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CONTRA O FINANCISMO

O método mais prático e eficiente para investir em ações

Felipe Miranda | Rodolfo Amstalden


Adaptado para Portugal por Pedro Gonçalves | Diogo Baltazar

1
Está insatisfeito com a sua conta poupança
e a inflação deixou-o órfão de uma hora
para a outra. A sua vontade era mesmo ser
milionário, mas sem cair na conversa de um
charlatão ou num esquema em pirâmide.

Sabemos bem como é a vida de investidor


português, mas dá para virar o jogo. Neste
livro explicamos como investir em ações
sem qualquer arrogância ou erudição. Pelo
contrário: quanto se trata de bolsa, quanto
mais simples, melhor.

2
CONTRA O FINANCISMO

3
1ª edição
Lisboa, 2017

© Felipe Miranda
Rodolfo Amstalden
Pedro Gonçalves
Diogo Baltazar, 2017

Imagem de capa: Jannoon028


Ilustrações: Guilherme Montanari
Revisão: Paula Oliveira Silva

© 2017 Empiricus Research Portugal, Lda.


Todos os direitos reservados

Avenida da Liberdade, 110


1269-046 Lisboa - Portugal
www.empiricus.pt

Impresso por:

unoeditorial.com
info@unoeditorial.com

A reprodução total ou parcial deste livro, por qualquer meio, não autorizada pelos autores
e os editores violam direitos autorais. Qualquer uso deve ser previamente autorizado.

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CONTRA O FINANCISMO

Felipe Miranda
Rodolfo Amstalden

Adaptado para Portugal por:


P e dr o G o n ç a lv e s
D i o g o B a lt a z a r

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Prefácio ........................................................ 9

Introdução ................................................... 19

I. Quer investir em valor? ......................... 37

II. As armadilhas de valor ......................... 67

III. Crítica da razão pura ........................... 91

IV . Buffett vale mais ............................... 109

V. Um pouco de muito risco .................... 123

VI. Opcionalidades .................................. 141

Epílogo ....................................................... 161

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PREFÁCIO

Caro leitor,

Quando a primeira versão deste livro foi lançada no Bra-


sil, a Empiricus ainda gatinhava em Portugal.

Na altura, eu e o Renato fomos incumbidos de trazer um


modelo de negócio inédito ao país, com um histórico longín-
quo de sucesso em diversos países do mundo e filhote de uma
empresa prodígio, com mais de 180 mil clientes.

Esta missão por si só foi algo que me causou grande inspi-


ração e motivação.

Por lá, a Empiricus transformava o mercado de capitais


brasileiro para sempre, ajudando o pequeno investidor a in-
vestir pela própria mão.

Por aqui teríamos de fazer o mesmo, enfrentando de peito


cheio o setor financeiro, que por estas bandas monopoliza
todo o conhecimento lucrativo.

9
A trabalhar na banca de investimento desde os 20 anos,
sei perfeitamente como funciona a indústria. Os truques e
subterfúgios que impedem que advogados, médicos, enge-
nheiros e professores não alcancem a emancipação financei-
ra.

É precisamente com estas pessoas que nos queremos co-


municar com este livro, órfãos de um research independente
de qualidade.

No seu original, o livro foi escrito pelo Felipe Miranda e


pelo Rodolfo Amstalden, sócios fundadores da Empiricus
que me passaram o testemunho, para daqui levantar a ban-
deira Contra o Financismo.

Provavelmente nunca ouviu tal expressão, mas pode de-


duzir o seu significado com o empurrãozinho semântico aqui
por mim prefaciado.

A Empiricus cunha o “financismo” como um conjunto de


hábitos potencialmente nocivos ao bolso do investidor. Não
é coincidência que o termo soe estranho, pois ele pretende
provocar mesmo a estranheza.

Os “financistas” promovem uma complexidade — desne-


cessária, é claro — da Linguagem falando de uma forma di-
fícil o que poderia ter sido dito de maneira fácil.

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Trata-se de um artifício retórico para tentar distanciar o
cidadão comum das pessoas “financistas”, atribuindo a essas
últimas o monopólio do conhecimento lucrativo.

Como advogado, engenheiro ou médico, lida diariamente


com temas tão complexos quanto uma conciliação de nor-
mas e jurisprudências antagónicas, o dimensionamento es-
trutural de uma ponte de concreto armado ou o perfil epide-
miológico de pacientes com angioma cerebral.

Por que é que não conseguiria entender o funcionamento


de uma obrigação do Estado com rendimento variável ou o
fluxo de caixa de uma empresa que distribui dividendos re-
gularmente?

Se colocar uma dúvida objetiva a um “financista” — por


exemplo, vale a pena comprar ações do BCP agora? — e rece-
be uma resposta confusa e ininteligível, esteja certo de que a
culpa mora do lado do “financista” do balcão.

Eu ou qualquer analista da Empiricus jamais saberemos


responder se as ações do BCP vão cair ou subir. Mas sentimo-
nos confortáveis em analisar com a máxima clareza possível
se vale a pena comprá-las nesta altura.

O que são óticas completamente diferentes.

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Prever o futuro (vai subir ou vai cair) nada tem a ver com
a nobre tarefa de pesar vários tipos de futuro (vale a pena?).
Prever o futuro é uma ambição impossível. Pesar vários futu-
ros é um exercício útil.

O “financismo” ambiciona prever o futuro, mas só conse-


gue prever o passado — aquele mesmo passado que não vale
nada, pois já aconteceu.

Apontamos o ideal de John Maynard Keynes — o princi-


pal economista do século XX —, que preconizava: “Quando
nós, economistas, conseguirmos construir o nosso raciocínio como
pessoas humildes e competentes, ao mesmo nível dos dentistas,
estaremos numa situação esplêndida”.

Como se referenciar pelo ethos profissional do dentista?


Trabalhando num ritmo oposto ao do consenso pasteurizado
de mercado, que não cabe em ficheiros de excel.

Viajamos pelo país, visitamos fábricas, conversamos com


concorrentes, sentimos o cheiro do mérito ou do embuste
nos discursos corporativos.

Para analisar a realidade, precisamos experimentá-la de


inúmeras maneiras, num exercício multissensorial que o “fi-
nancista” mediano já abandonou há muito tempo. Precisa-
mos mergulhar naquilo que não nos pertence.

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O ficheiro de excel, portanto, não basta, pois só preenche-
mos as células com aquilo que já sabemos ou julgamos saber.

Dizem-me muitas vezes: “É impossível bater o mercado!” Gé-


nios como Warren Buffett ou George Soros seriam meras ex-
crescências estatísticas. Mas como é que o “financista” sabe
dessa impossibilidade, se ele nunca tentou bater o mercado?

O mercado — para o “financismo” — é o último dos ad-


versários. Frequentemente, o “financista” nem chega a alcan-
çá-lo, parando noutros obstáculos imediatos.

Parando, por exemplo, na já citada metodologia rasa das


folhas de cálculo, parando ainda nos interesses comerciais
do banco no qual trabalha ou nas ordens frenéticas da cor-
retagem que remunera o seu trabalho. Desimpedido, poderia
seguir em frente.

Travado, desiste e adere ao conforto de uma remuneração


por soma zero, em que o cliente perde enquanto ele ganha.

O que significa “Empiricus”? — certamente que não é


uma alcunha comum.

A nossa marca é inspirada em Sextus Empiricus, filósofo


grego conhecido como o pai do ceticismo.

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Cético — como bem definiu Oscar Wilde — é o homem
que conhece o preço de tudo, e não conhece o valor de nada.

Bem antes de Oscar Wilde ou de David Hume, Sextus já


pregava a suspensão das crenças absolutas e alertava para as
ameaças do raciocínio por indução que se presta a tirar con-
clusões gerais a partir de observações particulares.

O seu pensar era bem mais simples.

Deparando-se com razões ou sentimentos de ordem X,


Sextus limitava-se a afirmar, numa postura humilde em re-
lação à realidade: “parece-me, neste momento, que isso significa
X”. Portanto, sem que tal afirmação despertasse a ânsia de
uma definição completa e imutável do mundo exterior.

Sextus não teria problema algum em provocar a sua au-


diência com um discurso destrutivo como o que alertámos os
nossos leitores sobre o risco de colapso das contas públicas
portuguesas.

“Eu sei que o mel que eu provo tem um gosto doce” — dizia ele.
“Mas sei também que esse adocicado talvez não me explique nada
sobre as verdadeiras propriedades do mel”.

Quais são as verdadeiras propriedades de uma obrigação


do tesouro? A política fiscal por detrás do défice primário? O
estado de mal-estar social?

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Quais são as verdadeiras propriedades de uma ação? A
empresa por detrás da ação? Os investidores que insistem,
dia-a-dia, em comprá-la e vendê-la?

Quais são as verdadeiras propriedades de um fundo imo-


biliário? Metros quadrados, taxa de ocupação?

Quais são as verdadeiras propriedades da diversificação? Im-


pacto da política monetária no crédito à habitação, intervenção
via swaps do banco central, programa de compras do BCE?

Todas as respostas, parciais, são negativas e afirmativas


em diferentes proporções.

Diante de tantos salgados, amargos e azedos de boca


deixados pelo mel financeiro, devemos servir um banquete
completo para os deuses do mercado, resistindo à tentação
de saltar diretamente para a sobremesa e pedir a conta.

Se tais e tais coisas acontecerem (ninguém sabe se aconte-


cerão), quanto poderemos ganhar? E quanto poderemos per-
der? Esse é o único raciocínio legítimo para um analista que
não queira meter-se a prever o futuro.

O “financismo”, entretanto, impede que as humildes su-


gestões de Sextus Empiricus sejam levadas a cabo dentro das
instituições financeiras. Os analistas de bancos e corretoras

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precisam saber exatamente o que acontecerá e não podem
dar-se ao luxo de perder, nem mesmo por mera hipótese.

Sem meio termo, eles partem de premissas utopicamente


racionais ou de premissas descaradamente comerciais.

Não é à toa que o “financismo” produz estudos e recomenda-


ções que interessam apenas aos “financistas” e a mais ninguém.

No utopicamente racional, vale a luta infantil entre as


melhores projeções de inflação, PIB, EBITDA e lucro — sem
qualquer apelo prático.

Aquilo que Deirdre McCloskey ilustrou como “boys playing


games in their sandbox”.

Eu diria tratarem-se de garotos entretidos pela constru-


ção de castelos de areia, valorizando-os como se fossem cas-
telos de verdade.

No descaradamente comercial, ganha o analista que mais


gerar dinheiro para as operações do banco: empréstimos
-ponte, aberturas de capital, advisory para fusões & aquisi-
ções. Na verdade, quem ganha é o banco e, só depois, o ana-
lista. Não ganha o dentista.

Com a Empiricus — e com este livro, em particular — lu-


tamos pela definição de um novo tipo de “financista”. Aquele

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que é dentista cinco dias por semana e também sabe cuidar
dos seus investimentos. Aquele que entende quando lhe fa-
lam de finanças e se faz entender quando o assunto são fi-
nanças.

Pregamos um novo tipo de “financista”.

Como chegaremos lá? Contando histórias.

Quando decidi trazer este livro para este lado do Atlânti-


co, trabalhei exaustivamente com o Rodolfo para adaptar as
histórias para o universo português.

O objetivo aqui é facilitar a compreensão do nosso leitor


mais habituado às expressões e produtos financeiros locais.

Para isso dedicamos boa parte do livro a narrativas pes-


soais e coletivas que tocam em diversos campos do saber (e
do não saber). Aproximam, assim, a experiência de aprender
sobre investimentos à experiência quotidiana.

Temos que dançar dançando e investir investindo. Não


existe fórmula mágica, robôs, algoritmos ou guias definiti-
vos para o seu bolso. Pare de procurar por essas soluções ex-
ternas e comece a experimentar você mesmo.

As próximas páginas não vão prepará-lo para tornar-se num


investidor de sucesso, do quilate de Buffett ou Soros. Páginas

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escritas a ouro não poderiam prometer isso, pois Buffett ou So-
ros amparam-se, principalmente, em conhecimento tácito.

Veja só o que Buffett disse aos sócios da 3G quando ques-


tionado sobre a tomada de decisão num investimento: “Em
todas as ações e empresas nas quais investi, tomei a decisão em
menos de dois minutos. Gosto de olhar no olho de quem gere o
negócio e ver se ele é fanático, se se preocupa com os seus clientes
e se sente mal quando algum (cliente) é mal atendido’’.

O leitor não é Warren Buffett, mas já está preparado antes


mesmo deste prefácio.

Preparado não para um sucesso de capa de revista, mas


sim para o sucesso que nos interessa: cumprir necessidades
e satisfazer vontades financeiras, suas e da sua família, ao
longo de todo o seu ciclo de vida.

No Contra o Financismo falaremos de um método práti-


co e eficiente para investir em ações. O que esperar ao final
da leitura? Sem spoilers, vai aprender sobre Kafka, Tales de
Mileto e vai entender, também, como pensam Nassim Taleb,
Harry Markowitz, Benjamin Graham e Daniel Kahneman.

É como querer financiar o que há de bom.

Pedro Gonçalves

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INTRODUÇÃO

“Querido Pai,

perguntaste-me recentemente por que afirmo ter medo


de ti. Eu não soube, como de costume, o que te respon-
der, em parte justamente pelo medo que tenho de ti, em
parte porque existem tantos detalhes na justificação des-
se medo, que eu não poderia reuni-los no ato de falar de
modo mais ou menos coerente. E se procuro responder-te
aqui por escrito, não deixará de ser de modo incompleto,
porque também no ato de escrever, o medo e as suas con-
sequências me atrapalham diante de ti e porque a gran-
deza do tema ultrapassa de longe a minha memória e o
meu entendimento”.

19
Apesar de começar assim, este livro pouco tem de kafkia-
no. Ele não traz nenhuma ideia repressiva ou surreal. Tão
pouco simboliza um acerto de contas com a figura paterna.
Há outros motivos envolvidos desde o início.

Estas linhas primeiras, extraídas da Carta ao Pai de Kafka,


são uma homenagem amorosa aos nossos pais, mestres e a
todos aqueles que, de alguma forma, exerceram ascendência
intelectual sobre os autores.

Além desta gratidão pessoal, o trecho foi escolhido visan-


do rebater o facto estilizado — antigo e autoritário — de que
só o especialista em Gestão ou Economia pode fazer bons
investimentos. Aceitar este cliché é compactuar com uma li-
mitação intelectual cujos danos à saúde (financeira) são irre-
versíveis.

Ao longo dos próximos capítulos perceberá que os auto-


res têm uma ideia fixa na cabeça: seguindo lições simples,
o leigo pode sair-se inclusive melhor do que o profissional
financeiro. Usando a sua própria inteligência, o advogado, o
engenheiro ou o médico estarão habilitados a bater as reco-
mendações do gerente do banco, inclusive por larga margem.

Como bem nos ensinou o investidor Fernando Pessoa, a


coragem que vence o medo tem mais elementos de grandeza
que aquela que o não tem. Enfrentaremos corajosamente o

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estereótipo do financeiro sabe-tudo, amparados na certeza
de que uma mudança tangível na forma de tratar os seus in-
vestimentos poderá levá-lo a uma nova compreensão do que
é a rentabilidade.

Estamos a propor algo essencial: livrar-se da necessidade


de estar 100% certo nas teses de investimento. Em vez dessa
massagem ao ego, privilegiamos o foco total em ganhar di-
nheiro — seja nos campos filosófico, teórico ou prático.

Já não somos crianças a ponto de saber tudo. Abando-


námos há muito a obsessão por estarmos sempre corretos e
vencer a discussão. Agora temos um objetivo adulto: fazer os
nossos leitores mais ricos.

Se é daqueles que se preocupam com os melhores racio-


nais e os mais sofisticados métodos de investimento, vai
precisar entrar na fila do diploma de PhD. Antes que perca
tempo e dinheiro com cursos platónicos, precisamos dizer-
lhe que não vai adiantar.

Praticamente todos os modelos financeiros são simplifica-


ções grosseiras da realidade. E a realidade das ações é tam-
bém a realidade das empresas — que, por sua vez, carregam
uma complexidade muito grande para caber em folhas de
Excel.

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Fenómenos sociais não podem ser reduzidos a cartilhas
económicas. Ao tentar fazê-lo, não estamos apenas a simpli-
ficar a realidade, mas a distorcer o mundo, naquilo que a lin-
guagem técnica batizou de “não-ergodicidade”. Distorções de
interpretação nos investimentos têm um corolário imediato:
prejuízo.

Já se o leitor tem uma outra motivação — em vez de es-


tar certo, quer simplesmente ganhar dinheiro — então pode
abrir mão de ser um PhD. Reconhece a impossibilidade de
entender a realidade e tentar adivinhar o futuro. O ininteli-
gível não significa o “não inteligente”.

Em vez de procurar entender o mundo e fazê-lo caber em


poucas linhas de uma folha de cálculo, passe a aproveitar o
quanto não conhece. Em vez de lutar contra a sua ignorância,
beneficie-se dela. Como viver num mundo que não entende-
mos? Essa é, afinal, a tarefa.

Gostaríamos de saber das coisas, mas não é assim que


funciona. Como canta Caetano Veloso em Cajuína: “Existir-
mos, a que será que se destina?” Não sabemos, nem vamos
saber. Ora, então por que é que tentamos entender cada nota
de rodapé da realidade financeira, em vez de nos focarmos
em beneficiar-nos da nossa ignorância e da incerteza que nos
cerca?

22
Trazendo para a linguagem canónica das finanças, esta-
mos a propor um instrumental mais moderno frente ao típi-
co investimento em valor (value investing). Uma filosofia que
permita ganhos formidáveis (e intuitivos) no longo prazo ao
investidor.

Que fique clara a mensagem: qualquer um pode tornar-se


milionário investindo em ações. Não requer conhecimento
elaborado em Finanças. Exige apenas assumir que vai errar
várias vezes. Estar equivocado faz parte do processo. Basta
que perca pouco quando erra e ganhe muito ao acertar. Ao
fazer isso, um único acerto empurrará o conjunto da sua car-
teira para o positivo. O resumo é este.

Se reparar na Carta ao Pai, Kafka assume que a grandeza


do tema ultrapassa o seu entendimento. Se o sujeito é inca-
paz de entender a relação com o próprio pai, com quem es-
teve, até àquele momento, por 36 anos, como poderá com-
preender uma empresa ou uma ação? Não estamos aqui para
entender. Estamos aqui para triunfar.

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JOGO DE INFLUÊNCIAS

A organização (ou a falta dela) deste livro é curiosa. Reúne


relatos pessoais, casos reais, um pouco de filosofia e, mais im-
portante, o objetivo de mostrar a capacidade de o leigo superar
o profissional — falamos aqui especificamente do caso finan-
ceiro, mas estamos um tanto convencidos a esta altura de que
serviria para quase todas as disciplinas das Ciências Sociais.

Se tem alma engenheira, não se preocupe, pois este é


também um trabalho de alguns tecnicismos. Sob o ponto de
vista técnico, estamo-nos a inspirar no conceito de “antifra-
gilidade” tal como foi definido por Nassim Taleb. Trata-se,
obviamente, de interpretação própria dos autores, de modo
que as culpas serão sempre nossas, e de mais ninguém.

Esta veia técnica absorve o conceito de Taleb e relaciona-o


diretamente com o investimento em ações e demais ativos
financeiros. Grosso modo, estamos a afirmar que estratégias
desenhadas sob uma abordagem antifrágil são — ao menos
do ponto de vista filosófico — superiores àquelas do tradi-
cional investimento em valor ou a qualquer outro método
percebido.

Mas o leitor distante do mundo de Finanças não precisa


preocupar-se com isto agora. Tudo será explicado nas cenas
dos próximos capítulos.

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Antes que sejamos bombardeados por milhares de e-mails
das viúvas de Warren Buffett e Benjamin Graham, cumpre
esclarecer: não há absolutamente nada contra o value inves-
ting original. Pelo contrário, achamos que essa abordagem
funciona também. E já se provou historicamente adequada
para carteiras de ações de longo prazo.

Somos, sim, e continuaremos a ser admiradores desses


“monstros sagrados”. Estamos a defender apenas uma supe-
rioridade epistemológica na antifragilidade frente aos ensi-
namentos da Escola de Valor. Não precisamos ter medo dos
nossos pais e mestres. Se quiserem, ainda assim, mandar
e-mails em defesa de Buffett (como se ele precisasse), res-
ponderemos com prazer.

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UMA RAIZ FILOSÓFICA

“É curioso como não sei dizer quem sou.


Quer dizer, sei-o bem, mas não o posso dizer.
Sobretudo tenho medo de o dizer
porque no momento em que tento falar
não só não exprimo o que sinto
como o que sinto se transforma lentamente no que digo”.
Clarice Lispector

Um bebé precisa ser capaz de catalogar os nutrientes do


leite materno antes da amamentação? Ciclistas do Tour de
França estudam noções cinéticas essenciais à Engenharia
Mecânica?

Repare, não é por que o leitor não entende uma coisa que
ela não existe. Há o conhecimento passível de narrativa/for-
malização e há o mais opaco. Com o perdão da palavra, eu,
imitando a Clarice Lispector, sou um mistério para mim.

Na escola, misturávamos História Antiga e Mitologia Gre-


ga, temperando a salada com dúvidas — algumas filosóficas
— sobre o que era a Filosofia. Não sabia se o tal Aristóteles
era Deus, semideus, herói ou humano. Recentemente fiquei
feliz em saber que pertencia à última categoria. Ele também
cometia erros. Se fosse herói, teria — como os outros —
morrido de overdose.

