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2º ENCONTRO DE PSICÓLOGOS JURÍDICOS DO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO

ORGANIZAÇÃO
NÚCLEO DE PSICOLOGIA DA 1ª VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DA
COMARCA DA CAPITAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

APOIO: Escola de Administração do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de


Janeiro
AGRADECIMENTOS

Gostaríamos de agradecer o apoio e estímulo dos juízes da 1ª Vara da Infância e


Juventude, Dr Siro Darlan de Oliveira e Dr Leonardo de Castro Gomes, sem os quais não
seria possível a realização deste evento. Assim como a contribuição de todos os setores
da 1ªVara da Infância e Juventude.
Agradecemos o precioso apoio da Escola de Administração do Tribunal de Justiça.
Outrossim, ressaltamos nossos agradecimentos à Corregedoria Geral de Justiça e
ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que têm acolhido a realização dos
Encontros de Psicólogos Jurídicos e possibilitaram a publicação deste livro através da
Divisão de Artes Gráficas.
2º Encontro de Psicólogos Jurídicos do Tribunal de Justiça
A responsabilidade de cada um frente ao mal-estar atual

23 de novembro de 2001
LOCAL: Auditório Principal da EMERJ

PROGRAMAÇÃO
9:00h – Mesa de Abertura
• Desembargador José Lucas Moreira Alves de Brito – 1º Vice-Presidente do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
• Drª Maria Amélia Barreto Peixoto – Coordenadora do Centro de Apoio Operacional
das Promotorias de Justiça da Infância e da Juventude
• Drª Carmen Villaronga Fontenelle – Vice-Presidente da Ordem dos Advogados do
Brasil, Seção do Estado do Rio de Janeiro
• Drª Márcia Relvas de Souza – Diretora da Escola de Administração do TJ/RJ
• Coordenação: Dr. Leonardo de Castro Gomes – Juiz Auxiliar da 1ª Vara da Infância
e da Juventude da Comarca da Capital
11:00h – Mesa Redonda – Os impasses da filiação
• Dr. Leonardo de Castro Gomes – Juiz Auxiliar da 1ª Vara da Infância e da
Juventude da Comarca da Capital
• Drª Karina Valesca Fleury – Promotora de Justiça, Subcoordenadora do Centro de
Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Infância e da Juventude
• Drª Lygia Santa Maria Ayres – Professora e Pesquisadora da UFF e da UERJ
• Drª Telma Sampaio – Assistente Social da 1ª Vara da Infância e da Juventude da
Comarca da Capital
• Dr Eduardo Ponte Brandão – Psicólogo da 2ª Vara de Família, Infância e
Juventude de Petrópolis
Coordenação: Solange Diuana
13:00h – Almoço
14:00h – Mesa Redonda – Violência: o limite do laço social?
• Dr Romero Lallemant Lyra – Promotor de Justiça, Coordenador de Investigações
Eletrônicas do Ministério Público
• Drª Vera Malaguti Batista – Secretária-Geral do Instituto Carioca de Criminologia
• Dr Antônio Carlos Rafael Barbosa – Antropólogo, doutorando do PPGAS - Museu
Nacional / UFRJ
• Drª Ana Alice Trindade Morales Azevedo – Psicóloga da Vara de Execuções
Penais
Coordenação: Márcia Moscon de Faria
15:30h – Mesa Redonda – A responsabilidade de cada um frente ao mal-estar atual
• Dr. Sérgio Verani – Desembargador da Quinta Câmara Criminal
• Dr Romildo do Rêgo Barros – Psicanalista da Escola Brasileira de Psicanálise
• Drª Damiana de Oliveira – Psicóloga da 2ª Vara da Infância e Juventude da
Comarca da Capital
Coordenação: Maria Elena Mazzetti
17:00h – Lançamento do livro do 1º Encontro
17:30 h - Mesa de Encerramento
o Comissão Organizadora do 2º Encontro

Comissão Organizadora
Daniele Bloris
José César Coimbra
Mônicca de Carvalho Moreira

Comissão Científica
Ana Lúcia Parada Macedo
Gabriela Soares Bond
Mônica Corrêa Meyer

NÚCLEO DE PSICOLOGIA DA 1ª VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DA CAPITAL

APOIO: ESAJ - ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA/RJ


ÍNDICE

Apresentação............................................................................................................
1. Mesa Redonda – Os impasses da Filiação..................................................
Dr. Leonardo de Castro Gomes – Juiz Auxiliar da 1ª Vara da Infância e da Juventude da
Comarca da Capital.........................................................
Drª Karina Valesca Fleury – Promotora de Justiça, Subcoordenadora do Centro de Apoio
Operacional das Promotorias de Justiça da Infância e da Juventude................................
Drª Lygia Santa Maria Ayres – Professora e Pesquisadora da UFF e da
UERJ.......................................................................................................................
Drª Telma Sampaio – Assistente Social da 1ª Vara da Infância e da Juventude da
Comarca da Capital................................................................................................
Dr Eduardo Ponte Brandão – Psicólogo da 2ª Vara de Família, Infância e Juventude de
Petrópolis..........................................................................................
2. Mesa Redonda – Violência: o limite do laço social?................................................
Dr Romero Lallemant Lyra – Promotor de Justiça, Coordenador de Investigações
Eletrônicas do Ministério Público.............................................................................
Drª Vera Malaguti Batista – Secretária-Geral do Instituto Carioca de
Criminologia.............................................................................................................
Dr Antônio Carlos Rafael Barbosa – Antropólogo, doutorando do PPGAS - Museu
Nacional / UFRJ........................................................................................................
Drª Ana Alice Trindade Morales Azevedo – Psicóloga da Vara de Execuções
Penais.....................................................................................................................
3. Mesa Redonda – A responsabilidade de cada um frente ao mal-estar atual.............
Dr. Sérgio Verani – Desembargador da Quinta Câmara Criminal.............................
Dr Romildo do Rêgo Barros – Psicanalista da Escola Brasileira de
Psicanálise................................................................................................................
Drª Damiana de Oliveira – Psicóloga da 2ª Vara da Infância e Juventude da Comarca da
Capital..................................................................................................
4. Um Pouco de História........................................................................................
Apresentação
José César Coimbra1
A responsabilidade de cada um frente ao mal-estar atual é o tema do Encontro
deste ano. Devemos, antes de tudo, determo-nos nos possíveis motivos da escolha deste
mote, bem como também em algumas conseqüências que podem ser extraídas da
distância que marca o momento da apresentação das comunicações e aquele de sua
publicação.
O título do Encontro propõe e sintetiza um rol de questões que os trabalhos aqui
reunidos atualizam de modos diversos. Contudo, é preciso destacar duas linhas de força
que emergem seja dos trabalhos em seu conjunto, seja dos motivos que levaram os
organizadores a propor tal tema: 1a) a relação entre mal-estar e responsabilidade; 2a) o
questionamento sobre o estatuto das noções de responsabilidade e mal-estar.
Um comentário sobre as linhas de força destacadas acima não deve perder de
perspectiva o lugar de onde originariamente teriam sido gestadas. Assim, é importante
destacar que se o primeiro Encontro teve como tema o papel do psicólogo no Judiciário, o
segundo propõe e traz à discussão exatamente estas duas palavras: mal-estar e
responsabilidade. Ora, podemos dizer então que uma transmissão se fez ao longo desse
tempo. A herança do 2o Encontro foi o tema decantado no ano anterior, cujo núcleo foi
condensado em duas palavras: responsabilidade e mal-estar.
Assim, se podemos notar no título deste Encontro o complemento ‘[a
responsabilidade] de cada um...’, aí compreendendo um processo de singularização [cada
um] diante de uma generalização possível [todos], deve-se destacar, para o que nos diz
respeito mais diretamente, que estamos falando dos psicólogos que ocupam tal função no
Poder Judiciário do Rio de Janeiro. Desse modo, há uma linha direta de sentido entre o
que foram o primeiro e o segundo Encontros.
Isto é, se a experiência profissional dos referidos psicólogos traz a marca de um
mal-estar, seria interessante, como alguns trabalhos apontaram aqui, delimitar o que é do
campo do contingente e aquilo que talvez pudéssemos chamar propriamente estrutural.
Se o primeiro campo faz-se imediatamente visível (dilemas no campo ético acerca da
intervenção em processos de disputa de guarda, habilitação para adoção ou
atendimentos compulsórios; confrontos com o horror que podem marcar os casos de
violência sexual; condições de trabalho pouco propícias; relações profissionais não
sinérgicas; constatação de uma repetição infinita de situações que parecem indicar
apenas a impotência de cada um frente a elas, etc.), o segundo muito raramente parece

1 Coordenador do Núcleo de Psicologia da 1ª Vara da Infância e Juventude


nos chamar a atenção de fato. E, se o faz, ocorre geralmente à custa de reforçar a
impotência descrita previamente.
Feita a explanação do parágrafo anterior, podemos afirmar desde logo que a
responsabilidade que se vai destacar ao longo deste livro não é exclusivamente
reivindicatória. Isto é, não se trataria apenas de dar uma voz, de dever dar uma voz, às
mazelas assinaladas ou também de tomar para si a sua pretensa solução. Existe uma
idéia de medida que não deverá ser perdida de vista, o que implica que, de certo modo,
tudo fazer é nada fazer; considerar possível tudo resolver é nada resolver. Se esses
enunciados podem parecer caricatos, a experiência quotidiana nos apresenta situações
que são suas atualizações mais corriqueiras: não é a sensação de nada poder fazer -
impotência - manifesta em algum grau mesmo naqueles que pretendem trazer para si,
supostamente, toda a responsabilidade pelo que se entenderia dever ser feito? O que
dizer dos outros que afirmam: ‘nada posso fazer’?
Os trabalhos aqui apresentados indicarão, cada um a seu modo, a dificuldade e a
importância implicadas hoje em efetuar o corte entre o mal-estar contingente e o
estrutural. Da mesma forma, a sua leitura sem dúvida nos lançará num território onde a
divisão entre o contingente e o estrutural poderá ser revista, assumindo o impossível o
lugar que corriqueiramente tem sido ocupado pela impotência. Desse percurso, talvez
possamos vislumbrar que o impossível não seria propriamente o índice do que não pode
ser realizado. Mas, antes de tudo, tratar-se-ia do próprio motor para novas descobertas.
Nessa chave, a responsabilidade de cada um não seria outra senão a da passagem da
impotência ao impossível. Em outras palavras, de criar um saber-fazer mesmo com
relação ao que nunca poderá estar ao nosso alcance. Que nessa travessia as próprias
palavras possam adquirir novos sentidos não deve nos passar despercebido: trabalho,
responsabilidade, mal-estar, alegria...e assim retornarmos ao que entendemos ser um
cruzamento entre as duas linhas de força que mencionamos em nossas primeiras linhas:
se é pertinente pensar os estatutos do que é responsabilidade e mal-estar, então a
relação entre esses termos pode ser apreciada numa perspectiva outra que não seja
propriamente funesta.
É assim que ao escrever esta Apresentação já podemos ouvir o chamado do 3o
Encontro e quase podemos antever que persistirá ainda nele questões cruciais que
começaram a ter uma certa forma há três anos. A transmissão continua. Que ela assuma
nomes distintos a cada vez é uma prerrogativa que o tempo confere inevitavelmente,
salutar até; que dentre esses nomes tenhamos necessariamente que ver o desenho
formado pelo conjunto responsabilidade e mal-estar é, de certa forma, uma exigência
ética. Uma ética que, para concluir, encontrou expressão contundente num dramaturgo
que fez da luta com a palavra uma experiência que certamente nos é de muita valia
também. Escreveu Beckett em O Inominável:

“Talvez me tenham levado até o umbral de minha história, ante a porta que se abre
para a minha história, isso me espantaria, se ela se abre, serei eu, será o silêncio, aí
onde estou, não sei, não o saberei nunca, no silêncio não se sabe, é preciso continuar,
não posso continuar, vou continuar”.
OS IMPASSES DA FILIAÇÃO
O sentimento filial como fator de legitimidade da relação entre pais e filhos e como
fator preponderante para a solução de conflitos parentais
Leonardo de Castro Gomes

Sensível mudança ocorreu nos últimos quinze anos quanto ao aspecto jurídico da
filiação. Até o advento da Constituição de 1988, em especial o parágrafo 6.º de seu artigo
227, o ordenamento jurídico admitia o tratamento diferenciado entre filhos concebidos na
constância do casamento e aqueles que não o foram. Os últimos eram taxados de
ilegítimos, podendo ser legitimados casos os pais viessem a casar, equiparando-se aos
legítimos. À parte, havia tratamento específico para os filhos adotivos. A doutrina tratava
de azeitar esta classificação diferenciando os filhos ilegítimos simplesmente naturais dos
filhos espúrios, estes considerados os adulterinos e os incestuosos. Eram simplesmente
naturais os filhos ilegítimos de pais que, embora não tivessem impedimento legal para
casar, optaram por não fazê-lo. Eram espúrios os filhos ilegítimos dos pais impedidos
legalmente de casar, seja porque ao menos um já era casado (proveniente de relação
adulterina) ou porque mantinham entre si relação próxima de parentesco ou afinidade
(incestuosa).
Histórica e significativamente, as discriminações legais em relação aos filhos
ilegítimos alcançavam o direito à herança e a própria possibilidade ou oportunidade de tal
filiação ser reconhecida para o mundo jurídico, reconhecimento este que se dá
voluntariamente pelos genitores ou por decisão judicial em ação própria.
Por ocasião em que o Código Civil entrou em vigor, em 1917, os filhos ilegítimos
(inclusive os simplesmente naturais), quando reconhecidos, só faziam jus à metade da
herança do filho legítimo. Esta distinção foi amenizada através de interpretações
pretorianas, especialmente em relação aos filhos ilegítimos simplesmente naturais, com o
advento da Constituição Federal de 1937 e somente foi abolida em 1977, quando
sancionada a chamada Lei do Divórcio (Lei n.º 6.515, de 26/12/1977), cujas novidades
introduzidas no Direito de Família vão muito além do instituto que lhe deu o nome.
No entanto, em relação à possibilidade e oportunidade do reconhecimento da
filiação, distinções entre as diversas categorias se mantiveram até a Constituição de
1988.
Em 1917, era terminantemente proibido o reconhecimento voluntário ou judicial dos
filhos espúrios (adulterinos ou incestuosos). Mudanças legislativas passaram
gradualmente a admitir o reconhecimento do filho adulterino, embora continuassem a
restringir a sua oportunidade. O Decreto-lei 4.737, de 24/09/42, autorizava o

0
reconhecimento do filho adulterino após o desquite do cônjuge adúltero, gerando
controvérsias quanto às demais hipóteses de dissolução da sociedade conjugal (morte do
cônjuge, anulação do casamento), que foram pacificadas pela Lei n.º 883, de 21/10/49, a
qual abrangeu aqueles casos. Novamente a Lei do Divórcio, em 1977, passou a admitir o
reconhecimento do filho adulterino através de testamento cerrado, novidade esta que
deve ter enfartado o miocárdio de algumas viúvas desinformadas. Por último, em 1984, a
Lei n.º 7.250, autoriza o reconhecimento judicial do filho adulterino desde que
comprovada a separação de fato do casal por cinco anos contínuos.
Em relação ao filho incestuoso, este era legalmente órfão até a Constituição de
1988, pois seu reconhecimento, seja voluntário ou judicial, era vedado por lei. Na prática,
este filho era registrado por apenas um dos pais, de forma a não caracterizar a sua
origem incestuosa.
Os filhos adotivos, conforme dito anteriormente, sempre tiveram um tratamento
próprio, mas não tão menos discriminatório. As relações de parentesco historicamente se
cingiam entre adotante e adotado, não abrangiam os familiares daquele e o seu direito à
herança era condicionado à inexistência de filhos reconhecidos do adotante, fossem
legítimos, legitimados ou ilegítimos. Este era o regime do Código Civil. Mesmo a chamada
adoção plena do Código de Menores (Lei n.º 6.697, de 10/10/79), que pela Lei
antecessora n.º 4.665/65 era denominada legitimação adotiva, discriminava tacitamente
as crianças adotadas quando exigia como um dos requisitos para a adoção a inexistência
de filhos legítimos, legitimados ou naturais reconhecidos.
Todas as distinções remanescentes cessaram em 05/10/1988 com a promulgação
da atual Constituição Federal, que dita expressamente no parágrafo 6.º de seu artigo 227:
“Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos
direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à
filiação”. O referido parágrafo especifica norma contida no caput do artigo 227, que por
sua vez é a base constitucional da doutrina da proteção integral à criança e ao
adolescente, ora titulares de direitos que atendem a sua condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento, dentre os quais o direito à dignidade, cabendo à família, ao Poder
Público e à sociedade em geral “colocá-los a salvo de toda a forma de discriminação”. Era
inquestionável que o tratamento discriminatório dispensado aos filhos adotivos e
ilegítimos afetava a sua dignidade.
Posteriormente, tais dispositivos constitucionais vieram esmiuçados por duas leis:
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069, de 13/07/1990), que dentre
outras coisas disciplina o instituto da adoção e ameniza os rigores do procedimento de

1
registro civil da criança e do adolescente; e pela Lei n.º 8.560/92 que regula a
investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento.
Verifica-se, pois, que muito mais que uma evolução, a Constituição Federal de
1988 representa uma verdadeira revolução no trato da matéria, com quebra de
paradigmas, principalmente em relação à legitimidade da filiação.
Conforme o histórico apresentado, o casamento sempre foi a referência para se
determinar a legitimidade da relação entre pais e filhos. A preocupação da lei, influenciada
pela religião, sempre foi preservar a instituição do casamento, colocando-a acima das
relações puramente afetivas e resguardando marido e mulher, que afinal optaram pelo
casamento, de eventuais constrangimentos frente à sociedade. A lei encobria a filiação
adulterina enquanto durasse a sociedade conjugal. Os filhos advindos de relação
incestuosa eram condenados à orfandade em nome dos valores da família.
Paralelamente, quanto ao aspecto patrimonial-sucessório valorizou-se até então a filiação
sangüínea. Afinal, os filhos do próprio sangue eram obra divina, ao passo que a filiação
adotiva é criação da lei meramente do homem.
Estes paradigmas não sobreviveram à Constituição de 1988, apesar de seu
preâmbulo fazer menção ao Nosso Senhor, que afinal jamais priorizou o casamento em
detrimento da criança ou do adolescente.
A legitimidade da filiação, portanto, não guarda mais qualquer relação com o
estado dos genitores. No entanto, ainda é possível auferi-la, no sentido de sua legalidade,
da razão e do senso de justiça.
A doutrina da proteção integral confere a crianças e adolescentes a titularidade de
direitos que visam garantir o seu desenvolvimento físico, moral, educacional e espiritual
sadio. A estes direitos correspondem deveres de todos (família, Poder Público e
sociedade). Um último aspecto da doutrina é a prioridade com que os direitos devem ser
assegurados.
A família é a primeira protetora dos direitos. Sabe-se que o desenvolvimento sadio
da pessoa em formação depende de uma estrutura familiar adequada, sendo o direito à
convivência familiar um dos direitos expressos da criança e do adolescente. Este direito
não corresponde ao mero convívio com familiares, mas exige que os familiares
responsáveis acolham a criança e o adolescente de forma positiva, de forma a favorecer
seu desenvolvimento.
Enfim, embora tais termos não estejam previstos em lei (lamentável), este
acolhimento deve necessariamente ser feito com amor, carinho, dedicação e
compreensão, pois só assim se estará disponibilizando um ambiente favorável ao

2
desenvolvimento da criança e do adolescente.
A relação afetiva decorrente deste ambiente favorável, do ponto de vista da criança
e do adolescente, vem a ser o que passamos a chamar de sentimento filial. De acordo
com a doutrina da proteção integral, portanto, é dever do pai e da mãe proporcioná-lo e é
direito da criança e do adolescente tê-lo. Por outro lado, a inexistência ou deturpação do
sentimento filial enseja a aplicação de medida protetiva prevista no Estatuto da Criança e
do Adolescente.
Por exemplo, a criança privada deste sentimento em razão do abandono ou maus
tratos perpetrados pelos pais pode ser colocada em família substituta. Quando a relação
afetiva se estremecer por submissão dos pais ou da própria criança ou adolescente às
drogas, cabe o encaminhamento da família a tratamento adequado (artigos 101 e 129 do
ECA). Se o sentimento filial estiver meramente ameaçado por conduta negligente dos pais
no trato diário com a criança, é aplicável uma advertência, medida prevista no artigo 129,
VII, do ECA.
O sentimento filial, portanto, em substituição ao casamento do regime anterior à
Constituição revolucionária de 1988, é o atual fator de legitimidade da filiação, de maneira
que, se absolutamente inviável a sua existência entre a criança ou adolescente e seus
pais biológicos, a filiação é ilegítima e deve-se buscá-lo junto a família substituta, seja
pela modalidade de adoção, guarda ou tutela, moldando-se a medida legalmente
adequada ao caso concreto.
O sentimento filial vem a ser o anverso da medalha correspondente aos “motivos
legítimos” previstos no artigo 43 do ECA como condição para o deferimento do pedido de
adoção. Também refere-se, em grande parte, aos interesses superiores da criança e do
adolescente que guia a interpretação de toda a Lei n.º 8.069/90. Toda as medidas ali
previstas devem ser aplicadas respeitando-se o sentimento filial da criança e do
adolescente. Não se admite, por exemplo, o afastamento da criança de uma mãe ou de
um pai através da decretação da perda da guarda ou da destituição do pátrio poder se a
medida violar aquele sentimento, ainda que ocorrida uma das hipóteses que autorizem a
medida.
Em prestígio ao sentimento filial, dá-se importância à oitiva da criança ou do
adolescente nos procedimentos de colocação em família substituta (artigo 168), bem
como se exige o consentimento expresso do adolescente para a sua adoção (art. 45, §
2.º, do ECA).
Por fim, a observância do sentimento filial será sempre um requisito genérico para
a aplicação de qualquer medida protetiva, mormente aquelas que incidem sobre a relação

3
parental conflituosa.

4
Os Impasses da Filiação e
o Direito Fundamental à Convivência Familiar
Karina Valesca Fleury*

Bom dia a todos. Em primeiro lugar, gostaria de dizer que me sinto extremamente
honrada em integrar esta mesa, em participar deste evento, desta reflexão organizada por
psicólogos e dirigida, sobretudo, às equipes técnicas do Tribunal de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro; porque eu valorizo muito, assim como a minha Instituição, o Ministério
Público, o trabalho desses profissionais. Considero um avanço a previsão contida no
artigo 150 do Estatuto da Criança e do Adolescente2, no sentido de que o Poder Judiciário
forme suas equipes interprofissionais. Sem dúvida alguma, o presente evento, realizado
por profissionais técnicos do Tribunal de Justiça e voltado para os diversos setores da
sociedade ligados à infância e à juventude, representa o perfeito exercício dos princípios
que informam o sistema previsto na Lei nº 8.069/90. É pura reflexão compartilhada entre
aqueles que atuam para a proteção de crianças e adolescentes.
Sinto-me ainda mais honrada em compartilhar deste espaço em função do tema,
que é a responsabilidade de cada um diante do mal-estar que vivenciamos em relação à
Infância e Juventude. É produtivo e sempre oportuno falarmos sobre nossas
responsabilidades, porque o Estatuto prevê um sistema de garantias, uma rede de
atendimento, apontando para várias formas de atenção e de intervenção da família, da
Sociedade e do Poder Público, que têm o dever de assegurar, com absoluta prioridade, a
efetivação dos direitos fundamentais e especiais de crianças e adolescentes3. E por isso,
todos devem assim proceder, sob pena de subsunção às hipóteses previstas no artigo 98
do Estatuto e, por conseguinte, da ocorrência da “situação de risco” ou, mais
modernamente denominada, “situação de proteção especial”.
O tema, Impasses da filiação, apesar de indicar, num primeiro momento, alguma
restrição, implica, em verdade, numa possibilidade muito ampla de abordagens.
Realmente, poderíamos realizar um seminário de vários dias para tratar dos diversos
aspectos inerentes aos “impasses da filiação”, mas optei por me fixar em uma parte

2 Art. 150 do ECA: “Cabe ao Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta orçamentária, prever recursos para
manutenção de equipe interprofissional, destinada a assessorar a Justiça da Infância e da Juventude”.
3 Art. 227 da Constituição da República: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente: É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder
público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária.

5
específica e basilar do tema nesta breve exposição. A escolha ocorreu de um modo muito
claro e natural por força da minha atuação profissional, que vem me permitindo viajar por
todo o nosso Estado e, com isso, lidar diretamente com as comunidades, com uma
diversidade de problemas graves, conhecer profissionais do direito e suas diferentes
atuações e formar uma visão bastante realista das dificuldades dos Municípios e da
eficácia do Estatuto nas diversas áreas do Direito da Criança e do Adolescente.
Sei que o interior encontra-se muito bem representado neste auditório e me sinto
no dever de frisar que os fatos e afirmações serão abordados em tese. Posso até citar
algum exemplo, mas sem qualquer propósito direcionado a pessoas ou órgãos, e sim de
expressar um sentimento de angústia. Valho-me da palavra angústia, podendo parecer
açodada ou pessimista, mas não é. Ao contrário, refiro-me a uma angústia positiva que
nos impulsiona a transformar a realidade. Assim, o primeiro ponto é reconhecer as
dificuldades que enfrentamos, e são muitas, em todas as instituições. Por isso, optei pela
análise do direito à convivência familiar, previsto no artigo 227 da Constituição da
República e no artigo 4º da Lei nº 8.069/90.
Sabemos que o vínculo de filiação4 pode ser estabelecido naturalmente,
biologicamente através da procriação, ou por meio de uma ficção jurídica, através da
adoção. Eu não pretendo aqui fazer uma análise dos dispositivos legais e explicar
juridicamente o respectivo significado, porque em função da vivência, vocês já estão
familiarizados com isso e, de alguma maneira, estamos aqui hoje para provocar a reflexão
sobre alguns aspectos mais controvertidos, sendo esse o meu objetivo. Entretanto, com o
advento da Carta de 1998 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, é impossível falar
de filiação sem ressaltar que a mesma está diretamente ligada ao direito fundamental à
convivência familiar. Do mesmo modo, a análise desse direito especial de crianças e
adolescentes passa necessariamente pela abordagem dos conceitos de família natural e
de família substituta dentro do ordenamento vigente.
Com efeito, a busca da preservação dos vínculos familiares é um direito
fundamental da criança e do adolescente. E Isso não se discute diante do que dispõem os
já mencionados artigos da Constituição Federal e da Lei nº 8.069/90.5 Tal princípio
encontra-se ainda mais detalhado no artigo 19 do Estatuto, que prevê expressamente o
direito de toda criança e adolescente a ser criado no seio da sua família e,

4 FERREIRA, Lúcia Maria Teixeira. Tutela da Filiação. In O Melhor Interesse da Criança: um debate Interdisciplinar.
PEREIRA, Tânia da Silva (Org.). Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2000, p. 261: “O Código Civil brasileiro não definiu a
filiação, limitando-se a determinar o que é parentesco em linha reta. O parentesco é o vínculo jurídico estabelecido
pela consangüinidade ou pela adoção (parentesco civil). Das relações de parentesco, a relação jurídica mais
importante é a filiação, que consiste na relação que se estabelece entre pais e filhos, sendo designada, sob o ângulo do
pai ou da mãe, de paternidade ou maternidade.”
5 Art. 227 da Constituição da República.

