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Capítulo 1.1.3 – Pena e Ventura

Tal é a definição de liberdade: manter-se contra o outro


apesar de toda a relação com o outro, assegurar a autarcia de um
eu. A tematização e a conceptualização, aliás inseparáveis, não
são paz com o Outro, mas supressão ou posse do Outro (Levinas,
2017, p. 48).

Com um “puff” surdo e mole, o compositor Tristão Ventura deixa-se cair sobre
o colchão da sua cama. Regressa de uma noite festiva em companhia do seu velho amigo
Orlando Pena, também ele compositor musical e, como ele, igualmente propenso a
criações multidisciplinares. No passado partilharam intensamente algumas experiências
criativas e frequentaram círculos de amizade concêntricos, círculos que se foram
suavemente descentrando até acabarem por perder o contato. Pena reside há uns anos em
Berlim, casado com uma Erika e pai de um pequeno Heiner, Aproveitando a visita ao seu
país natal, desafiou Ventura para um jantar num restaurante recuperado das suas velhas
rotinas, criando o ensejo de colocarem a conversa em dia - uma conversa que jorrou em
golfadas desordenadas, com os dois amigos se atropelando mutuamente entre
recapitulações saudosas e atualizações surpreendentes. A volúpia do reencontro,
pontuada pela alegria do restabelecimento de uma amizade muito estimada, prolongou-
se pela noite fora, num périplo jovial por outros bares e botequins resgatados às suas
remotas andanças.

Agora remetido a uma horizontalidade agradecida, Ventura sente, com deleite,


os seus músculos se distenderem um a um, aqui um tendão, ali um ligamento, enquanto
pela sua mente vão passando imagens soltas dessa noite, acompanhadas por emoções
globalmente gratificantes. Porém, entre as variadas revelações partilhadas, há uma que o
impressiona com uma insistência particular, regressando uma e outra vez entre
fragmentos de pequenos episódios domésticos, aventuras pitorescas e germanidades em
geral. Trata-se de uma notícia relacionada com o passado mais ou menos recente da vida
profissional de Pena e que diz respeito à sua relação com um amigo comum, o coreógrafo
Matias Alvaraz, com quem o compositor mantinha há muitos anos uma colaboração
estreita e bastante bem-sucedida, e da qual resultou um número considerável de obras,
por sinal bastante bem recebidas pelo público e festejadas pela crítica. Ainda antes de
Pena, o próprio Tristão Ventura chegara a ser convidado por Alvaraz para uma produção
conjunta que, todavia, não conheceu qualquer réplica, o que resultou num leve e benigno
melindre para compositor, sem qualquer consequência na amizade entre os três. Já entre
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o coreógrafo Matias Alvaraz e o compositor Orlando Pena se desenvolveu aquilo que


poderíamos chamar de uma dupla profícua, uma daquelas colaborações em que, de obra
para obra, se vai consolidando um entendimento fecundo, uma convergência de
intencionalidades, de vocabulários e de procedimentos, redundando numa osmose
expressiva profundamente eloquente cuja qualidade transcende sobremaneira o idioma
particular de cada criador. Ora, entre duas colheradas de pudim de ovos, Pena anunciou
o fim dessa colaboração.

A história conta-se em duas penadas. Parece que o coreógrafo Matias Alvaraz


foi convidado pela CND1 para uma criação de generosas dimensões, tendo, por sua vez,
convidado o seu parceiro Orlando Pena para compor a música. A encomenda inicial
previa a participação de uma orquestra sinfônica, mas posteriores constrangimentos
orçamentais levaram Pena a contrapropor a criação de uma espécie de sinfonia para
ensemble de instrumentos eletroacústicos, com a muito apreciada vantagem de poder
concentrar em si próprio o controle total da produção musical. Parece também que o
compositor recebeu igualmente, no entretanto, um convite para participar numa
residência artística com a duração de um mês numa cidade americana, agendada
precisamente para a mesma altura em que deveriam começar os primeiros ensaios. O
impasse produzido pela coincidência foi solucionado a contento, com o compromisso de
Pena em aproveitar esse evento para iniciar a sua composição, contra o fornecimento, por
Alvaraz, de filmagens recolhidas nos ensaios, por via de correio eletrônico e sempre que
considerasse adequado. Chegado o momento, lá voou Orlando Pena para longe, deixando
ao coreógrafo um forte abraço e um até à vista.

