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A cidade
metástasis e
o urbanismo
inflacionário:
incursões
na entropia
paulista
NICOLAU SEVCENKO
é professor de História da
Cultura do Departamento de
História da FFLCH-USP.
Q
“Eu durmo e vivo ao sol como cigano,
Fumando meu cigarro vaporoso;
Nas noites de verão namoro estrelas
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso!
Morro da
Forca e Santa
Cruz dos
Enforcados em
1874. Desenho
de Pedro
Alexandrino
Borges
(1864-1942)
Cristina Carletti
ao alto da Glória era o alemão dr. Karl
Joseph Fredrich Rath, médico, naturalista,
cartógrafo, escritor e pintor, que ao morrer
legou sua rica coleção de história natural,
de arte e de mapas da cidade para se tornar
uma das bases do acervo do futuro Museu Igreja de Nossa
do Ipiranga. A extensão da mesma via
mudava de nome para Beco do Rath (hoje
Senhora da
Rua Américo de Campos) ao adentrar em Paz, erguida
sua propriedade. A futura Rua São Paulo se entre 1940 e
tornou assim uma via que conectava o con-
texto afro-brasileiro do alto da Glória com 1943 na Rua
o contexto indígena-brasileiro do Taba- do Glicério. Ao
tingüera, através de um eixo anglo-germâ-
lado, modelo do
nico. Com o posterior arrasamento do
Morro do Tabatingüera para a criação do
Cristina Carletti
projeto original
aterro do Glicério, a Glória se conectou com talou, no ano seguinte, seu hospital e, a e, em cima, o
o Bexiga, abrindo um novo flanco italiano pedido das autoridades, uma Roda dos
de convívio, marcado pela pequena e Enjeitados, para aliviar crescentes tensões
prédio
elegantíssima Igreja de Nossa Senhora da socioconjugais dentre as elites. Para fazer efetivamente
Paz. Depois vieram os migrantes de Minas, as vezes de amas-de-leite dos órfãos da
construído
do Norte e Nordeste, os japoneses, os co- instituição, as irmãs apelaram para as ín-
reanos, os chineses, os bolivianos, os dias do aldeamento de Santo Amaro. Como
nigerianos… outros indígenas foram incorporados para
atividades diversas, houve um como que
• • • segundo repovoamento indígena dos bai-
xos da Glória. A propósito, o local bem que
O casarão dos ingleses tem também uma comportaria um monumento à mãe-índia,
história interessantíssima. Com a morte do semelhante àquele dedicado à mãe-negra
coronel John Rademaker ele foi vendido no Largo do Paissandu. Um personagem
no início de 1820 para o coronel João de afinal, menos conhecido, mas não menos
Castro Canto e Melo, cuja filha, Domitila, relevante das histórias paulista e brasileira.
futura Marquesa de Santos, se tornaria Em 1840 a Santa Casa de Misericórdia
amante do primeiro imperador. Foi portan- teve que mudar para um prédio maior na
to para visitá-la na Glória que D. Pedro su- Rua da Glória, esquina com a Rua dos Es-
biu a Serra do Mar em direção a São Paulo, tudantes, e o casarão se tornou uma turbu-
emancipando de passagem o país do esta- lenta república de estudantes, onde, entre
tuto colonial, no célebre episódio do Ipi- muita esbórnia e bandalheira, brilhou a mais
ranga. A situação marginal da Glória tam- fina flor da juventude romântica da cidade,
bém servia para essas indiscrições. E para encabeçada por Bernardo Guimarães e
outras. Em 1824 o casarão foi vendido para Álvares de Azevedo. Alguns de seus textos
a Santa Casa de Misericórdia, que ali ins- clássicos foram escritos ali mesmo. No seu
Aurélio Becherini
ção cumulativa pela concentração de rique-
zas, nos nichos de segregação social e
assepsia ambiental.
O surto de prosperidade, coincidindo
com uma reconfiguração do mercado de
mão-de-obra em escala mundial, atraiu para
a região paulista gentes dos diversos can-
tos do mundo, particularmente do sul e
centro da Europa, do Oriente Médio e do
Extremo Oriente, em sucessivas ondas
migratórias. Destinados em especial para
as lavouras, com o progressivo declínio dos
preços do café nas três primeiras décadas
do século XX, esses grupos foram buscan-
Fotógrafo desconhecido
1890
1900
1920
1940
1950
QUADRO 2
EVOLUÇÃO DA POPULAÇÃO NA CIDADE DE SÃO PAULO E REGIÃO METROPOLITANA ENTRE 1872 E 1996
Ano São Paulo Taxa de Outros Taxa de Região Taxa de
crescimento municípios crescimento Metropolitana crescimento
anual (%) da RM anual (%) Total anual (%)
1872 31.385
1890 64.934 4,12
1900 239.820 13,96
1920 579.033 4,51
1940 1.326.261 4,23 241.784 1.568.045
1950 2.198.096 5,18 464.690 6,75 2.662.786 5,44
1960 3.781.446 5,58 957.960 7,50 4.739.406 5,93
1970 5.924.615 4,59 2.215.115 8,74 8.139.730 5,56
1980 8.493.217 3,67 4.095.508 6,34 12.588.725 4,46
1991 9.646.185 1,16 5.798.756 3,21 15.444.941 1,88
1996 9.839.436 0,40 6.743.798 3,07 16.583.234 1,43
Fonte: Para 1872-1991, IBGE, Censo Brasileiro; para 1996, IBGE, Contagem 1996.