6
excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar. Na mesma
linha e densificando a opção do legislador pela preservação dos vínculos e da identidade,
o artigo 27 do Estatuto prevê que o direito ao reconhecimento do estado de filiação é
personalíssimo, indisponível e imprescritível.
Assim, partirei de uma análise do direito à convivência familiar, mas sob o prisma
da realidade que o nosso País enfrenta, e aqui eu não pretendo fazer um discurso
meramente social e utópico. Aliás, a crítica que se faz ao Estatuto é que ele representaria
uma legislação maravilhosa, mas completamente fora da realidade. Acontece que é uma
lei. É uma lei e somos obrigados a cumpri-la, buscando trazer para o plano da realidade
aquilo que o legislador e, portanto, a sociedade, almejou no que diz respeito à garantia de
direitos de crianças e adolescentes.
Certamente, é um caminho muito difícil, não existindo atualmente um método
fechado que viabilize a aplicação plena do Estatuto. Acontece que temos hoje espaços
como este, extremamente férteis, para que possamos sempre aquecer a consciência de
nossa responsabilidade na hora de atuar em cada processo, em cada caso concreto,
sempre orientados por esse enfoque. E que enfoque? A idéia fundamental de que aquela
criança (ou adolescente) tem o direito fundamental de permanecer em sua família. É
evidente, que tal regra não é absoluta e incondicional, na medida em que diante de
comportamentos humanos, laços afetivos e fatores emocionais complexos, a legislação
não poderia deixar de prever a possibilidade de alteração do status quo familiar, através
da interferência do Poder Público e/ou da sociedade.
Diante de algumas circunstâncias, da violação ou ameaça de direitos e da
necessidade de a criança ser colocada em situação de proteção especial, nós vamos
vislumbrar a necessidade de colocá-la em família substituta, traduzindo-se esta na própria
proteção ofertada pela Lei. Como bem colocou anteriormente a ilustre pesquisadora, não
se trata de ser contra ou a favor da adoção, muito pelo contrário, e nem poderíamos ser,
porque a adoção está prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, seja ela
nacional ou internacional, devendo ser deferida quando preenchidos os requisitos legais,
sobretudo o respeito ao princípio do melhor interesse da criança ou do adolescente.
Por ser a Promotora de Justiça que atua nos procedimentos de habilitação para
adoção internacional, permito-me sair um pouco do roteiro e aproveitar a oportunidade
para salientar a responsabilidade das equipes, principalmente do interior, – até porque
aqui na Capital tudo vai bem, há uma ótima estrutura e rotinas estabelecidas – a
necessidade de auxiliar os Juízos na implementação e na regularidade do funcionamento
dos cadastros de adoção. Sei que muitos Juízes já estão implementando cadastros nos

7
municípios, sendo importante que ele seja respeitado e que essas informações de
crianças em situação de “adotabilidade” sejam enviadas para a CEJA – Comissão
Estadual Judiciária de Adoção 6–, vinculada ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro, a fim de que o sistema seja alimentado e que fique disponível essa alternativa,
qual seja, a adoção internacional das crianças para as quais já foram esgotadas as
possibilidades de colocação em família substituta nacional.
Continuando, garantir esse direito à convivência familiar não é nada fácil. Como se
sabe, envolve o problema da família e, portanto, de toda complexidade individual de seus
membros e das dificuldades sociais enfrentadas. Se muitas vezes é difícil para nós
enfrentarmos problemas de nossas famílias, imaginem as questões daquelas ditas
carentes. É desafiador, e demanda, às vezes, algum tempo. Como o Dr. Leonardo Castro
colocou hoje aqui, e muito bem, não existe um lapso temporal definido na Lei para o
“tratamento” das famílias. Nós não podemos prever que seja necessário ficar dois anos
tratando uma família para chegar à conclusão de que a criança tem que ir para um lar
substituto. Não existe “receita de bolo”. E então quem pode nortear a atuação dos
operadores do direito? Quem tem o papel de auxiliar o Juízo nessa valoração? A equipe
interprofissional, que estudou para isso, que entende de comportamento humano, vai
tentar entender a problemática daquela família através do exercício de uma técnica, e vai
tentar apontar, é claro que com uma margem de risco, mas ela pode chegar a concluir:
“aqui nós estamos entendendo que está complicado, porque o desenvolvimento da
criança está comprometido pelos problemas da família”.
Coloca-se, então, a necessidade da ponderação de valores e de direitos, enquanto
regra de interpretação jurídica: o direito à convivência familiar é maior do que o direito à
vida, à própria integridade daquela criança? Evidente que não. Então, isso vai ser
ponderado, e vocês fazem isso no dia-a-dia, porque não deve ser fácil para um
profissional de psicologia ou de assistência social ter que concluir pela colocação de uma
criança numa família substituta, quando detêm conhecimento técnico aprofundado sobre
a importância da família natural, do convívio com pai, mãe, irmãos, avós, etc.
Nesse sentido, fica evidente o verdadeiro drama enfrentado, porque até para nós
que interpretamos e aplicamos a Lei e, que não temos, em princípio, os conhecimentos
especializados de vocês, a decisão freqüentemente mostra-se complexa e fruto de um

6 A Comissão Judiciária de Adoção Internacional do Rio de Janeiro é a Autoridade Central do Estado, que seguindo os
termos do artigo 52 do Estatuto da Criança e do Adolescente, da Resolução que a criou e da Convenção de Haia,
ratificada pelo Brasil, centraliza a apreciação dos pedidos de habilitação para adotar formulados por estrangeiros
residentes ou domiciliados fora do País. De acordo com o procedimento seguido, a equipe técnica da CEJA indica
crianças em situação de serem adotadas aos requerentes das habilitações, através da análise dos relatórios estrangeiros,
da legislação do País de Acolhida e das informações encaminhadas pelas diversas Comarcas do Estado.

8
enorme exercício de ponderações, critérios subjetivos, valores e impressões pessoais, até
o alcance da convicção do que seja, no caso concreto, o melhor interesse daquela pessoa
em desenvolvimento.
Nesse momento eu gostaria de apontar também – e aí me dirijo especialmente aos
conselheiros tutelares porventura presentes - a questão dos abrigos, porque entre a
família natural e a família substituta, no meio do caminho, existe o abrigo. Atualmente, – é
claro que existem as exceções -, tendo por base uma visão estadual, os abrigos não têm
um plano de trabalho com metas eficazes de reinserção familiar. Muitas vezes, a criança
é retirada de sua família natural, é colocada e esquecida num abrigo, e ali ela vai ficando,
em total violação de muitos direitos fundamentais que lhe são assegurados. E é uma
realidade gritante.
Como se sabe, os conselhos tutelares têm atribuição para aplicar a medida
protetiva de abrigo7 e por isso precisam ser orientados sobre a excepcionalidade desta
medida, os drásticos efeitos para a criança8, a necessidade de continuação do
acompanhamento da família para, juntamente como abrigo, buscar a reinserção, etc. E na
tentativa de minimizar o quanto possível tal situação, tenho procurador abordar o assunto
e fornecer material técnico sobre o tema aos conselhos tutelares do interior, quando os
Promotores solicitam apoio para a capacitação dos conselheiros.
É preciso salientar que muitos conselheiros tutelares9 são “jogados aos leões”, não
sendo exigido no processo de escolha nível de escolaridade ou exame de aferição de
conhecimentos mínimos sobre o exercício da função, o que, somado à freqüente carência
de estrutura, implica numa série de dificuldades no exercício funcional. Eles têm uma
responsabilidade muito grande e não recebem a retaguarda de apoio. Assim, muitas

7 Artigo 136, I c/c artigo 101, VII do Estatuto da Criança e do Adolescente.


8 Cf. BOWLBY, John. Cuidados Maternos e Saúde Mental. São Paulo: Ed. Martins Fontes. 1995, p. 75-6: “A ligação
das crianças com pais que, pelos padrões usuais são muito ruins, constitui uma eterna fonte de surpresa para aqueles
que procuram ajudar tais crianças. Mesmo quando os pais substitutos são bons, elas sentem que suas raízes estão
naqueles lares onde talvez tenham sido negligenciadas e maltratadas, mostrando-se muito ressentidas de críticas a
seus pais. As tentativas para se ”salvar” uma criança de um ambiente ruim, oferecendo-lhe novos padrões,
freqüentemente são inúteis, pois, bem ou mal, é a seus pais que ela dá valor e é com eles que ela se identifica. (...) É
óbvio que existem ocasiões em que as crianças devem ser criadas fora de seus próprios lares. Contudo, estas
providências deveriam ser consideradas com um último recurso a ser utilizado somente quando for absolutamente
impossível tornar o lar adequado à criança”.
9 DIGIÁCOMO, Murillo José. O necessário asseguramento do Direito Fundamental à Convivência Familiar.
disponibilizado no site www.mp.pr.gov.br/institucional/capoio/caopca/artigos: “No mesmo diapasão, ao passo que
estabeleceu fosse o atendimento de crianças, adolescentes e suas respectivas famílias efetuado primeira e
prioritariamente pelo Conselho Tutelar, não permitiu que este Órgão, de caráter não jurisdicional, aplicasse a medida
protetiva de colocação em família substituta prevista no art.101, inciso VIII da Lei nº 8.069/90, bem como outras que
importassem no rompimento da convivência parental, previstas no art.129, incisos VIII, IX e X do mesmo Diploma
Legal, todas de competência exclusiva da autoridade judiciária. Ficou assim o Conselho Tutelar incumbido da função
de defensor intransigente da manutenção da criança ou adolescente em sua família natural (ou de origem), não
sendo lícito ao Órgão a tomada de qualquer iniciativa em sentido contrário, ainda que para tal finalidade seja
procurado ou provocado pelos próprios pais da criança e/ou adolescente.”

9
vezes, a medida de abrigo é encarada apenas como uma possibilidade de o conselheiro
se desincumbir, de dar uma solução rápida ao assunto, sem a mínima noção das sérias e
por vezes irreversíveis conseqüências dessa decisão.
Por isso, o sistema de garantias precisa estar articulado, cada um com sua
responsabilidade, inclusive preventiva. Nesse sentido, é pertinente frisar o disposto no
artigo 151 do Estatuto, que dispõe competir à equipe interprofissional, dentre outras
atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito,
mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de
aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata
subordinação à autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista
técnico. Ou seja, vocês também têm uma atividade preventiva.
Evidente que o volume de trabalho é grande, existe uma subordinação
administrativa à autoridade judiciária e as equipes devem respeitar as rotinas
estabelecidas. Mas por que não auxiliar na articulação do sistema através da orientação e
auxílio técnico à equipe do Conselho Tutelar – para aqueles que têm equipe técnica, claro
– ou conversar com os conselheiros tutelares para tentar orientar o atendimento, o
aconselhamento e, sobretudo, a abordagem psicológica e social das questões?
Então, eu só queria chamar a atenção para este aspecto funcional do sistema, já
que o tema central hoje aqui abordado é a responsabilidade de cada um de nós – e aí
entra o Ministério Público também, que tem de ser chamado à sua responsabilidade, na
hora de tentar assessorar o Conselho Tutelar, na hora de fazer a ponte com a equipe
técnica, por que não?
Dependendo do caso concreto, verificamos uma necessidade maior de atuação
articulada, como por exemplo, na habilitação para adotar, onde as expectativas, em regra,
são inicialmente genéricas, sem o vínculo afetivo com a criança pretendida, temos grande
oportunidade de tentar avaliar aquela família, através de critérios objetivos e subjetivos
que precisam estar definidos, decidindo se a mesma demonstra reunir qualidades que
indiquem o exercício da paternidade e da maternidade. É certo que podemos parar para
refletir profundamente sobre a nossa capacidade individual para dizer quem pode ou não
pode ser mãe. Mas é preciso que tenhamos algum critério, porque nós precisamos
interferir na vida daquela família. A decisão nos compete e deve seguir regras mínimas,
critérios estabelecidos pelas equipes que detêm conhecimento técnico para tanto. A par
das questões filosóficas e mesmo existenciais inerentes a uma abordagem mais
aprofundada do tema, é nossa a responsabilidade de velar por essas crianças, velar para
que se esgotem as possibilidades de sua manutenção na família natural.

0
Esgotadas essas possibilidades, independentemente do lapso temporal decorrido,
é um direito da criança que nós todos busquemos o melhor critério possível para
identificar uma família substituta para ela. Porque no momento do processo de
habilitação, elas têm a nós, que temos a obrigação de analisar profundamente se aquela
família preenche os requisitos mínimos objetivos, para que eventual pedido de adoção
seja deferido. Caso necessário, é preciso que tenhamos a possibilidade de, agindo de
modo articulado, prorrogar o período de avaliação dos requerentes pela equipe técnica
durante a habilitação, por exemplo. Os profissionais técnicos têm que dispor dessa
margem de flexibilidade para melhor firmarem suas conclusões. E ainda assim, não
estaremos garantindo o fim das chamadas “devoluções”, que representam nova rejeição
daquela criança colocada em família substituta e trazem toda sorte de desânimo e
preocupação para todos os envolvidos no processo10.
Apesar da pertinência da citação de estatísticas sociais, deixo de fazê-lo em razão
de a Dra. Ligia já ter clareado o quadro social vigente e por isso passo a citar o disposto
no artigo 23 do Estatuto, o qual, em síntese, prevê que a pobreza não pode ser motivo
para se retirar uma criança de uma família. Através da leitura deste dispositivo legal, a
primeira impressão parece bastante evidente. A regra parece clara e representa um dos
principais avanços do Estatuto. Contudo, na prática, na análise do caso concreto, muitas
vezes a questão não é assim tão transparente. Ninguém discute ser absolutamente ilegal
o deferimento de colocação de criança ou adolescente em família substituta sob o
fundamento de que a família natural não dispõe de recursos materiais. Entretanto, a
pobreza, em alguns casos, é subjacente e contribui de modo expressivo para recrudescer
a situação de risco da criança, quase que como uma conseqüência natural.
Diante dessa realidade, o ECA determina que nós esgotemos as possibilidades de
resgatar essa família e prevê os instrumentos para tanto, sendo que nesse ponto não é
nada utópico. Nessa perspectiva a responsabilidade do Ministério Público se destaca
para deflagrar medidas extrajudiciais ou judiciais com vistas à implementação dos
programas que a Lei prevê para a formação da rede de atendimento, através do Poder
Público e da sociedade civil organizada, já que todos têm responsabilidades idênticas em
relação à criança e ao adolescente, consoante já mencionado. É importante que nós
busquemos, cada um de nós, nos limites de nossas atribuições, a formação e o
fortalecimento dessa rede. Só assim estaremos buscando preservar o direito da criança e

10 Sobre o tema, vale conferir as colocações das Psicólogas Daniele Bloris e Mônicca de Carvalho Moreira, atuantes
junto ao Juízo da 1ª Vara da Infância e Juventude da Capital, no artigo Dos impasses da filiação pela via da adoção: a
“devolução”e os caminhos do desejo na trama institucional, In: CIEN: Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a
Criança(organização Ana Lydia Santiago e Angelina Harari). Belo Horizonte: Editoração Eletrônica: Fernando Antônio
Soares, p. 24-8.

1
do adolescente, viabilizando oportunidades de resgate social da família e esgotando as
possibilidades de permanência com a família natural, a fim de que a decisão pela
impossibilidade da manutenção almejada seja cada vez menos freqüente e cada vez mais
legítima.
Sobre o tema, é pertinente a conclusão do autor italiano Chiara Lubisch, citado
pelo Procurador de Justiça de São Paulo Munir Cury11, ao afirmar que: “se a sociedade é
fruto da família que a constrói, sem dúvida também é válido o contrário, ou seja, que a
família é o resultado da sociedade que a gera”. E isso não é um discurso solto, vago, mas
sim uma realidade, porque, como disse a Dra. Lígia, nós estamos recebendo as
conseqüências, e nós não podemos perder a visão de que, na verdade, estaremos
punindo novamente muitas famílias. Um exemplo do modo como estamos enfrentando
situações absurdas com uma perigosa tranqüilidade: eu recentemente recebi um
telefonema de um determinado Estado da Federação, em que um colega Promotor dizia:
“Dra. Karina, eu queria ajuda para verificar a situação de uma família do Rio de Janeiro
que se habilitou aqui, foi a primeira família a se habilitar no meu cadastro, e tem uma
senhora grávida que já manifestou interesse de entregar sua criança e eu queria fazer
contato com essa família”. Isso é só um exemplo. Essa mãe, por que ela quer dar sua
criança? Por que foi procurar a justiça para tal? É muito provável que esta gestante não
tenha hoje condições financeiras, seja influenciada por pessoas, às vezes até “bem
intencionadas”, que acreditem no direito da criança a um futuro melhor, que a mãe deve
almejar uma boa vida para seu filho e que a “entrega para a adoção” se traduza num “ato
de amor”. Entretanto, em verdade, representa uma violação absoluta do direito da mãe de
ter seu filho consigo e, principalmente, da criança à convivência familiar. Tais situações
implicam num sentimento de inferioridade e incapacidade que levam muitas mães, muitas
vezes adolescentes e solteiras, a acreditar que não conseguirão cuidar de seus filhos,
quando em muitos casos, serão12, com grandes dificuldades, mas exercendo o papel de

11 In. Direito à Convivência Familiar: da Reintegração Familiar à Colocação em Família Substituta, Revista
IGUALDADE, vol. 3. Curitiba: Ministério Público do Estado do Paraná, p. 3.
12 DIGIÁCOMO, Murillo José. Op. cit.: “Ao exigir, como formalidade essencial do procedimento de colocação de
criança ou adolescente em família substituta, na hipótese de concordância dos pais com a medida (art.166, par. único,
da Lei nº 8.069/90), a realização de audiência própria para sua oitiva, na qual deverá estar presente o representante
do Ministério Público (não bastando assim mera declaração, ainda que firmada por instrumento público, nesse
sentido), o legislador nitidamente teve a intenção de fazer com que a autoridade judiciária não apenas colhesse
impressões pessoais acerca do estado de ânimo, motivação e determinação daqueles, mas também que se tentasse,
através de uma argumentação bastante, e da subsequente intervenção de uma equipe interprofissional habilitada,
reverter aquele quadro, numa tentativa de manutenção da integridade familiar. Vale aqui abrir um parênteses para
tratar de uma situação corriqueira porém por vezes negligenciada em nossos foros: o caso de mães solteiras, não raro
adolescentes, que abandonadas pelo pais da criança e rejeitadas pela família, logo após o parto são encaminhadas
pelo hospital/maternidade (quando não pelo Conselho Tutelar) ao Juizado da Infância e Juventude para "doarem" seus
filhos, muitas vezes para pessoas que sequer conhecem, mas que lhe deram ou lhe prometeram alguma espécie de
amparo ou assistência.”

2
mãe e garantindo à criança o convívio legalmente assegurado, com todas as
adversidades enfrentadas pelo núcleo familiar, observados os limites do desenvolvimento
da criança, conforme já mencionado.
Diante de casos como este, cabe ao Poder Público e a todos os outros integrantes
do sistema de garantias, oferecer as alternativas já previstas no Estatuto, como por
exemplo, a medida de apoio e orientação psicológica, a inclusão em programas
assistenciais, etc. E ainda que essa possibilidade possa soar utópica, teremos que
trabalhar muito para concretizá-la, inclusive o Ministério Público, pois assim determina a
Lei13.
Atualmente a adoção é um instituto diretamente ligado ao Estado-Juiz. Hoje o Juiz
preside o processo e tem total controle em relação ao tema, por ser uma questão de
ordem pública independentemente da bilateralidade dos interesses. A idéia do lar sem
filho e do filho que almeja um lar deu lugar ao melhor interesse da criança. Ou seja, diante
de um pedido de adoção, vamos ter de analisar se aquele “lar” vai se adequar aos
interesses do adotando, porque o direito é daquela criança ou daquele adolescente, já
que a adoção vai aparecer como uma medida protetiva (artigo 101, inciso VIII do ECA),
sendo sempre excepcional, porque o ideal, diante da vontade primordial da lei, é que se
preserve o vínculo familiar natural.
No debate, caso possível, pretendo ilustrar a discussão com uma pesquisa
realizada pela professora e pesquisadora do Departamento de Psicologia da UFPR, Lídia
Weber14, feita em todo o Brasil sobre a opinião das pessoas acerca do que é adoção 15. Ao
abordar de forma muito consciente o tema, a Psicóloga afirma que “O ECA traz à tona a
questão de que não devemos transformar a adoção em um “projeto de sociedade”.
Devemos lutar contra a miséria e o abandono... O trabalho principal é pedagógico, de
conscientização da população e técnico, de preparação de profissionais que selecionem e
preparem pessoas dispostas a acolher uma criança ou um adolescente. É um trabalho

13
14 Mestre e Doutoranda em Psicologia pela USP.
15 Cf. WEBER, Lídia Natalia Dobriansky. Olhando através do espelho: Abandono, Pobreza, Institucionalização e o
Direito à Convivência Familiar. In Revista IGUALDADE, vol. 23. Curitiba: Ministério Público do Paraná. 1999, 11-2:
“Em uma pesquisa que realizei sobre a opinião acerca da adoção, os dados mostram que os brasileiros acreditam que
“cedo ou tarde filho adotivo vai dar problemas”; que “uma criança adotada sempre vai sofrer preconceitos e ser
tratada diferentes pelos outros”; “algumas mulheres só conseguem engravidar depois de terem adotado uma criança,
portanto, a adoção é um bom motivo para se tentar ter filhos biológicos”; pensam que “morte de um filho natural é
motivo suficiente para um casal adotar uma criança; “crianças adotadas devem ser devolvidas ao Juizado (ao
orfanato ou aos pais biológicos) quando surgirem problemas como desobediência ou rebeldia”; “é interessante adotar
crianças com mais de 10 anos de idade para que pudessem ajudar nos serviços domésticos”; “haverá menos
problemas se a criança nunca souber que foi adotada”; acreditam que deveria ser feito um controle à natalidade pelo
governo e que somente “os pais são culpados pelos filhos que estão nas ruas e nos orfanatos porque não sabem
educá-los”.

3
gigantesco e a longo prazo, mas que já começou”16.
E, para não avançar no tempo, eu gostaria de ressaltar que o instituto da adoção é
maravilhoso, e deve ser aplicado diante do preenchimento de requisitos minimamente
delineados. Nesse sentido, valho-me das colocações do psicólogo José César Coimbra,
atuante junto ao Juízo 1ª Vara da Infância e da Juventude, que em reunião, citando um
autor cujo nome não me recordo, afirmou que o perfil do adotante seria aquele de alguém
que “tenha capacidade de responder por suas escolhas”. O autor do pedido de adoção
tem que demonstrar essa capacidade, através de uma sensibilidade diferenciada,
devendo ser a mesma por nós enaltecida, pois o exercício da paternidade e da
maternidade através da adoção, desde de que realmente almejado, é uma escolha difícil
e maravilhosa. Acontece que não podemos perder de vista que no enfrentamento do tema
adoção, a preservação do vínculo natural e a questão dos abrigos, diante da realidade
vigente, são questões preliminares, que devem ser concretamente ultrapassadas para
então podermos aplicar essa drástica modalidade de colocação de criança em família
substituta da forma como o ordenamento prevê.
Como síntese do aqui exposto, valho-me das palavras de Pedro Caetano Carvalho,
Juiz da Infância e Juventude de Santa Catarina, que no artigo “Adoção: Direito da Criança
ou dos Pais?”17 afirma: “À guisa de conclusão, as medidas necessárias a serem tomadas
com vistas a recolocar o instituto da adoção em seu lugar de recurso adequado à
proteção de determinadas crianças e adolescentes, são preliminarmente vinculadas a
procedimentos que necessariamente a devem preceder. Por um lado, todos os passos
que devem ser dados em relação às crianças e à preservação de seus vínculos com sua
família natural. Por outro lado, os critérios e modos de selecionar futuros pais adotivos.
Sem dúvida, há muito por se fazer. Passados tantos anos da vigência do Estatuto, cabe
uma ação mais enérgica do Ministério Público, apoiado pelas organizações não
governamentais e o Poder Judiciário, no sentido da sua implementação, principalmente
dos programas de apoio à família que preservem os vínculos familiares sempre que
possível”.
Para concluir, eu gostaria de mencionar um fato marcante por mim vivenciado no
último Congresso da ABMP – Associação Brasileira de Magistrados e Promotores da
Infância e da Juventude – realizado em Belém do Pará, onde colocaram a imagem num
telão de um Desembargador chamado Paulo Frota, que tem uma grande vivência na
Infância e Juventude. Ele estava muito doente, não pôde comparecer e estava sendo
homenageado, e todos os presentes ficaram emocionados com uma frase dita por ele,
16 Artigo citado.
17 In Revista IGUALDADE, vol. 23. Curitiba: Ministério Público do Estado do Paraná. 1999, p. 20.

4
cuja idéia pretendo aqui reproduzir, porque espelha o meu sentimento e certamente de
muitos de vocês: o nosso cotidiano é formado de muitas frustrações, nos deparamos com
a falta de comprometimento, com vaidades, com corporativismo, com a falta de
comprometimento do Poder Público, com falta de resultados e com muitas decepções,
mas quanto mais eu me decepciono, mais eu me sinto desafiada. Obrigada.

5
A Instituição Adoção: uma prática de proteção?
Lygia Santa Maria Ayres

Muito me honra o convite do Núcleo de Psicologia da 1a. Vara da Infância e da


Juventude para compor a mesa “Impasses da Filiação”, no 2º Encontro de Psicólogos
Jurídicos do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro - “A Responsabilidade de cada um
frente ao Mal Estar Atual”.
Inúmeras são as questões que gostaria de estar pensando junto com vocês. No
entanto, vou me restringir à problematização das questões referentes às
responsabilidades dos profissionais que atuam no judiciário nos desdobramentos da
adoção, solicitação a mim endereçada.
Ao falarmos de Adoção gostaria, inicialmente, de refletir acerca desta prática,
entendendo-a enquanto uma instituição18, sua gênese, suas trajetórias, seus contornos e
sua inserção nas políticas de proteção aos direitos da população infanto-juvenil de nosso
Estado.
Ao longo da história, sabe-se que a adoção sempre existiu desde a antiguidade,
de forma espontânea e não institucionalizada. Esta, já assumiu muitas formas e papéis
em função do contexto histórico em que estava inserida, como por exemplo, na Idade
Média, onde estava, quase sempre, relacionada à transmissão de bens.
Foi em meados do século XX que, no Brasil, percebeu-se um movimento em prol
da institucionalização da adoção, sob o suposto discurso de proteção jurídica ao menor
(lei 3.133 de 1957, lei 4655 de 1965)19. No entanto, só em 1979, com a reformulação do
Código de Menores de 1927, esta questão ganhou força e visibilidade, enquanto uma
instituição, uma “alternativa-solução” à pobreza que aumentava consideravelmente em
nosso país. Nesta, duas formas de adoção foram legitimadas: a simples e a plena. A
primeira, bastante discriminatória e excludente, percebia a criança enquanto um “sujeito-
objeto descartável”ao afirmar a revogabilidade da medida. A segunda, ainda que
comprometida com os vínculos estabelecidos entre a criança e suas novas relações
afetivas, desconsiderava as tramas nas quais sua história de vida era tecida.
Na ocasião, o Código de Menores, gestado sob as bases de um Estado
Intervencionista e centralizador, legislava, apenas, para a população infanto-juvenil
considerada, à época, como “de/em risco”, ou seja, crianças e jovens pobres que em
função de sua precariedade sócio-econômica, passavam a ser tutelados pelo Estado.
18 Por instituição, entende-se as práticas construídas historicamente que tomadas como naturais ganham estatuto de
universais.
19 Ambas legislam sobre as bases da desigualdade entre filhos adotivos e biológico, com relação a sucessão de bens. A
Lei 4655, apesar de afirmar a irrevogabilidade da medida, mantém a distinção quanto à herança.

