esse motivo, este breve ensaio pode ser entendido como um encaminhamento, uma introdugao 8 leitura da obra, a ser em seguida completada mediante 0 estudo pessoal e 0 conhecimento apurado das miltiplas questdes simplesmente acenadas, Para quem, pelo contré- rio, ja foi introduzido na Metafisia, o texto pode ser lido como proposta interpretativa sob certos aspectos nova, capaz, de esclarecer e dar a justa sistematizasao ¢ alcance as doutrinas parciais, aos ensinamentos particulares até agora adquiridos, ou para por em discussio ou confirmar a visio de conjunto que havia formado da obra. Diferentemente de outros intérpretes, Berti conside- ra que a metafisica aristotélica é uma ciéncia, no fim das contas, unitéria, embora a unidade da obra que @ con- tém exija a reconstrugio de sua historia ¢ a explicacéo de alguns problemas evidentes, Na realidade, esta seria em sintese a conclusio partilhada com outros estudiosos: os catorze livros que conhecemos seriam 0 conjuntd da edi- ‘io original da Metafisica, composta por dez livros, mais 3 CE. EN1 1098 a 20-22. jay | enico Bern | outros quatro ~ blocos peregrinos - de origem diferente: 0 livro Alfa menor; o livro Lambda ou Sobre a substancia, tratado independente, provavelmente precedido por Alja menor como introducio e primeiro esbogo daquilo que a seguir se tornaré a filosofia primeira; o livro Delta, também cle um tratado independente sobre o significado de diver- Sos termos; € 0 livro Capa, que, como outros estudiosos, Berti considera nfo auténtico. A unidade tedrica da filo- sofia primeira 6, pelo contrario, fundada sobre a pesquisa as primeiras causas do ente enquanto ente; pesquisa pre- cedida pela doutrina das causas desenvolvida na Fisica © de algum modo sustentada pela especulagio dos filésofos precedentes. A metafisica aristotélica nao seria simples- mente nem uma ontologia nem uma teologla ~ sequer ‘uma ontoteologia -, mas, propriamente, uma protologia, ciéncia das primeiras causas e dos primeiros principios. Essa caracterizagao da metafisica, fundada nos textos, é plenamente coerente com a interpretagio que Berti faz das mais importantes doutrinas aristotélicas, Em minha opiniio, esse seria o aspecto mais original da posigio do autor, proposta, aprofundada e defendida, entre outros ha varios anos, mediante numerosos artigos ¢ ensaios. A busca das causas e dos principios do ente enquanto ente no desdgua somente numa ontologia, pois, para Aristé- teles, ente € em primeiro lugar a substéncia, mas sequer somente numa teologia, porque o motor primeiro nao 6 a “nica causa primeira. Nao que Aristételes desconhecesse a distingao entre ente e ser, mas nao lhe concede o relevo assumido na sucessiva metafisica escolastica nem o relevo pretendido pela interpretagéo heideggeriana. Para Aristo- teles, o ente em sentido forte é justamente a substincia, até o ponto de compreender que sua Metafisica, além de hn] { Anneserracio | protologia, é também ousiologia, e segundo Berti, em Aris- toteles nao hé espaco para reconduzir a substéncia, como @ sua dinica causa, a um primeiro ente, a uma primeira substaficia cuja esséncia seja 0 esse ipsum. Penso que um dos méritos da leitura que Berti faz da Metafisica seja justamente procurar tirar da obra aristoté- lica aqueles revestimentos com.os quais as sucessivas in- terpretagdes — dos medioplaténicos aos modernos — pau- latinamente a sobrecarregaram. Obviamente, nfo sendo possivel nestas poucas aulas apresentar todos os temas a favor das suas teses, Berti limita-se a assinalar sua posicao, declarando de modo claro quando se trata da posi¢io mi- noritéria e as razdes de fundo que a sustentam, Juntamente associados a interpretago daquelas que seriam as linhas mestras da Metafisica, nas aulas de Ber- ti comparecem muitos outros:acenos e pistas para temas fundamentais, nos quais frequentemente ele se afasta da- quela que muitos consideram a versio canénica da filo- sofia aristotélica, Consciente de estar sob certos aspectos apresentando um Aristételes na contramao, Berti insiste na plausibilidade da sua posigao justamente em relagio As quest6es mais controversas, naqueles pontos em que consi- dera que a tradigéo tenha condicionado de mado mais for- tea leitura do pensamento aristotélico original, como, por exemplo, seria 0 caso da causalidade do motor primeiro, ‘mais especificamente sua condigio de causa final univer- sal, ou-da precedentemente acenada interpretagio de uma substincia cuja esséncia seja 0 ser per si ou o um per si. Além disso, toda essa operagio de restauragio do pensamento aristotélico ori conhecimento melhor daquelas correntes filoséficas que no decurso da histéria se dirigiram a ele como principal al nos aproxima de um 1aBt | Exnco Benn | ‘ou pelo menos um dos mais importantes mestres. Assim, por exemplo, fica mais clara a contribuigao da mediagio platénica na transmissio e configuragao do aristotelismo medieval, bem como o papel decisivo da fé monoteista criacionista na interpretacdo arabe e crista da metafisica aristotélica e, de forma indireta, na génese do neoplatonis- mo. Naturalmente, so temas e questdes que mereceriam maior atengao, porém considero que a esse respeito estas paginas fornegam indicagdes de grande utilidade, que po- dem servir néo apenas para aprofundamento posterior do texto aristotélico, mas também para reconstrugao mais cuidadosa e rigorosa de algumas paginas importantes da histéria do pensamento, Preparando este volume para publicacio, considerei conveniente apresentar 0 texto assim como foi pronun- ciado. Lendo-o, constata-se obviamente que se trata de texto transcrito, de estilo coloquial, de textos nao redi- gidos de aulas as vezes interrompidas pelas perguntas dos ouvintes. Como o proprio Berti explica, a divisio do texto obedece a composigio da Metafisica em catorze li- vros e as dez horas de aula a disposigao. Por essa razao, cada dia de aula é dedicado a trés diferentes livros da Me- tafisica, Evidentemente, nao se atribui a mesma atengao a todos 05 livros. Berti sublinha a centralidade do livro Dueta, dedicado substancia, e do livro Teta, sobre 0 ato © a poténcia, e considera ser especialmente importante dedicar especial atengao ao livro Lambda, a fim de escla- recer aqueles que considera serem os mais graves mal- -entendidos do texto aristotélico. Para evitar que o texto perdesse sua fluidez, renun- ciei as notas de rodapé, introduzindo somente entre pa- rénteses 0 ntimero de pagina e de linha das palavras de od | Amwesexagto | Aristteles citadas ou onde se encontram os conceitos, os termos, as ideias aos quais 0 texto se refere, acrescentando no fim uma pagina com os dados completos das moder- nas edigoes da Metafisica citadas, bem como das obras dos intérpretes aos quais Berti remete em suas aulas. As refe- réncias entre parénteses ao texto aristotélico nem sempre sto uniformes; As vezes, indicam as linhas exatas de uma citagao literal, ao passo que em outras ocasides remetem ao texto em que Aristételes expée a doutrina a qual se faz alusio, Em alguns casos, as aulas seguem mais de perto 0 texto aristotélico, em outros, a complexidade e exten- sio das argumentagées aristotélicas obrigam a apresentar ‘uma sintese e a remeter de forma menos exata aos textos. Naturalmente, a intengdo de tais anotagdes nao é poupar 6 leitor da leitura das passagens restantes da Metafisica, mas antes, orientar tal leitura, ajudando-o a habituar-se em meio as paginas aristotélicas. Frequentemente, as au- Jas foram interrompidas por perguntas dos ouvintes, que pediam explicagées ou recordavam interpretagées alter- nativas. As respostas de Berti foram introduzidas no texto. Penso que o livro deva ser lido assim como as aulas foram. ouvidas, isto é, com uma edigio bilingue da Metafisica a0 alcance das mos. Portanto, nio se pretende oferecer um pequeno resumo de um texto bastante complexo, mas tuma leitura que sirva para adquirir confianga e ajude a descobrir e a se aprofundar nas iniimeras riquezas que a Metafisica oculta. Nao foi sem ironia que Gomez Davila compés este aforismo: “A metafisica foi sepultada tantas vezes, de tal forma que acontece julgé-la imortal”.4 Creio 4N. Gomez Aw, In margine ¢ un texto implito, Adelphi, Mildo, 2001, pal is} | Enuico Bean | que os cinco dias de aula do professor Berti tenham sido evidente prova nao sé do interesse por Aristételes, mas também da necessidade ¢, portanto, da vitalidade de um pensamento autenticamente metafisico, Até aqui, nao falei nada da biografia e da producio académica do autor, e de minha parte seria evidente falta de cortesia se se tratasse de um autor menos conhecido, Todavia, penso que sua notoriedade e sew prestigio aca- démico em ambito italiano e internacional me eximem do dever de delongas em muitos aspectos. Titular de Historia da filosofia antiga desde 1964, 0 professor Berti (Valeggio sul Mincio, 1935) lecionou primeiramente em Pertigia e a seguir, desde 1971, na Universidade de Padua, onde, por varios anos, foi diretor do Departamento de Filosofia. Docente também na Universidade de Genebra € de Bruxelas, ex-presidente da Societd flasofica italiana, vencedor do prémio Federico Nietzsche para a filosofia ¢ membro de numerosos organismos cientificos italianos internacionais, 0 professor Berti é autor de numerosas pu- blicagdes, cas quais fornecemos o elenco quase comple- to nas tiltimas paginas deste volume, Testemunha da sua maestria pedagégica, caso fosse ainda necessério, é 0 texto que apresentamos e, talvez ainda mais, a atenta escuta de todos aqueles que seguiram suas aulas, que, invaria- velmente, terminavam com sincero e espontineo aplauso, Por motivos dbvios, nao transcrito nestas paginas. Ignazio Yarza het inca ESTRUTURA E SIGNIFICADO DA METAFISICA DE ARISTOTELES INTRODUGAO, Desejo agradecer a Universidade da Santa Cruz, acima de tudo, uma vex mais, o prémio que generosamente me foi concedido e agradecer também esta oportunidade de dar um curso sobre um dos temas de que mais gosto, que sio objeto dos meus estudos hé muitos anos, Sinto-me fe- liz por estar aqui, vejo que hé um piblico inclusive muito numeroso, e espero que ninguém saia daqui decepcionado. Meu problema é falar de modo que todos me compreen- dam, pois imagino que existam varios graus, varios niveis de conhecimento; entio, para ser entendido por todos, devo procurar manter-me no nivel mais elementar possivel. Por isso, muitas coisas que eu disser ja serio conhecidas, ja sen- tidas e poderdo parecer repetigdes; todavia, espero que seja uma experiéncia instrutiva para todos nés, comegando por mim, essa releitura embora répida que faremos da Metafi- sica de Aristoteles. O tema do curso é justamente Estrutu- rae significado da Metafisica de Aristételes, e sinto-me feliz de desenvolvé-lo aqui com vocés, nesta Universidade com. a qual hé muitos anos mantenho relagées de colaboracéo ¢, espero poder dizé-lo, também de amizade, motivo pelo qual me sinto verdadeiramente entre amigos. 119] | €nnico Bean | A Metafisica de Aristételes ¢ talvez.o livro mais estu- dado, mais debatido e que com certeza exerceu maior in- fluéncia sobre toda a histéria da filosofia ocidental. Dela se fala ha mais de vinte séculos, pois a primeira citagio da Metafisica se encontra num autor antigo do primeiro século depois de Cristo, Nicolau de Damasco, e se supée que a Metafisica tenha sido publicada pela primeira vex no primeiro século antes de Cristo, talvez. aqui em Roma, pois a primeira edicdo das obras de Aristételes, confor. me um ilustre estudioso desses temas, Paul Moraux, te- tia sido realizada por Andrénico de Rodes, exatamente aqui, no tempo de Cicero. Como thes disse, sua primeira citagio se encontra alguns anos depois em Nicolau de Damasco, ¢, daquele momento em diante, a Metafisica comega a ser comentada, discutida e a exercer influén- cia profunda sobre a filosofia. Ha pouco falei de filosofia ocidental, porém, nao € justo dizer ocidental, pois é pre- ciso ter presente também todo 0 mundo arabe, a cultura islamica — um dos centros onde a Metafisica é traduzida em arabe € Bagdé, no nono século -; por isso, tanto no Ocidente quanto no Oriente ela ocupa posigao central na histéria do pensamento. Nio obstante isso, porém, como todos sabemos, a Metafisica de Aristoteles nfo & um livro, melhor dizendo, nao nasceu, nao foi criada por seu autor como um livro. Aristételes nao tinha esse livro, ‘do tinha nas mos a Metafisica e sequer conhecia a pa- Javra “metafisica’. Essa palavra, que acabou para sempre associada a0 seu nome, nao 0 titulo de um livro, pois, exatamente como eu recordava ha pouco, parece que a obra foi coligida, assim como nds a recebemos mediante 2 tradigaio dos manuscritos, por esse Andrénico, prove- niente de Rodes, que foi o editor de todas as obras, de boat | twreooucto | todos os tratados que Aristételes havia composto para 0 ensino em sua escola, Outras obras de Aristételes j4 haviam sido publica- das e eram os didlogos, obras escritas em forma de dii- Jogo, imitando Platao. Antes da publicagdo de todo o corpus por agao de Andrénico, o mundo antigo conhecia de Aristételes quase somente os diélogos. Quando em seguida foram publicados seus grandes tratados escolis- ticos, ou seja, as obras de légica ~ 0 Organon =, as obras de fisica, a Metafisica, a Etica a Nicomaco, a Politica, a Retérica, a Postica, isto é, todos os grandes tratados, que fizeram a historia da filosofia ocidental, entdo os diélo- 80s, conhecidos anteriormente, atrafram sempre menos 0 interesse dos fildsofos, pois nio podiam competir em importincia, em amplidio e em profundidade com esses grandes tratados. Ha pouco, citei Paul Moraux ~ ele era um estudioso belga que em seguida ensinou em Berlim, um dos maiores estudiosos de Aristételes ¢ do aristotelis- mo -, portanto, segundo Moraux, talvez, jé existisse uma edigdo da Metafisica de Aristételes antes mesmo que An- drénico de Rodes publicasse todo 0 corpus aristotélico; Porque, numa das listas, num dos catalogos antigos das obras de Aristoteles, que remonta a um periodo anterior a Andrénico, isto é, remonta ao terceiro século a.C., 0 catélogo atribuido a Hesiquio, entre as obras de Aristé- teles menciona-se uma obra intitulada Metafisica. Pro- vaveliente, trata-se da Metafisica, porém em dez livros, 40 passo que aquela que nos foi transmitida na tradigao manuscrita, isto é, aquela que nds lemos hoje, compoe-se de catorze livros. Dois grandes estudiosos de Aristételes, além de Moraurx, isto é, 0 alemao Werner Jaeger ¢ 0 inglés David Ross, consideraram que daquela edigio original da [ Enmico Bern | Metafisica no fizessern parte quatro livros ~ mais adian- te, nestas aulas, falaremos disso -, ou seja, 0 livro Alfa menor, que é 0 segundo, o livro Delta, que € 0 quinto, 0 livro Capa, que € 0 décimo primeiro, ¢ 0 livro Lambda, que € 0 décimo segundo. Portanto, se excluirmos esses quatro livros, subsistiré uma Metafisica em dez livros que talvez jé existisse antes da edigao de Andrés sio todas conjecturas, néo temos nenhuma certeza ou se- guranga a esse respeito. Isso vale também no que se refere ao titulo, ao nome desta obra, em grego ta meta ta physika, que significa “ss coisas que vém depois daquelas de fisica”, ou os livros que vém depois. Vejam; segundo a tradigao, esse titulo no dicado simplesmente a posigZo em que essa obra havia sido colocada por Andrénico, isto €, depois des obras de fisica. Se vocés se lembram de como se compoe © corpus das obras de Aristételes, perceberdo que em pri- meio lugar estio as obras de légica, isto é, 0 Organon, a seguir vém as obras de fisica, a Fisica propriamente dita, 0 0; porém, inicio teria De caelo, 0 De generatione et corruptione, os Meteorologica, 0 De anima, em seguida todas as obras de biologia, isto é, aquelas obras sobre os animais, que se encaixam na fisica entendida em sentido aristotélico, ¢ depois de todas essas obras encontramos a Metafisica. Entao, muitos disseram: © nome “metafisica” significa simplesmente “aquilo que vem depois da fisica”. Em grego, merd significa “depois” e, portanto, nao tem um significado filoséfico, tem simples- mente fungao referente a ordem da biblioteca, o lugar onde por essa obra nas bibliotecas, Porém, também a esse respeito, 0 proprio Moraux afirmou que, assim como num dos mais antigos comenté- ios, o de Alexandre de Afrodisia, afirma-se que, segundo took | Inropugzo | 0 método de Aristételes,é preciso partir daquilo que nos é mais conhecido, ou seja, daquilo que esté ao alcance da nossa percepgio, da nossa experiéncia e das coisas que nos so mais conhecidas para remontar aquelas que so, diz, Aristételes, as mais conhecidas per si ou por nature- za, pois sao a causa que torna inteligiveis todas as outras, portanto, se temos presente essa doutrina de Aristételes, podemos compreender que a Merafisica & chamada assim nfo s6 porque foi colocada depois da fisica, mas devia ser colocada depois da fisica porque, segundo a ordem natural do conhecimento teorizado por Aristételes, em primeiro lugar, é necessdrio conhecer a realidade fisica e somente depois conhecer aquilo que se encontra além; aquilo que nao esté mais a0 alcance dos nossos sentidos, da nossa experiéncia, aquilo que est além. Com efeito, a preposigio grega metd ndo significa somente "depois", mas quer dizer também. “além?, corresponde ao latim trans, indica, portanto, aquilo que transcende a’ fisica, aquilo que transcende a experiéncia, Portanto, segundo Moraux, esse titulo deveria ter também um significado filos6fico n’o somente associado 4 ordem, a edigo feita por Andrénico, Também a esse respeito nao se pode ter nenhuma certeza, sio todas conjecturas mais ou menos convincentes. . Certo & que a palavra “metafisica” nao existe em Aristoteles. A ciéncia que ele expae, a disciplina que ele expée nesse livro, como veremos, é por ele chamada de “filosofia primeira" ou “ciéncia primeira", Em Aristételes, © termo “filosofia” e 0 termo “ciéncia”, isto é, epistémé, substancialmente se equivalem, No tempo de Aristételes, a palayra “filosofia” ja havia entrado em uso, nao significa- va mais simplesmente o amor pelo saber, como vernos em j23] | Enrico Bern | Sécrates, talvez ainda-em Platao, mas ja significava uma forma de saber. Portanto, era sindnimo de ciéncia, de epis- témé, e aquela que exposta aqui neste livro é justamente a filosofia primeira ou a ciéncia primeira, isto é, a primeira entre todas as ciéncias. Veremos mais adiante por qual motivo Aristételes a considerava primeira, Outra coisa que deve ser lembrada é que o conjunto atual dos livros nao significa que tenham sido compostos todos em sequéncia, um apés outro, e a ordem em que estdo atualmente dispostos corresponda A ordem em que Aristételes os concebera. Todos os tratados de Aristételes publicados por Andrénico foram publicados trés séculos apés a morte de Aristételes, pois ele nunca os publicara; eles nao cram obras escritas por Aristételes em vista da- quela publicacao, eram textos por ele usados em suas au- Jas. Portanto, eram parcialmente escritos por ele, mas em parte podiam também conter anotagdes, apontamentos, feitos por seus ouvintes, por seus alunos. O nome com 0 qual eram citados era logoi Logoi em grego significa “discursos”. Talvez, corres- pondessem aquilo que nés hoje chamamos os “cursos” que séo dados na universidade, razio pela qual se pode fazer um curso de Logica, um curso de ética, um cur so de politica. Também esses cursos, esses logoi, tendo todos um ‘tnico tema, isto é,-referindo-se todos a essa assim chamada filosofia primeira, ciéncia primeira, fo- ram postos juntos pelos editores, por Andrénico ou por algum outro autor que Ihe antecedeu, talvez aquele que tinha em mios a Metafisica em dez livros, isto é, foram ostos juntos numa determinada ordem, que é a ordem em que chegaram a nés, Veremos que essa é uma or- dem em boa parte justificada e justificével, porém sob | wrrcoucio | algum aspecto também discutivel, e de qualquer modo nao temnos motivo para considerar que fosse a ordem desejada por Aristételes. Pois o cariter de discursos, de textos preparados em vista do ensino, tornava possivel também a intervengao posterior a primeira redagio, 4 primeira composicio. Portanto, podemos imaginar que Aristételes, quando precisava dar um curso em sua es- cola, em primeiro lugar, ele proprio escrevia um texto, mas em seguida podemos pensar que, durante o trans- correr desse curso, sentisse também a necessidade de introduzir acréscimos, inserir mudangas no texto que havia preparado, e é provavel que, em seguida, quando © texto era oralmente comunicado a seus alunos, tam- bém eles inserissem alguma anotagio, algum comenté- rio, algum acréscimo, Isso faz com que o texto @ nossa disposi¢io nao seja, por assim dizer, um texto com toda seguranga auténtico; néo é como um diélogo de Platao. Também entre os didlogos de Platio encontramos dié- logos auténticos e nao auténticos, mas no que se refe- re aos auténticos, tomemos por exemplo a Repiiblica, © Banquete, o Fédon, podemos ter certeza de que sio formados por palavras escritas por Platio, todas, da pri- meira a tiltima, também porque sio escritos num esti- lo de grande artista, que somente Platéo era capaz de executar, Pelo contrério, nos tratados aristotélicos, pode acontecer que alguma palavra nao seja de Aristoteles, que haja algum acréscimo, algum comentirio, as vezes também comentétios ou acréscimos feitos pelo proprio Aristételes em ocasides sucessivas, De fato, Aristételes ensinou por muito tempo, isto é, por muitos anos; talvez ja lecionasse quando ainda estava na escola de Platao, pois permaneceu nela por muito tempo, até os trinta e | exaco Benn | quatro anos, quando ja no era mais um jovem, nao era mais um estudante, e é possivel que Platao Ihe desse os encargos do ensino. Por exemplo, no que se refere a Re- t6rica, o fato parece adquitir consisténcia, mas é possivel que isso tenha acontecido também com a Metafisica. A seguir, apés a morte de Platao, Aristételes se transferiu