É aqui que o destino marca a sua hora, fazendo desabar sobre esta aventura uma
tragédia digna das tradições mitológicas clássicas. No dia seguinte à acomodação no
campus onde iria decorrer a sua residência artística, deflagra sobre a costa leste dos
Estados Unidos um daqueles furacões crismados com nomes próprios (como Katrina,
Irene ou Fiona, havendo até notícia de uma Claudette) e semeando, entre ventos
ciclônicos e dilúvios bíblicos, um rastro de alagamentos, quedas de árvores, telhados
destroçados, colapsos energéticos, evacuações aflitas e toda a sorte de calamidades

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A CND é uma daquelas companhias de dança estatais dotada de significativos recursos orçamentais, de
um numeroso corpo de bailarinos, de uma estrutura administrativa medianamente burocrática e de um
departamento de produção bastante proativo e omnipresente.
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humanas e materiais. Uma palmeira, que não escapou à ira local do tornado, tombou sobre
o telhado do encantador bungalow reservado para o compositor Orlando Pena, destruindo
de um só golpe a cama onde iria dormir e as suas risonhas perspectivas para a temporada.

Tomadas as medidas as de emergência mais prementes, todos os participantes


da jornada residencial foram, algo atabalhoadamente, acondicionados no edifício
principal, tendo sido improvisada uma espécie de camarata que não evitou alguma
promiscuidade e outros incômodos ou aborrecimentos de idêntica natureza. Mas o pior
foi o total isolamento em que se encontraram de repente todos os envolvidos,
organizadores e participantes. Os estragos naquela zona incluíram a interrupção do
fornecimento de energia e, consequentemente, de toda a possibilidade de comunicação.
Um membro da organização do evento ficou com a incumbência de se dirigir a uma
cidade próxima, menos castigada pela fúria dos deuses, e de telefonar para os familiares
dos artistas de modo a comunicar a sua boa saúde e o controle, ainda que precário, da
situação. Porém, o restabelecimento da normalidade nestes casos é sempre difícil e pouco
propenso a previsões otimistas, de sorte que o compositor Orlando Pena ocupou o resto
da sua estadia em atividades avulsas, numa espécie de turismo cultural catastrófico
vagamente atenuado pelo convívio solidário com os seus companheiros de infortúnio. No
meio deste caótico estado de coisas, não só não encetou qualquer espécie de impulso
composicional (para o qual seriam necessários meios logísticos elementares e alguns
laivos de disponibilidade espiritual), como não logrou realizar qualquer contato direto
com o seu amigo Matias Alvaraz (e muito menos com a produção da CND).

Do outro lado do oceano, o silêncio forçado de Pena foi recebido com


progressiva perplexidade e crescente agastamento. Na aflição da tormenta e na confusão
do rescaldo, os organizadores americanos limitaram-se a informar as famílias dos artistas
sequestrados pela catástrofe, dispensando-se de ulteriores diligências e concentrando-se
noutros e múltiplos aspetos do pandemônio geral. No velho continente, tanto a produção
do teatro como o próprio coreógrafo se mantiveram na ignorância do ocorrido (ou não
ligaram a devida importância aos noticiários ou, pura e simplesmente, não somaram dois
mais dois). No regresso ao seu país, o compositor Orlando Pena encontrou a sua caixa de
correio eletrônico atafulhada de mensagens do produtor, cronologicamente ordenadas por
delicadas solicitações de contato iniciais, seguidas de frias convocatórias, depois por
protestos formais e, finalmente, por indignações explícitas, desfeitas coléricas e ribombos
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em geral. É claro que, esclarecidos os factos, se amenizaram os humores, mas não se


extinguiram por completo as sequelas da borrasca.

