Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
Porto Alegre
2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS CRIMINAIS
MESTRADO EM CIÊNCIAS CRIMINAIS
Porto Alegre
2011
V658e Vieira, Gustavo José Correia
Extermínio cultural como violação de direitos humanos: o con-
texto criminal do etnocídio e seu desenvolvimento no campo do
saber jurídico-penal. / Gustavo José Correia Vieira. – Porto Ale-
gre, 2011.
225 f.
Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Faculdade de
Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul -
PUCRS.
Orientação: Prof. Dr. José Carlos Moreira da Silva Filho.
1. Direito Humanos. 2. Etnocídio. 3. Identidade Cultural.
4. Direitos Humanos. I. Silva Filho, José Carlos Moreira da.
II. Título.
CDD 341.1511
Bibliotecária responsável
Cíntia Borges Greff - CRB 10/1437
GUSTAVO JOSÉ CORREIA VIEIRA
BANCA EXAMINADORA:
______________________________________________
Prof. Dr. José Carlos Moreira da Silva Filho
______________________________________________
Prof. Dr. Antônio Carlos Wolkmer
______________________________________________
Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza
Porto Alegre
2011
AGRADECIMENTOS
O estudo a seguir trata sobre o tema do etnocídio, forma de violência que possui carac-
terísticas próprias. Em resumo, trata-se de buscar inserir em uma discussão jurídico-penal e
sob a ótica dos direitos humanos como esta prática se materializa, bem como o que ela visa
eliminar. No decorrer deste estudo, são considerados como base determinados conceitos an-
tropológicos para a compreensão deste fenômeno, principalmente em torno da concepção de
identidade cultural, que se vincula com a corporalidade e é responsável pela produção, repro-
dução e desenvolvimento da vida humana, em um âmbito comunitário. Igualmente se consi-
dera a sua relação com o colonialismo, além de traçar uma análise das condições de vulnera-
bilidade e de vítima em potencial, características presentes na consecução do etnocídio. Por
fim, o estudo ora proposto se desenvolve em um âmbito jurídico, de comparação do etnocídio
com outras formas de violação de direitos humanos, resultando ao final uma abordagem sobre
a importância do direito dos povos e seus elementos (ética, memória e reconhecimento) como
parâmetro de prevenção ao etnocídio.
The following study addresses about the ethnocide, a form of violence that has its own
characteristics. In short, it is seeking to enter into a discussion and legal-criminal from the
standpoint of human rights how this practice is materialized, and what it seeks to eliminate.
Throughout this study, are considered as certain basic anthropological concepts to understand
this phenomenon, mainly around the concept of cultural identity, which is linked with corpo-
reality and is responsible for production, reproduction and development of human life, on a
community level. Also it considers it its relationship with colonialism, but also traces an anal-
ysis of the conditions of vulnerability and potential victim characteristics present in the
achievement of ethnocide. Finally, the study proposed here is developed in a legal context, in
comparison of ethnocide with other forms of human rights violation, resulting in an approach
on the importance of the right of the people and its elements (ethics, memory and recognition)
as a parameter for the prevention of ethnocide.
INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 9
CAPÍTULO I – PERSPECTIVA HISTÓRICO-ANTROPOLÓGICA......................... 14
1.1 SOBRE CULTURA E IDENTIDADE CULTURAL...................................................... 14
1.1.1 Notas sobre cultura .................................................................................................. 14
1.1.2 Notas sobre identidade cultural ............................................................................... 28
1.2 O ETNOCÍDIO NAS RAÍZES DA MODERNIDADE: O PROCESSO DE
ENCONBRIMENTO DO OUTRO A PARTIR DA CONQUISTA DA AMÉRICA ............ 35
1.2.1 Modernidade, colonialidade e a conquista da América .......................................... 35
1.2.2 O processo de encobrimento do Outro .................................................................... 46
1.3 A IDENTIDADE CULTURAL E SUA VINCULAÇÃO COM A CORPOREIDADE
HUMANA ............................................................................................................................ 51
1.3 1 Sobre a corporeidade ............................................................................................... 51
1.3.2 A relação entre corporeidade e identidade cultural ................................................ 55
CAPÍTULO II – PERSPECTIVA SOCIOLÓGICA....................................................... 65
2.1 RISCO SOCIAL E HOMOGENEIZAÇÃO .................................................................... 65
2.1.1 Sobre a sociedade do risco: notas gerais................................................................. 68
2.1.2 Homogeneização: a produção da igualdade totalizadora ....................................... 73
2.2 COLONIALISMO E VIOLÊNCIA ................................................................................ 80
2.2.1 O colonialismo e o fenômeno do etnocídio .............................................................. 80
2.2.2 Privação de direitos e destruição da vida humana: a violência como instrumento do
etnocídio ............................................................................................................................ 99
2.3 A CONDIÇÃO DE VULNERABILIDADE E DE VÍTIMAS EM POTENCIAL ........ 108
2.3.1 A condição de vulnerabilidade ............................................................................... 108
2.3.2 A condição de vítimas em potencial ....................................................................... 111
CAPÍTULO III – PERSPECTIVA JURÍDICO-FILOSÓFICA .................................. 114
3.1 HISTÓRICO, DESENVOLVIMENTO E CARACTERÍSTICAS DO ETNOCÍDIO .. 114
3.1.1 Histórico e desenvolvimento .................................................................................. 114
3.1.2 Características do etnocídio .................................................................................. 117
3.2 ETNOCÍDIO, GENOCÍDIO, CRIMES CONTRA A HUMANIDADE E APARTHEID:
PRINCIPAIS DISTINÇÕES............................................................................................... 133
3.2.1 Genocídio e etnocídio............................................................................................. 135
3.2.2 Etnocídio e crimes contra a humanidade ............................................................... 145
3.2.3 Etnocídio e apartheid ............................................................................................. 150
3.3 CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS DO ETNOCÍDIO NO ÂMBITO JURÍDICO-
PENAL................................................................................................................................ 157
3.4 ÉTICA, MEMÓRIA E RECONHECIMENTO ÀS VÍTIMAS COMO IMPERATIVO
DE OBSERVÂNCIA AOS DIREITOS HUMANOS DOS POVOS .................................. 163
3.4.1 Uma ética libertadora como princípio – produção, reprodução e desenvolvimento
da vida humana na sua dimensão corpóreo-cultural...................................................... 172
3.4.2 Uma justiça anamnética como antídoto à repetição da barbárie .......................... 180
3.4.3 O reconhecimento como prática ético-jurídica ..................................................... 189
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 207
REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 212
9
INTRODUÇÃO
O contexto social o qual a humanidade vivencia retrata que sua dinâmica, suas trans-
formações, são compostas de práticas oriundas de relações de poder. A sociedade na forma
como está sendo estruturada foi uma resultante de uma série de práticas de relações de poder,
estabelecidas principalmente pela colonização, e com a imposição de visões de mundo que
destruíram modos de vida distintos do imaginário e do objetivo dos conquistadores, sejam
eles provenientes do passado ou do tempo atual.
a) Que as relações de poder têm como ponto de ancoragem uma relação de força esta-
belecida em um dado momento, historicamente preciso, na guerra e pela guerra; o poder polí-
tico reinsere perpetuamente essa relação de força, através de uma guerra silenciosa e inserida
nas desigualdades econômicas, na linguagem, e até mesmo nos corpos de uns e outros;
b) Que no interior da paz civil, as lutas políticas, as relações de força, tudo isto deve
ser interpretado como continuação da guerra;
c) A “decisão final” só pode vir da guerra, ou seja, uma prova de força em que as ar-
mas serão os juízes; o fim do político seria a derradeira batalha, ou seja, a batalha suspenderia
o exercício do poder como guerra continuada.
Nesse sentido, Foucault leciona que a partir do momento em que se pretende se des-
vincular da ideia dos esquemas econômicos de análise do poder, nos encontramos diante de
1
Nesse sentido, vide FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 21-25.
Trata-se do estudo de Foucault sobre o problema da guerra, a fundação da sociedade civil e a temática da raça.
2
Ibidem, p. 21-25.
10
Nesse sentido, Foucault ressalta ainda que poderíamos contrapor dois grandes sistemas
de análise do poder4: o primeiro, denominado “contrato-opressão” (século XVIII), em que se
entende o poder como um direito que se cede, e a opressão seria um abuso do poder dentro do
contrato estabelecido, sob o ponto de vista jurídico; o segundo, denominado “guerra-
repressão”, ou “dominação-repressão”, em que o poder é visto como efeito de uma relação de
dominação; a repressão seria o efeito desta relação de dominação e o emprego, no interior
desta “pseudopaz”, solapada pela guerra contínua, de uma relação de força perpétua, havendo
uma oposição entre luta e submissão5.
No curso ministrado entre os anos de 1975 e 1976, Foucault, partindo destes funda-
mentos sobre os sistemas de análise do poder, busca analisar o problema da guerra. Em que
medida a guerra, a luta, o enfrentamento de forças, pode ser identificado como o fundamento
da sociedade civil, a um só tempo o princípio e o motor do poder político6. Isto significa, a
partir da concepção apresentada, que a questão da luta e submissão está no âmago da socieda-
de, conflito este que para Foucault seria um estado de guerra contínua, guerra esta não enten-
dida somente pelas formas convencionais, em que existem exércitos que se enfrentam. Para
Foucault, trata-se de uma guerra por representação, um embate de forças no campo político,
em que persiste o conflito entre luta e submissão (podem-se referir como exemplificação as
questões entre grupos políticos, étnicos, etc).
3
Ibidem, p. 24.
4
Ibidem, p. 24.
5
Cabe destacar que Foucault, na sua trajetória acadêmica, não se limita a analisar o poder a partir da idéia de
repressão. Na aula de 7 de janeiro de 1976, o autor menciona que embora tenha trabalhado muito no campo do
esquema da luta-repressão, a temática da história da sexualidade, do poder psiquiátrico e da história do direito
penal teriam mecanismos empregados muito diferentes da repressão, e em todo caso, maiores que o emprego da
repressão. Assim, esta noção seria insuficiente para caracterizar os mecanismos e efeitos do poder naqueles cam-
pos. Na história da sexualidade, por exemplo, Foucault demonstra que o poder não pode ser apenas explicado
pela repressão, pela proibição (âmbito negativo), mas também pela produção de efeitos positivos. Ao contrário
do pensamento religioso (a partir da Reforma), em que a carne é considerada raiz de todos os pecados, no século
XVIII há uma incitação contínua e crescente a se falar de reprodução, no contexto sexual. Este tema passa a
integrar um sistema de utilidade, uma questão de administração, como parte do problema econômico e político
da população. É necessário analisar a taxa de natalidade, os nascimentos, etc. Nesse sentido, haveria uma espécie
de controle-estímulo, produzindo um estímulo no indivíduo, de forma positiva. Portanto, o poder não seria so-
mente inserido no âmbito negativo, pela repressão, mas também pelo seu aspecto positivo, pelo estímulo, produ-
zindo prazeres, induzindo saberes, discursos. Caso entendêssemos o poder somente no seu efeito negativo, proi-
bitivo, teríamos apenas uma concepção puramente jurídica do poder. Portanto, a repressão não seria suficiente
para dar conta do funcionamento histórico do poder. Nesse sentido, vide FOUCAULT, Michel. Em defesa da
sociedade, op. cit., p. 25; e CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2009, p. 384-386.
6
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade, op. cit., p. 26.
11
Com efeito, a partir desses fundamentos de Foucault, pode-se elaborar uma relação
com a temática das relações de poder, a partir da guerra, da luta, da repressão, da dominação e
do enfrentamento de forças (estritamente vinculados ao colonialismo), com a temática do et-
nocídio (genocídio cultural, ou extermínio cultural), objeto de estudo neste trabalho.
Partindo desses pressupostos, o enfoque proposto, portanto, vem abordar uma prática
que ocorreu em muitos episódios da História, e que ainda repercute na atual sociedade globa-
lizada: o domínio, o estabelecimento de uma relação de dominação (ou de poder) através do
controle e da destruição do corpo, visando o extermínio de traços culturais responsáveis pela
perpetuação de um grupo humano, que pode levar à extinção de uma etnia. E nesse campo se
insere a questão relativa ao etnocídio, também denominado genocídio cultural, tema principal
a ser analisado. Eis o tema central a ser analisado neste estudo.
7
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. São Paulo: Forense Universitária, 2005, p. 199-208.
12
O estudo ora proposto tem como finalidade principal tratar sobre o etnocídio, especi-
almente sua conceituação, características e sua possível recepção no campo jurídico-penal.
Dentre outros aspectos, visa abordar como ele se constitui enquanto forma de violência e
quais seriam suas características, bem como mencionar um possível desenvolvimento deste
8
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. En busca de las penas perdidas – deslegitimación y dogmatica jurídico-penal.
Buenos Aires: Ediar, 1998, p. 20.
9
Ibidem, p. 21.
13
conceito no âmbito do saber jurídico-penal. Para tanto, o trabalho foi dividido em três capítu-
los principais: o primeiro, a partir de uma perspectiva histórico-antropológica; o segundo em
uma perspectiva sociológica e o terceiro, em uma dimensão jurídico-filosófica.
Feitas estas considerações sobre a cultura e a identidade cultural, a tarefa será ilustrar o
tema com um marco histórico de constituição do etnocídio: a conquista da América e a inser-
ção do etnocídio nas raízes da modernidade. Por seu significado, a conquista celebra a origem
de um sistema civilizatório que denegou a existência das culturas indígenas, e se impôs prin-
cipalmente pelo etnocídio. Após estas abordagens iniciais, buscar-se-á tratar o tema relativo à
identidade cultural e sua relação com a corporalidade humana, evidenciando o que o etnocídio
viola concretamente.
Por sua vez, no segundo capítulo aborda-se o marco de uma perspectiva sociológica,
destacando o processo de risco social e a homogeneização, aspecto tendente de nossa socie-
dade. Posteriormente, com a abordagem sobre o colonialismo e a violência, procura-se eluci-
dar a relação do etnocídio com estes dois processos: o colonialismo geralmente empregado
juntamente com o etnocídio; o outro, a violência, sempre presente nesta espécie de prática.
Por fim, ao final do segundo capítulo serão tratados dois aspectos geralmente presen-
tes no etnocídio: a condição de vulnerabilidade e de vítimas em potencial, estreitamente rela-
cionadas com a concepção de risco. No terceiro e último capítulo, o desenvolvimento da con-
cepção de etnocídio em sua acepção jurídica começa a tomar maior relevo. Inicialmente serão
tratados aspectos relativos ao histórico e desenvolvimento do conceito, seguindo de breves
comparações entre o etnocídio e três espécies de crimes internacionais: o genocídio, os crimes
contra a humanidade e o apartheid. A seguir, serão tratados os aspectos principais do etnocí-
dio, estritamente no âmbito jurídico-penal.
Por fim, serão abordados alguns elementos de uma possível fundamentação aos direi-
tos dos povos em busca de uma prevenção ao etnocídio, seguindo-se da análise de três bases
de sustentação: uma ética libertadora como princípio, uma justiça anamnética como antídoto à
repetição da barbárie e o reconhecimento como prática ético-jurídica.
14
Para compreender como o etnocídio se constitui como uma violação aos direitos hu-
manos faz-se necessário a exposição de alguns aspectos conceituais históricos, filosóficos e
principalmente antropológicos. Tal exposição auxiliará a entender o que o etnocídio enquanto
forma de violência viola concretamente. Para tanto, expor sobre a cultura e a identidade cultu-
ral como elementos da corporalidade humana significa situar materialmente a questão, vincu-
lando-a à própria existência concreta do ser humano. A cultura e a identidade cultural como
parte, portanto, da constituição humana.
Contudo, para continuar a abordar este tema, faz-se necessário tratar sobre as origens e
a constituição científica da cultura. O termo “cultura” é amplamente utilizado a partir do sécu-
lo XVIII para denominar, em uma acepção extremamente geral, tudo aquilo que é feito pelo
10
Há autores que se reportam ao aspecto da tradição como elemento importante dentro da transmissão da cultu-
ra; pela tradição se transmitiria a cultura. Para eles, a cultura seria eminentemente tradicional, incluindo-se nela o
conhecimento, a linguagem, a arte, a literatura e a religião. Nesse sentido, vide CUVILLIER, Armand. Sociolo-
gia da cultura. Porto Alegre: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p. 2-3.
11
ALVES, Paulo César (Org.). Cultura – múltiplas leituras. Bauru: EDUSC, 2010, p. 15.
12
SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 8.
15
homem e que é transmitido de uma geração a outra13. Também para a grande maioria dos es-
tudiosos, o simbolismo seria o componente fundamental da cultura, ou seja, o universo pelo
qual a realidade propriamente humana se diferencia da sua base biológica14.
Embora a palavra “cultura” como geralmente se entende tenha sido criação do século
XVIII, o seu significado é antigo15. Etimologicamente, o termo vem do latim colere16, que
significa o cuidado dispensado ao campo, ao gado, ao cultivo agrícola. Assim, dentro desta
concepção semântica, o termo “cultura” designa, até o século XIII, um estado da terra culti-
vada para, aos poucos, passar a se referir à ação de cultivar a terra. Nos fins do século XVI,
começam a aparecer algumas mudanças semânticas do termo. O termo “cultura” alarga seu
significado para se referir ao cultivo da língua, da arte, das ciências. Em meados do século
XVIII, com sentido já expandido, o termo passa a designar o patrimônio universal dos conhe-
cimentos e valores humanos17.
13
Ibidem, p. 22.
14
Ibidem, p. 23.
15
ALVES, Paulo César (Org.), op. cit., p. 23.
16
Ressalte-se que o termo também possui outra conotação: colere advém, pela via do latim cultus, do termo
religioso “culto”, assim como a própria idéia de cultura vem na Idade Moderna a colocar-se no lugar de um sen-
tido desvanecente de divindade e transcendência. Verdades culturais – trate-se da arte elevada ou das tradições
de um povo – são algumas vezes verdades sagradas, a serem protegidas e reverenciadas. A cultura, por vezes
neste aspecto, herda o manto da autoridade religiosa. Nesse sentido, vide EAGLETON, Terry. A idéia de cultu-
ra. São Paulo: UNESP, 2005, p. 11.
17
ALVES, Paulo César (Org.), op. cit., p. 24.
18
Ibidem, p. 24.
19
Ibidem, p. 24.
16
A paideia como cultivo do espírito humano também chegou ao mundo romano20. Para
os romanos (e para Cícero, por exemplo), assim como um campo sem cultivo seria improduti-
vo, também a alma sem educação não daria frutos. Para Cícero, o cume do cultivo espiritual
(cultura animi) é dado pela aquisição da filosofia. Cultura como cultivo do espírito refere-se à
ideia de que para alcançar a perfeição humana é necessário incorporar ao esforço individual
um saber específico. Ou seja, a cultura animi seria o resultado da combinação da personalida-
de de um indivíduo (desejar sair da ignorância) com a incorporação de um patrimônio tradici-
onal do saber21. Assim, por exemplo, o “bárbaro” não possuiria cultura, por não ter o cultivo
intelectual e tampouco o desejo de sair da ignorância. Entretanto, os romanos também desen-
volveram uma outra concepção mais ampla de cultura: a cultus vitae, para designar as formas
originais de vida (usos e costumes) as quais distinguem uma sociedade da outra22.
A Idade Média não desenvolverá um conceito de cultura que ultrapasse de forma sig-
nificativa a paideia greco-romana. Nesta fase histórica, mantém-se a ideia de espiritualidade,
de busca de práticas e experiências, tais como a purificação, renúncia, etc., como condições
para o aperfeiçoamento do indivíduo. Com efeito, um “cuidado de si mesmo” como preço
pelo qual o indivíduo paga para ter a acesso à graça divina23. No entanto, existem elementos
que se distinguem da concepção clássica: a) em primeiro lugar, a clivagem cultural estava na
separação entre os clérigos e os laicos. Ou seja, ao passar a ser monopólio da Igreja, a cultura
intelectual deixa de ser um fenômeno diretamente relacionado com questões de classe social
ou de nobreza individual; e b) em segundo lugar, a aquisição do saber deixa de ser uma finali-
dade em si mesma, tornando-se um meio para conhecer o sentido que Deus atribuía ao mundo
e à existência humana. Nesta concepção, o homem é visto como algo pertencente a um todo,
ao mundo entendido como cosmos criado e ordenado por Deus. Totalmente imerso neste uni-
verso, cabe ao homem contemplar a perfeição das coisas criadas24.
20
Ibidem, p. 27.
21
Ibidem, p. 27.
22
Ibidem, p. 28.
23
Ibidem, p. 28.
24
Ibidem, p. 28.
17
pelos escritores italianos de coltura25. Cabe lembrar que nos séculos XV e XVI desenvolve-se
a concepção de individualismo. O cultivo à personalidade (exaltação do homem singular) era
expresso na convicção do valor intrínseco da pessoa e na nobreza do mérito pessoal26.
25
Ibidem, p. 28.
26
Ibidem, p. 29.
27
Ibidem, p. 30.
28
Ibidem, p. 30.
29
Ibidem, p. 31.
30
Ibidem, p. 31.
18
Como expõe Paulo César Alves33, “cultura” e “civilização” seriam duas palavras que
pertencem ao mesmo campo semântico, refletindo as mesmas condições fundamentais. Embo-
ra as diferenças de significado não sejam claras, a “cultura” diria respeito ao conjunto de sa-
beres e práticas que constituem o patrimônio de um povo ou sociedade, enquanto “civiliza-
ção” expressaria a ideia de afinamento coletivo de comportamentos, instituições, usos e cos-
tumes da humanidade. Assim, se todos os povos têm cultura, somente aqueles dotados de re-
finamento institucional e comportamental possuiriam “civilidade”. Ou seja, civilização seria
um movimento coletivo resultante do desenvolvimento da cultura34.
Cabe destacar que o termo “cultura” não restringiu apenas à ideia de um patrimônio da
humanidade. Principalmente na concepção alemã, a cultura adquiriu também uma noção par-
ticularista para significar a consolidação de diferenças nacionais. Daí as expressões como
“cultura alemã” ou “cultura brasileira”. Tal concepção estará na raiz dos conceitos de “na-
ção”, “nacionalismo” e “nacionalidade”35.
Mas a percepção iluminista de diferentes ordens culturais não eliminou a ideia de et-
nocentrismo36. Admitir a existência de uma variedade de culturas não significou afirmar que
todas sejam do mesmo tipo. Afinal, para os iluministas seria necessário reconhecer as diferen-
ças entre as culturas de uma sociedade tribal e uma “civilizada”. A diferença é estabelecida na
ideia de progresso: um processo de refinamento cultural dos costumes, o crescimento do ideal
31
Ibidem, p. 31.
32
Ibidem, p. 31.
33
Ibidem, p. 31.
34
Ibidem, p. 32.
35
Ibidem, p. 32.
36
Em síntese, o etnocentrismo é uma visão de mundo com a qual tomamos nosso próprio grupo como centro de
tudo, e os demais grupos são pensados e sentidos pelos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que
é a existência. No plano intelectual pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afeti-
vo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc. O etnocentrismo está calcado em sentimentos fortes,
como o reforço da identidade do “eu”. Possui, no caso particular da nossa sociedade ocidental, aliados podero-
sos. Para uma sociedade que tem poder de vida e morte sobre muitas outras, o etnocentrismo se conjuga com a
lógica do progresso, com ideologia da conquista, com o desejo de riqueza, com a crença num estilo de vida que
exclui a diferença. Nesse sentido, vide ROCHA, Everardo. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 2006,
p. 7-75.
19
O conceito científico de cultura nasce do pressuposto de que a cultura pode ser estuda-
da de forma objetiva e sistemática, pois se trataria de um fenômeno que é: a) natural do ser
humano; b) dotado de causas e regularidades; c) capaz de proporcionar a formulação de leis.
Composta objetivamente pelas crenças, representações sociais, tradições e costumes adquiri-
dos pelo homem enquanto membro de uma sociedade, a palavra “cultura” adquire uma di-
mensão “descritiva”, que se diferencia da sua dimensão “prescritiva”, isto é, aquela que se
refere à cultura como um conjunto de valores que devem ser adquiridos pelos indivíduos ou
coletividades, como a ideia de paideia ou de cultura animi41.
37
ALVES, Paulo César (Org.), op. cit., p. 33.
38
Contrariamente a esta ideia de homogeneidade, Levi-Strauss enfatiza que a vida humana não se desenvolve
sob o regime de uma uniforme monotonia, mas através de modos extraordinariamente diversificados de socieda-
des e civilizações. Vide LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e história. 10ª ed. Lisboa: Presença, 2010, p. 10.
39
ALVES, Paulo César (Org.), op. cit., p. 33. Nesse sentido também podemos mencionar o resultado desta ideia
de progresso e homogeneização, aliado ao etnocentrismo. Os africanos foram removidos violentamente de seu
continente (ou seja, de seu ecossistema e de seu contexto cultural) e transportados como escravos para uma terra
estranha habitada por pessoas de costumes e línguas diferentes, perdendo toda a motivação de permanecer vivos.
Igualmente esta hierarquização de ideia de progresso dizimou parte da população Kaingang em São Paulo, quan-
do teve seu território invadido pelos construtores da Estrada de Ferro Noroeste. Nesse sentido, vide LARAIA,
Roque de Barros. Cultura – um conceito antropológico. 24ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 75-76.
40
ALVES, Paulo César (Org.), op. cit., p. 33.
41
Ibidem, p. 34.
20
científico sobre esse fenômeno. Por isso, são considerados por muitos historiadores como
fundadores da etnologia científica, principalmente britânica42.
Partindo do pressuposto de que toda a humanidade deveria passar pelos mesmos pro-
cessos evolutivos, a teoria evolucionista clássica: a) reduziu a diversidade cultural a uma
questão de estágios históricos de um mesmo caminho evolutivo; b) partia do princípio de que
haveria uma unidade psíquica de toda a espécie humana; e c) identificava-se em cada socie-
dade “sobrevivências” ou “relíquias” de crenças e costumes de estágios anteriores43. Esta teo-
ria não desfruta atualmente da mesma aceitação, mas inaugurou um conjunto de pressupostos
teórico-metodológicos para os estudos sobre cultura. O ponto fundamental a ser observado diz
respeito ao fato de que as teorias sócio-antropológicas, desenvolvidas a partir do século XIX e
até a segunda metade do século XX, tenderam a considerar as unidades sociais como sistemas
possuidores de leis próprias e como realidades que perseguem as suas próprias finalidades,
relativamente autônomas das percepções individuais. Pode-se denominar essa tendência analí-
tica nas ciências sociais como sistêmica ou estrutural44.
42
Ibidem, p. 34
43
Ibidem, p. 35
44
Ibidem, p. 36.
45
Ibidem, p. 38.
46
Ibidem, p. 40.
21
47
Ibidem, p. 42.
48
Ibidem, p. 42.
49
Ibidem, p. 43.
50
Ibidem, p. 43.
51
Ibidem, p. 44.
22
originária a cultura indica a ação de cultivar, ter atenção, cuidado. Trata-se de uma ação me-
diante a qual o homem se ocupa de si mesmo.
A expressão humana se serve sempre de uma matéria à qual acrescenta uma forma,
que não existia antes, e que leva consigo um significado que procede da inteligência, e que
manifesta intenções, desejos, etc. O que define o homem como ser cultural é esta capacidade
de revestir o material, mediante uma forma acrescida, de um significado que procede do mun-
do interior e que ordena a obra humana à outra coisa diferente dela mesma. Pela cultura, a
mão é mais que um membro para segurar: ela expressa saudação, acolhida, fraternidade, cari-
nho ou, pelo contrário, violência, etc54.
Pela cultura também aparecem as obras humanas, os objetos que os homens produ-
zem. Um martelo, as janelas, a disposição de uma rua ou de um campo, as estradas, as casas.
Aparecem os utensílios, os enfeites, os objetos artísticos, a literatura, o concreto armado e as
estruturas, etc. Todas essas são formas acrescentadas às realidades naturais55.
52
STORK, Ricardo Yepes; ECHEVARRÍA, Javier Aranguren. Fundamentos de antropologia – um ideal de
excelência humana. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 2005, p. 347.
53
Ibidem, p. 348.
54
Ibidem, p. 348.
55
Ibidem, p. 348.
23
fazemos com que passe de Terra à habitát, à casa, o lugar onde se desenvolve nosso caráter
mundano56.
Além disso, a forma dos objetos culturais remeteria a algo diferente dela mesma. O
exemplo mais claro seria a linguagem. Tratar-se-ia de vozes articuladas ou sinais escritos, que
trazem um significado em si mesmos. Ou seja, seu caráter de sinalizar implicaria na capacida-
de de superar o seu caráter físico (um ruído, alguns riscos no papel) para abrir-se ao mundo
dos significados (entender a mensagem à qual esses ruídos ou riscos se referem). O caráter
simbólico das obras humanas seria algo convencional, quer dizer, livre e modificável: se fixa
o significado de uma palavra, mas pode variar; o gesto da amizade não é sempre o mesmo
(beijar-se, dar as mãos, compartilhar o sal). A cultura, para os autores, seria algo livre e, por-
tanto, convencional, variável histórica58.
56
Ibidem, p. 349.
57
Ibidem, p. 349.
58
Ibidem, p. 350.
59
Ibidem, p. 350.
24
Isso foi percebido pela escola hermenêutica, que procura compreender o homem e
interpretar suas obras “a partir do interior”, trazendo à luz a inspiração e a imagem do mundo
que as anima. A hermenêutica converte-se assim em um método de compreensão e interpreta-
ção de culturas e épocas distintas da nossa, visto que se pergunta pelo espírito que as fez nas-
cer e procura interpretar seu sentido60. Em realidade, quando o homem lê um livro, ou con-
templa uma catedral gótica, o que faz é interpretar e compreender seu sentido. Para entendê-lo
é útil perguntar-se quem os “escreveu”, qual foi sua inspiração e que verdade pretendia ex-
pressar ao fazê-lo61.
É importante destacar ainda que a cultura não é apenas expressão de uma subjetivida-
de, mas expressão da verdade vista por uma subjetividade. Ao interpretar a obra cultural, te-
mos de procurar a verdade expressada, e para isso nos ajuda compreender a pessoa que a ex-
pressou. Mas se se permanecer apenas nisso, a leitura das obras culturais se converte em pura
erudição. Contudo, não se trataria disso: toda obra cultural carrega consigo uma verdade que
se pode chegar a compreender62.
1) Os gestos. Saudar, sorrir, das boas-vindas, etc., são a primeira forma de linguagem;
às vezes o silêncio é mais expressivo do que a palavra: o homem é o único ser que faz do ca-
lar um gesto característico64.
60
Ibidem, p. 350.
61
Ibidem, p. 351.
62
Ibidem, p. 351.
63
Ibidem, p. 351.
64
Ibidem, p. 351.
65
Ibidem, p. 351.
25
3) Os costumes. São gestos repetidos muitas vezes que outorgam segurança à vida
humana. Facilmente se convertem em ritos: o rito de uma comida de festa, ou de uma cerimô-
nia nupcial. As normas de cortesia são gestos rituais: desejar bom dia, levantar para cumpri-
mentar uma pessoa, etc66.
4) Alguns gestos são autênticas ações receptivas porque implicam em cultivar a aten-
ção para algo, esperar ou dirigir-se para um ser que nos atrai. As ações receptivas são a ma-
neira de dirigir nossa atenção para o mundo, significam abrir-se para ele de uma determinada
maneira. Costumam exigir silêncio, pois este é condição para a atenção: só quem cala pode
atender. O ruído mata o calar67.
5) Por fim, temos as ações simbólicas. Os símbolos e as ações simbólicas são elemen-
tos importantes dentro da compreensão da cultura. Todo objeto e ação cultural têm uma fun-
ção simbólica, que remete o produto humano a outra coisa68. Assim, acontece de modo emi-
nente na linguagem. Função simbólica quer dizer, em primeiro lugar, função representativa e
esta é algo próprio de toda realidade cultural, enquanto significa algo distinta de si mesma, ou
remete-se a ela: um martelo está por si próprio, aludindo uma mão que o empunhe e a um
objeto sobre o qual golpear. No martelo, vemos de algum modo a mão e o prego69.
66
Ibidem, p. 351.
67
Ibidem, p. 351.
68
Ibidem, p. 358.
69
Ibidem, p. 358.
70
Ibidem, p. 358.
71
Ibidem, p. 358.
26
E por tratar-se de um conhecimento mais imaginativo, o símbolo traz até nós uma rea-
lidade ausente, mas de uma maneira obscura, imperfeita, sugestiva. Remete a realidades dife-
rentes a ele mesmo. O símbolo é um recurso que o homem tem para fazer presentes realidades
que pode ou não quer expressar de modo claro e distinto72. Como exemplo, Ricardo Stork e
Javier Echevarría mencionam os índios apaches, os quais pintavam o rosto para fazer guerra,
querendo aparecer diante dos inimigos como seres terríveis. Assim, os autores definem o sím-
bolo como a imagem de uma coisa, que faz intuitivamente presente outra coisa distinta, de
modo direto e imperfeito, não completamente determinado, de maneira que começamos a
possuir de algum modo o que é simbolizado. O homem se serve dos símbolos para começar a
conhecer e adornar-se de realidades que de momento não possui de todo, ou que nunca poderá
possuir plenamente, e que por isso não são racionalizáveis. A função simbólica corre a cargo
da fantasia, e desempenha na cultura um papel de primeira ordem73.
O homem necessita dos símbolos, e também dos sinais, para relacionar-se com o au-
sente, para ampliar o raio da realidade possuída74. O símbolo é a porta de acesso ao mistério e
ao misterioso. Negá-lo seria negar que exista realidades que superem nossa capacidade de
conhecer. O símbolo é uma das maneiras que o homem tem de materializar o espiritual e de
superar a distância que o separa das realidades das quais quer apropriar-se75. A capacidade de
usar símbolos deriva dessa singular capacidade de referir-se ao que não está presente, ao que
não está em frente, ao futuro e ao passado.
Disso poderíamos extrair uma conclusão: muitas ações expressivas de muitos objetos
culturais são simbólicos porque plasmam materialmente essas referências que o homem faz a
realidades ausentes. Por exemplo, existem ações simbólicas ligadas ao uso de objetos que
também o são. Ações simbólicas são aquelas nas quais a utilização de um objeto ou gesto
simbólico vêm acompanhada pelo domínio ou recepção de algum bem, superior ao símbolo,
mas representado por ele. Assim, a entrega das chaves da cidade ao rei simboliza que se está
72
Ibidem, p. 359.
73
Ibidem, p. 359.
74
White, citado por Marshall Sahlins, assevera que o homem difere do macaco e de todos os outros seres vivos
por ser capaz de um comportamento simbólico. Com palavras, o homem cria um novo mundo, um mundo de
idéias e filosofias. Nesse mundo, a existência do homem é tão real quanto no mundo físico de seus sentidos. Em
verdade, o homem sente que a qualidade essencial de sua existência consiste em ocupar esse mundo de símbolos
e idéias – ou, como às vezes ele o chama, o mundo da mente ou do espírito. Esse mundo das idéias dá provas de
uma continuidade e de uma permanência que o mundo externo dos sentidos jamais poderá ter. Ele não seria feito
apenas do presente, mas de um passado e também de um futuro. Temporalmente, não constituiria uma sucessão
de episódios desconexos, e sim um continuum que se estende ao infinito em ambas as direções, da eternidade à
eternidade. Nesse sentido, vide SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003,
p. 107.
75
STORK, Ricardo Yepes; ECHEVARRÍA, Javier Aranguren. op. cit., p. 359.
27
dando a ele o poder sobre a cidade. A entrega dos anéis e as palavras que os noivos trocam
significam e promessa mútua de entrega. O sinal da cruz e as palavras com que o sacerdote
absolve o penitente simbolizam o perdão dos pecados, dentre outros casos76. Assim, geral-
mente as ações simbólicas costumam realizar-se mediante as cerimônias, e expressam muitas
vezes a entrega ou recepção de bens imateriais.
Dentro deste contexto da cultura, entendida, dentre outros fatores, pelas suas ações
simbólicas, Clifford Geertz preconiza que o comportamento humano é visto como ação sim-
bólica77, e olhar as dimensões simbólicas da ação social – arte, religião, ideologia, ciência, lei,
moralidade – é mergulhar-se nos dilemas existenciais da vida78. Sem a direção de padrões
culturais – ou seja, na visão de Geertz, sistemas organizados de símbolos significantes – o
comportamento do homem seria ingovernável, um simples caos de atos sem sentido e de ex-
plosões emocionais, e sua experiência não teria praticamente qualquer forma. A cultura, a
totalidade acumulada de tais padrões, não é apenas um ornamento da existência humana: é
uma condição essencial para ela, a principal base de sua especificidade. O homem se tornou
homem quando ele foi capaz de transmitir conhecimento, crença, lei, moral e costume a seus
descendentes através do aprendizado79. Com efeito, a cultura denota um padrão de significa-
dos transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herda-
das expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e
desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida80. Desta forma, a cultura
denota a transmissão de uma cadeia de significados simbólicos, servindo para a manutenção e
desenvolvimento da vida humana em comunidade.
76
Ibidem, p. 360.
77
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 8.
78
Ibidem, p. 21.
79
Ibidem, p. 33-34.
80
Ibidem, p. 66.
81
DUSSEL, Enrique. Oito ensaios sobre cultura latino-americana e libertação. São Paulo: Paulinas, 1997, p.
54.
28
Após realizadas todas estas considerações, podemos seguir a descrição que Enrique
Dussel82 elabora sobre a definição de cultura83. Esta seria
82
Ibidem, p. 55.
83
Nesse sentido, igualmente Darcy Ribeiro enfatiza a cultura como patrimônio simbólico dos modos padroniza-
dos de pensar e de saber, que se manifestam, materialmente, nos artefatos e bens. Em uma tentativa de ampliar
este conceito, pode-se incluir que este patrimônio simbólico também está presente na corporalidade humana, nos
gestos corporais, nos rituais, dentre outros aspectos. Sobre a concepção simbólica de cultura, vide RIBEIRO,
Darcy. O processo civilizatório. 6ª ed. Petrópolis; Vozes, 1981, p. 34.
84
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, p. 3.
85
Ibidem, p. 3.
29
Feitas estas considerações, pode-se ainda expor que existem basicamente três concep-
ções distintas de identidade, de acordo com os estudos de Stuart Hall 86, as quais seriam: a) a
identidade do sujeito do Iluminismo; b) a concepção de identidade do sujeito sociológico e c)
a concepção de identidade do sujeito pós-moderno.
Entretanto, argumenta-se que seriam exatamente essas coisas que agora estariam mu-
dando. O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, estaria
86
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DPA, 2006, p. 10-13.
87
Ibidem, p. 10-13.
88
Ibidem, p. 10-13.
89
Ibidem, p. 10-13.
30
se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas
vezes contraditórias ou não resolvidas. Correspondentemente, as identidades, as quais compu-
nham as paisagens sociais “lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as
“necessidades” objetivas da cultura, estariam entrando em colapso, como resultado de mudan-
ças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos proje-
tamos em nossas identidades culturais, teria-se tornado mais provisório, variável e problemá-
tico90.
Para Hall, esse processo produziria a terceira concepção de identidade, que seria a do
sujeito pós-moderno, conceitualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou per-
manente. A identidade tornar-se-ia uma “celebração móvel”, formada e transformada continu-
amente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas
culturais que nos rodeiam. Seria definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito as-
sumiria identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não seriam unificadas
ao redor de um “eu” coerente91.
Com efeito, a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente não seria
possível. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural
se multiplicariam, seríamos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante
de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar92.
Neste aspecto, pode-se seguir uma linha intermediária entre o sujeito sociológico e o
sujeito denominado “pós-moderno”. Isto porque o elemento interativo, defendido pela corren-
te sociológica, mostra-se importante para se definir uma identidade, já que esta não se produz
sem a interação com os demais seres humanos. A identidade provém de um processo de
aprendizado, em que o sujeito internaliza determinados valores e conceitos, vivendo de acor-
do com eles. Por sua vez, diante da sociedade globalizada, em que se abre as portas para o
estudo das mais diversas culturas, esse processo de interação entre os seres humanos ganha
muito mais intensidade, na medida em que se produzem uma maior gama de identidades (se-
jam étnicas, religiosas, dentre outras). A fragmentação, defendida pela corrente “pós-
moderna”, não ocasionaria uma dissolução ou colapso das identidades, mas uma abertura ao
descobrimento da existência de muitas outras identidades que se apresentam em nossa coexis-
tência humana, e que se influenciam mutuamente.
90
Ibidem, p. 10-13.
91
Ibidem, p. 10-13.
92
Ibidem, p. 10-13.
31
Nesta linha de pensamento, também a diferença é concebida como uma entidade inde-
pendente. Apenas, neste caso, em oposição à identidade, a diferença é aquilo que o outro é:
93
SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.). Identidade e diferença – a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis:
Vozes, 2009, p. 39.
94
Ibidem, p. 25.
95
Ibidem, p. 74..
96
Vale ressaltar que esta identidade geralmente está relacionada com a mesmidade, ou seja, aponta para o mes-
mo. Porém, não deve ser compreendida somente neste sentido. Contribuindo com este tema, Paul Ricoeur, em
sua obra “O si-mesmo como um outro”, traz à tona outro elemento que demarca a interioridade, a identidade: a
ipseidade. Para tanto, de um lado, temos a identidade-idem, que nos traz a figura do mesmo, ou da mesmidade.
Por outro lado, temos a identidade-ipse, que aponta para a ipseidade, ipseidade esta que faz com que um ser seja
ele próprio, e não outro. A mesmidade indicaria o retorno do mesmo ao longo do tempo, ou seja, a estabilidade e
durabilidade , reidentificando um indivíduo humano como o mesmo. A ipseidade, por sua vez, se configura num
momento de alteridade, em que esta, compreendida como uma etapa de estranhamento, não se projeta apenas
nos outros homens, mas inclusive à própria consciência e ao corpo próprio. Cabe salientar que a relação mesmi-
dade e ipseidade não se sustenta em uma exclusão de um ou outro, mas de uma relação complementar, de diálo-
go. Ou seja, a ipseidade necessita da estabilidade trazida pela mesmidade e de um constante diálogo com ela,
mas sem que com isto seja anulada. A ipseidade coloca o caráter (conjunto das marcas distintivas que permitem
identificar um indivíduo humano como o mesmo) em movimento. Assim, instaura-se uma dialética entre estas
duas formas de identidade. Ricoeur propõe, assim, uma dialética do si-mesmo e do diverso de si, que comporte
tanto o movimento que vai do outro para o mesmo, quanto o que vai do mesmo para o outro. Para mais informa-
ções, vide SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Pessoa humana e boa-fé objetiva: a alteridade que emerge da
ipseidade. In: José Carlos Moreira da Silva Filho; Maria Cristina Cereser Pezzella. (Org.). Mitos e Rupturas no
Direito Civil Contemporâneo. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, v. 1, p. 291-323.
97
HEIDEGGER, Martin. Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 39.
32
“ele é italiano”, “ ele é branco”, “ela é mulher”. Da mesma forma que a identidade, a diferen-
ça é, nesta perspectiva, concebida como auto-referenciada, como algo que remete a si própria.
A diferença, tal como a identidade, simplesmente existe98.
Desta forma, seria simples compreender que identidade e diferença estão em relação
de estreita dependência. A forma afirmativa como expressamos a identidade tende a esconder
essa relação. Quando dizemos “sou brasileiro”, parece que estamos fazendo referência a uma
identidade que se esgota em si mesma. Entretanto, só fazemos esta afirmação porque existem
outros seres humanos que não são brasileiros. Em um mundo imaginário totalmente homogê-
neo, no qual todas as pessoas partilhassem a mesma identidade, as afirmações de identidade
não fariam sentido. De certa forma, seria isso que ocorre com nossa identidade de “huma-
nos”99.
A afirmação “sou brasileiro” seria parte, em verdade, de uma extensa cadeia de nega-
ções, de expressões negativas de identidade, de diferenças. Por trás da afirmação “sou brasi-
leiro”, dever-se-ia dizer: “não sou argentino”, “não sou chinês”, e assim por diante, numa ca-
deia quase interminável100.
98
SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.). Identidade e diferença – a perspectiva dos estudos culturais, op. cit., p. 74.
99
Ibidem, p. 76.
100
Ibidem, p. 76.
101
Ibidem, p. 75.
102
Ibidem, p. 76.