para uma cidade da Asia Menor, Assos, onde também teve alunos, e provavelmente ai também deu cursos. Fi- nalmente, como vocés sabem, regressou a Atenas, fun- dou sua escola e nela lecionou por onze ou doze anos. Portanto, também a Metafisica provavelmente foi objeto de varios cursos, em anos distintos, em anos sucessivos. Werner Jaeger, o grande estudioso alemao que citei anteriormente, é da opiniao que pode individuar entre os catorze livros da Metafisica alguns livros mais antigos e outros mais recentes, isto é, escritos, compostos em épo- cas distintas da vida de Aristételes. Portanto, temos de lidar com todos esses problemas quando lemos esse livro; nio é leitura simples, facil; é livro de extrema dificuldade, que apresenta uma infinidade de problemas ¢, no ob: tante, é um livro também de grande beleza, de grande profundidade, motivo pelo qual é certamente uma das ‘obras mais preciosas de toda a historia da filosofia. ‘Tive de prestar atengao ao tempo que tenho 4 minka disposigao. Tendo de dar nesta semana dex. aulas, isto é, duas por dia, calculei que em cada aula devo falar ~ os livros da Metafisica sio catorze, portant, sio mais nu- merosos que as horas que tenho a disposicao — de mais de um livro. Entao, eu pensava que as duas aulas de hoje poderiam ser dedicadas aos primeiros trés livros, que, em minha opiniao, como procurarei mostrar a vocés, so trés introdugées diferentes a Metafisica. toni Livaos A, a, B- O que queremos dizer com a expressio“os primeiros trés livros"? Aqui se apresenta outro problema, o proble- ma dos niimeros, porque, enquanto todas as outras obras de Aristételes tém o primeiro livro, segundo, terceiro, quarto, quinto ~ vocés sabem que 0s gregos, para indicar 05 ntimeros, usavam as letras do alfabeto: alfa, beta, gama, delta... - infelizmente, no caso da Metafisica, temos dois livros Alfa, que seria o mesmo que dizer dois primeiros livros, pois alfa quer dizer primeiro, alfa indica © nimero um. Temos, portanto, dois livros Alfa e, em seguida, aquele que vem depois, que deveria ser 0 terceiro, tem, todavia, como nimero, Beta, que em grego quer dizer segundo. Portanto, evidentemente, quando foi colscado 0 numero para todos os livros, havia um tinico livro Alfa, porque, se houvesse dois, um teria sido chamado Alfa, o segundo te- ria sid6 chamado Beta; visto que Beta é, porém, o ntimero atribuido ao terceiro, isso quer dizer que, inicialmente, isto é, a0 menos na edigao de Andrénico, havia um dnico livro Alfa. Qual? E dificil dizé-lo. Normalmente, os edito- res 0s distinguem chamando-os de Alfa maior e Alfa me- nos, simplesmente porque um é mais extenso € 0 outro la} | evuco Been | € mais curto: Alfa maior compreende dez capitulos, Alfa menor compreende somente trés, portanto, € chamado ‘menor por esse motivo, e também na escritura Alfa maior é indicado com Alfa maitisculo e Alfa menor com alfa mindsculo, ¢ em seguida vem Beta. © que contém esses livros? Quais diferengas apre- sentam entre si? Em primeiro lugar, como eu lhes dizia, 0 fato de termos dois livros Alfa levantou dividas que um, dos dois ndo seja auténtico, nao seja de Aristételes. Além disso, hé uma indicagao nesse sentido num meinuscrito, ‘no manuscrito mais antigo. Os manuscritos de Aristételes nao sio tao antigos como so, por exemplo, os manuscri- tos do Novo Testamento, que remontam aos primeiros séculos depois de Cristo; 0 mais antigo manuscrito das obras de Aristételes foi redigido em Bizancio, entio capi- tal do império bizantino, entre 0 nono século € o décimo, ¢ foi levado para a Itélia no tempo do Coneilio de Flo- renga. Em 1439, quando houve por um momento a reu- nificagao entre a Igreja catélica e a Igreja grega ortodoxa, muitos telogos, filésofos, cardeais, bispos, ‘personagens: importantes da Igreja grega participaram do Concilio. Estes, viajando para a Itilia, levaram consigo varios ma- nuscritos, entre os quais também as obras de Aristételes, Um dos mais famosos foi o cardeal Bessarion, que mais tarde, a0 falecer, deixou todas as suas obras em Veneza, 4 biblioteca de Sao Marcos, a biblioteca Marciana, onde ainda hoje € possivel ver os manuscritos deixados por ele. O manuscrito do qual estou falando, em vez. disso, que ¢ 0 mais antigo de todos, foi parar e permanecer em Florenga. Quando Florenga se tornow posse dos Médici, tornados a seguir grio-duques, uma das senhoras da casa Médici casou-se com 0 rei da Franga, Henrique IV, ante- tat é [ Lvaos A,«, 81,1 | riormente rei de Navarra tornado mais tarde rei da Franca = aquele que disse “Paris bem que vale uma missa”, isto é, converteu-se ao catolicismo a fim de poder tornar-se rei da Franga ~ e Maria de Médi que levou a Paris como dote, levou esse manuscrito de Aristételes, que, portanto, hoje se encontra na biblioteca nacional de Paris com o nome Parisinus Regius, isto &, c6- dice parisiense, de propriedade do rei, que na ocasifo era Henrique IV. No Parisinus Regius ~ se vocés forem a Paris, a biblioteca nacional, poderao pedir para vé-lo, é belissi- mo, é justamente o mais antigo manuscrito de Aristételes =, hé a Metafisica, e ha sobretudo o livro Alfa maior, como em todas as edigdes que possuimos, ¢ em segundo lugar encontra-se Alfa menor, mas no meio, entre o fim do pri- meiro livro € 0 inicio do segundo, 4 margem da folha, ha um dbice. O que é um ébice? E uma anotagio feita pelo ama- nuense, isto 6, por aquele que transcreveu a obra de Aristételes no manuscrito, e nesse dbice afirma-se apro- ximadamente o seguinte: “este livro, segundo alguns, foi composto por Pasicles de Rodes", que era sobrinho de Eudemo. Eudemo era um aluno de Aristételes; com efei- to, uma das duas éticas de Aristoteles — uma é a Btica a Budemo ou Eudemeia -, chama-se assim porque prova- velmente foi publicada por esse Eudemo, aluno direto de Aristételes, Eudemo tinha um sobrinho chamado Pasi- cles, que era também ele de Rodes, como Eudemo. Pois bem, no dbice esta escrito: “este livro ~ afirmam alguns — notem bem, nao é 0 pensamento daquele que escreve, mas é uma noticia que ele fornece ~, afirmam alguns que é de Pasicles de Rodes”, ou seja, nao é de Aristételes. Eis, pois, a davida de que um dos dois livros Alfa nao fosse entre as muitas coisas oat { exuco Been | de Arist6teles jé havia sido levantada no tempo em cue foi redigido o manuscrito mais antigo. S6 que esse dbice € posto numa posicao tal, exatamente na metade entre 0 fim do primeiro livro e inicio do segundo, de modo que no se compreende bem de qual dos dois livros esta fa- lando; quando afirma “este livro”, pode querer dizer tanto “este que vem depois” quanto 0 contrario, “este que acaba de terminar”. Por isso, alguns disseram que ele se refere a0 segundo livro e concluiram que o segundo nao é auténti- co; outros, pelo contririo, afirmaram que ele se refere a0 Primeiro ¢ concluiram que o primeiro nao € auténtico. Nesse ponto, a discussio esta em aberto: dé acordo com a maior parte dos estudiosos de hoje, eu creio que ambos devam ser considerados auténticos, tanto 0 livro Alfa maior quanto 0 livro Alfa menor, isto é, que ambos sejam de Aristételes, porém é evidente que nao deviam estar juntos, isto é, néo estavam os dois na mesma obra, porque uma obra pode ter somente um primeiro livzo, nao pode ter dois livros primeiros; portanto, alguém os pés juntos. Mas ambos so livros introdutorios. Eu fiz pes- quisas sobre esse problema, hé varios anos ocupei-me com certa dedicagao e inclusive tive debates com peritos, como Moraux e a sua escola, os quais eram eximios paledgrafos, isto é, especialistas em manuscritos antigos, e criei a ideia de que os primeiros dois livros sejam ambos introdugées a duas diferentes edigdes da Metafisica, uma mais antiga e uma mais recente: uma comecava com o livro Alfa menor, €, em minha opinido, é a mais antiga, sendo seguida por outros livros ~ em minha opiniio, o livro Lambda ¢ talvez olivro Ni, que é 0 ultimo, isto &, 0 décimo quarto, a0 passo que Alfa maior era o primeiro de outra edigao da Metafisi- ¢a que compreendia todos os outros livros, 130] | u0s Aa, B= 1,1, | Portanto, ¢ bom que tenhamos presentes os dois, porém, conscientes de que se trata de duas distintas in- trodugées a Metafisica. Em gerto sentido, também o ter- ceiro livro, isto é, 0 livro Beta, é uma introdugéo, porém, por outros motivos, Como veremos, também ele é um livro introdutério, no qual Aristételes ainda nfio expde a ciéncia que forma 0 objeto desta obra, mas a apresenta, prepara-a, A seguir, a.auténtica exposigio inicia-se com 0 livro Gama, aquele que vem imediatamente apés Beta, que & 0 quarto da série que nés temos, do qual falaremos amanhi. Comecemos falando do livro Alfa maior. Para seguir estas minhas aulas, é titil que vocé tenha os olhos voltados para uma tradugio moderna ou, se alguém conhece o gre- g0, para o texto grego ao qual procurarei referir-me. Ha duas edigdes da Metafisica, duas edigées criticas fortes, nao se trata de edigdes recentes, pois a Metafisica é uma obra tao dificil que ninguém arrisca fazer uma nova edi- ‘io, mas essas duuas edigdes sio absolutamente as melho- res. Hé algumas produzidas no século XIX, porém hoje no siio mais usadas, As dltimas duas, aquelas que ainda sio usadas por todos, sfo estas: a primeira, de William David Ross, o inglés que jé citei, que a publicou em 1924, para as edigdes da universidade de Oxford, com um co- mentério que ainda hoje é um dos melhores; a outra edi- ‘¢fo foi também produzida em Oxford pelo estudioso ale- mao que ja citamos, Werner Jaeger, em 1957, isto é, mais de trinta anos apés a edigio de Ross, e depois disso néo surgiram outras. Pensem, por exemplo, na Franga, onde inclusive eles tém aquelas magnificas colegbes de edigdes criticas da editora Les Belles Lettres, ndo ha uma edigao ctitica da Metafisica. Para esse fim, hoje, est trabalhando [3] | Exnico Been | ‘uma equipe, mas os trabalhos jé duram vinte anos, e sou do parecer que nunca chegarao ao fim, pois & compos- * ta por um ntimero excessivamente grande de estudiosos que nio esto de acordo entre si, Eu trouxe comigo a 0 de Jaeger e trouxe também uma traducio italiana, 4 mais clara e mais itil, a tradugao de Giovanni Reale, an- tigamente publicada por Rusconi, que agora se encontra nas edigées Bompiani, e tem a vantagem de ter ao lado o ‘texto grego, ¢ 0 texto grego reproduzido por Reale é0 de Ross. Portanto, tendo-o aqui com a sua tradugao de Jae- Ber, estamos de posse das duas edigdes mais importantes, Quando eu ler algima passagem ~ pois devemos ler ¢ comentar alguma passagem da obra -, lerei a tradugio de Reale e em algum caso vou propor a vocés uma traducéo minha, pois nem sempre é possivel estar satisfeito com as tradugées existentes, passiveis de melhoras e de aperfei- goamentos. A essas alturas seria necessrio comegar a leitura da obra, € no escondo que ao fazé-lo experimento certa emogio, toda vez que abro 0 livro e leio aquelas mara- vilhosas linhas iniciais: "Todos os homens por natureza desejam conhecer” (980 a 21). Assim se abre a Metafisica de Aristételes. frase que merece reflexio, porque em Primeiro lugar diz “todos os homens", péintes anthrépoi. Em grego, anthropos significa 0 ser humano. Hoje, nos paises de lingua inglesa, prefere-se dizer human beings, Porque nés dizemos “homens", mas entéo alguém obje- ta: e as mulheres? Ao contrario, anthrépoi significa tanto homens quanto mulheres. © fato € importante porque 8 sociedade grega antiga era uma sociedade machista na qual, por exemplo, as mulheres no recebiam educagio, nio frequentavam escola, nfo possuiam cultura nenhuma 1321 | Livnos A, B11, 1H | ¢, portanto, nao podiam fazer filosofia. Apesar disso, Aris- toteles diz. pantes anthrépoi, todos os seres humanos, ho- mens e mulheres, desejam saber, desejam conhecer. Além disso, havia outras distingdes feitas pelos gregos, pois niio eram apenas uma sociedade machista, eram também uma sociedade escravagista; como todas as sociedades antigas, também os romanos, distinguiam os homens entre livres € escravos, Mas anthépoi sio todos, tanto os livres quanto 05 escravos, portanto, é uma nogio que abraga todos os seres humanos, independentemente do sexo ou, como se diz hoje, do género, independentemente das condigées sociais. E, além disso, havia uma terceira distingao feita pelos gregos: gregos e barbaros, Os gregos se considera- vam 0 tinico povo civilizado e chamavam todos os outros "barbaros”, também porque os gregos niio compreendiam sua lingua, parecia que balbuciassem, por isso os chama- vam barbaros, Porém, quando Aristételes diz “todos os homens”, com essa expresso, abraca homens e mulhe- res, livres ¢ escravos, gregos e birbaros. Com efeito, todos so homens e ~ acrescenta Aristételes - por natureza de- sejam conhecer, isto é, nao por alguma razao acidental, por alguma contingéncia hist6rica, por algum fato casual, no, no... por natureza, isto é, pelo fato de que sio se- res humanos, em virtude do seu ser humano; pelo fato de que sio seres humanos, desejam conhecer. Portanto, existe a preocupagao de mostrar que o desejo de conhe- cer esté enraizado na propria natureza humana, acima e além de qualquer distingao, Quando leio esse texto, verm- -me a mente aquilo que dir sio Paulo: nio ha mais nem homem nem mulher, nem escravo nem livre, nem grego nem barbaro (Cl 3,11; Gl 3,28). Isso acontece também aqui, todos por natureza desejam conhecer, mi | exrico Ben | Em seguida, Aristoteles continua dizendo: “prova dis- so € 0 prazer que experimentam pelas sensagGes, especial- mente a da visio” (980 a 22-24). O prazer de ver... Quem nao desejaria ver? Os gregos privilegiavam a visio acima de todos os outros sentidos, mas a visio & considerada por todos um bem precioso, tanto é verdade que existem tan- ‘bém muitas formas de dizer onde se sublinha o valor da visio; diz-se a alguém: vocé é a luz dos meus olhos, para dizer que vocé é para nim umd coisa muito importante, ‘ou entiio: vocé é como a minha pupila, para dizer que voce € a coisa mais querida que tenho; além disso, em inglés, ‘pupil significa aluno, quer dizer, o discipulo... portanto, a visio é considerada um grande bem, todos sentem prazer em ver, por isso, a visio é preciosa para nés. Aristételes afirma que a visio, entre todos os sentidos, é aquele que nos faz. captar maior némero de diferencas (980 a 26-27) ‘Todas as cores, as formas, sio infinitas, toda a variedade do mundo da experiéncia é captada mediante a visio, e, portanto, a vis outros sentidos, por isso nés a amamos, e por isso ela nos produz, prazer. Mas se a visio nos produz prazer, esse é 0 sinal de que queremos conhecer, de que desejamos saber, de que por natureza os homens desejam conhecer. Acabamos de ver 0 exérdio do livro Alfa maior, isto 6 do primeiro livro, Aristételes justificou sua pesquisa afirmando que esté enraizada na mais profunda nature- za do homem, ¢ prossegue indicando uma série de graus de conhecimento, que partem do mais baixo, do mais simples, daquele que podemos chamar “percepsio”. Aris- t6teles a chama aisthesis, que literalmente seria a sensa- io, mas com esse termo ele entendia o conhecimento abrangente que temos dos objetos mediante os sentidos: 10 nos faz, conhecer mais do que todos os 134] | uvn0s A,«, 81,1, | a visio, a audigao, tato etc, isto é, aquela que nés cha- mamos percepgao. ‘Sucessiva forma de conhecimento em relagio a per- cepcio é a “recordacao”, que alhures Aristételes define como aquilo que subsiste de uma percepgio quando 0 objeto nao esta mais presente, De fato, quando 0 obje- to esta presente, eu o percebo com os sentidos; a seguir, quando o objeto nao esté mais presente, portanto, num momento sucessivo, conservo sua recordagao, mneme, em grego, de onde deriva a palavra “meméria”. A faculdade de conservar as recordagées é justamente a meméria, que no fundo est no mesmo nivel da percepgao, mas é possi- vel também quando o objeto nao esta presente. ‘A seguir, ha o terceiro nivel, que Aristételes chama empeiria e que nds com a ajuda do latim traduzimos como “experiencia”, Todavia, devemos ter presente o significado peculiar que essa experiéncia tem para Aristételes, porque ha filésofos modernos, chamados empiristas, como Locke, como Hume, que entendem a experiéncia em sentido diferente, isto & colocando-a no nivel mais baixo, como a simples percepsio, ou como aquelas que Aristoteles chamava sensagées. Ao contrério, para Aristételes, a ex- periéncia ¢ um grau de conhecimento mais avangado, Ele a define da seguinte forma: “muitas recordagées de um mesmo objeto” (980 b 29). Em primeiro lugar, tive a per- cepgaio de um objeto; depois, quando 0 objeto nao esta mais presente, mantive sua recordacio; quando ponho juntas muitas recordagées do mesmo objeto, entio, tenho uma experiéncia, uma empeiria, Como vocés podem ver, a experiéncia denota aquele grat de conhecimento que se possui quando se como dirfamos hoje, experto. Também “experto” vem de “experiéncia”. Dizemos que alguém é [as | Enrico Bexn | experto quando adquiriu certa familiaridade com alguma coisa; posso dizer, por exemplo, que sou experto de uma cidade quando a visitei muitas vezes e consigo orientar- ~me, reconhecendo as ruas, as pracas. Porém, se estive ai apenas uma vez, nao posso afirmar que sou experto. Bis, ois, muitas recordagées de um mesmo objeto. E Arist6teles continua, dizendo que a experiéncia tem por objeto o particular, ou melhor, as realidades indi- Viduais. Mas ha uma forma de conhecimento sucessivo, su- perior em relacao a experiéncia, que ele chama de conhe- cimento do universal, ou seja, daquilo que ha em comum € idéntico entre miuitos casos particulares ou individuais. Aqui, Aristoteles apresenta belissimos exemplos que nés, infelizmente, nao temos tempo para analisar:0 médico nio sabe tanto curar um individuo doente como pode fazer o experto; 0 médico é aquele que sabe que a todos aqueles que tém determinada doenga ou aquela determinada cons- tituicao fisica serve determinado remédio, isto é, consegue reconhecer a conexiio entre 0 caso particular e a espécie & ual pertencem os portadores de certa doenga ou que tém determinada constituigao fisica; eis o universal. Aristoteles afirma que o universal é captado median- tea arte ou a ciéncia, téchne e episteme, “Arte” é entendida no sentido de técnica, isto & aquela que possuem os ar- tesiios, os profissionais de alguma profissio. Outra dife- renga que Aristételes introduz.~ e é belissima ~ é que a experiéncia tem por objeto o qué, to héti, em grego, isto 6,0 fato, o fato individualmente, ao passo que a arte ou a iéncia tém por objeto o porqué, ta didti, isto é, a expli- cagdo, a causa (981 a 28-29). Aqui se delineia, portanto, @ concepsio que é tipica dos primeiros filésofos'gregos, eu diria exatamente dos inicios até Aristételes, incluido 1361 e | tnos A, a, 8 =, | Plato, isto é a concepgio da ciéncia como ciéncia do universal ¢ conhecimento da causa. Posso afirmar que possuo ciéncia de alguma coisa quando conhego sua cau- sa, conhego sua razio, a explicagio, Nesse ponto, Aristételes pergunta a si mesmo: mas a ciéncia que buscamos, aquela que é, que deve ser ex- posta nesta obra ou neste curso, qual ciéncia é? De qual causa € ciéncia? (982 a 4-6). Com efeito, todas as ciéncias conhecem as causas, mas aquela que procuramos, agora, Aristételes dé 0 nome de sophia. Sophia significa “sapién- cia”, Essa palavra era de dominio comum na Grécia antiga e nao indica uma forma peculiar de saber, é um concei- to que poderia ter valor relativo, pois indica sempre, em qualquer contexto, o grau de saber mais alto, mais elevado. Por exemplo, o arquiteto é mais “sapiente” que o trabalha- dor manual, néo porque possua quem sabe qual sapiéncia, mas porque sabe mais. Portanto, a sapiéncia é sempre, em qualquer comparacio, aquela que indica o grau de saber mais alto, Ora, considerando todas as ciéncias possiveis, qual delas é a sapiéncia, isto é, a ciéncia mais alta, a cién- cia que nos faz. conhecer mais, a ciéncia que nos fornece as explicagées mais profundas, mais completas? Essa é a ciéncia que Aristoteles procura. No livro Alfa maior da ‘Metafisica, encontramos pela primeira vez. a famosa defi- nigGo: a sapiéncia é a ciéncia das causas primeiras ~ mais ainda, diz Aristoteles, dos princpios e das causas primeiras (982 b 9). As causas primeiras sio justamente principios. O que quer dizer causas primeiras? Quer dizer cau- sas que precedem as outras causas, causas das quais de- pendem todas as outras. Portanto, as causas primeiras sio causas ¢, por sua vez, nio so causadas, nfo so depen- dentes de outras causas. Sao as causas além das quais nao lat | Eanuco Bern | € possivel ir, porque além delas néo hé nada mais a se conhecer, elas fornecem um conhecimento completo, um conhecimento altimo. Quem conhece as causas primeiras é considerado mais sapiente que os outros, isto é, sabe mais que 0s outros, diz, Aristételes. Em certo sentido, 0 sapiente sabe tudo, no porque saiba cada uma das coisas individualmente ~ a sapiéncia nao € a enciclopédia onde tudo se encontra ~, mas porque sabe a causa da qual tudo ‘depende, ¢ portanto compreende tudo. Aquele que pos- sui sapiéncia é também aquele que sabe ensinar melhor, aquele que sabe guiar melhor os outros, porque entre as causas ha também o fim que deve orientar as agdes dos homens ¢, portanto, quem conhece as causas primeiras conhece também o fim (982 b 4-7) Enfim, quem conhece as causas primeiras conhece por amor do conhecer, porque escolhe aquele tipo de co- het iento que nos faz.conhecer mais de todos os outros; portanto, quem ama a sapiéncia ama o conhecer mais que qualquer outro (982 b 24-28). Assim, j& nos primeiros capitulos deste livro ~ capitulos 1 ¢ 2 —se apresenta essa primeira definigao, que ndo podemos dizer da metafisica, pois Aristételes nao fala de metafisica, mas desse saber que para 0 momento ele nao indica com uma expressio técnica, mas chama simplesmente sapiéncia, sophia, para indicar o saber mais alto. A sophia, entre todas as