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Deixe-me contar-lhe uma história rápida.

Tales de Mileto, matemático e filósofo pré-socrático, em-


bora dotado de competências mercantis razoáveis, vivia uma
vida sem luxo. Por isso, enfrentava com frequência críticas
inspiradas no dito popular da época: “aqueles que podem, fa-
zem; os outros filosofam”.

Numa tentativa de demonstrar que a sua opção pela fi-


losofia derivava de um interesse genuíno (e não da falta de
alternativas), alugou todas as prensas de azeite de Mileto e
arredores num momento supostamente adverso para a co-
lheita.

Como tal, fez um pagamento antecipado muito barato (já


que tudo indicava má colheita), garantindo o aluguer futuro
das prensas. As condições climáticas entretanto mostraram-
se profícuas e renderam uma colheita altamente produtiva,
fomentando a procura por prensas e trazendo grandes lucros
para Tales.

Aristóteles interpretou esta história como uma demons-


tração da capacidade de Tales de antecipar condições climá-
ticas favoráveis à colheita, graças aos seus conhecimentos de
astrologia. Na leitura aristotélica, a razão do filósofo teria
sido a força por detrás do seu enriquecimento.

27
Não concordamos.

Na verdade, a coisa funciona precisamente na direção con-


trária: os lucros vieram do aproveitamento da ignorância e
não do conhecimento. Tales estava na posição de beneficiar-
se fortemente de um resultado positivo, tendo, em contra-
partida, a sua perda limitada pelo pagamento antecipado e
barato.

Paga-se um preço baixo para expor-se a uma oportunida-


de de grandes lucros. Perde-se pouco em caso de resultado
negativo e ganha-se muito em caso de se estar certo. Esta é a
ideia central da antifragilidade.

Há uma separação importante entre os talesianos e os


aristotélicos. Os primeiros preocupam-se com os efeitos prá-
ticos da exposição, com os payoffs e as consequências práti-
cas de cada ação, enquanto os últimos focam o conhecimento
per se, a preocupação vaidosa do estar certo ou errado.

Dada a impossibilidade de se prever o futuro e adivinhar


qual o cenário que vingará, o foco nos impactos (e não o
evento em si) é a coisa mais importante para investimentos
bem feitos.

28
A HORA DE DEFINIR

“Eu errei mais de nove mil lançamentos na minha carreira.


Perdi quase 300 jogos. Em 26 vezes confiaram-me
a bola do jogo e eu errei. Eu falhei, falhei e falhei outra vez
na minha vida. E é por isso que eu prosperei”.

Quem disse isto foi o maior jogador de basquetebol de to-


dos os tempos, num famoso anúncio da Nike. Sim, Michael
Jordan entendeu o ponto. O desporto, o empreendedorismo
e o investimento são todos processos de tentativa e erro.

O erro faz parte das situações que envolvem incerteza.


Não dá para tentar domesticar o desconhecido, tratando a
realidade com a mesma complexidade de um jogo de vídeo ou
de casino, em que os cenários potenciais e as probabilidades
de ocorrência são conhecidas a priori.

Interessante como empresários entendem facilmente o


ponto, mas académicos e afins passam ao lado da questão.
Veja como pensa Jorge Paulo Lemann - 22º homem mais rico
do mundo — da 3G Capital: “Claro que é da natureza humana
querer que a incerteza vá embora. Mas esse desejo pode levá-lo a
agir rápido, às vezes rápido demais. De onde eu venho, percebe
rapidamente que a incerteza jamais desaparecerá, não importa
quais as ações ou decisões que tomemos”.

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Preâmbulos feitos, por quê o nome estranho de antifragi-
lidade? Sem precisar recorrer ao dicionário — ok, pode con-
ferir se quiser —, o que é frágil? Basicamente, é algo que se
parte facilmente aquando de um choque. E qual o contrário
de frágil? Com frequência, apontam-se supostos antónimos
como forte, vigoroso, robusto.

Ora, o contrário de negativo não é neutro, mas sim posi-


tivo. De maneira análoga, o antónimo de frágil não pode ser
simplesmente algo que resiste estoicamente a um choque.
O oposto de frágil deve beneficiar-se de um choque. Na au-
sência de outro termo pré-existente, ficámos com antifrágil:
aquilo que se beneficia do impacto, da turbulência, da incer-
teza, da volatilidade, da ignorância, do desconhecido.

Esmiuçando a coisa, definições um pouco mais formais


para o propósito deste livro seguem abaixo:

•• Frágil: toda a coisa ou situação em que as perdas au-


mentam mais do que proporcionalmente conforme a
intensidade do choque negativo; os ganhos, por sua
vez, aparecem em intensidade inferior àquela do cho-
que positivo.

•• Robusto: toda a situação ou coisa com resposta linear


à intensidade do choque.

30
•• Antifrágil: toda a coisa ou situação em que os ganhos
aumentam mais do que proporcionalmente conforme
a intensidade do choque positivo; as perdas, por sua
vez, ficam maiores em intensidade inferior à do cho-
que negativo.

Uma chávena é frágil ao impacto. Vários choques muito pe-


quenos não vão parti-la. Um único golpe um pouco mais for-
te, porém, e estará desfeita. O corpo humano é frágil à altura.
Dez quedas de 50 centímetros causam pouca (ou nenhuma)
lesão. Uma única queda de cinco metros pode ser fatal.

Atirar 1.000 pedras de 100 gramas a uma pessoa pode ser


desprezível. Basta uma pedra de 100 kg para empurrar o ci-
dadão para o andar de cima. Em cada uma destas situações,
o resultado negativo (prejuízo ou perda) aumenta em veloci-
dade superior à da intensidade do choque.

Em contrapartida, a compra de um seguro para a sua casa


pode ser antifrágil. Quanto mais extremo for um evento —
exemplo: incêndio — mais terá valido a pena fazer o seguro.

Pequenos choques não mexem muito consigo, mas algo


impactante deixá-lo-á satisfeito por ter feito o seguro (im-
portante frisar que falamos da contratação do seguro e não
da perda da casa em si). Os ganhos de felicidade em ter con-
cordado com o mediador serão maiores conforme a intensi-

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dade do choque — se é que é possível alguma felicidade de-
corrente de conversas com mediadores de seguros.

Quando se está diante de algo frágil, um evento adverso vai


trazer-lhe grandes perdas. E quanto mais adverso, maiores as
perdas. Já um evento positivo traz poucos ganhos, que crescem
em ritmo lento à medida que o resultado favorável se intensifica.

Em contrapartida, na antifragilidade, um evento adverso


traz-lhe poucas perdas. E se o evento se vai tornando ainda
mais adverso, o tamanho das perdas vai aumentando lenta-
mente, ou nem sequer aumenta. Enquanto isso, um evento
positivo traz grandes ganhos que sobem rapidamente com a
intensidade do cenário favorável.

Resume-se a coisa assim: o frágil não gosta de volatilidade


e eventos extremos. Além disso, em situações de fragilida-
de, o leitor perde muito se estiver errado e ganha pouco se
estiver certo. Analogamente, o antifrágil adora volatilidade
e eventos extremos. Sob antifragilidade, perde pouco se esti-
ver errado e ganha muito quando acerta.

Pense comigo: quando faz o seguro da casa, o leitor não


acha necessariamente que a sua casa vai pegar fogo. Mas, se
estiver errado, perderá apenas o valor do prémio. Certamen-
te, um pequeno prejuízo face à possibilidade de arcar com
todo o património imobiliário.

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VAMOS POR PARTES

O livro é estruturado da seguinte forma: da apresentação


dos pilares ortodoxos do investimento em valor para a defe-
sa da superioridade filosófica da antifragilidade.

O primeiro capítulo introduz o value investing tradicional.


Colocamos aí os principais conceitos do Investimento em Va-
lor a partir dos ensinamentos clássicos de Benjamin Graham
e Warren Buffett.

Tratamos também da evolução da Escola de Valor, pas-


sando da maior importância dada ao passado, conforme as
determinações iniciais de Graham, para posterior possibili-
dade de se incorporarem fluxos futuros na determinação do
valor de uma empresa, tratando ainda da influência de Philip
Fisher sobre Warren Buffett.

A secção é fechada com a exposição de um Modelo de Flu-


xo de Caixa Descontado, e de como o método remete ao mito
da Cama de Procustos.

A segunda parte aborda as armadilhas canónicas que le-


vam a uma discussão mais ampla sobre o que é valor. Exis-
tiria mesmo uma aparente verdade aristotélica capaz de cra-
var com precisão qual o valor de uma empresa?

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Recado antecipado: não há somente armadilhas de valor;
o próprio valor é uma armadilha. Em rigor, os riscos escon-
didos e os eventos imprevisíveis são aqueles que acabam de-
terminando a evolução de um ativo financeiro. Isso remete
ao problema clássico da indução de David Hume e aos tais
cisnes negros de Nassim Taleb.

O terceiro capítulo faz um apanhado sobre a inadequação


da hipótese de que podemos conhecer os fluxos de caixa fu-
turos e, portanto, o valor de uma empresa. O investidor é
um ser humano — e não um sujeito capaz de fazer cálculos e
processar informações perfeitamente. O Homem é uma coisa
e aquilo que a Teoria Económica chama de Homo Economicus
é outra, bem diferente.

A quarta parte funciona como uma espécie de ressalva.


Expõe como Buffett é, na verdade, muito mais complexo do
que os livros sobre ele supõem. Letras não são capazes de dar
a devida precisão à abordagem buffettiana do ponto de vista
prático.

Muito do processo de investimento apoia-se em conheci-


mento tácito, há um grande reducionismo nas narrativas e
boa parte dos casos de sucesso de Warren Buffett esteve, a
rigor, mais associada ao growth investing (investimento em
crescimento futuro e não em valor).

34
E se Buffett responde pelo tradicionalismo em ações,
Markowitz faz o mesmo para a montagem de portfólio. O
capítulo subsequente versa exatamente sobre o platonismo
de uma tal fronteira eficiente que inclusive ganhou o prémio
Nobel da Economia.

As premissas são completamente impertinentes e o objeti-


vo aqui é mostrar como um portfólio composto por 90%/95%
de um ativo sem nenhum risco, combinado com uma peque-
na parcela (10%/5%) de algo muito arriscado — com a óbvia
contrapartida de bom retorno potencial —, é superior a uma
carteira feita por vários ativos de risco médio. Novamente, o
problema dos riscos escondidos.

O sexto bloco representa o ponto máximo da argumenta-


ção. Definimos em detalhes a abordagem filosófica e teórica
da antifragilidade para então mostrarmos como a coisa fun-
ciona na prática. Daremos exemplos reais de investimentos
baseados na antifragilidade, porque isto aqui não é cultura
de enciclopédia.

Por fim, o sétimo capítulo faz a conclusão dos argumentos


anteriores. Só há uma forma de aprender a cozinhar: cozi-
nhando. Grosso modo, é assim também com os investimen-
tos. Faça você mesmo.

35
36
I. QUER INVESTIR EM VALOR?

Este não é um livro sobre value investing. Pelo menos nestas


páginas, não estamos obcecados em investimento em valor,
escola de valor ou qualquer outro nome a gosto do freguês
que envolva “valor”. Há centenas de livros na área. Alguns são
bons, mas tenho a dizer-lhe que deve desconfiar de muitos.

Por ora, queremos apenas apresentar o value investing da


forma como bem (ou mal) entendemos. É histórica a incapa-
cidade de estabelecer uma visão definitiva sobre investimen-
to em valor. Portanto, vamos mostrar aqui como nós vemos
a coisa no nosso dia-a-dia de analistas. Na verdade, o inves-
timento em valor é simples de entender — de implementar,
nem tanto.

37
Num esforço didático, acho que dá para resumir a filosofia
em dois pilares centrais:

i. Uma ação é a menor representação do capital próprio


de uma empresa.

ii. Podemos estimar com alguma precisão o valor de uma


companhia. A esse número dá-se o nome de valor in-
trínseco — por ser indissociável e íntimo à empresa.

Ora, se uma ação é — em última instância — uma empre-


sa, e eu posso calcular o valor dessa empresa, então tenho
uma sequência lógica: o preço da ação deve convergir para o
valor intrínseco.

Basta o sujeito calcular o valor intrínseco e olhar para o


preço da ação, de modo a capturar distorções entre ambos.
Se o preço da ação for inferior ao valor intrínseco, o leitor
compra. Caso contrário, vende.

Bebendo da fonte ipsis litteris, Warren Buffett caracteriza


o seu método como a forma de se comprar algo que vale um
dólar (valor) por cinquenta cents (preço). E citando outra fra-
se clássica do oráculo de Omaha: se um negócio vai bem, no
fim das contas a ação acaba por refletir isso, numa referência
explícita à convergência.

38
Aparentemente, tudo se resume em saber o valor intrín-
seco, dado que o preço da ação é informação pública. Aqui já
vale a pena atentar para certas nuances da metodologia...

A afirmação de que a ação é a menor fração do capital


próprio da empresa decorre de uma constatação contabilísti-
ca e jurídica — e ignora razões práticas de que quem forma
o preço da ação é o mercado e, por conseguinte, investidores.
Todas as vicissitudes da interação social dos agentes de mer-
cado são simplesmente ignoradas.

Já a ideia de que existe um valor intrínseco passível de


estimativa não provém da dedução lógica. Ao contrário, é
premissa do modelo, proveniente da suposta observação em-
pírica de Benjamin Graham (precursor do value investing) lá
por meados do século XX — sim, bem antes da Internet e da
atual pluralidade de informações. Assume-se que é assim e
ponto final.

O próprio Graham chegou a ser questionado sobre a jus-


tificação por detrás da convergência entre preço das ações e
o seu valor intrínseco, ao que respondeu da seguinte forma:
“Não sei explicar o porquê. Simplesmente é assim. Tenho ob-
servado esse comportamento durante vários anos”.

Explicação clara e indubitável: a convergência é uma hi-


pótese assumida ad hoc. Basta sentar no sofá de uma sala

39
(eterna?) de espera e aguardar a chamada da sua senha para o
paraíso da precificação.

De volta ao purgatório, tudo se resume ao cálculo do valor


intrínseco — essa espécie de verdade aristotélica de quanto
vale precisamente uma empresa, a reger o cosmos financeiro.
Como definir esse demónio?

Originalmente, conforme os ensinamentos de Ben


Graham, o valor intrínseco seria definido a partir dos bens
e direitos já detidos pela companhia. Ao contrário da Maya,
Graham não era astrólogo, nem conhecia a história do prin-
cípio ao fim. Apoiava-se no presente e no passado para deter-
minar o valor de uma firma. Toda a informação era extraída
de demonstrações de resultados e balanços já divulgados.

Em meados do século XX, adivinhar o futuro significava in-


troduzir elementos da ficção na análise de ativos financeiros.
Uma vez, Graham chegou a dizer: “a combinação de fórmulas
precisas e suposições imprecisas pode ser usada para estabe-
lecer ou justificar qualquer valor desejado, por mais alto que
seja”. Versão mais elegante para a seguinte afirmação rápida e
rasteira: “as folhas de projeção aceitam qualquer coisa”.

Uma das formas preferidas de Graham para estimar o


valor intrínseco apoiava-se essencialmente no património
líquido da empresa. Racional bastante simples: ora, se uma

40
ação é cotada a preço inferior ao dos ativos menos as suas
obrigações financeiras, então o seu valor real está acima da-
quilo, configurando-se num ponto de entrada.

Anomalias ainda mais gritantes seriam descontos no va-


lor da ação relativamente à soma dos ativos correntes, ou até
mesmo na comparação com o montante detido em caixa.

Além de observações a respeito do património líquido ou


dos seus ativos mais líquidos, distorções em relação ao NAV
(Net Asset Value; valor do ativo líquido) ou o seu valor de
liquidação merecem atenção.

Grosso modo, o primeiro representa o valor de todos os


ativos da companhia, apreçados corretamente a partir de
cotações de mercado, subtraídos das suas obrigações finan-
ceiras. Já o valor de liquidação oferece a ideia do quanto a
companhia poderia subir caso fosse vendida integral e ime-
diatamente.

Warren Buffett gosta de lembrar que haverá sempre a op-


ção de liquidar um negócio e ir embora caso as coisas não
corram bem — por isso, observa com relativa frequência des-
contos relativamente ao valor da liquidação.

Para encerrar a exposição inicial, cito a descrição do próprio


Graham para a sua maneira original de investir em ações.

41
“O meu primeiro método, mais limitado, contempla com-
pra de ações a preços inferiores ao valor dos ativos cor-
rentes, sem dar nenhum peso à fábrica e a outros ativos
fixos, e subtraindo todas as obrigações financeiras da
firma. Nós usámos extensivamente essa técnica na ges-
tão de fundos de investimento e, por um período difícil
de 30 anos, devemos ter ganhado aproximadamente 20%
ao ano. Numa altura, entretanto, depois de meados dos
anos 50, esse tipo de oportunidade ficou bastante raro
por conta do persistente otimismo generalizado. Depois,
as oportunidades voltaram com maior frequência com a
queda de 1973/74. Em janeiro de 1976, contámos 300
situações como esta no stock guide da S&P, cerca de 10%
do total”.

Há também um outro método de Graham, similar ao pri-


meiro na sua filosofia:

“Comprar grupos de ações a preços inferiores ao seu valor


intrínseco, indicado a partir de um ou mais critérios sim-
ples. O critério que eu prefiro é a relação de sete vezes os
lucros reportados nos últimos 12 meses. Poderá usar ou-
tros — como o retorno corrente de dividendos acima de
sete por cento ao ano ou o valor contabilístico superior ao
preço da ação em 120%, etc. Nós estamos a terminar um
estudo de performance dessas abordagens ao longo da

42
última metade de século (1925-1975). Elas geram consis-
tentemente um retorno de 15% ou mais por ano, equiva-
lente a duas vezes o desempenho do índice Dow Jones em
igual intervalo. Tenho muita confiança no seguinte tripé
deste método: lógica sólida, simplicidade da aplicação e
um excelente histórico. No final, é uma técnica que per-
mite ao verdadeiro investidor explorar o excesso de oti-
mismo ou de apreensão inerentes à especulação alheia”.

43
PESCADOR DO FUTURO

Sou do tempo dos videoclubes. Religiosamente aos sába-


dos escolhia um filme. Eu tinha dois heróis e insistia com o
meu pai para trazer-me pelo menos um deles: Rocky ou o
Regresso ao Futuro. Sem isso, o meu fim de semana estava
estragado. Decorei até as frases do Paulie e nunca me esque-
cerei da engraçada previsão do Dr. Emmett Brown de que Ro-
nald Reagan seria presidente dos EUA.

Rocky Balboa era um semideus, símbolo da superioridade


da intuição, da sabedoria de rua e da improvisação sobre o
tecnicismo. Como um bom herói, poderia ter também mor-
rido de overdose (de esteroides), mas ele aí está firme e hirto
até hoje. Marty McFly, por sua vez, representava o novíssimo
e o skate voador.

Desde então, sou um apaixonado pelo futuro, mas confes-


so: já desisti de entendê-lo. Virei uma espécie (menos santa)
de Madre Teresa. “O ontem já foi. O amanhã ainda não che-
gou. Nós só temos o hoje. Vamos começar”.

Philip Fisher pensava diferente. O professor da Stanford


Graduate School of Business e fundador da consultora finan-
ceira Fisher & Co. é tido como o precursor do growth inves-
ting, em traços gerais a capacidade de o crescimento futuro
acumular valor.

44
A ideia central de Fisher é a de que determinados negócios
oferecem uma boa dose de certeza sobre a sua capacidade de
expansão — assim, na avaliação de uma companhia, negli-
genciar o componente de crescimento poderia levar à preci-
pitada conclusão de que uma ação está cara quando, na ver-
dade, mostra-se barata se contemplar o rendimento futuro.

Em manuais superficiais de finanças, o growth investing


é apresentado como diametralmente oposto à abordagem
value. Eu, que posso ser leve como uma brisa ou forte como
uma ventania, não gosto de colocar as coisas dentro de gave-
tas sem fundo falso.

Discordo, portanto, de qualquer antagonismo — Fisher


é complementar a Graham. A alegação é corroborada pela
autoavaliação de Warren Buffett, o maior expoente do value
investing, resumindo a si mesmo como 85% Graham, 15%
Fisher.

Filosoficamente, Fisher não trouxe grandes novidades à


ideia de valor intrínseco e convergência de preços. Apenas
reconheceu uma firma como uma entidade viva, com bens e
direitos variando mediante a passagem do tempo.

Por conseguinte, o valor intrínseco pode ir crescendo com


a empresa. Saímos de uma abordagem mecanicista, que trata
o valor da companhia como um parâmetro, para uma perspe-

45
tiva menos newtoniana, em que o valor intrínseco torna-se
uma variável.

Obcecado por vantagens competitivas de longo prazo,


Fisher apresentou na sua obra mais emblemática — Common
Stocks and Uncommon Profits — uma espécie de guia quali-
tativo para a identificação de empresas bem geridas e com
oportunidades de sólido crescimento no futuro, batizado de
Fifteen points to look for in a common stock.

A apresentação desses 15 pontos para procurar numa ação


resume o essencial sobre growth investing. Não é à toa que
perdemos tempo com isso. O reconhecimento de um futuro
gerador de valor é a centelha para uma série de problemas
epistemológicos na análise de ações (chegaremos lá). Por
agora, seguimos o guia de Fisher:

1. A companhia dispõe de produtos/serviços com poten-


cial de mercado suficiente para fazer crescer as suas
vendas com vigor durante vários anos? Uma empresa
que olha um período consistente de crescimento ex-
pressivo precisa estar diante de mercados grandes e
em expansão.