33
Feitas estas considerações sobre cultura, identidade e diferença, cabe trazer algumas
considerações sobre a identidade cultural.
Kathryn Woodward103, reportando-se aos estudos de Stuart Hall, destaca que este, em
sua obra Identidade cultural e diáspora, examina diferentes concepções de identidade cultu-
ral, procurando analisar o processo pelo qual se busca autenticar uma determinada identidade
por meio da descoberta de um passado supostamente comum.
Nesse sentido, a autora expõe que Hall toma como seu ponto de partida a questão de
quem e o que nós representamos quando falamos. Ele argumenta que o sujeito fala, sempre, a
partir de uma posição histórica e cultural específica. O autor afirma que haveria duas formas
diferentes de pensar a identidade cultural: a primeira reflete o fato de que uma comunidade
busca recuperar a verdade sobre seu passado na unicidade de uma história e de uma cultura
partilhadas que poderiam, então, ser representadas, por exemplo, em uma forma cultural como
o filme, para reforçar e reafirmar a identidade; a segunda concepção de identidade cultural é
aquela que a vê como “uma questão tanto de tornar-se quanto de ser”. Isso não significaria
negar que a identidade tenha um passado, mas reconhecer que, ao reivindicá-la, nós a recons-
truímos e que, além disso, o passado sofre uma constante transformação105.
Esse passado seria parte de uma “co-munidade imaginada”, uma comunidade de sujei-
tos que se apresentam como sendo “nós”. Nesse sentido, Hall argumenta em favor do reco-
nhecimento da identidade, mas não de uma identidade fixada na rigidez da oposição binária
“nós/eles”. Ele sugere a fluidez da identidade: ao ver a identidade como uma questão de tor-
nar-se, aqueles que reivindicam a identidade não se limitariam a ser posicionados pela identi-
103
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In SILVA, Tomaz
Tadeu da. (Org.). Identidade e diferença – a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 27.
104
Ibidem, p. 27.
105
Ibidem, p. 28.
34
Nesse sentido, pode-se constatar que a identidade cultural está calcada em uma memó-
ria coletiva de seu passado, que compreende seus valores e modos de vida que se busca perpe-
tuar, transmitir aos outros. A identidade cultural permite, pela memória, dar continuidade à
cadeia simbólica que se reproduz e identifica a especificidade de um grupo humano.
Para tanto, a identidade cultural, como conjunto humano simbólico e mnemônico, bus-
ca na memória também seu fundamento. A memória figura como uma criação do passado,
uma reconstrução engajada no passado, e que desempenha um papel fundamental na maneira
como os grupos sociais apreendem o mundo presente e reconstroem sua identidade, inserindo-
se nas estratégias de reivindicação por um completo direito ao reconhecimento; essa memória
é ativada visando, de alguma forma, o controle do passado e, portanto, do presente107.
106
Ibidem, p. 28.
107
SILVA, Gladson José da. A antiguidade romana e a descontração das identidades nacionais. In FUNARI,
Pedro Paulo A.; JR, Charles E. Orser; SCHIAVETTO, Solange Nunes de Oliveira (Org.). Identidades, discurso e
poder: estudos de arqueologia contemporânea. São Paulo: Annablume, Fapesp, 2005, p. 94.
108
KOUBI, Geneviève. Entre sentimentos e ressentimento: as incertezas de um direito das minorias. In BRES-
CIANI, Stella; NAXARA, Márcia. Memória e (res)sentimento – indagações sobre uma questão sensível. Cam-
pinas: Unicamp, 2001, p. 539.
109
OLIVEIRA, Lúcia Maciel Barbosa de. Identidade cultural. Disponível em:
<http://www.esmpu.gov.br/dicionario/tiki-index.php?page=Identidade%20cultural>. Acesso em: 28 abr. 2011.
35
110
DUSSEL, Enrique. Política de la liberación – história mundial y crítica. Madrid: Trotta, 2007, p. 192.
111
A ideia de paradigma é fundamental para o entendimento acerca da mutação das bases teóricas de uma ciên-
cia. Para o autor, o paradigma caracteriza-se por dois elementos essenciais: a) suas realizações atraem um núme-
ro de partidários, afastando-os de outras formas de atividades científicas dissimilares e b) suas realizações são
suficientemente abertas para deixar toda espécie de problemas para serem resolvidos pelo grupo redefinido de
praticantes da ciência. O termo paradigma também é relacionado com “ciência normal”. Isto significa que alguns
exemplos aceitos na prática científica real proporcionam modelos dos quais brotam as tradições coerentes e es-
pecíficas da pesquisa científica. O estudo dos paradigmas, muitos dos quais bem mais especializados do que os
indicados acima, é o que prepara basicamente o estudante para ser membro da comunidade científica determina-
da na qual atuará mais tarde. Uma vez que ali o estudante reúne-se a homens que aprenderam as bases de seu
campo de estudo a partir dos mesmos modelos concretos, sua prática subseqüente raramente irá provocar desa-
cordo declarado sobre pontos fundamentais. Homens cuja pesquisa está baseada em paradigmas compartilhados
estão comprometidos com as mesmas regras e padrões para a prática científica. Esse comprometimento e o con-
senso aparente que produz são pré-requisitos para a ciência normal, isto é, para a gênese e a continuação de uma
tradição de pesquisa determinada. Vide KUHN, Tomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Pers-
pectiva, 1998, p. 30-31.
36
O século XVI já não é um momento da Idade Média, mas o primeiro século da moder-
nidade. É a modernidade nascente em sua primeira etapa, a de uma Europa que começa a sua
abertura a um novo mundo que a reconecta com parte do antigo mundo, o asiático, constituin-
do o primeiro sistema-mundo113. Este século XVI é a chave e a ponte, já moderno, entre o
mundo antigo e a formulação acabada do paradigma do mundo moderno. Copérnico avança o
heliocentrismo como “hipótese” em 1514 – data em que Bartolomé de las Casas, na ilha de
Cuba, capta o problema central político de toda a modernidade até o presente. A explosão do
imaginário que o descobrimento da América produziu na Europa é certamente o começo de
uma nova Idade. No entanto, se necessitou de todo o século XVI para que fosse possível a
formulação de um novo modelo (científico, filosófico e político) da nova Idade, que havia
sido iniciado desde o descobrimento da América. A Europa se abriu a um imenso espaço exte-
rior. Neste contexto, o Outro (o indígena e o escravo africano) será, para Dussel, igualmente
uma exterioridade constitutiva da nova compreensão do ser humano, como o excluído, o ne-
gado114.
Enrique Dussel também chama a atenção para o fato de que, contrariamente ao enten-
dimento de Hegel ou Habermas, tanto a América Latina quanto a Espanha tiveram um papel
fundamental na formação da Era Moderna. A descoberta do novo mundo possibilitou que a
Europa saísse da imaturidade subjetiva da periferia do mundo muçulmano e se desenvolvesse
até tornar-se o centro da história e o senhor do mundo, estado que simbolicamente foi atingido
com a figura de Cortez, na conquista do México115.
Até o final do século XV, a Europa foi paulatinamente sendo isolada pelo mundo mu-
çulmano, ocasião em que as rotas comerciais terrestres que levavam até as Ìndias estavam
bloqueadas. Constantinopla, antigo centro comercial europeu, havia sido tomado pelos turcos
otomanos em 1453 e seu nome passou a ser Istambul. Como as cruzadas haviam fracassado,
restava descobrir uma rota marítima que contornasse a África e atingisse as Ìndias. Nesse sen-
tido, os portugueses levaram adiante seu esforço com a caravela, o que os levou a chegar, em
112
DUSSEL, Enrique. Política de la liberación – história mundial y crítica, op. cit., p. 193.
113
Ibidem, p. 193.
114
Ibidem, p. 193.
115
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Da “invasão” da América aos sistemas penais de hoje: o discurso da
“inferioridade” latino-americana. In WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Fundamentos de história do direito. 3.
ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 227-228.
37
1488, à costa africana, sob o comando de Bartolomeu Dias. No entanto, foi somente a partir
da experiência de Colombo que efetivamente a Europa apoderou-se de uma nova universali-
dade, tornando-se o centro do mundo e passando a impor seu “ser” a “outro”116.
116
Ibidem, p. 227.
117
Ibidem, p. 228.
118
A expressão é originalmente empregada pelo jurista Eugênio Raúl Zaffaroni, na obra Em busca das penas
perdidas, em torno da perda da legitimidade do sistema penal. Para tanto, o termo se refere ao âmbito da Améri-
ca Latina, em seu estudo sobre o sistema penal. Em ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas.
Rio de Janeiro: Revan, 1991.
119
Ibidem, p. 118.
38
nosso estágio atual é a revolução tecnocientífica. Portanto, nosso processo histórico até então
poderia se resumir nestas três etapas: a revolução mercantil, a revolução industrial e, por fim,
a atual revolução tecnocientífica.
Com base nesta tripartição, Zaffaroni refere que tanto o colonialismo como o neocolo-
nialismo foram momentos distintos de genocídio e etnocídio, contudo, igualmente nefastos.
Nesse sentido, a destruição de culturas originárias e a morte dos habitantes eram fatos que
impressionavam os próprios colonizadores, e a escravidão através do transporte de africanos
constituiriam as características evidentes do colonialismo. O poder colonialista, portanto,
exerceu-se sob a forma de genocídio, eliminando a maior parte da população americana, des-
baratando suas organizações sociais e reduzindo os sobreviventes à condição de servidão e
escravidão. A exigência de mão-de-obra extrativa determinou o tráfico escravista africano,
levado a cabo por comerciantes ingleses, franceses e holandeses, que compravam prisioneiros
e inimigos, provocando, deste modo, a destruição das culturas pré-coloniais dos dois conti-
nentes120.
120
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 34-35.
121
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas, op. cit., p. 119.
122
Não é demais ressaltar dentro deste aspecto o processo ilimitado da expansão econômica, que tem causado
uma constante degradação ambiental, fato este que influi muitas vezes para a execração de minorias étnicas que
dependem do ecossistema, naturalmente constituído para sua sobrevivência cultural e biológica.
39
Curiosamente, estes textos eram lidos sem qualquer intérprete, e muitas vezes os pró-
prios conquistadores dispensavam tal procedimento por questão de simplificação 126. Enquanto
os espanhóis falavam, os indígenas apenas escutavam, sendo impelidos a suportar as conse-
qüências de uma suposta desobediência decorrente de sua incompreensão da linguagem do
Outro. Ademais, o poder espiritual e o poder do homem conquistador são confundidos pela
conotação de que Deus está ao lado dos europeus e os indígenas, como inferiores, terão de
acatar as medidas.
123
Maiores detalhes sobre este instrumento jurídico do período da conquista constam na obra de PEREÑA, Lu-
ciano. La Idea de Justicia en la Conquista de América. Madrid: Mapfre, 1992.
124
CARVALHO, Lucas Borges de. Direito e barbárie na conquista da América indígena. Disponível em:
<http://www.buscalegis.ufsc.br/arquivos/direito%20e%20barb%E1rie.pdf>. Acesso em: 07 jun. 2011, p. 59.
125
O conteúdo do documento era este: ‘Se não o fizerdes, ou se demorardes maliciosamente para tomar uma
decisão, vos garanto que, com a ajuda de Deus, invadir-vos-ei poderosamente e far-vos-ei a guerra de todos os
lados e de todos os modos que puder, e sujeitar-vos-ei ao jugo e à obediência de Suas Altezas. Capturarei a vós,
vossas mulheres e filhos, e reduzir-vos-ei à escravidão. Escravos, vender-vos-ei e disporei de vós segundo as
ordens de Suas Altezas. Tomarei vossos bens e far-vos-ei todo o mal, todo o dano que puder, como convém a
vassalos que não obedecem a seu senhor, não querem recebê-lo, resistem a ele e o contradizem’. Citado por
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América – a questão do Outro. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 213.
126
Ibidem, p. 214.
40
Este processo de conquista irá dar origem a um sistema de dominação colonial medi-
ante a idéia de raça, decorrente de um padrão de poder denominado colonialidade. Esta colo-
nialidade se fundamenta na imposição de uma classificação racial/étnica da população do
mundo como pedra angular de dito padrão de poder, e opera em cada um dos planos, âmbitos
e dimensões, materiais e subjetivas, da existência social cotidiana127. E o principal núcleo da
colonialidade/modernidade eurocentrada foi uma concepção de humanidade segundo a qual a
população do mundo se diferenciava em inferiores e superiores, irracionais e racionais, em
primitivos e civilizados128, no que a idéia de raça teve um papel central.
Para Aníbal Quijano129, a concepção de raça foi o primeiro sistema de dominação so-
cial, a primeira categoria social da modernidade. Tratava-se de um produto mental e social
específico do processo de destruição de um mundo histórico e do estabelecimento de uma
nova ordem, de um novo padrão de poder, e emergiu como um modo de naturalização das
novas relações de poder impostas aos sobreviventes deste mundo em destruição: a idéia de
que os dominados são o que são, não como vítimas de um conflito de poder, mas sim enquan-
to inferiores em sua natureza material e, por isso, em sua capacidade de produção histórico-
cultural. Essa idéia de raça foi tão profunda e continuamente imposta nos séculos seguintes e
sobre o conjunto da espécie que, para muitos, ficou associada não só à materialidade das rela-
ções sociais, mas às próprias pessoas130.
127
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y classificación social. Disponível em:
<http://cisoupr.net/documents/jwsr-v6n2-quijano.pdf>. Acesso em: 28 abr. 2011, p. 342.
128
Ibidem, p. 344.
129
QUIJANO, Aníbal. Dom Quixote e os moinhos de vento na América Latina. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ea/v19n55/01.pdf>. Acesso em: 04 mai. 2011, p. 17.
130
Ibidem, p. 17.
131
Ibidem, p. 17.
41
lização (ashantis, bacongos, congos, iorubas, zulus, etc) 132. E embora a destruição daquelas
mesmas sociedades tenha iniciado mais tarde e não tenha alcançado a amplitude e profundi-
dade que alcançou na América, para esses povos o desenraizamento violento e traumático, a
experiência e a violência da racialização e da escravidão implicaram em uma não menos radi-
cal destruição da subjetividade prévia, da experiência prévia de sociedade, do universo, da
experiência prévia das redes de relações primárias e societárias133. Para Quijano, em termos
individuais e de grupos específicos, muito provavelmente a experiência do deresenraizamen-
to, da racialização e da escravidão pôde ser, talvez, inclusive mais perversa e atroz do que
para os sobreviventes das comunidades indígenas134.
Porém, a “cor”, como signo emblemático de raça não será imposta sobre eles senão
desde bem avançado o século XVIII e na área colonial britânico-americana. Nesta se produz e
se estabelece a idéia de “branco”, porque ali a principal população racializada e colonialmente
integrada, isto é, dominada, discriminada e explorada dentro da sociedade colonial britânico-
132
Ibidem, p. 17.
133
Ibidem, p. 17.
134
Ibidem, p. 18.
135
Ibidem, p. 18.
136
Em síntese, tratava-se de uma justificativa oficial para o implemento da escravidão. Os indígenas eram consi-
derados livres, mas vassalos do rei, e deveriam pagar tributos. O indígena era encomendado – como escravo – e
não pagava este tributo diretamente ao seu senhor (que era o rei), mas ao encomendero, pessoa que usufruía
deste benefício, qual seja, o trabalho indígena, como recompensa dos serviços prestados à Coroa. E segundo a
idéia do colonizador, nestes moldes a encomenda não era algo que implicava em propriedade sobre os índios
(que continuariam sendo vassalos livres) nem sobre suas terras. Implicava apenas o usufruto de seu trabalho,
obtido por produto de suas terras ou das propriedades dos encomendeiros. Até 1536, os índios eram outorgados
em encomendas junto com sua descendência, pelo prazo de duas vidas: a do encomendero e a do herdeiro imedi-
ato; a partir de 1629, o regime estendeu-se por três vidas, e em 1704 chegou a quatro vidas nas localidades onde
as Leis Novas, sancionadas sob a pressão de Bartolomé de Las Casas, não foram adotadas. Nesse sentido, vide
CARVALHO, Lucas Borges de., op. cit., p. 60; e LAS CASAS, Bartolomé de. O Paraíso destruído. Porto Ale-
gre: L&PM, 1984, p. 15.
137
QUIJANO, Aníbal. Dom Quixote e os moinhos de vento na América Latina, op. cit., p. 18.
42
americana, eram os “negros”138. Por outro lado, os “índios” dessa região não faziam parte
dessa sociedade e não foram racializados e colonizados ali senão mais tarde. Como se sabe,
durante o século XIX, após o maciço extermínio de sua população, da destruição de suas soci-
edades e da conquista de seus territórios, os sobreviventes indígenas serão encurralados em
“reservas” dentro do novo país independente, os Estados Unidos, como um setor colonizado,
racializado e segregado139.
Dessa forma, o primeiro sistema de classificação social básica e universal dos indiví-
duos da espécie fazia sua entrada na história humana. Trata-se da primeira classificação glo-
bal da história. Produzida na América, foi imposta ao conjunto da população mundial no
mesmo curso da expansão do colonialismo europeu sobre o resto do mundo. A partir daí, a
idéia de raça, o produto mental original e específico da conquista e colonização da América,
foi imposta como o critério e o mecanismo social fundamental de classificação social básica e
universal de todos os membros de nossa espécie141.
138
Ibidem, p. 18.
139
Ibidem, p. 18.
140
Ibidem, p. 18.
141
Ibidem, p. 18.
142
Ibidem, p. 19.
43
A classificação racial, visto que se fundava num produto mental nu, sem nada em co-
mum com nada no universo material, não seria sequer imaginável fora da violência da domi-
nação colonial. O colonialismo é uma experiência muito antiga. No entanto, somente com a
conquista e a colonização ibero-cristã das sociedades e populações da América, na transposi-
ção do século XV ao XVI, foi produzido o construto mental de “raça”. Isso dá conta de que
não se tratava de qualquer colonialismo, mas de um muito particular e específico: ocorria no
contexto da vitória militar, política e religioso-cultural dos cristãos da contra-reforma sobre os
muçulmanos e judeus do sul da Ibéria e da Europa. E foi esse contexto que se produziu a idéia
de “raça”143.
Nesse sentido, pode-se afirmar que o projeto colonialista originário (além do neocolo-
nialismo) marcou-se pela ideologia da inferioridade, o que justificava um processo de enco-
brimento do Outro – no caso, o indígena. Isto se relaciona com o fenômeno do etnocídio na
medida em que este, para sua consecução, parte da premissa de que a cultura dominada é infe-
rior, levando por conseqüência a uma inferioridade dos próprios seres humanos que preser-
vam esta cultura. O etnocídio não se concretiza sem a aceitação da premissa de que os outros
devem ser “civilizados”, incorporados ao projeto totalizante do colonizador, mesmo que para
isso custe a própria vida ou integridade física do colonizado.
Nesse sentido, a ideologia da inferioridade pode ser detectada, por exemplo, nos dis-
cursos de Ginés de Sepúlveda148:
Es por ello que los leones son domados y sujetos al imperio del hombre. Por
esta razón o hombre manda a la mujer, el adulto al niño, el padre al hijo: es decir,
que los más poderosos y perfectos llevan a los más débiles e imperfectos. Esta
misma situación se comprueba entre los hombres; puesto que hay quienes por natu-
raleza son señores de otros que por naturaleza son siervos. Aquéllos que aventajan a
los otros por la prudencia y por la razón, aun cuando no lo hagan por la fuerza físi-
ca, son, por su misma naturaleza, los señores; por el contrario, los perezosos, los
espíritus lentos, aunque tengan fuerzas físicas para cumplir todas las tareas necesa-
rias, son, por naturaleza, siervos. Y es justo y útil que sean siervos, pues nosotros lo
vemos establecido por la misma ley divina. Ya que está escrito en el libro de los
proverbios: ‘El necio servirá al sabio’. Así son las naciones bárbaras e inhumanas,
extrañas a la vida civil y a las costumbres pacíficas. Y siempre será justo y confor-
me al derecho natural que estas gentes estén sometidas al império de príncipes y de
naciones más civilizadas y humanas, de manera que, gracias a la virtud de estos úl-
timos y a la prudência de sus leyes, abandonen la barbárie y se conformem a una
vida más humana y al culto de la virtud. Y si rechazan este império, se les puede
imponer por medio de las armas y esta guerra será justa así como lo declara el dere-
cho natural...
Em conclusión: es justo, normal y conforme a la ley natural que los hombres
probos, inteligentes, virtuosos y humanos dominen a todos los que no tienen estas
virtudes.
146
Ibidem, p. 24.
147
PAJUELO TEVES, Ramón. El lugar de la utopia. Aportes de Anibal Quijano sobre cultura y poder. Dispo-
nível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/cultura/pajuelo.doc>. Acesso em: 28 abr. 2011, p. 230.
148
ANGEL, Fabio Zuluaga. Oro, evangelio y reino – memoria de un etnocidio. Medellín: Prosaico, 1992, p. 23-
24.
45
Las Casas, por seu turno, afirmou que Sepúlveda não tinha compreendido o filósofo e
a sua teoria da escravidão. Referiu que para Aristóteles haveria três tipos de bárbaros: os que
tinham comportamento e opiniões estranhas, mas possuíam uma maneira decente de viver e
capacidade para governar a si próprios; os que não tinham escrita; e os que eram rudes, primi-
tivos, viviam sem leis e se igualavam às feras. Somente o terceiro tipo de bárbaros eram es-
cravos por natureza, e todo o esforço de Las Casas foi demonstrar que os índios não se incluí-
am entre estes. Sua defesa dos indígenas destacava os relatos de aspectos dos costumes destes
povos, como sua beleza, bom governo, economia doméstica, bons sentimentos e religiosidade,
que era maior que a dos gregos de romanos. De qualquer forma, embora os juízes nunca te-
nham manifestado seus pareceres, Las Casas defendeu a humanidade dos indígenas durante
toda a sua vida, ao passo que a guerra justa, após uma breve interrupção, continuou no conti-
nente150.
149
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. A Repersonalização do Direito Civil em uma sociedade de indiví-
duos: o exemplo da questão indígena no Brasil. In: José Luis Bolzan de Morais; Lenio Luiz Streck. (Org.). Cons-
tituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica: programa de pós-graduação em Direito da UNISINOS: Mestrado e
Doutorado: Anuário 2007. 1 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, v. 4, p. 253-270.
150
Ibidem, p. 260.
151
DUSSEL, Enrique. 1492 – el encobrimiento del Otro – hacia el origen del “mito de la modernidad”. La Paz:
Plural Editores, 1994, p. 70.
46
o inocente (o Outro, o indígena), declarando-o causa culpável de sua própria vitimação, e atri-
buindo-se ao sujeito moderno plena inocência com respeito ao ato vitimário. Por último, o
sofrimento do conquistado (colonizado, subdesenvolvido) será interpretado como o sacrifício
ou o custo necessário da modernização, o que justifica o extermínio da cultura indígena.
Para Dussel, a modernidade nasce efetivamente em 1492, quando a Europa pode con-
frontar-se com o Outro (o indígena) e controlá-lo, vencê-lo, violentá-lo; quando pode definir-
se como “ego” conquistador, colonizador. Desta forma, este Outro não foi descoberto, mas foi
encoberto. O ano de 1492 será o momento em que nasce a modernidade e um processo de
encobrimento do não europeu152. Os habitantes das novas terras não aparecem como Outros,
mas como o mesmo a ser conquistado, colonizado, modernizado, civilizado; nisto se caracte-
riza o etnocídio. Deve ser civilizado pelo ser europeu, porém encoberto em sua alteridade153.
Uma vez reconhecidos os territórios, se passava ao controle dos corpos, das pessoas:
era necessário pacificá-las, e o conquistador será o primeiro homem moderno a impor sua
individualidade violenta a outras pessoas154. A conquista é um processo militar, prático, vio-
lento, que inclui o Outro como “o mesmo”, em um projeto totalizante. O Outro, em sua dis-
tinção, é negado como Outro e é obrigado, subsumido, alienado a incorporar-se à totalidade
dominadora155. O colonizado é negado em sua dignidade: o índio como o “mesmo”, como
instrumento, oprimido156. A colonização da vida cotidiana do índio foi o primeiro processo
europeu de modernização, uma espécie de domesticação, uma colonização do modo como os
indígenas viviam e reproduziam sua vida humana157.
Nesta linha argumentativa, Dussel trata da questão relativa à conquista espiritual, ca-
racterística da conquista da América e marca do etnocídio indígena. Por conquista espiritual
Dussel define o domínio que os europeus exerceram sobre o imaginário do nativo, conquista-
do antes pela violência das armas158. Aos indígenas são negados seus próprios direitos, sua
152
Ibidem, p. 8.
153
Ibidem, p. 37.
154
Ibidem, p. 40.
155
Ibidem, p. 41.
156
Ibidem, p. 47.
157
Ibidem, p. 50.
158
Ibidem, p. 55.
47
própria civilização, sua cultura, seu mundo e seus deuses em nome de um deus estrangeiro e
de uma razão moderna que propiciou aos conquistadores a legitimidade para conquistar. Tra-
ta-se de um processo de racionalização próprio da modernidade: elabora um mito de bondade
(mito civilizador) com que se justifica a violência e se declara inocente o assassinato do Ou-
tro159.
Um ano depois de 1492, Fernando de Aragão solicitou ante o Papa Alexandre VI uma
bula pela qual se concedia o domínio sobre as ilhas descobertas. A práxis conquistadora resul-
tava fundada em um desígnio divino. Com efeito, Deus era o fundamento da conquista, sendo
a última justificação da ação da modernidade160. Depois de descoberto o espaço (como geo-
grafia) e conquistado os corpos mediante a força, era necessário controlar o imaginário desde
uma nova compreensão religiosa do mundo da vida. Desta maneira podia fechar-se o círculo e
restar completamente incorporado o indígena ao novo sistema estabelecido: a modernidade
mercantil-capitalista nascente161.
A chegada dos doze primeiros missionários franciscanos ao México em 1524 deu iní-
cio formal ao que Dussel chama de “conquista espiritual”. Este processo durará aproximada-
mente até 1551, data do primeiro Concílio provincial em Lima, ou 1568, data da Junta Magna
convocada por Felipe II. Durante trinta ou quarenta anos se pregará a doutrina cristã nas regi-
ões de civilização urbana de todo o continente (mais de 50% da população total), desde o nor-
te do império azteca no México, até o sul do império inca no Chile 164. A conquista espiritual
159
Ibidem, p. 56.
160
Ibidem, p. 56.
161
Ibidem, p. 57.
162
Ibidem, p. 57.
163
Ibidem, p. 57.
164
Ibidem, p. 58-59.
48
165
Ibidem, p. 61.
166
LOZANO, Bernardo Rengifo. Naturaleza y etnocidio: relaciones de saber e poder en la conquista de Améri-
ca. Bogotá: Tercer Mundo Editores, 2007, p. 68.
167
DUSSEL, Enrique. 1492 – el encobrimiento del Otro – hacia el origen del “mito de la modernidad”, op. cit.,
p. 69.
168
Ibidem, p. 69.
169
Ibidem, p. 70.
170
NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. São Paulo: Escala, 2007, p. 59.
49
sobre o significado do genocídio como prática de violência e efeito de poder, na qual a relação
entre modernidade e colonialidade jogam um papel central171.
Neste trabalho desenvolvido, a autora ressalta que o problema do genocídio está laten-
te na representação mesma, e é dinamizado por experiências históricas de hierarquização so-
cial e exclusão. O conceito de genocídio cultural (ou etnocídio) não se refere simplesmente a
assassinatos em massa, senão, sobretudo, ao ato de eliminar a existência de um povo e silen-
ciar sua interpretação do mundo. Isto é obtido mediante a supressão da cadeia simbólica de
transmissão de suas genealogias. A dimensão simbólica da violência tem efeitos a longo pra-
zo, porque modela condutas e maneiras de ver a realidade e conceber a diferença 172. O geno-
cídio envolve diferentes estratégias físicas, como o massacre, a mutilação, a privação dos
meios de vida, a invasão territorial e a escravidão; estratégias biológicas que incluem a sepa-
ração de famílias, a esterilização, o deslocamento a marchas forçadas, a exposição a enfermi-
dades, ao assassinato de crianças e mulheres e, finalmente, estratégias culturais, como a dila-
pidação do patrimônio histórico, da cadeia de liderança e autoridade, a denegação de direitos
legais, a proibição de línguas, a opressão e a desmoralização173.
171
ESPINOSA, Mónica. Esse indiscreto asunto de la violencia: modernidad, colonialidad y genocídio en Co-
lombia. Disponível em:
<http://uniandes.academia.edu/MonicaEspinosaArango/Papers/89243/Ese_indiscreto_asunto_de_la_violencia_m
odernidad_colonialidad_y_genocidio_en_Colombia>. Acesso em: 04 mai. 2011.
172
Ibidem, p. 274.
173
Ibidem, p. 274.
174
Ibidem, p. 274.
50
Com base nestas exposições, procurou-se expor como um dos fatos mais marcantes da
história mundial – a conquista da América – trouxe consigo a prática do etnocídio em seus
fundamentos. Esta origem da modernidade marca significativamente a história, demonstrando
ainda como o etnocídio era aplicado enquanto forma de violência e de política. Suprimir a
cadeia de transmissão dos valores sociais e espirituais – esta foi a face do etnocídio praticado
na conquista da América.
Nesse sentido, após abordar sobre as questões relativas à cultura e identidade cultural
para fins de esclarecimento sobre o que o etnocídio visa violar, perpassando pelo exemplo
prático-histórico de efetivação desta prática – a conquista da América e todo seu projeto de
colonialidade – passar-se-á a tratar da identidade cultural como elemento da corporalidade
humana, ou seja, como a identidade cultural de um grupo humano se constitui como parte
integrante de seu corpo e razão de sua existência.
175
Ibidem, p. 275.
176
Ibidem, p. 275.
177
CABEZAS LÓPEZ, Joan Manuel. Racismo y pensamiento moderno: el ejemplo de la invención de los cami-
tas y de los subsaharianos. Disponível em: <http://www.bibgirona.net/salt/activitats/planes/razisme.pdf>. Aces-
so em: 28 abr. 2011, p. 1.
51
Este tópico visa demonstrar como a identidade cultural, este sentimento de pertenci-
mento, se vincula à realidade corporal humana. Franz Hinkelammert178, em seu trabalho sobre
teologia, leciona que a corporeidade é um elemento chave para uma teologia da vida. Com
base neste raciocínio do autor, podemos estender a corporeidade como um elemento impor-
tante para a construção de uma cultura, de uma identidade cultural.
Como exemplo, pode-se referir a religião. Ela utiliza o corpo e exprime-se de modo
corporal. Ainda que a religião seja essencialmente um conjunto simbólico181, ela busca conta-
to com o transcendente através do corpo. O corpo é submetido ao jogo dos símbolos, e é usa-
do em virtude das suas propriedades materiais, mas recebe uma força puramente simbólica182.
178
HINKELAMMERT, Franz. As armas ideológicas da morte. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 7.
179
Ibidem, p. 7.
180
Ibidem, p. 337.
181
Vide item 1.1 deste capítulo, sobre a cultura como sistema simbólico.
182
Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (Org.). Corporeidade e Teologia. São Paulo: Paulinas, 2005, p.
9.
52
A oração não dá a vitória na guerra pela força material das palavras ou gestos, mas pelo valor
simbólico que lhe é atribuído. Na religião, por exemplo, o corpo não é movido de acordo com
os dinamismos que produzem resultados materiais na vida diária. Além do seu valor para pro-
duzir efeitos materiais, o corpo humano fica carregado de sentidos simbólicos. O corpo serve
para constituir símbolos183. O seu valor simbólico é tal que o corpo pode ser marcado por
meio de jejuns, privações de movimentos, de comidas e bebidas, longas cerimônias litúrgicas,
romarias, dentre outros.
Os preceitos e proibições relativas ao corpo não têm relação com o dinamismo bioló-
gico normal, nem sobre o desenvolvimento das forças corporais. São atividades que possuem
um sentido simbólico. Na religião, o corpo está subordinado ao simbolismo e serve para criar
símbolos religiosos184. Ainda, as religiões revestem o corpo de diversos atributos que lhe con-
ferem um valor simbólico: roupas, pinturas, gestos, expressões verbais e corporais, danças,
etc. O corpo fica, de certo modo, estilizado, transformado em objeto simbólico. O corpo é
chamado a expressar realidades que não são corporais. O corpo é chamado a expressar uma
realidade mental, e não material185.
A vida é uma experiência que se tem com e no corpo186. Nela, o nascimento, cresci-
mento, funcionamento do organismo (respiração, digestão, reprodução, necessidade de ali-
mentação, sono, contato físico, contato íntimo, doença, morte) leva a pensar o corpo como
constante a inquestionável, mas as formas como essas necessidades e funções físicas são en-
tendidas, tratadas e praticadas contêm diversidades, podendo ser entendidas como habitus187.
Este habitus corporal designa disposições, ou seja, maneiras de fazer, duradouras e transferí-
veis, vinculadas a uma determinada classe de condições de existência, que atuam como fun-
damento para produção e ordenamento de práticas e representações, e conformam uma di-
mensão fundamental de sentido e orientação social, bem como uma manifestação prática de
experiência e da expressão do valor da própria posição social188.
O desafio seria buscar entender como o corpo foi construído, representado e vivido.
Principalmente, buscar focalizar o corpo enquanto processo, destacando-se como suas experi-
183
Ibidem, p. 9.
184
Ibidem, p. 9.
185
Ibidem, p. 11.
186
Ibidem, p. 67.
187
Ibidem, p. 67
188
Ibidem, p. 67
53
Com efeito, não se pode isolar o corpo da cultura. Sem abstrair fatos como nascimen-
to, crescimento, alimentação, reprodução, doença, dor, emoções, movimentos, trabalho,
aprendizagem, vestuário, morte, elementos que compõem a vida e seu ordenamento social,
pode-se perceber a construção do corpo como sustentáculo de princípios éticos (contenção,
abstinência, moderação, disciplina, persistência), sobre os quais foram erguidos princípios
estéticos (beleza, saúde, limpeza, moral, etc)190.
Não há nada, portanto, fora do corpo. Mesmo os processos dito espirituais são proces-
sos a partir do corpo191. Ele é relação, comportamento, ação, reação e decisão192. O ser huma-
no é um corpo vivo, uma realidade bio-psico-energético-cultural, dotada de um sistema per-
ceptivo, cognitivo, afetivo, valorativo, informacional e espiritual193.
Para tanto, a materialidade do corpo não pode ser dissociada de um substrato sociocul-
tural. O corpo físico é a base de nossos sentidos; ele fala a respeito do nosso estar no mundo,
em uma realidade dupla e dialética: ao mesmo tempo que é natural, o corpo também é simbó-
lico. Nesse ponto, pode-se dizer que as diferentes crenças e sentimentos que constituem o
fundamento da vida social são aplicados ao corpo. Temos, então, no corpo, a junção e sobre-
posição do mundo das representações ao da natureza e da materialidade. Ambos coexistem de
forma simultânea e separada. Por isso não podemos apagar do corpo os comportamentos e as
motivações orgânicas que se fazem presentes em todos os seres humanos, em qualquer tempo
e lugar. A fome, o sono, a fadiga do corpo, a reprodução são motivações biológicas às quais a
cultura atribui uma significação especial e diferente194.
É a cultura que, à sua maneira, inibirá ou exaltará esses impulsos, selecionando, dentre
todos, quais serão os inibidos, quais serão os exaltados e, ainda, quais serão os considerados
sem importância e que, portanto, provavelmente permanecerão desconhecidos. Assim, a cul-
tura dita as normas em relação ao corpo, as quais o indivíduo acata195. A experiência corporal
189
Ibidem, p. 67.
190
Ibidem, p. 68.
191
Ibidem, p. 108.
192
Ibidem, p. 116.
193
Ibidem, p. 123.
194
Ibidem, p. 133.
195
Ibidem, p. 133.
54
Por derradeiro, cabe mencionarmos que há uma distinção importante entre corpo e
corporalidade, ou corporeidade. Aquele aponta a realidade objetiva da nossa condição corpó-
rea; realidade visível, tocável, mutável e, talvez, por isso, vítima de muitos equívocos e de
muitas distorções por parte das culturas, das sociedades e das religiões. Realidade dimensio-
nal que não pode ser negada, tampouco superestimada, pelo simples fato de ser uma dimensão
real e indispensável para a vida, na sua perspectiva ontológica e também no horizonte de sua
construção histórico-relacional. Não se pode deixar de afirmar que todas as experiências pes-
soais se realizam e se explicitam no corpo. Por isso o modo como o percebemos ou como o
tratamos torna-se fundamental para a compreensão e nomeação do ser197.
Nesse sentido, pode-se constatar que a corporeidade envolve mais do que a individua-
lidade corporal da pessoa. Ela abrange, além disso, sua relacionalidade com os seres humanos
e, por conseguinte, uma estreita relação que passa pelo elemento da cultura. A identidade cul-
tural será a ponte, o elemento da corporalidade humana que vincula esta corporalidade e que
necessita do sentimento de pertencimento, para o desenvolvimento da vida humana em comu-
nidade. Com efeito, corporeidade e identidade cultural estão estreitamente vinculados.
No entanto, para elucidar ainda mais esta afirmação, faz-se necessário realçar a relação
entre a identidade e a corporeidade.
196
Ibidem, p. 134.
197
Ibidem, p. 180.
198
Ibidem, p. 181.
55
Helena Marieta Rath Kolyniak199 elabora um estudo em que procura mostrar a corpo-
reidade sob a perspectiva de um processo de construção social e histórica do corpo humano, a
partir de relações recíprocas de determinação com a identidade.
199
KOLYNIAK, Helena Marieta Rath. Uma abordagem psicossocial de corporeidade e identidade. Disponível
em: <ftp://www.usjt.br/pub/revint/337_43.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2011.
200
Ibidem, p. 338.
201
Ibidem, p. 338.
202
KOLYNIAK, Helena M. Rath. Identidade e corporeidade: prolegômenos para uma abordagem psicossocial.
2002. 180f. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da
PUCSP, São Paulo, 2002, p. 4.
203
KOLYNIAK, Helena Marieta Rath. Uma abordagem psicossocial de corporeidade e identidade, op. cit., p.
338.
204
Ibidem, p. 339.
56
A autora ainda refere que se admitirmos que cada vida humana é uma história vivida
por múltiplos personagens “encarnados” por um mesmo ator social, tendo por base a materia-
lidade da corporeidade, inserida nos universos simbólicos por onde transita, a identidade das
205
Ibidem, p. 339.
206
Ibidem, p. 339.
207
Ibidem, p. 339.
208
Ibidem, p. 339.
57
pessoas não seria um outro personagem representado, e sim a articulação destes persona-
gens209.
209
Ibidem, p. 339.
210
Ibidem, p. 340.
211
Ibidem, p. 340.
212
Ibidem, p. 340.
213
Ibidem, p. 340.
58
Por outro lado, a autora refere que a antropologia social compreende que qualquer
realização humana tem uma unidade psicológica, sociológica e fisiológica, que se encarna nas
experiências de qualquer indivíduo membro de uma determinada sociedade, considerando
assim os gestos corporais como um profícuo objeto de estudo para a compreensão das socie-
dades; ou seja, podemos acreditar que cada indivíduo encarna em seu corpo, por suas experi-
ências sociais, ao longo do tempo, os gestos da cultura dos grupos sociais com os quais con-
vive215.
Nesse sentido estão ligadas as práticas corporais, que definem identidades. Identidade
cultural e corpo estão, desta forma, vinculados; as práticas corporais representam e refletem as
identidades culturais específicas. Patrício Pereira Alves de Souza216 ressalta que as práticas
corporais seriam as atividades realizadas a partir do corpo que acabam por comunicar mensa-
gens ou transmitir informações, conhecimentos ou memórias.
Grande parte das atividades humanas seriam organizadas de acordo com esta forma de
comunicação. Assim, as cerimônias, convenções e técnicas do corpo, guardadas suas devidas
especificidades de conceituação, formariam o conjunto das práticas corporais. Nossas gestua-
lidades, posturas e hábitos seriam, dessa maneira, a conjunção de uma série de aspectos de
nossas experiências sociais do mundo, que se constituindo em nossa memória cognitiva nos
liga como sujeitos pertencentes a um determinado contexto social e espaço-temporal217.
214
Ibidem, p. 340.
215
Ibidem, p. 340.
216
SOUZA, Patrício Pereira Alves de. Ensaiando a corporeidade: corpo e espaço como fundamentos da identi-
dade. Disponível em: <http://periodicos.ufes.br/geografares/article/viewFile/149/75>. Acesso em: 04 mai. 2011,
p. 37.
217
Ibidem, p. 38.
59
218
Ibidem, p. 38.
219
Ibidem, p. 39.
220
Ibidem, p. 40.
221
Ibidem, p. 40.
60
destas terras pelos grupos que primeiramente a lavraram e nelas construíram seus referenciais
sócio-culturais de existência222.
Desde a década de 70, muitos etnólogos têm ressaltado a importância, entre grupos
indígenas amazônicos, de muitas práticas que têm por objeto de atuação o corpo. Trata-se de
uma idéia de que nessas sociedades o corpo é culturalmente construído e ocupa uma posição
organizadora central, constituindo uma matriz de significados e objeto de significado soci-
al224. Laura Pérez Gil menciona que a construção e o tratamento do corpo tem sido um tema
fundamental de trabalhos significativos. No caso dos Yawanawa e dos Yaminawa, buscar-se-á
refletir sobre a relação da corporalidade com a ética e a identidade grupal, a fim de demons-
trar como a corporeidade se relaciona umbilicalmente com a identidade.
222
Ibidem, p. 40.
223
Ibidem, p. 41.
224
GIL, Laura Pérez. Corporalidade, ética e identidade em dois grupos pano. Disponível em:
<http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/15240>. Acesso em: 09 jun. 2011, p. 25.
225
Ibidem, p. 26.
61
tão ligados para a toda a vida por laços de identidade corporal. A idéia desse conjunto de
parentes próximos, definido pelo compartilhamento de substâncias corporais, se expressa em
Yawanawa através do conceito imiki, onde imi significa “sangue”, e ki seria um sufixo que
indica que o afirmado pelo falante é verdadeiro226.
Relacionado com este conceito existe outro denominado yura, que se encontra entre os
Yaminawa, e que serve igualmente para se referir às relações de parentesco. Sinteticamente, a
palavra yura comporta três possíveis traduções: “pessoa”, enquanto condição de humanidade
e que adquire significado se oposto a outro tipo de seres diferentes, por exemplo, animais ou
yuxin (espíritos, almas); “parente”, enquanto um conjunto de pessoas com as quais se reco-
nhece uma relação de parentesco, seja dentro ou fora do próprio grupo; e por último, pode
denotar a palavra “corpo”227.
Laura Pérez Gil ressalta que as implicações desta acepção de yura adquirem maior
relevância e significação se postas em relação com a terceira acepção, que significa “corpo”.
Tanto entre os Yaminawa quanto entre os Yawanawa, yura significa “corpo”, mas aludindo
sempre a uma pessoa viva, isto é, ao corpo enquanto ocupado e animado por componentes
espirituais que conformam a pessoa. Por sua vez, o corpo de uma pessoa morta é designado
em Yawanawa com a palavra shaka, que significa “casca”, e em Yaminawa com o termo ka-
ya228.
Para a autora, esta distinção apontaria para o fato de que o corpo, yura, é o locus de
interação, durante a vida, mas também é a sede da sociabilidade do indivíduo, o ponto a partir
do qual irradiam os elos de relação que o unem aos outros membros do grupo ao qual perten-
ce. Assim, o conceito de yura condensa o princípio do compartilhamento de substâncias cor-
porais entre parentes próximos, e articula a individualidade com a identidade grupal. Ainda,
utilizar a idéia de corpo para se referir à coletividade não seria uma metáfora: expressaria o
fato de que o corpo individual não acaba na fronteira imposta pela pele, mas forma parte de
um corpo supra-individual. Desse aspecto do pensamento indígena derivaria o princípio de
que tudo o que acontece com o corpo de uma pessoa tem repercussões nos corpos das outras
que estão ligadas a ela, e portanto no corpo coletivo como um todo229.
A autora, a fim de ilustrar esta concepção de corpo apresentada por estes grupos indí-
genas, faz alusão a um comentário de um Yaminawa. Trata-se de uma interpretação sobre as
226
Ibidem, p. 26.