ciéncias, € aquela que conhece as causas primeiras. A pergunta de quais causas é conhecimento a sapiéncia, Aristoteles res- ponde: “é conhecimento das causas primeiras”. A essa altura, Aristételes cita a Fisica, motivo pelo qual a Metafisica foi justamente colocada depois da Fi- sica: “como dissemos nas nossas obras de fisica” (983 a 33) ~ ele afirma -, hé quatro tipos de causas. Com efeito, dent J uvnos A, 8-1, 1h | a famosa doutrina das quatro causas é exposta na Fisica, nfo é uma doutrina da Metafisica; na Metafisica, ¢ evoca- da ~ por qué? Porque, para falar das causas primeiras, € preciso ter presente que hé quatro diferentes géneros de causas: a causa material, ou sea, aquilo do qual as coisas sensiveis sio feitas; a causa formal, ou seja, aquilo que as determina, aquilo que explica sua esséncia, aquilo que diz que coisas so, aquela que a seguir se chamaré tam- bém a forma; a seguir, a causa eficienté ou motora, ou seja, que as produz. Os exemplos que Aristételes apre- senta sio muito conhecidos: se tomamos uma estitua, a causa material seré 0 marmore ou o bronze, a causa formal sera o retrato de uma pessoa ou de uma divinda- de, a causa eficiente ou motora'seré o escultor, o artifice ou aquele que fez ou esculpiu a estétua. Por fim — diz Aristoteles -, ha a causa final, isto é 0 escopo em vista do qual a estétua foi feita; se é a estétua de uma divin- dade, foi feita para ser posta num templo e para servir a0 culto daquela divindade, eis uma explicagio. Segundo “Aristételes, quando se fala de catsas, é preciso ter pre- sentes todos esses possiveis significados. O conceito de causa aristotélico € muito mais amplo que 0 conceito que se encontra na ciéncia € na filosofia moderna. Esta conservou do conceito aristotélico de causa apenas um dos quatro significados, ou seja, o da causa eficiente, por isso, para a ciéncia moderna, em geral, causa € um fato que precede outro fato, isto é, 0 efeito, ¢ 0 produz, prece~ de-o no tempo € 0 produz, Mas esse é um conceito que se aplica somente aquela que para Aristételes era a causa eficiente.Para Aristételes, a causa eficiente € importante, porém, nao é suficiente. Para conhecer verdadeiramente uma coisa, € preciso que nos coloquemos 0 problema 139) | Ennico Bean | de todas as suas.causas possiveis, buscar todas as suas ossiveis explicagées, portanto, procurar-the o porqué no sentido mais amplo, qualquer tipo de porqué, néo apenas um fato material que produz outro, A respeito da doutrina das quatro causas, prestem bem a atencao, pois esse é um ponto que normalmente € suficientemente esclarecido, segundo minha visio, Pelos intérpretes. As quatro catisas nao sio as causas pri- “meiras; portanto, a assim chamada doutrina aristotélica das quatro causas nao é a metafisica de Aristételes, nio é 2 ciéncia das causas primeiras; é um discurso preliminar, introdutério, que Aristételes de fato desenvolve na Fisica © que € preciso ter presente quando se buscam as causas primeiras, porque cada uma dessas quatro causas ¢ um sénero de causas, é um tipo de’ causa. Mas dentro de cada um desses quatro géneros, devemos procurar qual é 8 causa primeira, Portanto, é preciso procurar no género dias causas materiais a primeira causa material, no géne- ro das causas formais, a primeira causa formal, depois a primeira causa eficiente e a primeira causa final, Portan- to, 0 fato de haver recordado esses quatro géneros nfo quer dizer ainda haver individuado quais sao as causas Primeiras, caso contrério, nao havia necessidade de es- crever a Metafisica, teria sido suficiente a Fisica, porque a distingdo dos quatro géneros de causas jé se encontrava na Fisica. Arist6teles, antes de ocupar-se na determina- sao de quais sao as causas primeiras dentro desses qua- tro géneros, sente necessidade de certificar para si ou de certificar para seus ouvintes — fato mais provavel — que csses quatro géneros sejam verdadeiramente todos aque- les que nés devemos ter presentes, isto é, que além des- Ses quatro néo existam outros. E como faz para dar essa fe | unos A,«, 8 = 1,1, Ut | certeza? Diz, vamos ver o que fizeram aqueles que antes de nés se ocuparam na busca das causas primeira, isto é, 08 filésofos precedentes. Aristételes os chama assim, hoi prétoi philosophésantes (983 b 6), aqueles que por pri- meiro filosofaram. : Portanto, antes de Aristételes, existiram outros filé- sofos: normalmente se comeca com Tales, Anaximandro, Anaximenes, isto é, a escola de Mileto, a seguir se passa a Pitagoras, Herdclito, Parménides e assim por diante. Es- ses so os considerados pré-socraticos, a seguir, temos os sofistas, depois, Plato, Mas foi Aristételes quem decidiu que aqueles foram os primeiros filésofos, foi ele quem 8 individuou, quem os identificou como aqueles que Brimeiro filosofaram, que antes dele buscaram as causas primeiras, De fato, quando introduz.o primeiro deles,Ta- les, antes de Aristételes, ninguém havia dito que ele Ea o primeiro, é Aristételes quem o apresenta pela primeira vez como o primeiro de todos 0s filésofos, e o apresenta com esta expressio: o inventor ~ em grego se diz ho arkhegés -, 0 iniciador tes toidutes philosophias" (983 b 20), que se deve traduzir, para quem conhece o grego, “de tal florofia, dessa especie de filosofia, isto ¢, desse tipo de filosofia’, nao da filosofia em geral. Pois nao se trata da filosofia em geral, isto é, de qualquer forma de saber, mas aqui Aristételes esté falando de determinada forma de saber, isto é, “esta certa filosofia”, essa filosofia desse tipo isto &, aquela que acabamos de defnir como ciéncia das causas primeiras. Entio, 0 iniciador desse tipo de filosofia ¢ Tales. Assim, em certo sentido, Aristételes nomeia Tales primeiro filésofo, aquele que nés convencionalmente consideramos 0 primeiro filésofo, ¢ o consideramos tal | ico fe | por causa dessa decisio que Aristételes nos comunica no primeiro livro da Metafisica: 0 inicio da filosofia. A se- Buir, Aristoteles explica que os que existiram antes nao faziam filosofia, eram “tedlogos", nao no sentido moder- no do termo, eram os poetas que narravam os mitos en- volvendo os deuses: Homero, Hesiodo, Ferécides e todos aqueles poetas que eram, em certo sentido, os criadores da antiga mitologia grega, aquela na qual se falava dos -deuses da religito grega, Zeus, Cronos, da origem dos deuses, das origens do mundo, Porém, segundo Aristéte- les, estes nao eram filésofos, eram ainda tedlogos, ou seja, mitélogos. : ‘Com Tales, temos a separagio entre teologia ¢ ilo- sofia, temos 0 inicio da filosofia. Por qué? Porque Tales, segundo Aristoteles, nao somente indicou uma causa pri- ‘meira, um principio, a Agua, mas procurou também dar uma explicagao dessa sua escolha. De fato — diz, Aristé- teles ~, provavelmente, Tales afirmou que tudo provem da gua porque viu que onde ha vida, ha umidade, onde nao existe agua, nao ha vida (983 b 25-27). A Grécia 6 uuma regio mediterranea bastante sida, e onde nio hi gua, nao hé vida, nfo cresce nenhum fio de erva; para que haja vida, ervas, plantas, animais, é indispensavel a Agua. Portanto, a origem, o principio, a causa de tudo é a gua. Mas Tales indicou uma razéo, deu uma explicacio, nio se limitou a fazer uma afirmagio, isto 6, uma narrati- Va, um mito, como faziam os poetas, portanto, com Tales teve inicio esse tipo de filosofia. O tema do inicio da filosofia é belissimo, porque os filésofos que vieram depois se viram obrigados a alinhar -se com Aristételes, mesmo quando nao estavam de acor- do com ele. O fato assume inclusive um tom dramitico Jaz] [uvnos A, , 8 1,1 | num grande filésofo moderno, que & também um gran- de admirador de Aristételes, trata-se de Hegel. Também Hegel procura reconstruir toda a historia da filosofia in- dividuando seu inicio. Além disso, para Hegel, o inicio tem tm significado ainda maior do que para Aristételes, porque para ele 0 inicio da filosofia ¢ o inicio também da sua filosofia, pois Hegel identifica toda a histéria da filosofia com a sua filosofia. Portanto, 0 inicio é 0 primeiro de todos os conceitos com os quais teve inicio 0 proprio sisterna de Hegel, a logica de Hegel, isto é, 0 conceito de ser, Mas qual é 0 primeiro filésofo antigo que falou do ser? Nao é Tales, é Parménides, Portanto, Hegel se en- contra num terrivel embarago, porque por um lado nu- tre imensa admiragio por Aristételes — Hegel pensava ser ele proprio 0 Aristételes moderno -, ¢ portanto nfo quer contradizer Aristételes ¢ afirmar que 0 inicio da filosofia nao é Tales, mas Parménides; porém, do ponto de vista da sua filosofia, Hegel deveria dizer que ¢ Parménides. Isso é interessantissimo, foram inclusive elaboradas teses sobre esse tema, 0 problema do duplo inicio da filosofia em Hegel. Hegel nunca se decide quanto a estabelecer se a filosofia comega com Tales, como afirma Aristételes, ou com Parménides, como exigiria a logica hegeliana. De qualquer modo, Hegel a parte, com o primeiro livro da Metafisica nos é indicado 0 inicio da filosofia, ¢ talvez por isso muitos afirmam que o livro em questdo é a primeira hist6ria da filosofia que foi escrita, a expo- sigéo do pensamento dos primeiros filésofos até Plato inclusive. De fato, também o pensamento de Platio é exposto aqui, no primeiro livro da Metafisica. Pode-se dizer que estamos diante da primeira historia da filo- sofia, porque Aristételes nos fornece uma série inteira 143} 2 | exnico Been | de informagdes acerca daquilo que pensaram os filéso- fos precedentes, Porém, a intengao no era escrever, por © Parte de Aristételes, uma historia da filosofia; a intencio é de carater filoséfico, de cardter teorético, ou seja, Aris- toteles pretende por a prova a distingao dos quatro tipos de causas que ele fez na Fisica a fim de ver se tem con- sisténcia, a fim de ver se ela ¢ confirmada ou desmen- tida por aquilo que todos os outros filésofos disseram. ~Aristételes nao era um pensador orgulhoso e individua- lista que queria remar contra a correnteza; Aristételes Procurava os consensos. Segundo Aristételes, quando uma coisa é admitida por muitos ou por todos, hi for- tes probabilidades de que seja verdadeira, portanto, ele interroga os filésofos precedentes para ver se estio de acordo com ele, E caso estejam de acordo, ele considera isso como um sinal de que sua suposigao ¢ justa, isto 6, vé nisso uma confirmagio, uma garantia da sua posigio. Eis entio a finalidade desse primeiro livro da Metafisica, ver como todos os filésofos precedentes conceberam as Causas primeiras, a fim de compreender se a distingio entre os quatro géneros de causas estabelecida na Fisica € ou nao uma distingao adequada. Como todos sabemas, o resultado sera afirmativo, isto 6, seré uma confirmagio. Mas tenhamos presente que 4 confirmacao ainda nao é a descoberta das causas primei- ras, € somente a confirmacio de que as causas primeiras devem ser buscadas dentre os quatro generos distintos na Fisica, que estes sio os possiveis géneros de causas dentro dos quais devem ser procuradas as causas primeiras. Por- tanto, 0 objetivo da abordagem é, diriamos hoje, de caréter filoséfico, nto de caréter histérico. Isso explica unta série de afirmagdes que do ponto de vista histdrico, provavel- 144d [ vnos A, 8-1, 1,10 | mente, seriam muito discutiveis. De fato, Aristételes toma dos filésofos precédentés substancialmente s6 aquilo que the intére’sa, somente aqitilo que the serve, e avalia os fi- Jésofos precedentes & luz da sua distingao, da sua doutrina dos quatro géneros de causas. Esta havia sido inventada por ele, néo € que fosse conhecida pelos filésofos pre- cedentes. Estes, portanto, so inseridos de alguma forma dentro dessa grade e isso comporta naturalmente alguns inconvenientes, pois Aristételes faz os filésofos preceden- tes dizerem aquilo que na realidade nao disseram. Caso exemplar é justamente 0 caso de Tales. Dado que néo podemos vé-los todos, contentemo-nos vendo como ele apresenta Tales. Aristételes afirma que a agua, indicada por Tales como principio, como causa primeira de tudo, é uma causa material, isto é, pertence ao género das causas materiais. Isso, Tales nunca o dissera. Tales nfo tinha sequer 0 conceito de matéria, Para Tales, a agua era tudo, Hé um testemunho, registrado por Platao ¢ que se refere a Tales, segundo o qual Tales teria dito: “todas as coisas esto repletas de deuses” (As Leis X 899 b). Entéo, suspeita-se que também a agua seja algo divino, e de resto ela é a fonte da vida, a condigio da vida, Portanto, nao é verdade que para Tales a Agua fosse matéria; ela nfo é a mesma agua que bebemos ou com a qual nos lavamos, é muito mais. Mas devendo julgar a luz do esquema ado- tado por Aristételes, o tinico género no qual é possivel inseri-la 0 género da causa material. Assim, segundo Aristételes, Tales teria descoberto a causa material, em- bora ndo soubesse que a havia descoberto, Os Pitagéricos diziam que todas as coisas sio feitas de néimeros, mas os niimeros pareceriam nio ser pro- priamente matéria; talvez, entao, diz Aristételes, com | Exuco Been | os ntimeros, eles queriam entender a causa formal) ou seja, a estrutura, aqueles conjuntos de relagdes que fa- zem com que a coisa seja aquilo que € (987 a 13-19). Quando, a seguir, Empédocles afirma que o Amor ¢ 0 Odio determinam todas as coisas, descobre a causa mo- tora, isto é que move (985 a 29-31). Em seguida, ha o problema da causa final, aquela que segundo Aristételes nao foi vista por ninguém, porque quem mais se aproxi- mou dela parece ser Anaxégoras, quando afirmou que ha um Intelecto que governa tudo, Porém, Anaxagoras disse apenas isso e nao usou o Intelecto para explicar como vao as coisas de fato (985 a 18-21). Essa é uma critica a Anaxagoras que também Platio fizera. Também na Mdeia de Platao, especialmente na Ideia do bem, é possivel ver uma causa final. Concluindo, o resultado de toda essa busca é que, considerando todos os filsofos precedentes, aqueles que denominamos pré-socraticos ~ outra palavra que no existe em Aristoteles, ele os chamava os “fisicos”, pois buscavam a physis, que significa a origem — e a se- guir Sécrates ¢ Platdo, considerando todos estes, vemos que cada um deles individuou pelo menos um daqueles Quatro géneros de causas, mas ninguém os viu todes e, sobretudo, ninguém viu causas diferentes dessas quatro, Portanto — conclui Aristételes -, temos a confirmacao de que esses sto os quatro géneros de causas dentro dos quais devemos encaminhar nossa busca das causas pri- meiras (988 a 18-23; 998 b 16-19). Vocés compreendem que a esse respeito haveria muito a dizer; foram escritos livros e mais livros a respei- to de como Aristételes interpreta os pré-socriticos, de como interpreta Platao. Dos pré-socraticos, ndo'terios as obras, e 0 pouco que deles sabemos deriva de tudo 146 | | vos A, a, 8-1, | aquilo que Aristételes diz aqui, por isso, néo hé outra saida, € preciso de algum modo levar em conta aquilo que Aristételes diz. No caso de Platio, a situagio é dife- rente, pois de Plato temos as obras, temos esse corpus magnifico composto de trinta e seis didlogos, trinta e seis obras de arte, nas quais ha tantas coisas que podemos ler. Todavia, 0; modo coino’Aristételes apresenta Platao nes- te primeiro livro da Metafisica, em parte, corresponde, mas sob muitos aspectos nao corresponde, ao centetdo dos didlogos. Claro, hé a doutrina das Ideias - como a doutrina fundamental de Platio -, que se encontra tam- ‘bém nos diélogos, mas em seguida Aristételes afirma que as Ideias nao so para Platao as causas primeiras, porque também as Ideias dependenti:dos principios, os quais sfo, portanto, prindtpios de tudo, sio eles as auténticas causas primeiras. Aristételes indica dois, atribuindo-os a Platao: ‘0 Um, que deveria ser identificado com 0 bem, ¢ a Diade indefinida, que nio é 0 ntimero dois, mas sim a dualida- de, que deveria ser identificada com o mal (988 a 8-17). Ora, dessa doutrina nos didlogos de Platio talvez exista algum traco, algum aceno, mas néo hi uma exposicao clara, Tanto que hoje sio muitos os que afirmam que Aristoteles, tendo frequentado por vinte anos a escola de Platdo, conhecia a filosofia de Platdo nao mediante 0s didlogos, que todavia cita - com éfeito, cita frequen- temente o Fédon, 0 Timeu, a Reptiblica -, mas conhe- cia também aquilo que Platdo dizia de viva voz, isto aqueles que Aristételes chame de dgrapha dégmata, as “doutrinas nao escritas”de Platio (Fisica IV 2, 209 b 15). A:mais importante dessas doutrinas seria justamente aquela que pe como dois principids supremos 0 Um e a Diade indefinida. Também a esse respeito, como vocés |47] | Enaico Bern | compreendem, ha muita literatura. Hé quem afirme que Aristételes falsificou Platio, nao compreendeu, atribuiu- -the ideias que Platio jamais professara, ¢ ha, pelo con- trério, quem afirme que sio muito mais importantes as doutrinas nao escritas do que os didlogos, as doutrinas que Platio ensinava oralmente, isto &, os agrapha dégma- a, a doutrina dos principios. Em sintese, entre og estu- diosos, ha controvérsias interminaveis. Assim se encerra o primeiro livro da Metafisica, ou seja, com a concepgao da sophia como ciéncia das cau- sas primeiras e a confirmagio de que as causas primeiras devem ser buscadas dentro dos quatro géneros distintos na Fisica, material, eficiente, formal e final, porque estes foram vistos por todos os filésofos precedentes, que nao viram nem indicaram outros. Portanto, diz Aristételés Podemos ficar tranquilos, € aqui que devemos indagay, & nesse rumo que devemos caminhar. Isso dito, ha a seguir o livro Alfa menor, no quel en- Contramos outro discurso, néo menos interessante, mas uum tanto diferente, porque Aristételes aqui comega di- zendo: a filosofia é a ciéncia da verdade" (993 b 20), po- rém, acrescenta logo em seguida: "mas conhecer a verda- de significa conhecer as causas" (993 b 23-24), e eis entao due retorna a mesma concepgao do livro Alfa maior. Em seguida, diz: “as causas so de quatro géneros ¢ em cada tum dos quatro géneros deve haver uma causa primeira” (994 a 1-2), portanto, reencontramos a concepsao do li- vro Alfa maior. Depois, no capitulo terceiro, Aristételes diz: “desta ciéncia nao se deve pretender a mesma: exati- dao, o mesmo rigor que se pretende da matemitica, mas fisica, e 0 método da fisica é menos rigoroso que o da matematica, porque a fisica tem de lidar com a maté- 148) 6 [nos A, a, 8 1,1 | ria” (995 a 14-16). Assim se conclui 0 livro Alfa menor, a ponto de muitos dizerem: o que a fisica tem a ver com isso? Parecia que deviamos fazer metafisica, isto é, uma busca das causas primeiras. Por que Aristételes se preocu- paem explicar qual é 0 método da fisica? Por isso, alguém disse que, na realidade, o livro Alfa menor nio era a in- trodugio & Metafisica, é uma introdugio a Fisica. A esse respeito, tenho a minha ideia: em minha opiniao, o livro Alfa menor é uma introducdo a uma ciéncia que é tanto fisica quanto metafisica, isto é, pertence a um periodo no qual Aristételes nao tinha ainda distinguido ‘claramente fisica e metafisica, mas buscava as causas em geral, come- cando pela natureza, portanto, comegando pela fisica € prosseguindo a seguir até as causas primeiras. Provavelmente por isso Alfa menor era a introdu- ‘go de uma edigao primitiva da Metafisica, Todavia, nao é problema grande, esta bem também assim, visto que a tradicio 0 colocou naquele ponto, 0 conservamos, o le- mos ¢ dele usamos sobretudo a doutrina segundo a qual em cada um daqueles quatro géneros de causa deve haver uma causa primeira, pois nao se pode remontar ao infi- nito. Bis a exclusio do processo ao infinito: ir ao infinito significa nao encontrar jamais uma explicacao, isto é, ndo explicar nada, néo fazer ciéncia. A certo ponto, é preci- so deter-se, isto ¢, é necessirio individuar uma causa que seja suficiente para explicar 0 mundo da experiéncia e nao tenha por sua vez necessidade de causas posteriores. Essa doutrina da impossibilidade de proceder ao infinito é,em minha opinio, o nticleo filoséfico mais importante contido no livro Alfa menor (994 a 1-2). Falemos agora do livro Beta. O livro Beta é sempre sacrificado e mereceria mais atengio, Esse livro comeca 149] | Exruco Been | dizendo que o método que devemos seguir nessa ciéncia € 0 de formular aporias, isto é, problemas, desenvolver essas aporias em duas diregdes opostas, isto é, prospec- tar para cada problema duas solugdes opostas ¢ ver quais consequéncias derivam dai, ver se sto aceitaveis ou se no sio aceitiveis, porque ~ diz Aristételes -, assim fa- zendo, estamos em condigdes de conhecer melhor o que € 0 verdadeiro e 0 que é 0 falso. Como fazem os juizes, “ que escutam tanto as teses di acusaco quanto as teses da defesa, ¢ 4 luz dessas posigées opostas emitem seu juizo, assim devemos fazer nés. Esse & aquele que comumente échamado um método de tipo dialético. Nos Tépicos, que sio o tratado sobre a dialética, Aristételes diz. que a dialética é Gtil para as ciéncias, € especialmente para encontrar os principios, porque de- senvolve do inicio o problema nas duas diregdes opostas (101 2 34-b 4), segundo aquilo que mais tarde Cicero chamara 0 método in utramque partem dicere, discutir em ambas as diregdes. Em seguida, Aristételes, na se- quéncia do livro, enumera catorze ou quinze problemas — hé pequena controvérsia acerca da quantidade — que deveriam ser discutidos e solucionados no restante da obra. E no livro Beta, ou seja, no terceiro livro, para cada um desses problemas, apresenta duas solugdes opostas € se pergurita quais consequéncias decorrem de uma ouda outra, isto é, pratica 0 método que poderiamos chamar aporético ou diaporético ou diaporematico, todos termos que derivam do grego aporia, que significa justamente problema. Como veremos, desses quinze problemas, os quatro primeiros se referem 4 natureza da ciéncia em ‘questio, da ciéncia que estamos procurando, isto é, da filosofia primeira, e os restantes se referem a natureza Isol [tivnos A, a, 81,1 | dos principios, os caracteres