2. Existe obstinação dos administradores da empresa


por novos produtos/processos capazes de dar um novo
salto às vendas quando os serviços anteriores já esgo-

46
taram as suas possibilidades? Todos os mercados en-
contram a sua maturidade e, para manter crescimento
acima da média por um período de décadas, uma em-
presa necessita desenvolver novos produtos para ex-
pandir o mercado atual ou encontrar um novo.

3. Quão efetiva é a área de pesquisa e desenvolvimento


da companhia relativamente ao seu tamanho? Para
desenvolver um novo produto, o esforço em R&D (Re-
search & Development) precisa ser eficiente.

4. O tamanho da equipa de vendas é superior à média de


mercado? Poucos produtos e serviços são tão atrativos
a ponto de maximizarem o seu potencial sem o devido
emparelhamento da área comercial e de marketing.

5. A margem líquida compensa? Uma empresa pode


crescer uma enormidade, mas a expansão deverá ser
acompanhada de lucros capazes de remunerar os seus
investidores.

6. O que tem sido feito em favor da margem de lucro?


Não importa a margem líquida do passado, mas sim
a do futuro. A inflação exercerá pressão sobre as mar-
gens e a concorrência vai tentar empurrar os preços de
mercado para baixo, de modo que precisamos monito-
rizar a atividade em prol da redução de custos.

47
7. A companhia oferece um bom clima para trabalho em
grupo? Uma empresa é feita de pessoas e pessoas mais
felizes produzem mais. É capcioso medir isso, mas
pode procurar por boas políticas de remuneração e
analisar a forma como o top management trata os de-
mais empregados.

8. A empresa pauta-se por incentivos meritocráticos?


Procure por mérito nas promoções e salários que reco-
nheçam diferenciais de produtividade. Evite ambien-
tes de nepotismo ou politiquices.

9. Existe uma cultura enraizada — com a devida profun-


didade no management — capaz de transcender uma
única gestão? Estamos à procura de crescimento que
dure décadas, sendo nevrálgica uma amostra grande
de talento do management por gerações e gerações.
Alerta adicional sobre management relutante em de-
legar funções.

10. A análise de custos e a contabilidade são suficiente-


mente boas? Não dá para crescer de forma sustentada
sem saber exatamente como se comportam os custos
de cada etapa das operações.

11. Há algum atalho, uma dica ou qualquer coisa que pos-
sa fazer o investidor perceber as vantagens competiti-

48
vas daquela empresa relativamente aos competidores?
É importante ao investidor entender de onde vêm os
fatores de sucesso daquela firma e como ela lida com a
concorrência.

12. Qual é o horizonte temporal das perspetivas de lucro?


Curto ou longo? Fisher manteve sempre horizontes
dilatados nos seus investimentos. Exigia isso das em-
presas também. A obsessão por atender a estimativas
de lucros trimestrais por vezes representa a perda de
grandes oportunidades de longo prazo.

13. O crescimento futuro exigirá levantar dinheiro via


emissão de ações e, portanto, diluirá os acionistas an-
tigos? A empresa tem de conseguir financiar-se com
fluxo de caixa próprio ou a partir da dívida, sem pedir
sistematicamente dinheiro aos acionistas.

14. A gestão dialoga com a comunidade financeira de for-


ma ampla e transparente na bonança, mas não quer
conversa aquando de um período de vacas magras?
Todo o negócio vai ter os seus percalços. Escolha em-
presas dispostas a mostrar todo o aspeto do negócio,
as suas partes boas e más — é preciso conhecer o ini-
migo e, portanto, é importante conversar também so-
bre os pontos fracos.

49
15. Por fim, a integridade dos administradores é inques-
tionável? Para Fisher, o investidor jamais deveria co-
locar o seu dinheiro na ação de uma empresa cujos do-
nos não se relacionam com o mercado de forma 100%
confiável.

Pronto: aqui tem 15% do cérebro de Warren Buffett. É


bom, mas preferiria 15% do seu património, não era?

50
BICHO DE SETE CABEÇAS

Reconhecida a capacidade de o futuro agregar valor, che-


gamos ao palavrão maior, o modelo de Fluxo de Caixa Des-
contado (Discounted Cash Flow ou simplesmente DCF). O
nome é longo, mas não me assusta, nem vai assustá-lo a si
também.

Quanto pagaria por um bilhete da seguinte lotaria: ela


premeia-o com €100 no cenário A e com €0 no cenário B. A
oportunidade de cada uma das ocorrências é a mesma, 50%.

A (€100, 50%)
(50% x 100) + (50%x 0) = €50
B (€0, 50%)

Se não é uma pessoa avessa a riscos, está disposta a pagar


€50 para participar neste jogo. É o valor esperado da lotaria,
nada mais natural. O valor de um jogo — análogo ao valor de
uma empresa — dá-se justamente pelas suas entradas líqui-
das de caixa ponderadas pelo futuro.

Ora bem, o valor de uma empresa vem da projeção dos


seus fluxos de caixa. Evidentemente, um mesmo número não
representa a mesma coisa hoje e amanhã. Há um custo do di-
nheiro intimamente associado ao tempo, e esse custo é dado
pela taxa de juro. Logo, é preciso descontar os fluxos de caixa
futuros da empresa a uma determinada taxa de juro.

51
O modelo de Fluxo de Caixa Descontado foi original-
mente formalizado na tese de doutoramento de John Burr
Williams, posteriormente incluída na obra The theory of in-
vestment value.

A ideia é intuitiva e está alinhada com os princípios filo-


sóficos do value investing. John explica que o valor de uma
empresa é definido pela soma dos fluxos de caixa esperados
de hoje até o infinito, trazidos até ao tempo presente pela
taxa de juros apropriada. E se a ação é um pedaço de uma em-
presa, o valor da ação decorre facilmente do cálculo anterior.

Depois de ler as próximas linhas, talvez pense que tenho


algo pessoal contra o DCF. Juro-lhe: ele nunca me tratou mal
nem me negou uma boleia. A minha relação com o Fluxo de
Caixa Descontado parte de uma história curiosa, mas as crí-
ticas são essencialmente técnicas, ok?

Por influência do meu pai, que é um contabilista da velha


guarda, comecei cedo a olhar para balanços e demonstrações
de resultados.

Fique tranquilo, não há trauma nenhum nisso. O resto da


adolescência foi todo normal — com exceção de uma dedica-
ção imbecil aos estudos. Natural, também, acabou por ser a
escolha na área das Ciências Económicas; nem sei se foi mui-
to bem “escolha”...

52
Estava no último ano do mestrado quando surgiu uma
vaga de estágio. Eu tirava boas notas, mas faltava a compo-
nente prática.

- Pedro, existe uma vaga. É a tua cara. Eles estão a montar


uma área especial na consultoria, voltada para análise de ações.
Querem gente nova, dedicada e com flexibilidade de horário. Pos-
so mandar o teu currículo?

Então lá fui eu para uma rodada de perguntas com o RH


de um conhecido banco da praça lisboeta. O salário era mi-
serável e mal dava para pagar o almoço, mas servia como um
primeiro contacto com o mundo do trabalho.

A Dra. Cristina, muito atenciosa, conversou comigo por


uns 45 minutos e disse ter gostado de mim. No final, pediu
um trabalho de casa: uma avaliação da EDP.

De forma a facilitar a vida ao candidato, o banco encami-


nha um template do modelo DCF. O excel continha mil li-
nhas, separadas em oito abas diferentes. Arrisquei-me numa
inicial masturbação com os números. Mas logo percebi que
aquilo era tão absurdo que poderia preencher as células com
qualquer coisa que me viesse à cabeça. Uma clara transcrição
quantitativa do que é a subjetividade.

53
Se eu estivesse otimista com a empresa, colocaria núme-
ros alinhados a um bom prognóstico de crescimento e ex-
pansão de margens. Estava feito um DCF capaz de entregar
uma ação atrativa, descontada se comparada ao seu valor
intrínseco. Já se eu não gostasse da empresa, embutiria rit-
mo fraco das receitas e margens estagnadas, deixando a ação
cara.

Talvez ainda pior: uma única linha no meio daquelas mil


seria suficiente para mudar tudo. A alteração de uma célula
tornaria o caro barato e vice-versa, com variações radicais
sobre o valor intrínseco.

Por ironia, aquilo despertou a minha atual vocação. Se há


algum uso para mim nesta vida, é como analista de ações. E
não vou compactuar com um método que pressupõe preen-
chimento exato de mil linhas. Desde então, firmei este com-
promisso ético e moral. Como resume Taleb: se observas uma
fraude e não a apontas, então também és uma fraude.

54
REI NU, REI POSTO

Quero deixar o rei nu. Vamos construir juntos um modelo


de DCF para o leitor ver com os próprios olhos as doses de
absurdo envolvidas. O financeiro engravatado tenta, plato-
nicamente, fazer com que a realidade complexa caiba numa
folha de Excel.

A melhor forma de aprender sobre um método (e suas


fragilidades) é pela via da aplicação prática. Então, vamos lá
enfrentar o gigante Adamastor, o monstro dos mares nunca
dantes navegados.

As nuances técnicas são aborrecidas e podem soar ainda


mais monótonas para o leitor não técnico. Mas não se preo-
cupe: delas não depende o cerne da questão, visto que podem
ser ignoradas sem nenhuma perda relevante de conteúdo. O
aparato técnico configura apenas um reforço adicional ao ar-
gumento. Quando surgir uma fórmula que o canse, vá direto
ao parágrafo seguinte.

Retomemos o conceito de DCF novamente para deixar as


coisas mais fáceis. Entre a repetição e a confusão, prefiro a pri-
meira. O modelo de Fluxo de Caixa Descontado tem a preten-
são de definir o valor de uma empresa a partir da soma dos
fluxos de caixa projetados, a partir de hoje até ao infinito, tra-
zidos ao valor presente por uma taxa de desconto adequada.

55
Por imposição lógica, tudo começa, portanto, com a deter-
minação dos fluxos de caixa.

Funciona basicamente assim: partimos da receita bruta,


daí tomamos fôlego para subtrair o Custo das Mercadorias
Vendidas e Matérias Consumidas, obtendo o lucro bruto.

Receita Líquida — CMVMC = Lucro Bruto

Retiramos custos de vendas, gerais e administrativas e


chegamos ao lucro operacional.

Lucro Bruto — Custos Operacionais = Lucro Operacional

Somamos então a Depreciação, mas retiramos os gastos


com investimento (Capex) e a variação do Fundo de Maneio
(FM).

Lucro Operacional + Depreciação — Capex — FM = FC

Pronto! Temos o fluxo de caixa da empresa num dado pe-


ríodo.

Faremos o nosso modelo aqui para uma empresa de reta-


lho. Poderia ser qualquer uma. Cada qual tem uma especifi-
cidade, mas a essência é a mesma.

56
Na primeira linha, a receita bruta é, por definição, a mul-
tiplicação de duas variáveis: a quantidade vendida e o seu
respetivo preço. Coisa fácil. Basta prever quanto é que a em-
presa vai vender e o número cobrado por cada unidade.

Para uma companhia de retalho, em particular, a estima-


tiva de faturação é normalmente separada entre lojas exis-
tentes e lojas novas. Dá-se como certo o crescimento para as
lojas já maduras (conceito usual de “same store sales”) e uma
curva de maturação para as novatas, sob premissa de evolu-
ção gradual das vendas conforme a experiência histórica.

Também precisamos pensar nos componentes de inflação


e como é que a empresa vai conseguir remarcar os preços.
Desta forma matamos o primeiro passo.

Quanto ao lucro bruto, ele é dedutível de duas maneiras:


ou estima cada linha de custo dos produtos vendidos ou sim-
plesmente projeta uma percentagem para a margem bruta.
Seja como for, passamos aqui necessariamente pelo conhe-
cimento do custo de todas as matérias-primas e dos indica-
dores de eficiência da empresa no trato dos elementos que
entram na produção dos bens ou serviços.

Uma vez na posse do Lucro Bruto, queremos chegar ao Lu-


cro Operacional, certo?

57
Novamente, de duas formas possíveis: supor diretamen-
te uma margem operacional ou passar, linha a linha, pelas
despesas de vendas, gerais e administrativas (no jargão em
inglês, SG&A).

Neste caso, precisamos conhecer a estratégia de marke-


ting, política de remuneração, eventuais comissões, despedi-
mentos e outras nuances. Não à toa, o tal SG&A é conhecido
como a mala da mulher da demonstração de resultados, onde
cabe tudo e onde ninguém encontra nada.

Agora só faltam três coisas até ao Fluxo de Caixa do pri-


meiro ano: gastos com investimento (no jargão inglês, Ca-
pex), Depreciação e variação do Fundo de Maneio.

O Capex depende da decisão empresarial de quanto apli-


car para expansão ou manutenção da capacidade. A depre-
ciação é feita normalmente como um patamar fixo por ano
(20% do ativo fixo, por exemplo). Já a variação do fundo de
maneio exige nada menos do que a estimativa de todos os
ativos e passivos mais dinâmicos da empresa.

Como hipótese (bem) simplificada, normalmente atribui-


se uma percentagem da variação da receita como proxy da
variação do fundo de maneio. Aí reside a ideia de que, se a
empresa está a crescer a um determinado ritmo, precisa ad-
ministrar os ativos correntes líquidos a um ritmo análogo.

58
Pois bem, por meio desse esforço rápido, temos o Fluxo de
Caixa do primeiro ano. Replicamos o mesmo exercício para
todos os restantes anos, até ao infinito, e trazemos a soma
total ao valor atual pela Taxa de Desconto apropriada.

Nem mesmo os financeiros mais encartados vão perder


tempo a estender o cálculo até ao infinito. A rotina manda
projetar os fluxos de caixa num intervalo prático (cinco, 10
ou 15 anos) e posteriormente assumir que o negócio anali-
sado entra em regime de perpetuidade — isto é, a crescer a
uma velocidade constante.

Por conseguinte, deparamo-nos com a soma de dois blocos


temporais distintos. O primeiro deles contempla o horizonte
efetivo da projeção e o outro vem da perpetuidade.

É fácil encontrar uma fórmula para a perpetuidade, matemá-


tica ancestral. Ela é a soma dos termos de uma progressão geo-
métrica infinita e convergente. Na dúvida, o Excel faz-lhe isso.

Da nossa parte, tudo o que precisamos saber para o cál-


culo da perpetuidade é (i) qual o ritmo de crescimento da
empresa quando ela atinge a maturidade e (ii) qual a Taxa de
Desconto apropriada.

Mas até agora não falámos desta última... tratámos apenas ge-
nericamente de uma Taxa de Desconto “adequada”. Mas qual é?

59
Ora, se os Fluxos de Caixa estão associados intrinseca-
mente à empresa, deve haver também uma Taxa de Juro que
represente o custo do dinheiro ao longo do tempo para a nos-
sa companhia de retalho. O nome dessa percentagem tempo-
ral é o Custo Médio Ponderado de Capital (Weighted Average
Cost of Capital ou WACC).

Normalmente, uma empresa é formada tanto por capital


próprio (acionistas) quanto de terceiros (credores). Logo, a
Taxa de Juro apropriada para descontar os Fluxos de Caixa
tem de ser aquela que remunera simultaneamente os credo-
res e os acionistas, ponderando as suas respetivas participa-
ções.

WACC é apenas isso: a taxa de juro ponderada entre o


custo da dívida e o retorno exigido pelos acionistas. Formal-
mente, temos:

“D” é a dívida, informação encontrada no balanço da em-


presa cotada.

“E” é o valor de mercado (equity), também informação pú-


blica.

60
“K d ” é o custo médio da dívida, igualmente público (sub-
trair daqui o benefício fiscal da dívida).

“K e” é o custo do capital, que precisa ser estimado.

“D+E” é a soma do capital próprio e de terceiros.

Concluímos que todas as variáveis são conhecidas ou facil-


mente calculadas, com exceção do Ke. O custo do capital (isto
é, o retorno exigido pelo acionista) precisa ser calculado.

Como é da praxe, isso é feito por uma equação de CAPM


(Capital Asset Pricing Model), definida conforme se segue:

E(R i ) = R f + β i (E(R m ) – R f ), onde:

E(R i) é o custo do capital, exatamente a variável em que


estamos interessados.

R f é uma taxa de juro livre de risco.

β mede a resposta da ação às variações de mercado; se o


mercado anda 1 ponto, quanto anda, em média, a ação?

E(Rm) é o retorno esperado para o mercado como um todo.

61
A equação do CAPM é intuitiva. Segundo ela, o retorno
de uma ação é dado pelo rendimento de um ativo sem risco
(R f) mais quanto há de excesso de retorno de mercado sobre
o ativo sem risco (E(R m) — R f), ponderado pela resposta da
respetiva ação a variações do mercado.

Uma vez na posse do custo de capital temos tudo o que


precisamos para chegar ao WACC.

Recapitulando: compreendemos os fluxos de caixa para o


horizonte de projeção, o valor da perpetuidade e a taxa de
desconto desses fluxos. Atravessámos tudo o que precisáva-
mos para o modelo de Fluxo de Caixa Descontado.

Primeiro, o leitor calcula os fluxos de caixa para cada um


dos períodos de projeção. Em seguida, define o valor da per-
petuidade a partir de (i) crescimento vegetativo de longo pra-
zo, (ii) cálculo do WACC e (iii) soma da PG infinita e conver-
gente. Por fim, traz tudo a valores presentes pelo WACC.

C’est fini: estimamos o valor da empresa. Daí até chegar


ao valor da ação é fácil: retiramos a dívida líquida e dividi-
mos pelo número de ações.

62
EM BERÇO ESPLÊNDIDO

Depois de todo este esforço técnico, permita-me uma di-


vagação: já ouviu falar de Procusto?

Procusto era um marginal grego perigosíssimo. Fez e


aconteceu até encontrar o herói Teseu que o decapitou mere-
cidamente. Antes disso, porém, Procusto fez várias vítimas,
despertando inveja nos mais maldosos assassinos em série.

O bandido tinha em sua casa uma cama de ferro moldada


ao seu tamanho exato. Todos os viajantes que por lá passa-
vam recebiam o hospitaleiro convite para se deitarem nessa
cama. De forma a adaptar os hóspedes ao repouso, Procusto
seguia à risca o molde, cortando as pernas dos mais altos e
esticando as dos mais baixos. Assim, todos poderiam caber
na sua cama “versátil”.

O modelo de Fluxo de Caixa Descontado não é nada além


da representação financeira do mito grego da cama de Pro-
custo. Cortamos as pernas da realidade económica e finan-
ceira para fazê-la caber nas células de Excel.

Sejamos honestos: é impossível saber com precisão qual


será a receita do próximo ano — o passo número um do nos-
so modelo. Definir o faturamento implicaria conhecer toda
a dinâmica macroeconómica (PIB, forex, juros, inflação), o

63
comportamento dos consumidores, o acerto nas coleções de
verão/inverno, condições climáticas, dinâmica da concorrên-
cia...

Para o Lucro Bruto, enfrentamos a questão das matérias


-primas com preços definidos por mercados globais. E tam-
bém a capacidade da empresa de se reinventar na produtivi-
dade (tente lá estimar o lucro bruto de uma Sonae, por exem-
plo, que se reinventa todos os anos...).

Respeitando a sequência, poderíamos tecer essas mesmas


críticas linha a linha, até chegar ao Fluxo de Caixa. Seria um
mero exercício de redundância.

Os financeiros querem matematizar o mundo, querem


que sejamos capazes de — através da utilização de “sólidos”
critérios quantitativos — disfarçar os nossos vieses qualita-
tivos.

Mas não conhecemos sequer uma célula da folha de mil


linhas por mil colunas. E qualquer pequeno desvio é capaz
de causar distorções de pelo menos 10% no valor da empresa
(na verdade, 10% de erro seria como acertar em cheio).

Evidentemente, erros de 10% ou 100% podem ser decisi-


vos para inverter uma decisão de compra ou venda de deter-
minada ação.

64
Não tenho a pretensão de virar Teseu, mas reservo ainda
mais uma crítica ao Procusto financeiro. Existe um problema
de autorreferência, ou seja, de incoerência interna ao modelo.

Repare que quando o financeiro constrói um DCF, ele está


interessado — sob última instância — em saber se o poten-
cial de valorização embutido naquela ação merece uma com-
pra. Estamos todos interessados nesse upside. Porém, ao es-
timar o WACC, precisamos passar pelo custo do capital, que
é a pergunta exata de quanto se exige de retorno para estar
na ação.

Conforme o CAPM, a ação está cotada na exata medida da


exigência do investidor — o CAPM apoia-se em premissas de
mercados eficientes, em que todos os ativos são valorizados
corretamente, não havendo espaço para desvios anormais.
Nesse ambiente pasteurizado, todas as ações renderiam a
mesma coisa quando ponderadas pelo risco.

Por outras palavras, está interessado em ações capazes de


oferecer grande potencial de valorização e, para calcular isso,
usa um método que supõe uma avaliação perfeita, sem espaço
para retornos acima da média quando ponderados pelo risco.

Não podemos, no mesmo método, usar o CAPM e esperar


por valorizações extraordinárias ponderadas pelo fator de
risco. Os financeiros precisam decidir o que querem da vida.

65
Tom Copeland, considerado um dos maiores entendidos
de avaliação de empresas no mundo, pendura há décadas o
seguinte quadro no seu escritório: “DCF RIP”.

Em bom português, Fluxo de Caixa Descontado, descansa


em paz.