227
Ibidem, p. 27.
228
Ibidem, p. 27.
229
Ibidem, p. 27.
62
conseqüências que derivaram da morte de várias pessoas de seu grupo como resultado de
agressões xamânicas de outra tribo, os Txitonawa. Um ancião indígena (Tomás) teria contado
que na época anterior ao contato definitivo com os brancos, quando ainda andavam de forma
nômade na floresta, os Yaminawa se uniram durante um tempo aos Txitonawa, mas o conflito
estourou entre eles e os Yaminawa mataram vários Txitonawa, provocando nova separação.
De acordo com ele, a razão do conflito teria sido a morte de vários Yaminawa, fundamental-
mente mulheres cuja causa foi atribuída a ações de feitiçaria dos Txitonawa. Para Tomás, es-
sas mortes iam além da perda de seus entes queridos, pois tiveram como resultado o fato de
muitas crianças terem ficado órfãs e, portanto, não ser criadas e alimentadas adequadamente,
crescendo fracas. Isto teria como efeito o enfraquecimento geral do grupo: o debilitamento
dos corpos traz como conseqüência o debilitamento do coletivo230.
Para a autora, esse comentário diria respeito não somente à imbricação existente entre
os indivíduos que compartilham uma identidade corporal que os engloba, mas também à im-
portância que tem um cuidado adequado da criança, de seu corpo, para que se converta num
adulto com plenas capacidades. Para tanto, o intercâmbio de substâncias corporais estaria na
gênese da pessoa, e a troca contínua de outros elementos, principalmente alimentos, constitui-
ria um processo essencial para o desenvolvimento corporal dos indivíduos e da sociabilidade
em muitas sociedades indígenas. O compartilhar e a generosidade estão no âmago da sociabi-
lidade Yawanawa e Yaminawa, constituindo elemento central no conceito de pessoa231.
Nestas sociedades indígenas, são utilizadas técnicas que possuem por objeto de atua-
ção o corpo. Para educar uma criança, por exemplo, lhe transmitindo os valores éticos e con-
seguir que aquela desenvolva as capacidades que lhe permitam colocá-las em prática com
230
Ibidem, p. 28.
231
Ibidem, p. 28.
232
Ibidem, p. 29.
63
sucesso, é necessário modelar e dar uma certa feição ao seu corpo. A transformação corporal
envolve a transformação global da pessoa. Esta preparação do corpo começa logo após o nas-
cimento, já que o costume de pintar o recém-nascido com jenipapo, por exemplo, tem essa
finalidade, além da alimentação, que tem um papel fundamental no processo de fortalecimen-
to corporal, para um corpo saudável 233.
Outro exemplo característico de atuação sobre o corpo como meio de munir a pessoa
de certas capacidades valorizadas socialmente e, portanto, constituinte de uma identidade é a
iniciação xamânica. Para alcançar o poder xamânico, o iniciando deve se submeter a certos
processos que têm como resultado a transformação do corpo, e consequentemente de seu ser.
Esses processos consistem fundamentalmente na ingestão de substâncias xamânicas; na me-
morização de um acervo considerável de conhecimentos, principalmente rezas e mitos; na
superação de certas provas que envolvem dor e sofrimento; e, finalmente, no cumprimento de
uma dieta alimentar e uma abstinência sexual e social rigorosas234.
As dietas têm também como finalidade, junto com a vigília continuada, pôr o inician-
do num estado de sofrimento físico, já que é esse estado de sofrimento o que se considera
mais adequado para maximizar a capacidade de aprendizado e memorização do conjunto de
conhecimentos que o iniciando deve adquirir. Em outro contexto, encontra-se igualmente a
ideia de que a vigília melhora as capacidades de aprendizado: trata-se do costume praticado
233
Ibidem, p. 31.
234
Ibidem, p. 33.
235
Ibidem, p. 33.
236
Ibidem, p. 34.
64
Desta forma, o corpo constitui o ponto de articulação entre a ética e a identidade cultu-
ral, entre a individualidade e a coletividade. A possibilidade de mudar através da transforma-
ção do corpo remete à ideia de que a pessoa ameríndia é uma constituição processual e se
constrói paulatinamente durante o ciclo vital e na interação com a alteridade240.
237
Ibidem, p. 34.
238
Ibidem, p. 34.
239
Ibidem, p. 35.
240
Ibidem, p. 42.
65
Este tópico versa sobre a relação entre o risco social e a tendência de homogeneização,
que é característica das sociedades modernas. Nossa sociedade atravessa um espaço de expan-
são que, conjuntamente com os fatores econômicos, expande igualmente sua cultura e seu
modo de vida como o único a ser seguido.
Nesse campo de análise, pode-se referir que nossa sociedade atravessa uma escala ja-
mais vista na História, devido à possibilidade de destruição não somente da vida natural, mas
de outras comunidades humanas. Há uma potencialidade de se gerar genocídios e etnocídios,
devido à expansão mercantil e cultural que se torna homogeneizante.
...o advento da era moderna significou, entre outras coisas, o ataque consci-
ente e sistemático dos “assentados”, convertidos ao modo sedentário de vida, contra
os povos e o estilo de vida nômades, completamente alheios às preocupações territo-
riais e de fronteiras do emergente Estado Moderno.
(...)
Os nômades, que faziam pouco das preocupações territoriais dos legislado-
res e ostensivamente desrespeitavam seus zelosos esforços em traçar fronteiras, fo-
ram colocados entre os principais vilões na guerra santa travada em nome do pro-
gresso e da civilização. A “cronopolítica” moderna os situa não apenas como seres
inferiores e primitivos, “subdesenvolvidos” e necessitados de profunda reforma e es-
clarecimento, mas também como atrasados e “aquém dos tempos”, vítimas da “defa-
sagem cultural”, arrastando-se nos degraus mais baixos da escala evolutiva, e imper-
doavelmente lentos ou morbidamente relutantes em subir nela, para seguir o “padrão
universal de desenvolvimento”.
241
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 19-20.
66
Pelas descrições feitas, corroboradas ainda pelas informações vertidas nos tópicos an-
teriores, verifica-se que o homem moderno, a partir de sua concepção de mundo, veio à Amé-
rica com o propósito de aniquilar tudo que não fosse identificado consigo mesmo. As implica-
ções do processo expansionista e colonizador não trouxeram apenas o desejo de riqueza e
prestígio: trouxeram ainda uma perspectiva, por parte deste homem, de um ideal de saber, de
um ideal de constituição da sociedade, a expansão de seus valores e o extermínio da cultura
alheia, justificando-se em face da sua superioridade.
Mas para compreender todo este processo de modernização, necessário tecer alguns
aspectos basilares, retomando a noção de colonialidade do poder, já exposta no primeiro capí-
tulo deste trabalho242. De importância para este estudo, a reflexão da Aníbal Quijano defende
a tese de que a atual globalização é resultante de um processo que se iniciou com a constitui-
ção da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado, um novo padrão de poder
mundial. Um dos seus eixos fundamentais seria a idéia de raça243, construção mental que ex-
pressaria a dominação colonial que desde então permeia as dimensões do poder mundial, con-
tribuindo ainda para este processo a sua racionalidade que lhe é específica, o eurocentrismo.
Para tanto, este eixo de estudo, que compreende a constituição do capitalismo moderno a par-
tir do eurocentrismo e da noção de raça, perfaz-se em uma genealogia do processo colonial,
que se constitui em um padrão de colonialidade do poder até hoje hegemônico.
Em primeiro lugar, a idéia de raça na América foi uma forma de legitimar as relações
de dominação impostas pela conquista, como vimos. A constituição da Europa e a expansão
do colonialismo europeu até a América e outras regiões conduziram a uma interpretação eu-
rocêntrica do mundo, tendo construído a idéia de raça como um fenômeno natural das rela-
ções coloniais de dominação entre europeus e não-europeus244.
Em segundo lugar, com o capitalismo mundial que passa a emergir, a Europa não so-
mente tinha controle do mercado mundial, mas conseguiu impor seu domínio colonial em
todas as regiões do planeta, incorporando-a ao seu sistema-mundo e ao seu padrão de poder. E
no processo que levou a este resultado, os principais fatores contribuintes foram: a) a expro-
priação das populações colonizadas, em benefício do capitalismo do centro europeu (poden-
242
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. Disponível em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/lander/pt/Quijano.rtf>. Acesso em: 30 jan. 2011.
243
Como exemplo característico deste pensamento, pode-se citar os trabalhos e Nina Rodrigues, que disserta,
dentre outros aspectos, sobre uma incapacidade orgânica por parte dos aborígenes de adaptação social, sendo
considerados “raças inferiores”. Vide RODRIGUES, Nina. As raças humanas e responsabilidade penal no Bra-
sil. Rio de Janeiro: Guanabara, 1891, p. 34-35.
244
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina, op. cit., p. 04.
67
Com base nos fundamentos expostos, pode-se vincular esta reflexão com o processo
de modernização246. Os europeus imaginavam a realidade a partir deste sistema de pensamen-
to, o que os levou a pensarem-se como os modernos da humanidade, e sua história como a
mais avançada da espécie. Isto ocorreu pelo fato de que eles foram capazes de difundir e esta-
belecer esta perspectiva histórica como algo hegemônico dentro do padrão mundial de po-
der247.
245
Ibidem, p. 06.
246
Pode-se entender o processo de modernização como o salto tecnológico de racionalização e transformação do
trabalho e da organização, englobando para além disto muito mais: a mudança dos caracteres sociais e das bio-
grafias padrão, dos estilos e formas de vida, das estruturas de poder e controle, das formas políticas de opressão e
participação, das concepções de realidade e das normas cognitivas. Nesse sentido, vide BECK, Ulrich. Sociedade
do risco. São Paulo: Ed. 34, 2010, p. 23.
247
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina, op. cit., p. 06.
248
Ibidem, p. 13.
249
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 13.
250
Com relação ao processo civilizador, vide ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Vol. 2. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2008.
68
Para tanto, seguiremos com alguns aspectos característicos da sociedade do risco, bem
como a produção da homogeneização como projeto desta sociedade expansiva.
De fato, a mente moderna surge com a idéia de que o mundo pode ser transformado.
Esta modernidade refere-se à rejeição do mundo tal como ele tem sido até agora e à decisão
de transformá-lo. A forma de ser moderna possui uma mudança compulsiva, obsessiva: refu-
ta-se o que meramente é, para que seja dado lugar ao que poderia – ou deveria – ser posto em
substituição a este é. Trata-se de um mundo que possui o desejo e a determinação de constan-
temente se refazer, um permanente movimento. Diante disto, a escolha será modernizar-se ou
perecer252. Uma espécie de condução compulsiva e viciosa de projetos modernizadores, um
estado de perpétua emergência253 e de risco constante.
251
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 15.
252
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas, op. cit., p. 34.
253
Ibidem, p. 41.
254
Ibidem, p. 12.
255
Conforme os estudos de Agamben, o homo sacer era uma figura existente no direito romano, indivíduo que
poderia ser executado por qualquer pessoa; uma espécie de assassinato permitido. A impunidade de sua morte
era um dos elementos que caracterizavam o homo sacer. Vide AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer – o poder
soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 79-81.
69
sua vida é inútil. Na versão atual, Bauman salienta que o homo sacer se constitui como a prin-
cipal categoria de refugo humano estabelecido no curso da produção de domínios sobera-
nos256.
Por fim, outro elemento que caracteriza esta modernização é a necessidade de assimi-
lação. Na forma literal, assimilar significa tornar semelhante a. Nos estudos biológicos do
século XVI significava a absorção e incorporação realizados por organismos vivos258. E este
processo se reforça com o Estado moderno, que busca eliminar organizações sociais distintas,
promovendo uma espécie de uniformidade259, de homogeneidade, método característico das
medidas expansionistas da época do Brasil colonial e neocolonial, por exemplo. Substituir o
estado natural das coisas por uma ordem artificialmente planejada: eis a função do programa
político do projeto civilizador260 (ou seja, como conduzir a população de determinada forma
na produção de um saber uno e na instauração de um poder totalizante).
Com base nestas exposições anteriores, pode-se dizer que as etnias que não se consti-
tuem como corpo produtivo, quando se integram totalmente no nosso sistema global pagam
com suas terras, com a perda de suas identidades culturais e muitas vezes com suas vidas. E o
que irá contribuir para isto será a modernização, com seu efeito mais atual: a globalização.
Esta se define como “a intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam lo-
256
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. op. cit., p. 44.
257
Ibidem, p. 51.
258
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. op. cit., p. 115.
259
Ibidem, p. 117.
260
Ibidem, p. 118-119.
70
calidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos
ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa”261.
Darcy Ribeiro, abordando sobre como ocorre o processo a que denomina de transfigu-
ração étnica, assevera que os índios Agavotokueng, por exemplo, que se encontram nas nas-
centes do rio Xingu, sofrem com o efeito da bolsa de Nova York ou a paz e guerra entre Esta-
dos longínquos. Isto ocorre devido à cotação internacional da borracha, da castanha e de al-
guns artigos florestais, fato este que faz avançar ou refluir ondas de seringais e castanheiros
que vão desalojando tribos vizinhas e lançando-as sobre as aldeias desse povo264.
O modelo globalizado caracteriza-se pelo seu ataque de forma oculta: não se sabe co-
mo, onde, quando ou a quem será dirigido o próximo ato que deverá remover os “empecilhos
humanos” ou o refugo humano que já se incorporou no sistema de proletarização, mas não
consegue sobreviver a esta continuação de modelo excludente. É a extensão totalizante a to-
dos os aspectos da vida265. E neste modelo globalizado, em que o processo de modernização é
constantemente circulante, a noção de risco é de suma importância266.
261
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991, p. 69.
262
PERRAULT, Giles. O Livro Negro do Capitalismo. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 465.
263
Ibidem, p. 473.
264
RIBEIRO, Darcy. Os Índios e a Civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 295.
265
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 73.
266
Com relação à sociedade do risco, vide BECK, Ulrich. Sociedade do risco. São Paulo: Ed. 34, 2010.
71
existia a idéia de risco tal qual se conhece hoje267. Confiava-se majoritariamente na adivinha-
ção, embora esta não garantisse uma segurança plena a respeito dos acontecimentos vindou-
ros. Já no antigo comércio marítimo oriental existia a consciência do risco com os correspon-
dentes ordenamentos jurídicos. A viagem pelo mar e o comércio são casos em que o emprego
da palavra é freqüente. Os seguros marítimos seriam um primeiro exemplo da planificação do
controle do risco268.
O que subjaz a esta idéia é que há demasiadas razões para que algo possa mudar seu
curso, repentinamente, e que não se pode considerar em um cálculo racional. Esta máxima nos
conduz ao centro da controvérsia política atual sobre as conseqüências dos problemas tecno-
lógicos e ecológicos da sociedade moderna269.
O termo risco se refere a decisões nas quais se vincula o tempo, ainda que o futuro não
possa ser conhecido suficientemente. À noção de risco passa-se a se considerar um cálculo de
probabilidade, ou seja, diz respeito aos fundamentos das decisões seguras em relação a um
futuro sempre incerto. Com a ampliação das pretensões de saber, as antigas limitações cosmo-
lógicas, as essências e mistérios da natureza são substituídos por novas distinções, especifi-
camente da esfera do cálculo racional. Assim seria o que se entende por risco até nossos di-
as270. Desta forma, o passado perde seu poder de determinação sobre o presente. Entra em seu
lugar o futuro – ou seja, algo que ainda não existe – como a causa da vida e da ação no pre-
sente. Quando se fala de riscos, discutimos algo que não ocorre ainda, mas que pode surgir se
não for imediatamente alterada a direção do barco. Os riscos imaginários são o motor que faz
andar o tempo presente. Quanto mais ameaçadoras as sombras que pairam sobre o presente,
anunciando um futuro tenebroso, mais fortes serão os abalos, hoje abarcados pela dramaturgia
do risco271.
Ulrich beck ressalta que, para se compreender o advento da sociedade do risco, deve-
se entender a idéia de “modernização reflexiva”. Esta não diria respeito à reflexão, mas a uma
autoconfrontação: ao trânsito da época industrial para a época do risco se realiza anônima e
imperceptivelmente no curso da modernização autônoma conforme efeitos colaterais latentes.
Por “modernidade reflexiva” deve-se entender a autoconfrontação com os efeitos da socieda-
267
GIDDENS, Antony; BAUMAN, Zigmunt; LUHMANN, Nicklas; BECK, Ulrich; Las consecuencias perver-
sas de la modernidad – modernidad, contingencia y riesgo. Barcelona: Antropos, 1996, p. 130.
268
Ibidem, p. 132.
269
Ibidem, p. 134.
270
Ibidem, p. 135.
271
BECK, Ulrich. O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 178.
72
de do risco, efeitos que não podem ser mensurados e assimilados pelos parâmetros institucio-
nalizados da sociedade industrial272.
Para Beck, com a sociedade do risco os conflitos de distribuição de bens sociais (pos-
tos de trabalho, seguridade social, dentre outros), que explicitam a contradição fundamental
da sociedade, de caráter interclassista, são sobrepostos pelos conflitos de distribuição dos
“danos” coletivamente produzidos273.
Para o autor, a denominação “sociedade do risco” trata-se de dar uma forma conceitual
a esta relação do reflexivo. A forma conceitual da sociedade do risco designa desde um ponto
de vista teórico-social e de diagnóstico cultural um estágio da modernidade em que, com o
desenvolvimento da sociedade industrial até nossos dias, as ameaças provocadas ocupam um
lugar predominante. Ainda, pode-se dizer que as sociedades modernas passam a se confrontar
com os fundamentos e limites de seu próprio modelo, ao mesmo tempo que não modificam
suas estruturas, não refletem sobre seus efeitos e privilegiam uma política continuista desde o
ponto de vista industrial274.
Boaventura Souza Santos, com base nos estudos de Ulrich Beck, caracteriza a socie-
dade do risco como um perigo externo, fenômeno global, que escapa à percepção humana; e
os impactos provenientes das situações de risco não escolhem grupos específicos: incidem
sobre a existência humana, em escala global278. Poder-se-ia tomar como exemplo a questão da
sustentabilidade ambiental; contudo, este risco não está restrito a este aspecto: também pode
272
GIDDENS, Antony; BAUMAN, Zigmunt; LUHMANN, Nicklas; BECK, Ulrich; Las consecuencias perver-
sas de la modernidad – modernidad, contingencia y riesgo, op. cit., p. 203.
273
Ibidem, p. 203.
274
Ibidem, p. 204.
275
BECK, Ulrich. Sociedade do risco, op. cit., p. 16.
276
Ibidem, p. 26.
277
Ibidem, p. 28.
278
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Globalização e as Ciências Sociais. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2002, p.
199.
73
estar associado à desagregação de grupos sociais e práticas sociais. Eis mais um efeito do pro-
cesso de modernização mediante a extensão do processo globalizante: o agravamento do risco
social na contemporaneidade.
Esta concepção de risco social possui uma importância salutar. Tendo em vista que a
modernização agora globalizada busca se instaurar sobre todas as relações, sobre todos os
seres humanos, um dos alvos certamente será a incorporação de etnias que mantêm estruturas
sociais originárias, como os povos indígenas. Focalizando o aspecto do risco social para estes
povos, pode-se inferir que devido a sua fragilidade frente ao processo modernizante, estes
povos deverão ser assimilados (incorporados) de qualquer maneira, buscando não apenas rea-
lizar expropriações constantes, mas execrar suas culturas e inseri-los nos mecanismos de po-
der da razão governamental modernizante279 (nas camadas pobres das zonas colonizadas,
transformando-os de incluídos a excluídos). A noção de risco, neste aspecto, denota-se a partir
do fato de que estes grupos étnicos são constantemente ameaçados por este tipo de invasão
modernizante global. Sua condição diante desta conjuntura é de vulnerabilidade, tanto cultu-
ral quanto no que se refere à preservação de suas próprias vidas.
279
Pode-se exemplificar a partir dos métodos de condução da população, como evangelização, expropriação,
inclusão em atividades de trabalho, até mesmo escravo, etc.
280
TEIXEIRA, Luiz Sertório. Territorialidades no centro de Rondônia – Brasil. Disponível em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/becas/2008/deuda/serto.pdf>. Acesso em: 04 mai. 2011, p. 2.
281
Nesse sentido, vide GAUER, Ruth M. Chittó. A fundação da norma – para além da racionalidade histórica.
Porto Alegre: ediPUCRS, 2009, p. 84.
74
dispositivos são acionados para representar a nação e produzir significados282. Nesse sentido,
a língua, a raça e a história enquanto narrativas homogeneizadoras foram essenciais para a
constituição das identidades nacionais, para a construção das culturas nacionais e para a for-
mação de uma consciência nacional; essas narrativas possibilitaram a internalização da idéia
de pertencimento nacional, de nacionalidade. Assim, os Estados-Nação não teriam se lançado
à tarefa no escuro; seu esforço tinha o poderoso apoio da imposição legal da língua oficial –
forma de etnocídio – em currículos escolares e de um sistema legal unificado283.
Para construir uma forma unificada de identificação a partir das tantas diferenças exis-
tentes no interior da “nação”, homogeneizando os traços constitutivos da identidade nacional,
dentro das fronteiras do Estado somente havia lugar para uma língua, uma cultura, uma me-
mória histórica e um sentimento patriótico. Com efeito, o projeto de construção do Estado-
Nação necessitava, portanto, erradicar as diferenças e/ou os diferentes, fosse por meio da as-
similação ou por meio da eliminação/exclusão284. Nesse sentido, pode-se tomar como princi-
pais seres humanos afetados por este processo de homogeneização os grupos indígenas.
Para tanto, a fim de sustentar seus parâmetros de ordem, beleza, limpeza e progresso, a
modernidade se serviu de uma lógica binária, de um sistema de classificação e distinção cultu-
ral e identitário que visava preservar e garantir a conformidade social com esses parâmetros.
A modernidade inventou e multiplicou seus “anormais”, os sindrômicos, deficientes, os sur-
dos, os cegos, os aleijados, os rebeldes, os estranhos, os homossexuais, os miseráveis, os “ou-
tros”. Ela criou instituições com a função precípua de normatizar e normalizar os elementos
da cultura e criar, reproduzir e legitimar uma cultura, uma identidade e uma consciência naci-
onal; conseqüentemente, essas instituições se tornaram palco da produção, reprodução e con-
trole da alteridade no contexto da modernidade, a fim de purificar, afastar, limpar toda “sujei-
ra social”285.
Esta caracterização da sociedade pela purificação e limpeza é abordada por Ruth Gau-
er em seus estudos com base nos trabalhos de Mary Douglas, sobre pureza e perigo. Para a
autora, a ênfase no exame destas questões estaria vinculada à outra problemática: a questão da
282
PACHECO, Joice Oliveira. Identidade cultural e alteridade: problematizações necessárias. Disponível em:
<http://www.unisc.br/spartacus/edicoes/012007/pacheco_joice_oliveira.pdf>. Acesso em: 28 abr. 2011, p. 3.
283
Ibidem, p. 4.
284
Ibidem, p. 4.
285
Ibidem, p. 4.
75
ordem, da limpeza, sendo apropriado pensá-la para a partir de então relacionar com a desor-
dem e todo o tipo de discriminação286.
Para a autora, a sujeira seria um fato que nos repugna; passamos pensando o quanto
seria importante a limpeza, a pureza e a ausência de qualquer perigo. Tudo que nos cerca deve
estar imune à contaminação e à impureza, mesmo as mais microscópicas. Por sua vez, a or-
dem estaria vinculada à organização: todas as coisas em seus lugares e todos os lugares com
suas coisas igualmente ordenadas e purificadas287.
A obsessão pela limpeza seria configurada pela disciplina. E nada seria mais importan-
te para essa obsessão do que a busca desesperada pelo modelo que retrate limpeza, normal-
mente associada ao belo. A beleza estaria vinculada à aparência de limpeza do corpo, que
deve estar livre de impurezas, isto é, com ausência de resíduo, mesmo os mais microscópicos,
como se isso fosse possível288.
A estética, nomeadamente no século XX, ligou-se de tal modo à limpeza que a trans-
formou em obsessão. Porém, muito antes as questões de pureza, higiene e sujeira estabeleci-
am a ordem da casa, o espaço privado, assim como a ordem do espaço público. A limpeza dos
espaços públicos foi e é realizada pelas instituições vinculadas à esfera da administração e das
políticas públicas; nesse sentido, igualmente no tratamento com seres humanos. Desde a anti-
guidade o isolamento foi uma prática utilizada para evitar a contaminação. O exemplo históri-
co de exclusão mais conhecido é o dos leprosos. Na modernidade essa prática continuou, pas-
sando-se a isolar casas, hospitais, até mesmo quarteirões inteiros de cidades como forma de
proteção dos espaços não contaminados. Esses locais, vistos como perigosos, deveriam estar
bloqueados como forma de imunidade dos locais limpos. O isolamento, como medida de ex-
ceção, constituía-se na única forma de proteção289.
Para a autora, a reflexão sobre a sujeira envolve pensar na relação entre a ordem e a
desordem. Neste aspecto, nada mais eficaz do que a disciplina moderna para garantir a ordem.
As técnicas disciplinares preocupam-se não apenas com a sujeira e a doença: elas trataram e
tratam de organizar meios para disciplinar todas as formas de expressão e de comportamento,
do modo como sentamos à mesa até a mais cotidiana comunicação, buscando os ideais de
ordem. A civilização perseguiu freneticamente o controle e o domínio de toda e qualquer for-
ma de perigo. Assim, o respeito com as conversões e a higiene se constitui em duas ferramen-
286
GAUER, Ruth M. Chittó, op. cit., p. 84.
287
Ibidem, p. 84.
288
Ibidem, p. 84.
289
Ibidem, p. 85.
76
tas eficazes de controle social. A representação sobre a limpeza e a pureza pretende eliminar a
entrada do monstruoso, do disforme, do violento, em resumo, de todos os modelos considera-
dos perigosos para as convenções estabelecidas pela civilização. Nesse sentido, Ruth Gauer
refere que se poderia afirmar que o modelo de igualdade, tal como foi criado nos tempos mo-
dernos, teria estruturado todas as ações sociais e políticas desde seu início com o objetivo de
eliminar diferenças contaminadoras e, portanto, perigosas290.
A modernidade teria disciplinado não apenas os homens, mas todas as coisas que pu-
dessem estar fora do lugar. A autora, reportando-se a Mary Douglas, refere que o reconheci-
mento de qualquer coisa fora do lugar constitui-se em ameaça, e assim consideramos desagra-
dáveis e as varremos vigorosamente, pois são perigos em potencial. A modernidade teria cria-
do essa compulsão, esse desejo irresistível de ordem e de segurança. O mundo perfeito seria
totalmente limpo e idêntico a si mesmo, transparente e livre de contaminações. A racionalida-
de expressa pelas leis e convenções tinha como fim imunizar a sociedade contra a violência, a
corrupção, a sedução das crenças e demais impurezas. Contudo, os modernos teriam esqueci-
do que não haveria imunidade para o egoísmo, o niilismo e para a exploração de um número
considerável de seres humanos291.
Neste aspecto, a autora cita como exemplos históricos o nazismo, o fascismo, o comu-
nismo, assim como todas as formas mais diferenciadas de ditaduras na contemporaneidade, as
quais comprovariam a utilização de práticas de saneamento dos sistemas políticos. Desta for-
ma, nos estados de exceção, os perigosos, todos os que são identificados como potencialmente
contaminadores, devem ser purificados ou eliminados. Quando os estados passaram a estabe-
lecer políticas públicas para cuidar do corpo da população, purificando a sociedade e assim
290
Ibidem, p. 85.
291
Ibidem, p. 86.
292
Ibidem, p. 86.
77
Partindo da premissa de que a democracia tem por base uma igualdade, estruturada na
naturalização do indivíduo, constituída pelo direito, o que pressuporia a exclusão do desigual
(diferente) em nome da ordem, a autora refere que nesse caso a força política se sustentaria na
medida em que se purifica, colocando distância entre a ordem e a desordem, entre a pureza e o
perigo, com a tentativa de eliminação do estranho, do desigual, impedindo que ele se torne um
perigo ameaçador da homogeneidade. Assim, a presença de qualquer grau de homogeneização
e de exclusão daquele que não é homogêneo implicaria na configuração de uma totalidade295.
Com efeito, seria evidente que a política da igualdade potencializa a violência de vá-
rias formas: eliminando todo e qualquer outro, o diferente, o sujo, o impuro, o anormal, o do-
ente, enfim, tudo o que causa estranheza, perigo, que lembra sujeira e desordem. Para a auto-
ra, o tecido social precisou ser impermeabilizado a tal ponto que a sua proteção tornaria difícil
pensar em rupturas que permitam a contaminação. As práticas políticas adotadas na moderni-
dade, em nome da igualdade, que visava à eliminação das hierarquias medievais, estavam
pautadas pela prescrição de condições de controle dos comportamentos individuais e coleti-
vos. Essa pretensão de controle social nada mais seria do que a submissão da ação pelo com-
portamento: a ação enquanto possibilidade de criação e o comportamento pautado pela previ-
sibilidade. Nesse campo, a perspectiva da previsibilidade estaria vinculada à lógica binária e
dual típica do pensamento moderno. A lógica binária de exclusão foi a base para a construção
293
Ibidem, p. 86.
294
Ibidem, p. 87.
295
Ibidem, p. 87.
78
de termos como “classe”, “raça”, “gênero”, entre outros, que serviam à identificação dos su-
jeitos296 e impulsionaram o etnocídio, principalmente com o advento dos Estados modernos.
Nas palavras de Hannah Arendt297
296
Ibidem, p. 88.
297
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 335.
298
RUBIO, David Sánchez. Sobre la racionalidad econômica eficiente y sacrificial, la barbárie mercantil y la
exclusión de los seres humanos concretos. Disponível em:
<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/sistemapenaleviolencia/article/viewArticle/6635>. Acesso em:
28 abr. 2011, p. 109.
79
299
Ibidem, p. 109.
300
Ibidem, p. 110.
80
Contudo, além desta idéia de cultivo, de exploração da terra habitada, há também outra
ideia: a de que algo ou alguém se introduz em um espaço que lhe é estranho, a condição de
“alheio”. A alheidade indica o que é por essência diferente e estranho a respeito do lugar em
que se coloca, e se traduz como um elemento essencial em uma reflexão sobre o sentido e
significação geral da linguagem que aplicamos para estudar e descrever os fatos e idéias colo-
niais303.
301
MUÑOZ-ARRACO, José Manuel Pérez-Prendes. Sobre los colonialismos – consideraciones acerca de la
“Declaración” de la ONU, de 14 de diciembre de 1960. Disponível em: <http://e-
archivo.uc3m.es/handle/10016/1430>. Acesso em: 04 mai. 2011, p. 314.
302
Ibidem, p. 315.
303
Ibidem, p. 315.
81
nificação radical que se deriva de colo. Esta dupla articulação, exploração-alheidade, quando
se pratica desde as possibilidades que oferece uma forma política estatal, se converte em uma
tripla corrente de exploração-alheidade-estatalismo, que constitui o fenômeno ao qual o autor
designa com a palavra colonialismo e em função sua há que entender os termos relacionados e
complementários, como “colônia”, “colonial”, “descolonização”, etc304. E nesse sentido, o
autor refere que a tríplice expressão exploração-alheidade-estatalismo integraria a essência
básica do conceito, e o colonialismo suporia uma série de relações de dependência e domina-
ção305.
Contudo, há que ressaltar que o elemento estatal não se mostra necessariamente vincu-
lado com as novas formas de colonialismo, em especial com o neocolonialismo. Para Kwame
N´krumah306, o neocolonialismo apresentaria hoje o imperialismo em seu estágio final e tal-
vez o mais perigoso. Para o autor, em lugar do colonialismo como principal instrumento do
capitalismo, teríamos o neocolonialismo. Sua essência seria de que o Estado que a ele está
sujeito é, teoricamente, independente e tem todos os adornos exteriores da soberania interna-
cional. Porém, na realidade, seu sistema econômico (e portanto, seu sistema político) é dirigi-
do do exterior.
Os métodos e a forma de direção podem tomar vários aspectos: por exemplo, no caso
extremo de tropas de uma potência imperialista guarnecerem o território de um Estado neoco-
lonial e controlar o seu governo. Porém, mais comumente o controle é exercido através de
meios econômicos ou monetários. Também é possível que o controle neocolonial seja exerci-
do por um consórcio de interesses financeiros que não são especificamente identificáveis com
qualquer Estado particular. O controle do Congo por grandes interesses financeiros internaci-
onais seria um exemplo307.
304
Ibidem, p. 315.
305
Ibidem, p. 323.
306
N´KRUMAH, Kwame. Neocolonialismo – último estágio do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
leira, 1967, p. 1-3.
307
Ibidem, p. 1-3.
82
do seu próprio destino. Seria esse fator que torna o neocolonialismo uma ameaça tão séria à
paz mundial308.
De qualquer sorte, como define Léopold Sédar Senghor, o colonialismo seria um pro-
cesso de ocupação de um país por estrangeiros, que estão decididos a incorporá-lo no seu pró-
prio país, ou simplesmente manter sua dominação indefinidamente. Em épocas passadas, exis-
tiu o colonialismo grego, o colonialismo romano, dentre outros, como o colonialismo pratica-
do pelas nações européias, uma das características principais da história da humanidade do
século XVI até os anos 50 e 60 do século XX309.
308
Ibidem, p. 1-3.
309
Biblioteca Salvat de Grandes Temas. Colonialismo e neocolonialismo. Rio de Janeiro: Salvat, 1979, p. 9.
310
Ibidem, p. 10.
311
Ibidem, p. 11.
83
nias britânicas fizeram seus estudos utilizando a língua materna, autóctone, e a língua inglesa.
No colonialismo francês, ao contrário, estes, convencidos do valor universal da sua cultura,
tentaram por todos os meios assimilá-los312. Um exemplo característico de etnocídio, vincula-
do ao colonialismo.
312
Ibidem, p. 12.
313
Ibidem, p. 19. Cabe ressaltar que nos Estados Unidos, o colonialismo, por via do etnocídio e outras medidas,
foi implementado na destruição do povo e da cultura indígena. A eliminação de povos indígenas e de sua cultura
foram técnicas muito utilizadas durante o século XIX. A partir de 1830 era objeto de discussão saber por quais
meios e com que rapidez seria possível eliminar os indígenas. Neste período, o presidente Andrew Jackson firma
o “decreto de deportação de índios” (Indian Removal Act, de 28 de maio de 1830). Outra medida era encontrar
um meio de justificar a tomada dos territórios sob o pretexto da assimilação mais rápida à sociedade branca.
Nesse sentido, foi enviado aos índios um ultimato expressado pelo então senador Pendleton de Ohio, que havia
declarado: “eles devem mudar seu modo de vida, ou devem morrer. Nós podemos lamentá-lo, podemos desejar
que seja de outra maneira, nossos sentimentos humanitários podem chocar com esta alternativa, porém não po-
demos ocultar o fato de que se trata de uma alternativa e que esses índios devem mudar seu modo de vida ou ser
exterminados” (Congressional Records; volume II, 46th Congress, 3rd Session, 1881).
Os argumentos do senador Pendleton e de seus colegas conduziram à elaboração do decreto de adjudicação
geral de 1887, conhecido sob o nome de “Dawes Act”. O objetivo desta medida era mudar o modo de vida dos
índios destruindo sua cultura tradicional cuja base não era somente a religião e uma linguagem próprios, senão
igualmente uma organização tribal que compreendia um sistema de propriedade comum das terras. Era necessá-
rio civilizar os índios e assimilá-los. A “Dawes Act”, tanto em suas intenções como em suas conseqüências,
segue sendo hoje em dia um dos atos de entocídio mais graves perpetrados contra os indígenas pelo governo dos
Estados Unidos. JAULIN, Robert. El etnocidio através de las Américas. México: Siglo XXI Editores, 1976, p.
28-29.
Práticas similares ao etnocídio também foram utilizadas na Guatemala, durante a ditadura militar. A aplica-
ção sistemática do terror estatal nas aldeias camponesas perseguiu a destruição de centros cerimoniais de distin-
tas etnias mayas, de seus lugares sagrados e de seus símbolos culturais. Vide MENÉNDEZ, Luis. Guatemala: la
persistencia del terror estatal. Disponível em: <http://www.herramienta.com.ar/revista-herramienta-n-
27/guatemala-la-persistencia-del-terror-estatal>. Acesso em: 28 abr. 2011, p. 6.
84
O imperialismo contemporâneo não exige o emprego da força militar para a sua cons-
tituição; e nem sequer a dominação política direta. Por outro lado, se bem que suas manifesta-
ções sejam muito diversas, sua essência é determinada pela exploração econômica do país
submetido, quer de seus recursos naturais quer do trabalho de seus habitantes, em benefício da
metrópole316. Nesse sentido, mostra-se sua vinculação com a idéia de neocolonialismo, pro-
posta por Kwame N´krumah.
1) Dominação por parte de uma minoria estrangeira, que exerce uma pretensa superio-
ridade racial e cultural sobre uma maioria nativa materialmente inferior;
314
Biblioteca Salvat de Grandes Temas. Colonialismo e neocolonialismo, op. cit., p. 19.
315
Ibidem, p. 19.
316
Ibidem, p. 20.
317
Ibidem, p. 20.
318
Ibidem, p. 21.
85
2) Contato entre duas civilizações muito diferentes: uma de religião cristã, de econo-
mia forte, técnica avançada e ritmo de vida acelerado; a outra, não cristã, carecendo de técni-
ca, condicionada por uma economia agrária de subsistência e com um ritmo de vida lento;
319
Ibidem, p. 22.
320
Ibidem, p. 22.
321
FERRO, Marc (Org.). O livro negro do colonialismo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 10.
86
um parentesco que é apontado pelo poeta antilhano Aimé Césaire, pelo menos no que concer-
ne ao nazismo e ao colonialismo. Conforme descreve Marc Ferro, para Césaire, o que o ho-
mem burguês do século XX não perdoaria a Hitler não seria o crime em si, não seria a humi-
lhação do homem em si, mas o crime contra o homem branco, ou seja, o fato de ter aplicado à
Europa procedimentos colonialistas que até então somente abrangiam os árabes, os cules da
Índia e os negros da África322.
Ferro destaca que no caso da colonização, este “livro negro” teria precedido o “livro
rosa”: a primeira relación de Las Casas, que data de 1540. Contudo, pouco a pouco, o “colo-
nismo” prevaleceu, em nome da civilização. A argumentação era alimentada por aqueles que
se beneficiavam da exploração das colônias324.
Para o autor, o questionamento assumiu muitas faces. Entre outras, a ideologia socia-
lista não teria deixado de evocar os aspectos negativos da colonização, ou mesmo o princípio
em que ela se baseava. Sua argumentação participava da substância do discurso marxista. O
autor enfatiza que para que os professores de história o conhecessem bem e o difundissem, era
necessário “forçá-los a isso mediante programas bem definidos”, como dizia Lênin ao histori-
ador Pokrovski325. Nesses programas, conforme Lênin, deveriam ser fixados os temas que
obrigariam objetivamente a adotar o ponto de vista dos socialistas; por exemplo, deveria ser
incluído no programa a história da colonização. O tema iria levá-los e expor seu ponto de vis-
322
Ibidem, p. 10.
323
Ibidem, p. 10.
324
Ibidem, p. 12.
325
Ibidem, p. 12.
87
Para Ferro, neste novo milênio, por uma mudança das mentalidades ligada aos dramas
do século passado, à tomada de consciência sobre as violências cometidas em muitos lugares,
uma parte da opinião das velhas nações européias inscreveu-se numa ideologia dos direitos
humanos que apontava o conjunto dos crimes praticados em nome do Estado comunista ou
nazista, do Estado-nação e das “vitórias da civilização”. Generosas na denúncia dos crimes de
um e outro, essas sociedades ocidentais alegariam hoje que os do colonialismo lhes foram
ocultados. Porém, para o autor, essa crença seria um mito, ainda que certos excessos cometi-
dos tenham sido de fato expurgados da memória comum327.
Para Ferro, na França, por exemplo, os manuais escolares dos dois primeiros terços do
século XX relatavam com ardor a conquista da Argélia, como nas Índias, durante a revolta
dos sipaios em 1857, oficiais ingleses colocavam hindus e muçulmanos na boca dos canhões,
como Pizarro executou Atahualpa Yupanqui ou como Gallieni passava os malgaxes pelo fio
da espada. Tais violências eram conhecidas e, quanto à Argélia, desde a época de Toquevil-
le328.
O autor descreve que todos estes fatos eram conhecidos, públicos. Porém, se fosse
verificado que denunciá-los tinha por objetivo questionar a “obra da França”, sua existência
era negada: o governo poderia estar errado, mas o país teria sempre razão... Interiorizada, essa
convicção teria permanecido; ela se alimentaria tanto da autocensura dos cidadãos quando da
censura das autoridades, até hoje: por exemplo, nenhum dos filmes ou programas de televisão
que “denunciariam” abusos cometidos nas colônias figuraria entre as cem produções de maior
bilheteria ou de alto índice de audiência329. Do outro lado do Atlântico, a mudança de pers-
pectiva quanto ao extermínio físico e cultural dos índios aconteceu, com Flechas Ardentes, de
Delmer Daves (1950), filme pró-índio e anti-racista produzido antes dos crimes cometidos
pela aviação americana durante a guerra do Vietnã e que iria perpetuar essa mudança. Porém,
na realidade essa tomada de consciência quase não teria modificado a política de Washington
326
Ibidem, p. 12.
327
Ibidem, p. 12.
328
Ibidem, p. 13.
329
Ibidem, p. 13.
88
Por volta do ano 2000, em conseqüência dos depoimentos de argelinos vítimas de tor-
tura, militares de alto nível, como os generais Massú e Aussaresses, reconheceram os fatos,
embora associando-os à luta contra o terrorismo. Tais fatos não eram mais desconhecidos do
que outros, e durante a guerra da Argélia muitas vozes haviam se levantado, para delatar os
atos que as autoridades militares negam ou negavam. Para o autor, tratando-se dos departa-
mentos da Argélia, sevícias eram praticadas contra os nacionalistas muito antes de a guerra
explodir, essencialmente pela polícia331.
Para o autor, por outro de seus aspectos, a análise do colonialismo poderia referir-se à
do totalitarismo: o exame da intenção dos seus promotores. Saber-se-ia que, acima dos exces-
sos cometidos pelo nazismo e pelo comunismo, o respectivo programa de seus dirigentes era
mais que diferente: era inverso. Ferro questiona: como se pode “ousar” comparar o projeto
racista dos nazistas com o da tradição socialista, mesmo subvertida? Então, o que dizer dos
projetos da colonização e dos resultados de sua prática? De um lado, enriquecer, cristianizar,
civilizar, o projeto do etnocídio... Do outro, o trabalho forçado, o desenvolvimento moderni-
zado, o declínio da economia de subsistência... Impor-se-ia operar esse confronto, em primei-
330
Ibidem, p. 13.
331
Ibidem, p. 16.
332
Ibidem, p. 16.
333
Ibidem, p. 17.
89
ro lugar, assim como estabelecer os balanços, verificar o que foi realizado com conhecimento
de causa, o que só foi realizado pela metade, ou não o foi em absoluto. Quantas escolas ou
quantos hospitais, quantas barragens, e para quais beneficiários...? Mas, ao balanço consciente
dessa colonização, aos seus aspectos negros, deve-se acrescentar o levantamento de situações
e de balanços que não foram nem desejados nem esperados. Aqui estariam dois exemplos
desses resultados “perversos”334.
Por primeiro, estariam os efeitos da política escolar da França na Argélia. Marc Ferro
descreve que o autor Fanny Colonna deixaria claro que, desenvolvida, a escola laica alimen-
tou de idéias as elites, formando emancipados que se tornaram emancipadores – o que, na
verdade, não era seu objetivo. Além disso, ela não permitiu que os humildes se elevassem, ao
passo que, segundo o projeto republicano, a escola devia trabalhar para reduzir as desigualda-
des: para o autor, estas, ao contrário, se reforçaram335.
Outro exemplo que Ferro destaca é o relativo ao balanço médico da política inglesa na
Índia. A metrópole teria renunciado a cuidar de trezentos milhões de autóctones, reservando
suas atenções aos ingleses e aos indianos que estavam em contato com seus próprios agentes e
colonos, a fim de protegê-los melhor: militares, agentes do fisco, dentre outros. Para tentar
responder às exigências da situação do país, a metrópole considerou necessário criar um corpo
de médicos autóctones. Para o autor, o resultado, cinqüenta anos depois, um afluxo de médi-
cos indianos povoa os hospitais da metrópole, substituindo os ingleses que se refugiaram, na
medicina privada, dos efeitos do Welfare State336.