dos principios. Isto €: esses principios sio realidades sensiveis ou suprassensiveis? Sio universais ou particulares? Sao géneros ou sio espé- cies? Uma série de perguntas que Aristételes se coloca ¢ para cuja solugio remete aos livros posteriores, fato que confirma a concepgio exposta no livro Alfa grande ¢ Alfa pequeno, isto é, que o objeto do qual estamos a procura, do qual essa ciéncia é busca, sio 0s principios, isto é, as causas primeiras, Ist} Livros I’, A, E - IV, V, VI Ontem, consideramos, ainda que de forma muito répida, os primeiros trés livros da Metafisica, dos quais sublinhei o caréter introdutério, Porém, vimos que ja no primeiro livro, Alfa maior, Aristételes propée uma defini- Gao da sapiéncia, isto é, da sophia, que vira a ser a ciéncia a ser exposta nesta obra; uma definigo segundo @ qual por sophia, por sapiéncia, é preciso entender no somente uma ciéncia qualquer das causas ~ todas as ciéncias sio conhecimentos de causas ~ mas a sophia & conhecimen- to das causas primeiras, dos principios ¢ das causas pri- meiras, As expresses “principio” e “causas primeiras” se equivalem, querem dizer a mesma coisa, portanto, trata- -se de causas que no dependem de outras causas, de cau- sas que nfo tém nenhuma causa primeira além delas. E sempre no mesmo livro Alfa maior Aristételes evoca uma importante distingio que ele ja expusera na Fisica, isto é, distingao entre os quatro diferentes tipos ou géneros de causa: causa material, causa formal, causa eficiente e causa final. No terceiro livro, Aristételes apresenta uma série de problemas, de aporias, que deverio ser solucionados, apés t ACC | Enrico Been | uma discusso das razdes a favor e contra cada uma das possiveis solucées; deverao ser solucionados no resto da obra, O nimero de aporias nao esta claro, porque Aris- tételes expde duas vezes o elenco; numa vez, sio quinze, noutra, so catorze. A variagio refere-se & quarta, pois uma vez é exposta como aporia ‘inica e outra vez como sendo composta de duas aporias: a quarta e a quinta. To- davia, as primeiras quatro ou cinco aporias, segundo 0: Tulo que se queira fazer; referem-se ao objeto da ciéncia em questao ¢, mais exatamente, consistem em perguntar como pode a sapiéncia, a ciéncia que estamos buscando, ser uma ciéncia tnica, devendo ocupar-se de objetos bas- tante diferentes entre si, bastante heterogéneos, como so sobretudo as quatro causas (996 a 18-998 a 19). Ontem, jé dissemos que as assim chamadas quatro causas so na realidade quatro géneros diferentes de cau- sas. Ora, segundo a teoria aristotélica da ciéncia, que foi exposta numa obra de légica, isto ¢, nos Analiticas poste- riores - uma obra cujo primeiro livro é inteiramente dedi- cado por Aristételes a descrigo de como deve ser estru- turada uma ciéncia, eo modelo que ele tem presente é oda geometria, aquela que nés chamamos de geometria euclidiana, mas que ja existia no tempo de Aristételes -, vejam, segundo essa teoria da ciéncia, cada ciéncia deve ter como objeto um género de coisas particular, isto coisas que pertengam todas ao mesmo género, Por exem- plo, a aritmética tem como objeto os ntimeros, que per tencem ao género ntimero; a geometria tem como objeto as figuras, triangulos, circunferéncias, que pertencem ao género figuras. Cada ciéncia aborda um género particular ¢ demonstra as propriedades dos objetos que pertencem Aquele genero, baseando-se em principios proprios aquele [54] [umosr,a,8-1,v, vi] genero, que valem para aquele género, € ndo para outros, Cada ciéncia se serve também de principios comuns ~ veremos quais sio os principios comuns ~, mas além dos principios comuns deve dispor de principios préprios, isto 6, pertencentes exclusivamente a0 género de obje- tos dos quais se ocupa. Portanto, as ciéncias, segundo essa teoria, sd0 por definigéo sempre ciéncias particulares, di ferentes uma da outra, auténomas uma da outra, cada uma dotada de principios préprios, ¢, segundo Aristételes, essa € a condigao para poder fazer auténticas demonstra ges. As demonstragdes consistem em partir dos princi- pios préprios de determinada ciéncia e deduzir deles, me- diante silogismos, as propriedades dos objetos a respeito dos quais a ciéncia trata. Por exemplo, uma demonstra- do famosa no campo da geometria é a demonstragéo de que todo triangulo tem a soma dos seus angulos internos igual a dois retos, Essa demonstragio é feita partindo-se da definigao de triangulo, da definigao de retas paralelas, de uma série de princfpios que so préprios da geome- tria. Para que uma demonstragio seja vilida, isto ¢, seja demonstragéo auténtica, nio deve passar de um género 20 outro, isto &, nao deve inserit na concatenacao das suas proposicdes nenhuma proposicdo que diga respeito a umn género de objetos diferente daquele sobre o qual trata a demonstragio. Portanto, para que as ciéncias possam ser verdadeiras ciéncias, isto é, ciéncias demonstrativas, elas devenr abordar sé um género particular de objetos. ‘A luz dessa teoria da sapiéncia, a sophia, devendo ocupar-se com todos os géneros de causas, que sio entre si distintos, como pode ser uma tnica ciéncia? Esses g¢ neros de causas, diz Aristételes, nfo sto entre si contrarios (996 a 18-21). Os contrarios, sempre segundo a logica de Jss| | Enrico Bern | Aristoteles, pertencem ao mesmo género, portanto, sio objeto de uma mesma ciéncia; por exemplo, a medicina tem como objeto a doenga ¢ também a satide, que sio en- tre si contrérias, mas pertencem ao mesmo género, Ora, como pode a sapiéncia buscar todas as causas primeiras se estas pertencem a géneros tao diferentes um do outro? Se nao séo também contrérias uma em relagao a outra? Se, inclusive, afirma Aristételes, existem alguns objetos que nao tém todas essas causas? Por exemplo, os entes im6- veis nio tém todos os géneros de causas (996 a 21-23) Quando Aristételes fala de entes iméveis, em geral, pensa ‘nos ntimeros, nas figuras geométricas, isto é, nos objetos da matemética, que sao iméveis no sentido de que aquilo que se afirma a respeito deles nio muda no tempo. Quan- do formulo o teorema que disse anteriormente, "a soma dos angulos internos de um triangulo é igual a dois éngu- los retos", essa verdade vale sempre, porque as proprieda- des do triangulo nao mudam, Ora, para entes desse géne- 10, por exemplo, néo faz sentido buscar a causa final ou a causa eficiente; a causa eficiente é a causa do movimento, mas quando temos de lidar com entes iméveis, nao ha movimento e, portanto, néo ha necessidade de causa efi- ciente, € néo ha sequer um fim, pois o fim & 0 termo a0 qual tende o movimento, ao qual tende o processo. Essa é uma auténtica dificuldade, uma auténtica aporia. Em seguida, segundo Aristételes, a sophia deveria ocupar-se com as causas, no s6 em sentido fisico, mas ‘também dos principios comuns a todas as demonstraces (996 b 26-31). Veremos que esses sio o principio de nao contradigao € o principio do terceiro excluido. Nao sio objeto, nao sao entes, mas sio leis, regras que valem para todos os entes. Como pode a sophia se ocupar desses e e | UvaosT, 8, B=1%,¥, Mf também dos entes naturais dos quais, por exemplo, se procuram as causas primeiras? Depois, entre os préprios entes, como veremos me- Thor mais adiante, alguns sao substancias, e outros sao aci- dentes, isto é, atributos das substancias, Como pode uma ciéncia ocupar-se tanto das substincias quanto dos seus acidentes, quando se trata de géneros de coisas entre si distintas? (997 a 25-30). E como pode ocupar-se de to- das as substincias se também das substancias hé géneros diferentes, isto é, se ha diferentes géneros de substincias? (997 a 34 b 3). Vejam, estes sio os primeiros problemas propostos no terceiro livro, o livro Beta, e que é necessi- rio solucionar para garantir & ciéncia que estamos procu- rando uma tinidade, sem a qual ela nao pode existir, nao pode ser uma tinica ciéncia, E se ela nao é uma nica ciéncia, no lugar dela, devera haver ciéncias diversas, mas entao é initil falar da sapiéncia, falar da filosofia primeira. Essas so as primeiras quatro ou cinco aporias do li- vro Beta; a seguir, no mesmo livro, ha outras dez, ou onze, que porém referem-se justamente a natureza dos prin- cipios, isto é, a natureza das causas primeiras. Mas antes de enfrentar essas tiltimas, é necessario, para Aristételes, encontrar uma solugdo para as primeiras, € a solugio para as primeiras aporias se encontra no livro Gama, isto 6, aquele que para nés é 0 quarto e que esta claramente associado a Beta, porque responde as perguntas formu- ladas em Beta, as primeiras quatro ou cinco perguntas, problemas, aporias, formuladas em Beta, E isso deve ser levado em conta porque hi, na tradigio do aristotelismo, a tendéncia de ler o livro Gama como se fosse 0 inicio da Metafisica de Aristételes, esquecendo que o livro Gama é uma resposta a problemas formulados nos livros anterio- Is7t | unico Benn | res, € que, portanto, também o significado das doutrinas que cle apresenta deve ser avaliado nesse contexto. Também entre os intérpretes modernos hé essa ten- déncia, Por exemplo, um dos maiores filésofos do século XX, que dedicou atengao enorme e constante a Metafisi- ca de Aristételes, foi Martin Heidegger. Vo conferir to- dias as passagens, todas as piginas nas quais Heidegger fala da Metafisica de Aristételes; vio sobretudo ver um curso ininistrado por Heidegger na Universidade de Marburgo, em 1926, intitulado Os conceitos fundamentais da filoso- fia antiga, que foi publicado e do qual ha também uma tradugio em italiano. Nesse curso, 0 capitulo sobre Aris t6teles, em primeiro lugar, comega com uma exposigio da Metafisica, e isso j4 € coisa estranha, pois a Metafisica nao € a primeira dentre as obras de Aristételes ¢ inclu- sive seu préprio nome, como vimos ontem, indica que ela vem apés as obras de fisica, portanto, trata-se de uma forcacio. Mas depois, a0 expor a Metafisica, Heidegger comega logo com 0 livro Gama. O livro Gama, como to- dos sabemos, tem um exérdio famoso, tio famoso quanto aquele do livro Alfa, no qual nos detivemos ontem. © li- vro Gama ~ estou lendo a tradugio de Reale - comegadi- zendo, como todos sabe: “Hé uma ciéncia que considera © ser enquanto ser e's propriedades que lhe competem enquanto tal” (1003 a 20-21). Ora, se comegamos a leitu- ra a partir desse livro, parece que aqui Aristételes propoe sua definicao da sapiéncia, da sophia, da filosofia primeira, isto €, a concebe fundamentalmente como ciéncia do ser. Esse inicio, pelo contrério, deve ser lido como pro- posta de uma solugio, as aporias do livro Beta. Vejamos © que significa esta declaragao: hé uma ciéncia etc. Em Primeiro lugar, Aristételes afirma que essa ciéncia exis- | ss} [toms 4,B-N,V, Vt te; existe a sophia, existe a filosofia primeira, essa ci cia que a seguir & chamada filosofia primeira ¢ é todavia uma ciéncia um tanto especial ~ Aristételes diz. episteme. tis, seria necessério traduzir “uma certa ciéncia’, “uma es- pécie de cincia”, isto é, uma ciéncia diferente de todas as outras. Esta “considera” o ser enquanto ser, O termo empregado por Aristoteles & theorein, 0 verbo theorein € justamente “fazer a teoria de’, isto 6, estuidar, explicar. To on hei on literalmente deveria ser traduzido “o ente en- quanto ente”, porque on em grego € 0 participio presente do verbo einai, e significa “aquilo que é” Os filésofos que vieram depois de Aristételes, a co- megar pelos filésofos medievais, quer mugulmanos, quer cristios, deram muita importancia a diferenga entre‘ente e set. E com todo direito ~ penso por exemplo em Avice- na, penso em Toms de Aquino -, pois na dtica das reli- gides monoteistas ¢ criacionistas, como sto 0 cristianismo € 0 islamismo, na base de toda a concepgao da realidade, hi o conceito de criagio. Ora, a criagao consiste essencial- mente em causar 0 ser, portanto, é o ser 0 tema, 0 objeto que deve ser explicado, ¢ 0 ser nfo € 0 ente, nio é cada ente, mas é aquilo em virtude do qual cada ente &,€ 0 ato pelo qual cada ente é. Em minha opinio, em Aristételes, essa distingao nao tem tio grande importancia; claro, Aristoteles conhece diferenca entre ente e ser. Porém, para Aristételes, cada ente é tal enquanto dele se pode predicar o ser, por isso, tudo aquilo que se diz de um deve-se dizer também do outro, nio ha aquela que Heidegger chamaré a “diferenca ontol6gica” entre ser ¢ ente. Visto que para Heidegger essa é uma das verdades mais importantes da filosofia, e quem a despreza cai no [59] | Enrico Bern | esquecimento do ser, ¢ segundo ele, a metafisica ~e para Heidegger a tnica metafisica verdadeira é a metafisica de © Aristoteles ~ seria caracterizada pelo esquecimento da di- ferenga ontol6gica, isto é, pela diferenga entre ente ¢ ser, Por isso se torna necesséria aquela que Heidegger cha- ma a superagio ~ Uberwindung ~ da metafisica, porque é preciso recuperar a diferenga entre ser e ente que foi es- quecida pela metafisica. Ora, do ponto de vista hist6rico, “em certo sentido se deve reconhecer que Heidegger tem azo, porque em Aristételes, sim, ha a consciéncia da di- ferenca entre ser e ente, porém, para ele, essa nfo é a coisa mais importante, A coisa mais importante para Aristéte- les, como veremos logo, encontrar as causas primeiras do ente ou do ser, e nao tanto tematizar a diferenga entre ente ¢ ser. Por exemplo, Aristoteles diz do ente e do ser as mes- mas coisas varias vezes. Hé uma famosa afirmagio, que encontraremos logo ¢ que aparece em todas as suas obras, € € esta: “O ente se diz em muitos sentidos” ~ to de on légetai men pollakés (1003 2 33). Pois bem, na maioria dos casos, ela ¢ atribuida ao ente, porém, ha alguns casos em que Aristételes diz: "O ser se diz em muitos senti- dos’, € usa o verbo no infinitive ~ to éinai pollakés lége- tai (1019 a 5; 1077 b 17) - e hé até uma passagem na qual ele aplica essa afirmagio a cépula é, estin, 0 estin se diz em muitos sentidos (1042 b 25-26). Portanto, para Aristoteles, on, éinai, estn, isto é, “ente”, “ser”, "6" sio mo- dos distintos do mesmo verbo “ser”, que apresenta sem- Pre as mesmas caracteristicas. A esse ponto, é bastante indiferente traduzir, como traduz Reale, *hé uma ciéncia que considera o ser enquanto ser", ou entio literalmente como se deveria traduzir, “ha uma ciéncia que considera 1601 [ UveosP, 4, B-1V,V,V1 | o ente enquanto erite”, porque aquilo em que Aristételes fixa sua atengio nao é aqui a diferenga entre ser e ente, mas € 0 fato de que o objeto dessa ciéncia é 0 ente, ou seja, qualquer ente, tudo aquilo que é, poderiamos dizer a totalidade do ente, porém considerada enquanto ente, ou seja, naquilo que ela é per si, nos caracteres, nos aspectos que lhe pertencem, nas propriedades que lhe competem, enquanto justamente é ente, De fato, Aristoteles explica Jogo 0 que entende e diz: “Ela, essa ciéncia, nio se iden- tifica com nenhuma das ciéncias particulares: com efeito, nenhuma das outras ciéncias considera o ente enquanto ente em universal, mas, apés haver delimitado uma parte dele, cada uma estuda as caracteristicas dessa parte. Assim fazem por exemplo a& matematicas" (1003 a 21-26). ‘Todas as ciéncias tm como objeto 0 ente, porque qualquer objeto que consideremos, enquanto é, € um ente, portanto, por exemplo, as matemiticas, a aritmética © a geometria estudam respectivamente os niimeros ¢ as figuras, mas os nimeros ¢ as figuras so entes, portanto, também elas estudam entes; mas a aritmética estuda seus entes enquanto sio ntimeros, isto é, estuda as proprie- dades que pertencem a esses entes pelo fato de serem ntimeros, ¢ a geometria estuda seus entes enquanto sio figuras, portanto, cada uma dessas ciéncias considera um aspecto particular do ente. Pelo contririo, a ciéncia da qual estamos falando considera o ente néo em seu as- pecto particular, mas em tudo aquilo que Ihe pertence enquanto ele é ente, isto é, naquilo que Ihe pertence de per si. Aristételes 0 diz logo: "E as propriedades que lhe competem enquanto tal” (1003 a 20-21). Reale traduz a expresso grega kath’auté como “enquanto tal”; normal- mente, é vertida para o latim como per se, portanto indi last | Exnico Bexn | a, justamente, aquilo que pertence ao ente por si mesmo, ou seja, pelo fato de ser ente; portanto, aqui, "enquanto ente” equivale a “per si". Ora, com essa formula, Aristételes resolve sobre- tudo a primeira das aporias expostas no livro Beta. Por qué? Porque, apés haver declarado que essa ciéncia existe, e que ela se distingue das ciéncias particulares porque considera o ente enquanto ente, ele prossegue e conclui “0 primeiro capitulo do livro Gama dizendo: “Pois bem, visto que buscamos as causas ¢ os principios supremos” ~ vejam a remiténcia ao livro Alfa maior, onde se dissera que a sophia pesquisa os principios e as causas primeiras =," evidente que estes devem ser causas e principics de uma realidade que é de per si” (1003 a 26-28). Portanto, 6s principios e as causas primeiras, dado que sio causas que nao dependem de outras causas, so causas primei- ras, devem explicar aquilo do qual sao causas naquilo que ele € por si mesmo, no em seus aspectos acidentais ou que se acrescentam vez por vez casualmente, mas naqui- lo que ele é de per si, isto é devem ser causas do ente enquanto ente. Com efeito, Aristételes conclui dizendo: “Se, portanto, também ha aqueles que buscavam os ele- mentos dos seres [isto é, 0s fisicos, os primeiros filésofos), buscavam esses primeiros principios supremos, necéssa- riamente, aqueles elementos no eram elementos do ser acidental, mas do ser enquanto ser. Portanto, também nos. devemos buscar as causas primeiras do ser enquanto sex” (2003 a 28-32) Por que essa é a resposta a primeira aporia? Muitos estudiosos concordam em ver nessa passagem a solugao da primeira aporia do livro Beta, e eu concordo com eles, porém observo que nem todos estdo de acordo; alguém iesil | vos 7, 4, 1V,V,¥I | afirma que nio esta claro onde se encontra a solugao da primeira aporia do livro Beta. Em minhe opinido, pelo contrario, esti claro que é aqui. De fato, a aporia pergun- tava: cabe a uma ciéncia, a uma sé ciéncia, a uma Gnica iancia, estudar todos os generos de causas, embora sejam géneros diferentes entre si? A resposta é sim; por qué? Porque as causas primeiras so todas causas do ser ou do ente considerado enquanto ente. Em suma, essa conside- ragio do ente enquanto ente, ¢ essa referéncia das causas primeiras a0 ente enquanto ente, conferem unidade as causas primeiras; embora pertengam a géneros distintos, todavia, so todas causas do ser enquanto ser, do ser de per si. Isso lao quer dizer que o ser seja um género Gnico, ea seguir veremos que nao é, Aristételes ja o disse do livro Beta, a certo ponto, que o ser ¢ 0 um nio sio um gé- nero (998 b 22). Todavia, embora ndo sendo um género, © ser tem causas que, apesar de pertencerem a géneros distintos, sio todas causas do ser de per si, isto é, do ente enquanto ente, ¢ nesse modo respeitam a condicdo que nos Analiticos posteriores foi indicada para que haja uma ciéncia, isto é, a unidade, a homogeneidade de seu objeto. Essa € uma homogeneidade um tanto especial, porque 0 objeto nao é um género; todavia, podendo ser considera- do de per si e j4 que devemos buscar as causas que séo causas desse objeto considerado de per si, essa pertenga de per si kath‘auté ~ ao sex, de alguma forma, une en- tre si todos os quatro generos das causas ¢ torna possivel que a cigncia deles seja uma tinica ciéncia, seja a mesma ciéncia, Esse € 0 motivo pelo qual Aristételes introduz o conceito de on hei on, de ente enquanto ente, para garan- tir a unidade da ciéncia em questo, isto é, da metafisica. 