Obs.: A Região Metropolitana de São Paulo é formada pelo município (cidade) de São Paulo e outros 38 municípios adjacentes (OM).
Rua ria o Projeto Avenidas como o novo mode- dios de apartamentos ou, a partir dos anos
lo para a expansão da cidade, mudando 70, nos chamados condomínios fechados.
Pirapitingui.
radicalmente a lógica do desenvolvimento De certa forma, o processo tumultuoso de
O sobrado, de urbano paulista. Dada a sua maior flexibi- verticalização das áreas centrais era o con-
1891, foi a lidade e a possibilidade de transitar em ruas traponto da expansão horizontal caótica
de terra e a longas distâncias sem grandes das periferias. Essa combinação exótica
residência do custos, os ônibus promoveram uma ampla de compactação no centro e dispersão nas
arquiteto expansão da malha urbana, com as áreas de margens atribuiu um papel decisivo aos
Ramos de loteamentos se multiplicando caoticamen- veículos automotores. A rarefação da ocu-
te, conforme a ganância desenfreada e as pação periférica e a falta de conexão entre
Azevedo estratégias manipulatórias mais delirantes seus bairros – a qual tenderia sempre a ser
dos agentes especuladores. mediada pelos terminais no centro – tor-
Assim, o padrão predominante até en- navam limitado, precário e sacrificado o
tão, do aluguel de casas ou aposentos na transporte coletivo. Por outro lado, com o
área central, concentrando a população na veículo particular se tornando um recurso
região, foi substituído pela nova tendência, imprescindível, ademais de prestigioso,
a da compra de lotes nas periferias, onde para os grupos privilegiados das áreas
aos poucos se construiria a casa própria, centrais, as sucessivas administrações da
dispersando as populações pelos subúrbios prefeitura passaram a planejar o espaço
distantes. Bairros surgiram ao deus-dará, urbano em favor dos carros, promovendo
sem conexão uns com os outros, fora dos a proliferação feérica de vias expressas,
parâmetros e gabaritos legais, sem quais- corredores de circulação, pontes, túneis,
quer recursos de infra-estrutura básica, em viadutos, rótulas, passarelas, grades, fai-
terrenos grilados ou irregularmente demar- xas, faróis, sinais, mãos e contramãos, ter-
cados. A São Paulo original, já suficiente- minais gigantescos e extensos estaciona-
mente anárquica, desdobrou-se em várias mentos. A área urbana foi retalhada em
São Paulos precárias, distantes, isoladas, todos os quadrantes e direções, e tornada
paupérrimas e ilegais. Foi a origem do ne- ainda mais fragmentada, inorgânica e inós-
fasto modelo centro-periferia. pita, via de regra às expensas dos espaços
Do ponto de vista da área central, esse públicos, além de transformar num autên-
foi o momento da grande verticalização. tico inferno a vida dos transeuntes. Nesse
Para as camadas mais abonadas, não basta- momento, a baixada da Glória (ou do Gli-
va mais residir nas áreas mais elevadas, a cério) praticamente sumiu, submersa pela
distinção agora obrigava a residir em pré- massa dos viadutos do complexo do extin-
Cristina Carletti
outro espaço da cidade a autoridade públi- A melhor metáfora para entender a Rua
ca teria se atrevido a um delírio tão desen- São Paulo e por que ela é tão significativa
freado de depredação urbana e ambiental?), talvez seja a da metástasis. A palavra é de
espalha-se uma enorme população viven- origem grega e conota o sentido de um pro-
do das várias atividades de reciclagem. Os cesso contínuo de deslocamento, mobili-
vãos sob os prodígios da engenharia dos dade, transporte e comunicação entre con-
elevados estão todos ocupados como de- textos diversos. E assim é. Tomando os
pósitos e também como moradia desse povo diversos rumos a que os levam os inúmeros
incansável. Como sua extensão natural, a viadutos sob os quais se alocam, os reci-
Rua São Paulo também inclui áreas de de- clantes alcançam todos os quadrantes da
pósitos, moradias de reciclantes e popula- cidade, percorrendo-a em busca de seus
ção de rua. As antigas cocheiras e oficinas resíduos descartáveis. Eles estão por toda
estão hoje em dia ocupadas pelas carroças parte, é impossível virar uma esquina, qual-
superlotadas puxadas por essas criaturas quer esquina da cidade, sem se deparar com
pelas vias e caminhos de São Paulo, acom- algum deles, com suas crianças e seus ca-
panhados, não raro, de suas crianças e de chorros. Em geral as pessoas não apreciam
seus cachorros. cruzar com eles, com suas crianças e seus
BIBLIOGRAFIA
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