Para Ferro, essa dupla lição atesta que pode haver grande distância entre as intenções
de uma política e os resultados dela. Independentemente destas observações, muitos traços
aproximam as práticas colonialistas daquelas dos regimes totalitários: os massacres, o confis-
co de bens de uma parte da população, o racismo e a discriminação correspondente (acrescido
a estes fatos o genocídio e o etnocídio). De tudo isso, Ferro examina as variáveis, as similari-
dades e a herança337. Nosso foco trabalha principalmente o aspecto das variáveis.
No que tange às variáveis, Ferro destaca que dez anos depois do desaparecimento do
Império Soviético, nota-se que o antigo ministro das Relações Exteriores Chevarnadze foi
eleito presidente da República da Geórgia independente e que, entre os primeiros líderes da
revolta chechena, havia russos. Semelhante fenômeno não teria equivalente em outros lugares,
334
Ibidem, p. 17.
335
Ibidem, p. 17.
336
Ibidem, p. 17.
337
Ibidem, p. 17.
90
e seria difícil imaginar, cinqüenta anos atrás, um ministro Guy Mollet dirigindo a Argélia ao
lado de Ben Bella, ou ex-administradores holandeses vendo-se chamados a governar uma das
ilhas de Sonda, ou japoneses, a Coréia338.
ção ao leste, a conquista dos países tártaro, turco e caucasiano foi difícil, porque esses povos
pertenciam igualmente a uma outra comunidade, mais vasta, tanto étnica quanto religiosa.
Mas, não se poderia negar que, na Rússia, expansão territorial e colonização com freqüência
são sinônimos, ao passo que no Ocidente se faria uma cuidadosa diferença341.
Para o autor, hoje, seja na Palestina ou no Sri Lanka, a antiguidade da presença consti-
tuiria um dos pontos da argumentação. Tais práticas e modos de ver supõem que a História é
unilinear, irreversível: isso, contudo, seria ignorar que certas nações ou comunidades podem
desaparecer para sempre, enquanto outras podem aparecer ou reaparecer. Nesse sentido, a
História não seria programada343.
Ferro também destaca um primeiro dado, que se constitui como fator importante no
que concerne ao colonialismo (e, por conseqüência, à problemática do etnocídio): deve-se
constatar que o imaginário é uma abertura que ajuda a compreender as reações de uma socie-
dade à expansão e à colonização344. É através deste imaginário que o colonizador busca ex-
341
Ibidem, p. 20.
342
Ibidem, p. 20.
343
Ibidem, p. 20.
344
Ibidem, p. 21.
92
pandir sua visão de mundo, projetando um sistema idealizado por ele, eliminando as visões de
mundo dos colonizados, além da tomada de territórios.
Tais considerações não seriam sem conseqüência; elas dariam conta, em parte, do fato
de que a Inglaterra pôde perder a Índia, mas fez a guerra das Malvinas para defender os súdi-
tos de sua majestade. De igual modo, as Kurilas, consideradas desde sempre como terra russa,
não seriam um território negociável com o Japão, ao passo que as repúblicas da Ásia Central
puderam adquirir sua independência sem dificuldade, com exceção da Chechênia, que faz
parte da Federação da Rússia346.
345
Ibidem, p. 21.
346
Ibidem, p. 21.
347
Ibidem, p. 21.
348
Para mais detalhes, vide o item 1.2 do primeiro capítulo, que trata sobre o etnocídio na conquista da América.
93
Nesse sentido, em que a época do imperialismo diferiria da expansão colonial dos sé-
culos precedentes? Ferro destaca que não seria pelas atrocidades cometidas e sim, em primei-
ro lugar, por este aspecto: a opinião pública é mobilizada pelos agentes da expansão – partido
colonial, bancos, militares, marinheiros, etc. Os glorificadores da expansão conseguiram fazer
triunfar a idéia de que a expansão ultramarina era o objetivo final da política, tendo sido os
ingleses, entre outros, os primeiros a associar os benefícios do imperialismo ao triunfo da ci-
vilização, esse grande feito dos “povos superiores”350. De um modo geral, o genocídio e prin-
cipalmente o etnocídio justificavam-se a partir destas premissas.
349
FERRO, Marc (Org.). O livro negro do colonialismo, op. cit., p. 22.
350
Ibidem, p. 23.
351
Ibidem, p. 23.
352
Cabe referir igualmente que políticas anti-religiosas e de extermínio cultural foram praticadas na China, prin-
cipalmente com a Revolução Cultural de Mao-Tse-Tung. Destruição da religião tibetana (destruição de templos e
conversão forçada de povos à ideologia comunista) e imposição da “língua do proletariado”, visando destruir a
língua nativa foram, dentre outras formas de violência, medidas usadas para destruir a cultura do povo tibetano
durante a Revolução Cultural, em 1966. Dentre as práticas de etnocídio utilizadas, o governo chinês havia arre-
batado centenas de crianças de seus pais e parentes, deportando-os para “educá-los” e “instruí-los” na doutrina
do comunismo. Segundo os refugiados, os chineses não se contentavam com a entrega de suas propriedades, mas
insistiam que se entregasse seus espíritos. O governo chinês exercia forte propaganda contra o budismo e tentava
conseguir pela coação que os tibetanos abandonassem sua religião. A meta se constituía em um só partido, uma
única maneira de pensar e atuar, uma espécie de homogeneização, a produção de uma igualdade totalizadora.
94
Grande já mandara destruir 418 das 536 mesquitas do governo de Kazan e que, após um perí-
odo de tolerância, a ofensiva ortodoxa contra o islamismo havia recomeçado sob Alexandre II
e Nicolau II (1881-1917)353.
Marc Ferro destaca que foram principalmente as atitudes racistas dos colonizadores
que constituíram os traços estruturais do colonialismo para torná-lo odioso. No caso do racis-
mo, sua tese é da superioridade natural de alguns povos, baseada em uma percepção ahistórica
de suas culturas. O racismo opera como um pilar ideológico dos processos de dominação na
medida em que legitima o predomínio político de certo grupo etnoracial. A ideologia racista é
um sistema de representações que se materializa em instituições, em relações sociais e em
uma organização peculiar do mundo material e simbólico. E a discriminação é uma das práti-
cas que reflete mais claramente o imaginário racista. Consiste em um tratamento diferencial a
certos setores sociais definidos por traços culturais, biológicos ou fenotípicos, reais ou imagi-
nários. Através das práticas discriminatórias, a ideologia racista difunde-se em todas as insti-
tuições sociais: casa, escola, empresa, polícia, etc354.
Nesse sentido, vide Comite Hindu del Congresso por la Libertad de la Cultura. El Tibet y el nuevo imperialismo
chino. México: Libro Mex, 1961, p. 69; MONSTERLEET, Jean. El império de Mao-Tse-Tung. Madrid: Nacio-
nal, 1955, p. 295; Comité juridique dénquête sur la question du Tibet. Le Tibet et la République Populaire de
Chine. Comission Internationale de Juristes, 1960, p. 23-41; KHÉTSUN, Tubten. Memories of life in Lhasa
under chinese rule. New York: Columbia University Press, 2008, p. 167-172; SHAKYA, Tsering. The dragon in
the land of snows. London: Penguin Compass, 2000, p. 320-321.
A proibição do idioma e a introdução forçada de uma doutrina também foi objeto de prática durante o nazis-
mo. Nas áreas anexadas pela Alemanha, à população local foi proibido o uso do idioma próprio nas escolas. Por
decreto de 6 de agosto de 1940, o alemão se converteu em único idioma de ensinamento em todas as escolas de
Luxemburgo. O ensinamento do idioma francês nas escolas foi proibido, além de levar às áreas anexadas profes-
sores alemães que estavam obrigados a ensinar conforme os princípios do nacional-socialismo. Vide Equipo
NIZKOR. Genocidio: un término y un concepto nuevos para referirse a la destrucción de naciones. Disponível
em: <http://www.derechos.org/nizkor/impu/lemkin1.html>. Acesso em: 04 mai. 2011, p. 5.
353
FERRO, Marc (Org.). O livro negro do colonialismo, op. cit., p. 28.
354
PARÍS POMBO, María Dolores. Estudios sobre el racismo en América Latina. Disponível em:
<http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/267/26701714.pdf>. Acesso em: 04 mai. 2011, p. 293.
355
Nesse sentido, vide item 1.2.1, do primeiro capítulo.
95
inaptas para o progresso: melhor deixá-las morrer. Esta asserção de desigualdade evolucionis-
ta impulsionou o colonialismo.
Outra forma de racismo que contribuiu para o colonialismo, não especialmente ociden-
tal, é a que consiste em estimar existirem diferenças de natureza ou de genealogia entre certos
grupos humanos. A principal obsessão que a aterroriza refere-se à mistura; mas essa obsessão
pode ter ranços biológicos e criminais, sendo o cruzamento considerado, especialmente pelos
nazistas, como uma transgressão às leis da natureza356.
Essa convicção e essa missão civilizadora significavam que, no fundo, os outros eram
julgados como representantes de uma cultura inferior, e cabia aos ingleses, “vanguarda da
356
FERRO, Marc (Org.). O livro negro do colonialismo, op. cit., p. 30.
357
Ibidem, p. 31.
358
Ibidem, p. 31.
359
FERRO, Marc. História das colonizações – das conquistas às independências – séculos XII a XX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996, p. 39.
96
raça branca, “educá-los”, “formá-los”. Se os franceses também achavam que os nativos eram
umas crianças, e sem dúvida os consideravam inferiores, suas convicções levavam-nos, po-
rém, a fazer afirmações de outro teor, pelo menos em público, ainda que estas não estivessem
necessariamente em consonância com seus atos360.
Todavia, como aponta Ferro, o que aproximava franceses, ingleses e outros coloniza-
dores, e dava-lhes consciência de pertencerem à Europa, era aquela convicção de que encar-
navam a ciência e a técnica, e de que este saber permitia às sociedades por eles subjugadas
progredir, civilizar-se361.
O autor destaca que a história e o direito ocidental haviam codificado o que era a civi-
lização. Assim, um conceito cultural, a civilização, e um sistema de valores tinham função
econômica e política precisa. Não só aqueles países deviam assegurar aos europeus os direitos
que definem a civilização – e que, na verdade, garantiam-lhes a preeminência, mas a proteção
desses direitos tornava-se a razão de ser, moral, entenda-se, dos conquistadores362.
Cabe salientar ainda que no século XIX as idéias de Darwin exercem um verdadeiro
fascínio, como comprovaria a obra de Marx, e a luta de classes constituiria a versão humana
da luta de espécies analisada por Darwin. Quanto à colonização, ela surge como a terceira
vertente dessa convicção cientificista, com a diferença de que, na sua bondade, o homem
branco não destrói as espécies inferiores, mas as educa (aplicando-se, nesse sentido, o etnocí-
360
Ibidem, p. 39.
361
Ibidem, p. 39.
362
Ibidem, p. 40.
363
Ibidem, p. 40.
97
dio), a menos que não sejam humanos, como os aborígenes da Austrália; nesse caso, o homem
branco as extermina364.
Para Ferro, o Império Britânico só foi o equivalente do Império Romano nos seus do-
minions, onde um inglês era tão cidadão quanto se morasse no Lancashire. Nas outras colô-
nias, ele representava um tipo de dominador que só podia sobreviver e prosperar destruindo os
costumes e as instituições dos povos conquistados367, ou seja, através do etnocídio. Com efei-
to, demonstra-se a estreita vinculação entre colonialismo e etnocídio, na medida em que a
aquele é alimentado deste, no processo de expansão colonialista.
364
Ibidem, p. 40.
365
Ibidem, p. 41.
366
Ibidem, p. 41.
367
Ibidem, p. 42.
98
dos dominantes, assim como de suas crenças e imagens referidas ao sobrenatural, as quais
serviram não somente para impedir a produção cultural dos dominados, mas também como
meios muito eficazes de controle social e cultural, quando a expressão imediata deixou de ser
constante e sistemática368.
A violência colonial não se propõe somente como finalidade manter uma atitude res-
peitosa aos homens submetidos: trata de desumanizá-los. Nada será economizado para liqui-
dar suas tradições, para substituir suas línguas, para destruir sua cultura369. Nesse sentido,
Aimé Césaire expõe como a violência colonial produziu etnocídio, em seu conhecido Discur-
so sobre o colonialismo, o qual expõe as contradições entre a idéia de progresso e os rastros
de violência:
Nesse aspecto, o discurso de Césaire retrata toda a carga de violência que o colonia-
lismo, com o etnocídio (destruição de religiões, dentre outros aspectos), deixaram na sua ca-
minhada para o “progresso”. A destruição, desumanização e inferiorização do colonizado fo-
ram aspectos característicos dos processos de colonialismo, como se pôde verificar nesta ex-
posição sobre o colonialismo e sua relação com o etnocídio. O oprimido, com a energia e a
tenacidade do náufrago, arremessa-se sobre a cultura imposta371. Uma caminhada de destrui-
368
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade e Modernidade/Racionalidade. Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/36091067/Anibal-Quijano-Colonialidade-e-Modernidade-Racionalidade>. Acesso em:
04 mai. 2011, p. 2.
369
SARTRE, Jean-Paul. In FANON, Frantz. Los condenados de la tierra. México: Fondo de cultura econômica,
1983, p. 10.
370
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre el colonialismo. Madrid: Akal, 2006, p. 20.
371
FANON, Frantz. Em defesa da revolução africana. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1980, p. 43.
99
ção do colonizado, a partir de uma idéia de nação monoétnica372, a ser expandida por todos os
povos conquistados.
Por todas estas considerações apresentadas, pode-se dizer que o colonialismo traduz
muito mais do que a simples conquista de territórios, dominação e escravização de povos in-
teiros. Em muitas ocasiões, ela envolve também uma espécie de conquista espiritual, conquis-
ta do imaginário do colonizado, mediante o emprego da violência. Colonialismo e etnocídio
têm, por vezes, objetivos semelhantes: a expansão do império e a expansão violenta de uma
forma de enxergar o mundo, buscando converter mediante a força o grupo conquistado.
Pensar a violência como instrumento do etnocídio é essencial para entender como esta
forma de violação de direitos humanos se constitui. Ao longo de todo o trabalho desenvolvido
até aqui, pode-se perceber que o etnocídio possui uma forte expressão que carrega a violência
em seu âmago. Contudo, é necessário ressaltar algumas considerações sobre a violência, para
melhor entendimento do fenômeno do etnocídio.
Pode-se dizer que a violência é um elemento estrutural, intrínseco ao fato social e não
o resto de uma ordem bárbara em vias de extinção, conforme leciona Ruth Gauer 373. Este fe-
nômeno está inserido em todas as sociedades, fazendo parte de qualquer civilização ou grupo
humano.
372
Para mais informações sobre o emprego deste termo, vide a obra de Edgar Morin: MORIN, Edgar. Cultura e
barbárie européias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009, p. 29.
373
GAUER, Ruth Maria Chittó; GAUER, Gabriel José Chittó (Org.). A fenomenologia da violência. Curitiba:
Juruá, 2008, p. 13.
374
ESPLUGUES, José Sanmartín. Que es violencia? Uma aproximación al concepto y a la clasificación de la
violencia. Disponível em: <http://revistas.um.es/daimon/article/view/95881>. Acesso em: 28 abr. 2011, p. 1.
100
um grupo ou comunidade, e que cause ou tenha muitas possibilidades de causar lesões, mor-
tes, danos psicológicos, transtornos ou privações375.
Por fim, cabe destacar a definição proposta por Hussein Abdilahi Bulhan, que em sua
obra sobre Frantz Fanon e a psicologia da opressão dedica partes de seu trabalho sobre este
tema. Para ele, a violência é qualquer relação, processo ou condição em que um indivíduo ou
um grupo viola a integridade física, social e psicológica de outra pessoa ou grupo. Qualquer
relação ou processo que imponha danos a outros é considerado uma relação violenta377.
A partir dos apontamentos do autor Nilo Odalia379, a violência pode ser definida como
uma privação. E esta privação, pode ocorrer de várias formas: a) a violência física, que atinge
diretamente o homem, seja naquilo que ele possui (seu corpo, seus bens), ou até mesmo na-
quilo que ele mais ama (sua família, amigos, ou até mesmo seu povo); b) a violência instituci-
onalizada, que se dá a partir de desigualdade social, do sofrimento, da dor, da produção da
indiferença pelos outros, impondo a ausência de qualquer sentimento de solidariedade, admi-
375
PACHECO, Rosely Aparecida Stefanes. A violência contra os povos indígenas: uma estrutura invisível que
impõe a fronteira entre a vida e morte. Disponível em:
<http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/rosely_aparecida_stefanes_pacheco.pdf>. Acesso
em: 04 mai. 2011, p. 2.740.
376
Ibidem, p. 2.740.
377
BULHAN, Hussein Abdilahi. Frantz Fanon and the psychology of oppression. New York: Plennum Press,
2010, p. 135.
378
Hannah Arendt refere em sua obra sobre a violência: “A violência é por natureza instrumental; como todos os
meios, ela sempre depende da orientação e da justificação pelo fim que almeja. E aquilo que necessita de justifi-
cação por outra coisa não pode ser a essência de nada”. ARENDT, Hannah. Sobre a Violência. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2001, p. 40-41.
379
ODALIA, Nilo. O que é violência? São Paulo: Brasiliense, 2004.
101
tindo que esta indiferença é uma relação natural; c) a violência social, que atinge de forma
seletiva certos segmentos da população (os mais vulneráveis) e que se apresenta como uma
condição necessária para o futuro da sociedade – como a distinção entre pobres e ricos e a
discriminação racial e a poluição ambiental; d) a violência política (assassinato político, inva-
são de um País sobre outro, ou até mesmo leis que visam violar determinados segmentos da
sociedade, grupos sociais e políticos); e e) a violência revolucionária, que ocorre em uma
busca de modificação de um contexto sócio-político, empregando técnicas de privação dos
indivíduos, de violência.
Podemos referir que os tipos mais presentes de violência que se apresentam no contex-
to do etnocídio são a violência física, institucionalizada, social e política. Física, pelo fato do
etnocídio buscar, mediante a inscrição da dor no corpo das vítimas (assassinatos e agressão
física), convertê-las coletiva e forçadamente à ideologia do agressor ou colonizador (como se
constata pela observância do processo de conquista da América, pela evangelização forçada).
Institucionalizada, devido ao fato de que as vítimas do etnocídio são alvo de um processo de
inferiorização, ou desumanização; existe uma completa ausência de solidariedade, uma indife-
rença que justifica a imposição de uma ideologia a ser seguida por todos os membros do gru-
po, na consecução de um projeto totalizante. Social, na medida em que pode selecionar certos
grupos vulneráveis para o extermínio de sua cultura e a imposição de outra, justificando sua
prática para o “bem” da sociedade e para o “progresso” (como visto anteriormente, acerca do
processo de colonialismo e imperialismo). E política, com base na adoção de procedimentos e
leis que buscam legitimar a imposição de uma ideologia a ser adotada em toda a sociedade
(leis de imposição de língua oficial, religião ou idéias políticas, a serem seguidas por todos,
mediante a força).
Com base na concepção de Nilo Odalia, podemos, portanto, adicionar uma primeira
característica da violência nos processos etnocidas: a privação. Privar significa tirar, destituir,
despojar, desapossar alguém de alguma coisa. Todo ato de violência carrega em seu cerne
isso. O ato de violência nos despoja de alguma coisa, de nossa vida, de nossos direitos como
pessoas e como cidadãos. Seguindo a orientação do autor, a violência nos impede não apenas
ser o que gostaríamos de ser, mas fundamentalmente de nos realizar como homens380. Nesse
aspecto, o etnocídio é exercido mediante uma técnica de privação: privação da língua, da reli-
gião, da cultura e em substituição a esta a cultura imposta, mediante a agressão.
380
Ibidem, p. 86.
102
Castor Bartolomé Ruiz381 assevera que a violência deve ser compreendida na sua rela-
ção com a ética e além do direito. Isso significa que a análise crítica da violência deve tentar
superar a perspectiva jurídica da transgressão legal e posicionar-se no lugar da vítima que a
sofre. Seriam duas perspectivas diferentes: para a primeira a violência seria uma ruptura da
ordem estabelecida; já para a vítima, a violência é uma violação ética. Para o direito, a violên-
cia é inerente à preservação da ordem; para a vítima, o desaparecimento da violência é uma
condição elementar da sua sobrevivência382.
A gênese da violência seria correlativa à violação ética que produz e não a um mero
ato de transgressão do direito. A tese desenvolvida pelo autor é de que a violência, por negar a
alteridade humana, é antes de um ato (i)legítimo do direito, uma transgressão ética. Para Ru-
iz, esta tese traria conseqüências importantes para uma teoria da justiça383.
Para o autor, toda crítica da violência se insere entre o direito e a ética, entre justificar
a sua legitimidade ou denunciá-la como intrinsecamente injusta. As conclusões sobre a legi-
timidade ou ilegitimidade da violência dependeriam do ângulo de análise. A fim de analisar
esta diferença e suas conseqüências, Ruiz desenvolve sua tese com base na obra Por uma crí-
tica da violência, de Walter Benjamim384.
381
RUIZ, Castor Bartolomé. Justiça e memória – para uma crítica ética da violência. São Leopoldo: Unisinos,
2009, p. 87.
382
Ibidem, p. 87.
383
Ibidem, p. 87.
384
Ibidem, p. 88.
103
rá ser considerado violência, mas sim agressividade. Trata-se de um ponto crucial da tese de-
senvolvida por Ruiz385.
Bartolomé Ruiz ressalta que considerar a violência como uma pulsão natural do com-
portamento humano (e consequentemente das relações sociais) levaria a conclusões fatalistas
sobre a sua presença na sociedade e no poder. Este seria um debate clássico, que abrangeria
uma diversidade de estudos desde a antropologia biológica até a filosofia política. A fim de
contrastar sua perspectiva filosófica, o autor se reporta ao estudo do biólogo Konrad Lorenz,
sobre a agressividade. Neste trabalho, Ruiz destaca que o autor não faz distinção entre os con-
ceitos de agressividade e violência. Com efeito, esta indistinção o induziria, por um lado, a
constatar que a agressividade seria uma pulsão natural existente em todas as espécies vivas
com funções necessárias para a sobrevivência dos indivíduos e das espécies. Esta constatação
o induziria a concluir que, de uma outra forma, a agressividade é constitutiva da vida387.
Na descrição feita pelo autor e reproduzida por Ruiz, cada espécie viva, incluídos os
seres humanos, se serve de formas agressivas para conseguir sobreviver como indivíduo e
espécie. Para evitar que a agressividade seja totalmente autodestrutiva, foram criados rituais.
Através de ritos cada espécie conseguiria neutralizar o potencial devastador da agressividade
que, pela sua pulsão mimética, levaria à destruição do grupo e a longo prazo à desaparição da
espécie388.
385
Ibidem, p. 88.
386
Ibidem, p. 88.
387
Ibidem, p. 89.
388
Ibidem, p. 89.
104
humano teria criado a moral. Nesta visão biológica, a moral teria um papel funcional explica-
do pela necessidade de sobrevivência da espécie. Com efeito, a funcionalidade biológica ex-
plicaria o surgimento da moral como código inibidor da violência, à semelhança dos rituais
que as outras espécies criaram. Na descrição de Lorenz reproduzida por Ruiz, as leis morais
(não matarás), o direito e outras formas de tradição social seriam recursos suplementares dos
rituais que os seres humanos teriam encontrado para neutralizar a pulsão mimética da violên-
cia389.
Para Ruiz, a tese de que a violência seria um componente da natureza humana indu-
ziria à conclusão filosófica de que aquela é necessária para convivência, inclusive como fator
determinante do funcionamento das instituições. A naturalização da violência constrangiria a
filosofia política a pensar a sociedade a partir de duas alternativas: a) deixar que a violência
atue na sociedade como uma pulsão natural sem inibição alguma, o que levaria a uma mimese
autodestrutiva; b) aceitá-la como pulsão natural inevitável, não obstante deva ser controlada
pelos códigos morais e jurídicos a fim de ser integrada nas relações sociais de modo produti-
vo. Na descrição de Ruiz, nas duas hipóteses a violência seria um dado natural que a socieda-
de deveria aceitar como elemento inerente ao poder. Por conseqüência, o papel da sociedade
seria discernir sobre qual é a violência legítima ou ilegítima, para utilizar-se dela de modo
adequado. Porém, não haveria poder sem violência nem sociedade sem uso “legítimo” da
mesma390.
Ruiz destaca que este debate filosófico estaria instaurado desde os primórdios da mo-
dernidade, em que Hobbes defendeu que o estado de natureza humano seria um estado de
guerra de todos contra todos. O liberalismo econômico teria reagido, em parte, às propostas de
Hobbes, mas não questionou o pressuposto filosófico de que o estado de natureza humano
seja necessariamente violento. Para o autor, com base neste pressuposto se criaram o Estado e
o mercado, instituições que regulam a lógica natural da violência. Nesse sentido, se instituiu o
monopólio da violência no Estado e se deixou que no mercado vigorasse a lei natural da con-
corrência de todos contra todos, o que beneficia os mais fortes391.
Com base nestas explicações, Ruiz aponta um erro conceitual e filosófico grave nas
teorias filosóficas e antropológicas que identificam a agressividade com a violência. Essa
identificação (con)fundiria duas realidades distintas, assimilando uma na outra como equiva-
389
Ibidem, p. 89.
390
Ibidem, p. 89-90.
391
Ibidem, p. 90.
105
lentes sem ponderar que a naturalidade de uma contrasta com a intencionalidade da outra.
Ambas compartilhariam influências e incidências, mas seriam diversas392.
A agressividade é definida pelo autor como uma pulsão natural diversa e polimorfa; no
entanto, seria constitutiva de todo ser vivo. Por outro lado, a violência se definiria como um
ato de significação intencional com o objetivo de negar, total ou parcialmente, a alteridade
da vida humana. Na definição de violência anteriormente exposta haveria dois elementos que
a diferenciam claramente da agressividade: 1) a significação intencional e 2) a negação da
alteridade humana393.
No que concerne à intencionalidade, esta traduz o ato violento na lógica dos meios e
fins, que Benjamim analisa em sua crítica da violência. Esta operaria como meio estratégico
para um fim almejado. Para Ruiz, a intencionalidade do sujeito elaboraria a violência como
estratégia apropriada para um objetivo. Reportando-se a Weber, o autor assevera que a lógica
de meios adequados para fins desejados seria o que caracteriza a racionalidade instrumental
moderna. Esta requer, em maior ou menor grau, uma intencionalidade prévia, uma premedita-
ção de meios e fins, dentro do qual a violência deixa de ser uma mera pulsão natural para se
transformar numa decisão deliberativa. A racionalidade instrumental produziria a violência
como ato, o que a diferencia qualitativamente da pulsão agressiva. Para o autor, a pulsão
agressiva seria natural; já a violência seria social. A pulsão agressiva seria inerente às diversas
formas de vida (incluída a vida humana), no entanto a violência requer a significação intenci-
onal da agressividade para atingir um objetivo definido, o que a tornaria um ato exclusiva-
mente humano394.
Continuando a sua exposição, Ruiz destaca que os animais seriam agressivos, mas não
violentos, pois não conseguem articular sua agressividade numa lógica intencional de meios e
fins. De igual forma, um ato humano que fere ou mata outro de forma acidental e sem inten-
ção prévia de o fazer não poderia ser considerado um ato estritamente violento, pois lhe falta-
ria o componente da intencionalidade. A intenção significativa faria da agressividade um meio
estratégico para um fim. Ela transforma a agressividade em violência. A agressividade influ-
enciaria a violência e manteria em comum a potência mimética, contudo ambas não se identi-
ficam395.
392
Ibidem, p. 90.
393
Ibidem, p. 90.
394
Ibidem, p. 91.
395
Ibidem, p. 91.
106
396
Ibidem, p. 91-92.
397
Ibidem, p. 92.
107
isso não seria violência. A agressividade seria compulsiva e sua função seria preservar aspec-
tos vitais da existência de cada indivíduo. A violência seria uma agressividade significada
estrategicamente como um meio para a consecução de um fim (como aponta Hannah Arendt,
sobre o caráter instrumental da violência). Ela significaria a agressão à vida do outro como
tática intencional para uma finalidade preconcebida. Por isso todos os animais seriam agressi-
vos, mas só o ser humano pode ser violento. Só o ser humano teria a capacidade hermenêutica
de significar intencionalmente sua agressividade para a destruição do outro, segundo o fim
estabelecido pela própria racionalidade. Do que se conclui que toda violência, embora possua
elementos pulsionais da agressividade, se construiria sempre a partir de uma racionalidade
instrumental que faz da vida do outro um instrumento útil na lógica de meio necessário para
um fim almejado398.
Outro aspecto que Ruiz aponta em seu trabalho é que a violência tem um fim imedia-
to: as vítimas. Se a violência se define como um ato intencional de destruição do outro, ela,
antes de ter uma relação com o direito, atinge a ética. Desde esta perspectiva, a ética nunca é
um mero meio, pois carrega sempre um fim próprio e imediato. Esse fim primeiro de toda
violência é a negação, total ou parcial, da vida humana399.
inscreve na destruição da vida humana na sua dimensão cultural, o que provoca igualmente a
destruição física do grupo. Ambos os elementos caracterizadores da violência – intencionali-
dade e destruição da vida humana – estão presentes nas práticas etnocidas, pois a destruição
da cadeia simbólica de transmissão de crenças, valores e símbolos ocorre precisamente com a
destruição dos seres humanos que transmitem esses valores para a preservação de sua vida
humana. A violência inscrita na carne, mediante a privação de direitos e a destruição da vida
humana, no seu aspecto cultural, é condição de concretização do etnocídio.
necessitados de cuidado e ajuda por parte de outros seres humanos e da natureza. A consciên-
cia de nossa corporalidade nos conduz ao reconhecimento desta dupla dependência403.
Para tanto, não somos seres completamente autônomos e independentes. Antes de tu-
do, somos dependentes e necessitados de cuidado e ajuda, dada a nossa vulnerabilidade, que
não é senão um modo de dizer corporalidade. A experiência de dependência é uma experiên-
cia originária, constituinte de cada um dos seres humanos. Este é o primeiro sentido do termo
“vulnerabilidade”404.
Para tanto, a complementação entre nosso desejo de viver e nossa vulnerabilidade (em
seu duplo sentido, fragilidade e dependência), nos conduz de maneira necessária à reivindica-
ção do direito de todos os seres humanos a viver, reproduzir e desenvolver sua vida em todos
os aspectos (social, econômico, cultural, espiritual), e exigirmos o respeito a este direito como
algo absoluto, sagrado406. Este princípio de vulnerabilidade, que é corporal, faz possível a
constituição do sentido não só de nossa vida, mas também do mundo que nos rodeia. É um
fundamento da sociabilidade e também um princípio necessário para a vida social407. Dentro
deste aspecto, pode-se referir que a vulnerabilidade faz parte de nossa condição humana.
Contudo, seguindo esta idéia, podemos analisar o caso das vítimas do etnocídio – e
também do genocídio – como seres humanos em condição de vulnerabilidade, porém com um
aspecto vulnerável que se constitui além de sua condição humana. Ou seja, além da vulnerabi-
lidade proveniente da sua condição de ser humano – como referimos nas linhas anteriores – a
vítima do etnocídio comporta uma condição de vulnerabilidade especial, pois sua cultura é
ameaçada por outra mais poderosa materialmente. As vítimas do etnocídio, enquanto grupo
vulnerável, carregam dentro de si uma fragilidade e impotência frente ao agres-
403
Ibidem, p. 3.
404
Ibidem, p. 3.
405
Ibidem, p. 4.
406
Ibidem, p. 4.
407
Ibidem, p. 5.
110
sor/colonizador, que exclui as chances de se desviar de seu destino: a morte cultural (e por
vezes física).
Ives Ternon, em sua obra El Estado criminal – los genocídios del siglo XX, expõe co-
mo se constitui a vulnerabilidade do grupo no caso do genocídio. Seguindo sua orientação no
que tange ao aspecto da vulnerabilidade, podemos transpor seus fundamentos para o caso do
etnocídio.
O autor enfatiza, citando Dadrian, que o genocídio seria a tentativa lograda por um
grupo dominante, investido de uma autoridade formal e/ou podendo aceder ao conjunto de
meios de que dispõe o poder, de reduzir mediante coerção ou violência assassina o número de
um grupo minoritário cujo extermínio final é considerado como desejável e útil e cuja vulne-
rabilidade é um dos principais fatores que contribui na decisão de um genocídio409.
408
Para mais informações, vida o item 1.2.1, do capítulo 1 e os itens 2.2 e 2.2.1, deste capítulo.
409
TERNON, Yves. El Estado criminal – los genocídios del siglo XX. Barcelona: Península, 1995, p. 78.
410
Ibidem, p. 78.
111
No que tange à condição de vítimas em potencial, trata-se de um aspecto que está rela-
cionado de certa forma com a existência de um grupo minoritário, que habita um determinado
território. Pode-se dizer que as vítimas potenciais411 se encontram em estado de perigo per-
manente, diante do risco social de extinção (é o caso de muitos grupos indígenas no Brasil).
Robério Nunes dos Anjos Filho412, expondo considerações acerca dos aspectos carac-
terizadores de uma minoria, refere que esta se configura pela existência das seguintes caracte-
rísticas: os elementos objetivos, que seriam o elemento diferenciador, o quantitativo, o da na-
cionalidade e o de não-dominância; e ainda teríamos um elemento outro, de natureza subjeti-
va: o da solidariedade.
No que tange à questão quantitativa, esta revela a concepção de que um grupo nume-
ricamente majoritário em uma sociedade não pode ser considerado minoria. Parte-se da pre-
sunção, portanto, de que grupos majoritários não precisam de proteção especial. Também não
pode ser o único a qualificar um grupo como minoria, devendo estar acompanhado de outros
elementos. Dessa forma, nem todos os grupos quantitativamente inferiores devem ser necessa-
riamente protegidos como minorias. Deve-se atentar ainda para o fato de que maioria e mino-
411
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos Humanos e Meio Ambiente: paralelo dos sistemas de pro-
teção ambiental. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1993, p. 59.
412
FILHO, Robério Nunes dos Anjos. Minorias e grupos vulneráveis: uma proposta de distinção. In FILHO,
Robério Nunes dos Anjos (Org.). Direitos humanos – estudos em homenagem ao professor Fábio Konder Com-
parato. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 405-430.
413
Ibidem, p. 412.
112
ria em sentido puramente quantitativo são conceitos dinâmicos, que podem variar no tempo,
fazendo com que um grupo antes minoritário possa passar a ser majoritário, e vice-versa414.
No que concerne ao elemento da não-dominância, este exige que o grupo não esteja
em uma situação de domínio do processo político no Estado em que se encontra. De fato, gru-
pos que exercem o poder político, encontrando-se em situação de força e destaque na socieda-
de, ainda que sejam numericamente pequenos não poderão ser considerados minorias para
fins de especial proteção, até porque esta não seria suficiente para caracterizar uma minoria,
devendo ser analisada conjuntamente com outros elementos. Caso contrário, todo grupo ven-
cido em um processo eleitoral necessariamente deveria ser tido como minoria para fins de
especial proteção416.
grupos ameaçados. Os grupos indígenas, por exemplo, em sua maioria, vivem em zonas peri-
féricas. Isolados do mundo exterior, são geralmente considerados irrecuperáveis, é dizer, in-
capazes de participar no desenvolvimento econômico, o que basta para justificar a sua elimi-
nação. Como aponta Yves Ternon419, no século XX, esses grupos não são mais que a parte
residual de um imenso acontecimento que ocorreu nos séculos XVIII e XIX: o choque mortí-
fero de culturas. Quando uma cultura forte e uma cultura débil se encontram, invariavelmente
a débil desaparece, pois a incompatibilidade entre as formas de sociedade e de economia é
total. Foi assim como desapareceu a maior parte dos indígenas da América. O mesmo ocorreu
com a destruição dos aborígenes da Austrália: foi o resultado da incompatibilidade entre os
brancos produtores de lã e os aborígenes caçadores-coletores.
419
TERNON, Yves, op. cit., p. 77.
420
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. 6ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 182.
114
O etnocídio se configura como uma lesão grave que atenta contra os direitos dos seres
humanos, pois visa exterminar uma cultura mediante a violência ou ameaça de violência física
contra um grupo humano, buscando impor seu modelo de pensamento à toda uma coletivida-
de. Pode-se afirmar que esta espécie de prática, conjuntamente com o genocídio, é por demais
antiga, pois se nos voltarmos ao passado – e em especial às conquistas das Américas – consta-
tar-se-á a sua prática como instrumento de formação do que hoje se entende por civilização.
Alguns autores defendem que o termo etnocídio (ou genocídio cultural) deriva de etno,
que provém do grego ethnos (povo, nação), e cídio, que significa matar. Com efeito, o etnocí-
dio seria um atentado contra um povo ou uma nação421. Contudo, esta singela definição pode-
ria causar dúvidas, pois o genocídio igualmente é um ato contra a existência de um povo. Para
tanto, deve-se entender a origem e a definição desta prática lesiva, que se distingue do geno-
cídio.
421
CUSTÓDIO, Helita Barreira. Poluição ambiental e genocídio de grupos indígenas. In Revista de Direito
Civil, imobiliário, agrário e empresarial. Ano 16, n. 59, Jan/Mar/1992, p. 88.
115
lin, o qual expôs em sua obra La Paix Blanche: introduction à l’ethnocide, a destruição dos
índios Bari, na fronteira entre a Venezuela e a Colômbia422. Esta destruição formava-se a par-
tir de múltiplos vetores: pelas ações da Igreja, dos exércitos venezuelanos e colombianos,
além das companhias americanas de petróleo que passaram a se instalar no local onde vivia a
tribo423. Para o criador deste termo ‘etnocidio indica el acto de destrucción de una civili-
zación, el acto de des-civilización’424.
422
Vide JAULIN, Robert. La Paz Blanca – Introdución al etnocídio. Buenos Aires: Tiempo Contemporaneo,
1973.
423
MONTENEGRO, Miguel. Robert Jaulin and Ethnocide. Disponível em:
<http://www.miguel-montenegro.com/EthnocideWik.htm>. Acesso em: 14 fev. 2011, p. 02.
424
JAULIN, citado por CIFUENTES, José Emilio Rolando Ordoñez. La cuestión étnico nacional e derechos
humanos: el etnocidio – los problemas de la definición conceptual. México: Instituto de Investigaciones Jurídi-
cas de la UNAM, 1996, p. 28.
425
VÁSQUEZ. Ladislao Landa. Pensamientos indígenas en nuestra América. Disponível em:
<http://www.bibliotecavirtual.clacso.org.ar>. Acesso em: 14 out. 2010, p. 38.
426
Ibidem, p. 39.
427
CIFUENTES, José Emilio Rolando Ordoñez. El aporte doctrinario de la antropologia crítica latinoamerica-
na y sus premissas sócio/jurídicas. Disponível em: <http://www.juridicas.unam.mx/sisjur/internac/pdf/10-
487s.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2011, p. 01.
116
sistema educativo formal (que traduz a superioridade do branco), seja pelos meios de comuni-
cação de massa428.
O documento que tratou expressamente sobre o termo foi a Declaração de San José,
celebrado na Costa Rica, sob os auspícios da UNESCO em dezembro de 1981. O documento
expõe que o etnocídio tratar-se-ia de um processo complexo, que possui raízes históricas, so-
ciais, políticas e econômicas. Também ressalta que há alguns anos vinha sendo denunciada
em foros internacionais a problemática da perda da identidade cultural das populações indíge-
nas da América Latina429. No tocante à definição consagrada no documento
Contudo, é pertinente ressaltar que esta prática lesiva aos direitos humanos ainda não é
recepcionada como crime de acordo com o Direito Penal Internacional, posto que não há refe-
rência expressa em lei ou convenção internacional. Logo, ainda não há a previsão de um deli-
to de etnocídio. Trata-se de uma violação grave de bens jurídicos fundamentais que, todavia,
não está tipificada como crime. Nesse sentido, pode-se dizer que embora não seja tratado
formalmente como crime, o fenômeno do etnocídio possui, enquanto forma de violência, ca-
racterísticas próprias, o que é envolvido em um contexto criminal.
428
Declaracíon de Barbados II. Disponível em:
<http://www.nativeweb.org/papers/statements/state/barbados2.php>. Acesso em: 14 fev. 2011.
429
Declaración de San José. Disponível em: <http://www.politicaspublicas.cl/iwgia/1982_1.pdf>. Acesso em:
14 fev. 2011, p. 39.
430
Ibidem, p. 39.
431
CIFUENTES, José Emilio Rolando Ordoñez. La cuestión étnico nacional e derechos humanos: el etnocidio –
Los problemas de la definición conceptual, op. cit., p. 25.
117
432
Nesse sentido, em semelhante entendimento acerca do etnocídio como prática que se constitui como a des-
truição da cultura de um povo, não necessariamente incluindo a destruição da vida do grupo, vide HINTON,
Alexander Laban. Annihilating difference: the anthropology of genocide. Berkeley: University of California
Press, 2002, p. 41; e CHARNY, Israel W. Toward a generic definition of genocide. In ANDREOPOULOS,
George J. Genocide – conceptual and historical dimensions. Philadelphia: University of Pennsylvania Press,
1997, p. 84-85. Cabe salientar que este autor defende a idéia de que o etnocídio se configuraria como um proces-
so de proibição ou interferência no ciclo natural de reprodução e continuidade de uma cultura ou uma nação, mas
não inclui o tipo de opressão assassina diretamente relacionada com a concepção genérica de genocídio, ou seja,
não envolve necessariamente o extermínio físico. Em igual sentido, vide LUKUNKA, Barbra. Ethnocide. Dispo-
nível em: <http://www.massviolence.org/Article?id_article=8>. Acesso em: 04 mai. 2011, p. 2.
433
MOLINA, Lucrecia. Glossario – Elementos conceptuales y vocabulário incluídos en los documentos. Dispo-
nível em: <http://www.iidh.ed.cr/comunidades/diversidades/docs/div_vocabulario/capiracismo05.pdf>. Acesso
em: 10 fev. 2011, p. 230-231.
434
Ibidem, p. 231.
435
Além desta justificativa do etnocídio como uma ação para o “bem” de um determinado povo, é de se conside-
rar que esta prática poderia ser perpetrada para fins de dominação, mediante a intenção de destruição dos traços
culturais, o que ocorreu durante o processo colonial e neocolonial no Brasil. Outro exemplo que caracteriza esta
espécie de etnocídio institucionalizado é a Argentina, em que se oferecia um suposto direito à existência aos
povos indígenas (ser cidadão argentino), desde que assumissem o suicídio cultural. Nesse sentido, vide BAR-
TOLOMÉ, Miguel Alberto. Los pobladores del “desierto” – Genocidio, etnocidio y etnogénesis en la Argentina.
Disponível em: <http://alhim.revues.org/document103.html>. Acesso em: 10 fev. 2011, p. 05.
436
O extermínio é o fenômeno sócio-político de eliminação de grupos. Em suma, pode-se dizer que ele possui
algumas características, a saber: a) ele é parte integrante de um processo político de grupos que se arrogam o
direito de selecionar certas camadas da estrutura social, devendo ser eliminadas, expulsas ou circunscritas; b) as
vítimas geralmente são aquelas que, identificadas, possuem atributos que importunam ou que se tornam insupor-
táveis aos olhos dos aniquiladores; c) ele constrói-se em torno de uma idéia de limpeza social. As vítimas seleci-
onadas são rejeitadas por serem “indignas”, “demoníacas”, “inúteis”, ou “pesos mortos para a sociedade”. Nesse
sentido, vide CRUZ-NETO, Otávio. Extermínio: violentação e banalização da vida. Disponível em:
<http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X1994000500015>. Acesso em: 30 jan.
2011.