1631 | Exaico Bes | Logo em seguida, Aristételes prospecta por sua con- ta, espontaneamente, aquela que parece ser uma objecio © 4 essa solugaog, isto é, exatamente como acabamos de ver, a condigao para que a ciéncia seja tinica é que 0 objeto Pertenga a um nico género, condigao que nao se aplica ao caso do ser. De fato, Aristételes continua, iniciando com uma adversativa que nas tradugées seria necessirio verter to de on légetai men pollakés; seria necessario tra- ‘duzir: “mas o ente etc.”, mas porque 6 uma dificuldade, 6 uma objegdo que nasce. Acabamos de dizer que devernos buscar as causas primeiras do ser enquanto ser, mas 0 ser ou o ente se diz em muitos sentidos, isto é, é intrinseca- mente miltiplo, significa coisas diferentes. O verbo “ser” significa certamente alguma coisa, melhor dizendo, signi- fica muitas coisas; significa coisas diferentes entre si. Em. outras passagens, por exemplo no livro Beta, Aristateles diz que o ser e 0 um nao séo um género, porque nio se comportam como normalmente se comportam os géne- ros (998 b 23-27), Os géneros sio os aspectos comuns a uma multiplicidade de espécies, dizem'o que hi em comum entre elas, por exemplo, o género animal diz 0 que ha em comum entre o homem, o cavalo, 0 cio etc. Depois, porém, para dizer 0 que 6.0 homem, o que 60 ca- valo, o que é 0 cio, é preciso acrescentar ao género a assim chamada diferenga especifica, ento, é preciso dizer que © homem é, por exemplo, animal racional, ao passo que © cavalo nao é; 0 “racional” é aqui a diferenca especitica Normalmente o género diz apenas aquilo que hé em comum entre muitas espécies, nfo diz. aquilo que, ao con- trério, as distingue uma da outra: nao diz a diferenca,"ani- mal” nao diz também “racional”, eu, para dizer 0 que € 0 homem, no basta que diga que é animal, devo acrescen- sisi an ili athe, | uvos P, 4, B-1V,¥, Mi | tar que é também racional, ¢ a nogio de rs ional & agre- gada 4 de animal, nao é contida, nao é dita, no é expressa pelo termo “animal”, porque “animal” se diz de todos os animais, tanto dos racionais quanto dos nao racionais. Ao invés disso, “ser” e “um”, out ente e um, segundo Aristéte- les, dizem, sim, aquilo que ha de comum entre todos os entes, € por isso sio os predicados mais universais, porém, dizem também outra coisa, Tudo aquilo que é tem como. seu predicado 0 ente, ¢ tudo aquilo que é um tem como seu predicado o um, tudo aquilo que é, é um, portanto, 0 ente € 0 um sao os predicados mais universais. Na Idade Média, a escoléstica diré que séo transcendentais, no sen- tido de que transcendem as simples categorias, vio além das simples categorias, abracam a totalidade. Porém, observa Arist6teles, além de indicar os aspec- tos comuns a todos os entes, a nogio de ser e a nogio de um indicam também as diferengas, porque também as diferengas so ente e sio uma; cada diferenca é um ente e é também uma; portanto, o ser e o um nao se comportam como os generos, no dizem apenas os aspectos comuns, dizem também as diferengas, dizem tudo de tudo. Sio no- ‘ges que nao apenas abracam todos os entes, compreen- dem-nos, por assim dizer, mas também os compenetram = no sei se consigo explicar-me com essas metéforas ~; 0 ser diz, todo o ser de todos os entes, tanto aquilo que ha de comum entre eles quanto aquilo que hé de diferente, por tanto, diz também as diferencas, algo intrinsecamente, Aristételes diz, “imediatamente”, logo, diversificado. Nao € que o ser antes seja algo unitério e a seguir, num segun- ‘do momento, diversifique-se; nao, ele é desde o primei- ro momento, logo, diré Aristételes no livro Gama, euthys (1004 a 5), ¢ logo diferenciado. Em suma, no momento | €xnico Bean | em que dizemos “ente’, dizemos algo que é, a0 mesmo tempo, universal e também particular, li onde indica as diferencas entre uma realidade e outra. Esse parece ser um obstaculo a unidade da ciéncia que disso se ocupa, Mas, por sorte, essa multiplicidade néo é absoluta- mente privada de tnidade, existe algo que une, que unifi- ca, que liga entre si os diversos significados do ente, isto é, © fato que entre eles ha um que é 0 primeiro em relagio a todos os’outros (1008 b 5-6). O que significa “primeiro”? Condigao do ser de todos os outros, condigéo segundo a qual 0s outros podem ser ditos ser, portanto, todos os outros sfo ditos ser referindo-se a este, referindo-se 20 primeiro, Aristételes chama essa situagio com uma ex- pressio caracteristica dificil de ser traduzida: homonymia ros hen, homonimia relativa a um, Normalmente, 0 que significa “homonimia"? A nocéo é esclarecida em outra obra, as Categorias (1 a 1-2). Temos homonimia quando ha coisas diferentes com um mesmo nome: hémoion éno- ‘ma, nome igual, nome idéntico. Quando ha coisas dife- rentes que tém 0 mesmo nome, estamos diante de homo- nimia; nés o dizemos também nas linguas modernas, duas pessoas podem ser homénimas se tm 0 mesmo nome, porém, sio pessoas diferentes. Pois bern, para Aristételes, essa homonimia pode ser total ou, como ele afirma em outro lugar, casual, quando as coisas entre si diferentes tém em comum somente 0 nome e nada mais. Entio, o fato de terem em comum © nome é verdadeiramente um acaso, entre elas, nao hé nenhuma outra relaglo, trata-se de pura e simples homo- nimia. Nao é essa a situagao que se verifica no caso do ser, porque sob 0 nome “ser” temos, sim, realidades diferen- tes, entes diferentes entre si, néo redutiveis a um Gnico 166/ [unosr, NVM genero, todavia, eles ndo tem em comum apenas o nome, co nome de entes, mas tém em comum também o fato de que se referem todos a um deles, que € 0 primeiro, Esse primeiro entre os entes, segundo Aristételes, ¢ aquele que cle chama de ousia. Normalmente, traduzimos ousia por “substincia’; alguém desejaria traduzir por “esséncia", outro, por “entidaide”, outros, por outros modos de que, no momento, néo me lembro. Em suma, inventaram as taducdes mais diferentes. Do ponto de vista gramatical, ousia & 0 substantivo abstrato que deriva do participio femninino do verbo "ser": on, ousa, on. De ousa decorre ousia, que ja era um termo usado por Platio a fim de in- dicar aquilo que é, em sentido forte, permanente, estével Para Plato, ousia eram as Ideias, o mundo das Ideias era a verdadeira ousia, isto &, 0 verdadeiro ser, 0 ser no sentido pleno. Tenho a impressio de que Plato a chamava tam- bém pantelés en (Reptiblica V, 477 a; Sofista 248 e), aquilo que é em sentido pleno. Aristoteles emprega a palavra ousia para primeiro dos significados do ser, isto é, aquele género de entes que sio em sentido forte e em virtude dos quais so também 0s outros. Os outros nao sio em sentido forte, nao sao ousia, mas estio todos em relagdo com a ousia, porque sio qualidades da ousid, sio processos da ousia, so acidentes da ousia, isto é, so enquanto tém alguma relag3o com a ousia, sio aquelas que nés chamamos as categorias diferentes da substancia: qualidade, quantida- de, relagao, lugar, tempo, fazer, ter, sofrer etc. Em alguma obra, Aristételes indica dez, em outra, indica oito, em al- guma outra, indica seis, porém, 0 ntimero nao importa, 0 importante é que, com essa classificago, compreendemos qualquer ente e classificamos todos os entes em géneros indicar 0 167) | Enmico Bean | que sto diferentes entre si, nao sao espécies de um genero Unico, porém, esto ligados entre si pela referéncia co- * mum ousia que, portanto, vem a ser o género primeiro. Segundo Aristételes, essa ligagio @ condigao sufi- ciente para assegurar e garantir a unidade da ciéncia do ser, Portanto, a ciéncia em questio é diferente de todas as outras ciéncias, porque as outras se ocupam com um género particular e essa se ocupa com uma plurilidade ~de géneros; porém, ligados entre’ si Por essa relacio, essa homonimia relativa, motivo pelo qual sendo a ousia o pri meiro dos sentidos do ser, para buscar as causas primeiras do ser enquanto ser, sera necessirio em primeito lugar buscar as causas primeiras da ousia (1003 b 12-19). ‘A definico da ciéncia das causas primeiras como encia do ser enquanto ser apresentada por Aristételes no inicio do livro Gama e a consequente afirmacio da unidade do ser, fundada na homonimia relativa, induzi- ram muitos filésofos, tanto modemos quanto contem- Pordneos, a afirmar que, com a metafisica de Aristételes, nasce a assim chamada ontologia, isto é, a ciéncia do ente, do ser. Isso € verdade, mas, em minha opinio, nao é toda a verdade. Com efeito, quando se insiste demasiadamente na afirmacio de que a metafisica de Aristételes 6 uma on- tologia, esquece-se do fato de que, para Aristételes, aquilo que do ser Ihe interessa so essencial e fundamentalmen- te as causas primeiras, E verdade que Aristételes introduz 0 conceito do ser enquanto ser e isso unifica ¢, portanto, toma possivel a ciéncia em questo, mas, uma ver, introduzido esse con- ceito, a busca deve ainda ser completada, estamos sim- plesmente no comego. Essa é a condicio de possibilidade da busca; Kant diria que ¢ uma condigio transcendental, lant rae eatin nities | Los P, &, B=1V, VM] a qual torna possivel a ciéncia, mas ainda nfo é a ciéncia, Veremos como se desenvolve, apés essa condigio, a busca das causas primeiras. O mesmo conceito de ser enquanto ser, além disso, permite a Aristételes solucionar todas as quatro ou cinco primeiras aporias, porque no ser enquan- to ser esto compreendidas tanto a ousia quanto as outras categorias e, portanto, & pergunta “é a mesma ciéncia que estuda substancia ¢ também as outras categorias?”, a res- posta é positiva, porque todas as categorias se encaixam no ser enquanto ser. Além disso, ao ser enquanto ser se aplicam os principios de todas as demonstragdes: 0 princ pio de nao contradigao € o principio do terceiro excluido, portanto, cabe a essa ciéncia estudar também os princi- pios das demonstragdes. Em suma, gragas a esse conceito, Aristételes soluciona as primeiras aporias, isto 6, aquelas de tipo ~ como dizé-lo ~ metodolégico ou epistemolégico que se referem a possibilidade da ciéncia em questio, Naturalmente, falando dessas aporias, tocamos te- mas e problemas de extremo interesse do ponto de vista filos6fico. Mencionei ha pouco os principios comuns a to- das as demonstragées, isto é, o principio de nao contradi- do € 0 principio do terceiro excluido, O restante do livro Gama, do terceiro capitulo ao oitavo, é inteiramente de- dicado a formulagao e a discussio desses dois principios. B fora de diivida que constituem 0 momento ontolégico, a parte ontologica da ciéncia em questo. Nao podemos deixar de acenar pelo menos a formulagio mais famosa do principio de nao contradigao presente justamente no terceiro capitulo do livro Gama. Aristételes afirma: “E impossivel que ao mesmo objeto, no mesmo tempo e sob © mesmo aspecto, pertenga e nao pertenga determinada propriedade” (1005 b 19-20). { Exmico Been | Também aqui houve muita confusio, declarou-se que este é o principio de identidade ou desejou-se atribuir a Aristételes o assim chamado principio de identidade. Ja na Idade Média, na escola scotista, havia sido delineada uma primeira formulagio do principio de identidade, na forma ens est ens; todavia, o principio de identidade na filosofia moderna, a partir de Leibniz, é formulado como “A € A’, ou mediante os simbolos da algebra A=A. Em ~ Aristoteles, esse principio nao existe. O principio de nao contradigio néo se refere a determinado objeto, mas se refere a pertenca e nfo pertenga de um predicado a um objeto, portanto, se ndo queremos formulé-lo com simbo- los, nao basta dizer “A € A’, 6 preciso dizer: & impossivel que A seja, contemporaneamente e sob o mesmo aspecto, B e também nao-B. Aquilo que o principio declare im- possivel é a contempornea determinagao de um mesmo. objeto por agéo de dois predicados opostos. Portanto, 0 principio se refere ndo a identidade do sujeito consigo mesmo, mas a posse por parte de um sujeito de certo nti- mero de determinagées, as quais nio podem contempo- raneamente pertencer-lhe ¢ também nao Ihe pertencer; podem pertencer-the sé em momentos diferentes e sob aspectos diferentes. Isso deve ser dito, porque a famosa critica que Hegel faré desses principios, ¢ mediante tal critica podera criar uma nova légica, nao se justifica em relacio a Aristoteles, justifica-se em relagao 4 formulagao moderna do principio de identidade. Se o principio fundamental de toda a logica e de toda a ontologia é 0 principio de identidade, que afirma sim- plesmente A €A, isto é, um ente é aquele ente, Hegel tem plena razio quando afirma que essa tautologia é vazia, ou seja, ndo nos faz conhecer coisa alguma do ente em ques- {70} [Uiwaos Pa, B=1V, V5 Vt | to. Quando dizemos “a arvore € a arvore” ~ Hegel traz também como exemplo: “Deus € Deus” -, afirmar que a arvore é a drvore, ou entio Deus é Deus, nao nos faz conhecer nada nem da arvore nem de Deus. Porém, ndo era esse 0 principio formulado por Aristételes. Aristoteles no se limitava a repetir a mesma coisa, isto é, a enunciar uma tautologia, Ele reconhecia que a cada sujeito, a cada ente, pertence uma pluralidade, uma variedade de deter- minagées, Et néo digo apenas que A é A, mas devo dizer que A €B,A €C,Aé D, e muitas outras coisas, portanto, posso determinar 0 objeto A de muitos modos, A Gnica condigao que me é posta pelo principio de néo contradi- do é que essas determinagbes ndo pertengam contempo- raneamente aos seus opostos ao mesmo sujeito, fato que daria lugar a uma contradigio. Se eu dissesse que A contemporaneamente, sob 0 mesmo aspecto, B e também que nao € B, essa seria uma contradigéo, Ora, na realidade, segundo Aristételes, nio ha lugar para a contradigio, por isso, um discurso que caia em contradigio ¢ um discurso falso, € 0 mesmo que dizer no conforme a realidade, que nao me diz, que nio me fotografa a realidade, pois na realidade as contradigbes nao sio possiveis. No livro Gama, Aristételes afirma que esse é um principio. O que é um principio? B algo primeiro; algo que nio deriva de outro e, portanto, nio pode ser de- monstrado; é a condigao de todas as demonstragées, mas nio pode ser demonstrado, Pode-se discutir acerca es se principio, caso alguém pretenda negé-lo. Entao ~ diz ‘Atistételes -, se alguém pretender negé-lo, pode-se mos- trar que tal negocio na realidade nfo consegue sequer constituir-se, porque para poder negar o principio de nao contradigio é preciso falar, € preciso dizer alguma coisa In] | Eco Bean | que tenha significado; se alguém nao fala, ou entéo diz algo insignificante, € como se fosse - diz Aristoteles - * uma planta, e com as plantas nao ha discussio, nio ha necessidade de discutir. Se, pelo contrério, alguém diz que quer discutir, deve dizer alguma coisa, alguma coisa que tenha o seu significado, Mas no momento em que aquilo que ele diz. tem aquele determinado significado, ele nao nega, mas afirma o principio de nao contradicao, “pois diz, que aquela coisa tem aquele significado, e no o seu oposto, Portanto, também aquele que nega o princf- pio de nio contradigio, na realidade, cré estar negando-o, quer negé-lo, mas o afirma, Essa ~ diz Aristételes — nao € uma demonstragéo, ou entio € uma demonstragio sui generis, ¢ a chama de “demonstrar por via de confutagaio” (1006 @ 11-28), 8 uma defesa, € uma confutagio das negacées. Também a esse respeito desencadeou-se ume con- trovérsia interminavel; ja lhes assinalei a critica de Hegel, que em minha opinio nao capta o alvo, pois se refere a um principio diferente daquele que é formulado por Aristételes. Porém, hé um grande Iégico moderno do sé- culo XX, 0 polonés Jan Lukasiewicz, que escreveu um livro a esse respeito, Ele escreveu o livro em polonés ¢, portanto, poucos o leram, depois o fez, traduzir para ale- mao, entéo, muitos o leram; finalmente sintetizou-o num. artigo em alemio, traduzido em inglés e francés. Agora, finalmente, foi traduzido também o livro polonés ¢, por- tanto, temos todos a possibilidade ce conhecer a critica de Lukasiewicz ~ © grande légico polonés, inventor da logica polivalente ~ a0 principio de nfo contradigto, Em primeiro lugar, ele diz que o principio de néo contradi- 80 nao é um verdadeiro principio, porque antes mesmo 1791 isi [mos a, B=1¥,¥, Mt | dele hé o principio de identidade. Ora, pode-se dizer cer tamente que o princfpio de identidade vem antes, mas é um principio estéril, indtil. Em seguida, Lukasiewicz afirma: aquilo que Aristételes faz nfo ¢ uma verdadeira demonstragio; mas isso nés sabemos, o proprio Aristéte- les diz. que nao é possivel demonstrar o principio de nao contradigio, porque um principio nfo é demonstrivel Haveria muito que dizer sobre o livro de Lukasiewicz; procurei fazer algo num artigo meu. Mas, em suma, as criticas de Lukasiewicz também nfo destroem esse gran- de discurso que Aristételes faz no livro Gama em defesa tanto do principio de nao contradigao quanto do assim. chamado principio do terceiro excluido. O que quer dizer principio do terceiro excttido? Quer dizer que, quando temos uma afirmagio e uma ne- gacio, quando se afirma determinado predicado de certo sujeito ou se nega esse mesmo predicado desse mesmo sujeito, essas duas proposig6es esgotam qualquer possi- bilidade, néo admitem terceira via, terceira possibilidade (1011 b 23-24). E, segundo o principio do terceiro exclui- do, das duas proposigdes em questo, uma é verdadeira, outra é falsa, Atengio, o principio nao diz qual das duas € verdadeira e qual é falsa, diz. apenas que necessariamente uma das duas € verdadeira ¢ a outra é falsa, e a seguir ser necessério procurar estabelecer qual é @ verdadeira ou qual é a falsa. Mas se descobrimos qual é a falsa, basta negé-la e assim se obtém a verdadeira, Isso no que se refere ao livro Gama, mas nés cada dia devemos falar pelo menos de trés livros da Metafisi ca de Aristételes, portanto, permitam-me dizer também algo sobre o livro Delta, que seria o quinto, e sobre o livro Epsilon, que seria o sexto. ever | Exnco Been | Delta é livro & parte, nio é outra coisa senéo um di- ciondrio dos termos usados. Normalmente, diz-se que sio* usados quando se faz filosofia, quando se fala de filosofia, Portanto, Delta € um dicionério filossfico. Nao & exata- mente verdadeiro, porque alguns desses termos néo tém significado especifico para a filosofia; por exemplo, ha 0 termo “mutilado”, que indica algo que foi privado de al- ‘guma coisa; também desse termo no livro Delta se discu- tem os varios significados (1024 a 11-28). Provavelmente, 0 livro Delta nascera como instru- mento diditico, a parte, e era usado na escola de Aristé- teles exatamente para ter presentes os diferentes signifi- cados dos termos usados nas discusses dialéticas. Com efeito, um dos erros mais frequentemente cometidos numa discussio € usar um mesmo termo com signifi- cados diferentes; entio, nao se compreende mais nada, entao, nascem os mal-entendidos, nascem os equivocos. Portanto, é muito importante, quando se discute e se usam certos termos, ter claro qual é 0 significado desses termos, ¢ se eles tem muitos significados, é importante distingui-los, t@-los bem distintos ¢ nao confundi-los, nao sobrep6-los reciprocamente. Por isso, Aristoteles escreveu essa pequena obra que, provavelmente, no inicio, nao fa- zia parte da Metafisica. De fato, nos catélogos mais anti- g0s das obras de Aristételes, aparece um titulo — peri ton bosakhés legémenon, isto 6, “a respeito das coisas que se dizem em muitos sentidos", que provavelmente se refere a esse livro, Todavia, visto que nesse livro em que se distinguem 08 significados de uns trinta termos, principio, elemento, causa, natureza, ser, um, substancia, acidente.., ha tam- bém 0 termo “ser”, 0 termo on, ¢ visto que Aristoteles dis 74] [amos a, 1, ¥, | se no livro Gama que ha uma ciéncia que estuda 0 ente enquanto ente, os editores pensaram que 0 Luger am adequado onde colocar esse livzo fosse logo ae ia Gama, ¢, portanto, ele se tornou o livro Delta da Meta sica. Mas nascera com outro nome ¢ com outro cooley ° de ser uma obra & parte sobre os muitos significados das ae falei que entre esses termos ha também o ter mo on, a0 qual Aristételes dedica 0 capitulo sete do livro Delta da Metafisica. Nesse capitulo, di tinguem-se quatro significados fundamentais do termo on. O primeiro é a on kati: symbebekés, 0 ente por acidente, isto é, 0 uso verbo “ser” que fazemos quando queremos simplesmente unir entre si duas coisas que esto s6 casualmente juntas -2) j oe eon 6, porém, 0 ser de per si, (0 on kath'auté, isto é, 0 uso que fazemos do verbo “ser” quando quere- mos indicar algo que é. Este, por sua vez, diz-se em mui- tos sentidos, que sio aqueles dos quais se havia falado no livro Gama, isto 6, a substancia € as outras categorias mos o verbo “ses” muitas vezes para dizer “é verdadeiro’, e dizemos "nio ser” para dizer “€ falso” (1017 a 22-30). Naturalmente, continuo pensando no uso Saneretoy ‘é muitas vezes quer dizer “é assim", portanto “é vend ro", ao“passo que “nao é” quer dizer "nfo € assim", “é falso que as coisas estejam assim”, Esse uso se encontra tam- ‘bém nas linguas modernas: usa-se o ser, por exemplo, em. francts, para dizer "n'est-ce pas?”. Quando em francés se diz n’est-ce pas? quer-se dizer “nao é verdade que € as- sim?". Ou, em ingles, isn’t ie? Ou entio em certos diale- | 75) | Exnico Bern | tos do norte da Itélia se costuma com. frequéncia dizer *n'er” rer” no se escreve com a letra n colada ao ¢, sim “n’'8?", que quer dizer acaso nio é assim?", para dizer “indo é verdadeico?”. Nesses casos, o ser tem o sentido de ser verdadeiro, Finalmente, quarto significado, o ser pode significar Serem poténcia ou ser em ato; por exemplo ~ diz Arist6- teles-, numa estétua, posso dizer que ha Hermes, o deus ~ Hermes esta na estatua, mas esta nela em poténcia, antes auié o mérmore seja esculpido; quando a seguir chega 0 escultor e faz a estétua, entéo Hermes é em ato (1017 2 35b-9). Para os geegos, muitas vezes, os deuses eram as estatuas dos deuses, Esses quatro significados foram retomados no sécu- lo XIX por um grande filésofo alemao, hoje reabilitado, Franz Brentano, que escreveu um livro, sua dissertagio de doutorado, sobre os miiltiplos significados do ser em Aris. tételes, Livro magnifico no qual Brentano pe no centro da abordagem esses quatro significados do verbo “ser” as. sim como Aristételes os distingue no livro Delta da Me- tafisica. Brentano era filésofo cristo catélico, originério da Renania, € mais tarde tornou-se inclusive sacerdote, Deixou a Igreja catélica quando o Concilio Vaticano Ide, cretou a infalibilidade do Sumo Pontifice. Brentano nio aceitou esse dogma e juntamente com outros catélicos alemies deu origem a uma espécie de apostasia, aque- la que ainda hoje é chamada dos "velhos catélicos’, isto & catélicos preconciliares, nfo em relacio 20 Concilio Vaticano Il, mas ao Vaticano I. Ble permaneceu funda. mentalmente catélico ¢, como tal, substancialmente de formacao escolastica, de formacio tomista. Corn efcito, sua grande preocupacio era reivindicer contra o idealis. 