66
II. AS ARMADILHAS DE VALOR

Ainda me lembro bem daquele verão de 2000. Algumas


coisas foram muito marcantes. O início do fim da bolha das
dotcom nos Estados Unidos, os três golos de Sérgio Concei-
ção contra a Alemanha no Euro e aquela casa de praia na cos-
ta alentejana perto de Porto Covo.

Porém algo estava acima disso tudo. Constatei como o


meu pai colocava a família à frente do seu próprio interesse.
A minha mãe andava de Corsa, mas o meu pai resolveu fa-
zer-lhe uma surpresa. Era mais que merecido. Aliás, se fosse
uma questão estritamente de mérito, talvez fosse algo ainda
melhor.

67
Entrou em casa sem conseguir disfarçar. Falava alto e ria
desenfreadamente. Gostava de o ver assim mais vezes, mes-
mo com aquelas risadas um pouco constrangedoras e exage-
radas. A alegria descomedida tinha uma razão der ser. Ele
tinha acabado de comprar um Land Rover, o jipe da moda.
Cinzento clarinho, bem típico da altura e exatamente da ma-
neira como a minha mãe gostava.

Com apenas 15 mil quilómetros, o carro tinha tido apenas


um único dono. Era o presente ideal para a Bisoca. E a melhor
parte? Sem rebentar com a carteira. O meu pai confidenciou-
me que tinha encontrado uma verdadeira pechincha. Pediu-
me sigilo. Um segredo apenas nosso. “Não contes à tua mãe
que andei por aí à procura do melhor negócio”.

A felicidade e alguns copos de uísque que se sucederam


à apresentação do carro fez com que esse pormenor não ti-
vesse grande importância. Um topo de gama, mas com um
desconto de 30% sobre o preço de tabela. Grande negócio.

Ou nem por isso...

A alegria transformou-se em frustração antes mesmo das


primeiras chuvas de outubro. Quem gostou mesmo do Land
Rover cinzento foi o mecânico da família. O tipo ficou rico.
Em dois meses, gastámos mais de metade do valor do car-
ro em sete idas à oficina. Na verdade, tínhamos comprado o

68
Land Rover todo rebentado nas engrenagens. Enquanto isso,
o Corsa estava lá, impávido e sereno como o Muhammad Ali.

De repente, o que era barato tornou-se caro. A lição prá-


tica — e custosa — é a de que, por vezes, existe um motivo
para que as coisas sejam baratas. Com isto queremos alertar
o investidor de que a coisa pode não ser exatamente o que
parece à primeira vista.

Quando analisamos uma ação, esse tipo de situação é ba-


tizado de armadilha de valor, a famosa “value trap”. Aquilo
que, numa abordagem inicial, pode parecer descontado em
relação ao seu valor intrínseco, na verdade não está. O valor
intrínseco do Land Rover era substancialmente inferior ao
que parecia. Considerámos o valor médio do carro como um
bom indicador para o valor do jipe, o que se mostrou — a
posteriori — uma estupidez.

69
ARMADILHAS CLÁSSICAS

Neste subcapítulo vamos tratar das clássicas armadilhas


de valor.

Como já narrado em verso e prosa, o cerne do value inves-


ting tradicional é comprar empresas abaixo do valor dos seus
ativos. Por conseguinte, uma das recomendações mais típi-
cas seria a de procurar ações com um nível inferior ao valor
contabilístico (capitais próprios).

Simples, não? Easy like a sunday morning. No entanto, sur-


gem pelo menos três eventuais armadilhas dentro da análise
do Preço sobre o Valor Contabilístico (price-to-book):

i. Os valores contabilísticos podem estar enviesados pelo


enorme otimismo da maneira como são valorizados
os ativos. Algumas empresas superdimensionam os
ativos, induzindo um valor muito alto contabilistica-
mente. Não é assim tão raro encontrar este problema,
pois existe alguma subjetividade na análise dos ativos
— ativos fixos, imóveis e intangíveis são rubricas fa-
cilmente sobreavaliadas. Assim, qualquer compra de
uma ação baseada na atratividade vinda do desconto
face ao valor contabilístico exige uma observação cri-
teriosa do tratamento dado ao valor dos ativos.

70
ii. Uma empresa pode estar descontada em relação ao
património líquido porque se esperam prejuízos no
futuro. Numa primeira instância, os prejuízos soam
como pequenos embaraços na demonstração de resul-
tados do trimestre. Mas vão-se acumulando e passam
a transitar para o balanço. Mais especificamente, vi-
ram subtrações ao valor contabilístico. Ou seja, o valor
dos ativos vai cair no futuro, enriquecendo apenas os
mecânicos de plantão (no mercado financeiro, os me-
cânicos são os advogados).

iii. Os ativos da empresa podem não estar a ser remunera-


dos adequadamente e, por isso, justificaria o desconto
na ação. Temos claros exemplos na bolsa portuguesa.
Os bancos do PSI-20 passam longos períodos à espera
que as ações negoceiem a um preço superior ao do valor
contabilístico, o que não acontece por conta dos baixos
retornos sobre o capital (o tal return on equity). Outro
caso clássico está no setor do retalho. Empresas com
elevados níveis de retorno sobre o valor contabilístico
conseguem negociar com valorizações esticadas (mais
de 2x), enquanto as que remuneram o capital acionista
inadequadamente ficam cada vez mais baratas (casos
impressionantes de até 0,2x o valor contabilístico).

Algo parecido acontece com as análises que envolvem Pre-


ço sobre Valor de Liquidação. Será que a alternativa de liqui-

71
dação está a ser mesmo contemplada? Porque se a empresa
não está realmente a pensar fechar, é apenas uma referência
platónica. São muitas as empresas que negoceiam abaixo do
seu valor de liquidação e poucas as que efetivamente vão ser
liquidadas.

Quando uma empresa destrói valor ao longo do tempo, é


natural que esta negocie abaixo do seu valor de liquidação. A
cada minuto que passa, a empresa vale cada vez menos.

Outra questão polémica diz respeito ao cálculo exato do


valor de liquidação. Haverá, de facto, comprador para os ati-
vos com aquele valor? Ou estamos apenas a basear-nos num
preço médio de ativos semelhantes, mas na verdade sem
cunho prático? Se não houver comprador, não existe valor de
liquidação.

Até mesmo as ações que negoceiam abaixo das disponi-


bilidades em caixa podem significar armadilhas. Imagine-se
diante de uma empresa com um valor de mercado inferior ao
que consta nas disponibilidades. Acha aquilo absurdo, uma
pechincha imperdível e vai logo comprar. É óbvio, não é?

Bom, mais ou menos... Pense no caso de empresas que


ainda só estão no papel, por exemplo. Por definição, elas ain-
da não têm operação, quanto mais receitas. Elas queimam
dinheiro. Assim, as disponibilidades imediatas que observa

72
naquele momento não podem servir como proxy para o valor
da companhia.

Já no dia seguinte, as disponibilidades estarão menores, e


se a empresa não for bem-sucedida na transição para a fase
operacional, a liquidez vai convergir para zero. Então, o va-
lor dessa companhia pode ser mesmo nulo. Existe uma única
boa notícia para a ação nesse caso: do chão ela não passa.

Conforme visto no capítulo anterior, Benjamin Graham


também considerava o lastro dos lucros passados. Graham
gostava de comprar ações que negociavam abaixo de 7x os lu-
cros dos últimos 12 meses. Mas será que houve algum acon-
tecimento extraordinário que influenciou os lucros passados
ou eles decorrem de fatores estritamente operacionais? Se o
lucro se deu por conta da venda de ativos ou de uma reavalia-
ção dos ativos, isso pode significar pouca coisa.

Além disso, qual a capacidade de a empresa voltar a entre-


gar lucros iguais ou maiores daqui para a frente? Por defini-
ção (e não há nenhum problema na definição), uma empresa
vale os seus fluxos de caixa de hoje até ao infinito — ou seja,
interessam na verdade os lucros no futuro, e não os lucros do
passado. Pode encontrar por aí uma empresa que negoceia
até 3x os lucros, precisamente porque se espera uma vigoro-
sa redução dos lucros no futuro. As empresas de energia em
Portugal negociaram descontadas durante vários anos.

73
Além dos problemas da alavancagem no setor, esta avaliação
modesta refletia justamente a perceção de que os lucros iam, na
melhor das hipóteses, ficar parados. O mercado estava certo.

Entrando agora nas armadilhas associadas aos resultados


futuros, as nuances são ainda mais emblemáticas. Uma ação
atrativa pode ser vista como aparentemente cara se não for
contemplado o adequado crescimento vindouro. De forma
semelhante, o sonho de uma enorme expansão no futuro
pode tornar qualquer ação supostamente atrativa.

Um exemplo emblemático das subtilezas associadas à


perspetiva de crescimento futuro vem das ações da Nestlé.
Elas são consideradas caras praticamente desde o primeiro
dia e teimam em subir no longo prazo — lembro-me apenas
de um ano de queda, em 2008, quando absolutamente tudo
desabou por conta da crise imobiliária americana. E então,
será que a Nestlé é mesmo cara?

De forma a suavizar o problema, recomendamos que o


investidor admita a possibilidade de o crescimento futuro
agregar valor, mas que o faça de modo conservador. Com
isso, pode até ser que perca algumas oportunidades atrativas
no caso de uma expansão vigorosa.

Entretanto, é melhor perder certas oportunidades de lu-


cro do que mergulhar num buraco negro de prejuízos. Pru-

74
dência e dinheiro no bolso, o mesmo é dizer, cautelas e canja
de galinha nunca fizeram mal a ninguém.

Também se pode fazer a conta ao contrário. Inverter o


modelo de Fluxo de Caixa Descontado de trás para a frente,
ou seja, ver qual o crescimento que está a ser considerado ao
atual preço de mercado. Assim, consegue concluir se o ritmo
implícito é razoável ou exagerado. Se a expansão implícita
no preço da ação for considerada baixa, é para comprar. Caso
contrário, fique de fora.

Ao deparar-se com alguma das armadilhas clássicas, o


investidor deve sempre avaliar os parâmetros quantitativos
com uma postura crítica. Desconfie das próprias premissas
e das métricas generalistas. Não é raro encontrar um múl-
tiplo excessivamente baixo durante muito tempo, mas que
provavelmente tem uma razão para o ser — ameaças da con-
corrência, contingências fora do balanço, interesses egoístas
de um acionista maioritário e o risco regulatório são apenas
algumas das razões mais frequentes.

De uma maneira geral, encontrar fluxos de caixa consisten-


tes, focar-se em negócios defensivos com uma larga margem de
segurança e com uma contabilidade fidedigna funcionam bem.
Tudo isto — claro — deve ser conjugado com um preço razoável.
É difícil reunir todas estas qualidades. Mas o que é que se pode
fazer? O value investing é para ser rentável, não para ser fácil.

75
UMA AÇÃO É UMA EMPRESA?

As histórias do mercado financeiro são a melhor coisa


quando se trabalha no setor. Parece que a bolsa tem uma
propensão natural para atrair pessoas com personalidades
singulares.

Misture isso com uma boa dose de adrenalina e testos-


terona e temos um cocktail perfeito para o surgimento de
episódios bizarros. Esta história ouvi eu em primeira mão e
segue assim...

O Eduardo era um trader com poucos estudos, mas com ner-


vos de aço. Quem já trabalhou numa sala, sabe que o estilo co-
mercial de risk taker é um pau de dois bicos. Resulta muito bem
quando o mercado está a subir, mas é meio caminho andado
para destruir as carteiras dos clientes em tempos adversos.

A história aconteceu em setembro de 2001, quando ficou


rico — muito rico. O alvo era João Silva (nome fictício), então
economista-chefe da corretora e com um doutoramento em
geopolítica. Silva era o oposto do Edu, compartilhando ape-
nas o penteado à escovinha e o amor pelo Belenenses. Muito
estudado, cosmopolita, erudito (pseudo), magro e um pateta.

Dentro do mercado financeiro nacional, João Silva era


possivelmente o maior estudioso do Médio Oriente à época.

76
Sabia exatamente as nuances por trás das várias fações e foi
um dos primeiros a alertar em terras portuguesas, sobre as
tensões na região — o que viria a confirmar-se nesse ano.

Quando as torres gémeas são atacadas e perante a pers-


petiva de uma invasão americana ao Afeganistão, seguiu-se
a recomendação explícita de Silva: “vamos comprar lotes e
lotes de petróleo. Bush está prestes a declarar a entrada no
golfo. O petróleo sobe com uma guerra no Médio Oriente”.

De súbito interveio o Edu, com a educação costumeira:


“Doutorzinho, vai lá estudar a tua geopolítica e deixa a opera-
ção comigo. O petróleo já subiu o que tinha a subir. Todos estão
a pensar da mesma forma, vamos vender lotes e lotes de petróleo
enquanto toda a gente estiver a comprar”.

A proposta do trader era totalmente contrária às posições


de consenso. Todas as grandes mesas de operações estavam
a comprar petróleo, na expetativa de guerra iminente. Silva
rebateu com a arrogância de sempre.

O feeling de trader acabou por impor-se e a corretora ter-


minou mesmo por ficar curta na commodity, fossem quais
fossem os motivos.

Silva demitiu-se depois daquela afronta à sua genialidade.


O Edu, no entanto, continuou como prop trader por recorrer

77
a favores pessoais feitos anteriormente ao dono da correto-
ra. O petróleo, por sua vez, desabou dos $28 para os $20 no
espaço de dois meses. O mercado confundiu a guerra com
o petróleo. A commodity pode ter uma forte relação com os
movimentos bélicos, mas o petróleo não é a guerra em si. Se
todos estavam à espera da guerra, o petróleo já tinha sido
armazenado de acordo com a expetativa.

Damos o nome de conflation (peço desculpas pelo angli-


cismo, mas desconheço a versão em português) a todas as
situações em que uma variável é confundida com outra, de
uma maneira simplista. Y não é X, mas sim uma função de X.
Existe uma relação entre ambas as coisas, mas isso não quer
dizer que uma signifique exatamente a outra.

Assim vamos chegar à constatação de que uma ação não


é exatamente uma empresa. Certamente, existe um vínculo.
Conforme vimos, o preço da ação movimenta-se em função
de variadas atividades corporativas — o que é bem relevan-
te, mas não diz tudo. Para dificultar ainda mais as coisas,
essa função acionista é tão complexa que não temos meios —
nem nós, nem ninguém — de tratá-la em bases puramente
matemáticas. Nem mesmo aquele caixinha de óculos que se
sentava à sua frente no colégio conseguiria.

Isso torna o Value Investing um desafio maior e bem mais


interessante, pois a sua premissa mais elementar fica em xe-

78
que: a ação não pode ser entendida meramente como uma
representação direta da firma.

Lembra-se da abordagem clássica do Investimento em


Valor que identifica um valor intrínseco para a ação e, pos-
teriormente, supõe uma convergência entre o preço de mer-
cado e esse valor intrínseco?

O preço, por definição, denota uma variável extrínseca,


que não está embutida na essência da coisa. Os preços re-
presentam a materialização do acordo imediato entre duas
pessoas, comprador e vendedor, na praça pública.

Enquanto o preço é algo observável e tangível, o valor vem


de algo não observável, mas possível de estimar. No final do
filme, de acordo com o enredo da Escola de Valor, os dois aca-
bam por se encontrar. Mas será que os destinos realmente se
cruzam?

Lá vem o Valor cheio de paixão... mas vamos tentar enten-


der quem é que é esse indivíduo.

Originalmente, a noção de valor aparece — tal como


descrevem Adam Smith e Karl Marx — associada à Teoria do
Valor-Trabalho. O valor económico de um determinado bem
vem da quantidade de trabalho necessária para produzi-lo,
calculando-se também o trabalho com as máquinas e as

79
matérias-primas empregues no processo produtivo. Acima
de tudo, o trabalho seria o elemento agregador de valor;
logo, a quantidade média de tempo de trabalho alocado para
produzir um bem determina o seu valor.

David Ricardo, que também contribuiu para os pilares da


Teoria do Valor-Trabalho, aperfeiçoa um pouco este conceito
vanguardista e relaciona o valor geral de determinada merca-
doria ao seu valor de uso (ou seja, ao quanto ela proporciona de
utilidade, bem-estar). Para fazermos justiça, Marx também já
tinha aprofundado a questão do valor de uso, embora se tenha
focado mais nas funções coletivas do valor-trabalho.

Digeridas as adendas e críticas iniciais, o salto mais con-


tundente na Teoria do Valor-Trabalho foi provavelmente
promovido pela Escola Austríaca. Numa visão que hoje pa-
rece intuitiva, mas na época era revolucionária, Carl Menger
e Ludwig von Mises associaram valor à utilidade e raridade
do bem.

E o resumo disto tudo — que acabou por dominar o mains-


tream económico — veio de Léon Walras, Stanley Jevons e
também do mesmo Menger. Cada um à sua maneira acaba-
ram por ligar o valor de um bem à sua utilidade marginal.
Ou seja, o valor de um bem está atrelado ao benefício incre-
mental proporcionado ao indivíduo, a partir de uma unidade
adicional de consumo.

80
Todo o paradigma walrasiano (de Léon Walras, pilar das
Finanças Modernas), ao igualar o valor de um bem à utili-
dade marginal, recorre a parâmetros essencialmente indivi-
duais. A função utilidade (medida de bem-estar) é pensada
principalmente sob a ótica do indivíduo. E é aí que reside o
problema.

Quando reconhece esse aspeto “egoísta”, ele simplesmen-


te precisa de abandonar a noção de valor intrínseco. O va-
lor passa a ser subjetivo e pertence apenas ao sujeito. Não
existe mais valor intrínseco e indissociável da empresa. Este
depende apenas de uma contrapartida: o ser humano. Por-
tanto, é extrínseco à empresa.

Sob essa ótica, o valor intrínseco não sobrevive. Só exis-


tem perceções de valor, elaboradas de maneira abstrata e
inerente à conceção individual. Tais perceções constituem
uma expressão momentânea da necessidade dos indivíduos
e da capacidade dos objetos em acolher essa necessidade.

Isto já seria suficiente para abalar a noção de valor intrín-


seco, mas vamos um pouco mais longe. A Teoria Económica
tradicional sabe do problema e tenta driblá-lo por meio de
uma hipótese (artificial) de agregação: assume-se um indi-
víduo representativo, com uma função de utilidade média.
Desta forma, bastaria conhecermos esse indivíduo médio
que saberíamos da preferência de toda a sociedade.

81
Isto é obviamente problemático, porque a definição parte
de uma observação individual e, no momento seguinte, reti-
ra as suas características individuais.

Para valorização das ações isto é especialmente ardiloso,


visto que os investidores cultivam expetativas diferentes
sobre o futuro, negoceiam em moedas diferentes, deparam-
se com taxas de juro diferentes, etc. Se fizer as contas em
cima de um “indivíduo representativo”, vai chegar a um valor
médio que representa algo caríssimo para uns e baratíssimo
para outros. Mais uma vez, perdemos a noção global de in-
trínseco.

Além de nos policiarmos contra as armadilhas de valor,


devemos estar bem cientes de que o próprio valor é uma ar-
madilha.

82
CONCURSO DE BELEZA

Vamos fazer o seguinte: vamos esquecer por alguns mi-


nutos o debate acima referido. Sugiro uma pausa entre os as-
saltos. Vamos supor que, por milagre da Natureza, tínhamos
encontrado a verdade aristotélica e chegávamos ao famoso
valor intrínseco.

Qual a garantia de que haverá uma convergência entre


preço e valor? E a que velocidade dar-se-ia esse processo? Se
ontem o preço da ação era diferente do valor, hoje também,
e se amanhã continuar assim, por que razão irá alcançar a
paridade depois de amanhã?

Lembre-se que as ações da Jerónimo Martins transacio-


naram durante uma década a uma fração do que seria mi-
nimamente razoável e fizeram muita boa gente desistir do
investimento.

Retomemos então o conceito de conflation: uma ação não é


uma empresa. Obviamente, há uma função que liga estas duas
coisas, mas não a conhecemos, e nem sequer sabemos tratá-la
matematicamente. Não pode trocar a sua ação por um pedaci-
nho da empresa ou por um luxo anual pré-determinado.

Juridicamente, ao deter um ativo mobiliário, o investidor


ganha acesso a um conjunto de direitos previstos no contra-

83
to, e não à empresa em si. Confundir esta lista de direitos
com a própria empresa é ignorar o contrato e a interação so-
cial diária que é delimitada pelo mercado.

O preço da ação é determinado pelos acordos de compra e


venda de uma série de pessoas com acesso à bolsa, e não por
uma suposta convergência imediata rumo ao valor intrínse-
co. Então não há como excluir o processo de formação de pre-
ços e contemplar apenas o valor intrínseco sob uma hipótese
platónica de convergência.

Conforme resumiu Keynes, a bolsa é um concurso de bele-


za em que ganha aquele que acertar na princesa mais bonita,
por unanimidade. Não se trata de votar na mais bonita, mas
naquela que os outros vão achar a mais bonita.

Entramos numa espécie de teoria de jogos circular, em


que o sujeito tenta adivinhar a opinião de um terceiro e que
por sua vez, o terceiro tenta adivinhar o que os outros estão
a adivinhar e entramos numa espiral infinita.

Não há nenhuma garantia de que vencerá o júri que efe-


tivamente votou na rapariga “idealmente” mais bonita. A
empresa mais barata pode não representar a ação mais valo-
rizada daquele ano.