437
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
118
Clastres inicia sua exposição referindo que há alguns anos o termo etnocídio não exis-
tia. Beneficiando-se de sua capacidade de responder a uma demanda, de satisfazer uma neces-
sidade de precisão terminológica, a utilização da palavra teria ultrapassado seu lugar de ori-
gem, a etnologia, para cair de certo modo em domínio público438. Contudo, o autor questiona:
poderia a difusão acelerada de uma palavra garantir a manutenção da coerência e do rigor
desejáveis? Clastres refere que no espírito de seus inventores, a palavra estava destinada a
traduzir uma realidade que nenhum outro termo exprimia. No entanto, não se poderia inaugu-
rar uma reflexão séria sobre a idéia de etnocídio sem buscar preliminarmente determinar o
que distingue este fenômeno da realidade de uma outra prática: o genocídio439.
438
Ibidem, p. 81.
439
Ibidem, p. 81.
440
Ibidem, p. 82.
441
Ibidem, p. 82.
442
Ibidem, p. 83.
119
Neste aspecto, pode-se referir que quando Clastres refere que o etnocídio assassina o
grupo em seu espírito, quer dizer que o que se visa exterminar não é propriamente a vida do
grupo humano, mas sua cultura, sua identidade cultural, a fim de implantar a cultura do con-
quistador. E isto pressupõe a existência do grupo subjugado, de que as vítimas tenham sua
vida. Contrariamente do genocídio, em que o povo é assassinado em seu corpo, não vindo
mais a existir biologicamente (isto é, sem vida), o etnocídio se utiliza da destruição física ou
assassinato para tanto, mas este não é seu objetivo: seu fim é a assimilação forçada do grupo,
a incorporação forçada do saber do colonizador pelo colonizado. Para tanto, o aspecto central
é a finalidade que guia o agente que pratica o etnocídio. No caso do etnocídio, não se visa
exterminar a vida do grupo por si só, mas pode-se ameaçar ou retirar a vida deste, desde que a
vítima aceite a ideologia, cultura ou religião do conquistador. Por isso se trata de uma con-
quista geralmente espiritual, em que uma cultura, língua ou religião é exterminada, impondo,
de outro lado, a cultura, língua ou religião do agressor. Por isto Clastres refere que o genocí-
dio atua no corpo (ou seja, extirpa a vida do grupo, a sua existência), enquanto o etnocídio
assassina em seu espírito (as vítimas podem sobreviver, mas sua cultura, língua e religião são
exterminadas, dando lugar ao saber do agressor).
O etnocídio teria em comum com o genocídio uma visão idêntica do Outro: o Outro
seria a diferença, certamente, mas seria, sobretudo, a má diferença445. Essas duas atitudes dis-
tinguem-se quanto à natureza do tratamento reservado à diferença. O espírito genocida quer
pura e simplesmente negá-la. Exterminam-se os outros porque eles são absolutamente maus.
O etnocida, em contrapartida, admitiria a relatividade deste mal na diferença: os outros são
443
Contudo, necessário ressaltar que a violência física é presente no etnocídio, pois a destruição de uma cultura
manifesta-se pela ameaça ou efetivação da destruição física do grupo. Na conquista da América, por exemplo, a
ameaça de destruição física e escravização era constante, caso os indígenas não se convertessem à religião e ao
modo de vida dos conquistadores. Nesse sentido, vida a nota 1.1.1, do capítulo 1 deste trabalho.
444
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência, op. cit., p. 83.
445
Nesse sentido, pode-se dizer que esta má diferença provém de uma relação nós/outro, constituindo sempre
uma relação assimétrica: o bem, a verdade, a perfeição, a pureza, a racionalidade, a civilidade, a humanidade são
sempre atributos do “nós”; o mal, o erro, a imperfeição, a impureza, a irracionalidade, a barbárie, a animalidade
são atributos do “outro”. Genocida e etnocida diferem, contudo, no modo de agir para desfazer a assimetria. O
genocida elimina a má diferença, exterminando a vida do outro. O exemplo que primeiro nos vem à memória é
do nazismo, mas a história está repleta de práticas genocidas. O etnocida, por sua vez, elimina a má diferença,
abraçando a causa do outro, confiando que o outro possa ser convertido ao nós. Vide COX, Maria Inês Pagliari-
ni. A noção de etnocídio: para pensar a questão do silenciamento das línguas indígenas no Brasil. Disponível
em: <http://cpd1.ufmt.br/meel/arquivos/artigos/133.pdf>. Acesso em: 28 abr. 2011, p. 67.
120
maus, mas pode-se melhorá-los, obrigando-os a se transformar até que se tornem, se possível,
idênticos ao modelo que lhes é imposto. A negação etnocida do Outro conduziria a uma iden-
tificação a si446.
Clastres observa que se poderia opor o genocídio e o etnocídio como duas formas per-
versas do pessimismo e do otimismo. Na América do Sul, os matadores de índios levariam ao
ponto máximo a posição do Outro como diferença: o índio selvagem não seria um ser huma-
no, mas um simples animal. O homicídio de um índio não seria um ato criminoso, o racismo
desse ato seria inclusive totalmente evacuado, já que ele implicaria, para se exercer, o reco-
nhecimento de um mínimo de humanidade no Outro. Seria uma monótona repetição de uma
antiqüíssima infâmia: ao falar precursoramente do etnocídio, Claude Lévi-Strauss ressaltava,
em Raça e História, como os índios da Ilhas da América Central se perguntavam se os espa-
nhóis recém-chegados eram deuses ou homens, enquanto os brancos se interrogavam sobre a
natureza humana ou animal dos indígenas447.
Clastres refere que o horizonte no qual se destacam o espírito e a prática etnocidas se-
ria determinado por dois axiomas. O primeiro proclamaria a hierarquia das culturas: haveria
as que são inferiores e as que seriam superiores. Quanto ao segundo, ele afirmaria a superiori-
dade absoluta da cultura ocidental. Portanto, esta somente poderia manter com as outras, e em
particular com as “primitivas”, uma relação de negação. Mas se trataria de uma negação posi-
tiva, no sentido de que ela quer suprimir o inferior enquanto inferior para lançá-lo ao nível do
“superior”448.
446
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência, op. cit., p. 83.
447
Ibidem, p. 84.
448
Ibidem, p. 85.
121
Assim, toda cultura operaria uma divisão entre ela mesma, que se afirmaria como re-
presentação por excelência do humano, e os outros participariam da humanidade, mas em
grau menor. O discurso que as sociedades “primitivas” fazem delas mesmas seria, portanto,
etnocêntrico: a afirmação da superioridade de sua existência cultural. O etnocentrismo apare-
ceria como a coisa do mundo mais bem distribuída, e deste ponto a cultura do Ocidente não se
distinguiria das outras. Assim, conviria pensar o etnocentrismo como uma propriedade formal
de toda formação cultural, imanente à própria cultura. Pertenceria à essência da cultura ser
etnocêntrica, na medida em que toda cultura se considera como a cultura por excelência. Em
outras palavras, a alteridade cultural nunca é apreendida como diferença positiva, mas sempre
como inferioridade segundo um eixo hierárquico450.
Nesse sentido, Clastres questiona: não seria porque a civilização ocidental é etnocida
no interior dela mesma que ela pode sê-la no exterior, ou seja, contra as outras formações
culturais? Para o autor, não se poderia pensar a vocação etnocida da sociedade ocidental sem
articulá-la com essa particularidade de nosso próprio mundo, particularidade que seria inclu-
sive critério clássico de distinção entre selvagens e civilizados, entre o mundo primitivo e o
mundo ocidental: o primeiro reuniria o conjunto das sociedades sem Estado, o segundo se
comporia de sociedades com Estado. É nisso que se deveria tentar refletir: poder-se-ia colocar
legitimamente em perspectiva essas duas propriedades do Ocidente, como cultura etnocida,
como sociedade com Estado? Se fosse assim, na descrição do autor, compreenderíamos por
que as sociedades “primitivas” podem ser etnocêntricas sem, no entanto, serem etnocidas, já
que elas seriam precisamente sociedades sem Estado452.
Clastres refere que o etnocídio é a supressão das diferenças culturais julgadas inferio-
res e más; seria a aplicação de um princípio de identificação, de um projeto de redução do
449
Ibidem, p. 85.
450
Ibidem, p. 86.
451
Ibidem, p. 87.
452
Ibidem, p. 87.
122
outro ao mesmo (o índio amazônico suprimido como outro e reduzido ao mesmo como cida-
dão brasileiro). Em outras palavras, o etnocídio resultaria na dissolução do múltiplo no Um.
Nesse sentido, o que significaria o Estado? Para Clastres, ele seria, por essência, o emprego de
uma força centrípeta que tende a esmagar as forças centrífugas inversas. O Estado se quer e se
se proclamaria como o centro da sociedade, o todo do corpo social e mestre absoluto dos di-
versos órgãos deste corpo. Para o autor, descobrir-se-ia, no núcleo mesmo da substância do
Estado, a força atuante do Um, a vocação de recusa do múltiplo, o temor e o horror da dife-
rença. Nesse nível, se constataria que a prática etnocida e a máquina estatal funcionariam da
mesma maneira e produziriam os mesmos efeitos: sob as espécies da civilização ocidental ou
do Estado, se revelariam sempre a vontade de redução da diferença e da alteridade, o sentido e
o gosto do idêntico e do Um453.
Para Clastres, esse processo de integração passaria pela supressão das diferenças. Seria
assim que, na aurora da nação francesa, quando a França era apenas o reino dos francos, a
cruzada dos albigenses abateu-se sobre o sul para abolir sua civilização. A extirpação da here-
453
Ibidem, p. 88.
454
Ibidem, p. 88.
455
Como exemplo, analisando a constituição da nação brasileira, pode-se constatar a ação do etnocídio sobre as
culturas e línguas locais. À guisa de consolidação de seu domínio, a coroa portuguesa abraçava predatoriamente
as culturas e línguas dos povos indígenas com que interagiam em terras brasileiras. Estima-se que dois terços da
população no Estado de São Paulo (mamelucos, portugueses, etc) falavam línguas locais diversas, quando a
política pombalina proibiu seu uso e obrigou o da língua portuguesa. Instituído em 03 de maio de 1757, o Diretó-
rio de Marquês de Pombal teve suas medidas primeiro aplicadas no Pará e Maranhão. No ano seguinte, em 17 de
agosto de 1758, essas medidas foram estendidas a todo o Brasil. A política lingüística implantada por meio do
Diretório de Pombal visava proibir as línguas locais, o que era visto como uma ameaça à hegemonia da língua
portuguesa. A prática de os colonizadores impingirem aos colonizados a sua própria língua sempre foi vista
como emblema da conquista e do domínio dos primeiros sobre os segundos. Nesse sentido, vide COX, Maria
Inês Pagliarini, op. cit., p. 76-77.
123
sia cátara, pretexto e meio de expansão para a monarquia capetiana, traçando os limites quase
definitivos da França, aparece, para o autor, como um caso puro de etnocídio: a cultura do
Midi – religião, literatura, poesia, foi irreversivelmente condenada, e os habitantes do Lan-
guedoc passaram a ser súditos leais do rei da França456.
O autor afirma ainda que a Revolução de 1789, ao permitir o triunfo do espírito cen-
tralista dos jacobinos sobre as tendências federalistas dos girondinos, levou a seu termo o do-
mínio político da administração parisiense. As províncias, como unidades territoriais, apoia-
vam-se cada qual numa antiga realidade, homogênea do ponto de vista cultural: língua, tradi-
ções políticas, etc. Elas foram substituídas pela divisão abstrata em departamentos, própria a
romper toda referência às particularidades locais, e portanto a facilitar em toda parte a pene-
tração da autoridade estatal457.
Uma última etapa desse movimento pelo qual as diferenças desaparecem uma após a
outra diante do poder do Estado é com a metamorfose da III República, que transformou os
habitantes da França em cidadãos graças à instituição da escola leiga, e posteriormente do
serviço militar obrigatório. Com isso teria sucumbido o que subsistia de existência autônoma
no mundo provincial e rural. A francização estava completa, e o etnocídio consumado: línguas
tradicionais, por exemplo, foram eliminadas, tratadas como dialetos de indivíduos atrasa-
dos458.
Clastres refere que embora de forma breve, esta visão sobre a história do país seria su-
ficiente para mostrar que o etnocídio, como supressão das diferenças sócio-culturais, estaria
inscrito na natureza e no funcionamento da máquina estatal, a qual procede por uniformização
da relação que mantém com os indivíduos: o Estado conheceria apenas cidadãos iguais peran-
te a lei. Para o autor, afirmar, a partir do exemplo francês, que o etnocídio pertence à essência
unificadora do Estado, conduziria logicamente a dizer que toda formação estatal seria etnoci-
da459.
Nesse sentido, o autor busca examinar o caso de um tipo de Estado diferente dos Esta-
dos europeus. Os Incas haviam conseguido edificar nos Andes uma máquina de governo que
causou a admiração dos espanhóis, tanto pelo tamanho de sua extensão territorial quanto pela
precisão e a minúcia das técnicas administrativas que permitiam ao imperador e a seus nume-
rosos funcionários exercer um controle quase total e permanente sobre os habitantes do impé-
456
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência, op. cit., p. 88.
457
Ibidem, p. 89.
458
Ibidem, p. 89.
459
Ibidem, p. 89.
124
rio. O aspecto etnocida dessa máquina estatal aparece em sua tendência a incaizar as popula-
ções recentemente conquistadas: não apenas obrigando-as a pagar tributo aos novos senhores,
mas sobretudo forçando-as a celebrar o culto dos conquistadores, o culto do Sol, do próprio
inca460.
A pressão exercida pelos Incas sobre as tribos submetidas nunca atingiu a violência
dos espanhóis, que aniquilariam mais tarde física e culturalmente os indígenas. Embora fos-
sem hábeis diplomatas, os Incas sabiam utilizar a força quando necessário e sua organização
reagia com a maior brutalidade, como todo aparelho de Estado quando seu poder é questiona-
do. As freqüentes insurreições contra a autoridade de Cuzco, reprimidas de início, eram a se-
guir castigadas pela deportação em massa dos vencidos para regiões muito distantes de seu
território natal, isto é, aquele marcado pela rede dos locais de culto (fontes, colinas, grutas,
etc): para Clastres, seria o desenraizamento e a desterritorialização, conjuntamente com o et-
nocídio461.
No entanto, Clastres questiona: essa análise deveria deter-se apenas aí, em limitar-se à
constatação de que o etnocídio é o Estado e que, desse ponto de vista, todos os Estados se
equivaleriam? Para o autor, seria como recair no pecado de abstração que precisamente é re-
provado pelo autor; seria uma vez mais desconhecer a história concreta de nosso próprio
mundo cultural463.
Questiona-se ainda onde se situaria essa diferença que impede colocar no mesmo pla-
no os Estados bárbaros (Incas, faraós, despotismos orientais, dentre outros) e os Estados civi-
lizados (o mundo ocidental). Para o autor, percebe-se primeiro essa diferença no nível da ca-
pacidade etnocida dos aparelhos estatais. No primeiro caso, essa capacidade seria limitada não
pela fraqueza do Estado mas, ao contrário, por sua força: a prática etnocida – a abolição da
diferença quando esta se torna oposição – cessaria a partir do momento em que a força do
460
Ibidem, p. 90.
461
Ibidem, p. 90.
462
Ibidem, p. 90.
463
Ibidem, p. 90.
125
Estado não corre mais nenhum risco. Os Incas toleravam uma relativa autonomia das comuni-
dades andinas quando estas reconheciam a autoridade política e religiosa do Imperador. Em
contrapartida, nos Estados ocidentais, a capacidade etnocida se mostra sem limites, ela é de-
senfreada. Seria exatamente por isso que ela pode conduzir ao genocídio e que se pode falar
do mundo ocidental, de fato, como absolutamente etnocida. No entanto, o autor questiona: o
que a civilização ocidental contém que a torna mais etnocida que qualquer outra forma de
sociedade464?
Para Clastres, a civilização ocidental se tornaria mais etnocida que qualquer outra so-
ciedade por seu regime de produção econômica, um espaço justamente ilimitado, de fuga
permanente para adiante, enquanto impossibilidade de permanecer no aquém de uma frontei-
ra; seria o capitalismo como sistema de produção para o qual nada seria impossível, exceto
não ser para si mesmo seu próprio fim (seja ele liberal, privado, ou planificado, de Estado). A
sociedade industrial, a mais formidável máquina de produzir, seria também a mais formidável
máquina de destruir. Raças, sociedades, indivíduos: tudo seria útil, tudo deve ser utilizado,
tudo deve ser produtivo, de uma produtividade levada ao seu nível máximo de intensidade465.
Eis por que nenhum descanso podia ser dado às sociedades que abandonavam o mun-
do à sua tranqüila improdutividade originária; eis por que era intolerável, aos olhos do Oci-
dente, o desperdício representado pela não exploração econômica de imensos recursos. A es-
colha deixada a essas sociedades era um dilema: ou ceder à produção ou desaparecer; ou o
etnocídio ou o genocídio. O autor sustenta que no final do século XIX os índios do pampa
argentino foram totalmente exterminados a fim de permitir a criação extensiva de ovelhas e
vacas, o que fundou a riqueza do capitalismo argentino. No início do século XX, centenas de
milhares de índios amazônicos pereceram sob a ação dos exploradores de borracha. Atual-
mente, em toda a América do Sul, os últimos índios livres sucumbem sob a pressão do cres-
cimento econômico. Afinal: que importância podem ter alguns milhares de selvagens impro-
dutivos, comparada à riqueza em ouro, minérios raros, petróleo, etc? Produzir ou morrer: esta
seria a divisa do Ocidente466.
No contexto social, nossa civilização busca converter todas as outras. Deve ocorrer a
aliança ou o acordo com o agressor. Este colonialismo é o caráter fundamental do etnocí-
dio467. Outra questão que deve ser ressaltada é que, se havia uma espécie de submissão de
464
Ibidem, p. 91.
465
Ibidem, p. 91.
466
Ibidem, p. 91.
467
JAULIN, Robert. La Paz Blanca – introdución al etnocídio, op. cit., p. 263.
126
uma classe por outra – classe trabalhadora pela patronal no Século XIX – esta relação é subs-
tituída eminentemente pela privação forçada de um grupo de suas características culturais,
típico do modernismo político-cientificista468 (ainda que tenha sido praticada, de certa forma,
desde a chegada de Colombo à América). Assim, a busca da totalidade, mediante a extensão
de si mesmo, resultando na negação do Outro469, são elementos que circundam as relações na
sociedade industrial, globalizada e etnocentrista470.
468
Ibidem, p. 263.
469
Ibidem, p. 355-374.
470
Como exemplo de práticas desta espécie de violação aos direitos humanos, tem-se a exploração petroleira e a
ação do Estado colombiano em Catatumbo. Com o pretexto de incorporar os índios Bari à “civilização” para que
estes desfrutassem do “progresso”, os indígenas foram submetidos a um contínuo processo de aculturação; na
medida em que aumentava o grau de resistência era justificado o etnocídio.
Outro episódio que retrata a prática do etnocídio são as violações de direitos humanos decorrentes da fricção
interétnica no Estado de Rondônia, em que os indígenas do Povo Oro-Win são retirados das aldeias e obrigados a
se incorporar no sistema de vida dos invasores, sendo posteriormente conduzidos a barracões de seringais para
serem mantidos em semi-escravidão, em troca de comida. Estes são, dentre outros, exemplos de práticas etnoci-
das. Nesse sentido, vide CANTOR, Renan Vega. Explotación petrolera y etnocidio en Catatumbo: Los Barí y la
consesion Barco. Disponível em: <http://www.espaciocritico.com/articulos/rev07/n7_a12.htm>. Acesso em: 14
fev. 2011; PRADO, Rafael Clemente Oliveira; BRITO, Antônio José Guimarães; AMARAL, José Januário de
Oliveira. Além do Genocídio: o Etnocídio do Povo Oro-Win e a fricção interétnica nas cabeceiras do Rio Pa-
caás-Novos: um caso de violação de direitos humanos. In Revista Jurídica da Universidade de Cuiabá, v. 8, n. 2,
UNIC, jul/dez, 2006, p. 185.
471
O que é etnocídio. Disponível em: <http://karipuna.blogspot.com/2007/04/o-que-etnocdio.html>. Acesso em:
04 mai. 2011, p. 1. Cabe ressaltar que o etnocídio opera sob dois prismas, dois movimentos consecutivos: a) a
aculturação, que seria o contato direto e continuado entre duas culturas, implicando mudanças nos modelos
culturais dos grupos que entram em contato; e b) a assimilação efetiva, ou o etnocídio propriamente dito; esta
assimilação significa tornar semelhante a. Nos estudos biológicos do século XVI significava a absorção e incor-
poração realizados por organismos vivos. Vide Etnocidio. Disponível em: <http://www.iidh.ed.cr/>. Acesso em:
04 nov. 2010, p. 2; SACHS, Ignacy. Aculturação. Disponível em:
<http://jmir3.no.sapo.pt/Ebook2/Aculturacao_Einaudi.pdf>. Acesso em: 28 abr. 2011, p. 4; e VIEIRA, Gustavo
José Correia. Do genocídio e etnocídio: povo, identidade cultural e o caso yanomami. São Paulo: Modelo, 2011,
p. 71.
472
SILVA, Wilson Matos da. Etnocídio, crime contra etnias ou grupos étnicos. Disponível em:
<www.netlegis.com.br>. Acesso em: 04 mai. 2011, p. 1.
127
Para Jaulin, essa ordem única se configura como uma ordem etnocida. O autor qualifi-
ca o etnocídio como ato de destruição de uma civilização, um ato de descivilização. O termo
“etnocida” foi construído à semelhança do termo “genocida”, o qual foi construído à imagem
de “homicida”. Para tanto, Jaulin se reporta aos estudos de Marcel Bataillon, que evoca estas
construções. Para este autor, os termos genocida e etnocida foram construídos com base no
modelo de homicida, palavra onde se identificam dois substantivos latinos: homicida (concre-
to), o assassino, e homicidum (abstrato), o assassinato, e poderiam, então, designar ao mesmo
tempo os assassinatos coletivos perpetrados contra as raças ou etnias e suas culturas, e qualifi-
car os povos conquistadores que se tornam culpados475.
473
Vide STEIN, Stuart. Ethnocide. Disponível em: <http://www.bookrags.com>. Acesso em: 04 mai. 2011, p. 1.
474
JAULIN, Robert. Ethnocide, Tiers Monde et ethnodéveloppement. In Tiers-Monde, anne 1984, vol. 25, n.
100, p. 913-927. Disponível em: <http://www.persee.fr>. Acesso em: 04 mai. 2011, p. 913.
475
Ibidem, p. 913.
476
Ibidem, p. 914.
128
correlativamente, a idéia de povo dizia respeito apenas ao pequeno núcleo político, e a idéia
de civilizações havia sido eclipsada ou estava de tal modo reduzida que não significava mais
do que um singular hipotético a ser construído. Esse singular “messiânico e tecnicista” cor-
respondia ao espírito de “armistício” sobre o qual as pessoas se lançavam a fim de esquecer os
crimes nazistas e curar as feridas de Israel. Para o autor, ao agirem assim, as pessoas se esqui-
vavam do significado dessas feridas. Pretendia-se prevenir novos genocídios afastando os
problemas relacionados ao genocídio cultural477.
No entanto, como aponta o autor, a prevenção de novos genocídios não somente não
aconteceu, como também que o destaque dado à única ofensa, à pessoa física, era de fato et-
nocida. Isso anunciava o início de processos de genocídio cultural. Na ocasião, o autor questi-
ona: o que seria, pois, um etno478?
Para ele, esta palavra teria origem grega e designaria um povo “específico”, um povo
que detém uma propriedade, uma qualidade, a qual é sua cultura. Etno designa um povo en-
quanto cultura; ou ainda, uma cultura encarnada em um povo. Por cultura aqui pode-se com-
preender uma civilização. A palavra deve ser entendida em seu sentido pleno, total479.
Uma cultura não seria nem uma minoria nem uma maioria, pois ela não é uma quanti-
dade, e sim uma qualidade. O volume de pessoas, de espaços disponíveis, etc., do grupo ao
qual é associada uma cultura, e esse “volume”, comparado a outros integram as informações
relativas a essa cultura, mas não a definem. Uma civilização se refere, pois, a um corpo cole-
tivo considerado em sua totalidade. Ela inclui os diversos aspectos (econômicos, religiosos,
políticos, entre outros) desses corpos, mas não é a soma destes aspectos. Para Jaulin, esses
domínios não estão separados uns dos outros, pois somente o seu “produto”, a sua totalidade
faz sentido. Nenhum destes diversos domínios é a pedra angular do conjunto. Somente a tota-
lidade, que é complexidade, constitui a pedra angular480.
A história através da qual se instaura uma civilização pode, dependendo do caso, privi-
legiar “momentaneamente” um ou outro desses domínios (econômico, religioso, etc), assim
como a destruição de uma civilização pode se dar a partir da destruição da organização do
espaço, ou da destruição da autonomia política, etc481.
477
Ibidem, p. 914.
478
Ibidem, p. 914.
479
Ibidem, p. 914.
480
Ibidem, p. 914.
481
Ibidem, p. 915.
129
Na descrição de Jaulin, sendo a cultura um “todo”, pode ser suficiente agir sobre um
de seus elos para modificá-la ou destruí-la em sua totalidade. Esse “todo” seria uma estrutura
e uma dinâmica. Ele dispõe, portanto, de grandes possibilidades de “respostas” e/ou inven-
ções; além disso, é preciso frequentemente contar os procedimentos de modificações internas
relacionadas aos seus modos de sobreviver e viver, e de sua permanência482.
Uma civilização seria uma dinâmica específica, ordenada, que se refere a um ser cole-
tivo. Esse ser é um ser dentro do mundo, ele é “ser o mundo”. A cultura seria o estado de na-
tureza do ser humano. Esse estado remete a um universo plural, dos “etnos”. Suas manifesta-
ções são essencialmente da ordem do cotidiano e da comunicação, a qual é diálogo, reciproci-
dade, partilha. Para Jaulin, essa partilha é “amorosa”, em um sentido muito amplo dessa pala-
vra. Essa ordem cotidiana da comunicação se opõe às diversas definições “totalitárias” da
civilização, as quais estão submetidas à representação e à informação483.
Etnocida, para Jaulin, é a palavra que designa a destruição dos etnos. O etnocida é,
portanto, a não-referência aos etnos ou povos dotados de cultura. O “universo” do etnocida
não é o dos povos dotados de cultura. No entanto, o autor questiona: qual seria este universo
etnocida? Nesse sentido, o autor propõe cinco aspectos, que qualificam a ordem e o universo
etnocida484.
482
Ibidem, p. 915.
483
Ibidem, p. 915.
484
Ibidem, p. 916.
485
Ibidem, p. 916.
130
levada em consideração, quaisquer que sejam suas intenções, o desenvolvimento é, então, por
definição etnocida486.
486
Ibidem, p. 916.
487
Ibidem, p. 916.
488
Ibidem, p. 917.
131
comunidades humanas mantinham relações mútuas positivas que elas foram hospitaleiras,
abriram suas portas e se deixaram invadir, submeter, colonizar, destruir489.
4) Um quarto elemento do universo etnocida é que por definição este universo etnoci-
da mantém uma relação negativa com os “etnos”. Esse universo em “essência” contradiz
aquele dos povos dotados de cultura. A “fronteira” que os separa é, pois, “marcada” e da or-
dem do contraditório. Tal relação é característica do universo etnocida e não do universo dos
etnos, pois estes não são totalitários. Cada um deles corresponde a um mundo complexo e
baseado na complementaridade entre seus membros, suas diversas partes, suas diversas fun-
ções. Para o autor, essa complementaridade, evidentemente, deve ser sempre assumida, asse-
gurada, pois ela não acontece de uma vez por todas. A vida não é um jogo fácil, uma civiliza-
ção não é um simples objeto de consumo; ela se produz incessantemente, ainda que seja idên-
tica. Somente essa produção torna o homem um ser “livre”, não manipulado490.
Jaulin ressalta que somente pode haver complementaridade entre os diversos indiví-
duos e/ou domínios expressivos de um conjunto humano na compatibilidade. Na ausência de
tal compatibilidade, o conjunto da questão emana “naturalmente” e sem cessar de si mesmo.
Os etnos não morrem de doenças ou contradições internas. Eles geralmente desaparecem de-
vido a intervenções externas. Correlativamente, todo universo totalitário não se contenta em
afirmar, em relação àquele que lhe antagoniza, uma relação de ordem contraditória. Ele é re-
gido em todos os níveis pela contradição491.
Um povo dotado de cultura mantém consigo mesmo relações cuja ordem é de compa-
tibilidade. E devem ser incluídas entre essas relações aquela mantida com o “cosmos”, o resto
do mundo, mesmo quando ”muralhas”, uma distância ou barreiras diversas estejam associa-
das. Ao contrário, todo sistema totalitário mantém com o resto do universo uma relação fun-
dada no contraditório e/ou na conquista, e essa relação é isomorfa àquelas que ele mantém
consigo mesmo492.
5) Por fim, como quinta característica do universo etnocida, dizer de um universo et-
nocida que ele se baseia na contradição implica que ele seja marcado por rupturas e explosão
e, portanto, por fuga e/ou conquista. Para Jaulin, essa ruptura deve ser entendida no plural. A
não-complementaridade entre os indivíduos (atomização), a separação dos diversos domínios
constitutivos da existência, a concorrência entre os diversos grupos, os procedimentos de eli-
489
Ibidem, p. 917.
490
Ibidem, p. 917.
491
Ibidem, p. 918.
492
Ibidem, p. 918.
132
Nesse sentido, a única paz em direção a qual tais universos podem se voltar é seme-
lhante àquela dos cemitérios, é um fechamento “consentido”. Tal paz somente pode ser um
engodo ou uma obrigação momentânea, pois ela não é compatível com a vida494.
Para Jaulin, no entanto, a “natureza” humana é esse ser no mundo cuja unidade perti-
nente é um corpo coletivo, corpo onde o cosmos se inscreve no indivíduo, corpo onde o indi-
víduo tem dimensão cósmica. Tal natureza tem por nome cultura, e essa é um universo plural.
Esse corpo coletivo (e cósmico) tem tamanho limitado, e a medida desse tamanho é consisten-
te com a do corpo individual vivo, ou seja, do conjunto constituído pelas relações “imediatas”
que o corpo pode manter com os outros. O “imediatismo” dessas relações significa simples-
mente que elas têm como finalidade, como “ser”, a determinação de um universo comum, a
existência desse corpo coletivo495.
493
Ibidem, p. 918.
494
Ibidem, p. 918.
495
Ibidem, p. 926.
496
ESPARZA, José Javier. El etnocidio contra los pueblos: Mecánica y consecuencias del neo-colonialismo
cultural. Disponível em: <http://www.paginadigital.com.ar/articulos/2004/2004terc/educacion1/e106068-
4pl.asp>. Acesso em: 28 abr. 2011, p. 2.
133
Pode-se dizer que estas espécies de crimes, via de regra, se encontram dentro de um
contexto que Kai Ambos499 denomina de macrocriminalidade, que na sua descrição abrange
comportamentos de acordo com o sistema e adequados à situação dentro de uma estrutura de
organização, aparelho de poder ou outro contexto de ação coletiva. Estes macro-
acontecimentos com relevância para a guerra e o direito internacional se diferenciam qualita-
tivamente das conhecidas formas comuns e especiais (terrorismo, tráfico de entorpecentes,
criminalidade econômica, etc) devido às condições políticas de exceção e ao papel ativo que
desempenha o Estado500.
Para o autor, a macrocriminalidade seria mais limitada que a “criminalidade dos pode-
rosos”, já que esta última, questionada pela criminologia, refere-se, em geral, aos fatos come-
tidos pelos “poderosos” para a defesa de sua situação de poder, e nem estes “poderosos” nem
o “poder” (econômico) que defendem seriam, necessariamente, idênticos ao Estado ou ao
poder estatal. A intervenção, tolerância, omissão ou até o fortalecimento estatal de comporta-
mentos macrocriminais (que na ótica do autor é fundamental para a delimitação conceitual da
macrocriminalidade), para que haja sua caracterização, faz-se necessária a inclusão do com-
plemento “política”. Para tanto, a macrocriminalidade política significaria, em sentido estri-
to, a “criminalidade fortalecida pelo Estado”, “crime coletivo politicamente condicionado” ou,
ainda, crimes de Estado, terrorismo de Estado ou criminalidade governamental. Para o autor,
497
Cabe referir que optamos por selecionar determinadas espécies de crimes contra a humanidade por motivos de
melhor comparação com o etnocídio, foco principal de análise. Com efeito, delitos como o desaparecimento
forçado de pessoas, o terrorismo, a escravidão, dentre outras que são mencionadas no Estatuto de Roma não
foram escolhidas para integrar o trabalho para não se estender nestas espécies de crime em demasia e não perder
o foco principal, que é o estudo do etnocídio.
498
SILVA, Carlos Augusto Canêdo Gonçalves da. O genocídio como crime internacional. Belo Horizonte: Del
Rey, 1999, p. 159-166.
499
AMBOS, Kai. A parte geral do direito penal internacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 54.
500
Ibidem, p. 54.
134
trata-se de “criminalidade estatal interna”, ou seja, de uma criminalidade orientada para den-
tro, contra os próprios cidadãos501.
Para o autor, a existência fática de grupos não estatais que cometem crimes internacio-
nais constituiria o argumento decisivo em favor de uma compreensão mais extensa do concei-
to de macrocriminalidade. Nesse sentido, se configuraria como exemplo a organização guerri-
lheira colombiana FARC, a mais antiga e maior da América Latina, caso cometesse crimes
contra a humanidade e crimes de guerra. Contudo, necessário acrescentar que as organizações
não-estatais, para se converter em um autor de crimes contra a humanidade, devem exercitar,
de fato, um poder político503. Com efeito, o cometimento de crimes internacionais não pode
ser considerado como ato exclusivo de atores estatais, devendo, também, conduzir à respon-
sabilidade jurídico-penal de atores não estatais. Portanto, o conceito de macrocriminalidade
política deve-se estender, segundo uma compreensão moderna do direito penal internacional,
aos atores não estatais504.
Para tanto, pode-se dizer que crimes como o genocídio, o crime contra a humanidade
em sentido estrito e o apartheid (podendo-se inserir o etnocídio) geralmente estão envoltos em
501
Ibidem, p. 55.
502
Ibidem, p. 56.
503
Ibidem, p. 57.
504
Ibidem, p. 59.
135
Feitas estas considerações sobre estes crimes internacionais e sua correlação geral com
a macrocriminalidade política, passaremos à abordagem da relação e comparação do etnocídio
com o genocídio, com os crimes contra a humanidade e, posteriormente, com o apartheid.
Como primeira espécie de crime que geralmente está envolvido nesta macrocriminali-
dade política, tem-se o genocídio, prática de violência que perpassa toda a história da huma-
nidade. O extermínio de povos, portanto, é um fenômeno antigo. Sabe-se que a antiguidade é
marcada por conquistas e massacres de povos inteiros. Os motivos sempre foram os mais va-
riados: ódios nacionais, religiosos, raciais, políticos, desejo de dominação, vingança.
São muitos os exemplos: a destruição de Cartago no ano 146 a.C.; de Jerusalém por
Tito, no ano de 72 d.C.; as Cruzadas; os massacres completos nas guerras empreendidas por
Gengis Khan, dentre outros506.
O enfoque do presente estudo busca abordar o etnocídio e toda a sua conjuntura autô-
noma enquanto forma de violência. Após todas as explanações nos capítulos anteriores, ex-
505
No entanto, cabe referir que determinados crimes internacionais, como o genocídio, por exemplo, não neces-
sariamente são cometidos em um contexto de macrocriminalidade política, podendo ser perpetrados por grupos
completamente distintos do poder do Estado e que não possuem poder político de fato. Exemplo de crime inter-
nacional nesse sentido é o massacre dos Yanomami em 1993, em que indígenas foram exterminados por grupos
de garimpeiros na fronteira entre o Brasil e a Venezuela. Para mais detalhes, vide a obra de VIEIRA, Gustavo
José Correia. Do genocídio e etnocídio: povo, identidade cultural e o caso yanomami. São Paulo: Modelo, 2011.
506
RAMELLA, Pablo A. Crimes contra a Humanidade. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 34.
507
Para mais detalhes sobre os extermínios propagados na expansão capitalista norte-americana, vide GALKIN,
Alexandr A. Genocidio. Moscou: Progreso, 1986.
136
Já para Rafael Lemkin, tratar-se-ia de um termo híbrido, que derivaria de genos (raça,
nação ou tribo) e do sufixo latino cidio (matar)510. Com relação ao presente estudo, adotar-se-
á este último, não obstante as importantes justificativas apresentadas por Laplaza.
O fundador desta espécie de delito foi Rafael Lemkin, jurista de origem polonesa.
Muito antes do advento do Holocausto, esse autor já defendia a necessidade de se reprimir a
destruição de coletividades raciais, religiosas ou sociais como um delito de caráter universal,
aplicável a todos os povos511. Na V Conferência Internacional para a Unificação do Direito
Penal, realizada em 1933 em Madrid, Lemkin apresentou um projeto de convenção para re-
primir determinadas ações, que seriam o delito de barbárie, ou também identificado como
508
LAPLAZA, Francisco P. El Delito de Genocidio o Genticidio. Buenos Aires: Arayú, 1954, p. 64.
509
Ibidem, p. 65.
510
TORRES, Luís Wanderley. Crimes de Guerra e Crimes contra a Humanidade. São Paulo: 1955, p. 53.
511
Ibidem, p. 54.
137
atentado contra a vida, integridade física, liberdade e dignidade de uma pessoa pertencente a
uma determinada coletividade. E com a denominação de delito de vandalismo identificou a
destruição de obras culturais e artísticas em situações semelhantes512.
No ano de 1944, em plena Segunda Guerra Mundial e pelos atos cometidos durante o
nazismo, Lemkin estuda sobre a ocupação da Europa pelos Países do Eixo. Após, aborda sua
concepção de genocídio, que seria a destruição de uma nação ou grupo étnico, mediante um
plano de ações com o fim de praticar tal desintegração. Ademais, ressaltava que o campo do
genocídio não seria levado a cabo contra indivíduos em razão de suas qualidades pessoais,
mas simplesmente por pertencerem a um grupo513.
De fato, o julgamento dos crimes cometidos pelos oficiais do III Reich ocorreu, e os
acusados, na sua maioria, foram executados ou condenados à prisão perpétua, em que pese as
grandes controvérsias sobre a constituição do Tribunal de Nuremberg (como o fato de ser um
Tribunal de Exceção) no sentido de que se caracterizava mais como uma medida de vingança
pelas potências vencedoras da guerra. Por outro lado, não se trata de absolver os atos perpe-
trados pelos oficiais nazistas, mas deve-se lembrar que as mesmas potências que presidiram o
julgamento foram responsáveis por delitos graves praticados na colonização na América do
Norte, com a limpeza étnica de indígenas; pelo regime soviético, com o Holodomor (genocí-
dio em massa de ucranianos sob a autoridade de Stálin); ou até mesmo com os projetos colo-
512
Ibidem, p. 54.
513
TERNON, Yves, op. cit., p. 15.
514
LAPLAZA, Francisco P, op. cit., p. 50-52.
515
Carta de Londres citado por TORRES, Luís Wanderley, op. cit., p. 55.
138
516
Nesse sentido, vide as informações trazidas pela revista Leituras da História especial, a qual trata especifica-
mente dos grandes genocídios ocorridos. Revista Leituras da História especial - Grandes Genocídios, ano I, n. 2,
Editora Escala, 2008.
517
LAPLAZA, Francisco P, op. cit., p. 55 e 56.
518
RAMELLA, Pablo A, op. cit., p. 35.
519
TERNON, Yves, op. cit., p. 38.
520
ROBINSON, Nehemiah. La Convencion sobre Genocidio. Buenos Aires: Bibliográfica, 1960, p. 112.
521
CAMPOS, Paula Drumond Rangel. O crime internacional de genocídio: uma análise da efetividade da Con-
venção de 1948 no Direito Internacional. Disponível em:
<http://www.cedin.com.br/revistaeletronica/artigos/O%20CRIME%20INTERNACIONAL%20DE%20GENOC
%CDDIO%20Paula%20Campos.pdf>. Acesso em: 30 jan. 2011, p. 21.
139
berdade, saúde e dignidade522. Nesse sentido, verifica-se que o genocídio cultural (ou etnocí-
dio) já era contemplado de certa forma como uma espécie de criminalidade voltada ao exter-
mínio de uma cultura, religião ou língua. No entanto, cabe salientar que na época de formula-
ção do conceito de genocídio, a destruição de uma cultura, língua ou religião era denominada
sob a forma de genocídio cultural, não existindo ainda o termo etnocídio, que veio a ser utili-
zado somente no final da década de 60, com os estudos de Robert Jaulin523.
Contudo, ambos os termos – grupos políticos e o genocídio cultural – não foram re-
cepcionados após a apreciação do projeto pela Comissão que integrava os Estados. Os grupos
políticos foram retirados, principalmente devido à pressão soviética, o que oferecia a estes
Estados a possibilidade de exterminar grupos humanos apenas definindo-os de forma diferen-
te524.
Quanto ao genocídio cultural, este conceito também foi excluído, dentre outras justifi-
cativas, pelo fato de que seria um conceito muito indefinido525. A proposta foi retirada por
sugestão dos Estados Unidos, Reino Unido, França, além do Brasil526. Desta forma, tanto os
grupos políticos quanto o genocídio cultural restaram excluídos do projeto.
De fato, como observa Yves Ternon, a intervenção dos representantes dos Estados-
Membros havia modificado o espírito da resolução 96 (I), o que parecia demonstrar que os
Estados haviam tomado consciência dos riscos que corriam ao outorgar à ONU o direito de
responsabilizá-los por ações passadas, presentes ou futuras; contudo, devido ao fato de que
não podiam se eximir da obrigação de proteger os direitos humanos, se esforçaram em limitar
o alcance do compromisso celebrado527.
Após todos os entraves e alterações de ordem política no texto, a ONU aprova, medi-
ante a resolução 260 A (III), em 9 de dezembro de 1948, a Convenção para a prevenção e
repressão ao crime de genocídio, com o emprego da raiz etimológica defendida por
Lemkin528, excluindo o genocídio cultural. Como se percebe, as limitações impostas pelos
países durante a elaboração da convenção e sua inserção no ordenamento jurídico significa-
ram um retrocesso às propostas previstas na resolução 96 (I).
522
NERSESSIAN, David. Rethinking cultural genocide under international law. Disponível em:
<http://www.carnegiecouncil.org>. Acesso em: 04 mai. 2011, p. 1.
523
Vide item 3.1 deste capítulo.
524
TERNON, Yves, op. cit., p. 45.
525
ROBINSON, Nehemiah, op. cit., p. 61.
526
CAMPOS, Paula Drumond Rangel, op. cit., p. 21.
527
TERNON, Yves, op. cit., p. 40.
528
Ibidem, pg. 39.
140
Em 1965, muitos países estavam diante do problema da prescrição prevista nas suas
legislações nacionais. E em 26 de novembro de 1968, pela resolução 2.391 (XXIII), a Assem-
bléia Geral da ONU adotou a Convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e
contra a humanidade, no artigo I, alínea b, retomando ainda a concepção de crime de genocí-
dio tal como definido pela Convenção de 1948529.
Artigo 2º
Na presente convenção, entende-se por genocídio qualquer dos seguintes
atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional,
étnico, racial ou religioso, tal como:
a) Assassinato de membros do grupo.
b) Dano à integridade física ou mental de membros do grupo.
c) Submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasi-
onem a destruição física total ou parcial.
d) Medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo.
e) Transferência forçada de menores do grupo para outro.
Pela leitura do dispositivo, verifica-se que o delito se define pela intenção especial de
destruir um grupo humano como tal, no todo ou em parte. O ato não é cometido com a inten-
ção de eliminar um indivíduo em especial, mas em razão de pertencer a um determinado gru-
po humano; abarca, portanto, a existência de grupos humanos, caracterizados pela identidade
de pensamento religioso, social e étnico531. Matar pessoas negras por serem negras, por
exemplo, sem que importe a identidade pessoal determinada; o genocídio visa destruir um
vínculo de sangue ou de espírito mediante a destruição das pessoas que estão vinculadas532. É,
529
Ibidem, p. 53-54.
530
BRASIL. Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952. Promulga a convenção para a prevenção e a repressão
do crime de Genocídio, concluída em Paris, a 11 de dezembro de 1948, por ocasião da III Sessão da Assembléia
Geral das Nações Unidas. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/genocidio.htm>. Acesso em: 31 out.