6
As práticas especializadas daí advindas pautavam-se em modelos assistencialistas e,
ações ditas preventivas e terapêuticas como internação eram usuais e expressavam a
intervenção do Estado nas famílias que não conseguiam suprir a sua dita função
agregadora do núcleo familiar.
Paralelamente, crescia a miséria do povo e os internatos começavam a não
comportar mais crianças e jovens e a psicologia iniciava seu processo de afirmação
enquanto profissão, a partir do desenvolvimento de técnicas, modelos e teorias que
afirmavam a fundamental importância da família no desenvolvimento infantil,
especialmente nos primeiros anos de vida. Ora, a adoção, nessa época, parecia ser
uma “solução” viável à luz de uma política desenvolvimentista e assistencialista, pois
por assistencialismo entendo as práticas sociais que se desviam da idéia de direitos
sociais e construção de cidadania, incentivando programas massivos de controle da
miséria e do abandono. Os argumentos, se descontextualizados, ou melhor, dizendo
sob a ótica de uma prática reducionista, eram “aparentemente lógicos”: havia milhões
de crianças internadas que haviam enfraquecido seus vínculos com a família de
origem; a internação prolongada produzia seqüelas quase que irreparáveis ao bom
desenvolvimento humano, afirmavam os estudos dos especialistas “psi”; e a família
permanecia pobre, sem condições financeiras e morais de assistir seus filhos,
constatavam os assistentes sociais. A adoção, nesta visão, era percebida como a
suposta “libertação”, como nos afirmava o então presidente da Fundação Estadual de
Educação ao Menor- FEEM:

“... desnutrido, verminótico, anêmico, inseguro e agressivo, filho de pai incerto e


mãe subempregada, vivendo em condições insalubres e sem condições de se
manter na escola (...) calcula-se em dois milhões de menores carentes no Rio
(...) o que se deve buscar são soluções realistas, possíveis. Uma dessas
soluções seria a adoção maciça, por parte de famílias de maiores posses, de
crianças abandonadas” (Revista Isto É, 20/02/1980).

Em síntese, trabalhava-se, na época, nos efeitos de uma política de exclusão


social.
Continuando na história, assistimos a falência do Estado quanto à proteção de
crianças e jovens. Manchetes evidenciavam as múltiplas violências cometidas contra essa
população. O Movimento de Defesa dos Direitos de Crianças e Jovens em 1979 foi um
dos fios que junto a outros movimentos sociais emergiram em prol da construção de um

7
país democrático e cidadão, após os duros anos da ditadura militar. Esses culminaram
com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do
Adolescente(ECA) em 1990, enquanto uma lei que redireciona a política de proteção ao
segmento infanto-juvenil de 0 a 18 anos. Esta legisla hoje sobre as bases da política de
direitos em meio a um Estado neoliberal e, embora seja explícita a responsabilidade do
Estado pelos direitos, este retira-se das responsabilidades de proteção às suas crianças e
jovens colocando, de certa forma, esse papel nos ombros da família e da Sociedade Civil
Organizada.
Com relação à adoção, especificamente, esta lei legitima uma única forma
irrevogável de adoção, o que sem dúvida representa uma importante transformação na
vida de nossas crianças, na medida em que não mais as percebe como “sujeitos/objetos
descartáveis”, e aponta ainda para a importância dos vínculos biológicos.
Entretanto, uma lei não se impõe por si mesma, são nossas práticas cotidianas que
a afirmam. A substituição do conceito “menor”, para o de crianças e adolescentes, no
ECA, não significa apenas uma mudança de nomenclatura, mas sim, uma novo olhar para
a questão.
Como pensar, então, a adoção, nessa nova ótica? Qual o nosso compromisso e
responsabilidades com a população infanto-juvenil, objeto de proteção desse Juizado?
Voltemo-nos, então, para o ECA, nosso principal dispositivo de intervenção e
transformação social. Este, em seu artigo 23, afirma: “a falta de recursos materiais não
constitui motivo para a perda ou a suspensão do pátrio poder” e que “não existindo outro
motivo que por si só, autorize a decretação da medida, a criança ou o adolescente será
mantido em sua família de origem, a qual deverá obrigatoriamente ser incluída em
programas oficiais de auxílio”.
Analisando seu discurso, percebemos que este aponta, inicialmente, para a
necessidade de uma política pública de proteção às famílias.
Ora, surge nossa primeira e grande pergunta: Como vão nossas famílias? O
Relatório de Desenvolvimento Humano(RDH) do Rio de Janeiro - recente estudo (2000),
elaborado a partir de parcerias entre o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (Pnud), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e a
Prefeitura do Rio de Janeiro - retrata a desigualdade social da “Cidade Maravilhosa”.
Dentre os dados revelados por esta pesquisa, destacamos: 50% das famílias cariocas
têm renda per capita mensal, inferior a R$250,00; 700.000 pessoas vivem abaixo da linha
de pobreza, ou seja, rendimento inferior a R$82,00; convivemos ainda hoje com doenças
alimentadas pela miséria e falta de saneamento básico, como tuberculose, dengue,

8
leptospirose e, ainda que, o nível de desemprego atinge cerca de 9,2% da população
carioca.
É, diante desse quadro social, deste “Mal Estar Atual”, que interrogo, através da
carta de uma mãe que “deixou sua filha na porta do Hospital da Santa Casa de
Misericórdia, o suposto discurso do abandono, argumento básico em prol da adoção:

“Por favor, eu vou ficar muito grata por aquele que acolher minha filha. Eu tive
que fazer isso porque não trabalho, não tenho ninguém por mim e não tem
recurso nenhum para ficar com esta criança que está doente e precisa de
quem tem recurso pra tratar dela. Ela nasceu dia 17.08. e toma gardenal de 12
em 12 horas. Ela está um pouco resfriada e com dor de barriga e toma remédio
de dor. O senhor Jesus vai está sempre com você pra mim lindinha da
mamãe”.

É, em meio a essa realidade que devemos nos perguntar: Qual deve ser
nosso real compromisso com a garantia de direitos à população infanto-juvenil? Qual a
nossa implicação com o processo de transformação social? Agilizar práticas de
adoção que, afirmam em seu bojo, a desqualificação da família pobre, na medida em
que iguala pobreza e abandono? Ou, quem sabe, enquanto Estado, estar criando
canais de interlocução com outros segmentos desse Estado (Conselhos Estadual e
Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, Secretarias de Educação,
Saúde,etc) e até mesmo com a sociedade civil organizada (Conselhos Tutelares),
visando efetivar as premissas cidadãs impressas no ECA?
Na realidade, nós trabalhadores sociais, ainda somos convocados a atuar
nos efeitos de uma política de exclusão e, na maioria das vezes, no ímpeto de
minimiza-los - pois concretamente são dolorosos - atuamos em bases humanitárias,
um dos eixos de afirmação das ciências sociais em nosso país. Essas por sua vez,
desfocam as redes que tecem nosso sujeito social, fazendo-nos perceber e trabalhar
com/em “parte dele” conforme o objeto de investigação privilegiado, ou seja, a “família”
para a assistente social e o “individual” para o psicólogo. Nesse viés, percebe-se o
indivíduo como somatório de partes e não enquanto um produto de múltiplos
agenciamentos. Fragmentar significa reduzir.
Assim, acredito que a nós psicólogos, não basta constatar, na realidade
individual dessas crianças, as marcas do luto pelas inúmeras perdas, bem como suas
carências e déficits intelectivos, cognitivos e emocionais. É preciso mais, muito mais...

9
É preciso antes de mais nada romper com a visão funcionalista e desenvolvimentista
impressa no ECA: “... condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas
em desenvolvimento” (artigo 6o); que pressupõe uma essência individual, um núcleo
íntimo/interno que se atualizará ou não a partir de suas experiências afetivas,
emocionais, sociais, etc; para percebê-los enquanto sujeitos sócio-históricos, enquanto
produto e produtores de histórias, de vidas, de modos de ser e estar no mundo. É
preciso que, nos equipamentos sociais, sejam eles, escolas, hospitais, abrigos e
Juizados, pautemos nossas práticas cotidianas na defesa e garantia dos direitos
humanos e não na humanização das práticas. É preciso tornar público que não são
“casos individuais e esporádicos”, pois falamos de uma grande massa da população
infanto-juvenil violada em seus direitos básicos – o de permanecer em sua família de
origem, o de construir sua história familiar. Para tanto deve, a psicologia, apostar na
multiplicidade do sujeito, na construção de redes sociais que garantam a cidadania e a
diferença, colocando em constante análise, nosso próprio lugar de especialista.
Analisar cotidianamente os efeitos que nossas práticas vêm produzindo na vida da
população por nós atendida direta ou indiretamente, é nosso grande desafio na
construção de um país mais justo, e de uma psicologia realmente voltada ao processo
de afirmação do sujeito, uma psicologia colada à realidade, carregada de realidade,
pois, como nos lembra Foucault(1996): nós especialistas, “... não estamos nem nas
arquibancadas nem no palco, mas na máquina panóptica, investidas por seus efeitos
de poder que nós mesmos renovamos, pois somos suas engrenagens”(p.190)20
Finalizando, gostaria de deixar claro que, ao colocar a adoção em análise,
não significa questioná-la enquanto um dispositivo jurídico nem mesmo enquanto mais
uma possibilidade/recurso de encaminhamento, mas problematizá-la, sim, enquanto
uma prática institucional massificada dita à serviço de proteção de crianças e jovens
pobres, ou seja, enquanto uma resposta simplista e reducionista a um quadro social
perverso. Nessa trajetória, não poderíamos pensar, ainda, na adoção como um
dispositivo de violação de direitos, uma prática inconstitucional na medida em que fere,
radicalmente, o ECA? “... a criança ou o adolescente será mantido em sua família de
origem, a qual deverá obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de
auxílio...”
Essa questão pode, de certa forma, ser ratificada pelos dados levantados por
pesquisa21 realizada na Universidade Federal Fluminense- UFF, onde de 480
20 Foucault, As Verdades e as Formas Jurídicas, Nau Editora, RJ, 1996
21 Pesquisa realizada pelo Programa de Intervenção voltado às Engrenagens e Territórios de Exclusão Social –
PIVETES, realizada no Serviço de Psicologia Aplicada e Departamento de Psicologia da UFF em 600 processos de
perda e/ou reformulação do vínculo familiar do Juizado de Menores/Juizado da Infância e da Juventude do RJ, nos

0
processos estudados (1974 a 1983 e 1985 a 1994) apenas 36, ou seja, 7,5%
postulavam a orfandade como situação geradora22, contra 191 processos (40%) de
solicitação e encaminhamento à adoção. Parece-nos que a prática da adoção não se
circunscreve às crianças e jovens órfãos, mas sim alastra-se para a população pobre,
o que nos leva a supor que estamos ainda movidos por uma ética naturalista,
humanista e moralista, trabalhando nos efeitos não tanto da exclusão social, mas da
“inclusão diferencial”.
Estranhar, ressignificar nosso “objeto de investigação - o sujeito”, nossa
prática e nossa implicação, deve ser o nosso desafio diário. Nesse sentido, parabenizo
os organizadores desse encontro que merecem nossos aplausos. Este momento,
indubitavelmente, caracteriza-se efetivamente, como uma intervenção social, nos
possibilitando perceber, conjuntamente, como os limites entre o social e o psicológico/
individual se confundem, se fundem e, muitas vezes, nos confundem, potencializando-
nos para a construção de novas formas de percepção e atuação no campo da defesa
dos direitos de crianças e adolescentes, nosso principal compromisso. Acredito ser a
implementação e o fomento de espaços coletivos de discussão, o caminho que
devemos constantemente perseguir. Esses nos possibilitarão propor mais e nos
conformarmos menos com nossas supostas limitações institucionais. Por que
continuarmos acreditando que é impossível transformar relações instituídas?
Termino, assim, deixando uma questão a ser pensada: Nossas crianças necessitam
de uma ação alternativa ou de uma ação alterativa?

períodos de 1936 a 1945 (120 processos) 1974 a 1983 (240 processos) e 1985 a 1994 (240 processos). O período de
1936/1945 não foi mencionado, pois não registra nenhum processo de adoção.
22 Categoria por nós definida para analisar a(s) situação(ões) que levam a abertura do processo no juizado.

1
Impasses à Filiação
Telma Sampaio

Considerando a amplitude do tema proposto, em suas diferentes formas de


manifestação, seja no âmbito da família biológica ou da família substituta,
apresentaremos, a título de contribuição para o debate, algumas reflexões acerca de
possíveis impasses vislumbrados ou verificados no contexto da adoção.
Esse recorte foi privilegiado, haja vista a atuação dos técnicos, assistentes sociais
e psicólogos, da 1ª Vara da Infância e Juventude – Comarca da Capital (RJ), nos
processos de habilitação para adoção, em acordo com o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) – art. 50, parágrafo 1º - e o trabalho desenvolvido pela equipe da
Divisão de Serviço Social de colocação de crianças disponíveis para adoção em família
substituta, bem como a realização do estudo social no período denominado “estágio de
convivência”, em que se busca avaliar as bases fundantes dos vínculos familiares
estabelecidos ou em desenvolvimento e, por conseguinte, possibilidades e limites da
relação parental pretendida.
Importante pontuar que a adoção é um instituto que visa dar uma família para a
criança que dela necessita e não uma criança para uma família que dela careça. E assim,
deve apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos,
conforme prevê o ECA, em seu art. 43.
A adoção, enquanto medida de colocação em família substituta, ocorre quando
impasses no elo familiar biológico já impuseram a perda dos vínculos de filiação, no
sentido de garantir o direito de toda criança crescer e desenvolver-se no seio de uma
família.
Ainda circundam a adoção mitos e preconceitos, os quais a colocam como
portadora de possíveis problemas, que são atribuídos à história pregressa da criança, ao
caráter da hereditariedade, ao impacto da revelação da condição adotiva na relação
familiar, entre outros.
Todavia, o significado e a importância da filiação inscrevem-se na dinâmica
relacional entre pais e filhos, histórica e cotidianamente construída. Fato este que
caracteriza a filiação adotiva tão legítima e verdadeira como a filiação biológica.
Através da filiação, o homem é identificado como parte de um grupo familiar que,
variável em suas formas de organização e expressão ao longo da história, em dada
sociedade, se caracteriza como espaço singular para o seu desenvolvimento e
constituição como ser social.

2
As relações que a filiação inaugura são de fundamental importância para a
sobrevivência do homem e comportam bases materiais e referências culturais, morais e
ideológicas para a sua existência, favorecendo o seu processo de socialização.
Diversos estudos e pesquisas já revelaram o quanto é crucial para a criança ser
acolhida e assistida no seio de sua família, onde deve receber proteção e afeto, mantendo
sentimentos de inclusão e pertença, fundamentais para a construção de sua identidade
como pessoa e cidadão.
Identidade esta que implica diferenciação, possibilitando que o sujeito vivencie a
particularidade da sua história na teia das relações sociais de que faz parte, não sendo a
filiação um mecanismo de reprodução de pessoas como os seus pais ou que atenda às
perspectivas destes de como deva ser o outro.
Perspectivas essas, muitas vezes, imaginadas na aparência física do filho, na
valorização do fator genético e no sentimento de pertencer da consangüinidade.
O que especifica a forma adotiva de filiação é a trajetória percorrida para que
ocorra o encontro entre pais e filhos. E neste percurso, observa-se que as motivações
apresentadas pelos pretendentes a adotar revelam de antemão possibilidades e limites
para a construção do vínculo familiar tencionado.
Por vezes, as motivações apresentadas não são fundadas no desejo de ter um
filho, mas essencialmente na necessidade de tê-lo para satisfazer determinadas carências
e projetos que, ao não serem atendidos, podem engendrar impasses no elo da filiação.
Desta forma é que nos deparamos, a começar, com a perspectiva dos interessados
na adoção de escolher a criança a ser acolhida, a qual, muitas das vezes, vem atender a
necessidade de aplacar a impossibilidade de procriar.
A expectativa de substituir o filho biológico faz perder de vista a realidade em que
se circunscreve o caminho da adoção. A construção de vínculos familiares não está dada,
a priori, pela descendência biológica, em que se imagina o “fruto”, o “pedacinho” de si que
se tornou um outro ser.
Neste cenário, a expectativa em relação à criança pretendida deixa pouca margem
para o encontro com a criança real. Exige-se a semelhança dos traços físicos, o controle
das condições de saúde (tão possíveis de mudanças ao longo da vida) e a possibilidade
de acolher a criança na mais tenra idade, marcando a grande preferência por recém-
nascidos.
Estas exigências revelam uma necessidade de se reinventar a gestação que não
ocorreu, no sentido de aplacar os sentimentos “negativos” que a infertilidade pode gerar,
bem como, denotam, por vezes, uma dificuldade para revelar à criança o seu histórico de

3
adoção.
A revelação da adoção se torna tarefa difícil para os pais adotivos, quando estes,
por incompreensão do significado da filiação adotiva, apresentam dificuldades de superar
a angústia de não ter gerado o filho, acarretando a inabilidade para tratar o seu histórico
de infertilidade e dialogar a respeito da origem da criança.
O sentido da adoção é fundamental para o seu sucesso.
Outras motivações podem ser apresentadas como indicadoras de possíveis
impasses na filiação adotiva, tais como:

 A perspectiva de encontrar companhia, perdendo-se de vista o real


compromisso da maternagem/paternagem, que é cuidar, amparar,
proteger, criar, educar e dar afeto, visando o pleno desenvolvimento
do ser para que este possa se tornar um jovem e um adulto capaz de
conduzir sua vida de forma responsável e autônoma;
 O interesse em fazer caridade, quando a adoção não se trata de uma
política de atendimento ao abandono infanto-juvenil, mas uma medida
que regulamenta vínculos familiares construídos na relação com o
outro e com respeito à sua singularidade, não cabendo colocá-lo
numa posição de subalternidade criada pelo “benefício” recebido,
cultivando expectativas de sentimentos de gratidão;
 A crença de que a chegada de um filho será capaz de dirimir
problemas conjugais, delegando à criança uma responsabilidade que
não lhe cabe e que não será capaz de cumprir;
 A expectativa de substituir um filho perdido, no sentido de recuperar
uma relação de filiação que não poderá ser repetida, guardada a
particularidade e singularidade das pessoas.

Essas motivações são apresentadas como certezas por parte dos candidatos à
adoção, revelando inflexibilidade e, logo, dificuldade para lidar com a variedade de
questões que perpassam o cotidiano. Tal situação pode levar a criança a sentir-se
insegura e desprotegida, propiciando alterações no seu comportamento que reforçam a
culpabilidade que os interessados na adoção procuram imputar ao adotando, quando
ocorrem “impasses” na relação de filiação.
A descoberta dos adotantes de que suas carências e projetos não podem ser
atendidos em acordo com as suas expectativas particulares é capaz de provocar uma

4
crise na relação de filiação, dificultando cada vez mais um real investimento para a
construção de um vínculo familiar de fato.
É fundamental que a família substituta apresente condições para acolher, aceitar,
dar afeto e a devida assistência ao adotando, de forma que sobrevenha da adoção a
superação dos danos causados pelo abandono, rompendo com possíveis obstáculos para
o seu desenvolvimento e inserção social.
Destarte, é fundamental uma avaliação criteriosa das motivações dos requerentes
dos feitos de habilitação para adoção, a qual não deve ser analisada nem de uma forma
romântica (a realização do bem), nem tampouco restrita às condições objetivas
apresentadas (situação econômica, posição social, etc.), haja vista que, em si, não são
capazes de vislumbrar possíveis impasses para a filiação.
O futuro de uma criança precisa ser tratado com todos os cuidados possíveis, na
busca de garantir sua real inclusão e participação na família, visando o seu bem estar e
desenvolvimento integral.

5
Psicólogos, Mais um Esforço se Quereis ser Doutores; uma breve crítica sobre a
atuação do psicólogo na Justiça através da genealogia do poder*
Eduardo Ponte Brandão

“Humanizar os processos”, “contextualizar o delito e descobrir suas motivações”,


“fazer retornar sob forma de questão”, “trabalhar os afetos”, “sensibilizar”, “acolher”,
“reintegrar”, “prevenir”: esses e outros lugares comuns estão na ponta da língua ou na
escrita de psicólogos, que, por sua vez, se encontram sempre dispostos a repeti-los a
ponto de transformá-los em palavras de ordem.
Para agravar a situação, tais palavras comandam a ação de boa parte dos
psicólogos que estão lotados nas Varas de Justiça, às quais foram chamados, dizem,
para atender às necessidades dos juristas. Outro lugar comum se repete: os psicólogos
fornecem os subsídios que faltam às decisões judiciais.
O casamento psicologia-justiça torna-se tão perfeito que flagramos freqüentemente
psicólogos chamando a si próprios de doutores.
Ou, também, surpreendemos tais doutores fundamentando seus juízos não
somente a partir da psicologia, mas também do texto da lei, como se, diria algum
incrédulo, a psicologia não tivesse uma base epistemológica segura.
A despeito desses flagrantes, tais psicólogos continuam sacando o coelho da
cartola ao orientarem as famílias para não confundir o vínculo matrimonial com o de
parentesco. Tampouco dispensam outro coelho, ligeiramente embolorado, o de que a
criança está sendo usada como joguete para atingir o outro.
Convém notar que esses e outros coelhos são criados num campo de saber onde
se supõem determinações subjetivas que perturbam a objetividade jurídica. Vivência de
insatisfação, desejo inconsciente e mecanismos psicológicos estão na origem dos litígios
processuais (cf. Suannes, 2000).
Por sua vez, o conjunto de práticas de poder que tal saber implica ainda não foi
suficientemente investigado.
Para tanto, ninguém menos do que Foucault pode ajudar em tal análise, cabendo
apresentar, no presente artigo, algumas articulações possíveis entre seu pensamento e a
prática do psicólogo jurídico.

JUVENTUDE, RESSOCIALIZAÇÃO E SOCIEDADE DE CONSUMO.


Talvez nem houvesse necessidade de ir tão longe no que tange ao poder,
* ersão modificada e reduzida do texto original apresentado no II Encontro de Psicólogos Jurídicos do Tribunal
de Justiça, publicado em 11/2001 em www.gradiva.com.br.

6
bastando remetê-los a uma palestra muita elucidativa, realizada no I Encontro de
Avaliação da Prática dos Psicólogos da Corregedoria Geral, em 01/12/2000.
Em tal palestra, advertiu-se que a legislação trabalhista brasileira dificulta o
ingresso de adolescentes no mercado de trabalho. Sem maiores chances de emprego, é
fácil adivinhar o que leva os jovens em conflito com a lei a cometerem infrações como
roubo, assalto, latrocínio e tráfico, que são a maioria das ações que tramitam pelas Varas
de Infância e Juventude.
O ilustre palestrante afirmou que, em face de tamanha fratura social, é necessário
o apoio dos psicólogos para “ressocializar” tais jovens.
Ora, digo eu, nota-se pelas circunstâncias de vida desses jovens que se são
impedidos de participar como agentes de produção por um lado, por um outro são
seduzidos a obter reconhecimento social enquanto agentes de consumo. É comum
encontrar tais jovens freqüentando os corredores dos tribunais com tênis Nike, telefones
celulares e roupas de grife, pouco importando se são originais ou falsificados23.
Em meio ao descompasso entre as duas representações acima, agente de
produção e agente de consumo, nada resta ao Juiz, quando lhe chega um adolescente,
senão desejar a ressocialização.
Não obstante, “ressocializar” implica adaptar de acordo com uma abstração
universal e a-histórica de juventude que se encontra, nesse caso, no Estatuto da Criança
e Adolescente. Ora, por mais que essa lei seja indubitavelmente uma lei “avançada”, ela
representa somente o fio de uma malha complexa da sociedade.
Em tal lei, encontra-se a representação moderna de infância enquanto ser em
desenvolvimento, cujas necessidades fazem com que a família gravite ao seu redor.
Nesta concepção, pressupõe-se que o adulto deva se constituir como referência
identitária de um longo trajeto de maturidade pessoal24.
23 Bauman (1998) observa que “o que se tem registrado, em anos recentes, como criminalidade cada vez maior (...) não
é um produto de mau funcionamento ou negligência – muito menos de fatores externos à própria sociedade (...). É, em
vez disso, o próprio produto da sociedade de consumidores (...) e, além disso – também um produto inevitável. Quanto
mais elevada a “procura do consumidor” (...) mais a sociedade de consumidores é segura e próspera. Todavia,
simultaneamente, mais amplo e mais profundo é o hiato entre os que desejam e os que podem satisfazer seus desejos”
(Bauman, 1998: 55). A seu ver, há uma íntima vinculação da “tendência universal para uma radical liberdade do
mercado ao progressivo desmantelamento do estado de bem-estar, assim como entre a desintegração do estado de bem-
estar e a tendência a incriminar a pobreza” (idem: 60-1).
24 É verdade que minha interpretação está sujeita a críticas em vista do seguinte comentário sobre o artigo 6º do ECA:
“A afirmação da criança e do adolescente como “pessoas em condição peculiar de desenvolvimento” não pode ser
definida apenas a partir do que a criança não sabe, não tem condições e não é capaz. Cada fase do desenvolvimento
deve ser reconhecida como revestida de singularidade e de completude relativa, ou seja, a criança e o adolescente não
são seres inacabados, a caminho de uma plenitude a ser consumada na idade adulta, enquanto portadora de
responsabilidades pessoais, cívicas e produtivas plenas. (...) A conseqüência prática de tudo isso reside no
reconhecimento de que as crianças e adolescentes são detentores de todos os direitos que têm os adultos e que sejam
aplicáveis à sua idade e mais direitos especiais, que decorrem precisamente do seu estatuto ontológico próprio de
“pessoas em condição peculiar de desenvolvimento”.” (Cury& Amaral e Silva & Mendez, 1996: 39-40; o grifo é meu.).
Não obstante, mantenho o comentário de, como veremos adiante, que o ECA aplica, como toda e qualquer lei, uma

7
Não é preciso ir muito distante para perceber que esse longo trajeto sofre um curto-
circuito com a pedagogização da mídia, capaz também de construir identidades e
proporcionar reconhecimento social aos jovens, com a ressalva de que estes adquiram
bens de consumo e serviços.
Por razões óbvias, o texto da lei não é, a meu ver, suficiente para absorver essa e
outras inúmeras representações de infância, família e conjugalidade que são inventadas,
transmitidas e modificadas a todo instante.
O problema é o lugar que os psicólogos são chamados a ocupar, pois, sob a
sombra da “ressocialização”, visa-se a preservar a dinâmica do poder, ao mesmo tempo
em que se individualizam os desvios em relação à norma25.
Peço licença para interrogar por que psicólogos em especial, e não advogados,
assistentes sociais ou comissários, são chamados a cumprir tal tarefa?
Senão vejamos. Nessa matéria e em outras do direito, percebe-se que não é
somente o ato em si que é julgado, mas sim o infrator, com suas potencialidades, suas
referências e, por fim, sua vida.

II. PUNIÇÃO MODERNA E PSICOLOGIA JURÍDICA.


A perspectiva acima tem origem na economia penal moderna, que, segundo
Foucault, calcula a punição menos em função do crime do que seus efeitos no campo
social. “Visar não à ofensa passada”, escreve Foucault, “mas à desordem futura”
(Foucault, 1987: 85). Em outras palavras, com o declínio do poder soberano, prevenir a
repetição do crime passa a ser a mola da economia punitiva moderna:

“Encontrar para um crime o castigo que convém é encontrar a desvantagem


cuja idéia seja tal que torne definitivamente sem atração a idéia de um delito”
(Foucault, 1987: 94).