176) | UvaosP, a, B-V, ¥, Mi mo uma visio filoséfica de tipo realista; por isso, reto- mou a teoria escolastica da intencionalidade do conhecer. Segundo essa teoria, conhecer significa sempre lire 1 algo diferente. Portanto, nao existe o conhecer e basta, o conhecer como tal, 0 pensamento como tal. Brentano polemiza contra 0 idealismo que absolutizava 0 pensa-~ mento, © pensamento, de algum modo, ¢ 0 pensarnento de alguma coisa, é sempre pensamento do ser, isto &, € intencional, “entende”, ou seja: refere-se, indica, alude a um ente, Portanto, Brentano reivindica contra @idealismo acentralidade do ser, por isso também a sua interpretagao de Aristételes é de algum modo conduzida, dominada por essa preocupagio filoséfica de reivindicar, oe a filosois idealist, a centralidade do ser, Por isso, em minha opinido, Brentano enfatiza de modo até excessivo a importincia desse capitulo sete do livro Delta da Metafisica, ° qual — no devemos esquecé-lo - é apenas um entre trinta cae pitas nos quais se trata dos significados de muitissimos outros termos, ¢ portanto nfo & que o ser tenha posigio privilegiada ou de primeiro plano, ele é um dos muitos termos dos quais € necessario distinguir os significados. O mesmo se deve dizer de todos os termos trata- dos no livro Delta, principio, elemento, causa — acerca de causa é evocada a distingdo feita na Fisica entre os quatro séneros de causa ~ um, substéncia,acidente falso.. em suma, termos usados nas discussées dos quais o livro Delta distingue os varios significados. Penso que isso baste para caractrizaro livro Delta, que, portanto, em certo sentido, constitui uma espécie de paréntese, algo que foi posteriormente inserido e que interrompe a continuidade do discurso feito por Aristételes e que, apés Gama, se desenvolve no livto Epsilon. la7t | eno Bern | A verdadeira continuagao de Gama é Epsilon, isto 6, © sexto livro. De fato, 0 livro comega exatamente como Gama. Se voces tém em mios uma tradugio da- Meta- Jisica, tomem 0 inicio do liveo Epsilon, onde Aristoteles escreve: "Objeto da nossa busca sio os principios e as cau- sas dos seres, entendidos justamente enquanto ser” (1025 b 1). Como dissera em Gama I, estamos buscando os principios ¢ as causas, as causas primeiras, anteriormente, * dissera do ente enquanto ente, agora, aqui, usa o-plural, mas é 0 mesmo; aqui diz. ton auton hei onta, isto &, dos entes enquanto sio entes, isto 6, siio considerados de per si. A seguir, prossegue: “Com efeito, ha a causa da saiide e do bem-estar; ha causas, principios e elementos também dos objetos matematicos e, em geral, cada ciéncia que se fundamenta sobre 0 raciocinio e que em alguma medida usa 0 raciocinio trata de causas e principios mais ou me- nos exatos. Todavia, todas essas ciéncias so limitadas a um determinado setor e genero do ser e desenvolvern a prépria pesquisa em torno dele, mas néo em torno do ser considerado em sentido absoluto e enquanto ser” (1025 b 2-10). Ea diferenga entre a filosofia primeira e as ciéncias particulares que j4 encontramos no livro Gama. Sempre no primeiro capitulo de Epsilon, que é inte- ressantissimo, Aristételes faz. outras distingdes — no mo- mento, néo podemos ver € comentar inteiramente esse capitulo, fago-lhes um resumo -, estabelece outras dife- rengas entre a filosofia primeira e as ciéncias particulares porque afirma, por exemplo, que as ciéncias particulares no se ocupam, nao discutem acerca da existéncia nem da esséncia do objeto delas. Por exemplo, 0 matemitico no pe em discussio a existéncia de nimeros, e dé uma defi- nigdo de niimeros ~ ou entdo a geometria dé uma defini- 1738] Lumos, 4,8-1,¥, 1 | go de némeros, nao sei, da linhe, do ponto, do triingulo e da circunferéncia — e essas definigdes no sio resultado de uma busca; sio postas como principios. Aristételes diz, que algumas ciéncias fazem isso partindo da experiéncia, por indugio, ¢ provavelmente esti se referindo a fisice, foutras o fazem assumindo os principios como hipétese, e certamente esta se referindo as matemiticas, Mas es- sas ciéncias particulares nao realizam uma pesquisa, uma busca sobre seus principios. A existéncia ¢ a esséicia de seus objetos sao principios das ciéncias particulares, que nilo slo postos em discussio, que néo so tornados objeto de busca. A filosofia primeira, pelo contrério, enquanto ciéncia do ser enquanto ser ou do ente enquanto ente * no assume principios; pios nem a existéncia nem a esséncia dos entes, mas as indaga, torna-as objeto de uma pesquisa, discute-as, Vi- mos que em metafisica se discute até o principio de no contradigio, a0 paso que nas outras ciéncias é usado, é aplicado, sem discutir. A ciéncia em questio, a filosofia primeira, justamente porque € busca das causas primei- ras, € uma busca que nunca ¢ parcial, nunca é delimitada, mas é impelida ao méximo possivel, portanto, no assu- me pressupostos, nao assume hipéteses. De algum modo, isso foi réconhecido também por outros filésofos - por exemplo, Hegel; voces se lembram do inicio da Enciclopédia das ciéncias filosdficas de Hegel, quando diz que “A filosofia nao tem a vantagem que as outtras ciéncias tém, de poder pressupor o préprio objeto € 0 proprio método” (§ 1)? Portanto, a filosofia nao pres- supée nada, pde tudo em discusséo, porque é busca das causas primeiras; isto 6, ndo se contenta com explicagdes parciais, pretende uma explicacéo, e para obter explica~ isto 6, nfio assume como princi- 1791 [ Exuco Bean | ‘Ho total é necessario formular uma pergunta total, isto é, ‘uma pergunta que ponha tudo em discussio-e, portanto, © ela poe em discussio sobretudo a existéncia dos objetos dos quais ela se ocupa, isto é, dos entes. Em alguns casos, quando se trata de entes sensiveis, essa existéncia é evidente, pois nés a percebemos com 0s sentidos. Porém; quando se trata de outros entes, nfo sensiveis, sua existéncia deve ser objeto de busca, deve ~ ser demonstrada, néo pode ser simplesmente admitida, nao € um principio. E assim também a esséncia, a defi- nigio do ente, quer sensivel, quer nao sensivel, deve ser buscada. Ela é algo que a filosofia deve descobrir, deve trazer a luz, deve esclarecer. Essa é a diferenga funda- mental entre a filosofia e as outras ciénciad. Sempre, nes- se capitulo primeiro do livro Epsilon, Aristételes afirma que essa filosofia se distingue além disso da fisica e da matemitica, isto é, daquelas que Aristételes denomina as ciéncias “teoréticas", ou seja, as ciéncias que cultivamos Por puro amor pelo saber, tendo por finalidade 0 puro co- nhecimento, nao para escopos praticos, como as ciéncias “praticas’, isto é, a ética, a politica, nem para produzir objetos, como as ciéncias “poiéticas” ou produtivas, mas unicamente para conhecer — theorein, conhecer a verdade. Ora, a diferenga entre essa ciéncia, a filosofia primei- ra, € a fisica e a matemitica é esclarecida aqui no livro Epsilon. Ela € muito importante, pois Aristételes diz: “A fisica se ocupa com realidades que sio separadas” (1026 a 13-14) ~ aqui, separadas quer dizer que néo existem €m outro, mas existem em si, portanto, so substincias, 08 corpos ~; “separadas e méveis’, isto é, sujeitas a0 mo- vimento, portanto, o objeto da fisica si os corps em ‘movimento, as realidades sensiveis, 1801 J uvaosr, 4, B-1V,¥,vi | A matemitica se ocupa com realidades no separa- das, mas iméveis, O que quer dizer? Os ntimeros e as fi- guras geométricas, segundo Aristételes, nio sio realidades separadas, ou seja, nao existe em si, existem em outro. Sao precisamente os limites ou as medidas dos corpos fisicos ou corpos sensiveis, isto é, ndo siio substincias;'To- davia, eles sio iméveis — nés o haviamos dito também anteriormente ~ porque nio mudam com o passar dos tempos; as propriedades de um tridngulo permanecem imutiveis em qualquer momento; o triéngulo nio é uma substdncia, nfo existe de per si, como pensava Plato, é a forma de um corpo triangular, de um corpo fisico, po- rém aquela forma possui propriedades que ndo mudam, portanto, pode-se dizer que a matemitica é a ciéncia de realidades nao separadas, porém iméveis, Nesse ponto, surge espontaneamente este pensa- mento: € se existissem realidades que sejam ao mesmo tempo separadas e também iméveis? Percebam, essa no- fo nasce mediante o confronto entre os objetos da fi- sica € os objetos da matematica. Aristételes afirma: “Os objetos da fisica sdo separados, porém nfo iméveis; os da matemética sio no separados, porém iméveis" (1026 a 14-15), ento, provemos combinar entre si as duas carac- teristicas, separados e também iméveis: a quem caberd, a qual ciéncia cabera estudar esse genero de objetos, esse genero de realidades, isto 6, substdncias existentes em si, ‘mas ao mesmo tempo iméveis? Pois bem, isso nao pode caber a outras ciéncias a no ser a filosofia primeira, porque a filosofia primeira poe em questo tudo, busca as causas primeiras de tudo e, portan- to,a ela cabe, a ela compete verificar a existéncia e definir a eventual esséncia, quando existirem, dessas realidades | €nnuco Bern | separadas e imoveis, Nesse ponto, Aristételes diz:""Se elas existem, nfio podem senio ser as causas daquelas coisas divinas que a nés se manifestam”. Se vocés desejam té-la presente, a passagem se encontra no capitulo primeiro, 1026 2 10; vou ler a tradugdo de Reale: “Mas se existe algo de eterno, imével e separado, é evidente que seu co- nhecimento caberé certamente a uma ciéncia teorética” ~ isto é, uma ciéncia que tem como fim 0 puro conheci- mento ~“porém, nio A fisica, p a fisica se ocupa com seres em movimento, e sequer 4 matemitica, ¢ sim a uma ciéncia anterior a uma e 4 outra. Com efeito, a fisica se refere as realidades separadas, mas nao iméveis; algumas das ciéncias matematicas se referem a realidades que sio iméveis, porém nao separadas, e sim imanentes & matéria; em vez disso, a filosofia primeira” — vejam, aqui compare- ce pela primeira vez a expressio “filosofia primeira” para indicar aquela que até agora havia sido chamada a sophia ou a ciéncia em questo ~ “em vez. disso, a filosofia pri- meira se refere a realidades que sio separadas e iméveis". Ea seguir, acrescenta: "Ora, é necessirio que todas ascau- sas sejam eternas” ~ porque as causas primeiras, se sio as causas de tudo, de tudo aquilo que acontece em qualquer tempo, deverao existir sempre e portanto devem ser eter- nas ~ “mas estas de modo especial; com efeito, estas sio as causas daqueles seres divinos que nos sio manifestos” (1026 a 10-18). Aqui é necessério mergulhar na mentalidade, na cul- tura da Grécia antiga, que era a cultura de Aristoteles. Para um grego antigo, quais sio os seres divinos que nos sio manifestos? Os astros, as estrelas, 0 sol, a lua, para 08 gregos, eram realidades divinas. De resto, também nés conservamos os nomes: Japiter, Venus, Marte... em ita- | 82] | nos, B=N,¥, M1 liano, observamos também os nomes dos dias da semana dedicados a esses planetas ou astros, considerados quais divindades. Entdo, as causas primeiras que estamos buscando sio causas dos seres divinos a nés manifestos; a nés mani- festos quer dizer visiveis, que vemos. Com efeito, os as- tros, as estrelas, a lua, 0 sol, nés os vemos, portanto, para os gregos, eles sto divinos, mas também visiveis. Se sio divinos, com maior razdo 0 serdo suas causas, Por isso, Aristoteles diz: “Consequentemente, trés so os ramos da filosofia teorética: a matemética, a fisica e ~ ¢ Reale quem traduz.~ a teologia” (1026 a 18-19). Isto nao é totalmente exato, pois se conferirem o texto grego, vero que nio diz theologia, mas theologiké. Theologiké & um adjetivo que pressupde o substantivo “ciéncia” ou “filosofia” e significa "teoldgica”. Aqui, Aristoteles néo usa “teologia”, e ha uma razio, porque para ele a teologia, como vimos ao falar do primeiro livro, eram os mitos sobre os deuses, narrados pelos poetas. Ha varias passagens em Aristételes onde se diz claramente que a teologia e os tedlogos se ocupam com os mitos; a0 paso que aqui nao temos nada a ver com mitos, temos tudo a ver com uma ciéncia. E essa cigncia tem o direito de ser qualificada como teolégica porque, como Aristételes logo afirma, "Nao ha ‘duvida, com efeito” — vocés sabem que “com efeito” é sempre explicativo - “que se acaso 0 divino existe, existe numa realidade daquele tipo” (1026 a 19-21); isto é, se os as- tros so divinos, e se existem causas dos astros que sejam separadas e iméveis, com maior razio, serio eles divinas. Ora, se a filosofia primeira se ocupa com aquelas causas, ela é uma ciéncia que tem a ver com o divino ¢, portanto, é uma ciéncia que merece ser qualificada 183] | Enrico Been | como teolégica; mas aquilo que os poetas faziam néo é teologia, é ciéncia. Isso quer dizer que... "é tambéfn teologica”? Qual é diferenca entre dizer€ a teologia” ¢ "€ uma ciéncia teolégica’? A teologia se ocupa somente com 0 divino, porém, até agora, isso foi feito somente pelos poetas; portanto, ela nao é ciéncia, Pelo contritio, a Silosofia primeira é teologica porque se ocupa com reali. dades divinas, porém, néo é a teologia, pois nao se ocupa somente com estas, porque estas fazem parte dis causas primeiras, porém, nao séo todas as causas primeiras. Dis- Semos que as causas primeiras so de quatro tipos; isto 6 sio a causa material, e veremos logo em seguida que Para Aristételes a causa material primeira so os quatro elementos: égua, ar, terra, fogo.e, no caso dos astros, 0 quinto elemento, chamado éter. Depois,hé as causas pri- meiras formais, que sio as esséncias de cada uma das coi- sas. Depois, ha as causas primeiras eficientes, ¢ aqui che- Bamos aos famosos motores iméveis, que sio as causas dos astros, e estes sio divinos, E, finalmente, hé as causas Primeiras finais, e estas deveremos discuti-las para ver quais so de fato. Em todo caso, o divino, as causas dos astros, os motores iméveis, estio entre as causas primei- ras. Portanto, a ciéncia em questao nao busca somente 08 motores iméveis, busca todas as causas primeiras. Por iss0, creio que € justo redimensionar a interpretagio- spadrio da Metafisica de Aristételes, que afirma ou que ela é uma ontologia, ou que é uma teologia, ou inclusive que é, como afirma Heidegger, uma “ontoteologia”. Essa € uma visio reducionista que se justifica numa ética de {ipo criacionista, como a da escolistica crista e mugul- ‘mana, € nao leva em conta as reais condigées em que Arist6teles esta raciocinando. 184] ] [ Umosr, 4, B-1V, ¥, M1} Para Aristételes, a definigdo mais apropriada da fi- losofia primeira é ciéncia das causas primeiras, ciéncia dos principios. Se devéssemos encontrar uma palavra em italiano, deverfamos chamar a ciéncia dos principios de arqueologia, pois em grego principio se diz. arkhé, mas infelizmente a palavra “arqueologia” é empregada para in- dicar outras coisas, assim, poderiamos chamé-la de “pro- tologia’, para dizer ciéncia dos primeiros, e em todo caso no hé necessidade de uma palavra. Certo ela 6, pode também ser ontologia e, se quiserem, também teologia, mas nao se reduz nem a ontologia nem & teologia, mas é busca das causas primeiras e dos principios de todos os entes, ¢ este resultard, como veremos, da sequéncia da Metafisica. Além do capitulo primeiro, o livro Epsilon tem ou- tros trés, onde se trata dos outros significados do ser, isto é, do acidente, para dizer que nao hi ciéncia do acidente (1027 a 19-20), e do ser como verdadeiro ou falso, para dizer que este se refere mais a0 pensamento do que a0 ser, portanto, pareceria pertencer mais a légica do que a filosofia primeira (1027 b 25-27). Amanha enfrenta- remos 08 livros centrais, isto é, 0 sétimo, oitavo e nono: Dzeta, Eta e Teta, nos quais, finalmente, chegaremos as cau primeiras, Livros Z, H, O = Vil, VIL, IX Hoje, comegamos o exame dos livros centrais da Me- tafisica, ou seja, os livros sete, oito € nove, que, na nume- ragio grega, chamam-se Dzeta, Eta e Teta. Esses sio con- siderados por todos os estudiosos os livros mais dificeis, sobretudo o livro Dzeta, isto 6, 0 sétimo; de fato, a esse livro foram dedicados comentirios muito amplos. Um dos mais famosos é o de Michael Frede e Giinther Pat- zig, publicado na Alemanha, mas traduzido também em italiano, ¢ outro mais recente é o de Myles Burnycat, de Cambridge, intitulado A Map of Metaphysics Zeta. Nesse ‘iltimo, fala-se de um “mapa”, porque o livro Dzeta é con- siderado uma espécie de grande floresta na qual é dificil orientar-se sem a ajuda de um mapa para a orientagao. Nesses livros, podemos dizer que finalmente Aris- tételes se empenha na determinagéo daquelas que sio as _causas primeiras, os principios. Como vimos, no li- vio Gama, afirma-se que & preciso buscar os principios do ente enquanto ente, mas o ente enquanto ente tem muitos significados. O primeiro deles a ousia, que con- vencionalmente traduzimos por “substancia", portanto, a ciéncia em questo, a filosofia primeira deve procurar | Exnco Bex | fundamentalmente os principios, as causas primeiras da substincia. Ha uma passagem no primeiro capitulo do livro Dze- ta para a qual gostaria de chamar a atengao de vocés, pois € uma passagem que foi sempre mal-entendida: é a pas- sagem final do capitulo primeiro. Mas, em primeiro lugar, desejo acenar ao inicio do livro, pois mostra a conexao entre esse e os livros precedentes, Se vocés tiverem em “mios uma tradugio italiana oi um texto do livro Dzeta ¢ olharem o inicio, poderao perceber que — estou lendo a tradugdo de Reale, como nos outros dias - Aristételes afirma: “O ser tem miiltiplos significados" (1028 a 10). Vocés percebem, também aqui Reale traduz “o ser”, a0 passo que o texto diz to on légetai pollakhés, “o ente se diz em muitos sentidos", mas em Aristételes as dues coi- ‘sas se equivalem. “O ser tem miiltiplos significados, como adiante, no livro dedicado aos diversos significados dos termos, temos estabelecidos” (1028 a 10-11). Aqui, hé ‘uma remiténcia aos livros precedentes, por isso, temos a comprovacao da continuidade desse discurso. "O ser sig- nifica, com efeito, por um lado, a esséncia algo det minado” (1028 a 11-12). Em grego esta to ti esti kai tode ti, literalmente, “o que que coisa é", 0 to ti esti, que Reale traduz. justamente como “a esséncia’, porque a esséncia de uma coisa € a resposta a pergunta “que coisa 62". Por exemplo, se eu pergunto “que coisa é 0 homem?" e me respondem “o homem é animal racional”, essa resposta é a esséncia do homem. Mas além de dizer que o primeiro desses significados € a esséncia, Aristételes acrescenta também hai tode ti. Tode ti € uma expresso técnica cunhada por Aristételes que nio estava em uso na linguagem comum da antiga fe | unos 2, H, 0 - Vil, Vi, 1X | Grécia e que se pode traduzir muito literalmente como “um certo este”. Isto é, algo determinado, bem exato. Es- sas so expresses com as quais Aristoteles indica a ousia, a substancia; isto é, algo que diz. que coisa é uma coisa, é a sua esséncia ¢, a0 mesmo tempo, é alguma coisa deter- minada, é algo, € uma coisa em si, nfio é propriedade de outro, acidente de outro, agio, paixio realizada por outro, 6 em suma uma realidade que existe em sj. E depois — continua Aristételes -, do outro lado, os significados do ser sio “qualidade. Quantidade ou cada uma das outras categorias” (1028 a 12-13). Portanto, aqui, ele evoca a distingao das diversas categorias j4 feita no livro Gama, e prossegue: "Embora dizendo-se em tantos significados, é todavia evidente que o primeiro dos significados do ser €a esséncia, a qual indica a substancia (to ti estin, hoper semdinei ten ousian)" (1028 a 13-15). Portanto, uma vez mais, como jé foi dito no livro Gama, Aristoteles afirma que esses muitos significados no estio isentos de conexio, de unidade, porque entre eles hé um que é primeiro e esse é justamente a subs- tancia, a ousia, o ser em si, 0 ser em sentido forte. “Com efeito, quando perguntamos a qualidade de uma deter- minada coisa, dizemos que ¢ boa ou m4, mas no que é de trés cévados ou que é homem; a0 contrério, quando Perguntamos qual seja a sua esséncia, nao dizemos que é branca ou quente ou trés cévados, mas que é um homem ou que é um deus” (1028 a 15-18). A respeito dessa ulti ma expresso, néo pensem no Deus das grandes religides; ara os gregos, “um deus" quer dizer um dos deuses, um dos muitos deuses; aqui, Aristételes 0 cita como exemplo, juntamente com o homem, de substancia; uma substén- cia é um homem ou um deus, a0 passo que exemplos | Exmico Bern | de qualidade sio bom ou mau, branca ou nao branco, ¢ exemplos de quantidade sao trés covados, isto é, alto trés cévados, Dizemos que um homem, Sécrates, é alto trés cévados. Socrates & substancia; alto trés cévados é quan- tidade, “Todas as outras coisas sio ditas seres, enquanto algumas so quantidades do ser no primeiro significado, outras qualidades dele, outras afeccdes dele, outras, enfim, alguma outra determinagio desse tipo” (1028 a 18-20). Enquanto a substincia é dita ser de per si- ou seja, & ela prépria quem realiza num modo préprio, ndo com re- feréncia a outro, a nogao de ser ~, em vez. disso, a qualida- de, a quantidade, as outras categorias sao ditas ser porque pertencem a substancia, sio relativas, esto coligadas com a substancia. Depois, Aristételes continua explicando que a substancia é primeira em relagio as outras categorias, quer do ponto de vista da nocio, quer do ponto de vista do conhecimento, quer do ponto de vista do tempo. Nao podemos deter-nos em todas essas determinagées, porém, mantenhamos firme esse primado da substincia em rela- io as outras categorias. ‘A passagem sobre a qual desejo deter a atencio de vocés, porque muitas vezes € mal-entendida, é a passagem conclusiva, 0 dltimo periodo do capitulo que comesa na linha 1028.b 2. Antes, vou ler a traducio fornecida por Reale, porém, depois, devo fazer vocés verem que nao € uma tradugio certa, pois nfo expressa exatamente 0 pensamento de Aristételes, ndo porque Reale nio seja um grande tradutor, mas porque quase todos os tradutores a esse respeito, em geral, nio conseguem expressar aquilo que Aristételes quer, dizer. Vejam a tradugio de Reale: “Na verdade, aquilo que dos tempos antigos, assim como agora € sempre, constitui 0 eterno objeto de busca e 0 loo! | Uvnos Z, H, © -VI, Vl x | eterno problema: ‘que coisa é 0 ser’ equivale a isto: ‘que coisa é a substéncia’” (1028 b 2-4). Por que a tradugio nao me satisfax? Porque — aqueles dentre vocés que co- nhecei o grego podem averiguar no texto ~ Aristoteles diz kai to palai te kai nun. Vocés sabem que, em grego, 0 te kai quer dizer “seja... seja”, portanto, é preciso traduzir: “seja antigamente, seja hoje”. A seguir, o texto diz. kai aei zetouménon kai aei aporouménon, Aqui, nao se deve tra- duzir “eternamente”, " problema”; zetouménon e aporouménon vio bem, querem. dizer aquilo que é buscado, que € objeto de problema, iscutido, mas nao eternamente. A palavra aci, em grego, quer dizer “sempre” no sentido de “eternamente”, ‘ eterno objeto de busca e eterno queé mas quer dizer também “sempre” no sentido dé “cada ‘yez", isto 6, em todos os casos que mencionamos. De res- to, também em nosso linguajar hodierno as vezes usamos a palavra “sempre” para dizer, por exemplo, "todas as ve~ zes que na Itélia hé eleigdes, hé sempre grande afluéncia de eleitores”. Aqui, "sempre" nao quer dizer eternamente, ‘mas cada vez que hé eleicées. Entio, visto que Aristételes dissera “aquilo que era objeto de busca, seja antigamente, seja também hoje, ou seja, sempre”, com essa tiltima ex- pressio, entende “em ambos os casos", isto é, justamente seja antigamente, seja hoje. Que coisa é objeto de proble- ‘ma seja antigamente, seja hoje? A pergunta que “o que & © ser?", tito on, literalmente, que “o que é o ente?” Por- tanto, ele quer dizer que essa pergunta foi formulada em primeiro lugar pelos antigos, e os antigos néo podem ser sendo os primeiros filésofos. Muitos afirmam que se trata de Parménides, porque Parménides ¢ aquele que, mais do que os outros, falou do ser, porém, creio que aqui Aristé- teles nao esteja referindo-se somente # Parménides, mas Jory | Enico Bern | sim a todos os primeiros filésofos, Tales, Anaximandro e outros, todos aqueles que por primeiro indagaram sobre © © principio, que se perguntaram qual é o principio dos entes, da natureza ou do ente em geral, Portanto, 0 problema que se pds desde as origens é “oque & 0 ente?". E esse mesmo problema se pds também hoje, diz Aristételes, te kai nun; "hoje" significa no tempo dele, isto €, provavelmente, no tempo de Platio e Aristéte- “les, na Atenas do século IV, porque também Platéo e Aris- toteles se perguntaram ti to on, isto é,"o que é 0 ente?”, qual € a esséncia do ente. Em suma, aqui, Aristételes nfo diz que a pergunta ti 10 on, “o que é 0 ente?", & uma per- gunta eterna, isto 6, destinada a durar eternamente, Ele pretende dizer que & uma pergunta que foi posta tanto pelos primeiros filésofos quanto pelos filésofos contem- Pordneos, ¢ a seguir acrescenta que essa pergunta ti to on equivale a tis he ousia,“o que a substincia?”