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A GRAMÁTICA DO LETRADO:
QUESTÕES PARA A TEORIA GRAMATICAL1
Mary A. Kato (UNICAMP/CNPq)
Abstract:
The concept of I-Language does not distinguish the linguistic knowledge of a child starting
school and that of a person who has undergone the whole process of literacy. In the
present study, I intend to formulate, and try to answer, the following questions, after
Chomsky’s (1986) regarding I-language: what is the form of the linguistic knowledge of a
literate adult, and b) how does he develop this knowledge. Not only are these questions
important for acquisition and education, but also fundamental for the linguist to
understand the nature of written language and corpora.
Palavras-chave: escrita- gramática nuclear- periferia marcada -- parâmetros –aquisição
1
Versões preliminares deste texto foram apresentadas em conferências nas Universidades do Porto, de Braga
e de Coimbra. Agradeço as intervenções das pessoas presentes nessas ocasiões. Sou grata também a Ilza
Ribeiro, Marilza de Oliveira, Ruth Lopes e Cida Torres pelos preciosos comentários sobre conteúdo e forma
desta última versão, mas as isento de qualquer responsabilidade pelos eventuais problemas e falhas no
produto final.
2
Vide todos os estudos pautados no corpus NURC (Norma Urbana Culta).
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escrita envolvem objetos e processos distintos, não sendo possível formular as mesmas
questões teóricas e trabalhar na mesma metodologia.
Para possibilitar alguma base de comparação entre o conhecimento lingüístico da
criança e o do adulto letrado, pretendo, neste trabalho, abordar a escrita e sua aquisição/
aprendizagem, formulando as questões de forma paralela àquelas apresentadas por
Chomsky para a Língua-I. São elas: a) qual a natureza do conhecimento lingüístico do
letrado e b) como ele atinge esse conhecimento?
Em relação à primeira questão, considerarei três hipóteses: a) dado o caráter
conservador das normas da escrita, o processo de letramento recupera o conhecimento
gramatical de um indivíduo de alguma época passada do português brasileiro ou b) dados
os convênios culturais com Portugal, que privilegia a unidade linguística entre os países,
esse saber é pautado no conhecimento lingüístico do falante português, e c) (a que iremos
defender) esse conhecimento se define como algo distinto dos outros dois. Em relação à
segunda questão, o problema que se coloca diz respeito ao possível acesso à GU
(gramática universal) na aquisição da escrita. Seguindo uma das posições que hoje se
defende na aquisição de uma segunda língua (L2), assumiremos que o acesso é indireto,
via a primeira gramática – a da língua falada no nosso caso. Defenderei, dentro dessa linha,
a hipótese de que a gramática da L1 contém uma periferia marcada onde valores
paramétricos opostos ao da gramática nuclear podem estar presentes, com caráter marcado,
recessivo, valores esses que podem assumir um valor competitivo, durante a escolarização,
em relação aos valores que se encontram definidos na gramática nuclear.
Na próxima seção farei um breve resumo do que Chomsky entende por Língua-I,
gramática nuclear e periferia marcada. Na seção 3, descreverei alguns aspectos da
gramática nuclear da criança ao chegar à escola e sugerirei alguns aspectos que podem
diferenciar a sua periferia marcada e, portanto, sua Língua-I. Na seção 4, levantarei
algumas características do saber lingüístico do letrado brasileiro contemporâneo, através
do que temos conseguido desvendar com base em pesquisas diacrônicas que incluem o
século XX. Ainda nessa seção, descreverei comparativamente alguns aspectos da gramática
do letrado europeu e brasileiro para verificar até que ponto apresentamos unidade ou
diversidade quanto às nossas competências gramaticais na modalidade escrita 3. Na seção 5,
farei especulações sobre a sua aquisição/aprendizagem.
3
Esses estudos foram desenvolvidos no interior do projeto bilateral comparativo “Português Europeu e
Português Brasileiro: unidade e diversidade na passagem do milênio”, que coordenei com João deAndrade
Peres, da Universidade de Lisboa, de 1999 a 2002, com o apoio do CNPq e ICCTI.
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Não estamos nos referindo aqui à proficiência, que tem a ver com habilidades de uso da língua, riqueza de
vocabulário, fluência, etc.
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psicolingüistas têm mostrado que os princípios maturam e que alguns deles levam
pelo menos até a idade de 5 ou 6 anos para se desenvolverem (cf. entre outros Borer &
Wexler, 1987). De qualquer forma, a criança chega à escola com sua gramática nuclear
definida, isto é, com todos os valores dos parâmetros selecionados.