Por sua vez, apaziguar os efeitos sociais do crime, de modo a não ser mais
repetido, implica variar a punição não somente de acordo com o crime, mas com “o
criminoso em sua natureza profunda, o grau presumível de sua maldade, a qualidade
intrínseca de sua vontade” (Foucault, 1987: 90).
Ora, o mesmo castigo nem sempre acarreta as mesmas conseqüências para o rico
ou pobre, primário ou reincidente, culto ou inculto, razoável ou desarrazoado. Na
economia da punição moderna, torna-se necessário individualizar a pena, levando-se em
normatividade estranha às inúmeras representações testemunhadas em nosso dia a dia.
25 Vale observar que contextualizar o delito não impede que se individualize o infrator.

8
conta “as características singulares de cada criminoso” (Foucault, 1987: 90).
Em outras palavras, o foco punitivo passa a iluminar a natureza do infrator, seu
modo de vida e pensar, seu passado, entre outros atributos. É sua “alma”, incluindo as
paixões, “as anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os efeitos de meio ambiente
ou de hereditariedade”, os “impulsos e desejos” (Foucault, 1987: 21), e não mais o ato em
si que é julgado.
De olhos bem fechados, basta retirar da estante um livro de psicologia jurídica que
posso encontrar nele todos os argumentos expostos à crítica de Foucault. À guisa de
ilustração, citemos somente um texto, cujas idéias, por serem paradigmáticas, poderiam
estar escritas em vários outros de psicologia jurídica:

“Levantar um pouco da história dos próprios pais, (...) faz parte da pesquisa
que desenha a história de vida do adolescente (...). Muitos pais parecem não
estar preparados para desempenhar este papel e o fazem com absoluta
inabilidade. Conhecer a pessoa que está à sua frente, entender suas
motivações, o que é, o que quer, o que sabe, o que faz, o que é capaz, enfim,
suas potencialidades, é imperativo para a promoção do processo de
humanização. (...) Contextualizar o delito, por sua vez, atende às necessidades
da Justiça e fornece indicadores para o processo educativo que vai se
desenvolver. Quais foram as motivações que levaram àquela ação? Em que
circunstâncias foi cometido? Era comportamento “esperado” em face da
trajetória de vida? É o primeiro? (...) Se a intervenção da equipe for capaz de
descobrir as pressões que pesam sobre aquele adolescente e de alguma forma
aliviá-las, ele será capaz de retomar o caminho do crescimento e do
desenvolvimento pessoal e social.” (Xaud, 1999: 95-6; o grifo é meu.)

Na economia da punição moderna, julgar por si só é menos essencial do que


“corrigir, reeducar, curar” (Foucault, 1987: 15)26.
Para tanto, a justiça aparelha-se de personagens que nos são bastante familiares,
entre os quais o psicólogo, e de laudos que, por sua vez, passam a compor o veredicto.

26 Cabe lembrar que na doutrina da proteção integral as medidas sócio-educativas visam a “interferir no (...) processo
de desenvolvimento” do adolescente, “educar para a vida social (...) ao alcance de realização pessoal e de participação
comunitária” e “propiciar aos adolescentes oportunidade de deixarem de ser meras vítimas (...) para se constituírem em
agentes transformadores desta mesma realidade” (Cury & Amaral e Silva & Mendez, 1996: 340-1). Mais
especificamente a medida de liberdade assistida interfere “na realidade familiar e social do adolescente, tencionando
resgatar, mediante apoio técnico, as suas potencialidades”, ao passo que outras “produzem no sujeito infrator a
possibilidade de reafirmação dos valores ético-sociais, tratando-se-o como alguém que pode se transformar, que é capaz
de aprender moralmente e de se modificar” (idem). Seguindo esse pensamento, é mais importante curar do que punir.

9
Entram em cena as sombras que, furtivamente, se inscrevem como circunstâncias
atenuantes da causa do crime: “o conhecimento do criminoso, a apreciação que dele se
faz, o que se pode saber sobre suas relações entre ele, seu passado e o crime, e o que
se pode esperar dele no futuro” e tudo o mais “que”, diz Foucault, “pretendendo explicar
um ato, não passam de maneiras de qualificar um indivíduo” (Foucault, 1987: 21-2).
Seguindo esse raciocínio, a pena não visa somente a sancionar o crime, mas
destina-se “a controlar o indivíduo, a neutralizar sua periculosidade, a modificar suas
disposições criminosas, a cessar somente após obtenção de tais modificações” (Foucault,
1987: 22). As instâncias e os técnicos a serviço “da aplicação das penas e de seu
ajustamento aos indivíduos” não fazem mais do que prolongá-la “muito além da sentença”
(Foucault, 1987: 24).
Não é difícil encontrar crianças, adolescentes, pais, famílias inteiras circulando
durante anos nos corredores dos tribunais, lembrando os pacientes crônicos que
perambulam pelos pavilhões de hospitais psiquiátricos. Guardadas as diferenças, será
que, na justiça, se trata somente da morosidade na tramitação dos processos? Ou será
que, mais do que julgar, se perpetua um controle constante sobre os envolvidos com a
justiça?
Pode-se perceber que, ao lançar mão da analítica do poder iniciada por Foucault,
torna-se possível repensar a prática do psicólogo jurídico.
Até então, estávamos debruçados sobre a genealogia dos poderes envolvidos na
psicologização dos dispositivos modernos de punição que, por sua vez, deve ser levada
em conta pelo psicólogo que atua ao lado de jovens em conflito com a lei.
Mas, isso não é suficiente para responder sobre a atuação em relação às famílias:
por que é necessário que um sujeito fale sobre sua intimidade, seus afetos, suas
fantasias, seus desejos, suas identificações, enfim, sobre seu sexo de modo a ser
produzida uma verdade? Verdade, essa, que poderá ter conseqüências até mesmo
jurídicas, mas que a princípio visa a promover mudanças subjetivas?
Não é o que espera o psicólogo na justiça, sobretudo o mediador, que “busca
devolver o controle das decisões ao casal e/ou à família (...), busca, com criatividade, a
resolução das controvérsias de forma pacífica, (...) busca satisfazer ambas as partes
igualmente e tenta desfazer o clima de antagonismo, vitória ou derrota” (Vainer, 1999:
42)?
Não importa se o psicólogo analisa ou não “as origens emocionais dos conflitos do
presente” (Vainer, 1999: 43), pois o que está em jogo são as práticas de poder que, a
partir do discurso sobre o sexo, impõem um único modo de subjetivação e produção de

0
verdade.
Em outras palavras, não é a orientação teórica, se esta visa ou não à domesticação
do sujeito de acordo com um ideal de felicidade e equilíbrio, que está sendo colocada em
xeque.
Importa é indagar sobre o que leva o psicólogo a ser chamado a opinar sobre as
famílias em litígio conjugal, de modo que, na origem de tal conflito, haja uma verdade
íntima a ser confessada e produzida.

III. SEXO E FAMÍLIA.


Se em Vigiar e Punir Foucault investiga como a alma moderna é produzida por
práticas de poder que incidem sobre os corpos dos “que são vigiados, treinados e
corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são
fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência” (Foucault,
1987: 31), é num texto posterior, A Vontade de Saber, que ele se interroga sobre os
mecanismos que levam o Ocidente a entrincheirar a verdade ao lado do sexo.
Pode-se dizer que tal interrogação se inscreve em seu projeto filosófico, a saber, a
crítica à tradição metafísica do sujeito no Ocidente (Birman, 2000). Foucault recusa, entre
outras coisas, a idéia de sujeito cuja estrutura permaneceria a priori em face das
contingências do espaço e tempo. Ao contrário, tratam-se de “condições políticas (...)
através do que se formam os sujeitos do conhecimento e, por conseguinte, as relações de
verdade” (Foucault, 1996: 27).
Com efeito, a idéia de que a sexualidade está necessariamente no cerne da
constituição do sujeito e de sua verdade é desarticulada a partir de sua genealogia dos
poderes.
Senão vejamos. Foucault aponta que, no Ocidente, havia três grandes códigos
explícitos que, fazendo a divisão entre lícito e ilícito, regiam as práticas sexuais: o direito
canônico, a pastoral cristã e a lei civil. Centrados nas relações matrimoniais, esses
códigos prescreviam com regras e recomendações o sexo dos cônjuges.
Todavia, as transformações econômicas e políticas do século XVIII passam a não
encontrar mais um suporte sólido no sistema da aliança.
Surge então o dispositivo da sexualidade que no início se fixa nas margens da
família, através da direção espiritual e da pedagogia, para depois se abrigar, com a
valorização da célula familiar no século XVIII, nos eixos centrais de marido-mulher e pais-
filhos.
Nesse deslocamento, as penas sobre os delitos sexuais atenuam-se ao mesmo

1
tempo em que começam a proliferar as instâncias de controle e técnicas de vigilância.
Seja através da justiça penal, que se abre à jurisdição das pequenas perversões, seja da
medicina, que inventa toda uma patologia ancorada nas práticas sexuais “incompletas”,
há uma fermentação discursiva em torno do sexo.
Com o dispositivo da sexualidade, as regras de matrimônio deixam de ser o foco
principal das práticas de poder. Apesar da monogamia heterossexual se manter como
norma, até segunda ordem, não é em relação a ela que se é chamado a confessar todo
instante e em detalhes.
São as sexualidades periféricas, os prazeres anexos, o sexo do louco, da criança,
dos colegiais, dos infratores, da relação pais e filhos, da mãe e bebê, adultos e crianças,
que devem fazer a difícil confissão daquilo que são.
Tais sexualidades não são somente desveladas como, por exemplo, se escreve a
propósito do abuso sexual, em que as inegáveis estatísticas servem para manter
psicólogos, educadores, juristas, todos, em estado de permanente alerta. Elas são
solicitadas, fixadas, isoladas, intensificadas, sendo “o produto real da interferência de um
tipo de poder sobre os corpos e seus prazeres” (Foucault, 1997: 47-48)27.
É sobre o sexo que se apóiam as relações de poder, com a vantagem de que ele é
feito sob medida para em tudo penetrar. Mais do que interditar, os poderes multiplicam
seu raio de ação à medida que buscam seu objeto. Ao mesmo tempo em que perseguem
as diversas formas de sexualidade, os poderes provocam-nas, tendo como efeito a
estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação dos discursos e o
reforço dos controles. O prazer não é livre das relações de poder, ao contrário, ele

27 Convém ressaltar que Bauman aponta para uma “segunda revolução sexual” (Bauman, 1998: 183) que não é
vislumbrada por Foucault. Diferentemente da sociedade disciplinar, as práticas sexuais distanciam-se da família, na
medida em que nada deve resultar dos encontros amorosos que não seja o próprio sexo e seus prazeres correlatos. O
sexo é “purificado” de direitos adquiridos e deveres assumidos, transformando-se num instrumento eficaz de
privatização e mercantilização. Por outro lado, as relações humanas devem ser obrigatoriamente purificadas de qualquer
sugestão sexual sob risco de serem condenadas. O espectro do sexo é espreitado em qualquer gesto de amizade ou
interesse. Em vez de articular os eixos entre cônjuges e pais-filhos, o sexo está se “convertendo num poderoso
instrumento de desagregação da estrutura da família” (Bauman, 1998: 186). No eixo entre cônjuges, se “os serviços
sexuais já não são direitos e deveres conjugais”, por um lado, por um outro, é “difícil interpretar com objetividade, de
forma não ambígua, o comportamento do parceiro de uma pessoa, como consentimento ou recusa de cada um” (idem).
Com efeito, casamento e necessidades sexuais tornam-se inteiramente dissociáveis. No eixo pais-filhos, em vez de os
primeiros serem solicitados a estar em contato com os segundos, hoje em dia ambos devem ser mantidos à distância:
“Os medos de hoje provêm do desejo sexual dos pais, não das crianças: (...) as crianças, agora, são consideradas
principalmente objetos sexuais e vítimas potenciais de seus pais como sujeitos sexuais (...). A ternura dos pais perdeu
sua inocência.” (Bauman, 1998: 187). O sexo infiltra-se sub-repticamente em cada ato de amor, carícia ou intimidade
entre pais e filhos. Por sua vez, qualquer inclinação erótica manifestada pelos filhos é interpretada como indicador de
abuso sexual. Não é por menos que, em recente pesquisa, estima-se que “uma em cada cem crianças americanas é
explorada sexualmente”, recomendando-se “maior proteção a crianças e adolescentes, re-estruturação dos serviços de
assistência às vítimas, leis mais severas (...) e cumprimento mais rigoroso das leis atuais” (O Globo, 2001: 28). Na
medida em que todo gesto torna-se ambíguo, é recomendável que se mantenha certa “reticência, distância e reserva
emocional dos pais” (Bauman, 1998: 189). Conseqüentemente, os laços tornam-se cada vez mais impessoais, despidos
de intimidade e emotividade.

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oferece tudo o que estes precisam para administrar o corpo e o espírito humanos.
Onde há risco de a sexualidade se apresentar, instala-se todo um aparato médico-
pedagógico que incita a todos confessar seus traços sinuosos, solicitar a escuta e se abrir
ao exame infinito. Apoiados na colocação do sexo em discurso, os poderes disciplinares
penetram até às mais finas ramificações e transformam a família numa poderosa
extensão capilar do poder panóptico28.
A célula familiar constitui o que Foucault chama de dispositivo de saturação sexual.
Ela assume um lugar estratégico em meio à proliferação de aparelhos de vigilância e
confissão.
Reorganizada com laços estreitos e intensificados, a família moderna nasce com a
demanda de que a ajudem a solucionar os conflitos entre sexualidade e aliança, sendo
solicitada incessantemente a falar sobre o mal-estar que a aflige. “Tudo se passa como se
ela [família] descobrisse, subitamente, o temível segredo do que lhe tinham inculcado e
que não se cansaram de sugerir-lhe: ela, coluna fundamental da aliança, era o germe de
todos os infortúnios do sexo” (Foucault, 1997: 105).
Com efeito, pais e cônjuges tornam-se “os principais agentes de um dispositivo de
sexualidade que no exterior se apóia nos médicos e pedagogos, mais tarde nos
psiquiatras, e que”, em contrapartida, “no interior vem duplicar e logo ‘psicologizar` ou
‘psiquiatrizar` as relações de aliança” (Foucault, 1997: 104).
Do interior, surgem “figuras mistas da aliança desviada e da sexualidade anormal”
(Foucault, 1997: 104), que transferem a perturbação da segunda para a primeira, por um
lado, por um outro, permitem que a primeira penetre na segunda: a mulher histérica, a
mãe indiferente, a criança fóbica ou precoce, o marido perverso, o pai decadente, entre
outras personagens.
É por isso que se alguém diz ser “pãe” para um psicólogo que, para agravar a
situação, está lotado na Vara de Justiça, tal formulação vira imediatamente objeto de
interesse e investigação. Imaginamos que o primeiro gesto do psicólogo ou psicanalista,
tanto faz, seja afirmar: ou se é mãe ou se é pai! Deste modo, certo de que algo perturba a
estrutura de parentesco, o psi encaminha sua práxis no sentido de retornar o “pãe” sob
forma de interrogação, tal como um enigma a ser decifrado. Ao “pãe”, nada resta senão
iniciar um exaustivo exame de si mesmo.
Ora, perguntemos então: por que não afirmar o pãe? Não está o psi, em meio às

28 O pânico gerado em torno da propensão de a criança se masturbar obriga pais e professores a defendê-la desse
perigo, sendo criado um sistema completo de fiscalização e vigilância dos pais, médica e pedagógica. Como vimos na
nota anterior, tal sistema, característico das sociedades disciplinares, é diferente da “segunda revolução sexual”
apontada por Bauman. Entretanto, não convém determo-nos nesta última, na medida em que priorizamos enfocar a
leitura de Foucault no presente artigo.

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estratégias de saber-poder-prazer, recuperando o sistema de aliança num dispositivo de
produção da sexualidade? Não está reforçando a demanda e a tutela sobre as famílias,
incitando-as a solucionar (ou bem-dizer) os conflitos entre sexualidade e aliança?
Ao saturar de desejo as regras de aliança, situar a verdade ao lado do sexo e, por
fim, interpelar o sujeito para que ao final encontre a relação pais-filhos no cerne da
sexualidade, o psi não está exercendo nenhuma função liberadora29.
Seguindo esse raciocínio, pouco importa se o papel do psicólogo atuante em Varas
de Família deslocou-se de perito para mediador.
É certo que alguns problemas foram eliminados nessa passagem, mas a
problemática do poder permanece, e de modo mais escamoteado.
A inserção da proposta de mediação na rotina dos processos judiciais não decorre
de uma nova “consciência” a ser partilhada entre operadores de direito, pais e ex-
cônjuges. Deve-se ao fato de atender a certas estratégias de poder, em que a divisão
entre bom e mau genitor corrói a frágil aliança que caracteriza as famílias de hoje em dia.
Pode-se supor que, mais do que reprimir, o poder confere um lugar especial ao
psicólogo para que ensine pais e filhos a gerir suas vidas, controlar suas ações,
aperfeiçoar suas capacidades e diminuir a capacidade de revolta.
Para tanto, basta que os pais aprendam a separar os vínculos de parentesco e
matrimonial. Ou os filhos a se posicionarem para não mais se assujeitarem ao gozo de
seus pais.

APÊNDICE
Ao final do presente artigo, decido retirar outro texto de psicologia jurídica da
estante.
Encontro então Avaliação dos adolescentes pelas equipes que atuam no sistema
sócio-educativo, cuja autora, após discorrer sobre a história das diretrizes de atendimento
aos jovens em conflito com a lei, escreve que a Doutrina da Situação Irregular se torna
ultrapassada em face do “forte movimento contra a institucionalização de menores (...), os
diversos trabalhos que retratam os prejuízos sofridos pela desagregação, assim como as
críticas dirigidas à demanda de previsão de comportamentos, constantemente
endereçadas às equipes que atuavam nestas instituições” (Brito, 2000: 118-9).
Outro fator considerado relevante é a ausência de sentido unívoco para o critério
de melhor interesse da criança, “sempre que”, no revogado Código de Menores, “a
situação da criança exigia a intervenção do magistrado” (Brito, 2000: 119). Com efeito, a

29 A presença desse psi na engrenagem jurídica agrava ainda mais a situação.

4
“indefinição conceitual” cede lugar à necessidade de “nomear-se, em sentido
universalizante, os interesses da criança” (idem).
Em outras palavras, a Doutrina da Proteção Integral surge como um
aprimoramento do campo do Direito. A uma uniformização conceitual, soma-se a idéia de
que o poder deve ser exercido como direito, na forma de legalidade, e não como abuso.
Todavia, não é por menos que, na defesa de tal perspectiva, Brito se reporta a um
outro autor que, ao criticar a visão homogênea de delinqüência juvenil, recorta diferentes
tipos de delinqüência para os quais haveria diferentes causalidades e tratamentos.
Seguindo esse raciocínio, o infrator ganha uma individualidade, sem deixar de estar
referido, convém observar, ao ato infracional. Não é o ato e sim o infrator que se torna
objeto de investigação e intervenção.
A solução proposta pela autora não pode ser outra senão transformar a “passagem
do jovem pela justiça” como “absolutamente estruturante” (Brito, 2000: 120; o grifo é
meu). Compreenda-se estruturar como apontar “o sentido do funcionamento jurídico,
explicando o motivo das medidas adotadas, prazos, mecanismos institucionais de defesa,
reafirmando-se para os adolescentes não só seus direitos e o sentido da lei, mas também
os direitos dos outros nesta mesma sociedade” (idem).
Peço licença para interrogar: o que mais se pode incluir nessa tomada de
conhecimento (“incutir-lhe o sentir e pensar”) dos direitos e deveres? A necessidade de se
reconhecer como cidadão? Tornar-se capaz de fazer renúncias e cumprir o pacto social?
Adquirir autonomia, de modo a gerir a própria vida? Mais ainda, para se tornar cidadão, é
necessário ser polido? Tolerante? Produtivo? “Vivenciar suas etapas de desenvolvimento
de forma progressiva”, como diz Brito, “devidamente acompanhado pelos pais e/ou
responsáveis” (Brito, 2000: 123)?
Que mecanismos fazem estabelecer no horizonte, nas palavras da autora, “um
suporte social para que esta internalização das leis ocorra de forma satisfatória” (Brito,
2000: 120; o grifo é meu)? Dito de outro modo, o que está em jogo quando se almeja
atingir suavemente corações e mentes com normas supostamente externas ao
indivíduo?30
A responsabilização coletiva (“professores, assistentes sociais, psicólogos,

30 A autora afirma que a preocupação com a humanização é fundamental para esse tipo de intervenção, tornando-o
diferente das “estratégias de adestramento”. Concordo que isso não se faz sem “humanização”, mas por razões
diferentes. Cabe lembrar com Foucault que, na punição moderna, a humanidade invocada como limite moral recobre
um maior afinamento dos poderes, através dos quais a justiça torna-se “mais desembaraçada e mais inteligente para uma
vigilância penal mais atenta do corpo social” (Foucault, 1987: 73). Para tanto, a humanidade não se impõe ao poder
como uma proibição científica ou racional, mas nasce “nas próprias táticas do poder e na distribuição de seu exercício”
(Foucault, 1987: 92).

5
orientadores vocacionais, (...) policiais, magistrados, agentes encarregados da vigilância”)
aliada à ausência de instituições fechadas não implica novas estratégias de vigilância e
controle?
São essas algumas das questões que pretendi lançar luz no presente artigo, sem
que, evidentemente, tenham sido esgotadas.
Nem poderia pretender tal coisa sem advertir que o Estatuto da Criança e do
Adolescente é infinitamente melhor do que qualquer outra regulamentação anterior.
Tampouco poderia deixar de defender a inserção do psicólogo na engrenagem
jurídica, na medida em que, potencialmente, modifica práticas cuja crueldade se faz notar
a olhos vistos.
Mas, é necessário fazer um outro salto, no sentido, quem sabe, de uma nova
estética.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998.
BIRMAN, Joel. Entre Cuidado e Saber de Si; sobre Foucault e a psicanálise. Rio de
Janeiro: Relume–Dumará, 2000.
BRITO, Leila. Avaliação dos adolescentes pelas equipes que atuam no sistema sócio-
educativo. Em: ____ (coord.). Jovens em Conflito com a Lei. Rio de Janeiro: Ed UERJ,
2000.
CURY, Munir & AMARAL E SILVA, Antônio & MENDEZ, Emílio. (coords.) Estatuto da
Criança e do Adolescente Comentado; comentários jurídicos e sociais. São Paulo:
Malheiros, 1996.
DONNICI, Virgilio. Falência do Sistema Penal. O Globo. 23-02-2001, Rio de Janeiro, p.7.
Opinião.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir; história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes,
1987.
_________________. História da Sexualidade; a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal,
1997.
JOVENS vítimas do sexo. O Globo, Rio de Janeiro, 11 set. 2001. O Mundo, p. 28.
SUANNES, Claudia Amaral. Psicanálise e instituição judiciária: atuação em Varas de
Família. Pulsional: Revista de Psicanálise, São Paulo, 13 (129): 92-96, 2000.
VAINER, Ricardo. O Litígio Como Forma de Vínculo; uma abordagem interdisciplinar. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.

6
XAUD, Geysa. Os Desafios da Intervenção Psicológica na Promoção de uma Nova
Cultura de Atendimento do Adolescente em Conflito com a Lei. Em: BRITO, Leila. (org.).
Temas de Psicologia Jurídica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999.