84
FATO DE ALFAIATE

No fundo, o grande problema dos analistas de ações está


na arrogância em torno da sua suposta capacidade de identi-
ficar quanto vale uma empresa e de adivinhar para onde vai
o ativo financeiro subjacente. O “financista” acha-se apto a
identificar um valor intrínseco em demonstrações financei-
ras passadas ou a prever o futuro melhor do que os outros.
Mas nunca vimos inteligência a brotar de folhas de cálculo.

A grande geração de valor não está nos resultados ou ba-


lanços passados, até por uma nuance associada ao acesso à
informação. Na altura em que Graham desenvolveu as suas
ideias originais, grandes distorções entre o preço e o valor po-
deriam ser facilmente encontradas através de dados históri-
cos porque a restrição à informação era enorme. Hoje, o nível
de investigação para se identificar anomalias nos preços é tal
que, se uma ação negocia abaixo dos seus ativos, muita gente
já sabe, e normalmente há uma boa razão para ser assim. Pro-
vavelmente, aqueles ativos não estão a ser remunerados da
maneira mais adequada. A grande questão, então, neste caso
não seria identificar o desconto, mas saber se os próximos
anos trarão uma reviravolta importante do negócio.

Para uma empresa, o valor nasce dos fluxos de caixa de


hoje até ao infinito. Ou seja, o passado não importa. Se uma
firma gerou lucros bilionários no passado e de repente vem

85
um concorrente com uma nova tecnologia que simplesmente
destrói a anterior, a empresa antiga vale zero. Os lucros pas-
sados não têm valor algum. Precisamos olhar para a frente,
para os fluxos de caixa futuros.

A questão é que esses fluxos são imprevisíveis. Eles de-


pendem de uma infinidade de variáveis selvagens, into the
wild, que viajam para onde bem entenderem. Ninguém men-
talmente são traçará o roteiro para o futuro.

Os modelos de Fluxo de Caixa Descontado são ultrajantes


do ponto de vista epistemológico. Apoiam-se nas informa-
ções disponíveis hoje, ignorando que as coisas mudam com
o passar do tempo. Como fenómenos sociais típicos, as ca-
racterísticas corporativas, setoriais e macroeconómicas as-
sumem um comportamento errático, pois dependem sempre
de novos mapas de informações, indisponíveis na data ini-
cial (só conhecidos a posteriori).

Aos técnicos, falamos aqui da rejeição à hipótese de er-


godicidade. Por outras palavras, as propriedades estatísticas
de uma série não são preservadas ao longo do tempo. As coi-
sas mudam! E isso inviabiliza qualquer tentativa de previsão
apoiada em critérios quantitativos.

É como pedir aos comentadores de futebol todos os resulta-


dos da Primeira Liga com um ano de antecedência. É como ir

86
ao psicanalista e pedir: “Doutor, diga-me como é que eu vou estar
daqui a três meses, pois preciso preparar-me até lá”.

Já vi muita gente culpar um modelo mal feito pelos erros


de projeção. Isto é uma idiotice. Não se trata de tentar so-
fisticar os modelos em prol de previsões melhores. Cito dois
exemplos clássicos, entre outros milhões dignos de nota para
ilustrar o caso.

Nada mais emblemático do que a implosão do fundo


LTCM durante a crise russa, quando dois prémios Nobel da
Economia — Myron Scholes e Robert Merton — usavam mé-
todos quantitativos dos mais complexos para tentar prever o
comportamento dos ativos financeiros. Não havia no mundo
pessoas mais competentes para o fazer. Erraram não no mo-
delo em si, mas em acreditar na sua clarividência.

O outro caso ocorreu entre 2007 e 2008, na antessala do


estouro da crise imobiliária americana, a maior desde 1929.
O também Nobel Joseph Stiglitz — com ajuda dos irmãos
Peter e Jonathan Orszag — rodou uma série de simulações
para Fannie Mae e Freddie Mac (empresas de crédito imo-
biliário com garantia do governo dos EUA). Concluiu um
relatório extenso com duas afirmações: “com base na ex-
periência histórica, o risco para o governo de um potencial
incumprimento é efetivamente zero”, e “a probabilidade de
irem à falência é considerada tão baixa que é até difícil de

87
detetar-se”. Poucos meses depois, Fannie Mae e Freddie Mac
estavam falidas da Silva.

Não é aquele modelo específico que está errado, é a pró-


pria prática de usar-se um modelo para algo não modelável
— peço licença a Mia Couto pelo neologismo. Ao modelar em
excesso, perde o apego à realidade, distorcendo por completo
as ferramentas que lhe deveriam ajudar a desaparafusar o
mercado.

A geração de valor não está no passado, por razões práti-


cas e teóricas. Nem sequer pode estar nas previsões para um
futuro incógnito. Os grandes ganhos financeiros vêm justa-
mente do imponderável. Reviravoltas operacionais, cresci-
mento exponencial, fusões e aquisições, um português que
por acaso nasceu em Moçambique — e assim por diante.

É o tipo de acontecimento batizado como Cisne Negro


pela literatura clássica — evento raro, de alto impacto e im-
previsível (depois que acontece parece óbvio, mas não é).

Conversa rápida sobre a etimologia: antes da descoberta


da Austrália, nem sequer precisávamos de caracterizar a cor
dos cisnes. No Velho Continente, apenas os cisnes brancos
eram conhecidos, ponto final. Tirando o chão aos ornitolo-
gistas da época, um único cisne negro foi o suficiente para
dizimar tudo o que tinha sido escrito sobre os cisnes.

88
Ninguém aqui está muito preocupado com o estudo das
aves, é só um exemplo pontual do problema clássico da indu-
ção de David Hume, posteriormente também explorada por
Karl Popper e o seu falseacionismo.

Basicamente, fazemos alusão a problemas de interpreta-


ção tirando conclusões generalizadas a partir de casos parti-
culares. O leitor vê uma série de cisnes brancos e imediata-
mente conclui que todos seguem o mesmo padrão. Mas basta
uma — apenas uma — informação contrária para derrubar
o paradigma. Essa é a proposta clássica de David Hume.

Popper, por sua vez, estende o conceito para alertar que


as teorias não podem ser confirmadas, mesmo a partir de
muitas observações, já que uma única exceção, mesmo que
ainda não conhecida por ora, pode aparecer no futuro e mu-
dar tudo. As teorias podem, portanto, apenas ser negadas,
nunca categoricamente afirmadas.

Veja por exemplo o que me aconteceu no triste ano de


1997. Eu passei esse ano em Borba, com a família da minha
mãe. Alentejo interior. Casa no meio do campo, onde a aldeia
mais próxima ficava a 4 quilómetros. Durante todo o ano,
alimentámos um peru. Criei um grande carinho pelo animal.
Ele mancava da perna esquerda, tal e qual como o meu tio e,
por isso, dei-lhe o nome de Geraldo.

89
Alimentei o peru durante 360 dias consecutivos. Todas as
manhãs, prato cheio, ele tinha uma confirmação adicional
sobre o amor da família Cristo. Crescia a confiança, baseada
na larga série de informações passadas (amostra grande, 360
observações) de que as coisas continuariam a correr muito
bem. Então, chegava a noite da consoada, no suposto ápice
da cumplicidade, lá estava o Geraldo transformado em jan-
tar. O peru virou Cisne Negro.

Tenho que admitir: eu nunca passei um ano em Borba,


nem sequer conheci o Geraldo. A metáfora original é de Ber-
trand Russell, que bem distinguiu a frequente confusão en-
tre ausência de evidência e evidência de ausência. O facto de
nunca ter visto Deus não significa que Ele não exista. O que
é óbvio aos religiosos escapa aos “financistas”.

Ufa! Esta secção serviu para questionar a convicção de


que podemos identificar valor a partir de informações pas-
sadas. Ela também exterminou com a vontade de antever os
resultados corporativos e, por conseguinte, das ações. Assim,
vamos desmontando mitos enraizados no profissional típico
do mercado financeiro que veste fato de alfaiate.

Felizmente, não lhe tiramos mais tempo para defender uma


postura niilista, de queimar a teoria ortodoxa sem colocar nada
no lugar. Temos de propor algo que seja mais bonito filosofica-
mente e muito mais prático. Temos de propor a antifragilidade.

90
III. CRÍTICA DA RAZÃO PURA

Quando eu era pequeno, tudo parecia naturalmente maior.


Quando o Colombo foi inaugurado, os meus pais levaram-
me lá e eu achei o centro uma coisa gigantesca. Mais tarde,
quando tive que escolher entre ser analista de shoppings ou
de bancos, preferi a segunda opção, devido ao meu trauma
de infância.

Era trauma mesmo, porque uma vez perdi-me lá. Havia


dezenas de crianças perambulando sozinhas pelos enormes
corredores do centro comercial, todas absolutamente perdi-
das. Eu era apenas mais um daquele exército de nanicos, não
fosse a minha vontade direcional de encontrar a loja de brin-
quedos. Eu queria um Moto Rato.

91
Não o Modo, obviamente. O meu preferido era o Bugias,
um rato de óculos escuros em cima de uma american chopper.
Líder do trio e o mais racional, tinha a visão danificada por
causa de um ferimento de guerra. Para um brinquedo até que
era caro. Claro que eu me mantinha indiferente às cotações.
Quem é que pode colocar um preço à felicidade de uma crian-
ça?

Eu sonhava com o Bugias, pedia ao meu pai, contava os


dias. No Natal de 97, já não acreditava no Pai Natal, de modo
que a única possibilidade seria a de fazer uma birra. Marchei
e marchei no centro comercial, até que encontrei o Bugias.
A senhora da loja perguntou-me o nome, pediu para anun-
ciarem no sistema de som a minha presença ali e o meu pai
apareceu logo a seguir. Estava tudo a correr como planeado.

Durante alguns minutos, brinquei o que podia, e pedi


para ir sem o boneco. O meu pai ficou a olhar de boca aberta
sem perceber e agradecendo a Deus, porque o brinquedo era
caro. A minha mãe disse que era coisa de criança.

Naquele Natal — ainda me lembro — ganhei um monopó-


lio do Pai Natal. Foi surpresa, eu não estava à espera. Fiquei
muito feliz, como qualquer criança. E assim aprendi as van-
tagens de saber esperar.

92
COISAS DE ADULTOS

No capítulo I, aprendemos a calcular o preço de uma ação


através do modelo de DCF (Fluxo de Caixa Descontado). Logo
de seguida, no capítulo II, introduzimos algumas armadilhas
inerentes ao modelo e — em termos mais gerais — à própria
Escola do Value Investing. Vimos inclusive que o conceito de
“valor” é em si uma armadilha.

Mas ainda não nos ficamos por aqui porque, mesmo sa-
bendo que existem armadilhas, caímos nelas como patinhos.
E logo nós, iluministas vacinados, somos apanhados nos
nossos próprios truques. Fazemos engenharia inversa, cál-
culos para provar com os números — coitados dos números
— aquilo que mais desejamos. Tiramos MBAs em Universi-
dades Ivy League para acertarmos em cheio, bem mais do
que a média.

Investigações sobre a autoavaliação mostram que a maioria


dos alunos que tirou um MBA (87% em Stanford) julga-se aci-
ma da média, numa clara incoerência estatística. Esses mes-
mos estudantes viraram “financistas” inteiramente convictos
das projeções que fazem, tão convictos que começam pelo fim.
Primeiro dizem para si mesmos o que acham sobre determina-
do investimento e só depois procuram os meios técnico cien-
tíficos mais arrojados para corroborar as suas ideias. A razão é
também a mais forte das emoções: o desejo de controlo.

93
Este desejo passou a perturbar os economistas moder-
nos, especialmente na passagem para o século XX, quando
os primeiros expoentes da Economia Política (Smith, Marx,
Ricardo) foram dando lugar a abordagens menos conceituais
e mais “objetivas”.

Na procura por teoremas económicos, a matematização foi


ganhando espaço nos manuais e nas escolas — institucionali-
zada por nomes como Edgeworth, Marshall e Samuelson. Toda
essa aparente evolução quantitativa do arcabouço teórico des-
pontava como simples, clara e natural. Muita coisa foi impor-
tada da Física, a irmã mais velha que todas as ciências infantis
queriam imitar. Infelizmente, sem o rigor epistemológico.

Só havia realmente uma forma de a Matemática caber


nos modelos económicos, sem que as exceções ultrapassas-
sem as regras. Nós, economistas, teríamos todos que fazer
uma espécie de Juramento de Hipócrates logo no primeiro
ano da faculdade. Teríamos que jurar a pé juntos a nossa pró-
pria racionalidade. Além disso, concordaríamos também por
unanimidade que qualquer indivíduo — enquanto agente
económico —agiria em plena conformidade com os preceitos
racionais. Nascia assim o homo economicus.

Não vamos adentrar em detalhes sobre alicerces lógicos,


mas as premissas que formalmente definem a racionalidade
do homo economicus são bem exigentes — ao menos para a

94
maioria das pessoas demasiadamente humanas que eu co-
nheço (inclusivamente para mim). Duas das principais pre-
missas dizem respeito à consistência e à completude.

Ser consistente é não cair em contradições. Se prefere as


ações da EDP às da GALP, e prefere as da GALP às do BCP,
então não pode preferir as ações do BCP às da EDP. Não pode
investir em OTRVs só porque os outros estão a investir ou
porque o seu private banker o levou a jogar golfe. Nem vale a
pena entrar no PPR enquanto tem saldo na poupança para
cobrir a dívida.

Ao mesmo tempo, ser completo é ter algo sério a dizer so-


bre absolutamente tudo. Tem de ser capaz de dizer se qual-
quer proposição que lhe aparecer à frente é verdadeira ou
falsa. Dotado de completude, saberá afirmar se o preço-alvo
estimado pelo analista dos bancos é fruto do DCF ou de in-
fluências da área comercial do banco. Nenhum ativo finan-
ceiro fica sem resposta: ou é para comprar ou é para vender.
E todos os preços convergem para os seus respetivos valores
intrínsecos (e não o contrário!).

Mediante críticas de que esse indivíduo racional divergia


da realidade, os economistas modernos respondiam que a
Ciência não deveria estar preocupada com a realidade, mas
sim com uma realidade, passível de ser modelada. E a partir
desta faríamos pequenos ajustes.

95
Décadas mais tarde, com o triunfo da Economia Compor-
tamental, conseguimos perceber que os pequenos ajustes
tinham ficado grandes demais e a realidade foi encolhen-
do, coitada. Formalmente, só foi reconhecido isto em 2002,
quando o prémio Nobel de Economia foi conferido ao psicó-
logo Daniel Kahneman. Mais vale tarde que nunca.

Infelizmente, a Teoria Financeira que orienta as várias


práticas de mercado — sobretudo a valorização das ações —
ainda não se adaptou a essa realidade. Os engravatados da
Avenida da Liberdade (ou de Wall Street, tanto faz), conti-
nuam confinados a um mundo em que é possível formar ex-
petativas exatas sobre eventos futuros e — por conseguinte
— sobre os preços dos ativos financeiros.

96
À ESPERA

Por esta altura, creio que já compreendemos a relação de-


pendência-vício que o investidor tem em relação ao futuro.
O passado não serve para estimar o valor justo de uma ação,
muito menos o presente. Por exclusão de partes, resta o fu-
turo — ou mais precisamente — os fluxos de caixa daqui até
ao infinito. Consegue adivinhá-los?

Como desincentivo, nem mesmo os manuais escolares


conseguiram determinar a maneira preferida de o homo
economicus fazer julgamentos e formar expetativas em con-
textos de incerteza. Num torto exercício metalinguístico, os
economistas tentam há anos prever o comportamento inter-
temporal dos agentes económicos, mas sem muito sucesso.

A tentativa mais simples neste sentido resulta no que cha-


mamos de “expetativas estáticas”. Deste ponto de vista, es-
peramos que o próximo período seja rigorosamente igual ao
período atual. Os dias repetem-se, os meses repetem-se, os
anos repetem-se. Todos os dias a empresa comporta-se da
mesma maneira, acorda-te às seis da manhã, sorri-te com
um sorriso pontual e beija-te com a boca de hortelã.

Assim, o melhor que tem a fazer como investidor é repetir


também. Parece ingénuo, mas de facto muita gente atua des-
te modo no mercado. Traders mais “arrojados” projetam que

97
os lucros de uma ação em janeiro vão subir também em feve-
reiro, e em março — naquilo que é conhecido tecnicamente
como momentum trading, em alusão ao momento de inércia.

Triste também que — em todo o mundo — os investidores


privados apenas apostem com ênfase na bolsa depois desta já
ter disparado. Muitas vezes, entram no momento mais caro
possível e saem com prejuízos, ficando demasiado trauma-
tizados para aproveitar quando as ações voltam a ficar com
preços atrativos. Lamentável, mas é assim.

E se não fosse? E se não fosse sempre da mesma maneira?


Como alternativa à monotonia estática, pensou-se noutro
modelo, de expetativas adaptativas, muito usado inclusiva-
mente em programas de inteligência artificial. Agora, em vez
de baterem só numa tecla, as pessoas podem ir ajustando as
suas expetativas conforme estiverem errados ou corretos os
palpites anteriores. Com isto, vamos aperfeiçoando o méto-
do até atingirmos um estado ideal em que os erros são mi-
núsculos e os palpites corretos predominam.

Isso funciona razoavelmente bem quando se aprende ta-


refas elementares — como as de coordenação motora, por
exemplo. Se chutamos sem força, a bola não chega à baliza.
Se chutamos com demasiada força, esta passa por cima da
trave. Remate a remate, vamos alternando entre dois extre-
mos, até alcançarmos a verdade aristotélica no meio termo.

98
Assim como o momentum trading deriva das expetativas
estáticas, podemos associar as expetativas adaptativas a uma
estratégia de investimento denominada “reversion to mean”, ou
simplesmente reversão à média. Existe uma média — um cen-
tro de alvo — na qual estamos a olhar e a tentar acertar. Se
ocorre um desvio acima da média, corrigimos a rota do barco
para baixo. Já se o desvio é para baixo, ajustamos para cima.

Infelizmente, na prática, alguns problemas graves colo-


cam-se contra essa estratégia. Ninguém sabe qual é a média;
quando achamos que a descobrimos, esta muda de lugar sem
avisar ninguém. O preço de uma ação pode ficar longe da
média (o valor intrínseco da empresa) por muitíssimo tem-
po, sem que a rota do navio seja devidamente corrigida. E
mesmo que esteja 100% correto sobre a “verdadeira” média,
os outros participantes do concurso de beleza keynesiano po-
dem nunca concordar consigo.

Ok, ok, já deu para entender que não é fácil. Vamos então
para a terceira empreitada, aquela que conquistou o coração
dos economistas mais ortodoxos: a hipótese das expetativas
racionais. Nesta conceção, o homo economicus ganha um pou-
co mais de jogo de cintura no trato do futuro. Ele forma ex-
petativas baseadas (i) na compreensão perfeita das leis que
regem o ambiente económico-financeiro e (ii) em todas as
informações disponíveis até ao momento em que as proje-
ções são construídas.

99
Quanto à compreensão das leis, é razoável supor que os in-
vestidores saibam como se comporta o mercado. No entanto,
até que se atinja um nível próximo da “perfeição”, essa com-
preensão exige tempo e muita experiência. Não basta per-
ceber da procura e da oferta nas ordens de compra e venda,
nem basta saber a diferença entre taxa fixa e taxa variável.

Existem outros componentes da engrenagem da bolsa


muito menos óbvios, que não cabem nos dicionários finan-
ceiros. Uma ação que sobe rapidamente dentro do Euro Stoxx
50 pode espelhar a contrapartida de uma grande venda no
futuro do índice. Uma small cap pode subir 200% num ano,
mesmo dissociada de qualquer fundamento, desde que o seu
free float esteja sequestrado por lobos disfarçados de carnei-
ros. Ninguém se estreia na bolsa com esse grau de pensa-
mento crítico trazido do berço.

No que toca às informações, a hipótese de expetativas


racionais prevê que os agentes económicos incorporem rapi-
damente todas as notícias, factos relevantes e comunicados
ao mercado. Incorporar significa ler o conteúdo, processá-lo
e comprar/vender ações conforme as respetivas interpreta-
ções. Nada passa despercebido por mais do que alguns minu-
tos, toda a informação relevante entra automaticamente nos
preços. Já se deve ter assustado ao ver uma notícia de última
hora sobre a possível aquisição da EDP Renováveis se trans-
formar instantaneamente em 10% de valorização da ação.

100
Reconhecendo os méritos da hipótese, muita coisa evoluiu
desde os tempos de Benjamin Graham. Este é o mundo mo-
derno pós-Gutenberg, com iPhone, Twitter e Facebook. Se
algo acontece, realmente ficamos a saber numa questão de
segundos.

Mesmo assim, os avanços tecnológicos (atualmente e no


futuro) não garantem que as toneladas de informação che-
guem aos preços de maneira eficiente, sem ruídos.

Quanto mais nos afogamos na informação, menos fôle-


go temos para a compreender adequadamente. Se de facto
existe influência sobre os preços, fazem-no com timidez ou
exagero, mas dificilmente na medida certa.

Por isso, os analistas da Empiricus trabalham com o mí-


nimo possível de inputs, muito bem selecionados, a partir de
fontes oficiais ou de conversas com pessoas de carne e osso.
No nosso trabalho, menos é mais. Como 90% das informa-
ções de mercado que nos chegam aos ouvidos são inúteis
(confusas, em vez de esclarecedoras), o desafio está em igno-
rar os comunicados e não em acumulá-los. Somos melhores
investidores na medida em que aprendemos a negar, cortar,
excluir e ignorar.