Orlando Pena mergulhou de imediato na sua azáfama composicional, enquanto


que, nos estúdios de dança, a elaboração coreográfica ia já adiantada. Em breve se
iniciaram as entregas de pequenas secções musicais que Matias Alvaraz ia submetendo
ao movimento criado. Não se sabe se devido à impressão de alguma inconsistência
estética, a algum défice de inspiração ou, pura e simplesmente, algum equívoco
programático, esses primeiros resultados não tiniram as campainhas epifânicas da coesão
expressiva. Ao cabo de meia dúzia destas interações, o coreógrafo solicitou a presença de
Pena no estúdio para a avaliação conjunta do fenômeno e para a esgrima de agulhas a
acertar. Porém, o espectro da estreia se aproximava e o compositor defendia que a sua
deslocação ao estúdio configurava uma perda de tempo, tempo esse que seria mais bem
aproveitado se investido no labor da criação, para o qual (segundo o próprio) apenas
necessitava do apoio de vídeos do material coreografado. A labuta prosseguiu assim em
trilhos paralelos, com Pena para um lado, engolfado dia e noite na vertigem da
composição, e Alvaraz para outro, atolado na finalização do desenho coreográfico. A
inquietação do coreógrafo em relação às adversidades da sua colaboração começou a
transbordar da sala de ensaios para os corredores do teatro, infiltrando-se insidiosamente
nos escritórios da produção e acabando por criar bolores no gabinete da direção da
companhia. Enquanto o compositor Orlando Pena dobrava as noites na sua gesta contra
o tempo, ia ganhando espessura a discussão dos méritos do seu trabalho, uma
desconfiança que, por sua vez, ia minando cada vez mais a respectiva recepção, acabando
por embaciar os espelhos dos estúdios de dança com as fofocas dos bailarinos. Com o
correr dos dias e a iminência da estreia, foi tomando forma, no pequeno comité da CND,
uma reconfiguração estratégica da produção, prevendo medidas radicais para o problema
musical e agregando umas trapalhadas com contratos que agora não vem ao caso. A
verdade é que, quando por fim o compositor deu por concluído o seu trabalho, satisfeito
com o resultado e orgulhoso da sua tenacidade (totalmente alheado dos efeitos perniciosos
da sua hubris involuntária), foi confrontado com a notícia da dispensa dos seus serviços,
agravada por recriminações alvoroçadas e vagas insinuações de sabotagem. Após mais
meia dúzia de ocorrências menos relevantes, a peça acabou por ser concluída com o
recurso a gravações fragmentárias de composições avulsas e os dois velhos amigos nunca
mais se falaram.
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De olhos fechados e deixando-se embalar pela quietude da noite, o compositor


Tristão Ventura reflete na dimensão trágica de todo o episódio, e as suas cogitações
recaem sobre o destino da obra, mutilada nas suas premissas e suprida com uma prótese
equívoca e vil. A obra, congeminada nos seus alvores com uma radiosa antecipação de
potencias cruzadas entre os ímpetos coreográficos e as ressonâncias musicais, acarinhada
na sequência de glorias anteriores e almejada como oportunidade de transcendência de
práticas artísticas e de convivências criativas já experimentadas. A obra como um
organismo vivo, fecundado na cumplicidade histórica da identificação criativa e da
amizade, emancipado na cerimônia ritual da estreia, no prodígio da produção de sentidos
híbridos, no devir dos movimentos humanos sobre texturas musicais, misturando-se na
produção de intensidades ora emocionantes, ora comoventes, ora empolgantes, ora
melancólicas, ora desconcertantes, ora gráceis, ora opressivas, ora tudo isto embutido
numa gramática a duas vozes que ressoam com uma só. A obra que passou a existir na
primeira palavra trocada entre o coreógrafo e o compositor e que, na amarga ironia da
sorte, se finou na última, dando lugar a uma outra obra, porventura com outras
prolixidades expressivas e outras virtudes intensivas, mas uma obra decepada da sua
inteireza primordial, da sua conivência poética, da sua potência dual. Inadmissível! -
murmura Ventura, dando uma volta sob os lençóis.