Os parâmetros vêm sofrendo modificações em sua concepção (cf. Kato, 2003a), sendo
a tendência hoje a de identifica-los como propriedades da morfologia das categorias
funcionais5. O português brasileiro (PB), até meados do século XIX, caracterizava-se como
uma língua típica de Sujeito Nulo (SN), evitando pronomes ( Æ falo inglês; João disse que
Æ fala inglês) (Duarte, 1993, 1995). Porém, comparado com línguas como o espanhol, o
italiano e o português europeu (PE), o PB, teve sua flexão de concordância enfraquecida
(Galves, 1993), com a entrada do pronome você e a perda do tu, no paradigma
pronominal6. Ora, o Parâmetro do SN define um subtipo de línguas que têm seu sujeito em
sua flexão de concordância (Kato, 1999), o que dispensa a realização do sujeito
pronominal7. Uma língua de SN caracteriza-se ainda por outras propriedades8, entre elas,
por exemplo, a inversão sujeito/predicado (Chegaram as cartas; Comprou um carro novo
o João)9 e movimento longo do clítico (O Pedro não me vai convidar) (Kayne, 1989).
Dado o empobrecimento da flexão, a criança brasileira 10 que chega à escola apresenta, em
sua gramática, exatamente as propriedades contrárias às de uma língua de SN 11, a saber :
a) sujeitos referenciais preenchidos, já que a flexão de concordância perde sua função
pronominal
(1) a. Eu quelu.
b. O papaii disse que elei vem.
b)ausência de concordância com sujeito posposto, o que faz supor que a construção VS não
seja a mesma das outras línguas românicas de SN, mas que tenha sido reanalisada no PB
como um tipo de construção impessoal, como no francês (il est arrivés des hommes) (Kato,
2002):
5
Em Chomsky (1995), o conceito relevante é o de traços (“features”) dessas categorias funcionais , que
podem ser fortes, ou atratores, ou fracos.
6
Alguns poucos dialetos preservaram o tu, mas mesmo nestes é comum a perda da concordância.
7
Na verdade, a questão é mais complicada pois há línguas sem concordância, como o chinês, que também
admitem deixar o sujeito vazio (cf Jaeggli e Safir, 1989).
8
V. Chomsky, 1981, Rizzi, 1982, para as propriedades do Parâmetro do SN.
9
O PB tinha, além da inversão livre, (=inversão sujeito/predicado), a possibilidade VSX (Comprou João um
carro novo).
10
Para entender em detalhe o SN da criança quando chega à escola, vide Magalhães (2000) e Simões (2000).
11
O PB selecionaria um subtipo de línguas de sujeito nulo, que só permite sujeitos nulos referencialmente
deficientes.
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Cf Pagotto (1993) e Cyrino (1994)
13
Vide Cyrino (1995) para um estudo da diacronia do objeto nulo no PB e Kato (1994) para o estudo do
objeto nulo na aquisição.
14
Cf. Pagotto, 1993, Cyrino, 1994
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3rd p clitic 262 (89.1%) 257 (87.4%) 234 (81.6%) 133 (50%) 26 (11.2%)
NP 0 0 0 0 1 (0.4%)
TOTAL 294 (100%) 294 (100%) 287 (100%) 266 (100%) 233 (100%)
Null objects 59 64 48 52 10
Full pronoun 8 6 14 11 -
NP 33 18 13 5 5
Clitic - 12 25 32 86
-Edição portuguesa
(9) a.. Se hoje eu me tornasse um monstro e resolvesse matá-las uma por uma ...
b.. ..que contam histórias incríveis sempre nas horas que a gente as quer ouvir
c Estava excitado e ao mesmo tempo inseguro: talvez a menina já o tivesse
esquecido.
d Achei –o certo dia no campo.
e Tirou seu dinheiro do bolso e mostrou-o ao recém-chegado.
f Assim como eles estão, nenhum comprador vai querer comprá- los.
(Paulo Coelho, 1999, O alquimista. 56a.p.32-45. Rio de Janeiro:Rocco) PE
Nesse mesmo trabalho, verificou-se que o escritor brasileiro já incorpora a inovação
do pronome reto na posição de objeto, mas o faz em variação com o clítico:
(10) “Os adolescentes não entendem os adultos e acham que ninguém os entende.
Nós envelhecentes, também não entendemos eles.
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b a aquisição de L2, para quem já adquiriu plenamente uma L1, se dá via acesso
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Em trabalho posterior, todavia, Meisel (2000) passa a advogar a tese do acesso indireto.
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aprendizes exibem conhecimentos que extrapolam o ”input”; e d) que, em alguns casos, o estágio
estabilizado (steady state) se assemelha ao do falante nativo.