2010.
531
LARIOS, Eligio Sanchez. El genocidio, crimen contra la humanidad. Mexico: Ediciones Botas, 1966, p. 256.
532
LAPLAZA, Francisco P, op. cit., p. 76.
141
portanto, o caráter da impessoalidade do sujeito passivo533 que guia o agente, visando exter-
minar um grupo humano. Esta intenção534 é caracterizada pelo dolo especial – dolus especia-
lis535 – que irá configurar o delito, mediante o exercício de uma atividade finalista específi-
ca536. São, portanto, dois elementos básicos: a) a vítima deve pertencer a um grupo humano e
b) a intenção do autor é direcionada no sentido de destruir um grupo humano enquanto tal. Eis
os elementos objetivo e subjetivo537, respectivamente.
Em geral, é praticado mediante ações comissivas. Mas pode ser cometido por uma
omissão, desde que presente a intenção de extermínio, como no caso de negação de alimentos
e de prestação sanitária538.
533
GUIMARÃES, Byron Seabra. Genocídio. In Repositório oficial da jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal, ano V, n.19, julho a setembro de 1976, p. 33.
534
Interessante ressaltar que o Tribunal Penal Internacional de Ruanda já se manifestou que diante da falta da
confissão por parte do acusado, poderia se deduzir a configuração do genocídio e a intenção de praticá-lo pela
circunstância dos fatos. Ou seja, seria possível concluir que houve a intenção genocida mediante um conjunto de
atos praticados pelo acusado, dento de um contexto geral de realização de atos dirigidos contra um grupo, em
uma região ou um país, ou o fato de se escolher de maneira deliberada as vítimas, por pertencer a um grupo em
particular, ao mesmo tempo excluindo outros grupos. Nesse sentido, vide VERDUZCO, Alonso Gomez Roble-
do. El crimen de genocidio en derecho internacional. Boletín Mexicano de Derecho Comparado. Disponível em:
<http://www.juridicas.unam.mx/publica/rev/boletin/cont/105/art/art6.htm>. Acesso em: 03 ago. 2010, p. 10.
535
Ibidem, p. 10.
536
Em síntese, a teoria finalista da ação preconiza que a ação delituosa é praticada visando uma determinada
finalidade pelo agente. Nesse sentido, vide WELZEL, Hans. Direito Penal. Campinas: Romana, 2003, p. 79.
537
AMBOS, Kai. La Parte General del Derecho Penal Internacional. Montevideo: Fundación Konrad-
Adenauer, 2005, p. 117-123.
538
CAMPOS, Paula Drumond Rangel, op. cit., p. 18.
539
GUIMARÃES, Byron Seabra, op. cit., p. 33-34.
142
No que concerne aos grupos raciais e étnicos, teóricos defendem que os primeiros (ra-
ciais) são definidos por um conjunto de caracteres biológicos; ao passo que os segundos (étni-
cos) são configurados em torno de fatores culturais540.
Merece ser ressaltado ainda que, ao nosso entender, a proteção de grupos não deveria
estar restringida aos tipificados no texto da convenção. Grupos políticos e grupos sociais por
vezes podem ser alvo de um plano genocida. Ou seja, poderia ocorrer mediante a implemen-
tação de um assassinato coletivo de pessoas ligadas por uma opinião e concepção política541,
ou até mesmo identificadas por sua condição social. Veja-se, por exemplo, no tocante aos
grupos sociais, tanto os massacres do Carandiru – execução em massa de detentos – como da
Candelária – em que as vítimas eram menores de rua, fatos que poderiam ser enquadrados
perfeitamente no delito de genocídio542.
Ainda de acordo com o art. 2º, a intenção não precisa ser necessariamente a destruição
total de um grupo; também se configura como genocídio o ato praticado com a intenção de
destruir parcialmente determinado grupo humano. Basta que a ação seja desenvolvida visando
a destruição de um subgrupo dentro de uma raça, etnia, nacionalidade ou religião. Pode ser
praticado, portanto, contra um subgrupo, dentro de um país, região ou uma comunidade de-
terminada543. Existe também a possibilidade de se configurar o genocídio quando o agente
mata apenas um membro de determinado grupo, mas com a intenção de seguir repetindo os
atos sobre o grupo ou subgrupo escolhido (matar o resto do grupo, um por um)544.
No que tange ao sujeito ativo (o agente que pratica a ação), poderá ser um governante,
funcionário ou particular, a teor do art. 4º da Convenção. Existem também estudos críticos
acerca da falta de responsabilização das pessoas jurídicas, no sentido de que estas poderiam
contribuir de maneira significativa para a ocorrência de genocídios. Neste aspecto, no genocí-
540
PIPAON Y MENGS. Javier Saenz. Delincuencia Politica Internacional. Madrid: Instituto de Criminologia de
la Universidad Complutense de Madrid, 1973, p. 113.
541
Uma definição de genocídio, abarcando os grupos políticos, pode ser encontrada em GREEN, Penny; WARD,
Tony. State crime – governments, violence and corruption. London: Pluto Press, 2004, p. 166.
542
Nesse sentido: CINTRA JÚNIOR, Dyrceu Aguiar Dias. Judiciário, violência, genocídio. In Revista Trimes-
tral da FASE, Ano 22, n. 60, março de 1994, p. 49.
543
GIL, Alicia Gil. Los crímenes contra la humanidad y el genocidio en el Estatuto de la Corte penal internacio-
nal a la luz de los elementos de los crímenes. In O Direito Penal no estatuto de Roma: leituras sobre os funda-
mentos e a aplicabilidade do tribunal penal internacional. AMBOS, Kai e CARVALHO, Salo de (Org.). Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p. 252-253.
544
Ibidem, p. 254-255.
143
dio perpetrado na Alemanha do III Reich teve grande contribuição a empresa IBM, a qual
celebrou contrato diretamente com o Estado alemão em New York, para fabricar os cartões de
identificação de prisioneiros, o que teria facilitado e sistematizado o extermínio; outro exem-
plo de contribuição de pessoas jurídicas é a Radio-Television Libre des Mille Collines, a qual
teve papel significativo na incitação do genocídio em Ruanda545.
Os atos que configuram o genocídio estão elencados nas alíneas do art. 2º da Conven-
ção. As alíneas a a c tratam do genocídio físico (matanças de membros de um grupo, lesão
grave à integridade física ou mental e submissão do grupo a condições que possam levar sua
destruição física), enquanto as alíneas d e e versam sobre o genocídio biológico (impedimento
de nascimentos e transportação de crianças de um grupo para outro)546. Interessante mencio-
nar que o TPIR – Tribunal Penal Internacional para Ruanda – reconheceu que a violência se-
xual contra a mulher por meio de estupros sistemáticos pode configurar ato de genocídio, vis-
to que não seria necessário destruir o grupo; bastaria que o debilitasse de tal forma que o dei-
xasse incapaz de perpetuação ou à margem da sociedade, o que freqüentemente ocorria com
as mulheres estupradas na região547. Outro fator que merece destaque seria a possibilidade de
prática do genocídio de populações indígenas mediante a poluição ambiental, típica da época
contemporânea, o que pode impedir a sobrevivência de grupos humanos inteiros548.
te – dolo especial, como abordado; f) pode ser um delito permanente, porque mediante a ma-
nifestação do agente, há a possibilidade de ser praticado ao decorrer do tempo, como no caso
das alíneas c e e do art. 2º da convenção e g) é um delito pluriofensivo, pois supõe um ataque
a uma pluralidade de bens jurídicos, notadamente direitos fundamentais da pessoa humana552.
Relacionando o genocídio com o etnocídio, pode-se dizer que o genocídio visa exter-
minar um grupo enquanto tal, visando exatamente aniquilar a existência física do grupo. Me-
didas de destruição física são utilizadas pelo agente com o fim precípuo de eliminar comple-
tamente o grupo de sua existência neste mundo. Com efeito, pode-se afirmar que o genocídio
atenta contra a existência do grupo.
Já o etnocídio admite a existência do grupo humano, com a condição de que este passe
a integrar o projeto ideológico do agressor, eliminando toda uma cultura anteriormente desen-
volvida. Caso a vítima se negue a seguir as idéias propagadas, pode sofrer as piores conse-
qüências em seu corpo. O seu corpo passa a ser objeto de inscrição de uma violência que deve
forçar a vítima a aderir à ideologia do agressor, a seu projeto totalizante. Medidas violentas
(até mesmo a morte) são utilizadas não necessariamente para banir o ser humano do mundo,
mas para fazer com que a vítima, pela violência, passe a crer ou aderir a uma campanha de
expansão da visão de mundo do agente. O etnocídio admite que o ser humano possa continuar
existindo, desde que se converta, mediante a força, às idéias que são propagadas pelo agressor
(seja colonizador, etc) e renuncie a seu sistema de visão de mundo (como ocorreu na conquis-
ta da América). Por isso, o etnocídio atenta contra a identidade cultural de um grupo humano,
e não contra a existência física do grupo, como no genocídio. O genocídio é uma conquista
meramente física, de eliminação do grupo do mundo; o etnocídio se constitui como uma con-
quista espiritual, no plano das idéias, mas com efeitos igualmente violentos.
552
Os bens jurídicos se apresentam de uma variada índole, desde os bens jurídicos diretamente pessoais da vida
humana e da integridade pessoal, física ou psicológica, até os bens jurídicos relacionados com a autodetermina-
ção sexual, passando pela proteção dos bens jurídicos da liberdade e da identidade cultural. Vide GOUVEIA,
Jorge Bacelar. Direito internacional penal – uma perspectiva dogmático-crítica. Coimbra: Almedina, 2008, p.
272.
145
553
SANTOS, Roberto Lima. Crimes da ditadura militar – responsabilidade internacional do Estado brasileiro
por violação aos direitos humanos. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2010, p. 101.
554
Ibidem, p. 102.
555
Ibidem, p. 102.
556
Ibidem, p. 103.
557
Ibidem, p. 103.
146
humanidade foi constituído para evitar que a perseguição a cidadãos nacionais não ficasse
sem resposta558.
A primeira construção do crime contra a humanidade ocorre no artigo 6 (c), do Estatu-
to do Tribunal de Nuremberg, criado pelo Acordo de Londres, de 1945. Neste momento, fo-
ram qualificados como crimes contra a humanidade os atos cometidos contra a população
civil, a perseguição por motivos políticos, o homicídio, o extermínio e a deportação, dentre
outros atos559.
Esse conceito de crimes contra a humanidade, formulado pelo Estatuto do Tribunal de
Nuremberg foi confirmado na primeira sessão da Assembléia Geral da Organização das Na-
ções Unidas, em 1946, por meio da Resolução 95 (I). Em 1947, a Assembléia Geral da ONU
determinou que os preceitos de direito internacional utilizados pelo Tribunal de Nuremberg
fossem consolidados em documento escrito. Assim, a Comissão de Direito Internacional, em
1950, aprovou um rol de sete princípios, sendo que no sexto princípio tratava-se do crime
contra a humanidade, entendido como assassinato, extermínio, escravidão, deportação e ou-
tros atos inumanos praticados contra qualquer população civil, bem como a perseguição por
motivos políticos, raciais ou religiosos, quando tais atos ou perseguições fossem praticados
em conexão com qualquer crime contra a paz ou crime de guerra560.
No entanto, com o passar dos anos este vínculo do crime contra a humanidade com os
crimes de guerra ou contra a paz foi se rompendo, porquanto este nexo com uma guerra im-
portava estritamente para os julgamentos levados a cabo pelo Tribunal de Nuremberg, especi-
almente para demarcar a temporalidade das condutas que seriam objeto de julgamento pelo
Tribunal Militar, quais sejam, os fatos ocorridos após 1939561.
Com efeito, no entendimento mais atual, os crimes contra a humanidade podem ser
cometidos independentemente do tempo de guerra ou de paz. Enquanto em 1945 era exigido
um nexo com conflito bélico, na atual formulação dos crimes contra a humanidade nenhum
vínculo é requerido. Para tanto, após 1946 consolidou-se o sentido da não exigência de qual-
quer nexo entre os crimes contra a humanidade e os crimes contra a paz ou crimes de guer-
ra562.
558
Ibidem, p. 103.
559
Ibidem, p. 103.
560
Ibidem, p. 104.
561
Ibidem, p. 104.
562
Ibidem, p. 105. Ressalte-se que este entendimento de atribuição de um caráter autônomo ao crime contra a
humanidade veio a se consolidar principalmente após o caso “Prosecutor vs. Tadic”, julgado pelo Tribunal da
ONU para os crimes cometidos na Ex-Iugoslávia.
147
De fato, o conceito de crimes contra a humanidade teve uma evolução que se refletiu,
entre outros, nos Estatutos e nas decisões dos tribunais penais internacionais (como por
exemplo, no Estatuto do Tribunal Penal Internacional). Deste modo, os crimes contra a huma-
nidade, sob a perspectiva do Direito Internacional, englobam uma série de ações que possuem
em comum as seguintes características: a) são ofensas particularmente repulsivas, no sentido
de que constituem um sério ataque à dignidade humana, uma grave humilhação ou degrada-
ção de seres humanos; b) não seriam eventos isolados ou esporádicos, mas parte de uma polí-
tica de governo ou de uma prática sistemática e freqüente de atrocidades que são toleradas ou
incentivadas por um governante ou pela autoridade de fato; c) são atos proibidos e podem ser
conseqüentemente punidos, independentemente se tenham sido perpetrados em tempos de
guerra ou de paz; d) as vítimas do crime devem ser civis, ou no caso de crimes cometidos du-
rante um conflito armado, pessoas que não tenham tomado parte nas hostilidades563.
Para que crimes como assassinato, lesão física, escravidão, dentre outros, se tornem
crimes contra a humanidade, deve haver também um componente internacional, que pode se
configurar tanto pelo resultado da conduta que afeta os interesses da segurança coletiva da
comunidade internacional, como pelas razões da gravidade e magnitude da conduta violadora,
que coloque em risco a paz e a segurança da humanidade564.
E distintamente dos crimes de guerra, os crimes contra a humanidade não necessitam
de um elemento transnacional, ou seja, podem ser cometidos dentro dos limites territoriais de
um Estado; e diferentemente do genocídio, eles não se limitam a casos em que existe a inten-
ção de destruir um grupo racial, étnico, nacional ou religioso. A sua dimensão internacional é
determinada pela falta de habilidade dos mecanismos estatais de controle para tratar da crimi-
nalidade provocada pelo próprio Estado ou por seus líderes, uma vez que somente mecanis-
mos internacionais poderiam administrar esse problema565. Os crimes contra a humanidade se
diferenciam, portanto, na sua natureza coletiva e massiva e a referência às populações civis é
o que caracteriza sua massificação566.
563
Ibidem, p. 110.
564
Ibidem, p. 110.
565
Ibidem, p. 110.
566
Ibidem, p. 111.
148
como parte de um ataque generalizado ou sistemático567; c) esse ataque é atribuído a uma po-
lítica de Estado, ainda que expressamente não formalizada; e d) o ataque deve se voltar contra
a população civil568.
Nesse sentido, pode-se referir que os crimes contra a humanidade possuem uma espe-
cial característica: o fato de se aproximar mais da concepção de macrocriminalidade política
(embora o genocídio, o etnocídio e o apartheid também possam estar inseridos neste contexto,
de certa forma). Isto porque a característica essencial do crime contra a humanidade é a exis-
tência de um poder político – uma política de Estado ou de uma organização que exerça o
poder político de fato – que tolera ou participa nos atos violentos praticados contra a popula-
ção civil. Assim, preenchem este elemento quer atos de governo, quer atos de uma organiza-
ção ou grupo que tenha alcançado o poder governamental ou domine de fato uma parte do
território569.
Ainda, elaborando uma breve comparação com o genocídio, enquanto este implica no
deliberado propósito de eliminação completa de um determinado grupo humano, caracteriza-
do a partir de critérios étnicos, religiosos, raciais e nacionais, o crime contra a humanidade
implica na colocação em prática de uma política estatal (ou por uma organização que exerça o
poder político de fato) de perseguição sistemática à população civil. Tais crimes são chama-
dos de crimes contra a humanidade porque eles visam à completa eliminação de parcela ine-
rente à diversidade humana, expulsando grupos da comunidade política e atacando a base do
que permite a própria existência da política: a pluralidade humana570.
No que tange ao bem tutelado, entende-se que se trata da dignidade humana, que as-
sume um fundamento coletivo. Trata-se de um bem jurídico coletivo porque pertence à comu-
nidade internacional, onde todos nos englobamos e de onde ninguém pode ser excluído. Neste
567
Cabe referir que o Tribunal Penal Internacional para Ruanda, no caso Prosecutor vs. Akayesu considerou que
o termo generalizado pode ser definido como uma ação em massa, freqüente e em larga escala, levada a cabo
coletivamente com considerável gravidade e dirigida contra uma multiplicidade de vítimas. O conceito de siste-
mático pode ser definido como meticulosamente organizado e seguindo um padrão regular baseado em uma
política comum envolvendo recursos substanciais públicos ou privados. Vide TRINDADE, Otavio Augusto
Drummond Cançado. Considerações acerca da Tipificação dos Crimes Internacionais Previstos no Estatuto de
Roma. Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br/dados/revistas/ibdh/revista_do_ibdh_numero_4.pdf#page=167>. Acesso em: 04 jul.
2011, p. 171.
568
SANTOS, Roberto Lima, op. cit., p. 112.
569
SOUSA, Susana Aires de. Sobre o bem jurídico-penal protegido nos crimes contra a humanidade. Disponível
em: <http://www.defensesociale.org/xvcongreso/pdf>. Acesso em: 06 jul. 2011, p. 12.
570
FILHO, José Carlos Moreira da Silva. Crimes do Estado e Justiça de Transição. In Sistema penal e violência
– revista eletrônica da Faculdade de Direito. Porto Alegre, vol. 2, n. 2, julho/dezembro 2010. Disponível em:
<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/sistemapenaleviolencia/article/viewArticle/8276>. Acesso em:
06 jul. 2011, p. 25.
149
sentido, é a identidade da vítima, a Humanidade, que faz o crime contra a humanidade. O bem
jurídico individual lesado (vida, integridade física, liberdade, dentre outros) faz parte inte-
grante deste autônomo bem que é a dignidade humana. Para Susana Aires de Sousa, o valor
individual que também se tutela por esta vertente serve como meio de proteção da própria
humanidade, emprestando o seu valor à tutela de um bem-fim: a dignidade humana enquanto
valor comum à humanidade. Ao violar-se uma vida autônoma, despersonalizando-a, desuma-
nizando-a, reduzindo-a a zero, num quadro de um ataque sistemático a uma população, é tam-
bém a humanidade que todos nós partilhamos que se aniquila. Seria, pois, a dignidade humana
na sua camada coletiva571.
Após abordar as características do crime contra a humanidade, cabe agora tecer algu-
mas considerações sobre a sua prática como violação à corporalidade humana, no processo de
desumanização.
Cabe ressaltar primeiramente que o crime contra a humanidade configura-se como
uma violência inédita que, como referimos, nasce da guerra, mas que se distingue completa-
mente da mesma: ela opõe, de um lado, um combatente armado e, de outro, uma população
civil inofensiva. O crime contra a humanidade começa quando o exército ataca inocentes que
não só não combatem, como não representam perigo algum para a concretização dos objetivos
estratégicos almejados572. Trata-se de um massacre elevado ao nível da política, e do encontro
de uma ação e de uma inação, de uma agressão total e de uma passividade absoluta573. A víti-
ma não exerce qualquer tipo de controle sobre sua sorte; ela é incapaz de agir, de fugir, se
defender.
Ainda, o crime contra a humanidade precede de um processo de desumanização da ví-
tima, em que esta vive a experiência de não pertencer a este mundo; a vítima permanece só no
mundo, mas ao mesmo tempo partilha essa experiência com milhares de outras pessoas574.
Este crime revela que pode haver eventos piores do que a morte: já não se visa a submissão,
mas a desumanização: o crime contra a humanidade representa tanto um crime real (o assassi-
nato do outro) como a supressão simbólica, ou seja, a total perda da consideração por outrem.
A vítima, nesse sentido, é desfigurada, inclusive aos seus próprios olhos, perdendo todo o
respeito, todo o amor-próprio, toda a auto-estima: ela é animalizada575, reificada, desapossada
da confiança no mundo. Esta desumanidade se constitui como uma indiferença definida como
571
SOUSA, Susana Aires de, op. cit., p. 17.
572
GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar. Lisboa: Instituto Piaget, 2002, p. 105.
573
Ibidem, p. 106.
574
Ibidem, p. 109.
575
Ibidem, p. 109.
150
Assim, o processo de desumanização por que passa a vítima do crime contra a huma-
nidade é atingido mediante a inscrição desta violência no seu corpo. Ou seja, a violação de
seu corpo é o processo em que se concretiza a desumanização, em que a vítima não é conside-
rada como ser humano, mas como uma coisa disponível a ser destruída. O corpo é peça chave
na efetivação do projeto violento de desumanização.
O apartheid é outra espécie de violação de direitos humanos que de certa forma pode
ser comparada com o etnocídio – o que será visto adiante. A prática do apartheid foi conheci-
576
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006, p. 291.
151
da principalmente a partir dos acontecimentos ocorridos na África do Sul, país que viveu este
sistema por mais de quarenta anos. Este sistema impôs o critério de que a maioria africana não
estava qualificada para gozar de um tratamento igual ao da minoria de origem européia. As-
sim, a população nativa foi marcada pelo apartheid como uma raça inferior, sendo justificável
ainda a privação dos direitos mais básicos.
De acordo com Samuel Duran Bachler, o problema racial na África do Sul, resultante
da política de segregação, não seria algo novo neste país, e não começou em 1948 quando o
Partido Nacionalista passou a aplicar a doutrina do apartheid. Em realidade, desde o princípio
da colonização européia, em meados do século XVII, a segregação existia entre negros e
brancos. Esta segregação foi estabelecida ou como resultado das circunstâncias históricas ao
produzir-se o contato entre grupos raciais completamente diferentes e reforçada pelos prejuí-
zos religiosos e raciais peculiares da época; ou também mediante legislação originada em ves-
tígios de conceitos políticos e sociais predominantes durante os períodos coloniais e semi-
coloniais da história do país. Contudo foi durante a administração britânica no território afri-
cano que se generalizaram práticas equivalentes ao que viria ser o apartheid577.
Para iniciar a exposição, faz-se necessário um breve esboço histórico, o qual podemos
dividir em: a) antes de 1948; b) desde 1948 até 1980; c) de 1980 a 1989; d) de 1989 até hoje.
No período anterior a 1948, os indícios do que viria a ser o apartheid começam a sur-
gir com a constituição britânica para a União Sul-Africana de 1910, que reservou praticamen-
te todo o poder político para a população branca. Assim, o regime do apartheid, instaurado em
1948, se ergueu com base nesta constituição, que favorecia a dominação política por parte da
população branca. Em 1913, as autoridades sul-africanas, mediante a lei de posse de terra,
restringiram os direitos dos africanos a possuir a terra, e demarcaram áreas de ocupação se-
gregadas578.
577
BACHLER, Samuel Duran. Derechos humanos y apartheid. Disponível em:
<http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=2649825>. Acesso em: 04 jul. 2011, p. 823.
578
Ibidem, p. 823.
152
Uma lei de 1936 tornou mais graves estas restrições. Estas leis sobre a terra passaram
a reservar 87% do território à população branca, ao passo que aos negros foram concedidos os
13% restantes, divididos em reduções étnicas, denominados territórios pátrios. Com estas
medidas, estima-se que durante o primeiro meio século, três milhões de negros foram desar-
raigados e deportados a solo estranho para deixar lugar aos brancos579.
Em 1916 se ditaram as leis sobre passes, que abateram a população negra e foram sen-
do cada vez mais estritas sob o regime do apartheid. As leis sobre passes constituíram uma
fonte constante de sofrimentos para a população negra. Esta medida se configurou como um
elemento corrosivo que destruiu a estrutura da sociedade e mostrou desprezo à população ne-
gra. Se estima que dezessete milhões de negros foram presos por violações a estas leis, desde
sua edição em 1916, até que foram abolidas em 1981580.
Ao chegar à idade de 16 anos, toda pessoa negra era fotografada, se tomavam as digi-
tais e se obrigava a solicitar um documento de identidade e uma livreta conhecida como livre-
ta de passe. O número era parte de uma série de dados que indicavam o sexo, data de nasci-
mento e a classificação racial. O documento de passe também continha dados sobre o distrito
de residência habitual do solicitante, seu grupo étnico, a tribo a qual era vinculado, etc. As leis
sobre passes exigiam que os mesmos fossem levados a todo momento581.
Ainda, em 1923 se proibiu aos negros de viver nas cidades, exceto quando os brancos
requeressem seus serviços. No entanto, afora estas medidas, a partir de 1948 a prática do
apartheid levou à discriminação racial a extremos nunca antes vistos.
Em 1949 ditou-se uma lei que proibiu os matrimônios inter-raciais e as relações entre
pessoas de distintas raças. Em 1959 se ditou uma lei de áreas de grupo, que atribuiu aos sul-
579
Ibidem, p. 824.
580
Ibidem, p. 824.
581
Ibidem, p. 824.
582
Ibidem, p. 824.
153
africanos um lugar de residência em função de sua raça. As cidades propriamente ditas fica-
ram reservadas para os brancos. De acordo com esta legislação, até 1984, se havia expulsado
de seus lugares 126.000 famílias que residiam em bairros reservados para outro grupo racial.
Esta lei estabelecia que, dentro do território das reservas brancas (87% do território do país),
as pessoas que pertenciam a diferentes grupos raciais deveriam viver em áreas designadas
para seu grupo em particular. As áreas urbanas, como assinalado, foram quase totalmente de-
signadas como brancas, e os não-brancos foram relegados aos povoados fora da área princi-
pal. Isto implicou na remoção de milhares de famílias583.
Ainda quando a legislação sobre áreas de grupo estava em vigor desde 1950, foi so-
mente a partir da década de 1960 quando se começou a aplicar de forma massiva. Durante
1970, o governo transferiu 33.851 africanos desde as cinco áreas urbanas principais aos terri-
tórios pátrios bantús. Em 1970, se estimava que quatro milhões de africanos estavam destina-
dos a ser finalmente transferidos. Para a conveniência de sua política, o governo sul-africano
dividiu a população africana em oito unidades nacionais, a cada uma das quais se distribuiu
uma parte dos 13% da superfície do país reservada para os não-brancos584.
A tarefa de manter esta forma opressiva de governo requeria uma classificação racial e
uma regulamentação repressiva da população. O principal ato deste sistema foi o Ato de Re-
gistro da População, de 1950. O resultado da aplicação desta legislação foi a destruição das
liberdades civis, tanto para a maioria negra como para a minoria branca. Este ato ainda estabe-
leceu uma classificação racial sistemática das pessoas em brancos, mestiços, índios e negros.
Esta classificação inseria uma etiqueta nos indivíduos desde seu nascimento, e que condicio-
nava o resto de sua existência. A classificação racial penetrava em todos os aspectos da socie-
dade sul-africana e seu sistema jurídico: determinava a escola que uma pessoa poderia fre-
qüentar, o bairro em que deveria residir e o cemitério onde seria enterrado585 586.
Ainda quando não existia uma disposição que obrigasse ao registro do nascimento dos
negros, a lei estabelecia que cada nascimento registrado deveria identificar a classificação por
583
Ibidem, p. 824.
584
Ibidem, p. 824.
585
Ibidem, p. 825.
586
Isso demonstra como o apartheid buscava fazer com que o indivíduo interiorizasse desde cedo sua inferiori-
dade. O apartheid supõe que desde criança, antes de haver desenvolvido por completo sua personalidade, o negro
não deveria internalizar sua inferioridade senão com base na cor de sua pele. Assim, o homem negro se vê impe-
dido desde pequeno a aceder a certos espaços da sociedade, a jogar com crianças de raça branca e a receber uma
educação igualitária, subordinando-se a um destino predeterminado no qual não seria considerado por boa parte
da sociedade como totalmente humano. Este estigma, que aparece como algo objetivo, faz com que o grupo
estigmatizador resulte absolvido de toda culpa. Vide PERRIG, Sara. El poder se tiñe de blanco. Una relación de
establecidos y marginados en el caso del Apartheid. Disponível em:
<http://www.ides.org.ar/shared/practicasdeoficio/2009_nro4/artic12.pdf>. Acesso em: 04 jul. 2011, p. 4.
154
raça dos pais e da criança. Com o tempo, o governo sul-africano foi capaz de desenvolver um
registro da população sobre uma base modernizada para uma discriminação racial rígida. Ca-
da pessoa, viva ou morta, estava classificada de acordo com a raça. Esta classificação era fun-
damentalmente importante para toda pessoa em toda a etapa de sua vida, já que de sua classi-
ficação emanavam todos os direitos e privilégios, ou a falta deles587.
587
BACHLER, Samuel Duran, op. cit., p. 825.
588
Ibidem, p. 825.
589
Ibidem, p. 826.
155
1913 e 1936, que atribuíam aos brancos 87% das terras do país. Em 17 de junho do mesmo
ano foi derrogado o Ato de Registro da População, vigente desde 1950. Em 11 de fevereiro de
1990 Nelson Mandela é posto em liberdade, aos 71 anos, após permanecer preso durante vinte
e sete anos590.
No tocante à prática efetiva do apartheid, deste regime de separação total, pode-se di-
zer que ele foi inserido, em maior ou menor grau, em todos os aspectos da vida doméstica,
familiar, social, política e econômica da população não-branca, que era constituída de 83% da
população da África do Sul. Disposições legais, administrativas e policiais foram conjugadas
para atentar contra o direito à vida e permitir tratamentos inumanos e detenções arbitrárias;
interferir arbitrariamente na vida privada; discriminar por motivos de raça, cor ou ideologia
política; estabelecer a ausência de julgamentos imparciais; interferir na liberdade de movi-
mento e residência; proibições a respeito do direito ao trabalho; a contrair matrimônio; a ad-
quirir propriedades; a reunir-se e associar-se livremente; a participar de eleições e a aceder a
cargos públicos591.
A vida diária era o que caracterizava o apartheid. A grande maioria da população ban-
tú deveria viver em reduções étnicas; os não-brancos não podiam contrair matrimônio com
membros do grupo étnico branco; uma pessoa não podia cruzar a fronteira de sua área para
transferir-se a outra sem obter previamente autorização por escrito; nenhum bantú poderia ir a
um restaurante ou passar a noite em um hotel que não fosse um dos poucos reservados para
não brancos; nenhum bantú podia andar livremente durante a noite nas zonas urbanas brancas;
nenhum bantú que vivesse em uma redução poderia abandoná-la para buscar trabalho em uma
cidade, sem antes obter autorização; nenhum não branco poderia matricular-se na universida-
de, etc592.
Estas condições se repetiam por toda África do Sul como resultado direto da política
de governo, em um país em que os brancos disfrutavam de um dos mais altos níveis de vida
do mundo. Nos territórios pátrios havia pobreza, desemprego, enfermidade e sofrimentos. Os
anciãos, os enfermos, as mulheres e as crianças eram enviados para perecer, fora da vista da
África do Sul branca, ao passo que os jovens eram recrutados para trabalhar nas fábricas
590
Ibidem, p. 827.
591
Ibidem, p. 830.
592
Ibidem, p. 830.
156
brancas, nas minas brancas, nas áreas brancas. Era a realidade do desenvolvimento separa-
do593.
Os meios empregados pelo apartheid e pelo etnocídio podem ser diferentes, mas a fi-
nalidade permanece a mesma: a degradação e a eliminação do outro, quer por meio de regi-
mes institucionais de isolamento e segregação, quer pela inclusão forçada do outro sem sua
593
Ibidem, p. 831.
594
Ibidem, p. 843.
595
Para fins da Convenção, no seu artigo I, entende-se por “discriminação” toda distinção, exclusão, limitação ou
preferência fundada em raça, cor, classe ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou como resultado
anular ou cercear o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais na esfera política, econômica, social, cultural ou em qualquer outra esfera da vida pú-
blica. Vide RODRÍGUEZ, Victor. Instrumentos internacionais sobre racismo no sistema das nações unidas e no
sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Sistematização, análise e aplicação. Disponível em:
<http://www.iidh.ed.cr>. Acesso em: 04 jul. 2011, p. 8.
596
BACHLER, Samuel Duran, op. cit., p. 846.
597
Nesse sentido, a Convenção, em seu artigo I, estabelece que o apartheid é um crime contra a humanidade e
que os atos desumanos resultantes destas políticas e práticas, dentre outras políticas e práticas de segregação e
discriminação racial, conforme definido no artigo II da Convenção, são crimes de violação aos princípios do
direito internacional. Vide Convenção Internacional sobre a Supressão e Punição do Crime de Apartheid. Dis-
ponível em: <http://www.oas.org>. Acesso em: 04 jul. 2011.
598
BRITO, Antônio José Guimarães. Etnicidade, alteridade e tolerância. In COLAÇO, Thais Luzia (Org.). Ele-
mentos de antropologia jurídica. Florianópolis: Conceito, 2008, p. 47.
157
Neste ponto, buscar-se-á elaborar um esboço – ainda que seja muito preliminar – com
o objetivo de se apresentar uma construção do conceito jurídico de etnocídio. Não obstante
seja conhecido no âmbito da etnologia, principalmente com os estudos de Robert Jaulin e Pi-
erre Clastres (cujos autores já mencionamos), a concepção de etnocídio ainda não possui con-
tornos específicos no âmbito jurídico, principalmente penal.
Para tanto, para se iniciar uma exposição acerca de um conceito jurídico, deve-se partir
de alguns conceitos etnológicos que poderão auxiliar na compreensão do etnocídio enquanto
fenômeno jurídico. Dentre eles estão a noção de identidade étnica, etnia e grupo étnico.
Seguindo a exposição de José Maria Alencar e José Heder Benatti600, pode-se denomi-
nar grupo étnico como sendo uma população em que: a) se perpetua principalmente por meios
biológicos; b) compartilha de valores culturais fundamentais, postos em prática em formas
culturais num todo explícito; c) compõe um campo de comunicação e interação; d) tem um
grupo de membros que se identifica e é identificado por outros como constituinte de uma ca-
tegoria distinguível de outras categorias da mesma ordem.
Grupo étnico é um tipo organizacional, cujos limites são demarcados pela auto-
identificação e oposição. Os membros da população se auto-identificam como tais e essa iden-
tificação/identidade é oposta e reconhecida por outros. Trata-se de uma identidade contrasti-
va, em que subsiste a característica de auto-atribuição e atribuição por outros601. Trata-se,
portanto, de um tipo de organização, cujos atributos caracterizadores são: a) conglomerado
social capaz de reproduzir-se biologicamente; b) que reconhece uma origem comum; c) cujos
599
Ibidem, p. 47.
600
ALENCAR, José Maria; BENATTI, José Heder. Os crimes contra etnias e grupos étnicos: questões sobre o
conceito de etnocídio. In Os Direitos Indígenas e a Constituição. Porto Alegre: Fabris, 1993, p. 209.
601
Ibidem, p. 210.
158
membros se identificam entre si como parte de um nós distinto dos outros e d) que comparti-
lham certos elementos e ações culturais, entre os quais tem especial relevância a língua602.
Porém, isto não quer dizer que o grupo étnico não se relacione com outros grupos ou
com uma sociedade mais complexa, constituindo uma ilha isolada. O que o caracteriza é que
mesmo tendo relações com outros grupos, ele possui uma origem comum, identidade coletiva,
território, unidade e organização política, língua e outros elementos comuns604.
Já no que concerne ao conceito de etnia, os autores esclarecem que esta seria o resul-
tado de uma expansão do conceito de grupo étnico; etnia se constitui como uma ampliação,
uma expansão do conceito de grupo étnico, para abarcar uma totalidade onde estão presentes a
auto-atribuição e a oposição, larga o bastante para abrigar no seu interior inclusive o próprio
conceito de grupo étnico. A diferença entre um e outro estaria em uma relação de continência
e conteúdo. Etnia seria larga o bastante para abarcar um grupo étnico; este seria uma das uni-
dades étnicas constitutivas da etnia605.
Segundo os autores, etnia seria uma entidade caracterizada por uma língua, uma mes-
ma tradição cultural e histórica, ocupando um dado território, tendo uma mesma religião e,
sobretudo, a consciência de pertencer a essa comunidade. Os indivíduos pertencem à mesma
cultura e se reconhecem como tal. Isso ocorre a partir da idéia de identidade étnica, que se
fundamenta na cooparticipação de uma cultura própria comum, que por sua vez define os li-
mites do sistema social que constitui um grupo étnico606.
602
Ibidem, p. 210.
603
Ibidem, p. 211.
604
Ibidem, p. 211.
605
Nesse aspecto, podemos identificar a diferença entre etnia e grupo étnico com base na organização os indíge-
nas Yanomami. Dentro da etnia Yanomami subsistem outros grupos que possuem diferentes denominações, se
constituindo como grupos dentro de uma etnia.
606
ALENCAR, José Maria; BENATTI, José Heder, op. cit., p. 212.
159
Benjamim Whitaker, que foi Relator Especial designado pela Subcomissão de Preven-
ção de Discriminações e Proteção às Minorias, redigiu em 1985 um informe sobre a questão
da prevenção e sanção ao crime de genocídio. Ainda que nesta ocasião não foi incluído na
Convenção sobre o Genocídio o conceito de genocídio cultural (ou etnocídio), este conceito
foi expressado no informe – conhecido como Relatório Whitaker – que define o genocídio
cultural como todo ato premeditado, cometido com a intenção de destruir o idioma, a religião
ou a cultura de um grupo nacional, racial ou religioso por razão de origem nacional ou racial
ou das crenças religiosas de seus membros608.
No Direito Penal Internacional, o etnocídio ainda não possui contornos definidos, em-
bora seja formalmente mencionado que ele se constitui como uma violação de direitos huma-
nos igual ao genocídio. Mario Leonardo Rustrian Dieguez, em tese de doutorado defendida
607
Ibidem, p. 214.
608
ABADJIAN, Juan Augusto (Org.). Aproximación informativa y estudios analíticos sobre el genocídio armê-
nio. Buenos Aires: Centro de estudios e investigaciones Urartu, 2004, p. 186.
609
Ibidem, p. 186.
610
ALENCAR, José Maria; BENATTI, José Heder, op. cit., p. 219.
160
611
RUSTRIAN DIÉGUEZ, Mario Leonardo. Regulación legal del delito de etnocidio en la legislación penal
guatemalteca y sus consecuencias jurídico-sociales en los últimos 30 años. 1998. 69f. Tesis (Doctorado en De-
recho) – Facultad de Ciencias Juridicas e Sociales – Universidad de San Carlos de Guatemala, Guatemala, 1998.
612
Nesse sentido, vide o item 3.1 deste trabalho, o qual igualmente aborda sobre a Declaração de San José e sua
definição de etnocício.
613
Nesse sentido, vide os artigos dos autores Bartolomé Clavero e Pablo Dávalos, que expõem algumas questões
críticas a respeito da tipificação do etnocídio. Vide DÁVALOS, Pablo. Ecuador: Ley de etnocidio y genocidio:
¿una batalla perdida? Disponível em: <http://www.vidadelacer.org>. Acesso em: 04 mai. 2011; CLAVERO,
Bartolomé. Delito de Genocidio y Pueblos Indígenas en el Derecho Internacional. Disponível em:
<http://clavero.derechosindigenas.org/?p=109>. Acesso em: 28 abr. 2011.
614
As referências sobre o assunto constam no site da Assembléia Nacional do Equador, na página:
<http://www.asambleanacional.gov.ec>. Acesso em: 25 mar. 2011.
615
Projeto de lei de tipificação do delito de etnocídio. Disponível em: <http://www.legislaturaqro.gob.mx>.
Acesso em: 25 mar. 2011.
616
Querétaro é um dos 31 Estados que junto ao Distrito Federal constituem as 32 entidades federativas de Méxi-
co.
161
como os monges tibetanos na China, por exemplo, principalmente durante a Revolução Cultu-
ral comunista. Assim, o etnocídio, embora seja mais conhecido dentro da questão indígena, é
estendido a outros grupos humanos que passaram pela mesma experiência.
No caso do Brasil, há sólida base constitucional para uma possível tutela (penal e ex-
trapenal) da identidade cultural, supervalorizando a cultura como elemento essencial da etnia.
A Constituição de 1988 atribuiu significativa importância à cultura, abarcando a noção de
identidade e memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Tal noção é
referida nos seus artigos 23, III; 24, VII; 30, IX; 215 (garantia, pelo Estado, do pleno exercí-
cio dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, com a valorização e difusão
das manifestações culturais), e especificamente quanto à etnia, o artigo 231. A preocupação
com a questão cultural é tão significativa que poderia se cogitar da existência de uma consti-
tuição cultural, ao lado de uma constituição política, de uma constituição econômica e de uma
constituição social617.
grupos étnicos brasileiros está contido nos artigos 231, § 1º, da Constituição, e art. 68, do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias620.
Por fim, cumpre ressaltar que a Constituição também visa a garantia e proteção do
patrimônio cultural brasileiro, afirmando no seu art. 216, § 4º, que os danos e ameaças ao pa-
trimônio cultural serão punidos, na forma da lei. Dentre esses danos pode-se incluir o etnocí-
dio621.
Nesse sentido, pode-se afirmar que diante da relevância da matéria em questão, bem
como do bem objeto de estudo (a identidade cultural de comunidades humanas) subsistem
fundamentos importantes para se buscar uma recepção do etnocídio como crime internacional,
equiparando-o ao genocídio. As práticas etnocidas apontam que a violência que é cometida
nesta prática segue o mesmo patamar do genocídio enquanto grau de brutalidade. Com efeito,
seria adequado que a comunidade jurídica buscasse alternativas para se dar maior relevância a
este tema, buscando recepcionar, talvez, o etnocídio enquanto crime internacional equiparado
ao genocídio, como já descreveu a Declaração de San José, na década de oitenta.
Contudo, necessário salientar que medidas de índole criminal não são suficientes para
a solução deste problema. Também são necessárias medidas governamentais e internacionais
de proteção ao patrimônio cultural, bem como políticas públicas de proteção de idiomas em
extinção, políticas de reconhecimento de comunidades étnicas pela preservação da memória
coletiva, dentre outras alternativas. São medidas de caráter extrapenal, que podem auxiliar na
prevenção ao etnocídio.
Finalizado este ponto, seguir-se-á a abordagem final, que trata acerca da ética, memó-
ria e reconhecimento às vítimas como medida de observância aos direitos dos povos. Trata-se
de elementos que, vinculados ao tema dos direitos dos povos (de terceira dimensão), podem
se constituir como base teórica para a busca de proteção de coletividades humanas, bem como
orientação para se formar diretrizes de prevenção e repressão ao etnocídio (tanto medidas de
caráter penal como extrapenal).
620
Ibidem, p. 220.
621
Ibidem, p. 221.
163
Dentro do tema relativo aos direitos humanos dos povos, buscamos inserir o que con-
sideramos três pilares para a sua observância: a) uma ética libertadora como princípio, apoi-
ando-se nos estudos do filósofo Enrique Dussel; b) uma valorização da memória – uma justiça
anamnética, na visão de Reyes Mate – como aspecto importante na prevenção da repetição da
barbárie e c) o processo de reconhecimento das vítimas como prática ético-jurídica, com base
na teoria do reconhecimento de Axel Honneth. Todos estes três elementos compõem a estru-
tura que pode dar sustentação a uma maior observância dos direitos dos povos, a fim de se
buscar prevenir o etnocídio. Esta proposta não visa solucionar completamente a problemática
do etnocídio – o que seria uma demasiada pretensão – mas se propõe apenas apontar determi-
nados caminhos teóricos que podem servir como parâmetro para uma melhor garantia de so-
brevivência de muitos grupos humanos sob ameaça de extinção física e cultural.
Inicialmente, antes de se tratar pontualmente sobre cada um dos pilares para uma ob-
servância dos direitos dos povos (e, consequentemente, para a prevenção e repressão ao etno-
cídio), cabe expor primeiramente algumas considerações sobre os direitos humanos em si,
para posteriormente tecer breves considerações específicas sobre os direitos humanos dos
povos.