A sonolência vai embotando os seus pensamentos e é no limite da consciência


que prossegue a reconstituição do episódio, colocando-se agora o compositor no lugar de
Matias Alvaraz. Passo a passo, imagina a alegria da encomenda de uma nova obra, a
oportunidade de trabalhar com uma grande companhia de repertório, o entusiasmo de uma
nova experiência com o seu amigo Orlando Pena. Pensa nos primeiros ensaios, no
conforto de um teatro moderno e bem equipado, no luxo de um elenco com dezenas de
bailarinos. Pensa igualmente no silencio sobre o qual coreografou os primeiros passos, os
primeiros elos de transmissão entre os corpos, o desenho das primeiras massas em seus
desafios gravíticos. Presume as primeiras necessidades de confronto sonoro, os primeiros
questionamentos musicais, as primeiras fantasias de totalidade performativa. Recupera
uma imagem do estranhamento pela ausência de notícias do compositor, do escorregar
dos dias sobre o linóleo silencioso do estúdio, da progressiva ansiedade pela sua investida
solitária nos trilhos da criação. Idealiza a forma como essa inquietação se alastra, primeiro
em aflições íntimas, depois em comentários lacônicos, seguindo para a partilha de
perplexidades indignadas até ao assomar de um rancor geral, arregimentando para a
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gravidade da circunstância a empatia da produção e da direção do teatro, que por sua vez,
libertam perspectivas e conjecturas que mais não fazem do que enfatizar a sua solidão.
Recria o alívio pelo regresso do compositor, o retomar da sua energia auspiciosa, a
excitação antecipada pelo confronto do seu movimento com as propostas musicais, a
efetivação dessas propostas e desse confronto, o desapontamento pela distância entre o
que observa e o que imaginou, a transformação desse desapontamento em preocupação,
depois em aflição, depois em cepticismo, depois em tristeza, depois em rancor, depois em
pânico e finalmente em determinação apocalíptica e arbítrio avassalador. Lá se foi o
compositor.

Cedendo ao avanço da modorra, o compositor Tristão Ventura aninha-se em


vagas ponderações de uma possibilidade de redenção para este desenlace calamitoso. Será
que tudo tinha que ser assim, com um enredo tão inexoravelmente dramático e com um
desfecho tão penalizador para toda a gente? Não teria sido possível ao coreógrafo ter
identificado na música possíveis ajustes no rumo da sua invenção coreográfica, ao invés
de se ter remetido à evidência de uma incompatibilidade funesta? Não poderia ter
confiado nas suas memórias de processos anteriores e forjar uma estratégia de
convergência entre o seu pensamento e o de Orlando Pena? E se sim, não teria esse
movimento o poder de reorientar o pensamento de Pena em direção ao seu próprio
pensamento? Não seria, por fim, possível encontrar no meio da sua conversa de surdos
um diapasão competente para um recomeço pertinaz, compromissado na velha
cumplicidade da parceria e confiante na sua velha loquacidade? Talvez se tivesse insistido
na presença de Pena no estúdio...ou talvez se se tivesse disposto a encontra-lo no seu
território...talvez Pena tivesse tido oportunidade para uma revelação, para um lampejo
súbito e inspirador, para uma iluminação...

Um ronco discreto acompanha um pequeno espasmo involuntário que agita o


corpo dormente do compositor. A letargia ganha o seu terreno, trazendo consigo
devaneios oníricos e confundindo o sonolento raciocínio de Ventura. Curvado sobre o
braço ondulante de uma guitarra, o compositor observa o seu amigo Orlando Pena, ora
dedilhando escalas meteóricas ora suspendendo os seus braços nas cordas do silencio,
enquanto Matias Alvaraz rodopia como um dervixe sobre um praticável transparente,
soltando borbotões de uma poeira fina e brilhante que, a cada volta do seu corpo, vai
sendo iluminada com novas cores, âmbar, carmim, fúcsia, esmeralda, ocre, jasmim, lima,
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magenta, púrpura, ouro, prata, enquanto a plateia solta uma espécie de melopeia contínua,
uma toada de anjos e querubins, um hino à pureza original.

Tristão Ventura adormece profundamente. Mas algo consumido durante o jantar


deveria estar estragado, pois mergulha de imediato num pesadelo aflitivo. Agora o
compositor desta odisseia é ele próprio, fugindo de um cenário de guerra, entre o ribombar
de explosões e o guincho de ferros retorcidos, debaixo de uma chuva de cinzas e
destroços, no meio de gritos e esgares, enquanto centenas de bailarinos fogem pelas suas
diagonais ao som das sete trombetas do apocalipse.

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