7
VIOLÊNCIA: O LIMITE DO LAÇO SOCIAL ?

8
Violência: o limite do laço social?
Romero Lallemant Lyra

Boa tarde a todos. Gostaria de agradecer à Comissão Organizadora do evento o


convite que me foi feito para integrar esta mesa. Quero dizer que, sem dúvida, estou
consciente da minha responsabilidade, que aumenta, ainda mais, depois de ouvir tantas
importantes colocações aqui expostas.
No que concerne ao tema propriamente dito - a abordagem do rompimento do laço
social pela violência – resta evidenciado, na medida em que todos nós estamos reunidos
aqui, a preocupação de muitos com o não-rompimento desse laço; e mais, com a
consciência da responsabilidade de cada um de nós para restaurar esse laço, cada vez
que ele sofra uma ação humana violenta, um atentado.
E eu digo isso, acentuando, malgrado o tempo não permitir um enfoque
sociológico-jurídico profundo, que a violência se dá, evidentemente, sob várias óticas, sob
várias formas e aquela que, nesse momento histórico nós atravessamos, e me é a mais
preocupante, é exatamente a violência praticada pela denominada, hipocritamente, “elite
social”, a que habita os palácios dos governos, os escritórios e consultórios luxuosos,
essa elite social que está instalada no Poder, essa elite social da qual, aliás, fazemos
parte.
Temos uma grande responsabilidade e eu fico muito feliz em encontrar aqui tantas
pessoas também preocupadas com esse tema. Deixando de lado as discussões
puramente acadêmicas, em função do tempo, e focalizando questões concretas,
percebemos que os maiores danos causados à nossa sociedade são, indiscutivelmente,
aqueles praticados, justamente - ou injustamente -, por aqueles que deveriam ter a
responsabilidade de coibi-los, evitá-los. E eu digo isso porque devemos nos despir de
qualquer, digamos, pensamento hipócrita a fim de perceber nossa realidade social.
É através da política que, pacificamente, conseguimos modificar o ambiente social,
promover as mudanças sociais inadiáveis e, corolariamente, alcançar o desenvolvimento,
atingindo os objetivos de bem-estar social, o ideal que buscamos para toda sociedade.
Pois bem, a nossa classe política, não há dúvida, deixa muito a desejar.
Lamentavelmente, não são raras as notícias-crimes estampadas nos jornais sobre as
Assembléias Legislativas, onde “balcões de negócios” seriam instalados com a
participação, ou a omissão de parlamentares. Por outro lado, infelizmente, a nossa
polícia, sucateada ao longo dos anos pelos governos e manipulada pelo Poder Executivo,
muito pouco pode investigar. E, sem investigações inteligentes, independentes, bem

9
realizadas, pouco o Ministério Público, a Promotoria, enfim, pouco a Justiça poderá fazer,
e a sensação de impunidade acaba assaltando nossos corações. Não se pode,
simplesmente, olvidar esses fatos.
E, de que maneira a polícia é manipulada? É fácil: Um delegado de polícia que
resolve atuar e autuar corretamente um indivíduo que pertença à nossa elite social,
certamente será transferido no dia seguinte para muito longe. É verdade que o mesmo
não ocorre com os Promotores de Justiça e com os Juizes, mas o fato é que também
sofremos uma grande pressão toda vez que incomodamos. Mas é com enorme satisfação
e certeza do dever cumprido que, embora eu não tenha procuração dos meus colegas,
posso asseverar que nós alcançamos e incomodamos muito essa elite, essa elite podre
que, efetivamente, tem causado tanto mal a toda nossa sociedade.
Assistimos hoje o Ministério Público e o Judiciário de mãos dadas tentando
restabelecer a moralidade, a moralidade pública, as relações sociais nesse mundo tão
desgastado, nesse mundo onde verificarmos na prática que a ética deixou de ser algo
importante para muitas pessoas. Pessoas que deveriam ter o compromisso social de
preservar os valores éticos fundamentais, os valores morais fundamentais, estão violando
esses conceitos.
Exatamente por isso, penso que é necessário revermos o conceito de
criminalidade. Outrora, ancorado no problema social e na questão da miséria
exclusivamente, o fato é que a criminalidade hoje reside nas zonas nobres da nossa
cidade, habita, como eu disse, os palácios dos governos, os poderes públicos, a classe
social mais elevada; esse é um fato com o qual temos que lidar. Poderíamos, unicamente
nos deter em realizar operações nas favelas, a coibir o tráfico de drogas nas favelas. Nas
favelas encontraremos apenas o varejo das drogas. O tráfico de drogas, nosso “câncer
social”, se inicia dentro dos palácios dos governos, das salas luxuosas de empresários
bem-sucedidos, nas festas e reuniões sociais com direito a sobrenomes famosos. É
preciso atacar os financiadores do tráfico, os “lavadores de dinheiro” do tráfico, os
atacadistas, e não apenas o “pé de chinelo” que vende o cigarro de maconha de dia para
comer a noite. Ninguém pode deixar de considerar que nós não produzimos a cocaína,
não plantamos a maconha, tudo isso vem de fora, e só pessoas articuladas com o Poder
conseguem, efetivamente, distribuir a droga. Sim, a distribuição é feita nos morros no Rio
de Janeiro, mas esses atacadistas, na verdade, moram na Vieira Souto, na Av. Atlântica,
na Av. Sernambetiba, desfilam pelas colunas sociais, onde suas fotografias estão
estampadas. Essa é uma realidade que muitas vezes não queremos ver. Mas é um fato.
E foi justamente esse fato que me levou, levou o Ministério Público do Rio de Janeiro,

0
levou toda essa nova geração de Promotores e Juizes, que têm consciência do seu papel
social, a trabalhar com a revisão do conceito de criminalidade.
Eu sempre ouvi – e por cerca de duas décadas lecionei Direito na PUC – que a
Justiça não se preocupava com as camadas excluídas, a não ser no momento que
determinava que a polícia fosse lá para “espancar” essas camadas excluídas socialmente;
que a Justiça, na verdade, procurava preservar a elite social em detrimento dessas
camadas menos favorecidas. E isso, lamentavelmente, não deixa de ser uma verdade
abominável. E justamente por ser uma verdade é que resolvemos enfrentá-la e mudá-la.
De que maneira ? Com exemplos práticos e menos discursos, posso lembrar de algumas
ações que efetivamente nós realizamos. Até muito pouco tempo atrás, isso foi citado aqui
na mesa, era comum o denominado "corredor da morte", nos momentos de lazer das
comunidades carentes, durante os bailes funks. Era algo tolerado, admitido, pois, afinal de
contas, quem morria ali era um indivíduo que sequer certidão de nascimento tinha,
indivíduo de pai ignorado, cuja mãe passava doze horas por dia fora de casa,
trabalhando, sendo aquele ser humano criado “pela vida”, ficando muitas vezes, trancado
e amarrado em casa. Eles crescem e de alguma maneira têm que externar essa violência
que sofreram. Nada melhor do que aquele momento, onde eles estão reunidos,
“protegidos” por um incentivador dessa violência, um desses organizadores de “bailes”
que, depois acabando se tornando ricos e integrando aquela “elite”. Aqueles jovens,
então, passam a extravasar todas as violências que eles sofreram e naquele ambiente
eles “se resolvem”. Até aí, tudo normal ? Claro que não. Evidentemente que não! A
Justiça tem que se preocupar com isso. A Promotoria tem que se preocupar com isso. A
Polícia, igualmente, tem que se preocupar com isso. Os Poderes Públicos têm que,
efetivamente, se preocupar com isso. Esse pensamento resultou numa ação concreta, a
partir do momento que essas camadas excluídas estiveram na Promotoria, procuraram a
Promotoria, exigindo uma providência no sentido de evitar que essas tragédias
continuassem. Afinal de contas, será que as camadas excluídas só têm direito a se
espancar, só têm direito a não ter direitos ? Eles eram mortos ali, e a organização dos
clubes e desses eventos, rapidamente procurava despejar o corpo em algum bueiro, para
que isso não fizesse parte das estatísticas criminais.
Muito bem, resolvemos então enfrentar esse problema, que já tomava uma
proporção elevadíssima e, sobretudo, preocupados com o fato de que as vítimas dessa
violência eram os jovens, os adolescentes, as crianças, que ainda podemos e devemos
resgatar e evitar que eles se infiltrem no mundo da criminalidade, muito tinha que ser
feito. E, rapidamente.

1
O fato é que conseguimos a edição de uma lei estadual, de número 3410 / 2000, o
que foi difícil, havendo ocasiões em que enfrentamos muitos problemas, burocracias, mas
conseguimos acabar com o "corredor da morte", levando a essas comunidades um
pensamento, uma nova mentalidade, uma esperança, no sentido de que eles precisam
compreender que têm direito a muito mais do que apenas aquilo que vivem.
Por outro lado, o Poder Público, leia-se a Promotoria de Justiça, preocupado sim,
com essas camadas excluídas, atuou também junto àquela denominada “elite social”, a
esses indivíduos que praticam, no moderno e caro mundo eletrônico, abusos sexuais
contra crianças, a denominada pedofilia na Internet. E através de uma ação da Promotoria
de Justiça, do Ministério Público com o Judiciário, conseguimos tirar da rede cerca de 120
mil cenas, fotos, filmes, imagens de crianças sofrendo abusos e violências sexuais. São
os dois lados do Poder Público que devem estar presentes e atuantes na sociedade. Um,
preocupado em evitar que as camadas excluídas continuem excluídas – eles precisam
saber que têm direitos – e outro, a firme e efetiva repressão às condutas perpetradas
pelas camadas sociais mais elevadas, que pensam que podem “tudo”, porque não vai dar
“em nada”. Há inadiável urgência no combate à impunidade, talvez com inspiração na
“teoria da janela quebrada”, de William Bradd, que, contando com o Promotor de Justiça
Rudolph Giuliani a frente da prefeitura da cidade de Nova York, desenvolveu a “política de
tolerância zero” que deu muito certo. Basta ter vontade de fazer, de mudar, de querer.
Como dizíamos, a pedofilia na Internet, por exemplo, é praticada, por pessoas de
nível superior, de alto nível social, intelectual, cultural, financeiro. Essas pessoas que
desfilam nas colunas sociais, que moram em zonas nobres na cidade, são esses, na
verdade, os mais pervertidos. E, aliás, foram eles que tiveram a oportunidade de fazer
algo de bom para a sociedade, e não fazem. É o egoísmo que toma conta das pessoas, a
ganância, a falta de caráter, a manipulação da fé, da religião, do nome e da palavra de
DEUS, inclusive por muitos políticos oportunistas e desonestos. Pois bem, a Promotoria
de Justiça conseguiu efetivamente coibir e continuamos coibindo a imoralidade e a
criminalidade. Mas é preciso que haja o engajamento de toda sociedade.
A sociedade não pode simplesmente depositar no Poder Público a realização de
todas as ações visando coibir as práticas criminosas. Todos nós somos responsáveis. É
preciso que todos nós estejamos conscientes das nossas responsabilidades. O laço social
só será rompido se deixarmos de fazer a nossa parte. A violência só vai predominar se
pessoas como vocês, como nós, não estiverem mais preocupadas com esse tipo de
problema. Eu quero acreditar que cada um de nós está saindo desse evento hoje com a
esperança mais fortalecida, exatamente porque apesar de pequenas ações, apesar de...é

2
aquela velha história: podemos varrer apenas à frente da nossa calçada, se todos nós
realizarmos essa tarefa, sem dúvida teremos um caminho muito mais limpo, um caminho
muito mais saudável para a nossa sociedade.
Gostaria de deixar em resumo para os senhores e para as senhoras, que sempre
vale a pena fazermos alguma coisa para melhorar a vida de todos, por menor que seja a
nossa ação, por menor que seja a nossa atuação. Se não posso acabar com a
prostituição infantil no mundo real, em todo Estado, posso, pelo menos, combater a
prostituição infantil, o abuso sexual infantil na minha área de atuação, na Internet. Posso
melhorar a vida das pessoas de alguma forma, promovendo justiça, realizando justiça.
Acho que essa responsabilidade é de todos nós, de cada família, de cada pessoa.
Enfim, o tempo já está escasso, e gostaria de agradecer a oportunidade que me foi
dada para estar com vocês. Obrigado pela paciência.

3
Discursos que matam
Vera Malaguti Batista

Tenho procurado pensar o sentido dos discursos sobre medo e violência no Brasil
na confluência da história com a subjetividade, no entrelaçamento da memória individual
com a memória coletiva, entendendo o discurso, a palavra, como arena de conflito,
associado sempre à ideologia do cotidiano31.
Analisando então discursos, narrativas, pretendo (como disse Chalhoub) inseri-los
em processos históricos determinados. A obra de Machado de Assis, entre a escravidão e
o assalariamento, permite enxergar, nos mínimos detalhes, essa “forma perversa de
progresso”, “o sentido histórico da crueldade” da produção escravista fundada na
violência e na disciplina militar, nas escalas hierárquicas, no olhar móvel32.
Sidney Chalhoub tece seus diálogos políticos com Machado, trabalhando uma das
imagens mais marcantes dessa dominação; a “inviolabilidade da vontade senhorial”. Uma
sociedade paternalista que representa o mundo (até hoje) no “topo de uma pirâmide
imaginária”. Chalhoub analisa no Brasil oitocentista a pobreza como defeito moral, a
tortura rotineira dos escravos como castigo justo, a verticalização da “atribuição e
formulação de consciência de lugares sociais”. Mas Chalhoub também trata da
horizontalidade e da alteridade que vazava nas trocas cotidianas entre dominadores e
dominados33.
Os discursos do medo na contemporaneidade aparecem num contexto de
estetização radical do capitalismo tardio. Bauman trata das relações entre cultura, beleza,
limpeza e ordem, também no registro estético, com a pobreza aparecendo como
“metassujeira”. O ideal de pureza da pós-modernidade passa pela criminalização dos
problemas sociais, num processo de penalização da precariedade, onde o Estado de Bem
Estar Social vai gradualmente passando a Estado Penal34.
Bauman nos fala que a pobreza, que não é mais exército de reserva de mão-de-
obra, tornou-se uma pobreza sem destino, precisando ser isolada, neutralizada e
destituída de poder. Esses resultados seriam alcançados através da “estratégia bifurcada
da incriminação da pobreza e da brutalização dos pobres”35. Os novos inimigos da ordem

31 Cf. Mikhail Bakhtin. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Ed. Hucitec, 1995.
32 Cf. Roberto Schwarcz in “O sentido histórico da crueldade em Machado de Assis”, Novos Estudos –CEBRAP. São
Paulo, nº 17, maio de 1987; e Alfredo Bosi in “Machado de Assis, o enigma do olhar”. São Paulo, Ed. Ática, 1999.
33 CHALHOUB, Sidney e PEREIRA, Leonardo (orgs.). A história contada: capítulos de história social da literatura
no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
34 Cf. Loïc Wacquant in “Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos”. Coleção Pensamento
Criminológico. Rio de Janeiro: Ed. Freitas Bastos/Instituto Carioca de Criminologia, 2001.
35 Cf. Zygmunt Bauman in “O mal estar da pós-modernidade”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

4
pública são submetidos diuturnamente ao espetáculo penal, às visões de terror dos
motins penitenciários e dos corredores da morte. Não é coincidência que a política
criminal de drogas hegemônica no planeta se dirija aos pobres globais
indiscriminadamente: sejam eles jovens favelados no Rio, camponeses da Colômbia ou
imigrantes indesejáveis no hemisfério norte. Para Bauman a combinação de estratégias
de exclusão, criminalização e brutalização dos pobres impedem a condensação de um
sentimento de injustiça capaz de rebelar-se contra o sistema. As políticas públicas se
convertem em “administração tecnocrática da desigualdade e dos riscos”36.
Zaffaroni já havia estendido o conceito foucaultiano de instituição de seqüestro à
América Latina como um todo37. Assim, a prisão nas colônias seria uma instituição de
seqüestro menor, dentro de outra muito maior, um apartheid criminológico natural, dirigido
aos desaparecidos de nascença, estes setores vulneráveis; ontem escravos, hoje massas
urbanas marginalizadas, que só conhecem a cidadania pelo seu avesso, na trincheira
“auto-defensiva” da opressão dos organismos do sistema penal.
No dia-a-dia da imprensa carioca destilam-se discursos que matam. Nesses
discursos aparecem os zoneamentos hierárquicos da cidade, as visões da favela como
“lócus do mal”, como dissolutora de fronteiras a transbordar para a “cidade legal”. As
metáforas biológicas são conseqüência direta da visão dos morros como lugar natural do
mal; “são animais”, “são cupins de nossa sociedade”. Essas figuras evocam tanto a
limpeza como o extermínio. A pureza e a higiene são o oposto da sujeira e da desordem.
Como disse Bauman, a noção de pureza está entre as idéias que ao serem abraçadas
descobrem dentes e aguçam punhais. O clamor por ordem precisa de políticas criminais
com derramamento de sangue, operações de “limpeza”, de “faxina”.
O lócus do mal acaba por se consolidar como problema de natureza: surgem aí as
metáforas biológicas e científicas. Em artigo sobre a gênese institucional do genocídio,
Jean-Pierre Baud afirma que para que aconteça o genocídio é necessário um sistema de
legalidade científica dominado por uma teologia e que essa política do mundo científico
seja apresentada para defender o “ser coletivo” 38. Cada vez que se designa um fenômeno
social como doença, está sendo utilizada inconscientemente a idéia central do nazismo, a
utilização do conceito de doença para definir o que ameaça o ser coletivo. É este conceito
que, na interseção do jurídico com o científico, pode ter dado lugar ao surgimento do
sistema institucional do genocídio.

36 Cf. Alessandro Baratta in “El concepto de seguridad y las políticas de prevención en la economia globalizada” – Rio
de Janeiro, mimeo, UCAM, 2000.
37 Cf. Eugenio R. Zaffaroni in “Em busca das penas perdidas”. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 1991.
38 Baud, Jean-Pierre. Genése institutionalle du génocide, in La science sous la troisième Reich, org. Josiane Olff-
Nathan. Ed. Seuil, 1993.

5
A polifonia dos discursos morais, dos discursos higiênicos, dos discursos que
localizam o mal, converge para um único e grande objetivo: a eliminação do mal, do sujo,
do estranho, do portador do caos. “Mais penalidade, como mais moralidade, é o trágico
equívoco de toda cruzada contra a criminalidade”39.
Esses processos sincrônicos estão todos impregnados do medo. De um medo que
é insegurança globalizada, mas que se desdobra em um medo cotidiano muito concreto.
Esses processos se transformam assim em discursos, em teorias criminológicas
baseadas num senso comum, mas que revigoram a ode ao extermínio e pedem por
políticas criminais com derramamento de sangue40.
Na introdução de seu livro sobre a sociedade exclusiva, Jock Young analisa os
processos de mudança no trabalho e a ascensão do individualismo na modernidade
tardia. Para ele há um movimento de erosão da diferença na política e no privado. Esse
movimento vai de uma sociedade inclusiva de estabilidade e homogeneidade para uma
sociedade exclusiva de mudança e fragmentação. Para ele, a exclusão se dá em três
níveis: no econômico, pelo mercado de trabalho, no social, e no nível criminal com a
magnificação brutal das atividades de exclusão da justiça criminal e da segurança
privada. Young se refere também às mudanças culturais do capitalismo tardio com a
institucionalização do individualismo, a linguagem naturalizadora do mercado que
desafiou a meta-narrativa da democracia social, e o intenso debate sobre crime, lei e
ordem. Nada disso seria pensável sem o precioso esforço da profecia realizada da aldeia
global da comunicação. E, no caso do Brasil, o global não é só metáfora, é o nome do
Império.
Essas mudanças transformaram a existência cotidiana em uma série de “encontros
de riscos”, em medo e apreensão. “Nós nos sentimos materialmente inseguros e
ontologicamente precários”41. Passamos um bom tempo da nossa vida, cingidos pelos
mass-media na sua discussão central sobre diferença, dificuldade, risco e leis. Os
contornos normativos da sociedade são discutidos detalhadamente. Nunca sabemos se,
em nossas pequenas transgressões diárias, teremos alguma câmera escondida, daquilo
que Nilo Batista denunciou como a maior delegacia de polícia do Brasil, o Jornal
Nacional42.
A criminologia (e a produção de saber ligada à reflexão sobre a prática dos

39 PAVARINI, Massimo. O instrutivo caso italiano. In: Revista Discursos Sediciosos, ano 1, nº 2. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1996.
40 Cf. Batista, Nilo. In "Política criminal com derramamento de sangue". In Revista Brasileira de Ciências Criminais,
ano 5, nº 20. Outubro-dezembro de 1997. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais.
41 Young, Jock. The exclusive society: social exclusion, crime and difference in Late Modernity. London: Sage
Publications, 1999.
42 Cf. Batista, Nilo. O reizinho nu e cru. Fio da História, 2001. p. 6

6
operadores do sistema penal) é uma parte importantíssima do discurso oficial do vídeo-
capital financeiro. E a história da criminologia, do positivismo à criminologia crítica, vai
deixando em seu caminho rastros de sangue produzidos por discursos que matam.
Na virada do século XIX na Europa surge a criminologia, nova disciplina, ancorada
nas teorias patológicas da criminalidade que a partir das características biológicas e
psicológicas classificava a humanidade entre normais e criminosos, estes últimos
observados em minuciosas experiências “científicas” nas instituições totais. O delito como
conceito jurídico, definido pela filosofia liberal clássica dos séculos XVIII e XIX, é
substituído pelo delito natural de Garofalo, no paradigma do positivismo naturalista, do
determinismo biológico. O início dessa nova “disciplina científica” estatui seu objeto no
homem delinqüente. Classificações exaustivas são realizadas por Lombroso para
detecção dos “sinais antropológicos” e sua associação às teorias racistas hierarquizantes
provenientes do social-darwinismo.
É claro que a teoria mimética colonizada dos trópicos adaptou a explicação
patológica da criminalidade à nação mestiça. “Não havia como escapar ao rigor de uma
cultura científica obcecada por identificar, quantificar e categorizar deformidades,
enfermidades e atavismos, passo indispensável à confecção de sinais manifestos de sua
condição subalterna”43. Nina Rodrigues lançou-se a esta tarefa, associando-se às elites
brasileiras na construção do “perigosismo social” que municiou a República brasileira para
a sua vocação histórica de exclusão e extermínio. Nina Rodrigues resume em sua vida e
sua obra a cooperação corporativa dos médicos e dos juristas (e também da antropologia)
para a medicina-legal que definiu o povo brasileiro “estigmatizado pela inferioridade
inscrita no código da raça, no suporte da natureza, fazendo com que o negro deixasse de
ser apenas “máquina de trabalho” para convertê-lo em “objeto da ciência” 44. Mariza
Corrêa analisa essa disputa entre médicos, policiais e juristas pela medicina legal e a
fundação da antropologia no Brasil45. Vozes dissonantes, como Tobias Barreto, pagaram
seu preço no ostracismo e no degredo intelectual a que foram submetidos em seu tempo.
Mas a história continua. Algumas décadas depois, Freud inaugura a psicanálise
que ilumina as teorias da criminalidade com uma inversão da perspectiva de investigação
criminológica. O foco sai do fenômeno para a reação social ao desvio. Através da
negação do conceito tradicional da culpabilidade, a psicanálise entende a função punitiva
da sociedade identificada com o criminoso, bem como as fontes afetivas desta função
punitiva. Desvela-se o caráter simbólico dos procedimentos jurídicos e, depois de Totem
43 MICELI, Sérgio. O Enigma da mestiçagem. In: Jornal de Resenhas. Folha de São Paulo, 8 de maio de 1999.
44 MICELI, op. cit.
45 CORRÊA, Mariza. As Ilusões da Liberdade – A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil. Ed. da
Universidade de São Francisco. Bragança Paulista, 1998.

7
e Tabu, Mal-estar na civilização, Psicologia das Massas e Análise do Eu, nunca mais a
pena seria a mesma46.
Mas o golpe mortal no conceito de crime natural, o novo paradigma criminológico,
surgiria nas décadas de 60 e 70 deste século com o rotulacionismo (labeling approach)47
ou enfoque da reação social. Nada seria como antes. O objeto da criminologia, antes o
homem delinqüente, depois o desvio, se movimenta em outra direção, a da produção
social do desvio e do delinqüente. Para explicar a criminalidade, é necessário a
compreensão da ação do sistema penal na construção do status do delinqüente, numa
produção de etiquetas e de identidades sociais. Recuperando a definição da escola
clássica, em que o delito é produto do direito e não da natureza, os técnicos do labeling,
na efervescência política e cultural daquelas décadas, apontam suas baterias para o
sistema penal em si, analisando as construções sociais empregadas para definir o
criminoso. Se a pergunta era quem é o criminoso, agora passa a ser quem é definido
como criminoso (Baratta, 1999).
A difusão tardia do livro de Rusche (Punição e Estrutura Social) 48 e sua atualização
por Kirchheimer põe em circulação a idéia da relação histórica entre as condições sociais,
a estrutura do mercado de trabalho, os movimentos da mão-de-obra e a execução penal,
inscrevendo as construções do estereótipo nas condições objetivas, estruturais e
funcionais da lógica de acumulação do capital, historicizando a realidade comportamental.
É neste terreno sólido que Foucault avança para a compreensão do caráter simbólico do
sistema penal sobre as ilegalidades populares, a disciplina e sua “arte de distribuições” e
a implantação de uma “tecnologia minuciosa e calculada de sujeição”49.
Daí ergue-se a criminologia crítica e a superação do paradigma etiológico, aonde a
criminalidade não é ontológica, mas atribuída, num processo de dupla seleção, distribuída
desigualmente de acordo com a hierarquização decorrente do sistema sócio-econômico.
No entanto, a força desse novo paradigma não é suficiente para abalar o funcionamento
do sistema penal no seu eterno trabalho de seleção e estigmatização. Afinal, as famosas
condições objetivas não só não mudaram, como se aprofundaram na lógica de
reprodução do capital.
O desafio da criminologia crítica (que Baratta definiu como teoria crítica da

46 Cf. Sigmund Freud, Obras Completas, Madrid, Ed. Biblioteca Nueva, 1973.
47 Cf. Alessandro Baratta, op. cit., para a história do aparecimento do novo paradigma, a partir do estruturalismo-
funcionalismo de Merton, das teorias das subculturas criminais (Sutherland, Cloward e outros) e das técnicas de
neutralização (Sykes e Matza), nas décadas de 40 e 80 do século XX.
48 RUSCHE, Georg e KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. Coleção Pensamento Criminológico, nº 3.
Ed. Freitas Bastos/Instituto Carioca de Criminologia. Rio de Janeiro, 1999.
49 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Ed. Vozes. Petrópolis, 1977.

8
realidade social do direito50) no Brasil de hoje é compreender as novas funções do
sistema penal no capitalismo tardio periférico, com a transformação do Estado
Previdenciário em Estado Penal51, com as nossas marcas históricas de genocídio dos
povos indígenas e a violência e a crueldade da escravidão negra.
A história da criminologia brasileira se desenrola no marco da história social das
idéias jurídico-políticas. Para Gizlene Neder, devemos compreender a conjuntura histórica
da passagem do século XVIII para o XIX em Portugal e no Brasil a partir da criação dos
cursos jurídicos no Brasil (1827) e da legislação penal na pós-emancipação política no
Brasil (1830)52. Tendo como marco histórico a administração de Pombal (1749), temos
aqui a constituição de um Império Luso-Brasileiro, no contexto da agonia do pacto
colonial.
Para Neder, esta conjuntura marca a história do direito penal brasileiro com
permanências culturais de arbítrio e fantasias absolutistas de controle total, com as
marcas da tortura e do sadismo imbricadas nas estratégias de suspeição e culpabilização
fundadas pelo direito canônico, determinando práticas pedagógicas, jurídicas e religiosas
que inculcaram uma determinada visão sobre direitos, disciplina e ordem. As implicações
jurídicas e político-ideológicas da expansão portuguesa, religiosa e militarizada,
impunham uma fórmula de relação com a colônia de “territórios a serem reconquistados
dos infiéis”, numa visão tomista, hierarquizante, que combina a razão liberal com a fé
católica da Segunda Escolástica. Para Neder, o tomismo foi uma opção político-ideológica
de incorporação pragmática de alguns aspectos de modernidade, garantindo a
permanência do absolutismo ibérico, como a jangada de pedra de Saramago.
Para Nilo Batista a nossa herança jurídico-penal tem matrizes ibéricas católicas
que indicam permanências do paradigma inquisitorial nos sistemas penais53.
Sobreviveram entre nós os mecanismos do projeto político que o engendrou: o
dogmatismo legal, as estratégias de criminalização do diferente, o caráter coercitivo do
consenso e as técnicas de manipulação dos sentimentos ativados pelo episódio judicial.
Assim, para Batista, as marcas da Inquisição permaneceriam no nosso discurso jurídico-
político na oposição entre uma ordem jurídica virtuosa e o caos infracional, no combate ao
crime feito como cruzada, na idéia do injusto que ameaça e que deve ser exterminado,

50 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de
Criminologia/Ed. Freitas Bastos, 1999.
51 WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Instituto
Carioca de Criminologia/Ed. Freitas Bastos, 2001.
52 NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão. Rio de Janeiro: Instituto
Carioca de Criminologia/Ed. Freitas Bastos, 2000.
53 BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de
Criminologia/Ed. Freitas Bastos, 2000.

9
baseado na confissão oral e no dogma da pena.
O livro de Thomas Holloway sobre a polícia no Rio de Janeiro é um dos melhores
livros de história da criminologia no Brasil54. Mais além da polícia, ele analisa a
consolidação da arquitetura institucional penal no Rio de Janeiro no século XIX, contra
escravos e pobres. Observaram-se aí os espetáculos públicos de violência (açoites e
execuções), as estratégias de suspeição generalizada, as prisões por ofensas a ordem
pública sem crime (em 1850, 65% das detenções eram por desordem, embriaguez,
capoeira, insultos, etc.).
As polícias passam por um processo de profissionalização e militarização, dirigidos
à crescente concentração populacional nas cidades. No fim do século XIX surgem os
mapas estatísticos, os modelos de registro de crimes, os serviços médico-legais e de
identificação. Para Nilo Batista, a virada do século XIX para o XX inspira os juristas para a
necessidade de punir sem crime, através das medidas de segurança, destinadas ao
“perigosismo social”.
No rastro das agitações de rua, dos levantes do vintém, das maltas dos capoeiras,
o Brasil assiste ao fim da escravidão (1888, foi o penúltimo país do mundo a aboli-la) e a
Proclamação da República (1889). A ralé livre é forçada a arranjar-se por si mesma, e a
verdade é que, quando é abolida a escravidão e instaurada a República, já havia sido
montado um moderno sistema penal altamente seletivo aonde a tortura e a agressão
física eram incorporadas nas estruturas regulamentares para a produção de terror, para,
como diz Holloway, manter a ralé acuada. O que faltava era uma teoria: e é aí que surge
a criminologia no Brasil...
Em meu livro sobre drogas e criminalização da juventude pobre no Brasil55, analisei
historicamente o sistema penal para jovens no Brasil como um artefato de seletividade e
estigmatização contra a juventude negra e pobre.
Observei, com surpresa, a permanência dos discursos positivistas, lombrosianos e
social-darwinistas nos laudos, pareceres das equipes técnicas dos juizados, delegacias e
instituições de atendimento. O título do meu livro inspirou-se num laudo de cessação de
periculosidade em que o especialista captava um brilho no olhar de um menino quando se
referia a coisas que gostaria de comprar e que não se coadunavam com uma vida de
salário mínimo. A verdade é que, atirados à máquina mortífera56 como operadores
acríticos do processo de criminalização, vamos repetindo e reiterando o senso-comum da
criminologia neopositivista: desestruturação familiar, atitude suspeita, preconceito contra
54 HOLLOWAY, Thomas. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1997.
55 BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Instituto Carioca de Criminologia/Ed. Freitas Bastos, 1999.
56 Expressão utilizada por Gizlene Neder e Gisálio Cerqueira para referir-se ao sistema penal.