Herschensohn reconhece que as propriedades paramétricas relacionadas a um mesmo
parâmetro não aparecem de forma simultânea na aquisição de L2. Há casos de falantes de
espanhol e de francês que aprendem inglês como L2 e que, corretamente, rejeitam sujeitos nulos,
mas violam o filtro “that-trace ” (Who did Bill think that __ left?). Há também casos de falantes
de inglês aprendendo espanhol que adquirem a ordem VS e sujeito nulo, mas que têm problema
com violações do mesmo filtro “that-trace”. A autora invoca as diferenças entre a aquisição de L1
e L2 para explicar essas divergências, afirmando que o surgimento do conjunto de propriedades
de forma instantânea é característico da aquisição de L1, mas não da aquisição de L2. Esse fato,
porém, não significa, para a autora, que os aprendizes de L2 não acessem a GU. Uma vez que o
surgimento de um conjunto de propriedades pela marcação de um parâmetro é uma idealização
que não está postulada na teoria gerativa, a autora sugere a necessidade de maiores investimentos
na pesquisa em aquisição de L2 para que essa controvérsia sobre o surgimento de propriedades
paramétricas se esclareça.
Pensando em uma defesa de acesso à GU na escrita, podemos dizer, usando
argumentos similares aos de Hershensohn, que a escrita a) é restrita pelos mesmos
Princípios da GU, b) faz uso das mesmas categorias e funções (podem ser descritas pela
mesma meta-linguagem) e c) as opções gramaticas nelas presentes são previstas pelos
Parâmetros da GU. Podemos dizer, ainda, que a visão “macroparamétrica” – de conjunto de
propriedades de um mesmo Parâmetro vem sendo questionada, sendo a tendência hoje por
uma visão “microparamétrica”, assentada em subparametrizações. Vimos, por exemplo,
que o PB deixou de ser um tipo clássico de língua de sujeito nulo, mas em uma perspectiva
que admite subparametrizações, as línguas de SN não são uniformes, havendo subtipos
bem definidos (Cf. Cyrino, Duarte e Kato, 2000), em uma relação de subconjuntos
Logo, os sujeitos de Hershensohn aprendendo o inglês podem achar que o inglês é como
o PB, uma língua que preenche seus sujeitos referenciais, mas respeita o filtro. Também as
nossa crianças aprendendo os clíticos poderiam estar selecionando um subtipo de língua de
clítico, sem movimento longo destes.
Concluindo, podemos admitir que a mudança no conceito de parâmetro nos leva
também a mudar a nossa hipótese em relação ao acesso à GU. A ausência de uma das sub
propriedades de um parâmetro pode significar que o aprendiz está operando em um
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subparâmetro onde tal subpropriedade não existe. Quanto às diferenças comportamentais,
elas podem se dever, não ao desenvolvimento da competência, mas ao da proficiência, já que
aquela nem sempre se manifesta em termos de comportamento. Além disso, diferenciar a
aquisição de L1 e de L2 em função de dados positivos para aquela e positivos e negativos
para esta também é um critério problemático. A aquisição de L2 pode se dar por imersão,
isto é, por exposição apenas a dados positivos, ou através de instrução, isto é, através de
dados ordenados e negativos. A aquisição de L2, por imersão ambiental, e da escrita, via
imersão em leitura, certamente apresentarão mais semelhanças com a aquisição de L1,
essencialmente com base em dados positivos.
Essa periferia marcada pode se manifestar por conjuntos lexicais marcados, isto é, itens
que não se comportam como os demais em relação a um valor do parâmetro selecionado na
gramática nuclear, ou ainda por uma mini-gramática selecionada por gênero, também
distinta da gramática nuclear20.
Sua conclusão é de que a GU é totalmente accessível não só para projetar novas L2,
mas também dentro de uma dada língua, para criar ilhas de variação gramatical, provendo
o falante com nuances expressivas.
A proposta de Silva-Corvalán (1986) para a aquisição de L2 é uma proposta
interessante para a hipótese do acesso indireto, especialmente para a aquisição de línguas
que apresentam semelhanças com a L1, como é o caso da aquisição da escrita. Silva-
Corvalán, que estudou o bilingüismo dos hispânicos na Califórnia, observou que o
fenômeno do complementador nulo no inglês é um traço da gramática nuclear (John said
Æ he was coming/ the man Æ she loves) e no espanhol é um fenômeno periférico (Te ruego
Æ me lo envies pronto/ * Te agradezco el regalo Æ me enviaste). O que ela propõe é que a
aquisição de L2 se dá quando uma propriedade gramatical periférica da L1 é aprendida
como tendo o estatuto de uma propriedade nuclear na gramática da L2. Podemos pensar da
mesma forma que a G2 do letrado, antes caracterizada por propriedades periféricas, passa a
ter o estatuto de propriedades nucleares.
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