O fenómeno conhecido como “big data” promete um ocea-


no de dados para navegarmos e gerirmos tudo com todos os

101
detalhes. No entanto, quanto mais informação, maior o nú-
mero de correlações espúrias. Hoje temos auxílios para obter
explicação para tudo, só que de uma forma absolutamente
arbitrária. Na bolsa, isto é perigosíssimo.

No caminho informacional típico, o facto é a causa e a va-


riação da ação é o efeito. A Galp encontra o pré-sal, torna
pública a descoberta e a ação dispara em consonância. Estes
são eventos raros, de alto impacto e cuja causalidade merece
reconhecimento.

Frequentemente, porém, investidores fazem o caminho


inverso: primeiro olham para a variação dos preços na In-
ternet e depois saem por aí, à procurara de justificações. A
imprensa corrobora esta atitude pouco científica, sobretudo
num dia em que as bolsas começam a cair e depois passam a
subir (ou vice-versa).

Segundo as manchetes, a bolsa cai porque as estatísticas do


emprego nos EUA vieram abaixo do esperado. Uma hora de-
pois, a bolsa sobe porque as estatísticas do emprego nos EUA
vieram abaixo do esperado, e isso induz a Reserva Federal a in-
jetar mais liquidez na economia. Em tese, do ponto de vista ló-
gico, uma variável não pode assumir direções opostas (subida
ou descida) por conta do mesmo motivo (emprego abaixo do
esperado). Mas no mercado torturam-se as causas conforme o
gosto do freguês — um freguês que nunca tem razão.

102
Aliás, voltemos ao nosso freguês predileto, o modelo de
Fluxo de Caixa Descontado. Para estimarmos os fluxos de
caixa futuros de um modo robusto, dependemos idealmen-
te das expetativas racionais traçadas pelo homo economicus.
Com isto, estamos automaticamente a supor que todas as in-
formações são instantaneamente incorporadas nos preços.
Mas espere aí...

Não estamos a construir o DCF de uma empresa precisa-


mente para avaliar o seu valor intrínseco e compará-lo com o
valor de mercado, tendo em consideração eventuais desvios
das oportunidades de compra ou venda? Se todas as infor-
mações estão nos preços, não pode haver desvio algum: valor
intrínseco e valor de mercado teriam de ser os mesmos. Ou
somos racionais do começo ao fim ou não somos racionais.

103
TUDO O QUE VEM É GRATO

Sejam expetativas estáticas, adaptativas ou racionais, até


ao momento nada parece encaixar-se no modo como efeti-
vamente vislumbramos o futuro. Não me espanta, porque
em vez de adotarem uma atitude empírica, os economistas
preferiram “deduzir” o algoritmo das expetativas usado pelo
homo economicus.

Em vez disso — por mais absurdo que pareça aos econo-


mistas — não seria mais fácil simplesmente perguntar ao
homo sapiens como este lida na prática com as incertezas
futuras? E só depois tentar elaborar algum tipo de modelo?

Felizmente, fomos salvos por dois psicólogos que perce-


beram esta realidade e resolveram atacar o problema com
uma postura empírica. Desde os trabalhos seminais de Amos
Tversky e Daniel Kahneman, vários outros psicólogos e eco-
nomistas aprofundaram o tema, estabelecendo um novo
campo de estudos denominado Economia Comportamental
— e que tem as Finanças Comportamentais como subsidiá-
rias.

Como fãs de Kahneman e Tversky poderíamos citar deze-


nas de contribuições que ambos trouxeram à maneira geral
com que encaramos e entendemos as expetativas. Mas dado
o intuito deste livro, daremos apenas um exemplo, suficiente

104
para provar o ponto. Relembrando o falseacionismo de Karl
Popper no capítulo II, uma única exceção basta para violar-
mos a proposição de que descortinamos o futuro sem ten-
dências.

O exemplo que escolhemos alude a um estudo feito por


Craig Fox — aluno de Amos Tversky. Deste estudo sobres-
saem dois pontos (i) esperamos o que queremos esperar e (ii)
subestimamos a importância dos cenários alternativos com
os quais nos deparamos. O primeiro ponto remete ao que
a língua inglesa chama de “wishful thinking”, uma vez que
existe uma linha ténue entre o que queremos e a expetativa.
Já o segundo ponto escancara a nossa enorme dificuldade
em pensar em várias coisas ao mesmo tempo, o que atrapa-
lha em particular nos julgamentos estatísticos.

Craig reuniu fãs no basquetebol norte-americano e ar-


quitetou várias perguntas a respeito dos playoffs da NBA, e
de quem seria o vencedor. Em particular, os adeptos foram
questionados sobre a probabilidade de cada uma das oito
equipas finais ganhar a competição.

Como evidência do wishful thinking, os fãs do Chicago


Bulls atribuíram probabilidades bem maiores à vitória dos
Bulls — e a mesma tendência de confirmação ocorreria com
os adeptos dos Heat, Bucks, Nets, Pacers, Hawks, Knicks e
dos Celtics. Embora permeado por estatísticas, análises táti-

105
cas e habilidades individuais dos jogadores, o desporto é —
acima de tudo — paixão.

Até aí tudo bem. A propensão é inquestionável, pois já


imaginávamos que o adepto escolheria com o coração. A
maior surpresa vem do facto de que mesmo as restantes
equipas, quando avaliadas caso a caso, roubavam uma atenção
excecional dos participantes. É como se cada participante na
investigação conseguisse pensar só na equipa daquela ronda
de perguntas, e não nas restantes.

No fim de contas, sob efeito de ambos os desvios, a proba-


bilidade média das oito equipas vencerem o torneio fez um
total de 240%! Esta percentagem é completamente absurda,
já que as probabilidades de cada concorrente ao título deve-
riam somar obrigatoriamente 100%.

Craig Fox ficou tão impressionado com o resultado do


estudo que resolveu levá-lo mais à frente. Convocou os
fãs de basquetebol a fazer apostas financeiras em cima
das suas expetativas, ao escolherem o provável vencedor
da competição. A hipótese era de que, eventualmente, ao
colocarem dinheiro vivo, os participantes levariam mais a
sério o desafio e forneceriam estimativas aprimoradas. Por
esta altura já deve imaginar que não foi isso o que aconte-
ceu...

106
O adepto que acertasse na equipa campeã receberia US$
160. Craig perguntou aos participantes quanto é que eles po-
deriam gastar no máximo para entrar em cada uma das oito
apostas possíveis. Depois de recolhidas as intenções, a soma
das apostas máximas (que espelha as respetivas impressões
de probabilidade) alcançou os US$ 287! Ou seja, se alguém
apostasse em todos as equipas, perderia com certeza US$
127 — o que viola quaisquer preceitos de racionalidade.

Os participantes sabiam que havia apenas oito equipas a


disputar os playoffs e que apenas um deles poderia ganhar
US$ 160. Mesmo assim, eles chegaram implicitamente a
pagar bem mais do que os US$ 160 para entrar na aposta,
transformando-a num péssimo negócio. Os homo sapiens es-
tudados empiricamente por Craig Fox não só sobreavaliaram
as probabilidades de vitória como meteram dinheiro nessa
sobreavaliação. Qualquer semelhança com as apostas feitas
diariamente na bolsa não é mera coincidência.

A nossa racionalidade está limitada por enviesamentos.


Apesar disso, enquanto pessoas e investidores, temos que
lidar racionalmente com as incertezas inerentes ao futuro.
Como conciliar as duas condições? Precisamos abandonar o
vício da previsão em nome de uma virtude, a virtude de se
posicionar de maneira antifrágil em relação às nuances vin-
douras.

107
O escritor Fernando Pessoa não só sabia encarar diferen-
tes cenários prospetivos como teve a astúcia de transformar-
se em diferente heterónimos. Na pele de Ricardo Reis, escre-
veu a seguinte estrofe:

“Aos que a felicidade


É sol, virá a noite.
Mas ao que nada espera
Tudo que vem é grato”.

108
IV. BUFFETT VALE MAIS

O que vai ser quando for grande? Eu nunca fui uma


criança como as outras. Não queria ser jogador de futebol.
Também não queria ser uma espécie de Rui Veloso que can-
tava na televisão. Eu estava como o Tom Hanks, no filme
Big: eu só queria ser adulto. Aquela coisa de rotularem-me
de alguma forma incomodava-me desde os tempos mais
pueris. Eu tinha mesmo que enquadrar-me em alguma cai-
xa?

Sem motivo aparente, comecei a vomitar com frequência


absurda (desculpem-me pela imagem escatológica). Na mé-
dia, duas ou três vezes por dia, lá estava eu de joelhos so-
bre os azulejos brancos e frios, abraçado à sanita igualmente

109
branca. Numa quarta-feira, cheguei a bater o recorde: foram
10 visitas à casa de banho para sentir aquele aperto horrível
nas costelas e gosto de bile na boca.

Conheci os melhores gastroenterologistas de Portugal.


Dos simpáticos aos arrogantes. Fiz todos os exames pos-
síveis e imagináveis — conheci cada funcionária da CUF.
Tudo isto para descobrir o seguinte: não havia nada de erra-
do com o meu sistema digestivo. As minhas conversas com
a sanita eram despertadas exclusivamente por questões psi-
cológicas.

Os adultos à minhas voltas tentaram encontrar as mais


variadas explicações. A culpa seria de uma namoradinha na
escola. “Ah, não, ele não gosta dela assim tanto”. Na verdade,
seria a pressão dos pais pela disciplina: “Imagina, os pais até
lhe dizem para parar de estudar!” Até dúvidas sobre a minha
orientação sexual foram trazidas à mesa. Com a minha edu-
cação habitual, convidei a rapariga para sair para verificar se
a tese faria algum sentido.

Sem descobrir a verdadeira causa para os vómitos, lá fui


eu bater à porta dos psicólogos. Não me interprete mal, por
favor. Sou um grande fã da psicanálise. Inclusivamente, te-
nho em Daniel Kahneman o meu Nobel da Economia favori-
to. Mas a psicologia não funcionou comigo.

110
Passei por cinco consultórios diferentes, mas sem sucesso.
Era estranho, porque o processo obrigava-me a definir coisas
que para mim eram indefiníveis. Eu não poderia saber exa-
tamente tudo sobre mim e, mesmo assim, era obrigado a res-
ponder, ciente da imprecisão com que as palavras me saiam
da boca. Por maior que fosse o meu esforço, era insuficiente
para transmitir quem realmente era. E o pior: o médico ia
formar uma ideia a meu respeito baseada nas palavras que
eu lhe tinha dito, em grande parte mentirosas, mas que eram
sem querer.

Vi exatamente o problema da Clarice Lispector que citei


no início, lembra-se? “É curioso como não sei dizer quem sou.
Quer dizer, sei-o bem, mas não o posso dizer. Sobretudo tenho
medo de o dizer, porque no momento em que tento falar não só
não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lenta-
mente no que digo.”

Quando lê um livro sobre Warren Buffett e o seu processo


de investimento, está diante do mesmo problema. As deci-
sões financeiras são muito mais complexas do que os livros
de value investing, até os autobiográficos.

Este capítulo é uma espécie de pedido, misturado com es-


clarecimento: por favor, não veja este livro como uma crítica
a Warren Buffett e Benjamin Graham, pois a obra é escrita
por dois fãs destes monstros.

111
Em nenhum momento, questionámos as virtudes de War-
ren Buffett e do seu método prático. As questões surgem em
relação às teorias e aos factos estilizados que se formaram
em torno dessa sábia figura de Omaha. Aliás, o capítulo pode
ser lido como uma resposta à pergunta que até há pouco pai-
rava no ar: “se há tantos problemas com o value investing,
como é que o Buffett pode ser tão bem-sucedido”?

Ninguém aqui é louco para negar a utilidade da Escola de


Valor, mesmo no seu mais simples conceito. São milhares de
estudos ao longo de décadas demonstrando como métodos
apoiados nos princípios do investimento em valor renderam
resultados consistentes e impediram uma perda maior em
situações de crise.

Como alternativa, porém, acho que a abordagem antifrá-


gil (tal como proposta por Nassim Taleb) vence a discussão
tanto pela sua superioridade epistemológica quanto pela
prática. O facto de Ronaldo ter superado Eusébio em número
de golos, em nada diminui a lenda nascida em Moçambique.

A questão central aqui é que Warren Buffett é muito mais


complexo e interessante do que qualquer coisa que já foi es-
crita sobre ele. Escrever com um olhar de fora sobre o me-
gainvestidor incorre no clássico problema de perder-se na
tradução; transcrições deste tipo acontecem sempre com
grandes perdas de informação. Nada substitui o original.

112
Mas o entrave é ainda maior, pois nem mesmo o próprio
Buffett consegue autodescrever-se. Como qualquer fenóme-
no social, o processo de investimento envolve muito conhe-
cimento tácito e heurístico — ou seja, incapaz de formali-
zação. Ninguém consegue descrever com precisão, tim-tim
por tim-tim, um algoritmo bem-sucedido nos investimen-
tos.

Tacitus em latim refere-se a calado, silencioso. Um conhe-


cimento acumulado ao longo da vida, associado às experiên-
cias e às habilidades individuais, sem ser passível de defini-
ção explícita.

Quem estudou muito o tema foi o filósofo austríaco Mi-


chael Polanyi, que descreveu o conhecimento tácito como:
“espontâneo, intuitivo, experimental, conhecimento quoti-
diano, do tipo revelado por uma criança que joga um bom
jogo de basquetebol, (...) ou que toca ritmos complicados no
tambor, apesar de não saber fazer operações aritméticas ele-
mentares. Tal como uma pessoa que sabe entregar o troco,
mas não sabe somar. Se o professor quiser familiarizar-se
com este tipo de saber, tem que prestar atenção, ser curioso,
ouvi-lo, deixar-se surpreender, e atuar como uma espécie de
detetive que procura descobrir as razões que levam as crian-
ças a dizer certas coisas”. É uma espécie de representação das
forças dionisíacas de Nietzsche.

113
O argumento ficou resumido na famosa frase de que pode-
mos conhecer mais do que podemos explicitar. Um conheci-
mento integralmente explícito é inconcebível. Conhecimen-
to tácito é importante por ser inclusivamente mais relevante
do que a parte formalizável do saber. Conforme Polanyi, há
mais valor naquilo que tem difícil captura e registo, precisa-
mente por estar atrelado ao indivíduo.

No nosso caso, Buffett — na sua plenitude — não cabe


nos livros. O que fica fora das páginas é que faz toda a dife-
rença. Não adianta querer tornar-se num mini-Buffett lendo
as incontáveis biografias a respeito do guru. Vai deixar de ser
o investidor que é, e não vai ganhar nada em trocar.

Acho que Pérsio Arida perceberia o ponto. Com os ensi-


namentos de Arida sobre a importância da retórica na Eco-
nomia, notaríamos que o value investing é associado à fron-
teira do conhecimento em análise de ações, mas não por re-
presentar a técnica mais rentável. A sua pretensa superação
não veio de resultados empíricos demostrando que Buffett
aplicou, de facto, os elementos da Escola de Valor e ganhou
dinheiro com isso.

Em rigor, o value investing ganhou a tradição em finanças


por seguir fielmente as regras de retórica, que é, em última
instância, a responsável pela vitória das mais variadas teo-
rias em Economia, conforme bem definiram Deirdre Mc-

114
Closkey e Pérsio Arida — não necessariamente por esta or-
dem.

A Escola de Valor é simples, coerente e abrangente; ofere-


ce generalidade e poucas metáforas; permite formalização e
resgate da tradição. Ou seja, atende com precisão cirúrgica às
sete regras de retórica contidas no brilhante artigo A história
do pensamento económico como teoria e retórica, de Arida.

Corrobora o argumento o facto de que Warren Buffett pra-


tica algo muito além do que supõe o value investing tradicio-
nal. Artigo de Gerald Martin (American University — Kogod
School of Business) e John Puthenpurackal (University of
Nevada — Department of Finance), de abril de 2008 e título
Imitation is the sincerest form of flattery: Warren Buffett
and Berkshire, mostra como, contrariando o facto estilizado,
o bilionário seguiu princípios mais associados ao growth in-
vesting do que propriamente ao value investing.

O resumo do trabalho diz mais ou menos assim (descul-


pem eventuais erros na tradução livre):

Nós analisámos as carteiras de ações da Berkshire


Hathaway (empresa de Buffett) entre 1976 e 2006
e exploramos potenciais explicações para a sua per-
formance acima da média. Contrariamente à crença

115
popular, descobrimos que a Berkshire investe, primei-
ramente, em large caps de crescimento, em vez de ações
tradicionalmente associadas aos conceitos de valor. Ao
longo desse período, a carteira bateu o benchmark em
27 dos 31 anos em análise e na média superou o S&P
500 em 11,14%. A carteira bateu o índice que contem-
pla a média ponderada de todas as ações em 10,92% e
uma carteira montada a partir de um modelo Fama &
French em 8,56% ao ano.

Embora ter um rendimento superior ao do mercado em


27 dos 31 anos possa acontecer estatisticamente apenas
por conta da sorte, quando incorporamos a magnitude
da superioridade, a explicação por meio da simples sorte
sugere algo bastante improvável, mesmo se ponderarmos
pelo viés de seleção ex post. Identificámos que a cartei-
ra da Berkshire Hathaway é altamente concentrada em
poucas ações, com as cinco maiores representantes a res-
ponderem por 73% do valor da carteira.

Embora o aumento de volatilidade seja tradicionalmente


associado à maior concentração, nós mostramos que a vo-
latilidade do conjunto é derivada dos retornos positivos,
e não das variações negativas. (...) A nossa evidência su-
gere que Warren Buffett, Charles Munger e Lou Simpson
possuem habilidades de investimento incapazes de serem
explicadas pela Teoria dos Mercados Eficientes”.

116
Breve digressão: quem mereceria o Nobel, Eugene Fama,
um dos precursores da hipótese de mercados eficientes, ou
Warren Buffett?

Voltando ao raciocínio... citámos Polanyi e Arida para


questões metodológicas, mas poderíamos ir um pouco além,
tirando as ideias de Lakatos sobre validação ou não de teo-
rias. Para o físico/matemático/filósofo, os pacotes de conhe-
cimento são compostos por um miolo forte, um pressuposto
básico que acaba não sendo efetivamente testado. Esse miolo
estaria circundado por teorias de suporte, e somente essas
viriam a ser testadas, estando suscetíveis a refutação.

Quando pensamos na associação entre o Warren Buffett e


o value investing, qual é que é o miolo da coisa? Ora, o miolo
é o valor — como defini-lo e como formalizá-lo. Teorias de
suporte (como a análise de múltiplos, por exemplo) interes-
sam-nos menos.

117
UM CASO PRÁTICO

Um artigo da CNBC de 14 de fevereiro de 2013 trazia o


seguinte primeiro parágrafo:

“A Berkshire Hathaway e a 3G Capital Management


vão pagar 72,50 dólares por ação, ou 23,3 mil milhões
de dólares, pela Heinz - um prémio de 19% em relação
ao máximo histórico. Com inclusão da dívida, o negócio é
avaliado em 28 mil milhões de dólares”

Parte da mística de Buffett deriva da sua natureza somí-


tica. O oráculo adora uma boa pechincha. São atribuídas vá-
rias outras razões, mas a aplicação prática do value investing
é sempre uma delas.

No entanto, à medida que as aquisições de Buffett ficam


cada vez maiores, ele parece disposto a pagar mais e mais por
elas. Os seus últimos negócios levantaram perguntas sobre a
sua imagem de “caçador de pechinchas”.

A aquisição da Heinz é um exemplo claro em que o sábio


de Omaha desviou-se dos pilares mais tradicionais do value
investing e ganhou muito dinheiro. O negócio valorizou a
Heinz em 20 vezes os lucros anuais. Isto parecia alto para
uma empresa com taxas de crescimento de 6% ao ano. E foi
mais do que o múltiplo de 18 vezes lucros que Buffett pagou

118
alguns anos antes pela empresa ferroviária Burlington Nor-
thern Santa Fe.

A determinação do tal valor intrínseco é muito mais com-


plexo do que este ou aquele múltiplo. Olhar para métricas
quantitativas friamente poderia ser profícuo na época de
Benjamin Graham, quando o acesso à informação era pre-
cário. Com a chegada do Google não existe mais burro nem
leigo. Precisamos de referências também qualitativas, daí a
ênfase na força das marcas do grupo e na operação da em-
presa.

Buffett pagou um prémio pelas ações nas mais variadas


métricas de valuation, mas acredita no business model. Nós
também.

119
COMO LER ENTÃO?

Este capítulo termina sugerindo uma forma de interpre-


tação do instrumental analítico de value investing que acaba
unindo os ensinamentos de Benjamin Graham e Warren Bu-
ffett à filosofia antifrágil de Nassim Taleb.

O Investimento em Valor não deve ter uma veste mecani-


cista, supostamente capaz de revelar o Santo Graal financei-
ro (também conhecido como valor intrínseco). Esta verdade
aristotélica, se existir, é indeterminável.

Como afirmado anteriormente no conceito de conflation,


as ações não são rigorosamente empresas; são ativos finan-
ceiros que guardam relação com as companhias. E é aí que
deve entrar o value investing. Uma ferramenta que ajuda a
perceber como as ações estão a comunicar com as empresas
e vice-versa. O que está a ser dito para o preço estar naquele
nível? O que pode acontecer de maneira a justificar um preço
mais alto? Quais as opcionalidades envolvidas?