No que tange aos direitos humanos, para alguns estes seriam aqueles inerentes à vida,
à segurança individual, aos bens, etc; para outros, direitos humanos significa valores superio-
res que regem os homens; uns entendem que são direitos inerentes à natureza humana; outros
sustentam que é uma conquista social através da luta política623. E nesse sentido, é pertinente
esclarecer que os direitos humanos, antes de qualquer coisa, provêm historicamente de um
conteúdo político624. Ou seja, se os direitos humanos no plano histórico já foram entendidos
622
A seguir, será feita uma melhor explanação da concepção dos direitos humanos, especialmente sobre os de
terceira dimensão, bem como sobre este termo que é empregado.
623
DORNELLES, João Ricardo W. O que são direitos humanos. São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 09.
624
Ibidem, p. 10.
164
de diferentes maneiras (provenientes da vontade divina; direitos que já nascem com o indiví-
duo; emanados do poder do Estado; ou um produto da luta de classes), isso significa que cada
uma dessas concepções representou distintos momentos na história do pensamento e das soci-
edades humanas625. São noções de direitos ou valores fundamentais que se transformaram de
acordo com o modo de organização social. Com efeito, é impossível concluir que exista ape-
nas uma única fundamentação e concepção para os direitos humanos626. Mas de certa forma, o
que fundamenta a doutrina jurídica dos direitos humanos é a dignidade da pessoa humana627.
Com o passar dos tempos, surgiram três principais concepções, com seus respectivos
fundamentos: A primeira – concepção idealista – fundamentava os direitos do homem através
de uma visão metafísica, pela qual se identificava direitos e valores supremos a partir de uma
ordem transcendental, manifestada na vontade divina (como no feudalismo), ou na razão natu-
ral humana (como ocorreu a partir do século XVII, com o advento da Escola do Direito Natu-
ral). Desta concepção vinha a idéia de que os direitos são inerentes ao homem, ou nascem
pela força da sua natureza (os homens já nascem livres, dignos, iguais). Direitos à segurança e
à liberdade existiriam independentemente da existência do Estado629.
tende que os direitos do homem, previstos nas declarações de direitos e nas Constituições dos
séculos XVIII e XIX seriam uma expressão formal de um processo político-social e ideológi-
co, realizado pelas lutas sociais quando a burguesia ascendeu ao poder político. Esta concep-
ção surge principalmente a partir das obras filosóficas de Karl Marx631.
Assim, com base nestas diferentes concepções e fundamentações acerca dos direitos
humanos é que se desenvolveram as chamadas “gerações” de direitos humanos. Contudo, ao
nosso entender – e seguindo a doutrina de Ingo Sarlet632 – o termo “gerações” porventura po-
de causar a impressão de que haveria uma substituição gradativa de uma geração por outra, o
que não seria conveniente em termos de direitos humanos e fundamentais. Ou seja, há em
verdade uma complementaridade, que advém de um processo cumulativo de novas reivindi-
cações. Assim, seguindo a lição do autor, faz-se mais adequada a utilização do termo dimen-
sões. Esta estrutura vincula os direitos humanos, mas também os direitos fundamentais de
cunho constitucional633.
631
Ibidem, p. 17.
632
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2007, p. 54.
633
Ibidem, p. 55.
634
DORNELLES, João Ricardo W, op. cit., p. 19.
635
Ibidem, p. 20.
636
Ibidem, p. 21.
166
Para tanto, as lutas operárias e populares marcaram a reivindicação por direitos soci-
ais, econômicos e culturais, através de uma ação efetiva do Estado – com a revolução mexica-
na, a revolução russa de 1917, a Constituição da República de Weimar na Alemenha e a cria-
ção da OIT em 1919. São os direitos de ação positiva do ente estatal, direitos de dimensão
positiva. Dentre eles, sobrevieram o direito ao trabalho, direito à organização sindical, direito
à previdência social, direito à greve, direito a serviços públicos, moradia, etc., frutos das críti-
cas socialistas, com o Estado como agente interventor639.
637
Ibidem, p. 23.
638
Ibidem, p. 25.
639
Ibidem, p. 30.
167
mesmo tempo direitos individuais e direitos coletivos640. Outro fator que também contribuiu
para o advento da terceira dimensão de direitos foi o constante estado de medo que o mundo
enfrentou com a Guerra Fria, mediante a constituição do bloco americano e de outro lado, o
soviético. O mundo presenciava, após os genocídios destruidores de classes, de grupos étni-
cos, raças ou grupos culturais, uma outra ameaça: a atômica, a partir da qual poderia haver
uma guerra em que não existiriam vencidos, mas uma catástrofe que atingiria toda a espécie
humana641.
Por fim, outra questão que marca o advento dos direitos de terceira dimensão foi a no-
va divisão do trabalho e a “Era das multinacionais”. Especialmente no período de 1945 até
1960, o grande impulso econômico com base no capital das multinacionais e o uso intensivo
das fontes de energia e recursos naturais de todas as regiões do mundo levaram a um nível de
desenvolvimento da produção que causou – e ainda hoje se estende – um grande quadro de
destruição ambiental642.
Para tanto, no século XX houve uma constante ameaça de extermínio de grupos hu-
manos, dos recursos naturais, e até mesmo uma ameaça de destruição total da vida no planeta,
o que ensejou a emergência de uma nova concepção acerca dos direitos humanos: Direito à
paz, direito ao ambiente, direitos de proteção aos grupos humanos (repressão ao genocídio, à
discriminação, proteção às minorias, podendo ser inserida neste contexto o etnocídio). Estes
direitos, portanto, desprendem-se da figura do homem enquanto indivíduo passando à prote-
ção de grupos humanos; direitos eminentemente de titularidade coletiva ou difusa 643. Visam
proteger, portanto, a família, o povo, a nação, coletividades regionais ou étnicas, e inclusive a
própria humanidade644. No magistério de Antônio Carlos Wolkmer645, trata-se de direitos em
que seu titular não seria o homem individual, mas diz respeito à proteção de categorias ou
grupos de pessoas.
Com todos estes fatores, foi necessária a criação de mecanismos que estabelecessem
um limite à atuação dos Estados pelas leis internacionais, embora a maioria não disponha de
poder coercitivo, mas apenas de conteúdo moral646.
640
Ibidem, p. 33.
641
Ibidem, p. 34.
642
Ibidem, p. 35.
643
SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 58.
644
LAFER, Celso, op. cit., p. 131.
645
WOLKMER, Antônio Carlos; LEITE, José Rubens Morato. Os novos direitos no Brasil – natureza e perspec-
tivas. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 9.
646
DORNELLES, João Ricardo W, op. cit., p. 39.
168
Especialmente no tocante aos direitos dos povos, como referido anteriormente, com os
novos problemas advindos do século XX (extermínio em massa de grupos humanos, degrada-
ção ambiental e o perigo de extinção da vida no planeta), surge a emergência de se criar me-
canismos de proteção dos grupos humanos, da natureza e da humanidade. O Direito dos Po-
vos – direitos de terceira dimensão – é um elemento importante para situar nosso estudo, pois
esta dimensão de direitos (complementada com as demais dimensões) propicia a proteção de
grupos humanos, em especial etnias distintas que se situam dentro do Estado de Direito con-
temporâneo. Este Direito restringe a soberania absoluta dos Estados de fazer o que quiser com
os povos dentro de suas fronteiras. A proteção dos povos, portanto, independe da condição de
se pertencer a um Estado-Nação650.
647
Ibidem, p. 40.
648
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A universalidade parcial dos direitos humanos. In GRUPIONI,
Luís Donisete Benzi; VIDAL, Lux; FISCHMANN, Roseli. Povos indígenas e tolerância: construindo práticas
de respeito e solidariedade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001, p. 258-261.
649
Nesse sentido, é pertinente ainda a abordagem crítica que Boaventura de Souza Santos traça sobre os direitos
humanos. Na sua visão, não devem se constituir como uma política universal cultural hegemônica (do ocidente
industrial, por exemplo, ocasionando um imperialismo cultural). Ou seja, deve haver um diálogo intercultural no
que tange aos direitos humanos, a partir da igualdade e do reconhecimento da diferença. Na proposta de uma
política contra-hegemônica de direitos humanos, Boaventura parte das seguintes premissas, dentre outras: a)
superar o debate entre universalismo x relativismo, e estabelecer um diálogo intercultural sobre preocupações
convergentes entre as diferentes sociedades; b) identificar as preocupações entre as diferentes culturas, pois todas
possuem uma concepção de dignidade humana, mas nem todas tratam em termos de direitos humanos; c) propor
uma concepção multicultural de direitos humanos, através da consciência da incompletude das culturas, do diá-
logo entre elas; d) buscar compreender a luta pela igualdade e a luta pela diferença a fim de promover uma polí-
tica emancipatória de direitos humanos. Mais detalhes em SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do
tempo – para uma nova cultura política. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2008, p. 445-447.
650
Ao nosso parecer, a condição de povo tem muito mais um valor antropológico e sociológico, o que permite
atribuir uma proteção a determinados povos que se situam no âmago dos Estados Nacionais, possuindo cultura e
modo de vida distintos, embora estejam dentro deste mesmo Estado. São etnias que constituem uma identidade
169
Esta necessidade de proteção de povos que se encontram dentro do Estado advém das
conquistas históricas e da imigração, o que causou a mistura e coexistência de grupos huma-
nos com culturas e memórias históricas diferentes651. Assim, com relação ao Direito dos Po-
vos na proteção de grupos humanos específicos (por sua vulnerabilidade e condição de vítima
em potencial, por exemplo), ele surge visando coibir grandes males da história humana, como
guerras, opressão, perseguição religiosa, negação da liberdade de expressão e de consciência,
além dos genocídios dos regimes totalitários e do etnocídio e genocídio provenientes das con-
quistas histórico-coloniais e do expansionismo econômico e modernizador.
Dentro deste campo do Direito dos Povos, temos como um ramo deste a questão ati-
nente à proteção de etnias, portadoras de identidade cultural distinta da sociedade majoritária,
e que são detentoras de direitos coletivos especiais para a proteção de sua existência enquanto
grupo humano.
cultural distinta. Nesse sentido, é necessário não se vincular a noção de povo com a existência de um Estado;
podem existir povos dentro deste Estado. Vide AGUIRRE, Francisco Ballón. Manual del Derecho de los Pue-
blos Indígenas. Doctrina, principios y normas. 2ª ed. Lima: Defensoria del Pueblo. Programa de comunidades
nativas, 2004.
651
RAWLS, John. O Direito dos Povos. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 32.
652
Aprovada pela Assembléia Geral da ONU de 18 de dezembro de 1992, através da Resolução 47/135. Nesse
sentido, o art. 2º, item 1, estabelece que “As pessoas pertencentes a minorias nacionais, étnicas, religiosas e lin-
guísticas têm o direito de desfrutar de sua própria cultura, de professar e praticar sua própria religião, de fazer
uso de seu idioma próprio, em ambientes privados ou públicos, livremente e sem interferência de nenhuma for-
ma de discriminação”. Vide MONTEIRO, Adriana Carneiro, BARRETO, Gley Porto; OLIVEIRA, Isabela Lima
de; ANTEBI, Smadar. Minorias Étnicas, Linguísticas e Religiosas. Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br/dados/cursos/dh/br/pb/dhparaiba/5/minorias.html>. Acesso em: 22 jul. 2010, p. 5.
653
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 5ª ed. São Paulo: Saraiva,
2007, p. 395. Outro ponto de necessário destaque é que a Carta Africana adota uma perspectiva coletivista, que
empresta ênfase nos direitos dos povos; ela prevê não apenas direitos civis e políticos, mas engloba direitos
econômicos, sociais e culturais. Vide PIOVESAN, Flávia. Carta africana dos direitos humanos e dos povos.
Disponível em: http://www.esmpu.gov.br/dicionario/>. Acesso em: 04 mai. 2011, p. 1.
170
manos o direito à diferença654, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em seu art.
27655, e a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada em 13 de de-
zembro de 2007 pela Assembléia Geral da ONU.
Nesse mesmo sentido, subsistem ainda outros instrumentos que de certa forma fazem
parte da valorização da cultura e dos grupos humanos, dentro da temática dos direitos dos
povos. Neste aspecto destacam-se a Declaração Universal dos Direitos dos Povos (conhecida
como Carta de Argel), que reafirma o direito à existência (semelhante à Carta Africana dos
Direitos dos Povos), bem como o direito ao respeito por sua identidade nacional e cultural. No
mesmo documento, destaca-se que nenhuma pessoa pode ser submetida, por causa de sua
identidade nacional ou cultural, ao massacre, à tortura, à deportação à expulsão ou a condi-
ções de vida que possam comprometer a identidade ou a integridade do povo ao qual perten-
ce. Também destaca que todo povo tem o direito de falar sua língua, de preservar e desenvol-
ver sua cultura, contribuindo assim para o enriquecimento da cultura da humanidade. Ainda
destaca que todo povo tem direito a que não se lhe imponha uma cultura estrangeira (art. 15);
nesse campo, destaca-se o repúdio ao etnocídio, ainda que indiretamente656.
No que diz respeito à língua, tem-se a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos,
de 1966, que no seu art. 3º considera como direitos individuais o direito a ser reconhecido
como membro de uma comunidade lingüística; o direito ao uso da língua em âmbito privado e
público e, dentre outros, o direito a manter e desenvolver a própria cultura, mediante o ensino
654
COMPARATO, Fábio Konder, op. cit., p. 398. No entanto, como dispõe o art. 1, item 2 da Declaração, a
diversidade das formas de vida e o direito à diferença não podem servir como pretexto aos preconceitos raciais e
não podem legitimar práticas discriminatórias. Vide Declaração sobre raça e os preconceitos raciais. Disponí-
vel em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/discrimina/dec78.htm>. Acesso em: 28 abr. 2011, p. 2.
655
Refere o art. 27: “Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, as pessoas pertencen-
tes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu gru-
po, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua”. Vide MON-
TEIRO, Adriana Carneiro; BARRETO, Gley Porto; OLIVEIRA, Isabela Lima de; ANTEBI, Smadar. Minorias
Étnicas, Lingüísticas e Religiosas, op. cit., p. 04.
656
Declaração Universal dos Direitos dos Povos. Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/textos/direitos_povos.html>. Acesso em: 28 abr. 2011.
657
Declaração Universal dos Direitos Coletivos dos Povos. Disponível em:
<http://www.ciemen.org/pdf/port.PDF>. Acesso em: 28 abr. 2011, p. 3.
171
Por fim, encerrando esta descrição dos instrumentos jurídicos de menção aos direitos
dos povos (e, por conseqüência, de prevenção e repressão ao etnocídio), tem-se a Declaração
Universal sobre a Diversidade Cultural, que reafirma a diversidade cultural como patrimônio
comum da humanidade, devendo ser reconhecida e consolidada em benefício das gerações
presentes e futuras (art. 1). Ainda ressalta, dentre outros aspectos, que a defesa da diversidade
cultural é um imperativo ético, inseparável do respeito à dignidade humana. Ela implica o
compromisso de respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular os
direitos das pessoas que pertencem a minorias e os povos autóctones660.
A partir de todos estes instrumentos internacionais relatados, pode-se afirmar que sub-
siste uma tendência à atenção à proteção da identidade cultural, que por conseguinte visa pre-
venir e reprimir a prática do etnocídio. Nesse campo, os instrumentos internacionais citados
expressam uma intenção de se efetivar os direitos humanos dos povos, especialmente visando
a preservação de suas respectivas línguas e culturas.
No entanto, a simples existência destes documentos não pode servir como único parâ-
metro para a efetivação dos direitos humanos dos povos e a prevenção e repressão ao etnocí-
dio. Como já referido, são necessárias políticas governamentais de preservação de identidades
(como manutenção de idiomas em extinção, preservação da memória histórica e medidas de
658
Declaração Universal dos Direitos Linguísticos. Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/a_pdf/dec_universal_direitos_linguisticos.pdf>. Acesso em: 28 abr.
2011, p. 2.
659
Declaração dos Princípios de Cooperação Cultural Internacional. Disponível em: <http://www.nepp-
dh.ufrj.br/onu16-1.html>. Acesso em: 09 jun. 2011, p. 1.
660
UNESCO. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. Disponível em:
<http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf>. Acesso em: 28 abr. 2011.
661
UNESCO. Convenção sobre a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais. Disponível em:
<http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001502/150224por.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2011.
172
Principalmente pelos trabalhos do filósofo mexicano Leopoldo Zea – que inclusive foi
um dos primeiros estudiosos a tematizar a questão da libertação, opondo a uma cultura de
dominação européia uma cultura de libertação latino-americana – passou-se a desenvolver
uma filosofia da história que abordava sobre o tratamento desigual do Ocidente frente à Amé-
rica Latina. A temática dos filósofos criadores da filosofia da libertação também assentava
suas bases teóricas na diversidade humana como um expoente universal. A idéia de libertação
é o elemento basilar do pensamento latino-americano que originou este movimento. Em sínte-
se, é um movimento filosófico contemporâneo, que surgiu na América Latina no início da
década de setenta na Argentina, e que desenvolve muitos temas comuns entre seus membros,
principalmente relativos à pobreza, ética da alteridade, humanismo e identidade cultural, entre
outros. Para David Sánchez Rubio, é um dos movimentos filosóficos mais interessantes e de
maior originalidade665.
663
RUBIO, David Sánchez. Filosofía, Derecho y Liberación en América Latina. Bilbao: Desclée de Brouwer
1999, p. 29.
664
Ibidem, p. 30.
665
Ibidem, p. 31.
666
Ibidem, p. 47.
174
Outro autor que contribuiu para o nascimento da filosofia da libertação foi Augusto
Salazar Bondy670, que afirmava a necessidade de uma filosofia da libertação que ajudasse a
superar o subdesenvolvimento e a dominação da América Latina. Seria, em suma, uma filoso-
fia que convertesse a consciência de nossa condição deprimida como povo em uma reflexão
capaz de desencadear e promover a superação desta condição671.
A única forma para o oprimido tomar consciência da opressão era descobrir a relação
de dominação. A tarefa da filosofia latino-americana seria buscar superar o discurso teórico
do processo de modernização, detectando os riscos desta dialética de dominação que estavam
em seu próprio ser oprimido e dependente, para transformar esta relação673.
667
Rubio refere que uma das obras que marcam a gênese da filosofia da libertação com Leopoldo Zea é a sua
obra América en la historia, de 1957, descrevendo que a América Latina estava fora da história. Ibidem, p. 48.
668
Ibidem, p. 46.
669
Nesse sentido, vide ZEA, Leopoldo. La filosofia americana como filosofia sin más. México: Editorial Siglo
XXI, 1989, p. 44.
670
Vide BONDY, Augusto Salazar. Existe una filosofia de nuestra América? México: Siglo XXI, 1988.
671
RUBIO, David Sánchez, op. cit., p. 32.
672
Ibidem, p. 32.
673
Ibidem, p. 33.
175
Enrique Dussel, por sua vez, relata que a experiência originária da filosofia da liberta-
ção consiste em descobrir o elemento de dominação: no plano mundial, com o começo da
modernidade que criou o eixo centro-periferia (1492); no plano nacional (elite e massas); no
plano erótico (submissão da mulher pelo homem); no plano pedagógico (imposição da cultura
imperial, elitária, frente à cultura periférica, popular); no plano religioso (imposição de uma
religião em detrimento da crença do colonizado); e também no nível racial (discriminação das
raças não-brancas), etc. Esta experiência originária da filosofia da libertação, portanto, ocorre
com o olhar sobre o pobre, o dominado, o índio, o negro, a mulher como objeto, a criança no
processo de manipulação ideológica; o oprimido, o torturado, destruído em sua corporalidade
em muitos aspectos. O fator exclusão é o ponto de partida da filosofia da libertação (exclusão
das culturas dominadas, da comunidade filosófica latino-americana, etc). Uma filosofia volta-
da à realidade do Terceiro Mundo, em especial a latino-americana674.
Nos dias atuais, a filosofia da libertação (com os estudos de Enrique Dussel) está em
nova etapa. Nesse sentido, Dussel refere que
A partir de uma ética da alteridade, Dussel apresenta uma nova etapa da filosofia da
libertação no século XXI, a partir da exterioridade do pobre, da mulher, da cultura popular
marginalizada, das raças não-brancas, da destruição ecológica da terra, fatores que se lançam
num discurso filosófico crítico e que são assuntos importantes na abordagem da filosofia da
libertação. Esta prática filosófica terá como fundamento o princípio material universal de
produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana676. E nesta linha, advoga-se que a
realidade dependente dos excluídos exige uma filosofia totalmente voltada à defesa dos seres
humanos, em especial aqueles que se encontram em situação de marginalização e pobreza.
Para isto, uma reflexão crítica e ética sobre a condição política, social e econômica dos seres
674
Vide a biografia de Enrique Dussel em <http://www.enriquedussel.org/Home_cas.html>. Acesso em: 28 out.
2010.
675
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2007, p.
73.
676
RUBIO, David Sánchez, op. cit., p. 115.
176
humanos oprimidos em todos os aspectos, olhando o ser humano que está fora do sistema-
mundo e da sociedade que o exclui; este será o princípio da libertação677.
Desde onde? É necessário responder esta questão para referir que devemos nos situar
na realidade latino-americana679, a qual vivenciamos.
Terceiro, para quê? A libertação no contexto dos direitos humanos visa (do ponto de
vista jurídico) estar vinculada ao conteúdo fundamental de todos os direitos humanos: o direi-
to de ter a possibilidade de exercer direitos, ou seja, a possibilidade de cada pessoa humana –
ou grupo humano – ser reconhecido como sujeito de direitos e de dignidade humana. Os gru-
pos humanos e povos (numa acepção mais ampla) devem ter reconhecidos os direitos à exis-
tência e à identidade cultural, além de poder realizar ações que possam contribuir com a pre-
servação destes direitos essenciais.
677
Ibidem, p. 118.
678
Ibidem, p. 160-162.
679
O que não quer dizer que ao nosso entender também não possa ser explorada a partir da realidade em outras
localidades, como a africana, a asiática, etc. O contexto local, em nossa opinião, ultrapassa as fronteiras, pois a
realidade dos processos populares e sociais é corrente em diversos segmentos territoriais do planeta.
177
A partir dos estudos da filosofia da libertação, portanto, pode-se propor uma reflexão
ético-crítica que auxilia na compreensão da realidade, da violência que envolve muitos grupos
ameaçados, além de contribuir para uma prática filosófica que se empenhe na busca do reco-
nhecimento dos direitos dos seres humanos enquanto membros de um povo, de uma etnia.
Enrique Dussel refere que estamos diante de um sistema-mundo que está se globali-
zando e excluindo, paradoxalmente, a maioria da humanidade. Um problema de vida ou mor-
te. Para isso, a emergência de uma ética da libertação, que afirme a vida humana 680 ante o
assassinato coletivo para o qual a humanidade se encaminha, é um aspecto importante para se
compreender a necessidade de se reconhecer o direito à existência aos grupos humanos – e
também da maioria excluída do sistema global.
Seu marco teórico é a globalização e a exclusão. Estas palavras indicam o duplo mo-
vimento em que está a Periferia Mundial: de um lado, a pretensa modernização na globaliza-
ção formal do capital; por outro lado, a exclusão material das vítimas deste processo. A ética
da libertação ajuda a compreender este processo contraditório, permitindo pensar filosofica-
mente o sistema-mundo que vivemos, e afirmar uma ética da vida, que auxilie a pensar criti-
camente685. Com base no exercício ético-crítico, afirma-se a dignidade negada da vítima hu-
mana, oprimida ou excluída. A partir da vítima, a verdade começa a ser descoberta. Nesse
680
Vida humana, para a ética da libertação, corresponde à “vida do ser humano em seu nível físico-biológico,
histórico cultural, ético-estético e até mesmo místico-espiritual, sempre num âmbito comunitário...”. Vide
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão, op. cit., p. 632.
681
Ibidem, p. 11.
682
Ibidem, p. 13.
683
Ibidem, p. 15.
684
Ibidem, p. 15.
685
Ibidem, p. 17.
178
sentido, é importante reconhecer as vítimas como sujeitos éticos, como seres humanos que
não podem reproduzir ou desenvolver sua vida, que foram excluídas da participação na dis-
cussão, e que são afetados por alguma situação de morte686.
Destarte, partindo da razão ético-crítica, aquele que pensa sobre o sistema e seus fun-
damentos descobre a dignidade dos sujeitos e a impossibilidade de reprodução da vida da ví-
tima, constata a exclusão vivida por esta687. Precisamos reconhecer a alteridade da vítima688,
da dor da sua corporalidade; isto é a origem de toda a crítica ética possível, na lição de Dus-
sel689. Uma ética crítica é aquela que parte da negação da vida humana e que se expressa no
sofrimento das vítimas, seja escravo, operário, explorado asiático, criança de rua abandonada,
imigrante estrangeiro refugiado, gerações futuras que sofrerão em sua corporalidade a destrui-
ção ecológica, povos indígenas e outros sob ameaça de extermínio físico e cultural. A tomada
de consciência desta negatividade é elementar para a ética da libertação. A “verdade” do sis-
tema-mundo é negada a partir da “impossibilidade de viver das vítimas”. Nas palavras de
Dussel, “a existência da vítima é sempre refutação material ou ‘falsificação’ da verdade do
sistema que a origina”690 691.
686
Ibidem, p. 303.
687
Ibidem, p. 303.
688
Cabe ressaltar, a respeito deste tema, que Dussel toma por destaque justamente a temática da alteridade. Para
Dussel, a ideia de alteridade, ou seja, de abertura ao Outro, situa-se numa categoria de encontro deste Outro em
uma relação de proximidade, de face-a-face. Este é o momento máximo de proximidade. É nessa experiência
primeira que se encontra o ponto de partida para a ética de Dussel, em que o Outro significa criação, novidade
em relação ao mesmo. Para Dussel, o Outro, em relação ao sistema vigente, será sempre aquele que é oprimido,
excluído, alienado; o Outro é o pobre. Quando fala-se no Outro oprimido, mais do que referir-se a indivíduos,
Dussel pretende apontar o povo, uma coletividade. Nesse sentido, vide FILHO, José Carlos Moreira da Silva.
Filosofia jurídica da alteridade – por uma aproximação entre o pluralismo jurídico e a filosofia da libertação
latino-americana. Curitiba: Juruá, 2006, p. 48.
689
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão, op. cit., p. 306.
690
Ibidem, p. 375.
691
Um trabalho que esboça uma síntese da estrutura da ética da libertação de Dussel é o artigo intitulado “A
contribuição teórica de Franz Hinkelammert ao projeto ético de libertação formulado por Dussel”. Nele, são
expostas resumidamente a estrutura de fundamentação da ética da libertação de Dussel, em que observam seis
etapas, ou seis momentos necessários: a) o primeiro material (a vida humana como modo de realidade do sujeito
ético); b) o momento formal (a necessária decisão coletiva, intersubjetiva); c) o momento da factibilidade, em
que não basta que algo seja verdadeiro e válido: deve ser também factível, realizável, para que seja bom. Os
outros três momentos possuem uma conotação crítica; se antes se partia da afirmação da vida, nestes três últimos
elementos parte-se de uma negação da vida, tendo em vista a realidade das vítimas. Assim, como quinto elemen-
to temos: d) a crítica material, ao se verificar que existem situações que impossibilitam o desenvolvimento da
vida; e) a crítica formal, em que o procedimento discursivo intersubjetivo deve ser pensado a partir da validade
anti-hegemônica, possibilitando a participação das vítimas; e f) o último momento, o da nova factibilidade, em
que se cogita a possibilidade ou não de frentes de libertação, a partir de uma práxis de libertação factível, que
transforme a realidade para a superação das negatividades.
Em síntese, parte-se da afirmação da vida, sendo esta fonte de todos os direitos. Por isso deve ser produzida,
reproduzida e desenvolvida em todos os atos. E diante da negação da vida na realidade, deve-se criticar o sistema
vigente, com conteúdo que explicite as vítimas e possibilite a transformação. Para mais informações, vide HO-
NÓRIO, Cláudia; KROL, Heloísa da Silva. A contribuição teórica de Franz Hinkelammert ao projeto ético de
179
Para tanto, a vida humana é o conteúdo da ética de Dussel, para quem possui implica-
ções fundamentais no sentido de uma ética de conteúdo ou material. A vida humana, como
modo de realidade, é a vida concreta de cada ser humano, a partir de onde se encara a realida-
de, constituindo-as desde um horizonte ontológico, onde o real se atualiza como verdade prá-
tica. Trata-se do critério material universal da ética por excelência. Ademais, ela é exposta em
três momentos693:
b) O da reprodução da vida humana nas instituições e nos valores culturais: vida hu-
mana nos sistemas de eticidade históricos motivados pelas pulsões reprodutivas. É o âmbito
da razão reprodutiva;
desenvolvimento histórico. Além disso, porém, na ética crítica, a pura reprodução de um sis-
tema de eticidade que impede seu desenvolvimento exigirá um processo transformador ou
crítico libertador. É o âmbito da razão ético-crítica.
Com base nesta acepção de Dussel, pode-se afirmar que a produção, reprodução e de-
senvolvimento da vida humana possui uma dimensão também histórico cultural e até mesmo
místico-espiritual. Estes pontos são relevantes para se trazer à tona a idéia de que a reprodu-
ção da vida humana igualmente ocorre sob um enfoque corpóreo-cultural, pois a cultura é
parte integrante e sustentadora da reprodução da vida humana, sempre em comunidade.
Como foi ressaltado no primeiro capítulo deste trabalho, a identidade cultural possui
uma estreita vinculação com a corporalidade humana, o que com base na reflexão de Dussel
nos conduz à concepção de que aquela, por seu conteúdo corporal, é parte integrante da re-
produção da vida humana. Para tanto, uma ética libertadora como princípio faz-se necessária,
observando-se a vida humana na sua acepção corpóreo-cultural. Este é o primeiro passo para
uma observância aos direitos humanos dos povos e, por conseguinte, para uma prevenção ao
etnocídio.
Johann Baptist Metz – teólogo cristão o qual Reyes Mate adota como uma de suas
bases – possui uma visão voltada para a memória, e em particular a memória do sofrimento,
advertindo que a memória da história do sofrimento do mundo se converte em meio da reali-
zação da razão e da liberdade694. A fim de fundamentar esta premissa, Metz, reportando-se a
Marcuse (filósofo alemão), leciona que a reposição da memória como meio de libertação seria
uma das mais nobres tarefas do pensamento. Isto significa que a memória do passado pode
permitir apresentar-se ideias perigosas e a sociedade estabelecida pareceria temer os conteú-
dos subversivos da recordação. Recordar, na visão de Marcuse, seria uma maneira de libertar-
se dos fatos presentes, rompendo o todo-poderoso poder dos fatos presentes. A recordação
evocaria na memória as restrições passadas como esperança passada, e nos dados pessoais,
que aparecem de novo na recordação pessoal, se estabeleceriam as angústias e inquietudes da
humanidade – o geral no particular695.
Sobre a relação entre memória e liberdade, com base na descrição anterior, Metz des-
taca que o conceito de memória compreende o devir prático da razão como liberdade; assim,
nesta determinação, a memória se constitui como uma memória da liberdade, que como me-
mória do sofrimento, se converte em orientação para a ação relacionada com a liberdade. Mas
em sua intenção prática, esta memória de liberdade é primariamente memória do sofrimento
(memoria passionis)696. Portanto, na base de uma filosofia da memória, mostra-se importante
fazer referência de que se trata de uma memória do sofrimento.
Outro fator importante é abarcar a memória igualmente como uma questão de justiça,
como um problema de justiça. Reyes Mate, expondo suas considerações sobre os fundamen-
tos de uma filosofia da memória, refere que se trata de uma síntese filosófica sobre a impor-
tância da memória para a filosofia como um todo e para a justiça em particular. Primeiramen-
te, o autor discorre acerca da ética como filosofia primeira, apontando no sentido de que a
constituição do ser (ou do ser humano) depende do Outro. Trata-se de uma referência a Levi-
nás. Na oportunidade, faz uma crítica à vertente idealista da filosofia, com relação às suas
conseqüências práticas (morais e políticas). O idealismo levaria ao totalitarismo porque quan-
do reduzimos o conhecimento das coisas à apreensão de um único elemento, que chamamos
essência, o que estamos fazendo é reduzir a riqueza da realidade a um único elemento que
694
METZ, Johann Babtist. Por una cultura de la memoria. Barcelona: Antropos, 1999, p. 10.
695
Ibidem, p. 11.
696
Ibidem, p. 12.
182
definimos como essencial. O essencial pode ser a substância, a raça, o sangue, o homem, o
proletariado, cifras absolutas e excludentes697.
Em Reyes Mate, a justiça e sua crítica possuem uma potente raiz religiosa, que se re-
mete a Walter Benjamim, que em sua primeira tese estabelece uma revisão da crítica ilustrada
e marxista da religião. Por exemplo, experiências fundamentais do homem têm sido abarcadas
pela religião, como a imprescribitilidade da injustiça feita aos mortos; não podemos dar uma
resposta à justiça convencional se não temos presente a significação da injustiça passada. O
que se está dizendo a partir disso é que não há injustiça sem memória da injustiça. Há que
estabelecer a hipótese de uma memória que não esqueça se queremos chegar a uma teoria da
justiça. A resposta filosófica à injustiça irreparável causada às vítimas é mantê-la viva na
memória da humanidade, em não dá-la por prescrita sem que não seja saldada. A injustiça
cometida siga vigente, com independência do tempo transcorrido e da capacidade que tenha-
mos de reparar o dano causado700.
697
MATE, Reyes. Sobre os fundamentos de uma filosofia da memória. In RUIZ, Castor Bartolomé (Org.). Justi-
ça e memória – para uma crítica ética da violência. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2009, p. 13-18.
698
Ibidem, p. 19.
699
Ibidem, p. 19-20.
700
Ibidem, p. 21-22.
183
A partir desta perspectiva, mostra-se possível buscar uma justiça que leve em conta o
tempo e a memória como categorias que guiam o pensamento filosófico. Assim, a memória
passa a se constituir como um antídoto à repetição da barbárie, ou seja, a recordação das in-
justiças passadas passa a fundamentar nosso projeto de futuro.
Vale mencionar que a memória digna desse nome é a memória de um passado ausente.
Há um passado que é presente, que é o dos vencedores. Porém, também há um passado venci-
do, ausente do presente. Esse é o passado moral e politicamente criativo. No entanto, esse
passado não se celebra, mas se recorda para fazer atual a injustiça passada e para marcar um
sentido ao futuro. A razão de ser da memória é tomarmos cargo das injustiças passadas, ainda
que seja sob a forma modesta de proclamar a vigência da injustiça. Somente em segundo lu-
gar cabe falar de recordar para que a barbárie não se repita. O conceito de memória também
remete ao fato de que não fizemos diretamente as injustiças, mas herdamos estes aconteci-
mentos. Aqui aparece o conceito de responsabilidade histórica que se volta para trás e não só
para adiante. Por isso não há que perder de vista a formulação do novo imperativo categórico
de Adorno, citado por Reyes Mate: repensar a verdade, a política e a moral, tendo em conta
Auschwitz, para que a barbárie não se repita701.
Nesse aspecto, vinculada a uma justiça anamnética, que considerada como fator fun-
damental a memória, cabe destacar que esta está vinculada a uma memória individual e a uma
memória coletiva. Na descrição de Paul Ricoeur, a memória individual seria a tradição do
olhar interior, ao passo que a memória coletiva se configuraria a partir do olhar exterior. Cabe
ressaltar que elas não se opõem num mesmo plano, mas em universos de discursos que se
tornaram alheios um ao outro702.
Por segundo, o vínculo original da consciência com o passado parece residir na memó-
ria. Foi elucidado por Aristóteles e posteriormente por Santo Agostinho que a memória é pas-
701
Ibidem, p. 34-36.
702
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007, p. 106.
703
Ibidem, p. 107.
184
sado, e esse passado seria o de minhas impressões; com efeito, esse passado seria o meu pas-
sado. Seria por este traço que a memória garante a continuidade temporal da pessoa e, por
esse viés, essa identidade cujas dificuldades e armadilhas enfrentamos acima. Essa continui-
dade me permitiria remontar sem ruptura do presente vivido até os acontecimentos mais lon-
gínquos de minha infância. De um lado, as lembranças distribuem-se e se organizam em ní-
veis de sentido, em arquipélagos, eventualmente separados por abismos; de outro, a memória
continua sendo a capacidade de percorrer, de remontar no tempo, sem que nada, em princípio,
proíba prosseguir esse movimento sem solução de continuidade. É principalmente na narrati-
va que se articulam as lembranças no plural e a memória no singular, a diferenciação e a con-
tinuidade. Assim, retrocedemos à nossa infância, com o sentimento de que as coisas se passa-
ram numa outra época. Para Ricoeur, é essa alteridade que, por sua vez, servirá de base para a
diferenciação dos lapsos de tempo à qual a história procede na base do tempo cronológico704.
A segunda operação da memória: ao se tratar das noções, não são apenas as imagens
das coisas que voltam ao espírito, mas os próprios inteligíveis. A memória das “coisas” e a
memória de mim mesmo coincidem: aí, encontro também a mim mesmo, lembro-me de mim,
704
Ibidem, p. 108.
705
Ibidem, p. 108.
706
Ibidem, p. 109.
707
Ibidem, p. 110.
185
do que fiz, quando e onde o fiz e da impressão que tive ao fazê-lo. Assim, grande seria o po-
der da memória ao ponto de nos lembrarmos até de ter nos lembrado. O espírito seria também
a própria memória708.
Contudo, Ricoeur igualmente ressalta o que ele denomina como o olhar exterior: a
memória coletiva. A partir dos estudos de Maurice Halbwachs, em sua obra A Memória Cole-
tiva, deve-se a este autor a ideia que consiste em atribuir à memória diretamente a uma enti-
dade coletiva que ele chama de grupo ou sociedade. Sua tese central é de que para se lembrar,
precisa-se dos outros. É a partir de uma análise sutil da experiência de pertencer a um grupo, e
na base do ensino recebido dos outros, que a memória individual toma posse de si mesma709.
Sendo esta estratégia escolhida, não seria de admirar que o apelo ao testemunho dos
outros constitua o tema de abertura. Para Halbwachs, é essencialmente o caminho da recorda-
ção e do reconhecimento, esses dois fenômenos mnemônicos maiores de nossa tipologia da
lembrança, que nos deparamos com a memória dos outros. Nesse contexto, o testemunho não
é considerado enquanto proferido por alguém para ser colhido por outro, mas enquanto rece-
bido por mim de outro a título de informação sobre o passado. E a esse respeito, as primeiras
lembranças encontradas nesse caminho são as lembranças compartilhadas, as lembranças co-
muns. Elas permitem afirmar que na realidade, nunca estamos sozinhos. Assim, do papel do
testemunho dos outros na recordação da lembrança passa-se gradativamente aos papéis das
lembranças que temos enquanto membros de um grupo710. Desta forma, a noção de âmbito
social deixa de ser uma noção simplesmente objetiva, para se tornar uma dimensão inerente o
trabalho de recordação.
Por fim, cabe ressaltar que embora a memória coletiva extraia sua força e duração do
fato de que um conjunto de homens lhe serve de suporte, são indivíduos que se lembram en-
quanto membros do grupo. Pode-se dizer que cada memória individual é um ponto de vista
sobre a memória coletiva, que esse ponto de vista muda segundo o lugar que nele ocupo e
que, por sua vez, esse lugar muda segundo as relações que mantenho com outros meios711.
Com base nestas descrições, pode-se dizer que a relação memória individual-memória
coletiva sempre estará presente quando se trata de recordar os sofrimentos passados, especi-
almente aqueles marcados por medidas de violência extrema. Através da dor passada e da sua
partilha com os outros, sobrevêm todos os acontecimentos que marcaram as vítimas, seja in-
708
Ibidem, p. 110.
709
Ibidem, p. 130.
710
Ibidem, p. 131.
711
Ibidem, p. 133.
186
Tratadas estas primeiras linhas de uma valorização da memória como fator importante
quando queremos abordar o tema da justiça, pode-se inserir igualmente outra questão: o que
significa uma justiça que leve em conta o passado?
Em 1964, o Parlamento francês votou uma lei que declarava a imprescritibilidade dos
crimes contra a humanidade, referindo-se, logicamente, ao genocídio ocorrido. Para Reyes
Mate, estas medidas – o julgamento de Nuremberg e a votação da lei francesa – significam
um passo considerável na história moral do direito. Para tanto, estamos ante uma nova sensi-
bilidade a respeito da responsabilidade atual por crimes passados que vem crescendo713.
Em segundo lugar, o que define a justiça anamnética é entender a justiça como respos-
ta à experiência da injustiça, que fundamenta toda a teoria da justiça. Contudo, em que consis-
te a experiência da injustiça? A resposta, sob a ótica de Reyes Mate, é a remissão dos fatos, a
escuta dos gritos que causa o sofrimento humano. O sofrimento resume a história mais secreta
de cada qual e é a chave do que realmente somos714.
712
MATE, Reyes. En torno a una justicia anamnética. In MARDONES, José M.; MATE, Reyes (Org.). La etica
ante las víctimas. Barcelona: Antropos, 2003, p. 106.
713
Ibidem, p. 106.
714
Ibidem, p. 108.
187
Este modelo de justiça visa uma universalidade. Para a justiça anamnética, a universa-
lidade consiste na restituição, ou seja, no reconhecimento do direito de todos e cada um dos
homens, também dos mortos e fracassados, e à recuperação do perdido716. Esta é uma forma
de universalidade que é objeto da justiça anamnética. Esta teoria da justiça se mostra como
um constante resgate de vidas frustradas, como processo aberto de salvação de histórias es-
quecidas ou como resposta incessante a demandas de direitos insatisfeitos717. Nesse sentido,
para a justiça anamnética, a memória não é um adereço senão a referência fundamental. Im-
plica a salvação da vítima, mediante a atualidade de sua recordação.
Portanto, o que caracteriza a teoria anamnética da justiça é o lugar central que a me-
mória possui719, valorizando o passado violento vivido pelas vítimas. Manter viva a memória
715
Ibidem, p. 108.
716
Ibidem, p. 113.
717
Ibidem, p. 115.
718
Ibidem, p. 117-118.
719
Vide JUNGES, Márcia. A memória como antídoto à repetição da barbárie. Disponível em:
<http://www.ihuonline.unisinos.br>. Acesso em: 14 jul. 2010.
188
na perspectiva das vítimas é contribuir com a realização da Justiça. José Carlos Moreira Fi-
lho720 leciona inclusive que a dignidade humana passa, antes de tudo, pela memória.
Reyes Mate aduz ainda que o interesse atual pelas vítimas resultaria da confluência
entre a cultura reconstrutiva e a cultura da memória. A reconstrutiva tem por objeto a recons-
trução da justiça das vítimas através da substituição dos vínculos entre justiça e castigo, pelo
vínculo da justiça e reparação às vítimas. A cultura da memória, por sua vez, é o que permite
romper a lógica dominante e ver os ventos da catástrofe que surgiram com o progresso. A
cultura da memória estaria muito presente nos filmes, museus e narrativas de testemunhas
sobreviventes como resistência à hegemonia da história dos vencedores721.
720
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. O anjo da história e a memória das vítimas: o caso da ditadura mili-
tar no Brasil. In: RUIZ, Castor Bartolomé (org.). Justiça e memória: por uma crítica ética da violência. São
Leopoldo: UNISINOS, 2009. p.121-157. Vale mencionar as seguintes considerações do autor: “Recuperar a
memória não significa apenas reforçar a garantia de que as ditaduras e os totalitarismos nunca mais ocorrerão.
É mais do que isso. Significa fazer justiça àquelas vítimas que caíram ao longo do caminho. Fazer justiça signi-
fica dar voz aos emudecidos pela marcha amnésica do progresso; significa resistir à destruição do diverso e do
plural sob a desculpa da unidade, seja ela a da soberania nacional, a do desenvolvimento econômico ou a da
razão científica; significa renunciar ao frio e distante ponto de observação neutro, universal e abstrato e dar
lugar ao olhar da vítima, pois este nunca é desinteressado e distante, pois este recompõe a realidade esquecida
e negada, restaurando a humanidade em quem lhe dá ouvidos. O ouvinte passa a ser cúmplice da testemunha. O
relato passa a ser um acontecimento”.
721
MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz: atualidade e política. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005, p. 264.
722
MATE, Reyes. Justicia de las victimas – terrorismo, memória, reconciliación. Barcelona: Antropos, 2008, p.
25-26.