0
as favelas, demonização das drogas, etc.
A cada “ajuste” no sistema financeiro internacional corresponde uma nova onda de
criminalização na América Latina. Nós, os operadores do sistema penal, é que nos
deparamos no dia-a-dia com os escombros humanos, com as ruínas sociais do vídeo-
capital financeiro. A nossa obrigação histórica é romper com o cotidiano dos discursos
que matam, é inventar novos discursos e conter os danos da máquina mortífera. A
psicanálise trabalha com as fantasias, lugar dos dispositivos analíticos cuja matéria-prima
seria o desejo. Trabalhando memória e reminiscência, Joel Birman afirma que só o
reconhecimento do fracasso leva à assunção desejante no presente e a uma história
dirigida ao futuro57. O título deste trabalho de Birman é o centro da inquietação que temos
que carregar o tempo todo dentro de nós: de que forma o nosso trabalho pode se
constituir em obstáculo para a barbárie?

57 BIRMAN, Joel. Psicanálise, negatividade e heterogêneo: como a psicanálise pode ser obstáculo para barbárie?
Caderno de Psicanálise – vol. 5, nº 18. Rio de Janeiro: SPCRJ, 1999.

1
Na vizinhança do tráfico: algumas considerações sobre a organização do comércio
de drogas na cidade do Rio de Janeiro
Antônio Carlos Rafael Barbosa

A minha contribuição aqui vai se resumir à discussão de alguns pontos acerca do


tráfico de drogas no Rio de Janeiro, assunto este com o qual já venho trabalhando há
algum tempo.
Vou falar um pouco acerca da minha trajetória. Durante os anos de 1995 e 1996,
implementei um trabalho de campo no interior de algumas favelas cariocas com grupos
ligados ao tráfico de drogas. Esta investigação foi desenvolvida no âmbito do Programa
de Pós-graduação em Antropologia e Ciência Política da Universidade Federal
Fluminense e resultou no livro "Um abraço para todos os amigos" (Rafael, 1998). Esse
título, retirado de uma letra de música (um "rap proibido", entre tantos outros que circulam
pela cidade), assinala seu tema central - as alianças entre os grupos que dominam o
comércio das drogas nessas localidades. E assinala também uma mudança de
orientação, processo este bastante comum no trabalho dos antropólogos - o trabalho de
campo quase sempre produz um deslocamento das imagens e modelos analíticos com os
quais procuramos cercar nosso objeto empírico antes de enfrentá-lo diretamente. Assim,
no decorrer da pesquisa, pude operar um descentramento dos modelos sociológicos com
ênfase nos aspectos agonísticos do tráfico de drogas, uma vez que a “amizade” apareceu
como elemento fundamental para a compreensão de sua dinâmica – as guerras entre as
quadrilhas sustentavam-se através dessas alianças, assim como a distribuição das áreas
de atuação, o fornecimento de drogas e armas e o deslocamento dos homens. O que
pode ser resumido, de forma bastante simplificada, da seguinte maneira: as hierarquias
acionadas quando do funcionamento do tráfico nas favelas dependem das alianças
laterais de seus membros, em especial daqueles que ocupam posições de chefia
(estando presos ou não) e, a partir destas alianças, todo um diagrama de poder recobre a
cidade na disputa pelos pontos de venda mais lucrativos.
Atualmente, estou tentando desenvolver minhas pesquisas dentro do Sistema
Penitenciário, e o assunto não é mais a organização do tráfico de drogas em si, mas os
valores e os modos de organização próprios ao mundo prisional. O que não tem sido uma
tarefa fácil, diante da atual situação em que se encontram as cadeias cariocas.
Então, pretendo aqui explicitar algumas características de como o comércio de
drogas é implementado na cidade do Rio de Janeiro. Acredito que tal assunto se
enquadre perfeitamente bem em uma mesa sobre violência, na medida em que o tráfico

2
de drogas é percebido, hoje, como a principal causa ou lugar de produção da
insegurança, da violência e do crime, ao menos para alguns estratos da nossa população.
Pois certamente para os moradores das comunidades pobres, a ação dos organismos
policiais minimamente rivaliza ou divide a autoria do esgarçamento dos laços sociais, se
quisermos perceber a violência sob essa ótica.
Mas por que o tráfico de drogas ocupa hoje essa posição, de inimigo público
número um? Não é à-toa que em nossas penitenciárias de segurança máxima quase toda
a sua clientela seja composta por traficantes, e nas outras unidades do Sistema
Penitenciário, masculinas e femininas, um grande número de entradas, principalmente no
que se refere à reincidência, se dá pelo mesmo motivo. Como bem ressalta a doutora
Vera Malaguti Batista (1998), a droga hoje é o principal motivo para a criminalização dos
jovens pobres no Rio de Janeiro. (Nem sempre o foi, e o investimento principal do livro é
justamente historicizar o processo de criminalização das crianças e adolescentes pobres,
do início do século até 1988.) Motivo de criminalização dos jovens pobres e, atualmente,
também o principal motivo de criminalização da população pobre como um todo. Afinal,
quem são esses traficantes que se encontram custodiados no Sistema Penitenciário?
Certamente jovens, em sua grande maioria, mas oriundos de que camadas sociais?
Eu não vou entrar na discussão de quais são os valores ou as práticas processuais
que servem de fundamento para a seleção dos casos que são tomados como objeto de
intervenção do Sistema de Justiça Criminal e de que maneira o são, quais são as
modulações possíveis num Sistema que continua a funcionar como um direito penal
calcado sobre a categorização do autor e não sobre o fato delituoso. Vou centrar a
discussão sobre o que se passa nas ruas e cadeias, e em especial sobre as relações
entre a atividade do tráfico de drogas e outras atividades criminosas.
O tráfico de drogas, se não o reificarmos, é aquilo que se passa na conjunção de
alguns fluxos – de drogas, armas, homens e dinheiro, basicamente. Obviamente, e na
medida em que se procura gerenciar esses fluxos, o tráfico comporta algum grau de
organização (percebemos isso ao entrar numa favela carioca). Mas designa
simultaneamente efeitos, movimentos, acontecimentos, algo que se passa ou que se
passa entre. E que irá se exprimir num regime de signos ou num sistema de ações: no
controle territorial, nas guerras, nas hierarquias das quadrilhas, nos modos de interação
com os moradores da “comunidade” onde o tráfico está inserido, na produção de
sobrecódigos (que orientem o comércio e a circulação dentro da favela), na enunciação
de palavras de ordem (“CV, aqui é a vera”).
Assim, se seguirmos estes fluxos, seus ritmos e velocidades, suas conexões,

3
teríamos uma imagem razoavelmente nítida daquilo que se passa. Contudo isto não é
uma tarefa fácil. Até mesmo porque o seu principal atributo é a metamorfose, quase que
instantânea, de um fluxo em outro (evidentemente, é sobre a forma de capital que estes
fluxos atingem a sua maior fluidez e velocidade58). E também porque, e essa é uma
questão prática que se coloca diante do pesquisador quando aborda um assunto como
esse, “o crime é silêncio” (Varella, 1999, p. 15).
De todo modo, devemos considerar na vizinhança do tráfico uma série de outras
atividades criminosas. Nas palavras de um informante: “o mundo do crime tem vários
lados, eles se tocam”. E exemplificava: “é o assalto à banco ou carro-forte, o seqüestro e
o tráfico” (Rafael, 1998, p. 112). Cada um destes “lados”, ou ações, eram chamadas de
“armas”, segundo uma antiga gíria dos presidiários do Rio de Janeiro. Estelionato; roubo
de automóveis; assalto a bancos, carro-forte, residências; tráfico de drogas; seqüestro –
são exemplos de algumas “armas”. (Vale ressaltar que as gírias mudam com uma
velocidade impressionante dentro do Sistema Penitenciário, e a explicação para isto pode
ser encontrada se considerarmos sua finalidade última - estes termos, este deslizamento
da linguagem, serve justamente para burlar a vigilância dos operadores do Sistema.).
Contudo, se existe uma especialização, devemos considerar a possibilidade da
conexão ou da passagem entre elas. Como diz o capitão da Polícia Militar, Rodrigo
Pimentel, que se tornou conhecido através do filme-documentário de João Moreira Salles
– Crônica de uma Guerra Particular: “Se não tivesse cocaína, iriam assaltar bancos. Se
eu ocupar o Morro da Providência com duzentos policiais durante um mês, todos aqueles
bancos em volta vão ser assaltados, porque eles estão descapitalizados e precisam pagar
as dívidas. A cocaína é entregue em consignação, só gera capital se ela for vendida, e aí,
como eles vão pagar dívida de arma, de mineira, de advogado, de cadeia, de comprar
fuga?“ (Caros Amigos, ano IV, n. 44, 2000, p. 21).
Podemos estender os exemplos, explicitando as peculiaridades de algumas destas
“armas” e os seus limiares (os pontos que marcam uma mudança qualitativa, sem retorno
– já se é o já se faz outra coisa). Assim: ter a mão ágil, a capacidade de ler uma
assinatura e imita-la com precisão e de forma imediata, a boa aparência e a boa conversa
– tudo isto é acionado por um estelionatário em sua atividade. Ou pelo menos era, hoje
em dia com a clonagem de cartões bancários, negócio muito mais lucrativo, os
estelionatários estão mais interessados em circuito integrados de computadores para
instalar nas máquinas bancárias de saque automático. Diferente de alguém que assalta

58 A Secretaria Anti-Drogas, durante a gestão de seu ex-titular, o juiz Maierovitch, insistiu severamente neste assunto:
o controle sobre a lavagem do dinheiro sujo. E isto se justifica na medida em que o Brasil é considerado uma excelente
“lavanderia”.

4
residências: a “escolta” da casa (observação, por vários dias, da residência a ser
invadida) é feita de modo a mapear os hábitos dos moradores e da vizinhança, os
dispositivos de segurança, a rotina da vigilância – cabendo neste momento circular sem
ser percebido. E entrar na ausência dos moradores (ou paralisa-los, através de ameaça
ou violência física) e sair antes da chegada da polícia. No caso de seu aparecimento
inesperado, pode-se mudar o agenciamento para seqüestro, com tudo que ele aciona:
controle das entradas e saídas, produção de visibilidade no momento em que se ameaça
a vítima, negociação, fome, sede, imprensa etc. O que também difere do planejamento e
implementação de um assalto à banco. A aproximação com os vigilantes da empresa de
segurança; a abertura de uma conta na agência com documento falso (conexão com
estelionatários) para justificar uma ida diária que possibilite desenhar um croqui com a
posição dos caixas, do cofre, das câmeras de circuito interno e dos seguranças; a
formação do bando de ladrões; o roubo de veículos para a fuga (conexão com o roubo de
automóveis); a busca de armamento (que por vezes é tomado de empréstimo de quem
está na favela, na atividade do tráfico); e, por fim, se necessário, o seqüestro do gerente
do banco, para que este abra o cofre.
No caso do tráfico de drogas, que particularmente nos interessa aqui, também é
possível listar algumas ações. São elas: estabelecer um contato com um “matuto”
(vendedor da droga no atacado) que possibilite que a droga chegue à favela; organizar a
“endolação” (mistura e empacotamento da droga, com a correspondente compra de
“remédios” para misturar com a cocaína, embalagens e confecção de carimbos); distribuir
os pontos de venda – “bocas-de-fumo” - e os “vapores” (vendedores da droga no varejo)
pelo morro; constituir uma turma de “olheiros” (são os responsáveis por avisar da chegada
da polícia ou de inimigos); recrutar os “soldados” (os responsáveis pela segurança das
bocas-de-fumo e da favela como um todo); nomear os gerentes (os que controlam em
cada ponto de venda os fluxos de droga ou dinheiro); estabelecer a entrada de armas e
munição de boa qualidade e zelar pela sua manutenção; negociar com a polícia um
“alvará” de funcionamento59 ou, por vezes, o pagamento de uma “mineira” (seqüestro de
um traficante com um “grau” elevado na hierarquia do grupo, seguido de extorsão; ação
praticada por policiais); fazer a contabilidade do dinheiro arrecadado e remeter parte dele
para os que se encontram presos; pagar os advogados; financiar uma fuga da cadeia;
roubar um banco, quando o fluxo de caixa está baixo; acionar aqueles que são
especialistas no furto de veículos quando é necessário formar um “bonde” (comboio para
59 A negociação entre o tráfico e o Estado sempre é possível e, mais do isso, necessária. Drauzio Varella, assim deixa
dizer – na boca de um dos seus personagens, Zé da Casa Verde, interno da Casa de Detenção de São Paulo: “Tem que
ter acesso no viciado, ser dono de uma bocada. O tráfico está aberto 24 por 48, é lugar fixo, com movimento, como um
mercado. A polícia fica logo sabendo. Para funcionar tem que pagar o porrete deles” (1999, p. 226-7).

5
levar drogas ou armas de uma favela a outra ou deslocar homens para uma ação bélica);
patrocinar, uma vez ou outra, um baile funk na comunidade; emprestar homens e armas
no caso de guerra de um grupo aliado com um outro que é inimigo; jogar, o tempo todo, o
jogo das alianças (no dizer de um informante, o que mantém alguém vivo nesta atividade
é a “amizade e o poder de fogo”). (Deve imaginar o leitor o quão estressante é a atividade
destes “comerciantes”, como alguns se autodenominam).
Agora, devemos perceber que ao falarmos destas “armas”, e das respectivas
passagens que elas acionam, estamos nos remetendo a uma noção largamente utilizada
pelos nossos atores e naturalizada pelos analistas – “o mundo do crime” ou simplesmente
“o crime”. Alguém se define como pertencente a este universo. Existe um conjunto que
abarca todas as “armas” ou, ao menos, a intenção de formalizar este conjunto. Não
importa. De um jeito ou de outro, este universo irá se constituir através da codificação das
atividades ditas criminosas. Podemos dizer que: a partir de um certo momento, um
determinado evento, um campo de eventos passa a se denominar crime. Torna-se
matéria institucional aquilo que antes era fato bruto. E a lei é, sem dúvida, o grande
instrumento utilizado para produzir, recortar e classificar o campo das ilegalidades.
Todavia seria um erro dizer que a lei se aplica sobre uma matéria informe. Já existe uma
codificação anterior, resultante de cada investimento contra a pessoa, a propriedade ou
outra coisa que o valha, de cada modo de operar as ações. Um saber prático que se
desenvolve nas ruas e que irá ser sobrecodificado e definido como crime. Um “arma”, mas
cuja finalidade e composição são outras que não aquelas que serão produzidas no
encontro com o código penal, com o aparelho de Estado. E o processo todo parece não
ter fim, sempre que algo escapa, e os riscos ou prejuízos se tornam grandes demais, a lei
se dilata e vem em seu encalço: afinal, desde quando se tornou possível falar em crime
contra a propriedade intelectual ou processar piratas de computadores?
A prisão é o lugar privilegiado onde este encontro se dá (evidentemente não é o
único). Todavia, ao falar em um encontro, não estou me referindo apenas ao fato de que
alguns presos cometem novos crimes no interior das cadeias para se manterem vivos ou
“produtivos” (foram-me narrados vários casos de presos que, sem nunca terem sido
traficantes, começam a traficar na cadeia para manterem a subsistência de sua família).
Nem somente ao fato de que na cadeia se aprende novas técnicas e procedimentos para
o exercício do crime. Ou que lá se desenvolva um conjunto de táticas e estratégias
utilizadas para efetuar as alianças – elemento fundamental do “mundo do crime”, dentro e
fora das cadeias. Ao falar de encontro, estou dizendo que se instala no pensamento dos

6
apenados, inscreve-se em seus corpos60, um aparelho de captura que se assemelha ao
aparelho de Estado. Forma-Estado61 estabelecida no pensamento, império do pensar-
verdadeiro.62 Para este fim, todo exercício disciplinar é dirigido. E as conseqüências disto
podem ser percebidas, por exemplo, no uso de elementos do próprio código penal quando
da efetuação de distinções no interior mesmo da massa prisional ou do coletivo (são
noções êmicas) (como exemplo, basta dizer que quando chega um novato na cadeia,
todos os que ali estão procuram saber qual é a “bronca”, o artigo penal que o define: 157,
171, 12 – são os números que falam e que, juntamente com a “fama” adquirida nas ruas,
irão definir sua posição).Ou podem ser percebidas, e aqui é o ponto onde quero chegar,
no modelo que orienta as alianças entre indivíduos ou grupos, construídas a partir daí.
Os Comandos são, de certa forma, o efeito mais visível de uma captura exercida
pelo aparelho de Estado sobre um tipo de organização que está na base das atividades
criminosas e, em especial, do tráfico. Um modelo de organização, ou melhor dizendo, um
arranjo através do qual o tráfico de drogas se atualiza e que podemos chamar de
rizomático. Quais são as características de um rizoma? O deslize de seus elementos uns
sobre os outros; suas conexões que dissolvem os pontos e posições em favor das linhas
e das redes (as organizações terroristas também segue um modelo rizomático - não tem
centros de poder; daí a dificuldade dos aparelhos de Estado em combatê-las); seu molde
que permite que ele seja rompido em qualquer lugar e volte a se refazer de outro modo (a
imagem evocada por alguns policiais acerca do combate ao tráfico de drogas é exemplar -
estão "enxugando gelo"; prende-se ou mata-se um traficante e já tem centenas para
ocupar o seu lugar).
Podemos perceber, concretamente, essa característica do tráfico nos seus bandos.
Há bandos por toda parte no que se refere ao tráfico - na tomada de territórios, no
momento do surgimento dos Comandos - estou me referindo as falanges que existiam no
extinto presídio da Ilha Grande; na organização mesma do tráfico ocupados de um
funcionamento específico - os grupos de soldados que circulam em fila pelos becos, nos
"bondes" que saem das favelas para roubar bancos ou carros-fortes, ou nos assassinatos

60 Kafka descreve este processo no seu livro “Na colônia Penal” (1996, p. 22). E aquilo que ele apresenta – a máquina
de inscrição - de modo algum deve ser lida como uma metáfora.
61 “Os Estados sempre têm a mesma composição; se há uma verdade na filosofia política de Hegel, é que ‘todo Estado
contém em si os momentos essenciais de sua existência’. Os Estados não são compostos apenas de homens, mas de
florestas, campos ou hortos, animais e mercadorias. Há uma unidade de composição em todos os Estados, mas os
Estados não têm nem o mesmo desenvolvimento nem a mesma organização.” (Deleuze e Guattari, 1995-7, v.5, p. 58;
grifo do autor). Esta “unidade de composição”, imanente aos diferentes Estados, é o que chamado pelos autores de que
faço uso de “forma-Estado”: “Forma-Estado, como forma de interioridade, tem uma tendência a reproduzir-se, idêntica
a si através de suas variações [...]” (Deleuze e Guattari, 1995-7, v. 5, p. 24).
62 Como exemplo, cito a declaração de Marcinho VP, líder do tráfico no Morro Santa Marta e que foi recentemente
preso: “O certo é o certo. Nunca o errado nem o duvidoso. A idéia é que reine em todos os morros paz, justiça e
liberdade” (O Dia, 12 fev. 1996). “Paz, justiça e liberdade” é uma palavra de ordem do Comando Vermelho.

7
praticados no interior dos presídios - onde sempre é um bando que comete o crime, e é
sempre um indivíduo que assume a autoria do ato delituoso, o "robô".
É como se o tráfico operasse num estado de variação contínua. Como se naquilo
que se individualiza como o tráfico de drogas no Rio de Janeiro existissem três
dimensões: a forma-Estado, com sua vigilância, sua relação com o segredo e a lei (a lei
do tráfico); sua disciplinas; suas hierarquias, suas facções e comandos (dimensão esta
que nos permite traçar paralelismos com os modos de funcionamento do Estado, ainda
que isto seja matéria a ser problematizada); em segundo, algo que se assemelha às
organizações mundiais" capitalistas em sua busca desenfreada pelo lucro, passando por
cima de todos os códigos locais em nome do mercado e dos negócios e, por fim, seus
bandos. Não que se trate realmente de coisas distintas, mas estados simultâneos do
mesmo arranjo, e é essa variação que permite que a atividade do tráfico de drogas passe
pelas políticas governamentais de combate as drogas e mesmo faça delas o motor de sua
dinâmica. Estou pensando em alguns casos em que a informação para a prisão de um
grande chefe do tráfico é fornecida pelos seus inimigos. É um caso limite, onde os
organismos policiais, mesmo trabalhando dentro da lei, trabalham para o tráfico. Suas
ações fazem parte da dinâmica do tráfico de drogas, a impulsionam em alguma direção. E
o são também nas ocasiões em que se implementa uma política de extermínio, como foi o
caso daquilo que ficou conhecido como a "gratificação faroeste", durante o governo
Marcelo Alencar. Com o ataque duro às facções, com a morte de muitas lideranças, o
tráfico neste período assumiu um caráter nitidamente rizomático.
Em suma, podemos dizer que aqui opera uma dupla captura. E o processo todo
pode ser resumido, ainda que de forma simplificada, da seguinte maneira: produção de
ilegalidades através da aplicação do código penal; subordinação das diversas
especialidades da ação criminosa, que surgem a partir daí, ao tráfico de drogas - este
passa a ser o centro em torno do qual estas vão gravitar (é um fato recente - no Rio de
Janeiro, podemos situar o início deste fenômeno a partir do início da década de 80). A
cadeia começa a socializar os custodiados para o tráfico de drogas - a análise dos
processos dos reincidentes aponta para isso. Segundo movimento: uma vez que o tráfico
possui a peculiaridade de ser também um comércio, ele necessita (para usar uma
expressão de um dos meus informantes) de estar "plantado" num território. O que permite
de certo modo controlar a população pobre e mantê-la dentro dos "guetos" 63. Afinal são

63 É necessário um certo cuidado com o uso do termo "gueto". Como adverte Waquant, a adesão incondicional a
"temática do gueto" muitas vezes obscurece a particularidade do grupo social de que tratamos, impedindo o exercício
comparativo: "A comparação histórica e sociológica mostra que, se gueto e 'subúrbio' [refere-se ao caso americano e
francês] têm em comum ser, cada um em sua ordem nacional respectiva, zonas de relegação social situadas no nível
mais baixo da hierarquia urbana, eles diferem em sua composição social, sua textura institucional, sua função no

8
três os espaços públicos dominados pelos Comandos, e é muito sintomático que sejam
estes - as favelas, as cadeias e os cemitérios. Por fim, esse controle permite desviar a
atenção dos outros fluxos de droga - o tráfico que se processa no "asfalto"; o tráfico
internacional que atravessa o país - desviar a atenção de suas redes e de seus principais
atores.
Obrigado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Batista, V. M. Difíceis Ganhos Fáceis: Drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia: Freitas Bastos, 1998.
Deleuze, G. e Guatarri, F. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed.
34, 1995-1997 (cinco volumes).
Kafka, F. Na Colônia Penal. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
Rafael, A. Um abraço para todos os amigos: algumas considerações sobre o tráfico de
drogas no Rio de Janeiro. Niterói: EDUFF, 1998.
Varella, D. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
Wacquant, L. "Da América como o Avesso da Utopia". In: Daniel Lins (org.). Cultura e
Subjetividade. Saberes Nômades. Campinas: Papirus, 2000, p. 35-48.

sistema metropolitano e, sobretudo pelos mecanismos e pelos princípios de segregação e agregação dos quais são o
produto. Em suma, e para simplificar, a exclusão age prioritariamente sobre uma base racial há muitos séculos tolerada
ou reforçada pelo Estado e pela ideologia nacional, do lado americano; do lado francês, essencialmente com base em
critérios de classe, em parte atenuados pelas políticas públicas" (2000, p. 36-7).

9
Crime na Cultura
Ana Alice Trindade Morales Azevedo

“Não é preciso dizer que uma civilização que deixa


insatisfeito um número tão grande de seus participantes e
os impulsiona à revolta, não tem nem merece a
perspectiva de uma existência duradoura.” (Freud, “O
Futuro de Uma Ilusão”)

...Chamou-me a atenção em particular, o relato emocionado e ao mesmo tempo contido


do Sr. ..., pessoa visivelmente humilde, cuja voz mal saia da boca, parcialmente coberta
por sua mão que ainda segurava a carta-convite. Com olhos cheios de lágrimas, disse
estar cansado de batalhar pelo filho, na rotina de visitas ao presídio e à Defensoria
Pública. Sua expressão me pareceu, de fato, a de fim de batalha. Pergunta-nos, e já deve
ter se perguntado muitas vezes, onde foi que errou, já que sempre foi pobre e sempre
conseguiu levar a vida honestamente, tem outros filhos e no entanto só este se envolveu
com o crime. O que aconteceu com ele? (fragmento de um relatório de atendimento a
familiares de presos na Vara de Execuções Penais).