Nem Buffett, nem Graham, nem ninguém pode revelar a


verdade aristotélica. Eles “apenas” oferecem instrumentos
para tentar reduzir as nossas perdas ou sugerir altos retor-
nos. Trazem-nos referências de quanto pode ficar melhor
ou pior, servindo-se de elementos adicionais num processo
complexo e recheado de incertezas.

120
Quando uma ação tem o preço abaixo do valor em caixa,
por exemplo, pode ser um belo primeiro incentivo, pois te-
mos a noção de que há um colchão capaz de limitar as nossas
perdas. Simultaneamente, se esse dinheiro for bem empre-
gue, a ação estará preparada para subir. Cuidadosamente,
tenta diminuir a sua perda a partir de uma referência de um
“preço justo mínimo” e expõe-se a potenciais eventos positi-
vos.

Esta é a leitura que gostaríamos de dar ao value investing.


Se o compreendermos desta forma, Buffett passa a conversar
em harmonia com Taleb. Veja que isto está totalmente ali-
nhado com a Regra 1, proposta pelo sábio de Omaha: “nunca
perder dinheiro”. E também com a Regra 2: “não esquecer a
Regra 1”.

Inicialmente as preocupações estão em evitar as perdas,


e não em determinar com precisão para quanto vai a ação.
Usamos as métricas clássicas de valuation para limitar os
prejuízos. Assim, podemos beber dos acontecimentos futu-
ros, desconhecidos por natureza, como trampolins para al-
cançar preços mais altos.

Não adianta rezar ao Deus das finanças e achar que ele vai
trazer-lhe a verdade. Eu próprio tenho tentado há 30 anos.
Eu falo, falo, falo. Ele ainda não me respondeu. Ora aí está
um Sujeito introspetivo.

121
122
V. UM POUCO DE MUITO RISCO

O Francisco era o tipo espertalhão do bairro. Metia-se em


todos os negócios. Ainda na primária, tentou ganhar dinhei-
ro a vender berlindes. Mais tarde veio a moda dos peões e
também aí deu as suas bicadas.

Pela falta de empenho na escola, sempre percebeu que para


safar-se na vida teria que montar um negócio próprio. Não sa-
bia era de quê. Tentava bastante, mas falhava ainda mais.

Nunca desistiu, até que decidiu montar uma banca de ge-


lados. Ele tinha o que nós gostamos de chamar espírito em-
preendedor, além de um carisma garantido por uma humil-
dade superior ao seu 1,80m de largura.

123
A ideia não foi completamente original. Anos volvidos,
assume que provavelmente foi resultado do seu trajeto diá-
rio. Todos os dias passava pela gelataria Surf e deixava lá um
euro e dez cêntimos.

Inconscientemente — ou não — o Francisco montou a sua


loja à imagem da gelataria que visitava religiosamente. To-
dos os sabores, esplanada lá fora e taças de chantilly. A única
exceção foram as cores. Como benfiquista ferrenho nem pon-
derou o verde e branco da congénere da Praça de Londres.

Rapidamente percebeu que o negócio dos gelados não era


muito consistente. No verão as vendas disparavam, no inver-
no contava tostões.

Para estabilizar as receitas decidiu vender também ham-


búrgueres, sandes e saladas. Contudo, o resultado manteve-
se o mesmo. Apesar de ter aumentado a venda média, o tem-
po que perdia a cozinhar, impedia-o de dar vazão às filas de
pessoas que queriam gelados.

Certa altura, decidiu vender chapéus de chuva. Toda a


gente pensou que era mais uma ideia maluca para fazer di-
nheiro. Não podiam estar mais errados. O Francisco com-
preendeu que o seu negócio era muito sensível às condições
climatéricas, então pensou: “quando está Sol vendo gelados,
quando chove vendo chapéus”.

124
A partir daí o negócio normalizou. O fluxo de caixa pas-
sou a ser constante e não sofria os pavores da sazonalidade.

Sem ter terminado o secundário, o Francisco entendeu os


ganhos advindos da diversificação. Diversificar é aquela his-
tória: não colocar todos os ovos na mesma cesta.

Em Finanças, o cliché foi formalizado a partir do instru-


mental de Harry Markowitz, vencedor do prémio Nobel da
Economia em 1989. A ideia básica de Markowitz é de que
o investidor pode montar um portfólio com menos risco e
mesmo retorno potencial a partir da diversificação de ativos.
E como, em tese, o indivíduo gosta de retorno e não gosta de
risco, estaria em vantagem.

Se Benjamin Graham e Warren Buffett são os represen-


tantes clássicos da análise de ações, Harry Markowitz assu-
me o protagonismo na ortodoxia financeira quando o intuito
não é escolher um ativo especificamente, mas sim a monta-
gem de todo o portfólio.

Este capítulo começa por apresentar as ideias de


Markowitz. O mote do arcabouço analítico é demonstrar
como a diversificação pode levar a ganhos na montagem do
portfólio, através de carteiras supostamente eficientes (má-
ximo retorno potencial para um determinado nível de risco
ou mínimo risco para um dado nível de retorno potencial).

125
Num segundo momento, revelaremos as fragilidades des-
se modelo. Markowitz é apenas uma tentativa platónica de
construir portfólios ótimos. Através de métodos altamente
sofisticados (e inócuos) tentam-se definir retornos esperados
e patamares de risco, quando se trata apenas de um esforço
pseudocientífico de, mais uma vez, domesticar a incerteza e
simplificar a realidade.

Por fim, o capítulo termina com uma proposta prática de


montagem de portfólios superiores aos sugeridos pela orto-
doxia — cujos hábitos derivam de uma arrogância epistemo-
lógica gigantesca. O novo método prescinde do conhecimen-
to do futuro, não reduz a realidade a um jogo de vídeo, é mais
simples e consegue capturar bons potenciais de valorização
sob um perfil de risco efetivamente conhecido e baixo.

126
A FRONTEIRA EFICIENTE

Markowitz simboliza o asset allocation (alocação de ati-


vos) ortodoxo. Concedemos atenção ao caso precisamente
por simbolizar mais um ícone do acréscimo desnecessário de
tecnicidade à prática dos investimentos.

A ideia inicial parte de uma visão crítica da tese de douto-


ramento de John Burr Williams, que, conforme já descrito,
basicamente expõe as raízes do Modelo de Fluxo de Caixa
Descontado. A leitura crítica de Markowitz é a de que a pro-
posição de Williams não contempla uma análise de risco. Fi-
losoficamente, o insight de Markowitz teria partido dos seus
estudos de filosofia em David Hume (embora possivelmente
Hume, se lesse a proposta de Markowitz, não concordaria).

O pilar de Markowitz é a noção de que o princípio da di-


versificação poderia levar a uma redução de risco, sem per-
da de retorno potencial. Ao comprar dois ou mais ativos que
não se movem exatamente na mesma direção, o investidor
conseguiria, para o mesmo nível de retorno esperado, encon-
trar um perfil de risco menor.

Sob a hipótese de aversão a risco, o sujeito gosta de mais


retorno e não gosta de risco. Portanto, aplicando a noção de
diversificação e observando de forma correta as covariâncias
(como os ativos se comportam juntos), poderíamos selecio-

127
nar ativos de maneira ótima: o menor risco possível para um
dado retorno esperado; ou, analogamente, o maior retorno
esperado a partir de um dado nível de risco. Nesse contexto,
a medida de risco é definida a partir do desvio-padrão (ou va-
riância) dos ativos, contempladas as respetivas covariâncias.

Note que, para cada nível de retorno esperado predeter-


minado, estaria associada uma combinação de ativos que da-
ria o mínimo de risco possível. A relação de todos os casos
de menor risco para um dado retorno dá origem à chamada
Fronteira Eficiente de Markowitz, marcada na linha a bold
(o maior retorno esperado possível para cada nível de risco
pré-acordado):

128
Em resumo, o investidor escolherá uma cesta que:

1. Oferece o máximo retorno esperado para diferentes


níveis de risco; e

2. Oferece o mínimo risco para diferentes níveis de re-


torno esperado

Que portfólio escolher dentro daqueles que se encontram


na fronteira eficiente depende da preferência individual, de
quanto o investidor quer combinar entre risco e retorno.
Qualquer um, desde que esteja na linha a bold, será eficiente.

129
MATEMATIZANDO

Aos que desejam ver os argumentos técnicos pormenori-


zados, o investidor depara-se com um problema simples de
maximização do retorno esperado para um dado nível de ris-
co. Ou, de forma análoga, de minimização do risco para um
dado nível de retorno esperado. A restrição é de que a soma
dos pesos investidos em cada ativo deve ser igual a 100%. O
risco da carteira é definido pelo desvio-padrão do portfólio:

, onde:

wi é o peso a ser alocado no ativo i,

wj é o peso a ser alocado no ativo j,

é a covariância entres os ativos i e j (quando i = j, te-


mos a própria variância).

A restrição, no caso, é representada pela hipótese de que


não há alavancagem e que todo o capital é investido:

0 ≤ wi ≤ 1

130
E agregamos também a restrição de que o retorno espera-
do não é uma variável, mas sim uma constante. Lembre-se
que estamos minimizando o risco para um “dado retorno”,
que é calculado por:

O retorno esperado do portfólio é a soma dos retornos es-


perados individuais, ponderados pelo peso aplicado em cada
ativo.

Assim, assumindo que conhecemos o retorno esperado e o


nível de risco (hipótese de Markowitz), chegamos a um pro-
blema clássico de otimização. Minimiza-se o risco do portfó-
lio, sob as restrições de que a soma dos pesos é igual a um e o
retorno esperado é um parâmetro exógeno definido a priori.

131
MARKOWITZ LEU HUME?

Hoje completa um mês exato desde que fui pela última


vez ao médico. Normalmente, tolero este tipo de coisa, mas
aquela situação foi demais para mim. No preciso momento
em que eu cruzava a porta do consultório, estava o pé direito
a entrar na sala e a outra perna fora, e o sujeito já estava a
preencher a minha receita.

Eu nem sequer tinha cumprimentado o doutor e ele já me


estava a passar a prescrição, sem nenhum tipo de diagnósti-
co. Não resisti e disparei:

- Doutor, desculpe, mas essa é a minha receita? Ainda nem


olhou para a minha garganta...

Ao que ele prontamente esclareceu:

- Não, não, caríssimo. Não se preocupe. Esta aqui é do próximo


paciente. A sua já está pronta há algum tempo. Pode levá-la.

Não dá para fazer medicina com pressa e superficialidade.


Idem para investimentos. Por isso fico perplexo com a falta
de profundidade de Markowitz. Entregámos um Nobel à toa.
Para falar a verdade, foi o primeiro prémio concedido por
uma derivada de primeira ordem, algo que se estuda no pri-
meiríssimo ano da faculdade (aquele em que vamos a todas
as festas e a nenhuma aula).

132
No seu estudo seminal sobre a Fronteira Eficiente,
Markowitz começa assim: “assuma que o retorno esperado
e o risco (variância) dos ativos são conhecidos”. A partir daí,
faz toda a derivação matemática do artigo, sob a ideia de que
retorno esperado e risco são de facto conhecidos.

Qual é o grande problema? Estas “coisas” não são parâme-


tros conhecidos a priori. Ao contrário, são variáveis que preci-
sam ser estimadas! E como variável estimada, deve vir acom-
panhada de um erro ou intervalo de confiança. Markowitz
simplesmente despreza esse ponto e desafia um dos pilares
mais triviais da Estatística.

E o pior: se reconhecêssemos o óbvio, que os tais parâme-


tros precisariam ser estimados e acompanhados de um erro
nas equações, então seria impossível derivar da forma como
fez Markowitz. Não haveria artigo, Nobel ou Fronteira Efi-
ciente. O modelo é muito frágil em relação às premissas.

Além disso, estamos diante de um sério — e comum —


viés metodológico, em que as hipóteses do modelo são esco-
lhidas justamente para permitir a formalização matemática
desejada e não para retratar a realidade de maneira verosí-
mil.

No final do seu trabalho clássico, Markowitz reconhece


que retorno esperado e variância precisam ser estimados,

133
por meio de uma combinação de técnicas estatísticas e do
“julgamento do homem prático”. Ênfase para esta segunda
parte. Depois de toda a matematização, precisamos recorrer
ao julgamento do Homem, ou seja, à subjetividade.

Em bom português, se assumirmos conhecer o retorno


esperado e o risco, então vira um exercício de cálculo dife-
rencial trivial. O problema é que não conhecemos. E a maior
dificuldade está precisamente em estimar essas variáveis.

Esta crítica não é apenas nossa. O argumento, por outras


palavras, aparece formulado no Apêndice II do livro de Nas-
sim Taleb sobre a antifragilidade. Mas isso é somente parte
da dificuldade de aceitar Markowitz. Podemos acrescentar
outros elementos indigestos.

Ficarei um pouco técnico agora, mas vai passar rápido.


Apenas dois parágrafos e volto a falar português.

A ideia da Fronteira Eficiente decorre de um modelo apoia-


do apenas nos dois primeiros momentos da distribuição de
probabilidade: na média (retorno esperado) e na variân-
cia (risco). Ocorre, porém, que o preço dos ativos no longo
prazo depende ainda mais substancialmente dos próximos
momentos, como a curtose (grosso modo, dos eventos raros,
aqueles muito distantes da média — já vimos isso anterior-
mente com o Cisne Negro).

134
Este argumento passa a ser aceite até mesmo pela orto-
doxia em Finanças. Robert Barro, por exemplo, que é um
dos grandes expoentes do mundo académico, no seu artigo
Rare events and equity premium, demonstra a importância dos
eventos raros no preço das ações. Quando Markowitz traba-
lha apenas com média e variância, despreza elementos essen-
ciais da gestão de risco. Repito novamente que não estamos
apenas a simplificar a realidade, mas a distorcer a malvada.

Outro ponto importante é que variância não é risco. Lem-


bre-se do caso do Geraldo, o nosso querido peru de Natal. Ele
foi alimentado durante 360 dias, sem nenhuma variância. Se
tomássemos o desvio-padrão da sua saúde como proxy para a
sua vitalidade no dia 25 de dezembro, teríamos inferido que
ele acordaria feliz e sadio, quando, na verdade, a ave tornou-
se no jantar.

Como exemplos claros do argumento, podemos citar o lu-


cro dos bancos nas vésperas de setembro de 2008 (marco da
crise subprime), a estabilidade das torres gémeas na primei-
ra semana de setembro de 2011, o comportamento da indús-
tria de Fukushima dias antes do desastre, e por aí fora. Os
maiores riscos não são precedidos por maiores variâncias.
Eles acontecem de repente.

Os tombos e derretimentos do mercado acabam por ser


uma das representações canónicas em finanças do proble-

135
ma de indução proposto por David Hume (lembra-se dele?).
Markowitz, que estudara filosofia e dizia-se muito interes-
sado nos ensinamentos de Hume, parece não ter entendido.

Para esgotar as críticas, temos algo ainda mais traumáti-


co. Quem provoca os tais ganhos da diversificação propostos
por Markowitz são as covariâncias. Grosso modo, as cova-
riâncias descrevem como um ativo oscila em relação a outro.
Em tese, é através da combinação de ativos que não se mo-
vem na mesma direção que se consegue preservar o retorno
esperado e reduzir o risco.

Acontece que, durante as crises, exatamente quando mais


precisa de liquidez, as correlações entre os ativos vão todas
para perto de 100%. O mercado vai todo na mesma direção
e rompe os históricos padronizados. Chega a crise e toda a
construção da Fronteira Eficiente é arruinada ao primeiro
sopro.

136
ALFRED NOBEL BIPOLAR

Markowitz não é apenas um mapa incompleto ou impreci-


so. É um mapa errado. E, como diria Taleb, um mapa errado
é pior do que não ter mapa nenhum. Por isso, precisamos
abandonar essa ideia. Quando mais precisar dela, estará so-
zinho e perdido.

Não há como combinar ativos de risco médio e achar que


isso vai resultar numa diminuição do risco total do portfó-
lio, precisamente porque os padrões históricos de correlação
estão em constante mutação. Assim como para qualquer ou-
tra variância financeira, o futuro das covariâncias também
é incerto.

Portanto, só há um caminho confiável para termos um


portfólio de baixo risco: alocar grande parte da carteira num
ativo de alta segurança. Isto é bem diferente do que combi-
nar ativos que, em teoria, se mexem em direções opostas,
porque, em várias situações, eles vão caminhar juntos.

Um portfólio pouco arriscado há de ser constituído neces-


sariamente por algo como 90% a 95% em títulos de baixíssi-
mo risco, e que pagam acima da inflação. Exemplos clássicos
são os títulos do Tesouro americano (assumindo que carrega
o título até ao final do vencimento, sem exposição às nuances
da marcação a mercado diário), depósitos ou mesmo CTPM.

137
Somente assim poderá ter a certeza da preservação da parte
mais expressiva do seu património.

E como fazer isto sem abrir mão do retorno potencial? Use


o restante (5% a 10%) em aplicações altamente arriscadas
com a óbvia contrapartida de elevado retorno potencial.

Dizemos-lhe isto sem a pretensão de conhecer probabili-


dades e todos os cenários possíveis para esses ativos de risco.
Assuma a sua ignorância e adote a postura mais humilde/
simples entre todas: agarre nessa pequena fatia da sua car-
teira e divida equitativamente pelos mais arriscados ativos
que encontrar (inteligentemente), exigindo em troca um belo
retorno potencial.

Formalmente, a estratégia é conhecida por 1/N. Reparti-


mos o montante total da parcela dedicada a risco (1) por N
(número de ativos).

A seleção de ativos deve respeitar precisamente o ponto


nevrálgico deste livro: quanto eu perco em caso de estar er-
rado (deve ser pouco) e quanto eu ganho quando estou certo
(deve ser muito). Representação canónica da antifragilidade.
Leve N o mais perto do infinito que conseguir. Isso vai maxi-
mizar as suas possibilidades de acertar. Por construção, ape-
nas um ou outro tiro certeiro será suficiente para sobrepujar
vários pequenos erros.

138
No próximo capítulo, apresentaremos exemplos práticos
para compor essa fatia arriscada da carteira — inclusiva-
mente com resultados reais de sucesso.

139
140
VI. OPCIONALIDADES

Chegámos finalmente ao capítulo mais pragmático do livro


— isso torna-o especialmente interessante para os leitores se-
dentos por exemplos reais e aplicações depois de tanta teoria.
Em causa própria, argumentamos que a nossa teoria também
se faz prática à medida que pomos os pontos nos is. Logo, o que
veremos aqui é apenas o sacramentar dos conceitos explorados
desde o início desta jornada em prol do investimento na bolsa.

Antes, porém, devo contar uma história pessoal. Quando


estávamos ainda a imaginar esta mesma escrita que agora
o alcança, a nossa editora Paula, deu-nos uma sugestão: por
que não misturam os insights financeiros com algumas his-
tórias pessoais?

141
Considerámos a ideia interessante. Fica muito mais fácil
compreender alguns conceitos através de histórias reais e do
quotidiano de qualquer um.

Eu escolho as coisas que quero contar sobre investimen-


tos, o leitor escolhe se quer ler ou não. A si — principalmente
— cabe a prerrogativa de fechar o livro ou seguir adiante,
ansioso pelo desfecho da história, para logo depois lamentar
que acabou. E quando acaba, começa outra.

Nesta eu tinha uns 18 anos, tinha acabado de entrar na


faculdade. O leitor sabe como é... vivemos o secundário todo
com duas expetativas em relação ao ensino superior: final-
mente vamos estudar aquilo que gostamos e, talvez a mais
marcante, vai ser ali que vamos encontrar a rapariga dos nos-
sos sonhos.

Pode achar-me muito romântico. Mas vi demasiados fil-


mes sobre os teenagers americanos e, portanto, é provável
que isso tenha deixado algumas sequelas.

No primeiro dia de aulas, eu reparei nela e achei que ela


reparou em mim. Mas fiquei na minha, sem contar a nin-
guém e simplesmente tentei omitir aquele sentimento. Con-
fesso que nunca tive muito jeito com o sexo oposto.

142
Um ano e pouco passou e certo dia, fizemos uma viagem
académica e, na emoção da viagem, achei que seria o momen-
to perfeito para dizer o que sentia.

Os dias foram passando e eu não arranjava o momento


certo para falar com ela. Vejo agora que era uma desculpa de
mau pagador. Os meses passaram até que alguém mais afoito
acabou por fazê-lo e claro, ganhou o seu coração.

Penso hoje que não tinha nada a perder e tudo a ganhar se


fosse falar com ela. O não estava garantido, o sim seria um
ganho admirável. Este é o princípio da opcionalidade que vai
rechear o último capítulo do livro.

143
AQUECER OS MOTORES

Num curso tradicional de Finanças (MBA também vale),


os alunos normalmente ouvem muito sobre ações, opções
e demais ativos financeiros — mas pouco sobre opcionali-
dades. E raramente aprendem a pensar em opcionalidades
de investimento. Talvez porque seja algo que transborde a
sala de aula, assimilável apenas com prática e experiência. E,
mesmo assim, não um qualquer tipo de experiência.

Opcionalidades só se tornam nítidas para as pessoas que


acumulam experiência cogitando (i) o que foi, mas poderia
não ter sido e (ii) o que não foi, mas poderia ter sido. Esta
atitude quântica em relação ao passado, de várias possibili-
dades, ajuda a contemplar o futuro de forma mais humilde e
plural. Por conseguinte, ajuda-o a investir melhor.

Por meio de um livro, não há como exercitar essa expe-


riência diretamente. Por isso, recomendamos: faça você mes-
mo. Comece por colocar muito dinheiro no depósito e pouco
em ações. Ou, com mais algum arrojo, invista bastante em
CTPM e um bocadito em opções. As lições de alocação apre-
sentadas no fim do capítulo V servem tanto ao profissional
quanto ao principiante.