189
Eis mais um elemento que pode contribuir para uma maior efetivação dos direitos hu-
manos dos povos: uma justiça que tome a cargo a memória, preservando a lembrança dos
acontecimentos passados, a fim de se buscar não repeti-los e garantir um legado de reconhe-
cimento das violências sofridas.
Um terceiro possível fundamento para uma observância aos direitos humanos dos po-
vos é o reconhecimento. Este elemento se caracteriza pela busca de uma não instrumentalida-
de do ser humano, visando preservar sua humanidade e sua dignidade. A fim de fundamentar
o reconhecimento como prática ético-jurídica e de base para os direitos humanos dos povos,
expomos estas considerações com base na teoria do reconhecimento, de Axel Honneth.
723
MATE, Reyes. La razón de los vencidos. Barcelona: Antropos, 1991, p. 213.
724
RICOEUR, Paul. A hermenêutica bíblica. São Paulo: Loyola, 2006, p. 240-241.
725
SAAVEDRA, Giovani Agostini; SOBOTTKA, Emil Albert. Introdução à teoria do reconhecimento de Axel
Honneth. In Civitas – Revista de Ciências Sociais, vol. 8, n. 1, janeiro-abril de 2008. Disponível em:
<http://redalyc.uaemex.mx/pdf/742/74211531002.pdf>. Acesso em: 05 jun. 2011, p. 1.
726
Ibidem, p. 1.
190
geliano de luta por reconhecimento727. Nesse sentido, uma teoria crítica da sociedade deveria
estar voltada em interpretá-la a partir da categoria “reconhecimento”.
Pode-se dizer que a ideia de reconhecimento proposta por Honneth possui uma pro-
funda influência da filosofia de Hegel. Para tanto, antes de se abordar a teoria do reconheci-
mento proposta por Honneth, faz-se necessário traçar alguns elementos constitutivos da ideia
de reconhecimento na acepção hegeliana.
Cabe ressaltar que embora possa haver certa contradição entre as propostas teóricas
anteriores (partindo de Dussel e Reyes Mate) e a filosofia de Hegel – já que autores como
Dussel elaboram sua filosofia a partir de uma crítica principalmente ao modelo hegeliano – a
proposta nesta breve exposição é agregar a teoria de reconhecimento como fator importante
em termos de direitos dos povos. Não obstante a filosofia de Hegel seja conhecida por seu
viés eurocêntrico e linear, as suas ideias fundadas em termos de liberdade e reconhecimento
podem contribuir para uma fundamentação dos direitos dos povos, sobretudo considerando
que as filosofias realizadas, emanadas de uma certa circunstância, dos problemas de uma certa
realidade, podem de alguma forma servir à solução dos problemas de outra realidade e dar
luzes sobre a mesma, ainda que as soluções que ofereçam não seja necessariamente as mes-
mas. Tomar, selecionar, eleger esta ou aquela solução filosófica para ajudar a resolver a pró-
pria não implica renunciar a esta forma de originalidade que a Europa nos tem ensinado 728.
Para tanto, tendo consciência das peculiaridades da filosofia hegeliana, buscamos agregar a
teoria do reconhecimento como base de um direito dos povos.
727
Ibidem, p. 1.
728
ZEA, Leopoldo, op. cit., p. 29.
729
SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996, p. 245.
730
Ibidem, p. 247.
191
Nesse sentido, é como individualidade que o homem se conhece e pretende ser. E para
sê-lo como tal é necessário o reconhecimento do outro; no reconhecimento, ele sabe ser único
ao mesmo tempo que igual. Nessa dialética do ser único e ao mesmo tempo igual está a possi-
bilidade de uma sociedade de seres iguais, mas livres, individualizados, sujeitos. Pelo reco-
nhecimento como indivíduo revela-se a socialidade do homem. Com efeito, Hegel acompa-
nhará os passos do indivíduo livre na história para a construção de uma nova ordem social: a
sociedade racional do indivíduo livre, pelo reconhecimento733.
Esta ideia de liberdade é ao mesmo tempo o vírus deletério das estruturas de domina-
ção e o germe vital da plena reconciliação do Espírito consigo mesmo numa organização polí-
tica de liberdade. A afirmação dessa liberdade ou o seu reconhecimento, primeiro como liber-
dade do sujeito, depois como liberdade de todos na unidade da substância e do sujeito, cujo
saber é a demonstração da necessidade histórico-dialética do reconhecimento universal, é o
que mostra o discurso da Fenomenologia na matéria da história735.
731
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. 3ª ed. São Paulo: Vozes, 2005, p. 141.
732
Ibidem, p. 142.
733
SALGADO, Joaquim Carlos, op. cit., p. 247.
734
Ibidem, p. 249.
735
Ibidem, p. 250.
192
No tocante à linha adotada por Honneth, cabe salientar que em sua obra, Luta por re-
conhecimento, Honneth apresenta pela primeira vez sua teoria de forma sistemática 737. Na
obra citada, o autor desenvolve o que se denomina de conceito negativo do reconhecimento.
Por negativo significa dizer que Honneth não pretende definir o que significa reconhecimento,
mas pretende, a partir das chamadas “experiências de desrespeito”, comprovar de forma dialé-
tica a importância e a necessidade das relações de reconhecimento738. Honneth diferencia três
esferas de reconhecimento e três formas de desrespeito, sendo que cada forma de reconheci-
mento corresponde à respectiva forma de desrespeito. Na forma de reconhecimento do amor,
temos a violação como desrespeito; na forma de reconhecimento do direito, temos a privação
de direitos como desrespeito e, por fim, à forma de reconhecimento da solidariedade, temos a
degradação como forma de desrespeito739. Cabe destacar que estas formas de reconhecimento
e seu respectivo desrespeito seriam, em um primeiro momento, consideradas como fonte de
conflitos sociais, os quais por sua vez seriam ligados a processos históricos de aprendizagem,
em que o objetivo principal seria a ampliação horizontal das relações de reconhecimento740.
736
Ibidem, p. 253.
737
SAAVEDRA, Giovani Agostini. Reificação versus reconhecimento – sobre a dimensão antropológica da
teoria de Axel Honneth. Disponível em:
<http://www.editoraufjf.com.br/revista/index.php/TeoriaeCultura/article/viewFile/1107/911>. Acesso em: 07
jun. 2011, p. 27.
738
Ibidem, p. 27.
739
Aprofundaremos a análise das experiências de desrespeito posteriormente.
740
SAAVEDRA, Giovani Agostini. Reificação versus reconhecimento – sobre a dimensão antropológica da
teoria de Axel Honneth, op. cit., p. 27.
193
Com média de 6 anos de idade, a criança precisa se acostumar com a ausência da mãe.
Esta situação estimula na criança o desenvolvimento de capacidades que a tornam capaz de se
diferenciar do seu ambiente744. Ela sai do estado de “absoluta dependência” porque a própria
dependência em relação à mãe entra em seu campo de visão, de modo que ela agora aprende a
referir seus impulsos pessoais, propositadamente, a certos aspectos da assistência materna745.
Nesse sentido, a criança sai do estágio de dependência absoluta e passa para o estágio de “de-
pendência relativa”, em que a criança reconhece a mãe não mais como parte de seu mundo,
mas como objeto com direito próprio746.
741
SAAVEDRA, Giovani Agostini; SOBOTTKA, Emil Albert. Introdução à teoria do reconhecimento de Axel
Honneth, op. cit., p. 10.
742
Ibidem, p. 10.
743
Ibidem, p. 10.
744
Ibidem, p. 10.
745
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento. São Paulo: Ed. 34, 2003, p. 167.
746
SAAVEDRA, Giovani Agostini; SOBOTTKA, Emil Albert. Introdução à teoria do reconhecimento de Axel
Honneth, op. cit., p. 10.
747
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento, op. cit., p. 168.
748
SAAVEDRA, Giovani Agostini; SOBOTTKA, Emil Albert. Introdução à teoria do reconhecimento de Axel
Honneth, op. cit., p. 10.
194
Assim, com base nos estudos de Winnicot, Honneth esboça os princípios fundamentais
do primeiro nível de reconhecimento: o amor. Quando a criança experimenta a confiança no
cuidado paciencioso e duradouro da mãe, ela passa a estar em condições de desenvolver uma
relação positiva consigo mesma750. Honneth denomina esta nova capacidade da criança de
autoconfiança; com esta capacidade, ela estará em condições de desenvolver a sua personali-
dade; inclusive esta capacidade de autoconfiança seria a base das relações sociais entre adul-
tos751. O nível do reconhecimento do amor seria o núcleo fundamental de toda moralidade.
Com efeito, este tipo de reconhecimento seria responsável não somente pelo desenvolvimento
do auto-respeito, mas também pela base de autonomia necessária para a participação na vida
pública752.
749
Ibidem, p. 10.
750
Ibidem, p. 11.
751
Ibidem, p. 11.
752
Ibidem, p. 11.
753
Ibidem, p. 11.
754
Ibidem, p. 11.
195
Para ele, os atores sociais somente conseguem desenvolver a consciência de que eles
são pessoas de direito no momento em que surge historicamente uma forma de proteção jurí-
dica contra a invasão da esfera da liberdade, que proteja a chance de participação na formação
pública da vontade e que garanta um mínimo de bens materiais para a sobrevivência 757. Hon-
neth sustenta que as três esferas dos direitos fundamentais, com suas respectivas diferenças
históricas, são o fundamento da forma de reconhecimento do direito. Por conseqüência, reco-
nhecer-se reciprocamente como pessoas jurídicas significaria hoje muito mais do que no iní-
cio do desenvolvimento do direito: a forma de reconhecimento do direito contemplaria não só
as capacidades abstratas de orientação moral, mas também as capacidades concretas necessá-
rias para a existência digna; ou seja, a esfera do reconhecimento jurídico criaria as condições
que permitem ao sujeito desenvolver auto-respeito758.
755
Ibidem, p. 12.
756
Ibidem, p. 12.
757
Ibidem, p. 12.
758
Ibidem, p. 12.
759
Ibidem, p. 12.
760
Ibidem, p. 12.
196
Nesse sentido, Honneth procura mostrar que com a transição da sociedade tradicional
para a sociedade moderna surge um tipo de individualização que não pode ser negado. A ter-
ceira esfera do reconhecimento deveria ser vista como um meio social a partir do qual as pro-
priedades diferenciais dos seres humanos venham à tona de forma genérica, vinculativa e in-
tersubjetiva761. Como no caso das relações jurídicas, Honneth analisa a transição da sociedade
de tipo tradicional para a moderna como uma espécie de mudança estrutural desta terceira
esfera do reconhecimento: assim que a tradição hierárquica de valoração social, progressiva-
mente, vai sendo dissolvida, as formas individuais de desempenho começam a ser reconheci-
das. O autor parte do princípio de que uma pessoa desenvolve a capacidade de sentir-se valo-
rizada somente quando as suas capacidades individuais não são mais avaliadas de forma cole-
tivista. Disso resulta que uma abertura do horizonte valorativo de uma sociedade às variadas
formas de auto-realização pessoal somente se dá com a transição para a modernidade762.
Porém, em função dessa mudança estrutural existe no centro da vida moderna uma
permanente tensão, um permanente processo de luta, porque nesta nova forma de organização
social há, de um lado, uma busca individual por diversas formas de auto-realização e, de ou-
tro, a busca de um sistema de avaliação social763. Essa espécie de tensão social que oscila en-
tre a ampliação de um pluralismo valorativo que permita o desenvolvimento da concepção
individual de vida boa e a definição de um pano de fundo moral que sirva de ponto de refe-
rência para a avaliação social da moralidade faz da sociedade moderna uma espécie de arena,
na qual se desenvolve permanentemente uma luta por reconhecimento764: os diversos grupos
sociais necessitam desenvolver sua capacidade de influenciar a vida pública a fim de que sua
concepção de vida boa encontre reconhecimento social e passe, então, a fazer parte do sistema
de referência moral que constitui a autocompreensão cultural e moral da comunidade em que
estão inseridos765.
Além disso, como referem Giovani Saavedra e Emil Sobottka, com o processo de in-
dividualização das formas de reconhecimento surge nesta esfera de reconhecimento a possibi-
lidade de um tipo específico de auto-relação: a autoestima. A solidariedade na sociedade mo-
derna está vinculada à condição de relações sociais simétricas de estima entre indivíduos au-
tônomos e à possibilidade de os indivíduos desenvolverem a sua auto-realização. Simetria
761
Ibidem, p. 13.
762
Ibidem, p. 13.
763
Ibidem, p. 13.
764
Ibidem, p. 13.
765
Ibidem, p. 14.
197
Como referido anteriormente, à medida que Honneth desenvolve as três esferas do re-
conhecimento (amor, direito ou igualdade jurídica e solidariedade, valorização social ou prin-
cípio do êxito), o autor distingue três formas de desrespeito, as quais seriam as fontes de con-
flito social767: a) maus tratos, violação e constrangimento; b) privação de direitos e exclusão e
c) degradação.
766
Ibidem, p. 14.
767
SAAVEDRA, Giovani Agostini. Criminologia do reconhecimento: linhas fundamentais de um novo paradig-
ma criminológico. In GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâ-
neos II. Porto Alegre: Edipucrs, 2010. Disponível em:
<http://www.pucrs.br/edipucrs/Crimin.eSist.Jurid.PenaisContemp.II.pdf>. Acesso em: 07 jun. 2011, p. 98.
768
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento, op. cit., p. 213.
769
Ibidem, p. 213-214.
770
Ibidem, p. 215.
198
mo ocorre na tortura ou na violação, não é constituída pela dor puramente corporal, mas por
sua ligação com o sentimento de estar sujeito à vontade de um outro, sem proteção, chegando
à perda do senso de realidade771.
Por isso, de acordo com Honneth, a particularidade nas formas de desrespeito, como as
existentes na privação de direitos ou na exclusão social, não representaria somente a limitação
violenta da autonomia pessoal, mas também sua associação com o sentimento de não possuir
o status de um parceiro da interação com igual valor, moralmente em pé de igualdade; para o
indivíduo, a denegação de pretensões jurídicas socialmente vigentes significaria ser lesado na
771
Ibidem, p. 215.
772
Ibidem, p. 215.
773
Ibidem, p. 215.
774
Ibidem, p. 216.
775
Ibidem, p. 216.
776
Ibidem, p. 216.
199
expectativa intersubjetiva de ser reconhecido como sujeito capaz de formar juízo moral; nesse
sentido, iria de par com a experiência da privação de direitos uma perda de auto-respeito, ou
seja, uma perda da capacidade de se referir a si mesmo como parceiro em pé de igualdade na
interação com todos os próximos; para tanto, o que se subtrai aqui da pessoa pelo desrespeito
em termos de reconhecimento seria o respeito cognitivo de uma imputabilidade moral que,
por seu turno, teria de ser adquirida a custo em processos de interação socializadora777.
Contudo, Honneth adverte que essa forma de desrespeito representaria uma grandeza
historicamente variável, visto que o conteúdo semântico do que é considerado como uma pes-
soa moralmente imputável tem se alterado com o desenvolvimento das relações jurídicas; por
isso, a experiência da privação de direitos se mediria não somente pelo grau de universaliza-
ção, mas também pelo alcance material dos direitos institucionalmente garantidos. Esse se-
gundo tipo de desrespeito, portanto, lesaria uma pessoa nas possibilidades de seu autorrespei-
to778.
Por fim, como terceira forma de desrespeito, tem-se a degradação. Honneth destaca
que este tipo de rebaixamento se refere negativamente ao valor social de indivíduos ou gru-
pos; em verdade seria somente com essas formas, de certo modo valorativas, de desrespeito,
de depreciação de modos de vida individuais ou coletivos, que se alcançaria a forma de com-
portamento que se designaria hoje em termos como “ofensa” e “degradação”779. A “honra”, a
“dignidade” ou “status” de uma pessoa referir-se-ia à medida de estima social que é concedida
à sua maneira de autorrealização no horizonte da tradição cultural; se agora essa hierarquia de
valores se constitui de modo que ela degrada algumas formas de vida ou modos de crença,
considerando-as de menor valor ou deficientes, ela tiraria dos sujeitos atingidos toda a possi-
bilidade de atribuir um valor social às suas próprias capacidades780.
777
Ibidem, p. 217.
778
Ibidem, p. 217.
779
Ibidem, p. 217.
780
Ibidem, p. 217.
200
uma forma de autorrealização que ela encontrou arduamente com o encorajamento baseado
em solidariedades de grupos781.
Honneth descreve que seria típico destes três grupos de experiências de desrespeito o
fato de suas conseqüências individuais serem sempre descritas com metáforas que se referem
a estados de abatimento do corpo humano. Nos casos de tortura e violação, corresponderia a
“morte psíquica”; nos casos de privação de direitos e de exclusão social, corresponderia a
“morte social”; e no caso da degradação cultural de uma forma de vida, corresponderia a ca-
tegoria de “vexação”783.
Com base nestas alusões metafóricas à dor física e à morte, Honneth expressa que cor-
responderia às diversas formas de desrespeito pela integridade psíquica do ser humano o
mesmo papel negativo que as enfermidades orgânicas assumem no corpo humano: com a ex-
periência do rebaixamento e da humilhação social, os seres humanos seriam ameaçados em
sua identidade da mesma maneira que o são em sua vida física com o sofrimento de doen-
ças784. Também a experiência de desrespeito estaria sempre acompanhada de sentimentos
afetivos que em princípio podem revelar ao indivíduo que determinadas formas de reconhe-
cimento lhe são socialmente denegadas785.
Por fim, Honneth sustenta que pelo fato de os sujeitos humanos não poderem reagir de
modo emocionalmente neutro às ofensas sociais, representadas pelos maus-tratos físicos, pela
privação de direitos e pela degradação, os padrões normativos do reconhecimento recíproco
teriam uma certa possibilidade de realização no interior do mundo da vida social em geral,
pois toda reação emocional negativa que vai de par com a experiência de um desrespeito de
pretensões de reconhecimento conteria novamente em si a possibilidade de que a injustiça
781
Ibidem, p. 218.
782
Ibidem, p. 218.
783
Ibidem, p. 218.
784
Ibidem, p. 219.
785
Ibidem, p. 220.
201
Por sua vez, em artigo publicado com o título Observações sobre a reificação, Hon-
neth adverte que a reificação não se trataria de uma instrumentalização das pessoas, já que
786
Ibidem, p. 224.
787
MELO, Rúrion. Reificação e reconhecimento: um estudo a partir da teoria crítica da sociedade de Axel
Honneth. Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/ethic@/Art%206%20Rurion.pdf>. Acesso em: 06 jun. 2011,
p. 1.
788
Ibidem, p. 232.
789
Ibidem, p. 232.
790
Ibidem, p. 232.
202
esta instrumentalização significaria tomar outras pessoas como meio para fins puramente in-
dividuais; geralmente neste caso, as habilidades especificamente humanas destas pessoas são
utilizadas para, com sua ajuda, realizar os propósitos de outrem791.
Honneth formula a tese de que na relação do ser humano com seu mundo, o reconhe-
cer sempre antecede o conhecer, de tal modo que a reificação seria uma violação contra esta
ordem de precedência794. Essa primazia do modo do reconhecer caracteriza o que Honneth
chama de modo existencial do reconhecimento. O autor entende que este modo existencial
deve ser compreendido como uma forma mais fundamental do reconhecimento recíproco dos
seres humanos como seres dignos de respeito e igual tratamento jurídico (dimensão antropo-
lógica do reconhecimento). O fenômeno da reificação pode ser compreendido como uma for-
ma de esquecimento do reconhecimento795.
Honneth enfatiza que aquilo que se realiza, que perfaz o seu caráter especial, seria o
fato de assumirmos perante o outro uma postura que alcança até a afetividade, postura na qual
podemos reconhecer nele o outro de nós mesmos, o próximo796. Nós só poderíamos assumir a
perspectiva do outro depois que previamente reconhecermos no outro uma intencionalidade
que nos é familiar, ou seja, sem a experiência de que o outro indivíduo seja um próxi-
mo/semelhante, nós não estaríamos em condições de dotá-lo com valores morais que contro-
791
HONNETH, Axel. Observações sobre a reificação. In Civitas – Revista de Ciências Sociais, vol. 8, Núm. 1,
janeiro-abril de 2008. Disponível em:
<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/4322>. Acesso em: 05 jun. 2011, p. 70.
792
Ibidem, p. 70.
793
Ibidem, p. 71.
794
Ibidem, p. 71.
795
SAAVEDRA, Giovani Agostini. Criminologia do reconhecimento: linhas fundamentais de um novo para-
digma criminológico, op. cit., p. 95.
796
HONNETH, Axel. Observações sobre a reificação, op. cit., p. 72.
203
lam ou restringem o nosso agir; assim, primeiramente precisaria ser consumado esse reconhe-
cimento elementar, ou seja, precisaríamos tomar parte do outro existencialmente, antes de
podermos aprender a orientar-nos por normas de reconhecimento que nos intimam a determi-
nadas formas de consideração ou de benevolência797.
797
Ibidem, p. 73.
798
Ibidem, p. 75.
799
Ibidem, p. 75.
800
Ibidem, p. 75.
204
seriam justificadas sem dificuldade801. Neste caso, para o autor, pareceria ter sido apagado
qualquer traço de ressonância existencial, a tal ponto que não se poderia falar simplesmente
de indiferença ou ódio emocional, mas sim de reificação.
Contudo, Honneth adverte que nem toda forma de práxis na qual a observação de pes-
soas tornou-se o único objetivo (autonomização) leva necessariamente a sua reificação, pois a
observação pode estar a serviço da percepção das características especificamente humanas.
Como exemplo, o autor cita o caso de um psicólogo de desenvolvimento que observa o com-
portamento de um bebê e coleta dados empíricos para ampliar nosso conhecimento sobre a
maturação de determinadas habilidades que se tornam acessíveis tão somente na postura pri-
mária do reconhecimento; por outro lado, o soldado que observa um campo inimigo, e que
estaria interessado em informações sobre onde possam surgir perigos ou empecilhos para seu
objetivo da destruição militar do adversário, nesse caso, a autonomização do objetivo da ob-
servação poderia levar a um esquecimento daquele reconhecimento elementar que original-
mente havia sido concedido a toda pessoa802.
Neste último caso, o objetivo de simplesmente obter dados para o afastamento do pe-
rigo poderia levar a que qualidades pessoais inicialmente percebidas no adversário possam
posteriormente ser novamente “esquecidas”. O autor sugere que a autonomização de todas
aquelas práticas poderia levar a uma reificação intersubjetiva, cuja execução bem-sucedida
exige uma desconsideração de todas as características humanas do próximo803. No entanto,
não seria a consecução de uma práxis em si, mas sim a sua rotinização e habitualização que
poderiam levar a “esquecer” no final todo o reconhecimento original e a tratar o outro real-
mente apenas como um simples objeto. Para tanto, seria necessária uma rotina naturalizada,
pois apenas este tipo de habitualização possuiria a força para neutralizar posteriormente a pos-
tura antes assumida de reconhecimento804. Conjuntamente com este aspecto, Honneth enfatiza
novamente que no caso da reificação, o outro não é apenas imaginado como um simples obje-
to, mas perde-se efetivamente a percepção de que ele seja um ser com características huma-
nas805.
Elaborando uma relação com o processo de reificação, pode-se dizer que o etnocídio,
igualmente ao genocídio, parte de um processo de desumanização da vítima. Primeiramente, a
801
Ibidem, p. 76.
802
Ibidem, p. 77.
803
Ibidem, p. 77.
804
Ibidem, p. 77.
805
Ibidem, p. 78.
205
vítima é tratada, pela sua cultura, como um ser não humano, pois no caso a desumanização
decorre da cultura considerada inferior e objeto de supressão total. A vítima, também, para
recuperar sua “humanidade”, é levada a escolher entre a integração ao um projeto colonialista
de abandono de sua cultura, ou ao perecimento, como a morte ou a destruição física. Medidas
como esta foram características, por exemplo, da conquista da América, em que os indígenas
eram levados a se converter à religião do colonizador ou sofrerem violência física.
Diante de toda a exposição sobre a relação entre o etnocídio e a reificação, faz-se ne-
cessário abordar sobre a importância do reconhecimento como prática ética de preservação da
diversidade humana. Como abordado anteriormente, o processo de reconhecimento se traduz
em uma relação de confiança, no reconhecimento do outro como ser humano, como seme-
lhante.
806
SAAVEDRA, Giovani Agostini. Criminologia do reconhecimento: linhas fundamentais de um novo para-
digma criminológico, op. cit., p. 97.
206
Estas são, em linhas gerais, as possíveis propostas de fundamento para uma observân-
cia dos direitos humanos dos povos: uma ética libertadora como princípio, visando garantir a
produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana (especialmente na sua dimensão
corpóreo-cultural); uma justiça anamnética que possa valorizar a memória das vítimas (indi-
vidual e coletiva), para que os eventos violentos do passado não se repitam na história; e o
reconhecimento como prática ético-jurídica, valorizando o ser humano, em sua corporalidade,
em detrimento de uma possível reificação do mesmo. Por certo, estas propostas não visam
limitar e esgotar a questão, mas se mostram como um possível caminho para uma prevenção e
repressão ao etnocídio.
207
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este breve estudo marca uma iniciativa de se abordar uma temática pouco explorada
nos estudos jurídicos, ainda mais nos segmentos jurídico-penais e criminológicos: o etnocídio.
Neste trabalho desenvolvido, buscou-se fundamentar um possível tratamento jurídico-penal e
criminológico do tema, colhendo dados e bases teóricas principalmente da antropologia e et-
nologia, que ainda hoje se mostram como as áreas mais ricas em informações sobre esta for-
ma de violência.
Com efeito, nada mais conveniente do que iniciar a exposição neste breve estudo com
aspectos relativos à cultura e identidade cultural (temas iniciais expostos no primeiro capítu-
lo). Este foi o primeiro passo para se buscar fundamentar e delinear o que o etnocídio concre-
tamente visa eliminar: a identidade cultural de um grupo humano.
Após abordar estes pontos, desenvolveu-se uma explanação sobre o etnocídio nas raí-
zes da modernidade, destacando o processo de encobrimento do Outro a partir da conquista da
América. Este acontecimento histórico foi o que efetivamente marcou talvez o maior etnocí-
dio já ocorrido na História, pela sua carga de violência que pretendia converter os indígenas à
religião do colonizador. Este ponto do primeiro capítulo também refere que na conquista da
América, o Outro (o indígena) passou por um processo de encobrimento, sendo-lhe negada
totalmente sua cosmovisão e inclusive seu caráter humano. Para tanto, o marco da conquista
da América inaugura uma etapa sem precedentes na História, pois marca uma conquista mate-
rial vinculada a uma conquista espiritual, qual seja, a prática do etnocídio.
dade, pôde-se esclarecer melhor como o etnocídio opera: no corpo das vítimas, visando o ob-
jetivo de um projeto totalizador, de negação da diferença que reproduz a vida humana de um
grupo. Identidade e corporalidade, portanto, são elementos ligados, vinculados, que caracteri-
zam um grupo humano específico; a relação corporal constitui a identidade de um grupo.
Nos dois últimos pontos do segundo capítulo, o objetivo principal foi elucidar dois
estados em que geralmente a vítima do etnocídio se encontra: em condição de vulnerabilidade
e de vítima em potencial. A vulnerabilidade resulta do fato de que o grupo humano vitimado
não tem condições de alterar o destino de extermínio ao qual é submetido frente ao agressor;
já a condição de vítima em potencial resulta do fato de que determinados grupos humanos –
209
geralmente minorias – são mais propensas a ser alvo do etnocídio, tendo em vista suas condi-
ções de fragilidade dentro de determinado território. A vulnerabilidade e a potencialidade de
se tornar vítima podem marcar um grupo humano, passando este a ser alvo da prática do etno-
cídio, aliando-se a este fato o elemento risco, sempre presente nestes casos.
Por sua vez, no terceiro e último ponto do terceiro capítulo tratou-se de buscar funda-
mentar uma possível prevenção ao etnocídio vinculando-o à observância dos direitos humanos
dos povos, direitos considerados de terceira dimensão. Contudo, para sua efetivação, desta-
210
camos três pilares que poderiam auxiliar em uma maior fundamentação dos direitos humanos
dos povos, na prevenção e repressão ao etnocídio: uma ética libertadora, uma justiça que valo-
rize a memória e o reconhecimento como prática ético-jurídica.
No campo relativo à ética da libertação, constata-se que esta ética possui uma funda-
mental importância quando se quer buscar uma proteção de grupos humanos em se tratando
de direitos dos povos, porquanto a ética da libertação de Dussel propõe como preceito basilar
a produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana em âmbito comunitário. A ética
da libertação auxilia a fundamentar os preceitos dos direitos dos povos, na medida em que
destaca esta busca de preservação da vida, e no caso do etnocídio, trata-se de uma preservação
da vida humana em seu âmbito coletivo, em sua dimensão corpóreo-cultural. Cabe ressaltar
que a preservação de uma identidade cultural deve ocorrer a partir deste critério, preservando-
se da hipótese de um relativismo cultural.
Por derradeiro, o terceiro pilar para os direitos dos povos seria um projeto de reconhe-
cimento, no sentido de se preservar a dignidade dos grupos humanos vitimados ou ameaçados
pelo etnocídio. Uma prática de cunho ético e jurídico, proporcionando o reconhecimento do
Outro como ser humano, não instrumentalizado, e dotado de seu direito à existência e à sua
cultura, responsável pela reprodução de sua vida.
Com efeito, pode-se concluir que o etnocídio, embora não explorado profundamente
no âmbito jurídico, pode ser objeto de maior estudo. No decorrer deste trabalho, buscamos
expor o que caracteriza o etnocídio, como ele atua enquanto forma de violência e o que ele
visa eliminar.
Portanto, com base em todas estas considerações sobre o etnocídio, temos a certeza de
que cabe ao agente social, a partir do juízo ético-crítico, constituir um saber jurídico liberta-
dor, que seja voltado ao respeito e à defesa da existência física e cultural dos grupos huma-
nos em condição de vulnerabilidade. E nesse âmbito, a informação é essencial. Aqueles que
não se preocupam em saber, bem como aqueles que se abstêm de informar são responsáveis
211
diante de sua sociedade; ou seja, a função da informação é uma função social muito significa-
tiva807.
À guisa de conclusão, o presente estudo, em suma, foi abarcado a partir de três pilares
que ligam o tempo: o passado, o presente e o futuro. Sem eles não seria possível a concretiza-
ção do trabalho.
Por fim, o futuro. Na medida em que formamos propostas para mudar o presente, te-
mos o objetivo de construir um futuro, projetá-lo como tarefa. Garantir a vida, a existência
dos seres humanos, notadamente grupos diversos. Uma projeção para o futuro que parte da
nossa reflexão e ação. Para tanto, este estudo, ainda que limitado, se propôs e se conclui nesta
seguinte ideia: conhecer o passado como necessidade, enfrentar o presente como responsabi-
lidade e projetar o futuro como tarefa808.
807
TODOROV, Tzvetan, op. cit, p. 265.
808
BOLESO, Héctor Hugo. Memoria, Derecho y Liberación. Disponível em:
<http://www.cienciared.com.ar/ra/usr/3/561/n7_v5pp11_20.pdf>. Acesso em: 24 set. 2010, p. 16.
212
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer – o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte:
UFMG, 2002.
AGUIRRE, Francisco Ballón. Manual del Derecho de los Pueblos Indígenas. Doctrina, prin-
cipios y normas. 2ª ed. Lima: Defensoria del Pueblo. Programa de comunidades nativas, 2004.
ALENCAR, José Maria; BENATTI, José Heder. Os crimes contra etnias e grupos étnicos:
questões sobre o conceito de etnocídio. In Os Direitos Indígenas e a Constituição. Porto Ale-
gre: Fabris, 1993.
ALVES, Paulo César (Org.). Cultura – múltiplas leituras. Bauru: EDUSC, 2010.
AMBOS, Kai. La Parte General del Derecho Penal Internacional. Montevideo: Fundación
Konrad-Adenauer, 2005.
__________. A parte geral do direito penal internacional. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2008.
ANGEL, Fabio Zuluaga. Oro, evangelio y reino – memoria de un etnocidio. Medellín: Prosai-
co, 1992.
BARTOLOMÉ, Miguel Alberto. Los pobladores del “desierto” – Genocidio, etnocidio y et-
nogénesis en la Argentina. Disponível em: <http://alhim.revues.org/document103.html>.
Acesso em: 10 fev. 2011.
BONDY, Augusto Salazar. Existe una filosofia de nuestra América? México: Siglo XXI,
1988.
BULHAN, Hussein Abdilahi. Frantz Fanon and the psychology of oppression. New York:
Plennum Press, 2010.
CAMPOS, Paula Drumond Rangel. O crime internacional de genocídio: uma análise da efe-
tividade da Convenção de 1948 no Direito Internacional. Disponível em:
<http://www.cedin.com.br/revistaeletronica/artigos/O%20CRIME%20INTERNACIONAL%
20DE%20GENOC%CDDIO%20Paula%20Campos.pdf>. Acesso em: 30 jan. 2011.
CANTOR, Renan Vega. Explotación petrolera y etnocidio en Catatumbo: Los Barí y la con-
sesion Barco. Disponível em: <http://www.espaciocritico.com/articulos/rev07/n7_a12.htm>.
Acesso em: 14 fev. 2011.
CARVALHO, Lucas Borges de. Direito e barbárie na conquista da América indígena. Dis-
ponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/arquivos/direito%20e%20barb%E1rie.pdf>.
Acesso em: 30 jan. 2010.
CIFUENTES, José Emilio Rolando Ordoñez. La cuestión étnico nacional e derechos huma-
nos: el etnocidio – los problemas de la definición conceptual. México: Instituto de Investiga-
ciones Jurídicas de la UNAM, 1996.
CINTRA JÚNIOR, Dyrceu Aguiar Dias. Judiciário, violência, genocídio. In Revista Trimes-
tral da FASE, Ano 22, n. 60, março de 1994.
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
Comite Hindu del Congresso por la Libertad de la Cultura. El Tibet y el nuevo imperialismo
chino. México: Libro Mex, 1961.
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 5ª ed. São Pau-
lo: Saraiva, 2007.
COX, Maria Inês Pagliarini. A noção de etnocídio: para pensar a questão do silenciamento
das línguas indígenas no Brasil. Disponível em:
<http://cpd1.ufmt.br/meel/arquivos/artigos/133.pdf>. Acesso em: 28 abr. 2011.
CUVILLIER, Armand. Sociologia da cultura. Porto Alegre: Ed. da Universidade de São Pau-
lo, 1975.
DÁVALOS, Pablo. Ecuador: Ley de etnocidio y genocidio: ¿una batalla perdida? Disponível
em: <http://www.vidadelacer.org>. Acesso em: 04 mai. 2011.
215
DORNELLES, João Ricardo W. O que são direitos humanos. São Paulo: Brasiliense, 2007.
_______________. Oito ensaios sobre cultura latino-americana e libertação. São Paulo: Pau-
linas, 1997.
_______________. Principios, mediaciones y el “bien” como sintesis (de la “etica del discur-
so” a la “etica de la liberación”). In Princípios – Revista de Filosofia – UFRN. Ano V, n. 6,
1998.
_______________. 1492 – el encobrimiento del Otro – hacia el origen del “mito de la mo-
dernidad”. La Paz: Plural Editores, 1994.
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Vol. 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
ESPARZA, José Javier. El etnocidio contra los pueblos: Mecánica y consecuencias del neo-
colonialismo cultural. Disponível em:
<http://www.paginadigital.com.ar/articulos/2004/2004terc/educacion1/e106068-4pl.asp>.
Acesso em: 28 abr. 2011.
216
FERRO, Marc (Org.). O livro negro do colonialismo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
FERRO, Marc. História das colonizações – das conquistas às independências – séculos XII a
XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
FILHO, Carlos Frederico Marés de Souza. A universalidade parcial dos direitos humanos. In
GRUPIONI, Luís Donisete Benzi; VIDAL, Lux; FISCHMANN, Roseli. Povos indígenas e
tolerância: construindo práticas de respeito e solidariedade. São Paulo: Editora da Universi-
dade de São Paulo, 2001.
FILHO, Robério Nunes dos Anjos. Minorias e grupos vulneráveis: uma proposta de distinção.
In FILHO, Robério Nunes dos Anjos (Org.). Direitos humanos – estudos em homenagem ao
professor Fábio Konder Comparato. Salvador: JusPodivm, 2010.
GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar. Lisboa: Instituto Piaget,
2002.
GAUER, Ruth M. Chittó. A fundação da norma – para além da racionalidade histórica. Por-
to Alegre: ediPUCRS, 2009.
GAUER, Ruth Maria Chittó; GAUER, Gabriel José Chittó (Org.). A fenomenologia da vio-
lência. Curitiba: Juruá, 2008.
GIDDENS, Antony; BAUMAN, Zigmunt; LUHMANN, Nicklas; BECK, Ulrich; Las conse-
cuencias perversas de la modernidad – modernidad, contingencia y riesgo. Barcelona: Antro-
pos, 1996.
GIL, Alicia Gil. Los crímenes contra la humanidad y el genocidio en el Estatuto de la Corte
penal internacional a la luz de los elementos de los crímenes. In O Direito Penal no estatuto
de Roma: leituras sobre os fundamentos e a aplicabilidade do tribunal penal internacional.
AMBOS, Kai e CARVALHO, Salo de (Org.). Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005.
GIL, Laura Pérez. Corporalidade, ética e identidade em dois grupos pano. Disponível em:
<http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/15240>. Acesso em: 09 jun. 2011.
GREEN, Penny; WARD, Tony. State crime – governments, violence and corruption. London:
Pluto Press, 2004.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. 3ª ed. São Paulo: Vozes,
2005.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento. São Paulo: Ed. 34, 2003.
JAULIN, Robert. El etnocidio através de las Américas. México: Siglo XXI Editores, 1976.
218
KHÉTSUN, Tubten. Memories of life in Lhasa under chinese rule. New York: Columbia
University Press, 2008.
KUHN, Tomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1998.
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. 6ª ed. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2006.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura – um conceito antropológico. 24ª ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2009.
LARIOS, Eligio Sanchez. El genocidio, crimen contra la humanidad. Mexico: Ediciones Bo-
tas, 1966.
LAS CASAS, Bartolomé de. O Paraíso destruído. Porto Alegre: L&PM, 1984.
MATE, Reyes. En torno a una justicia anamnética. In MARDONES, José M.; MATE, Reyes
(Org.). La ética ante las víctimas. Barcelona: Antropos, 2003.
219
METZ, Johann Babtist. Por una cultura de la memoria. Barcelona: Antropos, 1999.
MONTEIRO, Adriana Carneiro; BARRETO, Gley Porto; OLIVEIRA, Isabela Lima de; AN-
TEBI, Smadar. Minorias Étnicas, Linguísticas e Religiosas. Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br/dados/cursos/dh/br/pb/dhparaiba/5/minorias.html>. Acesso em: 22
jul. 2010.
MORIN, Edgar. Cultura e barbárie européias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.
NERSESSIAN, David. Rethinking cultural genocide under international law. Disponível em:
<http://www.carnegiecouncil.org>. Acesso em: 04 mai. 2011.
OLIVEIRA, Rosa Maria Rodrigues de. Ética da libertação em Enrique Dussel. In WOLK-
MER, Antonio Carlos (Org.). Direitos humanos e filosofia jurídica na América Latina. Rio de
Janeiro: Lumen Júris, 2004.
PACHECO, Rosely Aparecida Stefanes. A violência contra os povos indígenas: uma estrutu-
ra invisível que impõe a fronteira entre a vida e morte. Disponível em:
<http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/rosely_aparecida_stefanes_pach
eco.pdf>. Acesso em: 04 mai. 2011.
PAJUELO TEVES, Ramón. El lugar de la utopia. Aportes de Anibal Quijano sobre cultura y
poder. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/cultura/pajuelo.doc>.
Acesso em: 28 abr. 2011.
PARÍS POMBO, María Dolores. Estudios sobre el racismo en América Latina. Disponível
em: <http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/267/26701714.pdf>. Acesso em: 04 mai. 2011.
PERRAULT, Giles. O Livro Negro do Capitalismo. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.
PIOVESAN, Flávia. Carta africana dos direitos humanos e dos povos. Disponível em:
http://www.esmpu.gov.br/dicionario/>. Acesso em: 04 mai. 2011.
PRADO, Rafael Clemente Oliveira; BRITO, Antônio José Guimarães; AMARAL, José Janu-
ário de Oliveira. Além do Genocídio: o Etnocídio do Povo Oro-Win e a fricção interétnica nas
cabeceiras do Rio Pacaás-Novos: um caso de violação de direitos humanos. In Revista Jurídi-
ca da Universidade de Cuiabá, v. 8, n. 2, UNIC, jul/dez, 2006.
RAWLS, John. O Direito dos Povos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
Revista Leituras da História especial - Grandes Genocídios, ano I, n. 2, Editora Escala, 2008.
RIBEIRO, Darcy. Os Índios e a Civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
RODRÍGUEZ, Victor. Instrumentos internacionais sobre racismo no sistema das nações uni-
das e no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Sistematização, análise e
aplicação. Disponível em: <http://www.iidh.ed.cr>. Acesso em: 04 jul. 2011.
RUBIO, David Sánchez. Filosofía, Derecho y Liberación en América Latina. Bilbao: Desclée
de Brouwer 1999.
RUIZ, Castor Bartolomé. Justiça e memória – para uma crítica ética da violência. São Leo-
poldo: Unisinos, 2009.
RUSTRIAN DIÉGUEZ, Mario Leonardo. Regulación legal del delito de etnocidio en la legis-
lación penal guatemalteca y sus consecuencias jurídico-sociales en los últimos 30 años. 1998.
69f. Tesis (Doctorado en Derecho) – Facultad de Ciencias Juridicas e Sociales – Universidad
de San Carlos de Guatemala, Guatemala, 1998.
SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Globalização e as Ciências Sociais. 2ª ed. São Paulo: Cor-
tez, 2002.
223
SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 2006.
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8ª ed. Porto Alegre: Livra-
ria do Advogado, 2007.
SHAKYA, Tsering. The dragon in the land of snows. London: Penguin Compass, 2000.
SILVA, Carlos Augusto Canêdo Gonçalves da. O genocídio como crime internacional. Belo
Horizonte: Del Rey, 1999.
SILVA, Gladson José da. A antiguidade romana e a descontração das identidades nacionais.
In FUNARI, Pedro Paulo A.; JR, Charles E. Orser; SCHIAVETTO, Solange Nunes de Olivei-
ra (Org.). Identidades, discurso e poder: estudos de arqueologia contemporânea. São Paulo:
Annablume, Fapesp, 2005.
SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.). Identidade e diferença – a perspectiva dos estudos cultu-
rais. Petrópolis: Vozes, 2009.
SILVA, Wilson Matos da. Etnocídio, crime contra etnias ou grupos étnicos. Disponível em:
<www.netlegis.com.br>. Acesso em: 04 mai. 2011.
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. A Repersonalização do Direito Civil em uma socie-
dade de indivíduos: o exemplo da questão indígena no Brasil. In: José Luis Bolzan de Morais;
Lenio Luiz Streck. (Org.). Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica: programa de pós-
graduação em Direito da UNISINOS: Mestrado e Doutorado: Anuário 2007. 1ª ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
SOUSA, Susana Aires de. Sobre o bem jurídico-penal protegido nos crimes contra a humani-
dade. Disponível em: <http://www.defensesociale.org/xvcongreso/pdf>. Acesso em: 06 jul.
2011.
SOUZA, Patrício Pereira Alves de. Ensaiando a corporeidade: corpo e espaço como funda-
mentos da identidade. Disponível em:
<http://periodicos.ufes.br/geografares/article/viewFile/149/75>. Acesso em: 04 mai. 2011.
TERNON, Yves. El Estado criminal – los genocídios del siglo XX. Barcelona: Península,
1995.
TORRES, Luís Wanderley. Crimes de Guerra e Crimes contra a Humanidade. São Paulo:
1955.
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos Humanos e Meio Ambiente: paralelo dos
sistemas de proteção ambiental. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1993.
VIEIRA, Gustavo José Correia. Do genocídio e etnocídio: povo, identidade cultural e o caso
yanomami. São Paulo: Modelo, 2011.
WOLKMER, Antônio Carlos; LEITE, José Rubens Morato. Os novos direitos no Brasil –
natureza e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2003.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
ZEA, Leopoldo. La filosofia americana como filosofia sin más. México: Editorial Siglo XXI, 1989.