Semelhante reflexão também ocupa minha mente sobretudo depois de passar a


conviver com os relatos desses “atores” do crime. Além disso, diante de tantas notícias
terríveis que nos chegam a respeito da criminalidade – que em nossa cidade vem
assumindo características de guerra civil – é comum que nos perguntemos o por quê
dessa violência. Ela nos obriga a viver atrás de grades em nossos apartamentos e a
andar pelas ruas temendo as sombras ou trancados em automóveis, cada vez mais
transformados em verdadeiras células onde até o ar interno é condicionado, fazendo
lembrar em muito as cascas dos ovos que protegem os embriões das aves. Proteção, em
todo o caso, relativa pois a realidade pode atravessar esta frágil casca a qualquer
momento.
É possível buscar nas características próprias ao psiquismo de certos indivíduos,
as razões de seus atos criminosos – não se pode negar as idiossincrasias – mas é
também importante uma reflexão a respeito da violência, que leve em conta certas
características da nossa cultura. Uma camada da sociedade tende a ver estes “atores do
crime” como “seres de outra ordem” não são humanos como eles e têm de ser

0
simplesmente eliminados. Entretanto, se trocassem os óculos da intolerância que
segrega, por um que permitisse reconhecer o reflexo do próprio observador sobre a cena
de horror que observa, talvez fosse possível, ao invés de eliminar o ator, ajudar a mudar o
roteiro da cena.
Uma reflexão dessa ordem pode ser despertada pela leitura do texto freudiano “O
Futuro de Uma Ilusão”.
Freud afirma nesse texto que foi para defender-nos dos perigos da natureza que
nos reunimos e criamos a civilização, esta é sua razão de ser. Entretanto, uma vez
reunidos outra de suas funções passou a ser, tornar possível a vida em comum. Afinal, há
uma outra “natureza” da qual temos de nos defender: a humana. Freud diz: “parece que
toda civilização tem de se erigir sobre a coerção e a renúncia ao instinto”[pulsão] (Op.Cit.
pg.17). O conceito de “Pulsão” é fundamental para a psicanálise, ele define algo entre o
somático e o psíquico, foi traduzido por “instinto” embora esta palavra não defina bem
este conceito. Podemos dizer que são impulsos que partem da parte mais primitiva do
nosso ser, “nosso lado animal”, digamos assim, e que influenciam nossa existência vida
afora. Não podemos esquecer que quando falamos de pulsão, incluímos aqui a pulsão de
vida, sobretudo em sua conotação erótica, mas também as pulsões destrutivas. Estas
últimas, presentes em todos os seres humanos, poderiam gerar “pane” social se não
sofressem algum tipo de coerção. Obviamente, como podemos ver, há um ônus a ser
pago pelos “benefícios” da civilização, já que as pulsões continuam a exigir satisfação e o
controle social tem de ser constante. Seria de se esperar que o homem desenvolvesse
em algum nível, certa oposição ou resistência à cultura.
Certas proibições, como por exemplo, o incesto, o canibalismo e o impulso para
matar, que atingem a todos os seres humanos, foram estabelecidas nos primórdios da
civilização e praticamente iniciaram a distinção do homem de sua “natureza” puramente
animal. Porém observamos que estas, juntamente com outras proibições, continuam
atuantes até hoje. Foram passadas de geração em geração há milênios e continuam
sendo necessárias, pois os desejos que elas tentam controlar nascem novamente com
cada criança.
Entretanto, com a evolução da civilização e do próprio ser humano, foi
desenvolvida a capacidade para que aquela coerção externa fosse internalizada
gradativamente. Ela é assumida pelo superego (instância crítica, parte integrante do
psiquismo humano) e a partir de então passa a fazer parte de seus mandamentos. Toda
criança deve passar por esse processo pois só assim se torna “um ser moral e social”. Do
ponto de vista da civilização, essa internalização e o fortalecimento do superego

1
representam uma vantagem incalculável, pois uma vez estabelecida em determinado
indivíduo, este passa de opositor a “veículo” daquela civilização. Quanto maior o número
desses “veículos”, mais segura será esta cultura e mais ela poderá prescindir das
medidas de coerção externas.
Observamos, porém, que o grau dessa internalização mostra-se bastante diferente
de acordo com as diversas formas de proibição pulsional. Em algumas, a exigência
cultural é tamanha que a internalização é, em geral, amplamente conseguida, é o caso do
incesto ou do canibalismo. Entretanto, a situação muda quando nos referimos a outras
formas de reivindicação pulsional. Em relação a estas, um grande número de pessoas só
obedece às proibições culturais se estiverem sob pressão externa. Isto também acontece
em relação às “exigência morais” da civilização. Por exemplo, muitas pessoas “civilizadas”
seriam incapazes de cometer um assassinato mas não hesitariam em satisfazer seus
desejos sexuais ou seus impulsos agressivos, mesmo que estes venham a prejudicar
outras pessoas, desde que possam permanecer impunes.
Até agora estivemos falando das restrições que atingem a todos os membros de
determinada cultura. Existem, porém, algumas formas de restrição que só se aplicam a
certas classes da sociedade. Em termos psicológicos, espera-se das classes menos
favorecidas, que façam o possível para se livrar de seu “excesso de privação”,
aproximando-se das classes mais privilegiadas. Quando isto não é possível, já dizia
Freud, “uma permanente parcela de descontentamento persistirá dentro da cultura
interessada, o que pode conduzir a perigosas revoltas”. Nas culturas ditas civilizadas,
observa-se até hoje que a satisfação de uma parte de seus componentes depende da
opressão de outra parte. Freud dizia em 1927:

“é compreensível que as pessoas assim oprimidas desenvolvam uma intensa


hostilidade para com uma cultura cuja existência elas tornam possível pelo seu
trabalho, mas de cuja riqueza não possuem mais do que uma cota mínima. Em
tais condições, não é de esperar uma internalização das proibições culturais
entre as pessoas oprimidas. Pelo contrário, elas não estão preparadas para
reconhecer estas proibições, têm a intenção de destruir a própria cultura e, se
possível, até mesmo aniquilar os postulados em que se baseia.” (Freud, 1927.
Pg.23)

Como justificar então, que este modelo de civilização permaneça até hoje? Freud
busca esta explicação em “uma satisfação narcísica proporcionada pelo ideal cultural”,

2
pelas conquistas coletivas, a qual seria partilhada não apenas pelas classes favorecidas,
mas também pelas oprimidas, deslocando, neste caso, a hostilidade para os povos de
outras culturas e criando uma identificação entre as classes. Um exemplo disso pode ser
observado nos jogos esportivos, nas manifestações artísticas e nas guerras entre nações
ou entre culturas religiosas. Freud também chama a atenção para a possibilidade de
ligação emocional entre as classes oprimidas e seus opressores. As primeiras podem ver
nestas seus ideais, apesar de manterem uma hostilidade para com elas. Mas até que
ponto essa ligação seria suficiente para fazer frente à hostilidade? Mesmo no caso da
identificação cultural, um mínimo de satisfação narcísica, promovida pelos ideais culturais
se faz necessário.
Freud descreveu de modo terrível o que poderia ser uma sociedade sem leis, sem
pactos e sem renúncias: “pânico, terror, morte e destruição”. Mas para que a lei seja
incorporada tem de estar submetida ao amor e à justiça. Segundo Junia de Vilhena,

“Um pai pode se sustentar como pai pela via da violência (eu sou o mais forte)
ou pela via simbólica (eu sou seu pai) ancorada na sua função de introdutor da
Lei. Onde a lei do pai é imposta pela força bruta os filhos não são sujeitos, são
submetidos. Não existe compromisso ou pacto, existe submissão ao mais forte
– lei da selva, lei do cão. A lei existe, como nos dizia Pellegrino (1987), não
para humilhar e degradar o desejo, mas para estruturá-lo integrando-o no
circuito de intercâmbio social.” (Op.Cit.,Pg.135)

A autora se refere a uma “tirania” que no decorrer da história sempre foi exercida
sobre as camadas mais desfavorecidas e desprotegidas da sociedade. Ela cita a própria
violência do aparato policial em relação a estas populações como exemplo. “Através do
medo, que tem como função retirar do sujeito sua honra, sua própria condição de sujeito –
faz dele apenas uma criatura que obedece a outra criatura que manda" (Op.Cit.pg.135).
Nesse sentido, é assustador ouvir, durante os atendimentos a familiares de presos,
esta população se referir à força policial como “a lei”. É comum frases como “quando a lei
chega na comunidade, já entra atirando, invadindo, destruindo, humilhando”, “eu tenho
mais medo da lei que do bandido”, “a lei quando chega não respeita ninguém, parecem
uns bichos”. Uma vez uma jovem me disse: “ – Eu me sinto impotente diante das
ameaças que eles fazem, a gente sabe que eles têm a lei”. Indaguei qual lei seria esta,
para espanto daquela jovem que respondeu de maneira desconcertante: “ – Lei nenhuma
protege a gente”. Era claro seu tom de revolta. Como se pode esperar que uma norma

3
social seja internalizada pelo seu valor simbólico (lei paterna) se esta lei não apresenta
sua vertente protetora, que em geral significa uma compensação para as privações
pulsionais?
A lei internalizada aqui passa a ser outra, a do mais forte, do mais esperto, a do
que melhor consegue burlar a outra lei formalmente estabelecida. No crime sentem-se
poderosos. Mas cumprir essa “lei do mais forte” também traz sérias ameaças à própria
integridade física do indivíduo. Mesmo assim, na esperança de transformação ilusória de
sua realidade sentida como insuportável, muitos são os que pagam o preço, proclamam a
“lei do cão”, do “bicho”, tentam arrombar as barreiras da opressão “enfiando o pé na
porta” e perdem a liberdade, quando não a vida. Não percebem que, ao atirar a granada
sob a laje de concreto, é sobre eles mesmos que incidirão a maioria dos estilhaços, são
eles que no crime perdem a condição de humanos: assumem sua identidade enquanto
“bichos” (assim se designam), pensam ser uma raposa, podem até morder como um cão,
mas têm de se esconder e viver como um rato e freqüentemente são dizimados como
insetos. Tento fazê-los refletir: não há mesmo outra saída? Será que também muito não
se faz para que se acredite ser impossível fazer algumas portas se abrirem sem a
necessidade de lançar contra elas a granada?
A maior parte da população oprimida sucumbe ao assujeitamento. Infelizmente,
poucos são os que percebem alguma fresta nas barreiras sociais pela qual possam
passar, acreditam em sua capacidade para vencer o que é difícil (muito difícil) mas
possível, usam os meios aceitos pelas normas sociais amplas para mudar sua realidade e
efetivamente o conseguem.
Resta para a maioria assujeitada, um recurso a uma outra lei, a divina. Para Freud,
a idéia de Deus foi desenvolvida pela humanidade a partir da necessidade de proteção
contra as forças da natureza. É no desamparo infantil que ela encontra sua origem, este
despertou a necessidade de proteção, atendida originalmente pela figura do pai. Aqui
devemos lembrar que a criança mantém com o pai uma atitude ambivalente, ao mesmo
tempo em que o teme, o admira e anseia por sua amorosa proteção. Com a constatação
posterior de que este desamparo continua através da vida, fez-se necessário aferrar-se à
existência de um pai muito mais poderoso. Assim

“O governo benevolente de uma providência divina mitiga nosso temor dos


perigos da vida; o estabelecimento de uma ordem moral mundial assegura a
realização das exigências de justiça, que com tanta freqüência permaneceram
irrealizadas na civilização humana; e o prolongamento da existência terrena

4
numa vida futura fornece a estrutura local e temporal em que essas realizações
de desejo se efetuarão.” (Freud, Op.Cit.,Pg.43)

Com toda certeza, não é sem motivo que as duas formas de discurso que mais se
ouve nos grupos de atendimento a familiares de presos é o da revolta e o religioso. Este
último, ainda mais freqüente que o primeiro, traz claramente um caráter alienante que na
maioria das vezes acaba obliterando uma maior capacidade de reflexão sobre as
questões pessoais e sociais que os levaram àquela situação. Trazem uma resposta
pronta e sedutora na medida em que lhes chegam de uma instância superior e exógena
com a qual não há o que se discutir.
Por outro lado, observa-se que entre os condenados que verdadeiramente “se
convertem” a uma religião, e em geral as escolhidas são justamente as mais rigorosas do
ponto de vista do controle moral, esses não voltam a cometer delitos. É como se
finalmente internalizassem a lei de um pai supremo, que o vigia constantemente
(conhece até seus pensamentos), pode castigá-lo de forma onipotente, mas em
compensação oferece grandes recompensas futuras. Além disso, fator muito importante,
apresenta uma nova identidade a este indivíduo, um novo grupo a que pertencer, no qual
se sente acolhido e valorizado de acordo com seu comportamento. Sua dedicação a esta
causa tem um grande valor simbólico – ele volta a sentir-se sujeito, mesmo que esta seja
uma posição ilusória, como também era a proporcionada pelo crime. A vantagem aqui é
que, com o suporte social, muitos conseguem construir algo de positivo em suas vidas ao
invés de destruí-las.
O “bicho” vira “irmão”.
Mas é preciso mais. Talvez ainda não seja tarde para sonhar com reformas sociais
cada vez mais amplas que ofereçam a essas pessoas possibilidades reais de
transformação de sua realidade. Ou, pelo menos, podemos lançar sementes de reflexão
sobre nosso papel neste sonho.
Quem sabe assim, o bicho vira sujeito?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Freud, S.(1927) – “O Futuro de Uma Ilusão” , E.S.B., Vol.XXI, Rio de Janeiro, Imago Ed.,
1986.
Vilhena, J. – “Laços da paixão: política, ética e liberdade”, in “A palavra e o silêncio”,
Sévulo A. Figueira (org.), Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1993.

5
A RESPONSABILIDADE DE CADA UM FRENTE AO
MAL-ESTAR ATUAL

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A responsabilidade de cada um frente ao mal-estar atual
Sérgio Verani

Boa tarde. Quero agradecer o convite para participar deste 2º Encontro. Aliás, eu
também tive o privilégio de participar no ano passado do primeiro encontro dos psicólogos
do estado do Rio e tem sido um grande prazer. Mais prazer, ainda, porque o tema da
mesa é a responsabilidade de cada um frente ao mal-estar atual.
Quando me falaram sobre esse tema, eu disse: “não sei falar disso; sei falar de lei,
de direito; não sei nada sobre mal-estar”. Mas eu descobri que eu sei sim, por que é fácil.
Quem trabalha com lei, com direito, vive o mal estar todo dia, permanentemente.
Nunca havia lido “o mal estar na civilização” ou “na cultura” de Freud. É um livro
fantástico! Freud escreve muito bem. Eu conhecia Freud de conversa, de ler algumas
coisas. Fui apresentado à Freud por Erich Fromm. Eu comecei a ler Erich Fromm na
década de 60. Todo mundo lia Erich Fromm: “Meu encontro com Marx e Freud”, “O medo
à liberdade”, “Conceito marxista do homem”. Aliás, o “Conceito marxista do homem” foi a
primeira edição no Brasil com os manuscritos filosóficos econômicos de Marx. Na época,
eu estava estudando Direito.
Quando li “meu encontro com Marx e Freud”, fiquei mais interessado pelo encontro
com Marx, mas gostei muito do livro e fui aprendendo sobre Freud. Acho muito difícil
compreender o mundo ou compreender a vida sem Marx, mas, também, sem Freud. Os
dois pensamentos são inafastáveis e complementares.
Em “o mal estar na civilização”, Freud faz uma crítica ao comunismo da qual
discordo. Entretanto, se aproxima de Marx ao falar de “ilusão”. Ele começa o livro falando
sobre a ilusão dos homens. Acreditam em falsos valores. Eu gostei muito de ler Freud,
por isso agradeço o convite que, de certa forma, me obrigou a ler seu livro.
“O mal estar na civilização” fala, também, sobre o que Romildo já anunciou. Como
é viver na cultura? Como é o sofrimento de renunciar, de perder o usufruto, o gozo? A
renúncia só tem sentido à medida em que há uma recompensa. Uma recompensa muito
maior, claro, do que a renúncia, senão por que renunciar ao gozo, ao usufruto?
É preciso que haja uma recompensa. Na nossa cultura, na cultura do mundo
capitalista, essa recompensa não existe para a grande maioria da população. Então, o
mal-estar é absolutamente generalizado e permanente e cada vez mais intensificado. Há
uns trechos do “mal-estar” que me mobilizaram muito. Vou apenas mencionar alguns
trechos, para depois tentar associar com a questão da lei, com a questão do nosso
trabalho, dos psicólogos e dos juristas. Do juiz, do promotor, do advogado. Dessa
multidão de pessoas que trabalham com a lei, com o Direito, enfim, trabalham com o

7
sofrimento, com o mal-estar das pessoas que são subjugadas por esta lei.
Freud coloca que uma defesa contra o sofrimento é buscar a felicidade da
quietude, mas indica outra forma importante: tornar-se membro da comunidade humana.
É bonito como ele escreve; tornando-se membro da comunidade humana o poder do
indivíduo isolado passa para a comunidade, ou melhor, esse poder da comunidade
organizada fica estabelecido como um direito em oposição ao que ele chama de força
bruta do indivíduo e aí cria-se um “estatuto legal”. É a expressão usada. Cria-se este
estatuto legal nesta comunidade estabelecida, essa forma de regulação social.
Passando para o Direito: se, para Freud, este estatuto legal é a forma de se opor
ao sofrimento, tornando-se membro da comunidade e construindo uma aliança com os
companheiros, na sociedade capitalista esta lei, este estatuto não é da comunidade, nem
para a comunidade, pelo contrário, ele é contra a comunidade.
A lei de qualquer sociedade capitalista é a lei do capital, é a lei de uma classe, de
um grupo, na verdade, é uma lei privada. Uma lei contra a grande massa da população,
que subjuga, representa, expressa e legitima os valores do capital. Todos os valores, a
partir do valor fundamental que é a propriedade.
Então, a lei positiva do Estado, a lei jurídica, é a lei da propriedade, do proprietário.
Em conseqüência, contra aquele que não tem acesso à propriedade, à terra, a esse
direito.
Voltando a Freud, ele continua seu texto dizendo que a civilização constitui um
processo a serviço de Eros, buscando a unidade da comunidade. O significado da
evolução da civilização representa a luta entre Eros e a morte. A luta da espécie humana
pela vida. Mas o estatuto legal da sociedade capitalista é o estatuto legal da morte. É o
estatuto legal contra Eros, contra a vida. Nós trabalhamos com este estatuto que é o
estatuto da morte.
Outra interessante colocação de Freud, diz respeito à construção de uma
civilização neurótica. A civilização produzida pelo capitalismo ou a cultura produzida pelos
valores do capitalismo, não é apenas uma civilização neurótica. É muito mais do que isso,
é uma civilização do aniquilamento, da subjugação contra o corpo, contra a vida, contra o
pensamento.
Gostaria de dar um exemplo de como é possível nosso trabalho se o capital tem
uma pulsão para a morte, contra a vida, sendo radicalmente destrutivo. O capital é
destrutivo em relação ao homem e à natureza. Aliás, em nenhum outro momento da
história chegou-se a tamanho desenvolvimento do capitalismo e observamos uma
barbárie cada vez mais intensificada. O número de pessoas alijadas do sistema de

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produção econômica e da vida cresce a cada dia. Os dados do extermínio social e
humano são cada vez mais dolorosos.
Assim, vou dar um exemplo de como essas questões se apresentam na prática
profissional. Ontem, na Quinta Câmara Criminal, houve um julgamento que provocou
grande discussão e percebi que gostaria de falar disso aqui, pois há uma relação entre
este fato e o tema aqui proposto, que é a responsabilidade de cada um ou a
responsabilidade de todos perante o mal-estar atual.
Era uma moça que foi condenada, aliás, está condenada, porque a condenação foi
mantida, por tráfico de entorpecentes. Como ela foi presa? Ela foi fazer uma visita em
uma penitenciária e levou 70 g de maconha. A versão dela é que um traficante a teria
obrigado a levar a droga. Isso não tem importância. Ela levou como? Ela arrumou em um
saco plástico e colocou dentro da vagina. Então aconteceu, a meu ver, uma coisa
estarrecedora. Ela foi revistada. Como é a revista íntima? Tira-se a roupa, ficando-se
absolutamente nua. Não é só isso. Não basta ficar completamente nua. Há todo um
discurso da legalidade ou da legitimidade dessa revista. Quem faz essa revista é uma
mulher. É a agente penitenciária feminina. Diz o regulamento do DESIPE que a revista
das mulheres é feita por agentes femininos e a dos homens por agentes masculinos.
Não basta ficar nua, é preciso abaixar. Tem que abaixar, mas também não basta
abaixar. Além de ficar nua e abaixar é preciso abrir as pernas. Ela tem que ficar nua e
abrir as pernas para ver se sai alguma coisa do ânus ou da vagina e fazer força também.
Isso nada mais é do que uma tortura! Isso é um modo de revista que violenta a
Constituição Federal da forma, ao meu ver, mais visível. A moça se recusou a abrir as
pernas. Ela falava: “Não, eu estou sentindo dores. Não vou abrir as pernas. Não estou
conseguindo”. Eu ia fazer a leitura do processo, mas acabei não tirando a cópia. A leitura
do processo, das declarações da agente penitenciária, porque ela narra isso como se
estivesse fazendo um sanduíche ou embrulhando, com a maior naturalidade: “Mandei tirar
a roupa. Mandei abaixar. Mandei abrir as pernas e a indiciada se recusava abrir as pernas
reiteradamente. Falei que ela tinha que abrir as pernas”. Por fim, como ela dizia que tinha
dores, diz a guarda: “Mandei ela deitar e chamei um médico ginecologista”. Imaginem, o
médico foi chamado para fazer a revista na vagina da mulher, já que a mulher não
conseguia, não queria abrir as pernas. A moça se rendeu, “Não precisa chamar o médico”
e entregou aquele tubinho com as 70 gramas de maconha, sendo presa, denunciada e
condenada a quatro anos de reclusão. A própria defesa não considerou muito ou não
prestou atenção na ilegalidade dessa prisão. A sentença muito menos. No recurso de
ontem eu era o relator e sustentei que ela não poderia ser condenada, porque a prova é

9
ilícita.
A impossibilidade da prova ilícita é uma garantia da Constituição Federal, que diz
assim: “são inadmissíveis no processo as provas obtidas por meios ilícitos”. Que
significa? Isso é mais fácil de compreender, por exemplo, quando há tortura. Quando há
tortura, a pessoa pode confessar tudo, mas isso não é prova, porque foi uma confissão
obtida por meio ilícito. Com a tortura é mais fácil de verificar. Qualquer modo de
investigação que violente uma norma jurídica ou, principalmente, uma norma
constitucional, se constitui como uma prova ilícita. E que significa? Ela é inválida,
inadmissível. São as palavras da Constituição. Eu sustentei isso, dizendo que a prova era
ilícita, então, ela tinha que ser absolvida, mas fui vencido, porque a maioria entendeu que
“não, mas aí tem o negócio de tráfico e ela também não foi violentada, ela não foi
obrigada a fazer a revista”.
Há um discurso no sentido até da negação do próprio direito, já que o direito
garante os princípios fundamentais, à dignidade. O artigo primeiro da Constituição diz:
“dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil: O inciso um, a soberania;
dois, a cidadania; três, a dignidade da pessoa humana.” O que significa isso? Significa
que qualquer atuação do Estado ou dos agentes do Estado, que possa ofender a
dignidade da pessoa humana se constitui como uma ação ilegal. Mais do que ilegal, uma
ação inconstitucional, por que violenta esse princípio básico da Constituição. Mas não é
só isso, além de garantir a dignidade da pessoa humana como um princípio fundamental,
em outro artigo, o artigo 5º, onde há inúmeros incisos estabelecendo os direitos e deveres
individuais e coletivos, garante que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra, a
imagem, etc. A garantia da inviolabilidade da intimidade aparece pela primeira vez em
uma Constituição, a nossa de 88. A nossa intimidade não pode ser violada. Não pode ser
violada nessas revistas, sejam revistas policiais ou como essa à qual a moça foi
submetida.
O direito à intimidade integra o que se chamam os direitos da personalidade e não
há intimidade maior do que a intimidade do corpo, principalmente, a intimidade dos órgãos
genitais. Não se pode investigar os órgãos genitais. Isso é inadmissível pela própria
Constituição. Diz também a Constituição: “Ninguém será submetido a tortura, nem a
tratamento desumano ou degradante.” O próprio regulamento do DESIPE de 1986, ao
estabelecer a revista, diz que a revista íntima não poderá ter caráter vexatório. Essa
revista, tal como é feita, tem um caráter muito mais do que vexatório, é absolutamente
degradante. Ela violenta a dignidade humana. Ela violenta a garantia da inviolabilidade da
intimidade e ela é feita com absoluta naturalidade.

0
A naturalidade das agentes que fazem a revista. A naturalidade do Ministério
Público que denuncia sem se dar conta que essa revista era absolutamente
inconstitucional. A naturalidade do juiz que condena e do tribunal que também mantém
aquela condenação com todo um discurso: “ah não, mas é questão de tráfico”.
Embora haja toda uma teorização na doutrina do processo penal de que os fins não
justificam os meios, pois o processo é alguma coisa que foi produzida para garantir a
dignidade do acusado e, não, para buscar a verdade a qualquer preço, na prática se
tornam irrelevantes ou desconsiderados todos estes princípios constitucionais e legais.
Que significa dizer isso? A lei, essa lei do estatuto legal de que fala Freud, na sociedade
capitalista serve, fundamentalmente, para a exclusão, e ainda quando ela venha garantir
os direitos, aí se faz todo um modo de interpretação para negar esse próprio direito.
Concluindo, acho que essa é uma questão que nos mobiliza em nosso trabalho, o
mal-estar. O nosso trabalho de que falava Damiana e me produziu um mal-estar. Eu acho
esse projeto – PROUD – uma coisa absurda, baseado em uma idéia americana
horrorosa. Enfim, depois se houver tempo pode-se até comentar.
Como é esse trabalho? Eu acho que o trabalho do psicólogo, do promotor, do juiz,
de quem trabalha institucionalmente com esta lei, com esta lei destrutiva, embora seja
realizado num espaço institucional, acho que pode ser um trabalho contra essa ordem
institucional. Um trabalho, como diz Freud, a favor de Eros e não a favor da morte. Eu
acho que é possível, mesmo dentro do espaço institucional, a realização deste trabalho a
favor da vida, a favor de Eros e não a favor da morte.