. Essa, pois, 6 a conclusio daquilo que disse desde 0 inicio do capitulo: visto que o ser se diz. em muitos sentidos e visto que 0 Primeiro desses sentidos € a substdncia, isto é, a ousia, a qual é primeira quer pela nogdo, quer pelo conhecimento, quer pelo tempo, entao, consequentemente, a pergunta que os filésofos sempre se fizeram, isto é, seja antigamen- te, seja hoje, pois bem, essa pergunta nio deve mais ser ti to on, ou seja, “o que é 0 ente?", mas deve set, pelo con- trério, reformulada tis he ousia, "o que é a substéncia?” Porque o primeiro do ser é a substancia ¢, portanto, quem deseja descobrir o que é o ser deve perguntar-se antes de tudo 0 que é a substancia, Com isso, Aristételes encerra substancialmente o discurso sobre o ser enquanto tal, porque vimos que o ser se diz. em muitos sentidos, que o primeiro deles é a subs- | vnos 2, H, 0 ~ Vit, Vi, 1X | tancia; por isso, 0 objeto da nossa pesquisa, de agora em diante, seré a substéncia, serd a ousia, isto , nio sera mais o set. Ao contrario, como thes disse, Reale, no seu modo de traduzir, que diz “o eterno objeto de busca e 0 eterno problema”, nao faz outra coisa senio seguir uma tendén- cia que se impés no estudo de Aristételes por iniciativa, uma vez mais, de Heidegger. Martin Heidegger influenciou profundamente a fi- losofia contempordnea e influenciou também a leitura que se faz hoje de Aristoteles. Heidegger quis dizer que, para Aristoteles, o problema do ser é problema eterno, é problema que se repropée continuamente e, portanto, de algum modo, segundo Heidegger, Aristételes teria prepa- rado 0 terreno fildsofia do proprio Heidegger, que jus- tamente esté empenhada na pesquisa sobre o ser. © fato mais curioso é que todas as vezes que Heidegger cita essa passagem, ¢ o faz com frequéncia, creio que algumas de- zenas de vezes em suas obras cita sempre de modo parcial, isto 6, omitindo as tltimas palavras, onde Aristételes diz que a pergunta “o que € 0 ser?” equivale, isto é, deve ser substituida, reformulada com a pergunta tis he ousia, “o que é a substincia?”, Esse tiltimo item, Heidegger o cala, porque para ele é preciso continuar perguntando-se sem- pre 0 que € 0 ser, eternamente. Portanto, ele faz Aristéte- les dizer exatamente 0 contririo daquilo que Aristételes deseja, pois Aristételes pretende dizer “até agora, sempre indagamos 0 que é 0 ser, mas dado que hoje compreen- demos que o ser tem muitos sentidos e que o primeiro desses muitos ¢ a substincia, de hoje em diante, devemos, pelo contrério, perguntar-nos o que é a substincia”, Nio creio que essa seja uma interpretagio minha, € uma leitura correta do texto que vocés tém diante dos | €xnco Bern | olhos e que todos.podem averiguar, basta ter presente também 0 final do discurso, touto esti tis he ousia, isto 6, “isso equivale a dizer o que é a substancia”, e sobretudo é preciso interpretar esse aei no no sentido de uma busca eterna, Essa ultima € uma expressio tipica da mentali- dade moderna, mais ainda, contemporanea. Os fildsofos de hoje apreciam mais pesquisar que encontrar, apreciam mais perguntar que ter respostas, desejariam continuar - perguntando sempre sem nunca ter resposta alguma, continuar procurando sempre sem jamais encontrar coi- sa alguma, pois parece que a atitude de perguntar, de procurar seja uma atitude mais nobre. O responder, 0 encontrar, é considerado dogmatico, € considerado algo que 0 filésofo moderno, dotado de sentido critico, deve Procurar evitar, 0 filésofo moderno deve estar sempre na duivida, nunca deve ter certeza alguma, néo deve pro- fessar nenhuma orientaco precisa, deve estar continua- mente numa posigiio de busca. Ora, essa é a tendéncia de grande parte na filosofia contemporanea, porém nao era, com certeza, a posigao de Aristételes, Aristdteles talvez errasse, porém, estava convicto de ter encontrado algo. De resto, a busca como fim a si mesma nao é sincera, pois quem verdadeiramente procura, procura para encontrar; € hipocrisia procurar s6 por procurar; se procuro, isso quer dizer que me interessa encontrar; se perco algo im- portante, ponho-me a procura dele, procuro-o para en- contré-lo; ou entao quem faz uma pergunta, se é sincero, no pergunta somente assim, pelo prazer de perguntar, mas porque lhe interessa saber aquilo que pergunta; se vou pela estrada e pergunto para chegar a determinado lugar, pergunto para saber, para ter uma resposta, nao pelo prazer de perguntar. Joa] 6 | Lvnos Z, H, @ - Vil, i, 2X | ‘A interpretagio de Heidegger foi retomada por aque- le grande estudioso de Aristételes que é Pierre Aubenque, © francés que escreveu um magnifico livro, Le probleme de Uétre chez Aristote, 0 problema do ser em Aristételes, traduzido em varios idiomas, com certeza em espanhol, nao compreendo por que ainda nao tenha sido traduzido em italiano, pois 0 merece. Aubenque sustenta, naquele livro, que a expresso “a ciéncia procurada", que Arist6- teles efetivamente usa em Metafisica Alfa ¢ também em Metafisica Beta, indica que Aristételes esta continuamen- te procura dessa ciéncia e que essa ciéncia jamais pos- suida, mas simplesmente procurada. Sinto muito, porém ‘Aubenque se engana e todos Iho fizeram notar; quando Aristételes diz epistéme zetouméne, “a ciéncia procurada” (082 a4), ele 0 diz no inicio da obra e pretende dizer "a ciéncia da qual nos estamos ocupando, a ciéncia em ques- tao”. Quando dizemos “qual € 0 objeto em questio?", a expressio “em questo” qual nos interrogamos, néo quer dizer de j0" quer dizer 0 objeto em torno do ado a ser procurado para sempre sem jamais ser encontrado, De resto, 0 proprio Aubenque escreveu seu livro em 1962, portanto, hé mais de 40 anos; hoje, admite também ele que nio é necessario forgar 0 significado daquela expres- slo ¢ fazer Aristételes dizer que a filosofia primeira ¢ uma ciéncia eternamente procurada e jamais encontrada. Aris- t6teles esté convencido de ter encontrado’se nao tudo, certamente algumas coisas muito importantes acerca da determinagao das causas primeiras. Outra razdo pela qual se segue Heidegger é que Hei- degger considerava reducionista restringir o problema do ser, isto €, a pergunta “o que € 0 ser?", & pergunta “o que € a ousia, o que é a substincia?”. Esse era para Heidegger los! | Exnco Bern | exatamente o sinal do esquecimento por parte de Arist6- teles da famosa diferenca ontolégica, que seria a diferenca” entre o ser em geral e o ente—e aqui a ousia seria um ente particular. Como jé disse no primeiro dia, para Aristote- les, nZo subsiste a diferenca ontolégica, nao é verdade que a pesquisa sobre a substdncia seja uma redugao, isto é, um empobrecimento, um rebaixamento; antes, a substdncia © primeiro dos significados do ser, portanto, concentrar a atengdo na substancia nao significa esquecer a coisa mais importante, significa exatamente ir ao corago do ser, ir 4 profundeza, ir naquela que é a origem, o principio de todo o ser. De fato, quando Aristételes diz. que a substin- cia € 0 primeiro na nogio, no conhecimento e ne tempo, “primeiro” significa aquilo do qual todo o resto depende. Portanto, ir a0 primeiro, ir a origem, nao significa esque- cer todo o restante, mas ir procurar aquilo que explica todo o resto, isto é, verdadeiramente dar a explicagio de todo 0 ser; Por isso, insisto em dizer: a metafisica, a filoso- fia primeira de Aristoteles, apresenta-se como ontologia, ‘mas a seguir ela se determina posteriormente, no sentido de que se aprofunda ¢ se concentra como pesquisa sobre a ousia, que poderiamos chamar também de “ousiologia”, porém, as palavras nao tém muita importincia, O impor- tante é compreender aquilo que ele quer dizer aqui. E porque se pergunta “o que €?"— antes 0 que é 0 ser,o ente, #1 t0 on, e depois 0 que é a ousia -, porque a pergunta “o que €", segundo a teoria aristotélica da ciéncia, exposta nos Analiticos posteriores, aquela que recordava ‘ontem, & a pergunta do principio, Nos Analiticos posteriores, Aristételes diz, que toda ciéncia deve ter um objeto proprio, aquele que ele de- nomina 0 genos hypokeiménon, ou “genero sujeito” (75 a 1961 [ vos Z, H, © - Vi, il, | 42), e deste objeto proprio deve possuir os principios, porque, a partir desses princtpios, a ciéncia podera de- monstrar quais so as propriedades essenciais do objeto, Ora, 0s principios préprios nos Analiticos posteriores sio a existéncia e a esséncia do objeto. Por exémplo, os prin- cipios préprios da geometria sio a existéncia de figuras geométricas ¢ a esséncia, isto é, a definigao, de tais figuras: a definigao de ponto, a definigdo de linha, a definigao de teidngulo, de circunferéncia, de quadrado. Se vocés lerem Elementos de Euclides, primeiro grande tratado de geome- tria que nos foi transmitido, aquele sobre o qual se baseia toda a geometria que chamamos de euclidiana, e que ja existia no tempo de Platao e Aristoteles, pois Euclides somente expds uma ciéncia que ja existia, leiam os Ele- mentos de Buclides e percebam que comecam uma série de definigées, pois as definicdes sio os principios préprios da geometria. Usamos as definigées de circunferéncia, de retas paralelas, mas antes ainda a definigdo de linha reta, Esses sio os principios préprios da geometria sobre os quais ela se baseia, motivo pelo qual buscar a definicéo, buscar a esséncia, perguntarse o que é significa pergun- tar-se os principios. Portanto, no livro Dzeta, Aristételes, quando afirma que a pergunta “o que é o ente?" se tornou hoje a pergunta “o que € a ousia?”, pretende retomar a busca dos principios que declarou, nos livros preceden- tes, serem a tarefa fundamental da filosofia primeira. Mas nesta formulagao tis he ousia, o que é a ousia, notem: o pronome fis nao é o neutro ti, € 0 feminino que concorda com ousia, por isso, nao significa s6 0 que é a substancia, significa também, poderiamos dizer hoje, quem é a subs- tancia, qual é a substancia? Qual é a verdadeira substan- cia? Quem? le7t { €xtico Bern | No resto do livro Dzeta, Aristételes examina, como se costuma dizer hoje, uma série de possiveis candida- tos ~ perdoem-me se usamos uma linguagem do esporte, porém a usam todos, é um costume introduzido pelos estudiosos ingleses; vocés sabem que os ingleses adoram co esporte, a palavra esporte é uma palavra inglesa. 8 como se existissem muitos concorrentes ao titulo de ousia e por isso se pergunta: quem ¢ a verdadeira ousia, que vence o titulo de ousia? Quem tem o direito de ser considerado a verdadeira ousia? Os candidatos so quatro; no resto do livro Dzeta, Aristételes discute cada um desses candida- tos para ver qual deles pode ser considerado a verdadeira ousia, isto é, a ousia primeira, a prote ousia, onde 0 ser “primeira” a faz ser principio das ousiai, causa da ousia, porque 0 principio é sempre causa para Aristételes. Esses quatro candidatos so em primeiro lugar o substrato, to hypokeiménon, ow seja, a matéria da qual se predicam as diversas propriedades; a seguir, o universal, isto é, 0 géne- 10; depois, a esséncia, que no fim das contas é a forma; e, finalmente, o composto de matéria e forma. ‘Vejamos, em primeiro lugar, 0 substrato, O substrato € 0 sujeito, aquilo que subsiste, em grego se diz hypokei- meénon, literalmente, “aquilo que esta debaixo” (1028 b 36-37). A palavra “sujeito” na filosofia moderna assumiu o significado de sujeito conhecedor, mas de per si sujeito aquilo que é arremessado sob, sub-jectum, em latim, aqui- lo que esta debaixo, ou seja, aquilo que se torna, aquilo que muda no decorrer do devir, aquilo que passa de uma situagdo a outra, assumido formas diferentes. Pois bem, segundo Aristételes, 0 substrato, em certo aspecto, pode ser considerado substancia, mas, por outro aspecto, nao. Por qué? Porque, para ser substancia — Aris- jos! ini i | Limos 2, H, 6 - Vt, Vi 1x | tételes o afirma aqui no terceiro capitulo da livro Dzeta ~, uma coisa deve possuir dois requisitos indispensaveis: ser separada, khoriston e ser “um este” (1029 a 27-28), "Separada” quer dizer que exi que para existir nfo tem necessidade de ser em outro, fe em si, € nfo em outro, mas existe em si, separadamente do resto; por exemplo, a cor branca nfo é separada porque nao existe o branco isoladamente, existe o-branco enquanto ha objetos bran- cos, portanto, o branco se encontra sempre em outro, isto 6, néo é separado; ao contririo, o homem é separado, mais ainda o homem individualmente nio é propriedade de outro, nao existe em outro, portanto, ¢ separado. Ora ~ diz Aristételes ~ 0 sujeito, o substrato, possui essa carac- teristica, possui esse requisito, portanto, ¢ separado, nao existe em outro, mas é aquilo no qual as outras coisas sio; por isso, sob esse aspecto, o substrato pode ser considera- do substancia. Porém, ele nio tem a segunda caracteris- tica da substdncia, que é a de ser ~ diz Arist6teles - rode ti, um este. ‘Tinhamos visto essa expressio também no inicio do livro Dzeta. Ela é um modo de expressar-se néo muito clegante, mas que deseja fazer-nos compreender: 0 que quer dizer “um este"? Essa coisa aqui, essa peculiar coisa determinadissima, que ndo indica uma-caracteristica co- mum a muitas coisas; ras € alguma coisa peculiar - mais ainda, individual. Ora, “este”, “um este” no caso do subs- trato nao se pode dizer que exista, porque o substrato, sendo uma matéria, nao é de per si determinado; para ser determinado, necessita de uma forma, de uma caracte- ristica, de uma determinagio que de per si ele, enquan- to substrato, ndo possui, portanto, e 0 substrato niio é a verdadeira ousia, a verdadeira substancia, nao é 0 melhor |99] [ Enaico Bern | candidato a0 titulo de ousia. Dessa forma, o primeiro dos quatro foi climinado. Vou logo ao segundo, embora Aristételes fale dele no final do livro. Outro candidato que é logo eliminado é o universal (103 b 8-9). © universal é aquilo que é comum. @ muitos individuos, por exemplo, a espécie “homem", 0 género “animal”; as espécies e os géneros so universais. Sequer estes so substincia, porque sio, sim, determina ~ dos, mas nao sio separados, Para Aristételes, os universais no sio separados, nao existem em si. Plato, segundo a interpretagio que dele fornece Aristoteles, acreditava que 8 universais fossem separados ¢ eram as Ideias, equelas que Plato chamava as Ideias existentes em si: 0 homem. ideal ou o triéngulo ideal, o bem em si, Segundo Aris- toteles, Plato se enganava, porque os universais sio so- mente predicados de realidades individuais, de sujeitos individuais; ndo existe 0 homem universal para Aristé- teles; existe a espécie, a espécie humana, mas ela nfo é uma substancia, a verdadeira substancia sio os individuos 40s quais pertence essa caracteristica de ser homem, isto & existe Socrates, existe Calias, existe Erasto, Corisco, to- dos nomes que Aristételes usa como exemplo; existem ‘0s homens individualmente. Hé uma passagem no déci- mo segundo livro onde Aristételes diz, usando a segun- da pessoa do singular, isto é, “tu” ~ isso significa que esta se dirigindo a algum de seus alunos, de seus ouvintes: a causa de Aquiles nao ¢ 0 homem, é Pele, ¢ a causa de ti é teu pai (1071 a 22). Aqui se fala da causa eficiente, daquele que nos gerou: quem gerou no é 0 homem no aspecto universal, mas & teu pai, isto é, um homem bem individualizado; este & substancia, os universais nao sio a substancia, néo séo separados, Vina 6 | Livaos 2, H, © - Vil, i, 1X | Portanto, se o substrato nfo é substincia ¢ o univer- sal nao é substncia, restam dois candidatos: a forma, isto é a esséncia, ¢ 0 composto de matéria e forma. Para Aris- toteles, eles sio ambos substancia (1039 b 20-22). & mais evidente que 0 composto de matéria e forma seja subs- tancia. Aqui, seria necessario ter lido antes a Fisica, pois a Metafisica vem depois da Fisica, e entio a pessoa que lé a Metafisica deveria ter lido antes a Fisica, e se tivesse lido a Fisica, j4 teria adquirido a nogao de matéria e forma, que séo os componentes de todos os objetos fisicos, segundo Aristoteles, porque todos os objetos fisicos siio constitui- dos de matéria ¢ forma. A matéria é aquilo do qual sao feitos, e a forma é 0 modo no qual sio organizados. Para Aristételes, é dado evidente que um objeto fisico com- posto de matéria e forma, por exemplo, um homem, um. homem individual, seja substancia, Portanto, com certe- za, 0 composto é substiincia. Aristételes o denomina com um termo técnico, 0 synélon; syndlon, em grego, quer di- zer“inteiro”, aquilo que esté junto todo inteiro, syn-hdlon. Porém, ha ainda o quarto candidato, isto é, a esséncia oua forma, ou seja,“o que coisa é”, aquilo que me diz que coisa € uma coisa. Segundo Aristételes — ¢ esse é 0 aspec- to mais interessante de todo o livro Dzeta ~, também este € substancia. Evidentemente, ele nao se refere forma separada da matéria, isto 6, a uma forma existente em si, porque ela seria como as Ideias de Plato, e Aristateles j4 disse que aquelas nao sio substdncias; refere-se A forma de um composto, isto é, a forma de uma substincia sensi- vel, de uma substancia material, por exemplo, do homem (1032 b 1-2). Qual € a forma do homem, segundo Aristételes? Aquilo que 0 faz viver, aquilo que o faz ser homem, e | exnco een | aquilo que the faz viver uma vida diferente da vida das plantas € dos demais animais ~ que também so subs tncias, mas tém uma forma diferente da forma do ho- mem —6a alma, a alma intelectiva, alma racional. Por isso, quando ele define 0 homem, diz. que é animal ~ e este € género comum a todos, e quer dizer “vivente”, zoion, quer dizer aquilo que tem a z0é, vida ~ porém, dotado de logos, isto 6, de alma racional. Ora, essa & a esséncia ~ que se candidata ao titulo de ousia, de substincia, Ela nao é uma esséncia separada, no é uma Ideia platénica, a forma das substancias materiais, dos corpos fisicos, Esta é, segundo Aristételes, substincia; porém, atengio, no tomada isoladamente, mas tomada junto com a ma- ‘téria, porque junt com a matéria ela é separada, nio da sua matéria, mas das outras substincias, isto 6, no existe em outro, é totalmente determinada, inclusive, segundo Aristételes, é individual (1034 a 5-8). Esse € outro ponto frequentemente mal-entendido: diz-se que a forma é um universal; nao, a espécie é uni- versal, Infelizmente, em grego, com a mesma palavra eidos se entende as vezes a espécie, as vezes, a forma, A espécie, isto é, a espécie “homem", é universal; mas a forma de cada homem, isto é, a alma, a alma intelectiva, no é uni- versal, é individual. A minha alma é diferente da tua, cada um de nés tem a sua propria alma, portanto, cada alma é uma alma individual, Certo, se so almas humanas, se sio almas racionais, clas sio todas especificamente idénticas, isto é, pertencem todas a mesma espécie, sto todas elmas da mesma espécie. Qualquer homem, qualquer que seja seu sexo, qualquer que seja sua condicéo social, qualquer que seja sua nacionalidade, é homem enquanto possui uma alma racional especificamente idéntica aquela de to- | 102] i | | Lveos 2, H, 6 vil, i, | dos os outros homens, porém numericamente diferente. Essa é uma distingao que Aristételes faz com frequénci uma quanto @ espécie, pois pertence 4 mesma espécie, mas sio diferentes quanto ao néimero; por exemplo, se aqui somos quarenta pessoas, isso significa que ha qua- renta almas, nao uma alma sé. E esta, isto 6, a forma, a esséncia, para Aristoteles, nao s6 é a substincia, mas é a substancia primeira, a prote ousia. Por qué? Porque ela éa causa que faz. com que uma substéncia como 0 composto, como o syndlon, seja aquilo que & (1041 b 7-9); a alma intelectiva a causa que faz com que cada um de nés seja homem, cada um de nés € homem enquanto pos- sui uma alma intelectiva, isto é, em virtude dessa forma. Portanto, a forma é causa; causa em que sentido? Causa formal (1041 b 27-28). Vocés se recordam dos quatro tipos, os quatro géneros de causas, Mas a causa formal € fundamental, é importantissima para Aristételes; a alma 6a causa formal, ele a denomina também a causa do ser, a causa da substancialidade, Portanto, sendo a causa da substancialidade, a forma é a substincia no sentido pri- meiro, é a ousia prote. Portanto, pode-se dizer que, no vro Dzeta, Aristoteles determinou uma dentre as causas primeiras dos entes, isto é, a causa formal. Essa é a forma