Investir em ações não é coisa de expert nem coisa arrisca-


da, se feito na dose certa. Nada substituirá esta prática para

144
a qual o convocamos. Todavia, um aquecimento antes de co-
meçar pode sim tornar o movimento mais fluido. É o que fa-
remos aqui, a partir de agora. Vamos aquecer os motores por
meio de exemplos práticos.

Como primeiro passo, apresentarei uma tese geral de in-


vestimento amparada no plebiscito do Brexit. Estou ciente
de que algum incauto ao ler este livro depois do pleito poderá
julgar esta abordagem inicial como inútil e ultrapassada. Po-
rém, a essência epistemológica e didática continuará a mes-
ma até ao final dos tempos, independentemente de já saber-
mos que o Reino Unido decidiu abandonar a União Europeia.

Numa segunda etapa, adentraremos no investimento em


ações através de dois casos: uma empresa de retornos anti-
frágeis e, outra, uma armadilha de valor. Veremos como a
primeira é exatamente o que procuramos enquanto adeptos
de uma nova escola de value investing.

Por fim, detalharei aquele que é talvez o instrumental fi-


nanceiro mais afinado com o conceito de antifragilidade: o
mercado de opções. Vamos exemplificar como uma carteira
de derivados pode ser usada numa estratégia antifrágil. Se os
portfólios forem sempre pensados de modo a ter-se peque-
nos prejuízos e grandes lucros, o agregado acaba por tornar-
se bem vantajoso.

145
De A a Z, o investidor iniciante poderá replicar facilmente
configurações tais quais as sugeridas pelo exemplo eleitoral.
Ao intermediário, o discernimento entre ações frágeis e an-
tifrágeis haverá de tornar-se habitual. E aquele investidor
mais avançado não terá problemas ao desbravar o mercado
de opções, desde que munido dos preceitos de perdas limita-
das face a ganhos ilimitados. Voilà!

146
QUEM VAI GANHAR A ELEIÇÃO?

Evocada como provocação, esta é justamente a pergunta


que não vai querer formular — e muito menos responder —
num investimento em ano de votações tão determinantes.

Sempre que a tentação de vidente ameaçar tomar conta


do seu cérebro (ou estômago), lembre-se do que aprendemos
desde o início do livro: quase sempre ficamos pobres quando
ambicionamos prever o futuro, mas podemos tornar-nos mi-
lionários analisando diferentes cenários com as respetivas
probabilidades e impactos.

Pouco importa quem é que vai ganhar: Stay ou Leave. Não


entraremos em qualquer mérito político. O nosso esforço
será no sentido de imaginar o que ocorreria com o mercado
em cada uma das hipóteses. Obviamente, faremos isso aqui
de maneira simples, mas já suficientemente ponderada a
ponto de captarmos as ideias essenciais.

Aproximadamente um mês antes do pleito de junho de


2016, as pesquisas de intenção de voto apontavam o Stay
como favorito. Estes números podiam mudar radicalmen-
te até a ida às urnas, de modo que não vamos apoiar-nos
em valores específicos. Para efeito deste exercício, conside-
raremos apenas que a manutenção do Reino Unido na UE,

147
representaria a continuidade, em contrapartida o Leave seria
um resultado disruptivo e potencialmente catastrófico.

Se eu fosse analista político, faria distinções elaboradas


entre as duas propostas. Mas como sou analista financeiro,
não vou aventurar-me por essas bandas. Para mim, basta a
impressão de que o Stay manteria tudo na mesma e, por isso,
seria um resultado mais amigável do mercado. Em caráter
ilustrativo, diria que a City preferia ficar dentro da União Eu-
ropeia (e tinha pagado para isso).

Depois de tantos estudos que anunciavam o armagedon


financeiro caso o Leave ganhasse, era simples perceber que
a saída do Reino Unido provocaria um banho de sangue na
bolsa e na moeda britânica.

Assim chegávamos a duas situações possíveis. No cenário


mais provável, o Stay ganharia e a comunidade de investi-
mentos ficaria mais tranquila: bolsa para cima, com um ce-
nário de maior coesão dentro da União Europeia. No cenário
menos provável, a oposição venceria a disputa e o mercado
despencaria como resultado da incerteza.

Veja o exemplo do meu amigo João, que trabalhava numa


multinacional em Londres. Ele tinha todas as suas poupan-
ças em libras. Na altura, perguntou-me: achas que devo in-
vestir em bolsa?

148
Não estou numa posição de tentar adivinhar, mas dado o
risco real do Brexit acontecer, por que é que não te proteges
desse cenário?

Ficar 100% alocado em libras, por exemplo, seria uma es-


colha errada, já que a vantagem do Stay não era categórica.
Não adianta ser fanático ou teimoso. Nenhum europeu a vi-
ver no Reino Unido estava a torcer pelo Leave, mas nunca
deve montar a sua carteira tendo em conta os seus interesses
ou visões políticas.

Ao mesmo tempo, não recomendaria vender todas as li-


bras, pois seria razoável ter alguma exposição ao futuro em
que o Reino Unido se manteria na União Europeia.

Logo, a parte mais arriscada da minha carteira total (10%


a 15%) poderia ser preenchida por ações — e também op-
ções, conforme veremos adiante. Essa dose modesta não nos
prejudica muito no cenário-base e pode trazer um ganho in-
teressante no cenário alternativo.

Em paralelo, o grosso das aplicações estaria religiosamen-


te distribuído em ativos de baixo risco. Diante da perspetiva
do stay, eu gostaria de carregar uma boa posição (65% a 70%)
em depósitos simples de taxa fixa. Esta é uma escolha defen-
siva por si só.

149
Complementando o conservadorismo dos depósitos, soa
astuta uma aposta em euros (15%-20%). A moeda única pro-
tegeria a carteira caso houvesse um resultado eleitoral sur-
preendente.

Com isso, formamos um portfólio tão simples quanto


possível — qualquer investidor britânico poderia replicá-lo
facilmente. Um pouco de ações, uma porção de euros e bas-
tante em depósitos. De modo trivial, este mix poderia ser
traduzido em 15% de ETF de FOOTSIE (fundo de índice que
replica a bolsa britânica), 20% de euros e 65% em depósitos
bancários em libras.

Se o cenário de maior probabilidade se confirmasse, tal-


vez deixaria de ganhar algo (por causa dos euros), mas não
sofreria tanto e teria tempo para ajustar-se a um panorama
mais otimista.

Em contrapartida, se triunfasse o cenário remoto esta-


ria devidamente protegido e poderia inclusive ganhar com o
stress do mercado, graças à sua estratégia antifrágil.

Percebe como nada disto tem a ver com a boca da urna?

150
AÇÕES ASSIMÉTRICAS

Entrei no mercado financeiro em janeiro de 2010. Dizem


que são necessárias pelo menos 10 mil horas dedicadas a um
mesmo ofício até que se comece a desenvolver verdadeira ap-
tidão. Com base em 252 dias úteis por ano, 8 horas de labu-
ta por dia útil, esse ponto de inflexão ocorreu em janeiro de
2015.

Boa notícia para quem passou a acompanhar o nosso re-


search desde novembro de 2015.

Depois de vários anos de bolsa, neste momento apenas


recomendo ações de assimetria favorável. O que chamamos
aqui de PPGN: Pequenas Perdas, Grandes Negócios.

Na sua conceção rigorosa, o value investing não deve estar


preocupado apenas com ações baratas. O que é que tem se a
ação está barata? O barato pode sair caro. Por isso, o genuíno
investidor de valor tem que abrir mão da obsessão pelo zero
absoluto. Sozinho, o valor é uma armadilha.

Assimetria favorável funciona assim: o investidor não se


importa de perder pouco com uma ação somente se houver
um possível ganho estrondoso. Sob essa ótica, despontam
duas alternativas sedutoras:

151
i. Ações muito descontadas, cujo preço já considera o
pior cenário possível. O chão está perto e o teto está
longe. Quanto mais volatilidade, melhor. Nestes casos,
o acionista pode ficar feliz de antemão ao saber que a
sua empresa saiu no jornal, mesmo antes de verificar
se a notícia é boa ou má.

ii. Ações não necessariamente descontadas (podem in-


clusive parecer caras), mas que guardam cartas na
manga alheias à perceção do investidor comum. Tal-
vez haja uma probabilidade ínfima de 1% da empresa
ganhar um novo contrato que dobrará as suas recei-
tas. Na prática, ninguém liga para probabilidades de
1%. Mas pense só o que seria dobrar as receitas numa
tacada só...

É evidente que não dá para acertar sempre. Porém, na mé-


dia, se selecionarmos várias ações com assimetrias favorá-
veis, a lei dos grandes números acabará por consolidar um
resultado vantajoso. Normalmente demora, exige paciência,
mas a passagem do tempo só ajuda.

Em 2013, analisando a Sonae Capital identificámos um


raro caso de assimetria favorável. Na época, a empresa tinha
valor de mercado de 70 milhões e fazia lucros anuais negati-
vos de 13 milhões de euros. Visto assim, não era exatamente

152
um título que chamasse a atenção. Onde é que está a parte
favorável da assimetria?

Pois bem, nas opcionalidades! Foram elas que nos motiva-


ram a ir adiante com a recomendação de compra aos nossos
clientes, mesmo sem respaldo interno (apenas três analistas
do sell side cobriam a empresa).

A Sonae Capital fechou 2013 com uma pequena elevação


anual das receitas, mas com uma queda considerável dos lu-
cros. Por si só, não é uma configuração muito animadora,
mas a empresa negociava a menos de um quinto do valor pa-
trimonial.

O desconto na avaliação refletia, em grande parte, a vi-


são pessimista que o mercado atribuía ao seu maior ativo
— Troia Resort. Naquela altura, o país vivia uma grave crise
económica resultado das medidas de austeridade implemen-
tadas durante o programa de apoio da Troika.

Ao mesmo tempo que a Sonae Capital lamentava o declí-


nio no preço do imobiliário nacional, já assentava as bases
para uma nova aposta no setor da energia. Para isso, contou
com a aquisição de uma participação em 10 plantas de coge-
ração que tinha pertencido à empresa italiana Enel.

153
Em paralelo, as divisões de hotelaria e healtclub passavam
por uma profunda reestruturação, livrando-se de custos ex-
cessivos e implementando um choque de gestão com vista
a aumentar as margens. Os benefícios dessa reestruturação
ainda não eram evidentes mas indicavam, no mínimo, um
razoável corte de custos.

Do ponto de vista societário, a empresa era controlada


pela família Azevedo através do grupo EFANOR. Daí não an-
tevíamos problemas.

Então tínhamos três opcionalidades interessantes em vista:

i. Compra de um empreendimento imobiliário por uma


fração do seu valor de liquidação.
ii. Reestruturação da área de hotelaria e healthclub.
iii. Aposta na área da energia.

Como lastro concreto a essas opcionalidades, sabíamos


que estávamos a comprar ativos tangíveis (em Tróia) por uma
parcela do preço original — responsável por grande parte do
ativo — o que funcionaria como um piso do título.

Logo, era como se entrássemos no negócio do imobiliá-


rio e levássemos connosco algumas oportunidades valiosas,
dadas praticamente de graça. Baixo downside frente a uma
hipótese de upside significativa.

154
No final de 2013, que assinala o bottom do mercado imo-
biliário português, os contratos de compra e venda dispara-
ram. Se no primeiro semestre a empresa tinha conseguido
fechar apenas quatro contratos, na segunda parte do ano,
esse número disparou para 30.

O smart money reparou nesse sinal e posicionou-se de


acordo. A ação arrancou de 20 cêntimos para um preço aci-
ma dos 40 cêntimos em 2014. Ou seja, ganhos superiores a
100% para o acionista que conferiu na pele o rebound do mer-
cado imobiliário.

Parece o fim da história, mas não é. As opcionalidades que


identificámos anteriormente também geraram valor mais
tarde. Entre 2015 e 2017, todas estas unidades aumentaram
a sua contribuição no resultado operacional da empresa, ele-
vando-a acima dos 80 cêntimos.

Por justiça equânime, não vamos falar aqui só de uma his-


tória que deu certo. Afinal, opcionalidades também podem
dar errado. O importante não é comprá-las com probabilida-
de nula de fracasso, mas sim de forma que os ganhos poten-
ciais superem muito as perdas potenciais. Fazendo isto em
vários casos (o 1/N do capítulo V), na média sairá ganhador.

Um ano mais tarde, de forma a capturar uma inversão nos


fundamentos da economia, recomendámos a compra de BCP.

155
Na altura, o BCP tinha acabado de realizar um aumento de
capital de 2,250 mil milhões que visava, sobretudo, o reem-
bolso dos instrumentos de capital híbrido (os famigerados
CoCo’s).

Com essa injeção, o banco almejava poupanças significati-


vas com juros pagos, além de um impacto positivo na estru-
tura e rácios de capital.

Para nós, a execução do plano estratégico anunciado na


altura oferecia óbvias oportunidades de destravar valor. A
gestão estava a reduzir os custos drasticamente e continuava
a fazer uma limpeza agressiva do balanço.

Apesar do regresso aos lucros no início de 2015, o pro-


blema das imparidades estava longe de estar resolvido e em
2016 os resultados contabilísticos são novamente afetados
pelas dotações extraordinárias para a carteira de imparida-
des. Somou-se a isso mais um rumor de novo aumento de
capital e a empresa despencou.

Se na Sonae Capital, os investidores acumularam ganhos


de mais de 200%, na outra ponta, o BCP derreteu bem mais
de 97% desde essa altura. Se o investidor tivesse colocado
10.000 euros divididos equitativamente por cada uma das
ações, teria chegado a um lucro substancial no período. Uma
vez que os 5000 euros perdidos no BCP teriam sido mais que

156
compensados pelos lucros obtidos na SONC. Embora simpli-
ficado, este é um exemplo real dos benefícios da assimetria
enquanto repartida entre diversos casos.

157
ANTIGRÁGIL NA VEIA

Opções constituem a própria materialização do conceito


de antifragilidade. Opções na terra, antifragilidade no céu.
Contudo, é preciso manusear bem essa ferramenta, que pode
ser tão virtuosa quanto nociva no que à gestão de risco diz
respeito.

Nas nossas estratégias de derivados, limitamo-nos a indi-


car apenas a compra de opções, nunca operamos curtos em
opções. Recomendamos compra de calls (opções de compra)
e de puts (opções de venda). Quem compra uma opção detém
um direito. Quem vende uma opção assume uma obrigação.
Deter direitos é antifrágil, assumir obrigações é frágil.

Gostamos de oportunidades baratas de calls e puts fora


do dinheiro. Aos menos familiarizados com o vernáculo, isso
quer dizer que recomendamos opções relativamente distan-
tes dos seus preços de exercício e cujo preço atual implica
perdas.

Se nada de diferente acontecer, estas opções viram pó (va-


lem zero). Em contrapartida, se houver eventos extremos,
elas podem disparar num curto intervalo de tempo, por ve-
zes mais do que duplicando de valor. Desse modo, a volatili-
dade está a nosso favor, e temos perdas limitadas (o custo da
opção) versus ganhos potencialmente ilimitados.

158
Assim como na secção sobre ações assimétricas, ilustrare-
mos aqui uma performance de como uma carteira de opções
montada para um evento extremo pode trazer resultados ex-
cecionais.

Vejamos:

No dia 8 de novembro de 2016, os americanos decidiam


o novo presidente dos EUA. A favorita era Hillary Clinton,
mas as sondagens mostravam uma vantagem muito magra.
Um evento deste tipo poderia gerar imensa volatilidade caso
Trump saísse vencedor.

Tendo isso em conta, o investidor poderia montar um


portfólio de opções defensivo para a semana de 4 a 11 de
novembro, mais concentrado em puts, mas mantendo algu-
ma exposição ao upside que poderia advir do resultado mais
provável — uma vitória democrata.

159
O que aconteceu com as cinco componentes desta carteira?

Temos que separar a resposta em duas partes distintas.


Para quatro das opções, indicadas, os resultados foram ne-
gativos. Em contrapartida, uma — e apenas uma — das op-
ções registou uma alta impressionante de 725%. Eu não me
importaria de perder um pouco com quatro opções e lucrar
muito com a quinta.

Em termos gerais, é fácil perceber que uma opção pode


na pior das hipóteses — cair 100%; e pode — na melhor das
hipóteses — subir infinitamente.

Isso é assimetria favorável na veia.

Opções também podem funcionar como ótimos instru-


mentos de seguro. E seguro é assim: o leitor reclama quando
paga o prémio sem ter que usá-lo, mas este é o melhor cená-
rio possível. Ninguém fica feliz porque bateu com o carro e
poderá, enfim, acionar a indeminização da seguradora.

160
EPÍLOGO

Já comeu sopa de cação?

Garanto-lhe que se nunca provou este prato feito pela mi-


nha avó, então desculpe-me, mas nunca comeu. A D. Elisa, é
alentejana de gema e faz a melhor, senão, a única e a verda-
deira sopa de cação do planeta Terra.

Ela não tem uma teoria para cozinhar. Simplesmente vai


lá e faz. E não adianta tentar pedir explicações.

No geral, a minha mãe tem dotes culinários mais sofisti-


cados. Mas a sopa, não. A minha avó já tentou passar o lega-
do à filha, mas não fica a mesma coisa. Não adianta.

161
A diferença entre um bom cação e “o cação da minha avó”
é inexplicável; entra justamente na parte do conhecimento
tácito. Há algo na D. Elisa que está relacionado com a sua
própria competência e com as experiências individuais que
ela já viveu.

Ler uma receita e tentar reproduzir com fidelidade um


determinado prato é industrializar uma arte. Não existem
teorias sobre como cozinhar. Basicamente, cozinhamos. Essa
arte pertence aos praticantes do fogão, e não aos teóricos do
livro de receitas.

Imagine que precisa escolher entre provar um prato feito


por uma pessoa que cozinha com gosto há 60 anos ou con-
ferir uma suposta delícia elaborada por um recém-formado
na faculdade de gastronomia com excelentes notas na pauta.
Responda honestamente: qual é que prefere?

Tenho 200% mais confiança em quem, de facto, cozinha


do que em quem estuda culinária.

Em finanças, é exatamente o mesmo, e com o agravante


de que as receitas estão confusas; o mapa carregado no bolso
dos “financistas” profissionais oferece direções erradas. Não
dispor de mapa é melhor do que ter um mapa errado.

162
Entendemos, portanto, que a arte de investir pertence aos
investidores, e não aos teóricos sobre investimentos. Isso é
mais ético também, pois uma opinião sem exposição vale
zero. Só o investidor — e não o teórico de finanças — colo-
ca o dele na linha de fogo. Ele procura um bom ativo, vai lá
e compra. Expõe-se aos mesmos riscos que recomendaria a
um terceiro. Se eu recomendo para si e não compro, então a
minha sugestão não serve.

Por isso, aprenda a investir investindo. Limite as suas


perdas, mas erre. Para acertar em cheio, precisará ter errado
muito. Isso é parte do processo. Felizmente, tudo o que pre-
cisa é de poucos grandes acertos no meio de vários pequenos
erros.

A sabedoria oriental é muito superior à nossa. Os japo-


neses dizem: caia sete vezes, levante oito. A arrogância de
supostamente adivinhar o futuro e querer acertar sempre é
apenas uma questão de ego.

Terminamos quase da mesma forma com que começámos.


Não com o pai de Kafka, mas sim com Clarice:

“Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não


conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender,
viver ultrapassa qualquer entendimento”.

163
Lembre-se: não precisa estar certo e muito menos de um
ego milionário. Precisa apenas de entrar em campo. Não há
um sujeito sequer que tenha enriquecido na bolsa sem ter
tentado enriquecer.

164
Autores

FELIPE MIRANDA

Trabalhou na equipa de Sales de deriva-


dos do Deutsche Bank e como analista na
Monitor Clipper Partners. Foi professor
da Fundação Getulio Vargas em São Paulo.
Economista pela Faculdade de Economia,
Administração e Contabilidade da Univer-
sidade de São Paulo e mestre em Finanças
na Fundação Getulio Vargas.

RODOLFO AMSTALDEN

Foi consultor na International Paper, re-


searcher da Agência Nacional do Petróleo
e professor da Faculdade Cásper Líbero. É
bacharel em Economia pela Faculdade de
Economia, Administração e Contabilidade
da Universidade de São Paulo, em Jornalis-
mo pela Cásper Líbero e mestre em Finan-
ças pela Escola de Economia de São Paulo
da Fundação Getulio Vargas. Frequentou
ainda Física no Instituto de Física da Uni-
versidade de São Paulo.

165
Adaptado para Portugal por:

PEDRO GONÇALVES

Foi portfolio manager no Millennium


Investment Banking. É licenciado em
Finanças pelo ISCTE — Business School
e mestre em Gestão pela Universidade
Católica Portuguesa.

DIOGO BALTAZAR

Com mestrado em Engenharia e Gestão


Industrial pelo Instituto Superior Técnico,
trabalhou como a analista e trader na área
de investimentos da Fidelidade Companhia
de Seguros. CFA Charterholder pelo CFA
Institute.

166
Fundada em 2009, a Empiricus é uma casa in-
dependente de análise de investimentos. Que-
remos ajudá-lo a tornar-se num investidor mais
inteligente e bem remunerado - ambos requi-
sistos essenciais na busca da independência fi-
nanceira. Conheça mais em www.empiricus.pt

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