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Uma Responsabilidade Paradoxal
Romildo do Rêgo Barros

Gostaria inicialmente de agradecer o convite que me foi feito. Para mim é um


privilégio estar aqui, num ambiente diferente daqueles onde costumo falar.
Esta mesa se chama ´A responsabilidade de cada um frente ao mal estar atual`.
Quando li esse título, foi o adjetivo “atual”, qualificativo dado ao mal-estar, que me
chamou primeiramente a atenção. Mal-estar atual. Isso quer dizer que o mal-estar está
sujeito a variações. Por exemplo, à passagem do tempo. O mal-estar de antes não é o
mesmo de hoje, nem será o de amanhã. Ele pode se desgastar, pode sofrer as influências
da época, se adaptar às novas formações econômicas, culturais, sociais, etc. Podemos
nos perguntar se existe um mal-estar ocidental, outro oriental, outro brasileiro, por que
não carioca... ou pensar em mal-estares diferentes para os diversos segmentos da
sociedade; para as classes, por exemplo. Então, o mal-estar parece ser relativo e, sendo
relativo, ele é alguma coisa a ser remediada. Muda-se o adjetivo. Esse é um dos aspectos
do mal-estar que podemos chamar de mal-estar contingente, é o mal-estar que pode ser
tratado.
Sendo assim, gostaria de trazer para vocês uma idéia que não é de hoje, ela é de
1930, de um texto escrito por Freud, que certamente muita gente aqui conhece e que se
chama O Mal-estar na Cultura ou o Mal-estar na Civilização. O que Freud diz nesse texto
é que existe um mal-estar que é permanente, invariante e, mais do que isso, um mal-estar
que está na base da civilização. Não somente não haveria cultura ou civilização sem mal-
estar, mas também o mal-estar é a condição da existência da cultura e da civilização. Não
é o mesmo mal-estar do qual comecei falando e que chamei de contingente. Freud dizia
que esse mal-estar vem do fato de que para se viver na cultura ou na civilização se tem
que abrir mão de alguma coisa, se tem que fazer menos do que aquilo a que se seria
tentado inicialmente. Tem-se que abrir mão de um certo usufruto, de um certo gozo,
simplesmente pelo fato de que esse usufruto e esse gozo vão no sentido contrário às
exigências dos laços sociais. É disso que se está falando aqui, fundamentalmente. E isso,
naturalmente, gera sofrimento.
Existe sempre em cada contato que se faz, em cada ato civilizado, um a-menos
que é a marca dessa necessária renúncia. Isso não se passa “em nossa cabeça”. Não é
uma escolha consciente, como se alguém dissesse: vou renunciar a isso. O sujeito só
entra nos laços sociais porque renunciou a alguma coisa.
Podemos pensar que isso não se dá somente nas grandes linhas: pertencer ou não

2
à cultura, pertencer ou não à civilização. Isso ocorre a cada pequeno ato civilizado, por
exemplo, fazer um contrato, firmar um pacto qualquer, julgar, aceitar uma parceria, ou até
coisa muito mais simples: comprar ou vender uma mercadoria. Cada gesto, cada ato que
se dá no interior da civilização, terá como pano de fundo o mal-estar. Esta é umas razões
que levaram Jacques Lacan a dizer que foi Marx quem inventou o sintoma, porque Marx
foi o primeiro que teve a intuição de que cada coisa que acontece no mundo tem alguma
outra coisa por trás, que é a base daquilo que está ocorrendo, mas que é, até certo ponto,
inconfessado ou inconfessável.
O que é que Freud trouxe ao mundo, o que é que a Psicanálise pretendeu trazer
ao mundo? Uma ocasião para o sujeito curiosamente se responsabilizar por alguma coisa
que não foi ele que inventou. É neste sentido, me parece, que a Psicanálise, não só a
Psicanálise, mas a Psicanálise também, é fruto de nossa época. Em que sentido? É que,
mais do que nunca, na nossa época - é isso que nós estamos ouvindo hoje aqui nesse
encontro-, falamos e sofremos os efeitos do que se poderia chamar as determinações do
sujeito. O que está acontecendo? Uma reunião como esta é completamente diferente
daquela que poderia ser realizada há algumas décadas. Há 70 ou 80 anos, talvez
tivéssemos a inocência de pensar que os problemas dos quais cuidamos são coisas para
serem corrigidas. Hoje falamos de correções, aqui, mas num âmbito mais geral, fala-se de
um mundo em transformação. Este é o fundo do mal-estar ao qual Damiana se referia,
que é o mal-estar próprio dos ‘psi`. Por exemplo, a expressão que ela usou –tratamento
compulsório dado pelos psicólogos–, é uma contradição em termos. Se é tratamento ‘psi`,
não é compulsório. E no entanto, não há o que estranhar. Vivemos uma época em que,
de fato, se impõem tratamentos “psi” compulsórios. Eles dizem respeito a um mal-estar
que é muito característico dos profissionais ‘psi´.
O que Freud acrescenta ainda é que, curiosamente, todo esse mal-estar somente
pode ser tratado no âmbito da civilização, o que torna a civilização um conceito, uma
noção paradoxal, porque ela é ao mesmo tempo a doença e o remédio. Quando se
encontram a doença e o remédio, se engendra o mal-estar. Achei interessante o
comentário de Damiana sobre esse mal-estar dos ‘psi´. O mal-estar pode se transformar
segundo as épocas, mas se mantém um fundo de renúncia necessária em qualquer tipo
de pacto que envolva um laço social qualquer. Isso não é teoria pura, isso é constatação.
No âmbito de meu trabalho, na psicanálise, isso tem nome. Isso se chama decadência da
função paterna. A própria psicanálise é, em um certo sentido, um efeito da decadência da
função paterna.
Existe um fundo aí, na desagregação, por exemplo, da família, que vai ser tratada

3
aqui, que vai se transformar em outra coisa diferente, digamos, o resgate do velho pai vai
se tornando impossível. Isto quer dizer o quê? Existe um texto muito interessante de
Hanna Arendt onde ela discute a questão contemporânea da autoridade, de uma espécie
de migração que sofreu a autoridade do âmbito da família, que ela chama de espaço pré-
político, para o âmbito do Estado, espaço propriamente político. Um bom exemplo disto é
estarmos reunidos aqui discutindo sobre como tratar as crianças.
Pode-se pensar que houve um tempo em que o cuidado com as crianças seria uma
prerrogativa da família. Hoje, pouco a pouco, passa a ser uma função do Estado, uma
função dos poderes públicos, das reuniões das empresas, Ongs etc. Isso é um sinal dos
tempos, não é necessariamente ou simplesmente uma disfunção ou disfuncionamento.
Pode ser corrigido até um certo ponto, sabendo-se que a correção se dá num movimento
mais vasto, que é de transformação da própria família.
Qual era a função do pai antes dessa decadência, que não começou hoje, mas de
um século para cá? O pai sabia definir, como também o padre, o Estado, o confessor etc.,
definir bem o que era de dentro e o que era de fora. Esse é o fundo da questão de que
Hanna Arendt trata. O pai sabia dizer: daqui para dentro é a minha casa, daqui para fora é
o mundo. Foi essa a fronteira que foi se dissolvendo pouco a pouco, em paralelo com a
dissolução da própria autoridade. Isso é extremamente importante na nossa época porque
há qualquer coisa aí que não pede simplesmente a correção.
Eu estava ouvindo o Dr. Romero falando e me vinha a idéia de quanto o poder
público está sendo chamado a funcionar no espaço que era antes reservado às famílias.
Não é só uma questão da autoridade concreta do pai, é uma questão de operador, de
quem vai dizer o que é interior e o que é exterior, quem vai dizer o que é privado e o que
é público. Sabemos que o poder repressivo não é suficiente para determinar isso, porque
dura pouco. Ele pode dizer: aqui é o privado, aqui é o público e, quando o guarda, como
representante visível da repressão, vai embora, dissolve-se novamente a fronteira.
Vivemos numa época, e eu sou profissional de uma prática que é fruto dessa
época, em que essas transformações ainda não disseram para onde vão. Na verdade,
nos encontramos, do ponto de vista da família, das relações privadas, no momento ainda
da dissolução. Toda a questão de quem trabalha com drogas, com a dissolução nas
famílias, com a crise de autoridade, é de saber como articular aquilo que é corrigível, e
que pede a chegada de algum agente público, e aquilo que, num âmbito mais geral,
pertence à transformação. Este é o nosso desafio. Se a fronteira entre o privado e o
público, entre o dentro e o fora se dissolve ou se transforma, isso impõe uma exigência
muito concreta para cada um de nós.

4
Para atender ao título da mesa: vamos ser obrigados a nos responsabilizar por
determinações que nos escapam, o que quer dizer que a posição da queixa vai ser
insuficiente. Na própria clínica psicanalítica isso é uma evidência. Na verdade, a clínica só
funciona para valer quando o sujeito ultrapassa a dimensão da queixa. A queixa significa:
existe alguém que pode responder, que pode ser responsável por alguma coisa que está
me faltando, que está funcionando mal .
O que pensar de um mundo que exige que eu me responsabilize por alguma coisa
que me escapa? Eu só vou funcionar se me responsabilizar por determinações que não
fui eu que escolhi. Freud deu um nome a essa determinação: ele a chamou de
inconsciente. O inconsciente é isso, é alguma coisa que é exterior e, no entanto, pede que
o sujeito se responsabilize por ele. Por exemplo, um sonho. Quem pode ser responsável
por um sonho? E, no entanto, se o sujeito não responde pelo seu sonho, não vai poder
fazer nada dele. Neste sentido, a Psicanálise traz para discussão que envolve, outros
saberes, a possibilidade de se acatar o que poderíamos chamar de exterioridade do
próprio sujeito. Como podemos pensar esse paradoxo de um sujeito que é exterior a ele
mesmo?
Na nossa época isso se tornou possível. Uma época que combina uma série de
fatores, como crise na religião, na família, modificações na ciência, experiências
totalitárias inspiradas, de uma forma ou de outra, pelo discurso da ciência, etc. Só nesta
época é que podemos pensar que um sujeito pode ser alguma coisa diferente de uma
esfera, que tem uma face externa e uma interna perfeitamente separadas. Parece que o
mal-estar, o mal estar diferente que cada um de nós experimenta na sua atividade, tem
essa explicação geral: a necessidade, que atualmente é mais imperiosa do que nunca, de
que o sujeito seja responsável, precisamente, por aquilo que escapa a ele. E não possa
dizer simplesmente: eu sou responsável só por aquilo que pensei.
Muito obrigado

5
Justiça Terapêutica: revisitando lugares – uma análise do Programa Especial
para Usuários de Drogas
Damiana de Oliveira

Aproveitando o tema deste evento que nos propõe a refletir sobre a


responsabilidade de cada um frente ao mal estar atual, lanço aqui algumas
considerações e questionamentos sobre a atuação do Serviço de Psicologia da 2ª
Vara da Infância e da Juventude da Capital no Programa Especial para Usuários de
Drogas, recém-implantado no âmbito do Poder Judiciário Estadual.
O Programa Especial para usuários de Drogas (PROUD) se baseia no modelo
norte americano dos Tribunais para Dependentes Químicos (Cortes de Drogas). Essas
Cortes de Drogas americanas têm suas atuações pautadas na possibilidade de
oferecimento de um tratamento para os usuários de drogas ou dependentes químicos
em substituição a um processo penal.
O PROUD foi inaugurado em 18/06/01 com base no Provimento nº 20/2001 da
Corregedoria Geral de Justiça, o qual autoriza os Juízes das 1ª e 2ª Varas da Infância
e da Juventude da Capital, da Vara da Infância e Juventude de Niterói e da 2ª Vara de
Família de São João de Meriti a implementarem em caráter experimental Programas
Especiais para Dependentes Químicos.
Esse Programa conta com uma equipe interdisciplinar composta por três
Psicólogos, sendo dois pertencentes ao quadro do Degase e que se encontram
cedidos ao MP da 2ª VIJ, dois Comissários de Justiça, uma Assistente Social e um
Médico. Essa equipe é encarregada de fazer a avaliação psicossocial dos
adolescentes apreendidos com drogas, identificando se os mesmos são elegíveis ou
não para o Programa, bem como é responsável também pelo acompanhamento
desses adolescentes.
Mas afinal, o que vem a ser o PROUD, a quem se destina e como se dá a
inserção do Serviço de Psicologia nesse Programa?
A idéia central do PROUD é de que os adolescentes que forem apreendidos por
estarem portando drogas para uso próprio, que sejam primários ou reincidentes
especificamente no art. 16 da Lei 6368/76, em vez de serem processados e
receberem uma medida sócio-educativa e/ou protetiva dentre as previstas no ECA,
teriam seus processos suspensos, com a condição de aceitarem ser incluídos no
Programa. De acordo com a Ordem de Serviço do Juízo da 2ª VIJ que instituiu o
PROUD, é necessário que sejam preenchidos alguns critérios para que os

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adolescentes sejam inseridos no Programa. Assim sendo, são elegíveis também para
o Programa os adolescentes que praticarem atos infracionais sem violência ou grave
ameaça à pessoa, em que se possa estabelecer uma relação desses atos com o
consumo de drogas, e que ao mesmo tempo sejam usuários de drogas ilícitas a ponto
de necessitarem de tratamento especializado para sua recuperação.
A inclusão no Programa, que deve ser voluntária, estando o adolescente
devidamente assistido por seus representantes legais e seu Advogado ou Defensor
Público, implica, entre outras coisas, concordar em ser submetido a testagens de urina
periódicas e aleatórias, a fim de verificar se o mesmo continua a fazer uso de drogas,
pois os alicerces em que o PROUD se fundamenta prega a abstinência total de drogas
ilícitas e de bebidas alcoólicas. É nesse ponto que talvez enquanto profissionais “psi”
começamos a ser atravessados em nossas práxis por um primeiro mal-estar, pois a
idéia de um tratamento compulsório em que o adolescente será submetido a testagens
de urina aleatórias e obrigatórias nos fala de um outro lugar, de uma outra ordem que
está se delineando para os jovens e sua intrincada relação com as drogas,
evidenciando a primazia de certas formas dominantes de subjetivação.
Antes do PROUD ser inaugurado, os adolescentes que eram apreendidos por
serem usuários de substâncias entorpecentes recebiam a medida protetiva de
tratamento antidrogas (TAD) a ser cumprida no Serviço de Psicologia. Com o advento
do PROUD, nós passamos a ter na 2ª VIJ modalidades de tratamentos diferentes para
adolescentes apreendidos com drogas, uma vez que alguns são encaminhados para o
PROUD e outros para cumprirem TAD no Serviço de Psicologia.
Cabe salientar que no atendimento a esses jovens, pelo Núcleo de Psicologia, o
enfoque primordial sempre foi o sujeito com suas múltiplas possibilidades de atuação
no mundo. A droga, a quem cabe a função na maioria das vezes de catalisadora de
conflitos já existentes, sendo apenas sintoma de algo muito mais complexo,
analisando-se gestalticamente, acabava ocupando apenas o lugar de fundo para as
diversas questões existenciais que se apresentavam. No PROUD, ao contrário, a
droga é sempre figura. Daí a necessidade dos testes de urina, a necessidade das
sanções para aqueles que descumprirem as normas do Programa, pois enquanto
figura, todo o enfoque, toda a atuação em cima do jovem dar-se-á em função de uma
questão chave: o adolescente continua ou não a fazer uso de drogas ilícitas? A
resposta a essa pergunta virá através de um teste, simples, rápido e que não deixará
margens a dúvidas. Afinal, o teste não mente jamais. Do resultado desse teste
dependerá toda uma estratégia de ação coordenada que será traçada, visando cada

7
vez mais fazer com que o adolescente se aproxime do objetivo primordial do Programa
que é a abstinência total de substâncias entorpecentes.
Enquanto psicólogos e acostumados a lidar com a verdade subjetiva dos
sujeitos, causa-nos uma certa estranheza e mal-estar esse lugar que estamos sendo
chamados a ocupar. Nós que incorporamos em nossa prática a política da redução de
danos, que privilegiamos o sujeito e suas mínimas conquistas, ainda que ele esteja
longe de levar uma vida totalmente sem drogas, e que acreditamos no potencial
criador e na capacidade de transformação de nossos jovens nos perguntamos com um
certo desconforto: Que subjetividades estarão sendo engendradas nessa nova
configuração que a droga passou a ocupar dentro de um Programa como o PROUD?
Como pensar o sujeito e sua inserção no mundo, com todas as implicações advindas
daí, quando o fato do mesmo ter usado ou não droga passa a ser o centro da
intervenção psicoterápica? Refletir sobre isso é fundamental para que enquanto
psicólogos possamos buscar formas de atuação nesse Programa que amenize o mal-
estar vivenciado e nos permita se inserir nesse contexto, trazendo para dentro da
equipe interdisciplinar algumas discussões que possibilitem não perdermos de vista o
sujeito com suas múltiplas verdades.
Moreno, ao lançar as bases para a criação do Psicodrama, elaborou o conceito
de realidade suplementar para nos falar do quantum de embelezamento que cada um
pode acrescentar à vida para fazê-la melhor e mais aceitável. Esse processo, longe de
fazer com que as pessoas percam o contato com a realidade, acaba auxiliando-as a
mudar sua perspectiva da realidade. A verdade psicodramática contrapõe-se, assim, à
verdade histórica e envolve o adequado uso da imaginação, espontaneidade e
criatividade. Assim sendo, fica uma questão: É possível trabalhar com essa verdade
subjetiva e suas implicações para o sujeito, sendo a mesma atravessada pelo trinômio
teste-incentivo-sanção?
É claro que o PROUD não se apresenta como sendo apenas um Programa coercitivo
e controlador que visa adestrar os corpos de nossos jovens para uma vida livre das
drogas e de seus efeitos. A esse respeito, diz-nos Foucault:

“Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo,
uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus
comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o
esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma «anatomia política», que é
também igualmente uma «mecânica do poder», está nascendo; ela define

8
como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente
para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com
as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina”.64 (grifos meus)

É importante salientar que acoplada ao produto vem também toda uma idéia de
promoção social, com a qual se pretende cooptar aliados para essa nova forma de
intervenção. Dessa maneira, o PROUD se propõe assistir o adolescente em suas
diversas necessidades. Para tanto, será designado para acompanhar cada jovem um
membro da equipe técnica que, além de supervisionar o atendimento do mesmo nas
unidades de tratamento, ficará também encarregado de fazer visitas à residência do
adolescente, à escola, ao local de trabalho, ao curso profissionalizante e à
comunidade. O PROUD se propõe também a trabalhar para a criação de uma rede de
parcerias, visando oferecer treinamentos profissionalizantes, educação regular e ajuda
para inserção no mercado de trabalho para os adolescentes que assim necessitarem.
Após a avaliação pela equipe de psicólogos, médicos e assistentes sociais do
Juizado, verificado que o adolescente preenche os critérios para ser inserido no
Programa e concordando ele e seu responsável com a proposta do PROUD, o jovem
irá para uma primeira audiência com o Juiz, onde será informado sobre o Programa e
as normas a serem cumpridas. Nesse momento, o adolescente também será
encaminhado para uma unidade de tratamento para usuário de drogas, bem como
será designado um membro da equipe técnica para acompanhar o seu caso.
Cabe ressaltar que o PROUD prevê ainda uma série de sanções para aqueles
que falhem injustificadamente no cumprimento de suas normas, bem como incentivos
para aqueles que cooperem adequadamente com o Programa. Estão previstas, dentre
outras, as seguintes sanções: advertência verbal, retirada de privilégios, tais como
recebimento de cesta básica, lazer, etc., aumento na freqüência de sessões de
tratamento individual ou familiar, maior freqüência na realização de testes de drogas,
internação temporária e em último caso a exclusão do Programa e retomada do
processo inicial.
Chama-nos a atenção o fato do adolescente receber como punição a
obrigatoriedade de comparecer a mais vezes ao atendimento psicoterápico. Nesse
momento, ondas de mal-estar começam a invadir-nos novamente e a cada
desconforto causado, fica-nos a clareza de que é preciso transcender o imobilismo
que esse mal-estar, por vezes provoca, e focarmos nossas lentes em nossos jovens,

64 Foucault, Michel – Vigiar e Punir, p. 127.

9
para que possamos refletir sobre as nossas implicações e responsabilidades, de modo
a não nos deixarmos paralisar por essa idéia de Psicologia como punição. Que lugar é
esse afinal? Como um psicólogo da unidade de tratamento irá estabelecer um vínculo
com o adolescente, tão importante em nosso trabalho, em que pese a necessidade de
uma relação de confiança, quando a Psicoterapia é vista como punição? É preciso
revisitar alguns lugares! É preciso abandonar certos lugares! É preciso saber-nos!
Cumpre-nos dizer que embora as drogas hoje estejam sendo apresentadas a
nós como um grande problema em nossa sociedade, e que cada vez mais cedo os
jovens têm estabelecido contato com elas, alguns questionamentos sobre o Programa
se fazem necessários. Em nosso trabalho numa Vara de adolescentes infratores
freqüentemente temos que lidar com a angústia de pais que demandam de nós,
enquanto psicólogos da Justiça, uma intervenção que possibilite a seus filhos largar
por completo o uso de drogas. Esses pais, sentindo-se impotentes para lidar com as
questões típicas da adolescência, acabam transferindo para a problemática das
drogas todas as dificuldades vivenciadas no processo educacional dos jovens. Presos
no limiar entre uma postura de liberdade total e de imposição de limites acabam
apelando apenas para o lado legal na tentativa de mudar a cabeça de seus filhos em
relação às drogas.
O PROUD, nesse sentido, acaba vindo ao encontro dos anseios desses pais
que, ávidos por uma resposta que amenize o sentimento de impotência, acabam
depositando no Programa todas as suas esperanças.
É preciso salientar, entretanto, que qualquer abordagem que se proponha a
trabalhar a questão das drogas que não dimensione o prazer, que inegavelmente
estas proporcionam, que supervalorize os efeitos negativos das mesmas e cuja
intervenção não leve em conta os diferentes níveis de uso: experimentador ocasional,
habitual e dependente, estará fadada ao fracasso.
Mais eis que logo o PROUD se depara com tentativas de burlar a norma, com
tentativas de atacá-lo naquilo que lhe é mais precioso: o teste. Nossos jovens não
tardam a perceber que os testes podem ser fraudados. Nesse sentido, iniciativas como
trazer urina de casa de outra pessoa, acrescentar alguma substância química à urina,
de modo a mascarar a presença do THC (princípio ativo da maconha), diluir a urina
com água até o ponto de não ser mais possível identificar a presença do THC
começam a ser vistas pelos nossos adolescentes como formas possíveis de escapar à
captura. Na busca por ver quem é o mais esperto, O PROUD começa a delinear
estratégias visando impedir a fraude, e o que era antes apenas desconfiança, ao

0
ganhar corpo e indícios de veracidade, aponta para a necessidade de se aumentar a
vigilância, de se apertar o cerco para que os corpos não fujam ao controle.
Na contramão disso tudo, nossos jovens seguem recriando, reinventando outros
espaços e campos de atuação, de modo a empreender formas de resistência que lhes
possibilitem encontrar linhas de fuga propiciadoras de singularização.
É como se nesse momento eles pudessem gritar e a exemplo da poetisa
dissessem:

“Agora tragam-me ferros em brasa e marquem meu corpo que eu estou forte.
Estabeleçam leis e eu as transgredirei – todas – e determinem padrões que eu
os romperei. Cortem minha cabeça. Eu sobreviverei apenas com o coração.”
(Glória Horta)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da violência nas Prisões. Trad. Raquel
Ramalhete. 14ª ed. Petrópolis, Vozes, 1996. 277 p.
MARINEAU, René F. Jacob Levy Moreno, 1889-1974: Pai do Psicodrama, da Sociometria
e da Psicoterapia de grupo. Trad. José de Souza Mello Werneck. São Paulo, Ágora, 1992.
200 p.
TIBA, Içami. Saiba mais sobre maconha e jovens: Um guia para leigos e interessados no
assunto. 4ª ed. São Paulo, Ágora, 1998. 158 p.
___________. Disciplina: O limite na medida certa. 36ª ed. São Paulo, Gente, 1996. 197
p.

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UM POUCO DE HISTÓRIA...

Este capítulo destina-se ao registro das iniciativas que propiciaram aos psicólogos um
lugar no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro anterior a criação do cargo. O nosso
objetivo é que a cada edição um convidado possa contar à sua maneira um pouco do
percurso dessa função.

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Das nossas histórias...
Maria de Fátima da Silva Teixeira65

Ao ser convidada a falar um pouco da historia da Psicologia no Poder Judiciário-


RJ, foi-me solicitado enfocar este relato numa ótica institucional, isto é, que movimentos
aconteciam na instituição judiciária no período que antecedeu à criação do cargo de
Psicólogo em 1997.
Precisamos retornar um pouco no tempo e recordar como era este quadro para
entendermos as transformações posteriores, ocorridas a partir do inicio da década de 90:
A inserção de psicólogos no PJ/RJ se dava ou pela via clássica dos peritos,
principalmente nas Varas de Família, ou por contratos não muito definidos sendo comum
então a prática de se desviar psicólogos funcionários das prefeituras para atuarem no PJ,
principalmente nas Varas de Família e Menores (nome este anterior à promulgação do
Estatuto), por voluntarismo ou ainda por uso do espaço judiciário como campo de
pesquisa.
Neste contexto de uma inserção um tanto difusa, entra em vigor o ECA que reforça
o que outros instrumentos legais já haviam sinalizado, (o próprio Código de Menores e a
Lei de Execuções Penais), que é a necessidade de uma equipe interdisciplinar (artigo
151) na esfera do Judiciário. As Varas de Infância e Juventude, particularmente, já
contavam em seus quadros com as categorias dos Comissários de Infância e Juventude e
das Assistentes Sociais. A figura do Psicólogo é quase que “naturalmente” enquadrada
como aquele que faltava para a composição desta equipe interdisciplinar.
Como já relatado em artigo anterior na publicação do 1º Encontro de Psicólogos do
Judiciário, o juiz da 2ª VIJ, sensível a esta demanda, cria o Núcleo de Psicologia.
Estabelece-se aqui um meio caminho entre a legitimação e a legalização da figura do
psicólogo, o que inicia uma nova relação destes com o PJ estadual, pois ainda que sem o
cargo criado no sentido legal, as funcionárias que passaram a compor o Núcleo de
Psicologia à época tiveram suas nomeações, leia-se “desvio de função”, publicadas em
DO. A equipe, longe de se manter oculta nesse espaço, tem como um dos seus primeiros
movimentos consultar, enquanto órgão normativo do exercício da profissão, o Conselho
Regional de Psicologia. Esta consulta se dá não só no sentido de avaliar este tipo de
vínculo como também dá início a trocas para a atuação da equipe.
Podemos arriscar dizer que isto lançava, com algum incômodo, à esfera
administrativa o questionamento sobre a necessidade do cargo. Iniciava-se um pensar

65 Psicóloga, Comissária de Justiça da Infância e Juventude na 1ª Vara da Infância e Juventude da Comarca da Capital

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sobre esta inserção, não podendo mais ser uma decisão isolada desse ou daquele juiz.
Havia sim a necessidade de se legitimar tal lugar: de oficializar, de organizar uma prática
que ocorria inclusive sem o controle das esferas responsáveis pela prestação do serviço
judiciário.
Podemos acreditar que a criação do cargo seria inevitável, porém não podemos
deixar de registrar que a atuação das psicólogas foi fundamental neste processo, não só
para acelerá-lo como também para dar lhe dar uma dinâmica cuidadosa. Alguns pontos
merecem ser destacados neste cuidar do lugar do psicólogo na esfera judiciária.
O Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário - SINDJUSTIÇA é chamado a
partilhar reflexões e possíveis ações para a criação do cargo; referenda-se assim a
instituição sindical como parceira na busca da qualidade do atendimento prestado à
clientela. Desta parceria foi possível promover entre outras atividades, um levantamento
sobre o quadro de psicólogos que atuavam nas diversas comarcas do PJ e que
possibilitou trocas positivas para traçar um perfil da atuação.
Outra aliança fundamental foi a estabelecida com as instituições acadêmicas,
particularmente a UERJ: realizações como o Seminário Psicologia e instituições de
Direito – a Prática em Questão (1994) e o estabelecimento de um convênio entre o
Juizado e o Curso de Especialização em Psicologia Jurídica da UERJ; com a PUC
quando da participação de duas psicólogas no Curso de Especialização em Atendimento
a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência Doméstica e com a Universidade Santa
Úrsula desenvolvendo a pesquisa O Jovem em Conflito com a Lei foram alguns marcos
destas parcerias.
Também a articulação com as instituições de atendimento da rede externa aliada à
busca por uma capacitação adequada eram preocupações constantes da equipe e por
isso mesmo foram inúmeras as vezes em que se solicitou ao juiz e aos órgãos
competentes da esfera administrativa autorização e apoio financeiro para a participação
em Congressos, seminários, cursos e supervisões.
Destaque-se aqui que esta participação estendeu-se até mesmo ao exterior
quando da ida de psicólogas representando a 2ª Vara da Infância e da Juventude no
Congresso de Psicologia Jurídica da Argentina realizado pela APFRA – Associação de
Psicologia Forense da República Argentina e em outro momento, quando de um convênio
com a APSYS –França cinco psicólogas do Núcleo participaram de um curso no Instituto
Vaucresson objetivando conhecer o sistema protetivo francês.
Uma das conseqüências imediatas a essa movimentação foi o aumento do trabalho
e já era comum as solicitações de intervenções em processos oriundos tanto de Varas de

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Família quanto de Varas Criminais, em especial para casos de violência doméstica.
Assim, a visibilidade positiva alcançada pelo trabalho desenvolvido não podia mais
ser ignorada pelo TJ. Além disso, a Psicologia Jurídica enquanto especialização
alcançava status de uma área de trabalho promissora. O Poder Judiciário em vários
Estados já havia criado o cargo, além de outras instituições ligadas ao cumprimento de
medidas ou penas, tais como DEGASE e DESIPE.
É neste cenário que entidades representativas da categoria dos psicólogos - o
Conselho Regional de Psicologia que já vinha acompanhando e contribuindo neste
percurso e o sindicato dos Psicólogos, recém articulado - vislumbram possibilidades de
intercederem com mais força junto à esfera administrativa do PJ na reivindicação da
criação do cargo.
Este é apenas um recorte e um olhar desta história. Possivelmente muito faltou
falar, muito faltou nomear e mais ainda, muito faltou pensar... Mas como história que é,
permanece viva cada vez que é falada. E felizmente esta é uma história com muitos
personagens e que certamente poderão contribuir para que ela se torne cada vez mais
propiciadora de novos pensares.

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