propria de cada substancia, de cada uma das substancias individualmente. Frede Patzig insistiram na énfase do cardter indi- vidual da forma contra a interpretagio mais tradicional, que se encontra, por exemplo, em Zeller, o grande histo- riador alemao do século XIX, segundo o qual a forma é universal. Reale concorda com isso, no reconhecimento do carater individual da forma. Como disse antes, para ‘Aristételes, a verdadeira forma, quando temos de lidar 1103 | | Enico Been | com substancias viventes, é a alma, e para Aristételes as substincias viventes so a chave para compreender a rea- * lidade, Para Arist6teles, niio é partindo.do mundo inerte que se compreende o mundo vivente, mas é verdadeiro 0 contririo: é partindo do mundo vivente que se compreen- de a totalidade. A alma é individual porque cada um tem a propria alma, isto é, a alma é numericamente diferente em cada individuo; todavia, pode-se também afirmar que ~ a alma é universal, enquanto é especificamente idéntica em todos os individuos. A alma de cada um de nés é a mesma, no no sentido que seja numericamente tinica, ‘mas no sentido que é perfeitamente idéntica a todas as outras almas humanas, Também isso é muito importante ~do ponto de vista da antropologia e da ética deveria ser aprofundado ~, porque quer dizer que ninguém € mais homem ou menos homem do que o outro, somos todos homens na mesma medida, porque especificamente te- mos todos 0 mesmo tipo de alma, a mesma espécie de alma; porém, numericamente, cada qual tem a prop Naquela passagem do décimo segundo 'livro que citei anteriormente, na qual Aristételes afirma que a causa de Aquiles é Peleu, e a causa de ti é teu pai, diz. também: eu tenho a minha forma e tu tens a tua (1071 a 28-29). Dagui deriva que a forma, tanto minha quanto tua - cada qual tem a prépria ~ é, pois, individual. Todavia, concedam-me ainda um momento para falar do livro Dzeta, pois é fundamental compreender esse conceito de forma. Infelizmente, muitas vezes, te- mos uma mentalidade, um modo de pensar de tipo um tanto material, e par isso somos propensos a acreditar que a forma e a matéria sejam como duas partes de um todo. Na realidade, nao sto duas partes, a forma nao é um Iio4t | nos Z, H, @ = Vil, il, 1X dos componentes, € no livro Dzeta, Aristételes apresenta exemplos abalizados, mas que a nés parecem muito po- bres. Elé apresenta os exemplos das letras ¢ das silabas, Diz: hé’a letra A — em grego, seria necessério dizer alfa ~ea letra B - beta. Se as juntarmos, teremos a silaba BA. Pois bem, Aristoteles diz. que aquilo que faz com que BA seja aquilo que é, isto é, uma silaba, néo é nenhum dos seus componentes, néo é nem a letra A nem a letra B, € a forma que mantém unidos A e B. Hé uma frase que eu quero ler: A silaba é alguma coisa que nio é redutivel unicamente as letras” (1041 b 16-17). Facamos um exemplo mais modero, que, em minha opinifo, é eficaz, embora ndo se refira a uma substincia vivente, mas a uma substéncia material, como a égua, porque devemos servir-nos da quimica moderna, Para a quimica moderna, 0 que é agua? Uma molécula de agua 6 formada por dois atomos de hidrogénio e um tomo de oxigénio: H,O é a formula da agua. Ora, o que é que faz ‘com que a fgua seja gua? Nao o hidrogénio, porque o hi- drogénio sozinho nfo é égua, nem o oxigénio, e sim a sua unio, nao de qualquer forma, mas naquele modo certo pelo qual com dois atomos de hidrogénio deve haver um tomo de oxigénio, Se a coisa fosse diferente, néo have- ria égua, haveria outra coisa. Esse tipo exato de relagio é aquilo que chamamos “férmula", a formula quimica da gua. Mas formula, em latim, significa “pequena forma”. O conceito quimico de formula é 0 conceito aristotélico de forma. Ora, a forma, a formula HO, néo é um dos componentes da 4gua, porque os componentes sao o hi- drogénic ¢ 0 oxigénio. Portanto, a forma nio é alguma coisa que faz parte do todo do mesmo modo como fazem parte o hidrogénio € o oxigénio; como diz Aristételes, a 11051 | euico Bexn | silaba ¢ alguma coisa que nao é redutivel unicomente as letras. Eu traduziria: a agua nao é redutivel unicamente ao oxigénio e ao hidrogénio, mas, para ser agua, precisa que 0 oxigénio ¢ o hidrogénio se combinem entre si de certo modo, segundo determinada relagio, e esse certo modo, essa certa relagio é a forma, isto é, a férmula Chegamos a alma, falo do ponto de vista de Aristé- teles, Alma nao é nenhum dos érgios do corpo; se fizer- mos a-dissecagio, a anatomia, em lugar nenhum encon- tramos a alma, nem na glindula pineal, como Descartes pretendia. Porém, todos vemos a diferenga que ha entre um corpo morte, isto é, um cadaver, e um corpo vivente. O corpo vivente tem algum pedaco a mais em relagio 20 morto? Nio, € exatamente o mesmo; as mesmas partes, 0s mesmos drgios. Quando alguém passa da vida & morte, nio perde um pedago, alguma parte, conserva tudo aquilo que tinha antes, todavia, algo mudou; mudou algo muito importante, isto é, quando alguém esta vivo, todos esses 6rgios funcionam, atuam, colaboram de alguma forma, € isso dizemos que é a vida, a0 passo que, quando ha o cadaver, tudo isso para, nao acontece mais nada, Eis 0 que ha a mais no corpo vivente em relagao ao cadiver; Aristételes dissera a alma, o vivente é zoion. Zoion significa animado, quer dizer vivente! O principio que faz com que seja vivente & a alma. Essa é a forma, isto 6, © modo no qual esté organizado o corpo vivente © a sua capacidade de funcionamento. Naturalmente, se se trata de um ser humano, nesse funcionamento esto compreendidas também as atividades espirituais, as ati- Vidades intelectuais, mas elas fazem sempre parte do seu modo de viver, do seu modo de funcionar, © principio, aquilo que mantém juntos, como a formula da agua HO, 1106 | | tvnos ZH, © - Vt, Vi | assim, no organismo vivente, aquilo que mantém juntas as partes, as faz. colaborar, as faz. funcionar em vista de um nico fim, esse é para Aristételes a alma. Pensamos logo estabelecer 0 confronto com 0 conceito cristio da alma; procuremos, enquanto isso, compreender o que Arist6- teles entendia, Essa é a forma, creio que o modo melhor para compreender o que Aristételes entende por forma é pensar na alma; de fato, ele o declara abertamente varias vezes no livro Dzeta, a forma é a alma, entendida como principio da vida. De resto, Aristételes define a alma como ato primei- ro de um corpo orginico que tem a vida em poténcia, 0 que quer dizer a capacidade de viver, possuida pelo corpo vivente (De anima Il 1, 412 a 27-28). Se o olho fosse ‘um organismo independente, que diferenca haveria entre olho morto e olho vivo? A diferenga é que 0 olho vivo vé 0 olho morto nao vé; por exemplo, o olho de pedra néo vé. A alma do olho 6 a capacidade de ver, e, portanto, a alma do organismo, a alma do animal, é a capacidade de viver aquele tipo de vida que lhe pertence baseado na sua espécie; se € um cavalo, sera a espécie equina, se é um ser humano, seré a espécie humana, ¢, portanto, compreen- deré também aquelas que dizemos as funcées superiores Com efeito, ha sempre fungoes que fazem parte da vida especificamente humana e, portanto, pertencem a alma especificamente humana, Esse discurso € retomado no livro Eta, livro ime- diatamente sucessivo a Dzeta, onde se fala da substancia ¢ dos principios da substancia, isto ¢, matéria ¢ forma, porém, aqui eles so vistos numa perspectiva dinamica, jsto 6, matéria e forma sio identificadas por Aristételes respectivamente com poténcia e ato (1042 b 9-11). A 1107) | Exco Bern | matéria é a poténcia, isto é, aquilo que pode receber uma forma, aquilo que pode ser determinado segundo uma © forma, ca forma €0 ato, isto &, a existéncia de uma coisa determinada, © conceito de ato néo pode ser definido, porque, para defini-lo, € preciso uséi-lo, deveriamos dizer a “exis. téncia atual”, mas dizendo “atual”, usamos 0 conceito de ato. No livro Teta, Aristoteles dira que poténcia e ato “ sio compreendidos mediante a indugio, isto 6, fazendo exemplos, e por analogia, isto é, mostrando que essa re- lacdo existe em tantas coisas diferentes entre si. Ele dira que Hermes é em poténcia na pedra e depois é em ato na estatua, a linha semirreta é em poténcia na reta e de- Pois é em ato quando a reta é dividida por um ponto, e dé lugar a duas semirretas, Em todos esses exemplos, hha a mesma relacao, portanto, hi analogia e ssa analogia. nos ajuda a compreender 0 que sio a poténcia ¢ o ato (1048 a 32-b 9). Porém, se voltarmos ao exemplo que cu fazia anteriormente da agua ou aquele que Aristételes fazia da silaba BA, isto é, quando ha Agua'em ato? O hi- drogénio e 0 oxigénio sio égua em poténcia, porque até quando estiverem separados nao ha Agua; porém, existem 0s componentes, isto é, as partes, a matéria, que podem vir a ser égua. Quando eles se combinam entre si naquele certo modo, segundo aquela determinada relagko, expres- sana formula HO, isto é, quando a matéria se acrescenta, Por assim dizer, a forma, entio, ha agua em ato, Por isso, Aristételes diz que a forma é 0 ato; entao, nao ha mais hidrogénio e oxigénio, ha agua, o existir da gua € 0 ato, Mas qual é esse ato? O ato existe quando ha a forma, Quando ha somente a matéria, nao ha ato, Voltando a0 exemplo de Aristételes, a estétua de Hermes; com certe- [108 | vit, | za, no bloco de pedra, dentro, ha a estatua. Miguel Angelo dizia que a escultura consiste sobretudo no tirar, como se a estétua ja estivesse dentro do marmore, e nés devernos fazer sair, tirando todas as partes que lhe estio ao redor. Quando fazemos isso, entio, hé a esttua em ato, entio se vé bem a forma que antes nao se via; quando ha a forma, a substancia é em ato, Portanto, do ponto de vista dinami- co, a matéria coincide com a poténcia e a forma coincide com 0 ato. Este é, muito sumariamente, 0 contetido do livro Eta, isto é, do oitavo livro. Nesse ponto, Aristételes sente a necessidade de ex- plicar profundamente, de modo amplo e exaustivo, os conceitos de poténcia e de ato, ¢ a eles dedica um livro inteiro, o livro Teta, isto é, o nono livro. O livro Teta tum dentre os mais belos, mais profundos, porque justamente expde a famosa doutrina da poténcia ¢ do ato, ¢ eu creio que seja a doutrina mais original de Aristételes, da qual nao ha vestigios na filosofia precedente, e é uma das dou- trinas destinadas a ter mais éxito e mais sucesso em toda a histéria da filosofia ocidental. Até Heidegger, o grande inimigo, porque é o grande émulo, o grande rival de Aris- tételes, diz na sua conferéncia sobre Hegel e os gregos que, ‘enquanto a palavra de Parménides era “um", a de Herdcli- to era “logos”, a palavra de Plata era “Ideia” e a palavra de Aristoteles € enérgeia, isto 6, “ato”, No livro Teta, Arist6teles, em primeiro lugar, faz uma distingdo muito importante, e diz que poténcia € ato po- dem ser entendidos em dois sentidos. O primeiro sentido, © primeiro significado, o mais usado eo dominante na linguagem comum e que nao tem muito relevo do ponto de vista filoséfico, € 0 significado relativo a0 movimento; isto é, poténcia, em grego, dynamis, significa capacidade 11091 OE ies OOOO 1c WOK AMHHC XO 1 €xnico Bear | de mover ou de ser movido, portanto, capacidade de mo- vimento, principio de movimento (1045 b 35-1046 a 2). Mais tarde, os escolasticos a distinguirio em poténcia ati- va, isto é, capacidade de mover, e poténcia passive, isto é, capacidade de ser movido, Quanto a esse conceito de poténcia, 0 conceito correlative de ato ¢ 0 movimento. A poténcia é capacidade de movimento, 0 ato € 0 movi- mento, kinesis, em grego (1047 2 30-32). Aristoteles diz que esses sio conceitos usados por todos na linguagem comum e, com efeito, a palavra dynamis era amplamente usada na lingua grega, nio é termo novo cunhado por Aristételes. A palavra ato, enérgeia, no se encontra em nenhum documento da literatura grega antes de Aristéte- les, mas nao propriamente um termo técnico, porque na lingua grega ha o verbo energein, de onde deriva enérgeia, que quer dizer ~ traduzimos do latim actus, ato ~ ativida- de. Ora, o movimento é uma enérgeia no sentido comum, no sentido que poderiamos dizer vulgar, sem qualquer intengio depreciativa, no sentido vulgar do termo. A seguir, Aristételes diz que além desse significado comum ou vulgar de poténcia ¢ de ato, ha outro, aquele que mais interessa a filosofia, Tendo como base esse se- gundo significado, a poténcia nao é simplesmente capa- cidade de movimento, mas é capacidade de ser, e 0 ato © ser da coisa, to hyparkhein to pragma (1048 a 31), lite- ralmente, o subsistir da coisa”, o existir da coisa. Quando ‘uma coisa é em poténcia, quer dizer que pode ser, mas ainda nao h4; quando, pelo contritio, é em ato, quer dizer que ha, Isso ~ diz Aristételes — nao se pode definir, mas se pode somente ilustrar mediante exemplos, gragas & analogia (1048 a 36-37). Como vimos anteriormente, os exemplos sio a estatua; alhures faz 0 exemplo da semen- € isi i | Uvnos %, H, 0 - Vi, i, | te da qual nasce a planta, oo animal, o individuo adulto. Sao todos exemplos que servem para mostrar 0 conceito de poténcia e de ato, os quais de per si, nesse dltimo sig- nificado, que € o mais filos6fico, nao sto definiveis. No podem ser definidos enquanto so aplicaveis a todo o ser, poténcia e ato nio podem ser definidos, pois definir sig- nifica delimitar. Como nao é definivel 0 conceito de ser, assim no sao definiveis sequer os conceitos de poténcia ede ato, enquanto aplicéveis a todo o ser. Natusalmen- te, eles se aplicam a todas as categorias, porém, uma vez mais, sendo a substéncia a primeira das categorias, os sig- nificados mais fortes de poténcia e de ato sio os que se referem a substancia, isto 6, 0 poder ser substancia € 0 ser substancia em ato. . Sempre, no livro Teta, outra distingio muito impor- tante que Aristoteles introduz acerca do ato é aquela que retoma os dois significados de ato, 0 comum do ato como movimento e do ato como ser, como presenga efetiva. Es- ses dois significados — diz. Aristételes - podem ser aplica- dos também as ages, as préxeis, porque ha dois tipos de agées. Em primeiro lugar, ha agées que sio movimento, que sio as que tém um fim diferente de si. Ele apresen- ta um exemplo um tanto ridiculo: 0 emagrecer; alguém emagrece, faz uma dieta para emagrecer, e emagrecer uum movimento, porque para Aristételes 0 movimento indica qualquer tipo de mutagio. Se alguém emagrece, em suma, se vé que emagrece, sofre um pracesso; este, porém, tem um fim, isto é, 0 emagrecer € um processo que alguém realiza néo pelo prazer que experimenta no emagrecer, mas para obter certo resultado, certo efeito = suponhamos, a satide. Este, segundo Aristételes é um movimento, isto é, um “ato imperfeito", porque nao con- raat | €xnico Ben | tém em si o seu fim,.o seu télos, mas tem um fim fora de si, diferente de si (1048 b 18-22). Ao contrério, ha outros tipos de agdes que tém o fim em si mesmas, ¢ Aristiteles faz estes exemplos: 0 ver e 0 pensar. Quando eu vejo, nao € que haje alguma coisa que esté além do meu ver, © ver € uma ago que eu realizo, mas no ha um fim que esta além desta aco, € uma aco que tem o fim em si; assim, o pensar. Aristételes diz que em outros casos posso “distinguir o passado do presente, posso dizer, por exem- plo: “caminhei” e“caminho", é diferente dizer “caminhei", Porque posso ter caminhado e agora estar parado; e, pelo Contrério, se digo “caminho", quero dizer que nio estou Parado, mas estou caminhando, Entao, enquanto no caso do caminhar, que é um movimento, ha diferenga entre © perfeito do verbo ~“caminhei” — e o presente — “cami- nho’, ou entio “estou caminhando”, no caso do ver e do pensar nao hé diferenga entre dizer vi" e “vejo” e “pensei” €"penso”, Nesse ultimo caso, hé uin processo continuo no qual nao passo de um estado, por assim dizer, de calma a um estado de movimento, ha a continuidade; este, diz Aristételes, é um “ato perfeito” - perfeito porque tem em sio seu fim (1048 b 22-35). Nesse caso, poderiamos traduzir o termo enérgeia, em vez de “ato”, “atividade", entendendo por atividade uma aco perfeita que tem em si o préprio fim, como 0 ver 0u 0 pensar; pelo contrario, o caminhar, o emagrecer, so agées imperfeitas e, portanto, sio movimentos, nao so atividades. Por que ¢ importante essa distingdo? Porque, como veremos amanhi ou depois de amanhé, Aristételes @ evocara quando deverd determinar em qual ato consiste © primeiro motor imével, o qual, sendo imével, nao pode ter como ato o movimento e, portanto, deverd ter uma ati- hivl si Hea | wos ZH, =i, i vidade. E entao, qual é a atividade mais elevada também. para nés? O pensamento, mas disso falaremos a seguir. Por fim, a iiltima importante doutrina contida no li- vro Teta é da anterioridade do ato em relacao & poténcia, E aqui que os conceitos de poténcia e de ato mostram toda a sua eficécia, porque nao séo apenas nomes que servem para expressar de modo mais dinimico os concei- tos de matéria e de forma. Entendendo matéria e forma respectivamente como poténcia e ato, é possivel afirmar a anterioridade do ato em relagao a poténcia, que signifi- ca também anterioridade da forma em relagio 4 matéria. Em qual sentido 0 ato é anterior & poténcia? Aristételes © explica em muitos sentidos, isto é, em primeiro lugar, do ponto de vista da nogio: nao posso ter a nogio da po- téncia, a nfo ser referindo-me antes 4 nogao de ato. Para dizer que coisa é uma coisa em poténcia, devo saber em primeiro lugar que coisa é aquela coisa em ato (1049 b 16-17). Por exemplo, para dizer que o hidrogénio e 0 oxi- genio postos juntos formam a gua ¢, portanto, para dizer que so em poténcia agua, devo ter a nogo de que coisa 6a agua jd em ato, Além disso, 0 ato, segundo Aristoteles, é anterior & poténcia também do ponto de vista do tempo e inclusive do ser. Em que sentido? Nao no individuo em particular; no individuo em particular, antes vem a poténcia e depois vern o ato, antes ha a semente e depois hi a planta, antes hd o bebé e depois hé 0 homem adulto; ora, se o bebé & em poténcia em relagio a0 homem adulto e 0 homem adulto é 0 homem em ato, no ha duivida de que, no de- senvolvimento do individuo em particular, no proceso de crescimento, antes alguém € bebé e depois é homem, portanto, a poténcia precede no tempo o ato quando se | Exnico Bern | refere a um individuo em particular. Mas, diz Aristételes, se, do contrario, refere-se a espécie, ¢ se refere mais espe- cificamente a causa pela qual se tem a passagem da po- téncia ao ato, entdo se vé que a condi¢io necesséria para que acontega a passagem da poténcia a0 ato é a existéncia de uma causa ja em ato (1050 a 2-3). Aqui ele introduz 0 conceito de causa eficiente: aquilo que faz. qualquer coisa passar da poténcia ao ato é uma causa eficiente que deve ~ ser jem ato, isto é deve exis 1, deve ser jé, nao pode ser apenas em poténcia. E os exemplos que ele apresenta sio 0s tirados do mundo da vida, que, como sempre, é 0 objeto privilegiado da atengao de Aristételes. De fato, como muitos gregos, Aristételes tinha aque- la que hoje pode ser chamada uma visio “biomérfica” do universo, isto é, via o universo. principalmente como formado por seres viventes; parece até que em alguma passagem ele considera 0 universo como um ser vivente. A filosofia moderna e a ciéncia moderna, pelo menos nos inicios, tiveram, pelo contrario, uma visio mecanicista, nao biomérfica, isto é, tendiam a ver 0 universo como ‘uma méquina feita de tantas pegas, tantas massas que se deslocam mediante movimentos puramente mecénicos. Portanto, enquanto a ciéncia moderna e, na sua esteira, a filosofia moderma, para explicar 0 mundo vivente, parte em geral do mundo nao vivente, Aristételes faz. sempre © percurso contrério, parte do mundo vivente. O mundo vivente para ele é 0 mais rico de informaces, nos ajuda a compreender melhor a estrutura da realidade, ¢, no mun- do vivente, 0 tipo de movimento, o tipo de mutago que mais atrai a sua atengao ¢ aquele que ele denomina a ge- ragio e a corrupgio, isto é, 0 nascer e o morrer. O nascer dos seres viventes e o morrer dos seres viventes. Herel [ unos %, H, © - Vil, VIX | Por seres viventes, Aristételes entendia plantas, ani- outro ge- nero de seres viventes, nao sujeito 4 geragio e corrup¢io, porque eram imortais, isto é, os deuses, Também os deu- ses so seres viventes ¢ sio efetivamente os viventes imor- tais, ao passo que os homens sao os viventes mortais. Dei- xemos de lado os deuses, que de resto Arist6teles nunca toma como ponto de partida para explicar qualquer coisa, e consideremos, pelo contrario, os seres viventes mortais: plantas, animais e homens. O fenémeno da geragio ~ que & mais interessante que a corrup¢io, porque na geragio assistimos ao emergir de uma forma ¢, portanto, @ passa gem da poténcia a um ato, ao passo que na corrupgao se assiste & destruigio de uma forma ~ 0 fendmeno da gera- fo, segundo Aristoteles, mostra claramente que qualquer geragio de seres viventes acontece por ago dos pais, se se trata de seres viventes de espécie bissexuada, como so a maior parte dos animais ¢ das plantas, Aristételes no tinha condiges de observar a vida de seres monocelula- res, pois ndo tinha os instrumentos; para ele, quase todos os seres viventes nascem mediante o encontro do genitor mais, seres humanos; além disso, para ele, havi masculino ¢ 0 genitor feminino, tanto nos enimais quanto nas plantas, ¢, portanto, pressupdem a existéncia de um. genitor que j4 deve ser em ato, isto é, que deve possuir ja em ato aquele tipo de forma que o gerado assumiré na geragdo. Portanto, a geragio é vista por Aristételes como transmissio da forma. Mas exceto este que é um ponto especialmente delicado e controverso, que no é aborda- do na Metafisica mas em outras obras, aquilo que Aris- toteles diz no livro Teta da Metafisica é que do ponto de vista da geracao 0 ato precede a poténcia, Com efeito, 0 ato é 0 genitor; 0 genitor ja possui em ato a forma que eke

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